Beatriz Moreira de Azevedo Porto Gonçalves - dbd.puc-rio.br · Filmes Sobre Globalização ... cineclubismo e de ... Roteiros de entrevistas e informações dos projetos 126 . PUC-Rio

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  • Beatriz Moreira de Azevedo Porto Gonalves

    Cinema, Educao e o Cineclube nas Escolas: uma experincia na Rede Pblica do Sistema Municipal de Ensino do Rio de Janeiro.

    Dissertao de Mestrado

    Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre pelo Programa de Ps-graduao em Educao do Departamento de Educao do Centro de Teologia e Cincias Humanas da PUC-Rio.

    Orientadora: Prof.Roslia Maria Duarte

    Rio de Janeiro Abril de 2013

    DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111587/CA

  • 2

    Beatriz Moreira de Azevedo Porto Gonalves

    Cinema, Educao e o Cineclube nas Escolas: uma experincia na Rede Pblica do Sistema Municipal de Ensino do Rio de Janeiro. Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre pelo Programa de Ps-graduao em Educao do Departamento de Educao do Centro de Teologia e Cincias Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comisso Examinadora abaixo assinada.

    Prof. Roslia Maria Duarte

    Orientadora

    Departamento de Educao PUC-Rio

    Prof. Maria Cristina Monteiro Pereira de Carvalho

    Departamento de Educao PUC-Rio

    Prof. Milene de Cssia Silveira Gusmo

    Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

    Prof. Denise Berruezo Portinari

    Coordenadora Setorial do Centro de Teologia e Cincias Humanas

    PUC-Rio

    Rio de Janeiro, 15 de abril de 2013.

    DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111587/CA

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    Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total ou

    parcial do trabalho sem autorizao da universidade, da autora

    e da orientadora.

    Beatriz Moreira de Azevedo Porto Gonalves

    Graduou-se em Comunicao Social com habilitao em

    Cinema & Vdeo na Universidade Federal Fluminense (2009).

    Tem experincia na produo de oficinas e eventos na rea de

    Cinema & Educao. secretria executiva da Rede Latino

    Americana de Educao, Cinema e Audiovisual Rede Kino,

    produtora do segmento infanto juvenil do Festival do Rio

    (cinema), a Mostra Gerao, e do Festival Internacional de

    Filmes Sobre Globalizao globale Rio.

    Ficha Catalogrfica

    CDD:370

    Gonalves, Beatriz Moreira de Azevedo Porto Cinema, educao e o Cineclube nas escolas:

    uma experincia na rede pblica do sistema municipal de ensino do Rio de Janeiro / Beatriz Moreira de Azevedo Porto Gonalves ; orientadora: Roslia Maria Duarte. 2013.

    149 f. : il. (color.) ; 30 cm Dissertao (mestrado)Pontifcia

    Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Departamento de Educao, 2013.

    Inclui bibliografia 1. Educao Teses. 2. Cinema &

    Educao. 3. Cineclubismo. 4. Cultura escolar. 5. Audiovisual. I. Duarte, Roslia Maria Duarte. II. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Departamento de Educao. III. Ttulo.

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    Agradecimentos

    Aos meus pais.

    minha orientadora, Roslia Maria Duarte.

    Ao GRUPEM (Grupo de Pesquisa em Educao e Mdia) da PUC-Rio.

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro e ao Conselho Nacional de

    Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), pelos auxlios concedidos,

    sem os quais este trabalho no poderia ter sido realizado.

    s professoras que participaram da Comisso Examinadora e suplentes.

    Gerncia de Mdia-Educao da Secretaria Municipal de Educao do Rio de

    Janeiro e equipe.

    s escolas pesquisadas, professores e alunos dos cineclubes.

    Ao Coletivo Cidadela, Cineduc, Imagens em Movimento, Festival Vises

    Perifricas.

    Adriana Gomes Ribeiro, Andrea Garcez, Prof. Adriana Hoffmann Fernandes,

    Prof. Adriana Mabel Fresquet, Agustin Kammerath, Bete Bullara, Camila Moura,

    Daniel Garcia, Felicia Krumholz, Isabella Zappa, Julliana Malerba, Julia Levy,

    Luciana Bessa, Luciana Santos, Prof. Luiz Carlos Manhes, Prof. Luiz Carlos

    Motta Lima, Marcus Faustini, Manuela Green, Marcus Tavares, Prof Maria Ins

    Gurjo, Prof. Miguel Serpa Pereira, Nancy Ferreira, Pedro Aguiar, Priscila

    Corra, Raphael Dias Nunes, Rita Peixoto Migliora, Rodrigo Bouillet, Simone

    Monteiro e Thais Martins (DSC Espao) e todos os amigos e familiares que de

    uma forma ou de outra me estimularam ou me ajudaram.

    sorte.

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    Resumo

    Porto Gonalves, Beatriz Moreira de Azevedo; Duarte, Roslia Maria.

