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que paris é esse? fragmentos clínicos iNVARIAVELMENTE, as saídas com Sílvia eram as- sim: nossos encontros duravam três horas, eu ia buscá-la em sua casa, saíamos com meu carro e ela indicava o percur- so. Seu programa favorito era ir a um bom restaurante e comer, já que comer tinha o efeito imediato de apaziguar a angústia localizada em sua barriga. Comer não ocupava todo o tempo do acompanhamento e às vezes não fazia parte da saída. Dirigíamo-nos aos Jardins, descíamos a Rua Augus- ta, passávamos em frente ao escritório do pai, subíamos a Rua Augusta, descíamos a Haddock Lobo, subíamos a Bela Cintra, descíamos a Consolação, subíamos a Melo Alves, voltávamos para Rua Augusta, descíamos a Augusta até a Faria Lima, passávamos em frente ao shopping Iguatemi — shopping freqüentado por ela e pela família —, dirigíamo- nos ao bairro de sua infância, passávamos em frente à casa dos pais e em frente ao clube de que eram sócios. Às vezes, parávamos e permanecíamos um tempinho em um dos pon- tos do trajeto: escritório, shopping, casa dos pais ou clube. Invariavelmente, nessas paradas, Sílvia sentia-se mal, des- locada da própria história, parecia não pertencer ao seu pró- prio contexto familiar e social. O que Sílvia buscava na repe- tição inesgotável de tal trajeto? 79 beatriz helena martins de almeida Rumo a Paris...

Beatriz Almeida, Que Paris é esse? Fragmentos clínicos

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Esse texto aborda a construção de um caso clínico de esquizofrenia, atendido em acompanhamento terapêutico. Foi publicado no livro Textos, texturas e tessituras no Acompanhamento Terapêutico, pelo Instituto A Casa.

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  • que paris esse? fragmentos clnicos

    iNVARIAVELMENTE, as sadas com Slvia eram as-sim: nossos encontros duravam trs horas, eu ia busc-laem sua casa, saamos com meu carro e ela indicava o percur-so. Seu programa favorito era ir a um bom restaurante ecomer, j que comer tinha o efeito imediato de apaziguar aangstia localizada em sua barriga. Comer no ocupava todoo tempo do acompanhamento e s vezes no fazia parte dasada. Dirigamo-nos aos Jardins, descamos a Rua Augus-ta, passvamos em frente ao escritrio do pai, subamos aRua Augusta, descamos a Haddock Lobo, subamos a BelaCintra, descamos a Consolao, subamos a Melo Alves,voltvamos para Rua Augusta, descamos a Augusta at aFaria Lima, passvamos em frente ao shopping Iguatemi shopping freqentado por ela e pela famlia , dirigamo-nos ao bairro de sua infncia, passvamos em frente casados pais e em frente ao clube de que eram scios. s vezes,parvamos e permanecamos um tempinho em um dos pon-tos do trajeto: escritrio, shopping, casa dos pais ou clube.Invariavelmente, nessas paradas, Slvia sentia-se mal, des-locada da prpria histria, parecia no pertencer ao seu pr-prio contexto familiar e social. O que Slvia buscava na repe-tio inesgotvel de tal trajeto?

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    beatriz helena martins de almeida

    Rumo a Paris.. .

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    Deixemos por um momento esse percurso para adentrarno campo do acompanhamento teraputico.

    Acompanhamento teraputico clnica. . .

    O acompanhamento teraputico uma das alternativasde tratamento da loucura, que surge no mbito da ReformaPsiquitrica na Europa, muito embora sua origem institu-cional localize-se na Amrica do Sul como amigo quali-ficado , oriundo do auxiliar psiquitrico e do agentecomunitrio, personagens que marcaram uma especial apro-ximao do louco no panorama da Reforma, que buscavaromper com as prticas asilares e segregativas dos mani-cmios.

    No Brasil, as prticas em Sade Mental baseiam-se, prin-cipalmente, em dois modelos da Reforma Psiquitrica naEuropa: o italiano, que prioriza aes de cidadania e dereinsero social e o francs, mais influenciado pela Psica-nlise, que prioriza a conduo clnica e visa a subjetivao.

    notrio que uma importante parcela das pessoas en-volvidas no Movimento da Luta Antimanicomial aposta suasfichas no modelo italiano, mostrando-se avessa Psican-lise, percebendo-a como elitista e prepotente, como detento-ra de um saber que subjuga os loucos como doentes, apro-ximando a Psicanlise do campo da Psiquiatria segregativa.Penso que tal engano decorre, em parte, da histria da Psi-canlise no Brasil, na qual diferente do que aconteceu naArgentina , os psicanalistas se mantiveram distantes dasinstituies de Sade Mental e do engajamento poltico napoca da ditadura salvo algumas iniciativas significati-vas. No entanto, a vinda de psicanalistas argentinos queforam perseguidos pela ditadura de seu pas , a quebra domonoplio da formao de psicanalistas pela IPA, com a fun-dao de outras instituies psicanalticas, como o Instituto

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    Sedes Sapienti e o incio do lacanismo no Brasil reverteramtal cenrio e houve crescente aproximao dos psicanalistass instituies de Sade Mental e um avano em relao clnica das psicoses. Porm, observamos que ainda h mui-tas polticas de tratamento que apostam em prticas dereinsero social como um fim curador em si, sem consideraros aspectos da clnica, como o manejo da transferncia e adireo do tratamento. Soma-se a esses aspectos a fora dapsiquiatria organicista presente nas principais organiza-es de sade em nosso pas , que, apoiada na medicali-zao preventiva, alia-se s prticas das psicoterapias com-portamental e cognitiva e visa a remisso da fenomenologiapsictica, incluindo-se a as alucinaes e os delrios, bemcomo a normatizao e a adaptao ao entorno social, aopreo da possibilidade de o sujeito significar sua existncia.