    Cinema, Educao e o Cineclube nas Escolas: uma experincia na Rede

    Pblica do Sistema Municipal de Ensino do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,

    2013, 149 p. Dissertao de Mestrado - Departamento de Educao,

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

    Esta dissertao tem como objetivo central descrever e analisar prticas

    cineclubistas em escolas vinculadas ao Projeto Cineclube nas Escolas, uma

    poltica pblica da Secretaria Municipal de Educao do Rio de Janeiro (SME-

    RJ), iniciada em 2008. Em 2012, perodo em que foi realizado o presente estudo,

    248 unidades da Rede estavam envolvidas no Projeto. Idealizado pela Gerncia de

    Mdia-Educao da SME-RJ, com a participao dos professores, o Projeto

    estimula aes cineclubistas nas escolas: projeo, discusso e produo de

    filmes. A pesquisa, de base qualitativa, teve como foco as atividades

    desenvolvidas em nove escolas, adotando como estratgias principais de produo

    de material emprico: observao participante; realizao de entrevistas

    semiestruturadas, registradas em udio; coleta de materiais didticos e de

    exerccios elaborados pelos professores e anlise de documentos e declaraes

    oficiais. Todo o material produzido no trabalho de campo foi submetido anlise

    de contedo, procurando identificar as concepes de cinema, cineclubismo e de

    educao que so praticadas no cotidiano do Projeto. O referencial terico da

    dissertao triangula o pensamento de Alain Bergala e de Jacques Rancire

    autores que, sinalizando o potencial transformador do cinema e problematizando

    as estruturas e finalidades das instituies de ensino formais, inspiram a proposta

    do Cineclube nas Escolas com os apontamentos que Jean-Claude Forquin

    elencou ao estabelecer relaes entre escola e cultura (Forquin, 1993). Jess

    Martn-Barbero completa o quadro conceitual da pesquisa, oferecendo chaves

    para a compreenso das dinmicas presentes nas mediaes que tomam lugar nos

    cineclubes e nos estabelecimentos de ensino formal. A investigao observou que

    o Projeto estudado assume diferentes feies, de acordo com a realidade e cultura

    prprias de cada escola visitada. Ainda que a concepo da gesto central do

    Projeto vise a valorizao da linguagem audiovisual pelo prazer esttico ou como

    um discurso artstico diferente do conhecimento cientfico, de um modo geral,

    predominam, na prtica cotidiana do Projeto, a tradicional interpretao de texto e

    outros usos focados nos contedos escolares presentes nas narrativas audiovisuais.

    Isso demonstra que o audiovisual na escola sempre estar a servio de um modelo

    de educao, que, por sua vez, definido na tenso entre as finalidades de

    preservao ou de transformao social da instituio escolar.

    Palavras-chave Cinema & Educao; Cineclubismo; Cultura Escolar; Audiovisual

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    Abstract

    Porto Gonalves, Beatriz Moreira de Azevedo; Duarte, Roslia Maria.

    (Advisor). Cinema, Education and the Cineclube nas Escolas Project

    on the Municipal schools of the city of Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,

    2013. 149 p. MSc. Dissertation Departamento de Educao, Pontifcia

    Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

    The present research aims to describe and analyze the practice of the

    Cineclube nas Escolas Project, an Educational Policy offered by the Municipal

    Secretariat of Education of Rio de Janeiro (SME-RJ) since 2008 aimed at building

    film societies in public schools. In 2012, the year in which this investigation was

    conducted, more than 240 schools of the public municipality school system have

    participated of the Project. Conceived by the Department of Media & Education

    (SME-RJ) with the participation of teachers, the proposal is to encourage schools

    communities to watch, discuss and to produce movies using Film Societies as

    model. This qualitative study visited nine schools participating in the Cineclube

    nas Escolas, having as main strategies to produce empirical data: participant

    observation; semi-structured interviews, recorded on audio; collecting didactic

    material and exercises prepared by school teachers, as well as capturing

    photographs. The data were fully submitted to Content Analysis proceeding,

    identifying the conceptions of cinema and education and which Film Societies

    activities are practiced in daily context of the SME-RJs Project. The theoretical

    framework of the research relates the thought of Alain Bergala and Jacques

    Rancire with the connections between school and culture pointed out by

    Jean-Claude Forquin (1993), since Bergala and Rancire have inspired the

    proposal of Cineclube nas Escolas signaling the transformative potential of

    cinema and questioning the structures and purposes of formal education

    institutions. Jess Martn-Barberos perspective of Education, considering it as a

    Communication issue (2002), completes the conceptual framework, providing

    keys for understanding the dynamics present in the mediations (2003) that take

    place in schools' film clubs. The current study have observed that the Cineclube

    nas Escolas Project assumes different layouts, according to the reality and to the

    culture of each school visited. Although the Department of Media & Education

    (SME-RJ) aims to exploring the audiovisual language for aesthetic pleasure or as

    an artistic discourse, the schools' traditional exercises focused on the audiovisual

    narrative content predominate in the context of the Projects practices, showing

    that the presence of the audiovisual at schools is always submitted to the this

    institutions finalities in preserving or changing society.

    Keywords Film & Education; Audiovisual languages; Film Societies; School Culture

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    Sumrio

    1. Uma ideia na cabea: introduo 12

    1.1. Apresentao 12

    1.2. Plano Geral e Argumento: contexto e referencial terico 14

    2. Imagem em Movimento: prticas e pedagogias cineclubistas 23

    2.1. Cineclubismo e Educao 38

    3. Storyboard: desenho da pesquisa 45

    3.1. Anlise Tcnica: trajetria da investigao 48

    3.2. Montagem: anlise de contedo 57

    4. Profundidade de Campo: focalizando os dados 61

    4.1. Primeiro Corte: qual cinema? 63

    4.1.1. Em cartaz: os ttulos exibidos nos eventos observados 73

    4.1.2. Janelas de Exibio 78

    4.2. Projeo: qual cineclubismo? 80

    4.2.1. Raccord: CNEs e movimento cineclubista, relaes 81

    4.2.2. Decupagem: os cineclubes em ao 83

    4.2.3. Zoom in 84

    4.3. Enquadramento: qual projeto de educao? 99

    4.3.1 Tomadas: perspectivas pedaggicas e disciplinares 100

    4.3.2. Preto & Branco 103

    4.3.3. Ponto de Virada 106

    5. Dilogos: consideraes finais (to be continued) 110

    6. Referncias Bibliogrficas 118

    ANEXO I Roteiros de entrevistas e informaes dos projetos 126

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  • 8

    Lista de abreviaturas e siglas

    ANCINE Agncia Nacional do Cinema

    Cineduc Cinema e Educao

    CNC ou CNC Brasil Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros

    CNEs cineclubes escolares do projeto Cineclube nas Escolas

    CPC Centro Popular de Cultura

    CRE Coordenadoria Regional de Educao

    EA Escola do Amanh

    EGE Escola Ginsio Experimental

    EMBRAFILME Empresa Brasileira de Filmes S/A

    EMs Escolas Municipais

    ENA Escola com Ncleo de Artes

    ER Escola Regular

    ESLP Escola com Sala de Leitura Polo

    GME Gerncia de Mdia-Educao

    MAR Museu de Arte do Rio

    MEC Ministrio da Educao

    MinC Ministrio da Cultura

    OCE Oficina Cine-Escola, programa educativo do Circuito Estao

    ONG Organizao No Governamental

    ONU - Organizao das Naes Unidas

    PCN Parmetros Curriculares Nacionais

    RRs reunio com responsveis

    SAv Secretaria do Audiovisual do Ministrio da Cultura

    SME-RJ Secretaria Municipal de Educao do Rio de Janeiro

    TICs tecnologias de informao e comunicao

    UEs Unidades Escolares ou Unidades de Ensino

    UFF Universidade Federal Fluminense

    UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro

    UNE Unio Nacional de Estudantes

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    Unesco - Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e

    a Cultura

    UPP Unidade de Polcia Pacificadora

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  • 10

    Lista de grfico, figuras e tabelas

    Grfico 1 datas de lanamento dos filmes do acervo do CNE 70

    Figura 1 - macrocategorias analticas

    58

    Figura 2 foto de cartaz de um dos CNEs pesquisados 73

    Figura 3: Foto de brindes distribudos nas sesses do CNE-EA2 87

    Tabela 1 - aspectos observveis das macrocategorias analticas 49

    Tabela 2 - relao das UEs, CNEs e articuladores pesquisados 53

    Tabela 3 - relao dos eventos observados 54

    Tabela 4 aspectos considerados na Observao Participante 60

    Tabela 5 - filmografia observada, contedos e temas escolares que apresenta

    76

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    Na parede onde se brinca

    No chapisco encarpado

    A parede que escora

    O fininho da vida

    Os verdadeiros heris so os guerreiros da lida

    Por entre as trincheiras-barracos

    Passam num sopro da vida

    Subindo e descendo em silncio

    No caminho apertado que tem

    o fininho da vida

    Disciplina de trem, virtuose na vida tem

    Maioria tem, maioria contida tem

    Nordestina tem, na havaiana furiosa

    Ruminando, engolindo sapo da vida

    Olho baixo de quem tem emprego

    Enquanto as letras se escrevem nos muros

    Nas paredes: grafites, buracos, escrita do futuro

    Em meio a tudo e muito, muito barulho

    Nervosos, os peitos se aquecem

    Respirando cortado, ansiando por furo

    No buraco da vala

    A laje brinquedo

    Em meio a pet e plsticos

    Num domingo festivo, num domingo lindo

    (Marcos Lobato, Marcelo Falco, Xando, Lauro Farias, Marcelo

    Lobato, Fininho da Vida)

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  • 12

    1. Uma ideia na cabea: introduo

    1. 1. Apresentao

    Desde pequena, ouo as histrias dos cineclubes universitrios e de bairro que

    meus pais frequentaram em meados das dcadas de 1970 e 1980. Por conta dessa

    experincia, eles me ensinaram a histria das escolas cinematogrficas mais

    cultuadas, assistindo a muitas fitas de VHS em casa, comigo, e me levando sempre

    ao cinema. Os meus pais e as escolas em que estudei tiveram participao decisiva

    na escolha da minha carreira.