    Prticas adaptativas, ao invs de abrir lugar social a umsujeito particular, podem acabar por mant-lo no lugar demero reprodutor dos caprichos do Outro, devolvendo-o aocenrio que produziu a loucura como doena. Ao no con-seguir responder ao ideal e ao padro de desempenho e su-cesso da via neurtica, o psictico pode acabar por sucumbira novas crises ou isolar-se em conseqncia do apagamen-to de sua subjetividade. Da a importncia da ateno clni-ca, apostando em efeitos de subjetivao, sustentando assadas pouco comuns que os psicticos encontram para serepresentarem no mundo como fundamentais para qualqueriniciativa de reinsero social. Para que haja lao social preciso que haja suposio de sujeito na psicose e reconhe-cimento de sua maneira particular de existncia.

    Tenrio ressalta o carter refratrio da psicose ao laosocial,1 insistindo na importncia da clnica como condio

    1 Cito Tenrio, acerca do agenciamento social da loucura: Penso que oessencial da Reforma so as prticas de cuidado destinadas aos loucos, visan-do manuteno do louco na vida social e visando a que ele possa, nos

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    efetiva para a cidadania. Enfatiza, ainda, que a cidadania,enquanto pressuposto tico e poltico, efeito da clnica eno ideal de empenho social imposto ao sujeito, situaoem que estaramos substituindo a cidadania como algo queo Outro sonega pela cidadania como algo que o Outro im-pe (Tenrio, 2001, p. 154) .

    Freud indicou que o o paranico reconstri o universo,de fato no mais esplndido, mas ao menos tal em que pos-sa de novo viver. Ele o reconstri mediante o seu trabalhodelirante. Aquilo que tomamos por uma posio mrbida, aformao do delrio, na realidade uma tentativa de cura,uma reconstruo (Freud, 1911, p. 1.522).

    A experincia clnica demonstra que o efeito dos trata-mentos norteados pela Psicanlise e a oferta de uma rede deacolhimento para os psicticos a estabilizao, ou seja, osujeito no surta mais e as freqentes internaes psiqui-tricas para conteno de suas crises no so mais necess-rias, muito embora o sujeito no prescinda de tratamento. Ja questo do lao social continua sendo um desafio clni-ca. Aqueles que atendem psicticos sabem da dificuldade dasustentao de um lugar social para loucura.

    constrangimentos impostos por sua condio psquica, exercer-se como sujei-to. A isso chamo de clnica. E a clnica uma ao social. [. . .] A expressoproblema social da loucura e a atribuio psicose de um carter refratrioao lao social no contm juzo de valor nem engendram algum tipo de cinis-mo. A chamada loucura , para o corpo social, um problema. Em certa medida,a loucura justamente aquilo que aparece no corpo social como no redutvela outras categorias que tentam dar conta da diferena, dar conta do queaparece como incomodamente dissonante. Pode-se mesmo dizer que aquiloque aparece na cultura como diferena irredutvel chamado de loucura formulao que j nos faz perceber que a pretenso de harmonizar loucura esociedade problemtica em si mesma. [. . .] A adeso aos valores da Refor-ma, contra a segregao social da loucura, no implica qualquer romantizaoda loucura e no deve nos impedir de reconhecer a tenso contida no binmiosociedade-loucura. Reconhecer a a base de nosso trabalho um passo impor-tante para que possamos faz-lo com eficincia e para que possamos orientareticamente nossas aes. nessa tenso mesma que trabalhamos somos, nossa revelia ou no, agenciadores dessa tenso (2002, internet).

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    Para Quinet, toda fenomenologia psictica, como passa-gens ao ato, delrios ou produes artsticas so tentativasde fazer lao social.2 No entanto, o xito ou o fracasso detais tentativas advm, em grande parte, da ratificao p-blica que seu entorno social lhe promove. A literatura psica-naltica elenca diversos exemplos, a publicao de Schreber,a passagem ao ato de Aime, a obra de Bispo do Rosrio, aliteratura de Joyce, entre outros.

    O acompanhamento teraputico como uma estratgiaclnica que atua no campo social, ampliando o setting paraacompanhar o sujeito ali onde este se encontra e apoiandoseus projetos, apresenta-se como um potente instrumentoclnico na sustentao de um lao social possvel.

    Voltemos ao acompanhamento teraputico de Slvia.

    Fragmentos clnicos: Slvia um caso. . .

    Antes de retomar o percurso deixado em aberto no inciodo texto, peo pacincia ao leitor, pois em matria de acom-panhamento teraputico no cabe pressa. Antes da conclu-so do trajeto e da precipitao de um sentido, necessrioapostar no processo, no caminho e, no raro, um bom come-o de trabalho e tratamento refere-se tentativa de recons-truo da histria particular do sujeito psictico, procuran-do isolar alguns pontos significativos que possam servircomo sustentao em que as amarraes de sentido possamancorar-se. Convido-os, portanto, a acompanhar-me num bre-ve histrico do acompanhamento teraputico de Slvia.

    Slvia tinha trinta anos quando comecei a acompanh-la. Era atendida por um psiquiatra e fazia terapia de famlia.Nesse momento estava desligando-se do hospital-dia quefreqentara por dez anos e limitava-se a ficar em seu quarto

    2 Conferncia de abertura da jornada As Psicoses e Seus TratamentosPossveis (So Paulo, 2005).

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    deitada no escuro, olhando para o teto, saindo apenas parao jantar semanal com um acompanhante teraputico. Oterapeuta de famlia, responsvel pela conduo de seu tra-tamento na instituio que a tratava, resolveu apostar naintensificao do acompanhamento teraputico, com a en-trada de mais duas acompanhantes.

    Slvia chegara instituio em crise, aps uma passa-gem ao ato em que ateou fogo ao prprio corpo. Sem recur-sos simblicos, inscrevera na carne o inassimilvel da emer-gncia da sexualidade na adolescncia: fogo no corpo.

    No incio do tratamento, sua me dissera ao terapeutade famlia: Voc vai ter de fazer uma cirurgia, somos comosiamesas.