    Cursando Cinema & Vdeo, na UFF, testemunhei o renascimento da atividade

    cineclubista no Brasil do incio do sculo XXI. Neste perodo, que tambm se

    compreende dentro da Retomada do Cinema Brasileiro1, frequentei, embora sem

    participar ativamente da organizao, vrios desses espaos de exibio, discusso

    de filmes e festas: Cine Buraco; Cachaa Cinema Clube; Tela Brasilis; Sesso

    Cineclube e Cineclube Sala Escura.

    Foi o trabalho dentro do programa educativo do Circuito Estao2 de salas de

    exibio uma empresa de cineclubistas histricos (1970/80) que se

    profissionalizaram como exibidores produzindo o segmento infantojuvenil do

    Festival do Rio3, a Mostra Gerao, que me fez entrar em contato com grupos

    cineclubistas que desenvolviam mais a dimenso de expresso e criao de

    narrativas audiovisuais experimentais: Cineclube Vdeo Digital Fundio; Mate

    com Angu (Duque de Caxias-RJ); Cinemaneiro/Fora do Eixo e Beco do Rato;

    1 No ano de 1990, o governo federal fechou o principal rgo de fomento produo

    cinematogrfica do Brasil, a Empresa Brasileira de Filmes S/A (EMBRAFILME). O nmero de

    filmes ficou reduzido a praticamente zero at o ano de 1995, quando novas polticas culturais foram

    implementadas permitindo a retomada das produes nacionais. 2 O Oficina Cine-Escola (OCE): www.grupoestacao.com.br/oce

    3 Tendo sua primeira edio no ano de 1999, o Festival do Rio um evento que acontece anualmente

    na cidade do Rio de Janeiro, exibindo um panorama da produo cinematogrfica mundial, com

    mostra competitiva de filmes nacionais e uma pauta de encontros voltados para a produo,

    financiamento, circulao e formao tcnica no setor audiovisual, alm de um espao para

    realizadores e distribuidores fazerem negcios facilitando, a difuso de filmes nacionais e

    estrangeiros.

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  • 13

    CineolhO/Campus Avanado (Niteri-RJ) e, mais recentemente, o cineclube

    Subrbio em Transe.

    Minhas principais experincias profissionais levaram a me especializar na

    interface entre cinema e educao e, por isso, ainda na graduao, cursei a

    disciplina Cinema e Educao, ministrada pelo professor Joo Luiz Leocadio, onde

    tomei conhecimento das reflexes do crtico, cineasta e educador francs Alain

    Bergala, que me encantaram pela (po)tica pedaggica proposta. Muitos aspectos

    do texto de Bergala (2008) reforaram minhas convices sobre prticas que vinha

    desenvolvendo profissionalmente. Mas, outras questes permanecem abertas como

    problemas para os quais preciso encontrar uma resposta mais brasileira.

    No ano seguinte, levei Bergala debaixo do brao para a Oficina de

    Capacitao de Equipe para Cineclube no Ncleo de Cultura do Colgio Estadual

    Guadalajara (Duque de Caxias-RJ). O projeto foi proposto pela ONG Cinema

    Nosso, viabilizado atravs de edital das Secretarias de Estado de Educao e

    Cultura do Rio de Janeiro, e fui a educadora responsvel pelo planejamento das

    atividades e por coloc-las em prtica junto a jovens matriculados no Ensino

    Fundamental da escola. O curso explorou noes de curadoria, produo e

    divulgao de cineclube e o trabalho nessas aulas foi um processo de negociao

    constante. Alm das demandas da escola, enquanto instituio, os contedos foram

    sendo adaptados (na base da tentativa e erro) para estimular mais os diferentes

    interesses e talentos de cada um dos alunos. Como Bergala, acredito que o gosto

    pelo cinema se forma por meio de um processo ntimo e pessoal e, para mim, isto

    torna o projeto de trabalhar o potencial pedaggico do cinema e do vdeo na escola

    pblica brasileira ainda mais desafiador.

    Foi ento que senti a necessidade de buscar o respaldo do campo da educao

    para continuar meu trabalho. Ingressei no mestrado da PUC-Rio e, ao longo das

    aulas, conheci o projeto Cineclube nas Escolas, cuja observao parecia poder

    iluminar o caminho das minhas indagaes.

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  • 14

    1.2. Plano Geral e Argumento: contexto e referencial terico

    Em A Centralidade da Cultura: notas sobre as revolues do nosso tempo,

    Stuart Hall (1997) chama a ateno para o papel central que a cultura ocupa no

    cotidiano das pessoas e em todos os campos do saber e da produo de valores nos

    dias de hoje, atravs de um processo deflagrado na segunda metade do sculo XX.

    Segundo o autor, a produo de smbolos e significados sempre foi importante, mas

    algumas transformaes nos arranjos socioeconmicos, intensificadas por

    inovaes tecnolgicas, neste sculo, expandiram as experincias de fruio e

    produo culturais e evidenciaram as aes sociais como prticas de significao:

    os processos de globalizao, com seus impactos no mundo do trabalho, as novas

    tecnologias de informao e comunicao (TICs) e o crescimento da indstria

    cultural, basicamente, so fenmenos que associados, de diferentes formas (no

    atingem de maneira igual todas as partes do globo), tm posicionado a cultura, em

    seus aspectos substantivos, no centro da vida social com enorme impacto na vida

    interior, na constituio de identidades e subjetividades; e a evoluo do

    pensamento cientfico, acompanhando as dinmicas sociais, por sua vez, se

    encaminhou para o que Hall chama de virada cultural, ou seja, uma outra anlise

    das dimenses epistemolgicas da cultura. Esta ganha um maior peso explicativo

    para as demais esferas sociais, sendo entendida como condio constitutiva da vida

    social, ao invs de uma varivel dependente (p.27).

    Este cenrio de centralidade da cultura que os Estudos Culturais apontam

    pode ser bem ilustrado pelas relaes entre cultura e desenvolvimento que Gusmo

    (2007, p.23) destaca:

    Na condio contempornea, a maior distribuio de bens

    simblicos pelas redes do comrcio mundial deu esfera

    cultural um protagonismo maior do que em qualquer outro

    momento da histria da humanidade. (...) h quem defenda que

    a cultura se transformou na prpria lgica do capitalismo

    contemporneo.

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  • 15

    Na contrapartida desse processo, as discusses sobre o assunto

    tambm so intensificadas por instituies do circuito das

    relaes internacionais a exemplo da Organizao das Naes

    Unidas (ONU) mediante sua agenda especializada para

    educao, cincia e cultura (UNESCO)...

    Nesta perspectiva, complementar de Franco (2010), a mdia e isso inclui o

    cinema como a mdia mestre do sculo XX uma instncia de socializao.

    Como espao de circulao, criao e transformao de conhecimento, os filmes,

    que tocam particularmente aos indivduos e o cinema, como fenmeno social,

    participam da nossa formao, em sentido amplo, que no se limita ao mbito

    escolar/acadmico.

    Desde o advento do cinematgrafo, o audiovisual vem conquistando cada vez

    mais espao e telas no cotidiano das sociedades globalizadas, dentre as quais a

    brasileira pode ser considerada uma das mais audiovisuais (DUARTE, 2008, p.

    17), principalmente pela alta audincia televisiva. No Brasil, o campo do cinema e

    demais linguagens audiovisuais vem se destacando pelo aumento da produo e

    difuso de seus produtos e pela influncia sobre importantes cargos e rgos de

    desenvolvimento de polticas pblicas.

    Aps a Retomada da produo cinematogrfica nacional, que havia sido

    paralisada com o fechamento da EMBRAFILME em 1990, o prestgio do cinema

    enquanto linguagem artstica importante para a expresso da cultura nacional tem

    crescido socialmente, embora o nmero de ingressos vendidos seja baixo

    considerando o total da populao e comparando com a bilheteria domstica de

    pases como EUA e ndia, que tm indstrias cinematogrficas fortes4. A medida

    deste prestgio o atual volume de recursos pblicos investidos no fomento

    produo de filmes e distribuio dos mesmos, em editais de difuso, incentivo

    realizao de festivais, em abertura e manuteno de pontos de exibio ou

    cineclubes e, mais recentemente, na distribuio de vouchers para o pblico5

    aes que tm sido propagadas pelos governos da ltima dcada como um esforo

    mais geral no sentido de democratizao do acesso cultura e seus meios de

    produo (GUSMO, 2007; SOUZA, 2010).

    4C.f. DATABASEmundo 2008 (ano base 2007).