    A maneira peculiar de relao que Slvia estabelecia co-migo e o lugar transferencial em que me inclua revelavam odiagnstico e indicavam um caminho teraputico.

    Slvia olhava-me como a um espelho, e se eu estivessecom olheiras, ela perguntava-me se ela estava com olheiras,olhando-me atentamente sem perceber que as olheiras eramminhas e no dela. Colada na imagem, facilitada pela seme-lhana de altura, cor de cabelos, olhos e pele, passou a bus-car o mesmo corte de cabelo, com o tempo o mesmo peso, asbijuterias da outra acompanhante, as mesmas roupas dacolega de moradia, entre outros atributos e costumes quecopiava de seus pares.

    A colagem que Slvia fazia em meu corpo e sua imitaoimaginria incomodavam-me, de modo que eu me pergun-tava se eu estava servindo de modelo para ela tcnica de-fendida por uma corrente de acompanhantes teraputicos, queno me agrada, visto ser pedaggica e adaptativa (Bauer &Resnizki) , no entanto, esse movimento partia de Slvia e,no recuando ante o lugar em que ela me colocava, conclutratar-se de um modo peculiar de transferncia, que buscano outro em espelho uma suplncia imaginria que confere

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    integridade ao corpo despedaado da esquizofrenia. Trans-ferncia difcil de sustentar, pois suportada no corpo mes-mo da acompanhante. Qualquer movimento da acompa-nhante pode ameaar a integridade do sujeito. Slvia deixoua franja crescer, ficando com um corte de cabelo semelhanteao meu. Quando cortei a franja, ela ficou muito intrigada, efinalmente defendeu-se: Voc fez de propsito.

    Quinet assinala:

    Pareceu-nos que a prpria imagem do [Outro] [. . .]serve ao sujeito de molde, ou melhor, de eu, para queseu corpo no se despedace completamente no real. aimagem do [Outro] que vem suprir para ele a linguagemque no estrutura o corpo. Esse Outro [. . .] lhe vale comoo outro no espelho, remetendo-lhe uma imagem unifi-cada (Quinet, 2000, p. 122).

    Slvia relatou um sonho: Minha tia caa sobre um mon-te de espelhos e seu rosto estava se desfigurando, ela esta-va ficando louca, eu e meu tio ficamos aflitos porque preci-svamos salv-la, era muito angustiante, pois salv-la eracom o corpo, com a vida. Esse sonho no se manifesta comona neurose, como formao do inconsciente, necessitando dedecifrao; manifesta-se de forma desvelada, literal, indi-cando a fragmentao corporal presente na esquizofrenia ea necessidade de sustentao imaginria no corpo do outro.

    Slvia pedia que eu olhasse como ela andava, olhassequando pulava na piscina, olhasse se estava fazendo certo,lembrando o apelo ao olhar do Outro que pode ratificar suaintegridade, ainda que imaginria, como desenvolvido porLacan (1949), ao tratar do estdio do espelho como forma-dor da funo do eu.

    Nesse primeiro tempo de acompanhamento, tratava-sede sustentar a colagem imaginria com a presena e com o

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    olhar; e, aos poucos, ir introduzindo uma certa dialtica:igual, mas diferente.

    Nesse sentido, incluir a autoridade do terapeuta de fa-mlia como instncia de decises sobre o que podamos ouno fazer (como viajar, sair noite, interromper ou no otratamento, entre outras coisas) foi fundamental. A acom-panhante, enquanto Outro do espelho, apresentava-sebarrada em sua onipotncia, e permitia introduzir uma rela-o dialtica entre o outro e o Outro, ou seja entre a colagemimaginria no semelhante e o lugar do cdigo portador deuma lei que regula as relaes.

    Nos primeiros anos de acompanhamento teraputico,Slvia sentia a proximidade com as pessoas como muitoinvasiva, se esquivando do contato fsico e defendendo-sequando algum a tocava ou esbarrava nela.

    A excitao experimentada na rua, nos encontros ena imaginao era vivida como despedaamento do cor-po, que ela expressava perguntando repetidas vezes se seubrao iria cair, se a perna seria amputada, gozando com aidia de ficar entrevada em uma cadeira de rodas, ou seja,o espetculo de horror que ofereceria ao Outro: J pensou,no ter braos, como vou fazer para comer? Deve ser umador horrvel perder o brao.

    Slvia localizava a origem dos fenmenos corporais quea invadiam numa tentativa malsucedida de enforcamento,dizendo: Foi por causa da corda.

    Slvia queixava-se de sentir perseguio na rua, poisacreditava que as pessoas sabiam o que fazia na intimidadee conheciam seus pensamentos, por isso riam dela e afasta-vam-se. Por outro lado, gozava com a idia de que os tera-peutas do hospital-dia divertiam-se com uma filmadora ins-talada em seu quarto, chegando a perguntar-me, algumasvezes, se eu havia assistido ao vdeo. Vale notar, alm dogozo localizado no corpo (fenmenos corporais), a manifes-

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    tao do gozo localizado no Outro, Outro que v o que faz,sabe o que pensa e goza sua custa (delrios erotomanacose persecutrios).

    Tal persecutoriedade apresentava-se tambm na trans-ferncia. Em alguns momentos, ela acusava-me de provocardor em seu corpo, de provocar que seu brao viesse a cair oude explorar o dinheiro de seu pai.

    Ao mesmo tempo que buscava atestar sua integridadecorporal na presena e no corpo da acompanhante, Slviabuscava no delrio apoio nos significantes, para fazer-se re-presentar. Nesse caso, cabia acompanhante oferecer-se,tambm, enquanto corpo de significantes e lugar de teste-munho de sua produo delirante. Nesse momento, trata-va-se de escutar o delrio e avalizar seu valor de verdade,mas, tambm, de fazer objeo ao lugar de perseguidora, nosentido de barrar a onipotncia do Outro encarnado pelaacompanhante, como estratgia para garantir a continuida-de do tratamento.

    Quinet aponta a paranoizao3 como direo do trata-mento na esquizofrenia. Gostaria de ressaltar que no setrata de paranoizao no sentido de transformar esquizo-frenia em parania, mas de uma passagem de um tipo clni-

    3 Cito Quinet, acerca da paranoizao na esquizofrenia: Nessas duasformas de psicose o que encontramos em comum, e o que mais importante, que no existe barreira ao gozo do Outro, seja enquanto corpo, seja enquan-to um Outro personificado. Essa caracterstica comum torna possvel a passa-gem de uma para outra, entre parania e esquizofrenia fazendo surgir naclnica formas mistas, a exemplo do caso de Schereber, que Freud afirmatratar-se de demncia paranide. [. . .] A passagem da esquizofrenia para-nia ou, em outros termos, a estabilizao de um delrio implica a produo deuma suplncia da metfora paterna, operao que no se realizou, e corres-ponde a uma transladao do gozo do corpo para um gozo localizado numOutro subjetivado, em alteridade em relao ao prprio sujeito. A partir da,podemos evocar a questo da transferncia, em geral na psicose e em particu-lar na esquizofrenia, no sentido em que a emergncia da transferncia impli-ca uma paranoizao. O analista aparece, ento, como um Outro de uma dasformas da parania: como perseguidor, objeto da erotomania ou algum quetrai o sujeito, colocando o analista em situao bastante difcil (2000, p. 116).

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    co a outro, que indica uma mobilidade dentro da estrutura,visto que a produo delirante na esquizofrenia apresenta-se fragmentria, repetitiva e sem a sistematizao prpriaao delrio paranico. Apesar do recurso ao delrio, diante desituaes novas ou que no podia simbolizar, Slvia voltavaa apresentar fenmenos corporais e de desintegrao.4

    Faamos algumas consideraes tericas. Para Lacan,estrutura limite, ou seja, no h passagem de uma estru-tura a outra, no sendo pensvel a neurotizao da psicosecomo conduo de tratamento. Neurose e psicose so for-mas diferentes de subjetivao.

    Na neurose, o Nome do Pai vem significar o enigma doDesejo da Me, o que faz supor que Me (enquanto pri-meiro representante do Outro) falta algo. Me falta o falo,enquanto significante da falta a ser. Estamos falando emcastrao simblica. O significante recorta o corpo e localizao gozo; h uma perda de gozo, do gozo do ser, e o neurticotem acesso ao gozo flico. Em termos de sujeito, ao consen-tir com a linguagem para fazer-se representar, h uma per-da, pois o significante insuficiente para represent-lo porinteiro, e o sujeito precisa deslizar na cadeia para fazer re-curso ao sentido, que sempre escapa; o significante repre-senta o sujeito para outro significante.

    Esquizofrenia e parania, enquanto tipos clnicos das

    4 Quinet diz que o esquizofrnico no chega a fazer com que a lingua-gem morda seu corpo, ou seja, a fazer com que seus rgos entrem na danados significantes, da o seu corpo ser levado ao despedaamento [. . .], o corpo levado a se despedaar no real. Se no neurtico o corpo simboliza o Outro, noesquizofrnico o corpo o Outro, o corpo como lugar de gozo, sem qualquermediao (1999, p. 101). O autor acrescenta que a constituio do delrio,quando ele ocorre no caso da esquizofrenia [. . .], no consegue localizarcompletamente o gozo no campo do Outro [. . .]. Na esquizofrenia no huma localizao total do gozo no campo do Outro, o gozo retorna ao sujeitonas alucinaes, fenmenos corporais, etc. [. . .] No caso da esquizofrenia, aausncia de um S1 [significante mestre] promove uma disperso dossignificantes, manifesta tambm no delrio (1999, p. 103).

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    psicoses, tm em comum a foracluso do Nome do Pai nocampo do Outro, no havendo, portanto, a inscrio da sig-nificao flica. O psictico goza de ser, ser o falo que com-pleta o Outro, o que equivale a dizer que o gozo est locali-zado no Outro. Em termos de sujeito, no consentindo coma castrao, observa-se a colagem da palavra coisa, e osujeito no se faz representar. Da o delrio ser tomado comocura, pois na cadeia delirante que o psictico se faz repre-sentar como sujeito, no entanto trata-se de uma represen-tao no referida significao flica, portanto no nor-mativa.

    A esquizofrenia levanta um problema adicional, pois nos o sujeito no est em funo, como a funo do eu estproblematizada. O eu confere a iluso de unidade e apia osujeito, funciona como matriz imaginria para o simblico.O esquizofrnico precisa do outro como bengala imaginriapara suprir a iluso de integridade corporal. Se o outro nosuporta a funo de suplncia imaginria, o esquizofrnico dominado pelas pulses auto-erticas, o que equivale adizer que o gozo est localizado no corpo. Se a suplnciaimaginria funciona, ento algo de gozo pode ser localizadono Outro, tornando possvel fazer recurso ao significante nodelrio para representar-se, de forma capenga, pois sempredependente da presena e do olhar do outro, que lhe confereum eu como base para efeitos de subjetivao.

    Da a hiptese de que a subjetivao na esquizofrenia orien-ta-se em direo parania. Dito de outra forma, o clculo naconduo do tratamento da esquizofrenia seria produzir efei-tos de sujeito, ou seja, a transladao do gozo situado nocorpo a um ponto de gozo no Outro, e a construo no del-rio de um significante que venha design-lo. Da a impor-tncia de Slvia fazer recurso a alguma produo delirante.

    Silvia perguntava repetidamente se seu brao iria cair,especialmente em situaes em que as pessoas ao seu redor

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    lhe provocavam excitao e inveja. Certa vez, no cinema,ela perguntava-me: Minha cabea cai?, e a interveno:Sim, cai, mas no rola!. Sim e no. Trata-se de acolher,mas introduzir a dimenso do equvoco, no sentido de dia-letizar as certezas. Igual e diferente. Sim e no. De modo queprovoque uma flexibilizao nas certezas delirantes, que pos-sa funcionar na direo da constituio de uma metforadelirante.