    5C.f. Aes/propostas de polticas pblicas voltadas ao setor exibidor, pp.50-52. In:

    OBSERVATRIO BRASILEIRO DO CINEMA E DO AUDIOVISUAL: banco de dados, 2010

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  • 16

    De 2002 a 2011, a Agncia Nacional do Cinema (ANCINE) registrou

    aumento do total de ingressos vendidos nas salas comerciais e o ltimo ano assistiu

    ao maior nmero de lanamentos de longas-metragens brasileiros em dez anos6. O

    surgimento de um novo movimento cineclubista, no incio dos anos 2000, e o

    aumento do nmero de cursos voltados para as linguagens audiovisuais, verificado

    por Norton (2011), tambm expressam e reforam esse grande interesse7. No campo

    da educao, que flerta com o cinema desde os seus primrdios (DUARTE &

    ALEGRIA, 2008; DUARTE & TAVARES, 2010), o debate e as experincias esto

    se ampliando em todo o pas8. O cenrio est propcio

    9 para o desenvolvimento de

    reflexes e aes que explorem o carter educativo do cinema. Ao mesmo tempo, as

    disputas pela regulao da(s) cultura(s), discutidas por Hall e Gusmo neste

    contexto, refletindo, por exemplo, uma maior participao de setores econmicos,

    miditicos e de grupos sociais no debate em torno dos rumos da educao no Brasil,

    intensificam preocupaes com a qualidade do ensino, o que passa por uma

    discusso sobre culturas dominantes, ao mesmo tempo em que a cultura percebida

    em sua diversidade como canal para melhor acolhimento dos alunos nas instituies

    de ensino, como dimenso fundamental do currculo e da socializao que se d

    dentro da escola.

    Todas essas questes permeiam o que Forquin (1993), discutindo o arcabouo

    da sociologia da educao, delimita como sendo a cultura da escola a seleo de

    contedos que, dentre toda a produo da cultura humana, as instituies de ensino

    escolhem para conservar, e afetam assim todo o conjunto de saberes a ensinar e

    6 C.f. TELA VIVA. Ancine divulga balano do mercado de exibio em 2011. On-line, 30/01/2012

    7 No cinema, o Brasil j o principal mercado latino-americano em receitas de bilheteria: s em

    2011, foram vendidos 143,9 milhes de ingressos, estabelecendo um novo recorde de arrecadao

    para a atividade. Filmes brasileiros de todos os gneros, feitos para todos os pblicos, ganham o

    reconhecimento do pblico e da crtica, pela qualidade das produes e porque a sociedade gosta de

    se enxergar nas telas. (ANCINE. Contedo nacional na nova Lei da TV Paga. On-line, 28/02/2012) 8S para citar algumas, V Ao Cinema (SP) e Cinema Para Todos (RJ) so exemplos de projetos que

    unem esforos das secretarias estaduais de cultura e educao. O programa Mais Educao, dos

    ministrios da Educao, Cultura, Esportes e Desenvolvimento Social e Combate Fome, tambm

    fomentou diversas aes envolvendo cinema em escolas pblicas, entre outras atividades extraclasse. 9Incrementando ainda mais o cenrio, enquanto esta pesquisa se desenvolvia, a ANCINE

    regulamentava a Lei da TV Paga (Lei 12.485, de 12 de setembro de 2011), garantindo, de acordo com publicao no site da ANCINE (On-line, 27/02/2012), a presena de mais contedos nacionais e independentes nos canais de TV por assinatura, a diversificao da produo e a articulao das empresas brasileiras que atuam nos vrios elos cadeia produtiva do setor.

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  • 17

    condutas a inculcar mais as prticas que permitem a transmisso desses saberes e

    a incorporao desses comportamentos (JULIA, 2001, p.09), a cultura escolar.

    Os estudos de Duarte & Alegria (2008) e Duarte & Tavares (2010) revelam

    uma variedade de relaes entre a educao e a linguagem audiovisual concebidas

    na Europa, nos EUA e no Brasil em diferentes momentos histricos desde a

    inveno do cinematgrafo. Apesar da riqueza das propostas, a literatura consultada

    at agora aponta que a apropriao conteudista e utilitria do cinema, muito atrelada

    aos programas disciplinares e funes sociais da prpria escola, majoritria nas

    escolas.

    Com o intuito de ampliar os usos que a educao formal pode fazer do cinema

    e do audiovisual, em 2008, a prefeitura do Rio de Janeiro, atravs da sua Secretaria

    de Educao (SME-RJ), iniciou o Projeto Cineclube nas Escolas. Conforme

    declarao de Adelade Lo (apud Revistapontocom, On-line, 23/07/2011), ex

    Coordenadora do Projeto, a proposta consiste em:

    [I]mplantao de uma poltica pblica no campo do

    audiovisual. O projeto est organizado em trs eixos: aquisio

    de equipamentos como projetor, telo, caixas de som e

    acervos de livros e filmes para as escolas; formao de

    professores e alunos; e ao cineclubista na escola, que se

    traduz em exibies de filmes, ida ao cinema e produo

    audiovisual por parte de alunos e professores. (...) Quando o

    projeto foi elaborado, havia tambm uma inteno de garantir

    aos alunos o direito de acesso s produes audiovisuais,

    sobretudo aos curtas-metragens nacionais.