    Delirar sim, proliferao imaginria no. Tambm na cl-nica das psicoses, trata-se o real pelo simblico, na direoda metfora.

    Slvia: Tenho pensado em morrer, mas no tenho cora-gem de me matar.

    Acompanhante: No pode.Em outro momento:Slvia: A vida muito difcil. E se a vida me pedir para ir

    nadando at o Pacfico?Acompanhante: Difcil sim, impossvel no.Sim e no, construo e castrao. Se h um sim categ-

    rico em relao transferncia, aceitar, acolher a transfe-rncia; e se h um no categrico em relao s passagensao ato.

    Slvia trabalhava construindo barreiras atrs da portade seu quarto, inventando mecanismos para que algum ob-jeto casse e fizesse barulho para acord-la, caso algumtentasse entrar em seu quarto durante a noite para gozar deseu corpo enquanto dormia. Testava suas construes e cha-mava-me para testemunhar suas estratgias de barrar oOutro.

    Slvia passou a escrever bilhetinhos pedindo ao Outroque no estragasse suas coisas, colando-os em locais es-tratgicos de sua casa; ao passo que em momentos de an-gstia ps-se a escrever pequenos textos, questionando emprimeira pessoa o que poderia fazer para ser feliz, pergun-

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    tando-se como se virar diante da solido e das incertezas deseu futuro, notando o envelhecimento de seus pais e o pr-prio amadurecimento. Evidencia-se aqui um efeito de sujei-to, enfim, algo operou, permitindo que ela se confrontassecom a falta confronto muito difcil para ela, em virtude dacarncia de recursos simblicos para lidar com tais questes.Slvia passou a expressar uma vontade de ser normal ou,diante das dificuldades, desistir: eu queria morrer, mas notenho coragem de me matar ou eu queria ser normal, masa vida to difcil, e ainda acho que meus pais queriamuma filha que tivesse sucesso, devem estar decepcionadoscomigo.

    Slvia passou a pedir licena e a desculpar-se se esbarra-va em algum, o que anteriormente era interpretado por elacomo uma violncia vinda do outro. O medo que sentia narua foi se transformando em vergonha de sua sexualidade.Deixou de constranger as pessoas que conhecia ou reen-contrava, apresentando-se como queimada, enforcada oulouca. Voltou a sair sozinha e tem optado por engajar-se emcursos e atividades freqentados por pessoas normais.

    O funcionamento anteriormente descrito permanece: Sl-via continua a sentir angstia, perseguio, estranhamentoem relao ao prprio corpo e a defender-se agressivamente,mas de uma forma circunscrita, ou seja, a partir de algunsdisparadores: situaes novas ou injunes que no conse-gue simbolizar; sendo a freqncia dessas manifestaescada vez menor e bastante reduzida em relao ao incio doacompanhamento.

    O efeito de conseguir minimamente barrar o gozo doOutro foi conseguir perceber a falta no Outro. Certa ocasio,Slvia observou: Eu sei que voc tambm quer ter coisasque no tem. E a partir da, orientar-se num sentido deresponsabilizao, assumindo a autoria sobre seu sofrimento,como indica Souza: Vejo, nesses relatos, um movimento

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    onde se aceita a responsabilidade que concerne a cada su-jeito. Vejo a um ato, um gesto afirmativo, onde se assina,onde se assume como seu como seu bem, sua companhia aquilo que era o mal, o estranho, o intruso.5

    Se Slvia vem assumindo a autoria sobre o seu sofri-mento, confrontando-se com a falta, no prescinde da su-plncia imaginria no outro, no entanto, ser que em algummomento poder prescindir da presena de acompanhantesteraputicos?

    Slvia disse: Vou sempre precisar da Bia [acompanhan-te], quer dizer, talvez no futuro, de uma outra Bia. No m-nimo, ela pe no horizonte a possibilidade de uma subs-tituio; ser que essa outra Bia, poder ser, em algummomento, uma representao em pensamento e no em cor-po presente?

    Paris um nome. . .

    Isto posto, reintroduzo a questo: o que Slvia buscavana repetio daquele percurso que passava pelo escritriodo pai, pelo shopping freqentado pela famlia, pela casados pais e pelo clube de que eram scios?

    Durante meses acompanhei Slvia por tal trajeto, ondeestava evidenciado o circuito que tangenciava os pontos dereferncia de seu ncleo familiar. Num dado momento, paraincluir a uma diferena, propus que passessemos pelostneis recm-inaugurados, passando por baixo do Ibirapuera

    9 Souza (1999), p. 98. Estranho, entendido aqui, no sentido que assinalaRabinovitch: A prpria marca daquilo que foi cortado, excludo, nunca maisse encontrar; o que far as vezes de marca ser o estranho, o heterogneo.A foracluso [. . .] no define apenas um modo de defesa do sujeito, localizvelno aparelho psquico, ao lado dos outros mecanismos, no define apenas aoperao de uma negao constitutiva do sujeito, mas instaura um lugarexterior ao sujeito e distinto daquele do retorno do recalcado: o fora (2001,p. 21).

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    e do rio Pinheiros. Ela aceitou, por outros meses percorre-mos tneis, amos da Avenida Vinte e Trs de Maio aoMorumbi, e da Vinte e Trs de Maio USP. Passando pelaUSP, vez ou outra, retomvamos, de uma nova direo, ocircuito familiar: da USP ao clube, casa dos pais, RuaAugusta, e de volta para sua casa. O que se mostra aqui talvez possamos pensar assim que os caminhos pelacidade so percorridos sob uma outra significao alm dade passearmos ou conhecermos novos locais. O circuito dedeslocamento passou a incluir novos endereos, novas pas-sagens, mas o significado dos tneis ou da USP insere-seigualmente em sua busca pelo circuito tradicional. O que serevela que, no importa quo perto ou longe estivssemosde tal circuito, o significado de percorrer os caminhos juntode Slvia, at ento, serviam a um outro propsito. Uma ou-tra busca sua por insero familiar. Vejamos isso em umpasso um tanto mais largo: Paris.

    Alguns anos mais tarde, tive oportunidade de acompa-nh-la numa viagem de 23 dias Europa. Essa viagem meparece bastante ilustrativa do acompanhamento teraputicode Slvia, primeiro porque aqui se impe a particularidade daclnica do acompanhamento teraputico em relao aos ou-tros dispositivos de tratamento da rede de Sade Mental: ospressupostos dessa clnica possibilitam o atendimento emsituaes de viagem e, tambm, porque a situao vivenciadapor Slvia e testemunhada por mim me parece paradigmticano tratamento de Slvia.

    oportuno notar o valor dessa viagem para Slvia, sur-preendente para qualquer compreenso neurtica: menos queconhecer lugares e culturas, Slvia pretendia ser chique, eeste era o significante que para ela designava sua famlia,da qual ela era a prpria contradio em sua condio deloucura. Evidenciava-se cada vez mais a necessidade de Sl-via significar seu pertencimento familiar, e a viagem ia con-

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    figurando-se como mais uma retomada do circuito familiar,o que passava pela rua Augusta e adjacncias, tangenciando,assim, mais um dos pontos de circulao de sua famlia mas,dessa vez, um ponto do qual estava de fato excluda.

    Slvia ficava siderada cada vez que via pessoas com olhosazuis, os olhos azuis do pai e do irmo. Slvia no tinhaolhos azuis, seus olhos eram castanhos. Morria de invejadas primas, que ou eram lindas, ou trabalhavam, ou casa-ram e tiveram filhos. Perguntava freqentemente se seuspais gostavam dela ou se desejavam o seu mal, no sabiacomo se comportar na presena deles, sentindo-se agredidae inferiorizada. Uma coisa era certa: todas as pessoas de suafamlia viajavam muito ao exterior, especialmente Europa.Seus pais viajavam todos os anos e nessas ocasies, ela ex-pressava a inveja que sentia deles e sua vontade de viajartambm.

    Slvia portava em si uma estranheza em relao fam-lia, a aparncia e os comportamentos bizarros que a caracte-rizavam, eram a prpria contradio etiqueta de chique,de modo que ficava sem lugar, j que no ser chique eraequivalente a no ser.

    Durante muito tempo, ela dizia ao terapeuta de famliaque queria viajar ao exterior, mas recuava em seguida commedo e no sustentava seu pedido. At que o terapeuta defamlia reconheceu e validou seu pedido aos seus pais, e,em meio a muitas vacilaes, Slvia me pediu que a acompa-nhasse.

    A partir do momento de sua deciso, os preparativos paraa realizao da viagem tiveram de ser bastante rpidos, jque esse tempo de espera lhe causava muita ansiedade: Pre-ciso ir logo, ainda no estou l, mas tambm no estou maisaqui.

    Na agncia de viagens, no sabia para onde queria ir,mas o roteiro deveria incluir Paris, para onde os pais sem-

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    pre iam, onde estava morando uma de suas maravilhosasprimas e era muito chique. Em nenhum momento foi umaquesto para ela quais os lugares a serem visitados do pon-to de vista turstico, ou de atrativos naturais, ou de interes-se cultural, intelectual ou artstico; ela no fez nenhum tipode pesquisa precedente que identificasse os locais e que pu-desse ser um critrio de escolha. Pretendi intervir o mnimoem suas escolhas, mas por falta de escolha sua nicacondio fora passar por Paris , orientei a viagem parapases em que a lngua facilitasse nosso acesso e deixei queseus pais cuidassem do restante.

    O primeiro impasse que enfrentamos foi a indignao deSlvia ao constatar que eu cobraria honorrios para acompa-nh-la durante a viagem, j que ela entendia que, uma vezque seus pais arcariam com minhas despesas, ela me ofere-cia gozar por meio dela do dinheiro de seus pais. O pagamen-to, instaurando a dimenso da relao de trabalho e a regraque nortearia a viagem, promovia uma barreira ao gozo doOutro. Slvia ameaou cancelar a viagem, sustentei o paga-mento, a regra, meu lugar profissional, o que estabeleciaposies, a viagem seria para ela e eu a acompanharia; casocontrrio, a viagem seria para mim, e ela seria objeto de gozo.Iniciamos, assim, a construo de uma viagem possvel paraSlvia e, mais do que isso, a tentativa de uma localizaosubjetiva em sua famlia.

    Nos dias que antecederam a viagem, Slvia oscilava en-tre duas posies, por um lado perguntava-me insistente-mente se eu iria deix-la aproveitar ou se seria eu quem iriaaproveitar em detrimento dela; por outro lado, afirmava quea Europa era maravilhosa, pois todos diziam isso e, portan-to, a viagem seria muito boa.

    No aeroporto, Slvia comeou a reclamar que no estavaaproveitando e a se comportar como louca, piorando seucomportamento no avio. Num outro momento, justificou

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    esse comportamento, dizendo que queria chamar a ateno,queria que todos a notassem.

    Slvia ficou agressiva como em muitos anos no aconte-cia, no tinha dilogo possvel, comportava-se de maneirasimilar ao incio do acompanhamento. Os primeiros trs diasde viagem foram muito difceis e eu estava avaliando sevaleria a pena continuar, diante de seu sofrimento.

    Logo no incio da viagem, tropecei e ca na calada. Sl-via colou nesse acontecimento, repetindo algumas vezes:Voc caiu, identificada como objeto dejeto, deixada cair dossignificantes; nada a representava, o que equivale a dizerque ela representante de nada. Ela no conseguiu fazer-serepresentar pelo significante chique, ficando fixada no forade sentido. Calou-se. A sada pelo significante no delrio sfoi possvel porque eu estava ali, sustentando-a na transfe-rncia.