    Envolvendo 248 unidades da Rede Municipal de Ensino10

    , evidentemente, o

    Projeto dialoga com as orientaes poltico-pedaggicas e institucionais da SME-

    RJ, acrescentando outras especficas do campo cinema/educao, sendo referncias

    importantes a hiptese-cinema de Alain Bergala/Jack Lang e a tradio cineclubista.

    A participao dos alunos no Projeto no obrigatria nem vale nota e os

    idealizadores do Cineclube nas Escolas alegam adotar um vis diferente do

    tradicional tratamento dado ao cinema no espao escolar:

    O projeto tem como premissa desconstruir a ideia de que a

    presena de filmes na escola limita-se ao puro entretenimento

    ou ao simples pretexto de ensinar determinado contedo.

    necessrio entender o cinema e a produo audiovisual como

    importantes caminhos para a ampliao de conhecimentos e

    10

    Dado de Maro/2013.

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  • 18

    do patamar cultural dos estudantes. (ADELADE LO apud

    Revistapontocom, On-line, 23/07/2011) [grifos meus]

    A novidade11

    trazida por Bergala (2008) o lugar privilegiado que se deve

    dar, na educao, ao cinema como linguagem/meio externo escola, como um

    estrangeiro, uma hiptese de alteridade. Para ele, o cinema no se ensina: o

    cinema uma cultura com a qual nos encontramos. E, como ensino, o autor

    refere-se transmisso e produo de conhecimentos que se do na lgica do

    conjunto de culturas e prticas do cotidiano escolar, que implicam: organizao do

    espao; planejamento do tempo; normas de conduta; relaes de poder e domnio de

    contedos, rigidamente estabelecidos e controlados. Ainda que este conjunto, que

    configura a cultura da escola e a cultura escolar (FORQUIN, 1993; JULIA, 2001),

    seja sempre contingente de tenses e conflitos, sua razo padronizada e seu

    movimento padronizante, na viso do crtico de cinema e professor francs.

    Contrariamente, o gosto pela arte, segundo Bergala, absolutamente ntimo e

    pessoal.

    Sua teoria afirma que a tendncia da escola a controlar e adaptar para seus

    fins o que lhe externo pode ser extremamente prejudicial, pois ignora, exclui e

    desperdia o que a arte traz de estranho e de desestabilizador, e, por isso,

    potencialmente libertador e mobilizador, pois nos faz pensar.

    A proposta, ento, consiste em aceitar que a arte por definio um

    elemento perturbador dentro da instituio (BERGALA, 2008, p.30) e que os

    educadores devem correr os riscos de serem professores-passadores de filmes e

    no explicadores, perdendo o medo de abrir mo dos atalhos pedaggicos

    tranquilizantes da frmula de trabalho que funciona (p.27), pois

    conhecimentos se adquirem quando conhecemos o desconhecido. A anlise fria que

    procura dissecar todos os elementos de uma obra a fim de provar a sua qualidade,

    ou a falta dela, definida por Bergala como o uso ideolgico. Este seria

    inadequado porque, ao hierarquizar sujeitos e culturas, alm de intervir

    demasiadamente na relao do aluno com as obras, pouco estimulando seu

    11

    Uso o termo novidade para marcar uma diferena na proposta terica do Projeto, inspirado em

    Bergala, em relao s prticas audiovisuais mais restritas e submetidas cultura escolar, embora

    seja possvel afirmar que a hiptese-cinema seja herdeira das vanguardas cinematogrficas da dcada

    de 1920 e do cineclubismo, surgido no mesmo perodo - precursores da ideia de apropriao

    pedaggica da stima arte enquanto linguagem artstica.

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  • 19

    pensamento autnomo e orientando excessivamente sua construo de sentido,

    costuma contrariar algumas opinies que os estudantes tm sobre produtos da

    grande mdia, contribuindo ainda mais para o desinteresse.

    Sem adotar a concepo de um espectador passivo, que aceitaria sem

    questionamentos tudo o que os meios de comunicao de massa lhe impusessem (e

    que foi cultivada durante muito tempo pela Igreja, pelo Estado, pelos apocalpticos

    da Escola de Frankfurt e pela educao formal), Bergala admite que a grande mdia

    dispe de inmeros recursos para seduzir ou persuadir uma parcela significativa da

    populao: fora os recursos materiais investidos pelos produtores e as possibilidades

    tcnicas e de linguagem, que permitem um extenso e atraente cardpio de

    estratgias estticas e de organizao do discurso; a penetrao da mdia em quase

    todos os espaos do cotidiano do espectador, inclusive dentro de sua prpria

    residncia, desequilibram a relao entre os produtores e os consumidores. Mesmo

    que o indivduo receptor, isoladamente, rejeite uma determinada mensagem, ocorre

    que, se esta for amplamente aceita pelo seu meio social, surge certa presso para

    que essa rejeio se transforme em adeso ou, pelo menos, em uma aceitao

    mnima12

    . O que o crtico alega que uma ingenuidade (e uma perda de tempo)

    crer que um jovem negar intimamente o prazer de ter assistido a um filme

    puramente comercial, ainda que lhe provem, com os argumentos mais convincentes,

    que tal filme ruim.