    Passou duas tardes inteiras dormindo, acordando ape-nas para jantar, respondendo minha insistncia. Nessasduas sadas para jantar, eu contava a ela o que eu haviafeito durante a tarde e mostrava cartes postais para queela visse os passeios que perdera. Ela interessou-se, come-ou a achar que estava perdendo os passeios e precisavaaproveitar. Na terceira noite fomos a um restaurante chi-que, um lugar muito bonito, onde tivemos um jantar muitoagradvel. A oportunidade de rearranjar o significante chi-que na cadeia reinstalou a possibilidade de dilogo.

    Desde que chegara na Europa, Slvia estava indignadaque l tambm sofresse, repetindo isso muitas vezes. Acre-ditava que se a Europa era maravilhosa como todos diziam,ento l no deveria existir sofrimento, e, no entanto, elaestava l e estava sofrendo. Ela insistia, decepcionada, queachava que na Europa as coisas seriam diferentes, mas erainteressante que o tempo todo buscasse referncias conhe-cidas, familiares como Mc Donalds, Hard Rock, Dunkin

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    Donuts, pratos conhecidos nos cardpios e que desvalo-rizasse o que provava de diferente, mostrando sua dificul-dade de assimilar a diferena. As mudanas para ela eramvividas com muita violncia, levou uns trs dias para adap-tar-se novidade da viagem.

    A constituio do sujeito passa por duas operaes: naprimeira, alienao, o sujeito faz a entrada na linguagem,como falado pelo Outro, alienado ao desejo do Outro. Opsictico no ascede segunda operao, de separao, pa-rir-se como sujeito falante, que equivale entrada no dis-curso, que faz o sujeito neurtico.

    Dizer que o psictico no entrou no discurso o mesmoque dizer que o significante no representa o sujeito paraoutro significante. A palavra no funciona como morte dacoisa, apontando para a castrao.Se do Outro vem a afir-mao que a Europa maravilhosa, isso deve querer dizerexatamente isso, o efeito de colagem entre palavra e coisa,que se manifesta na psicose. Slvia esperava ser notada noaeroporto como maravilhosa, durante a viagem, exibia o di-nheiro, carto de crdito e de viagem, como se fosse a nicano mundo que os possusse. Quando um significante repre-senta o sujeito para outro significante, h uma perda e oneurtico vai se virar em torno dessa falta constitutiva. Nose sentir maravilhosa na Europa, ao invs de apontar a fal-ta para Slvia, lanou-a no encontro com o nada, com o bu-raco de significao. Quando a lgica em que o psictico seapia falha, ele se encontra com a perplexidade. Foi o queaconteceu com Slvia nos primeiros dias de viagem, at quepudesse encontrar uma sada suportada pela transfernciacom a acompanhante e restabelecer a cadeia de significan-tes no delrio: num primeiro momento, Slvia estranhava aspessoas ao redor e me acusava de provocar-lhe algum mal,parecendo uma reao a uma irrupo de real. Num outromomento, construiu a explicao delirante de que seus co-

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    nhecidos em So Paulo, com inveja de sua viagem, impe-diam-lhe de aproveitar e faziam-na sofrer, mesmo dis-tncia. A partir dessa certeza delirante, apaziguou-se e con-seguiu desfrutar de momentos agradveis e reconheceraspectos positivos e negativos da viagem.

    Diante do encontro com o buraco no simblico, Slviaexperimentou a perplexidade, mas no sucumbiu ao surto,uma vez que contava com o suporte transferencial da acom-panhante e algo do delrio pde operar. A metfora deliran-te6 faz suplncia metfora paterna, conferindo sentido existncia do indivduo como sujeito, na medida em que lhed alojamento no significante (Quinet, 2000, p. 110). Fun-ciona como uma pseudometfora paterna, assim como umaprtese que necessita de manuteno para funcionar. Lacanutiliza como metfora o banquinho de trs ps: como se oquarto p estivesse l, o banquinho mantm-se equilibra-do, mas se houver um sobrepeso, capenga.

    J em Paris, Slvia precisou carregar sua mala pesadssimaum lance inteiro de escadas e, com humor, brincou: Se obrao no caiu agora, ento no cai mais!. interessantenotar a mudana de posio em relao ao incio da viagem,quando esperava que eu fosse carregar sua mala. Slvia con-seguia ocupar-se de suas coisas, eu assumia apenas as ta-refas mais complexas, como fechar as contas nos hotis efazer check-in, momentos em que Slvia ocupava-se em ve-rificar se algum teria mexido em suas malas. Percebi umenorme amadurecimento em Slvia e como ela se sentia sa-

    6 Lacan assinala como prprio da psicose o termo Verwerfung, foraclusodo significante Nome-do-Pai no Outro, dizendo que no ponto em que [. . .]chamado o Nome-do-Pai, pode pois responder no Outro um puro e simplesfuro, o qual, pela carncia do efeito metafrico, provocar um furo correspon-dente no lugar da significao flica. [. . .] a falta do Nome-do-Pai nesselugar que, pelo furo que abre no significado, d incio cascata de remane-jamentos do significante, de onde provm o desastre crescente do imaginrio,at que seja alcanado o nvel em que significante e significado se estabilizamna metfora delirante (1958, p. 564).

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    tisfeita com suas conquistas. Slvia disse: Eu consegui, massozinha no teria conseguido.

    A ltima semana de viagem trouxe uma novidade: in-tegramos uma excurso pela Itlia, na qual em poucos diaspercorremos vrias cidades. A novidade e o encontro com ogrupo desorganizaram Slvia, que ficou novamente muitoagressiva comigo, agindo como louca. No grupo havia bra-sileiros, argentinos e espanhis. A lngua estrangeira nonos protegia mais: a partir de ento haviam pessoas comquem nos encontrvamos todos os dias e que compreen-diam as nossas conversas e, ainda, que conversavam conos-co; isso sem falar nos horrios rgidos das sadas do nibusem todas as paradas, do fato de termos de acordar s setehoras da manh todos os dias e de termos uma guia de tu-rismo nos orientando constantemente. Precisei ser firme comSlvia e responsabiliz-la pela deciso de como se apresen-taria quelas pessoas; ela conseguiu controlar-se e, passa-do o primeiro momento de adaptao, conseguiu novamen-te aproveitar a viagem. No incio da excurso, Slvia repetiaque preferia quando ramos s ns duas.

    Os casais brasileiros notaram que Slvia era muito ansio-sa, mas em nenhum momento louca; quando perguntavam oque fazia, ela respondia que estudava pintura; perguntavamse ramos irms e ela respondia que no; perguntavam seramos amigas e ela respondia que sim. Em nenhum mo-mento precisei me identificar como terapeuta dela. Enfim, osbrasileiros adotaram um pouco Slvia, tratando-a de formamuito afetiva e fazendo brincadeiras com ela. Slvia sentiu-semuito bem com isso e logo se organizou novamente, conse-guindo aproveitar da companhia das pessoas, descolando-se um pouco de mim. Slvia estava mesmo descolada nofinal da viagem e era perceptvel algum efeito de lao social.

    Na penltima noite de viagem fizemos um passeio poruma colina, num caminho que levava s fortalezas, de um

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    lado se avistava o mar e do outro o vale. Slvia estava muitoleve, feliz com a viagem, conseguia ponderar prs e contrasda fase em que viajamos sozinhas e da fase em excurso.Olhando para uma reentrncia no muro da fortaleza, Slviaperguntou para que aquilo teria servido, no lembro o querespondi, mas ela disse que faria ali um forno de pizza, ri-mos muito, ela via comida em tudo. Disse, ento, a ela quecada pessoa interpreta as coisas de uma forma particular, eque enxergar ali um forno de pizza era sua forma particular,assim como entrar em todos cafs, restaurantes, supermer-cados, confeitarias e sorveterias pelos quais passamos du-rante a viagem.

    Em Paris, havia um recepcionista de hotel, simptico eextrovertido, que conversava muito conosco. Excitada e an-siosa, Slvia perguntava-me se tinha uma bola no nariz dela,se uma orelha estava maior do que a outra, se o recepcionistahavia entrado em seu quarto noite, se eu entrara com ele,se o terapeuta de famlia colocou uma filmadora em seu quar-to. Encontrei a seguinte anotao em meu dirio de viagem:

    O corpo. Os Outros entram. Ela oferece um espetculo.Esse parece ser o circuito em que Slvia se apia. Experi-

    menta a excitao no corpo de forma indiferenciada, o gozono corpo sem palavras, que levam sua fragmentao, numaposio esquizofrnica em que ela precisa da imagem dooutro para integrar-se. Mas h uma passagem para a posi-o paranica, indicando a possibilidade de representar-se;o Outro goza de seu corpo e ela, por sua vez, goza oferecen-do um espetculo ao Outro, dando assim consistncia a esseOutro, que ela barra com suas construes atrs da porta eos bilhetinhos espalhados por sua casa pedindo que paremde estragar suas coisas. Barrar minimamente o Outro possi-bilita a ela confrontar-se com a falta constitutiva do huma-

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    no, e questionar-se, com muita dificuldade, sobre as incer-tezas relativas ao envelhecimento, morte, solido e aofuturo.

    Certa vez algum tempo antes de nossa viagem , Sl-via havia feito a seguinte analogia sobre seu momento: como se eu estivesse num buraco, agora coloquei a cabeapara fora, mas ainda no sa, estou olhando para fora, que-ro sair, mas l fora to grande, d um medo!. Do quarto aParis, Slvia tem se aventurado l fora.

    Gostaria de deixar claro, que no pretendo transmitir,assim, nenhuma idia, menos ainda nenhum ideal, de aqui-sio contnua de autonomia, num sentido de desenvolvi-mento, ou ampliao crescente de circulao. No h conti-nuidade. Slvia vive seus fluxos, experimenta sensaes, errae se orienta, cola e descola, s vezes decola, aterra e erra,copia e cria, escreve e pinta. Slvia trabalha, trabalha parase parir,7 para sair do buraco.

    A experincia no acompanhamento teraputico permitea ela, apoiada na transferncia, constituir pontos de anco-ragem, construir amarraes de sentido que lhe sirvam dereferncia para existir.

    Para concluir, no posso deixar de destacar que, durantetoda a viagem, Slvia perguntava se seus pais teriam estadoneste ou naquele local. Ficou muito satisfeita quando, emRoma, lembrou-se de ter visto uma foto deles em um daque-les restaurantes. Procurava, insistentemente, reconstituir aviagem dos pais para inserir-se no mesmo contexto. Slviaquem indica o caminho. Trata-se, para ela, de construir uma

    12 Separare, separar, irei logo ao equvoco do se parare, se parer, em todosos sentidos flutuantes que tem em francs, tanto tambm vestir-se, quantodefender-se, munir-se do necessrio para pr-se em guarda, e irei mais longeainda [. . .], ao se parere, so engendrar-se, de que se trata no caso. Como,desde este nvel, o sujeito ter que se procurar? a est a origem da palavraque designa em latim o engendrar, [. . .] pr no mundo (Lacan, 1964, p.202).

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    suplncia para as questes relativas filiao e s origensque signifique sua existncia. Se Slvia insiste em refazer opercurso familiar, para a se inserir e localizar, menos do quepara colar, serve para descolar, quanto mais eficiente a su-plncia, mais condies ela cria para a independncia da pre-sena macia e concreta dos pais. Ao mesmo tempo, maiscondies ela cria para poder aproximar-se deles sem sentir-se aniquilada por suas presenas. Ser que era a essa ope-rao que sua me se referia, ao dizer ao terapeuta de fa-mlia, que ele teria de fazer uma cirurgia, pois elas eram comosiamesas? A separao, nesse sentido, a direo necess-ria para a desalienao e para a emergncia do sujeito.

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