    Assim, defende o acesso s maiores variedade (de gneros e origens) e

    quantidade possveis de filmes como a nica maneira de garantir que cada aluno

    forme seu gosto de maneira autnoma. De certa forma, Bergala acredita que o

    desenvolvimento do esprito crtico dos estudantes se dar com o crescimento do

    repertrio cultural dos mesmos, como ampliao das possibilidades de mediaes

    entre os espectadores e os produtos audiovisuais.

    Segundo Martn-Barbero (2003), um dos principais representantes dos

    Estudos de Recepo, os pressupostos e valores da comunidade qual o receptor

    pertence, o contexto espao-tempo (no qual ele se localiza no momento da

    recepo) e tambm sua trajetria de vida so mediaes que influenciam o

    12

    Certamente, o indivduo tambm pode, diante desta presso social, no raramente, radicalizar a sua

    rejeio. Mas isto, em geral, no altera substancialmente a configurao de desequilbrio descrita.

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  • 20

    processo pelo qual os sujeitos formulam sentidos possveis para as obras a partir dos

    significados dados por elas. Logo, os filmes a que assistimos em nossas trajetrias

    pessoais so experincias que enriquecero nosso repertrio cultural e,

    consequentemente, nossas mediaes.

    Nesse sentido, aqui interessante assinalar que os cineclubes tambm atuam

    nessa lgica de mediadores e so vistos pelos formuladores de polticas para o setor

    como importantes para o desenvolvimento do olhar crtico dos espectadores. Os

    movimentos cineclubistas, enquanto movimentos sociais organizados e

    institucionalizados, que preferi grafar com as iniciais maisculas - Movimentos

    Cineclubistas, ou simplesmente as prticas e dinmicas sociais que se tecem nos e

    em torno dos clubes de cinema, que preferi grafar com letras minsculas -

    movimentos cineclubistas, em suas diferentes vertentes e pocas, e Jess Martn-

    Barbero compem o quadro conceitual da pesquisa, oferecendo chaves para a

    compreenso das dinmicas presentes nas mediaes que tomam lugar nos clubes

    de cinema e nos estabelecimentos de ensino formal.

    O presente trabalho ainda aprecia parte da obra de Jacques Rancire, filsofo

    argelino radicado na Frana, que trata de temas como poltica; esttica e cinema e

    que, tratando tambm de educao, escreveu um dos livros que compem o acervo

    bibliogrfico do Projeto Cineclube nas Escolas. Narrando a histria de Joseph

    Jacotot, pedagogo francs exilado nos Pases Baixos poca da restaurao da

    monarquia ps Revoluo Francesa, O Mestre Ignorante: cinco lies sobre a

    emancipao intelectual (RANCIRE, 2011) relata uma experincia educativa

    avessa s instituies, que se reproduzem fundamentadas na ilusria e eterna

    promessa da transmisso de conhecimentos de mestres sbios para alunos

    ignorantes. Tendo que lecionar para estudantes que no falavam sua Lngua e sem

    falar a Lngua deles, Jacotot baseou sua atividade no princpio da Igualdade das

    Inteligncias: No h ignorante que no saiba uma infinidade de coisas, e sobre

    este saber, sobre esta capacidade em ato que todo ensino deve se fundar

    (RANCIRE, 2011, p.11).

    Partindo da autonomia dos aprendizes na construo de conhecimentos,

    Jacotot estabeleceu uma prtica educativa emancipatria que vai ao encontro das

    demais questes centrais, na filosofia de Rancire anteriormente mencionadas:

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  • 21

    poltica; esttica e cinema. Em 11 de outubro de 2012, no encerramento do

    Colquio internacional Arte, Esttica e Poltica: dilogos com Jacques Rancire

    13, evento que presenciei no Palcio Capanema (cidade do Rio de Janeiro), ao ser

    questionado, sobre quais mediaes seriam necessrias para a emancipao do

    espectador, o conferencista que d nome ao colquio, perguntou: Como contribuir

    para as pessoas serem livres para agir ou no agir?. Poltica; esttica; arte e os

    processos de ensino-aprendizagem que transformam a nossa percepo so

    possibilidades e no frmulas prontas. De acordo com Rancire (2012), cinema,

    fotografia, vdeo, instalaes e todas as formas de performance do corpo, da voz e

    dos sons, dentro do que poderamos enquadrar tambm os rituais escolares, devem

    se contentar em ser apenas contribuies para reconstruir o mbito de nossas

    percepes e o dinamismo de nossos afetos (p.81). As prticas audiovisuais

    emancipatrias, bem como uma educao emancipatria, portanto, so propostas

    que, conscientes de suas limitaes e que, permitem-se correr os riscos de

    desencadear processos de conhecimento autnomos, horizontais e libertrios.

    O quadro terico da dissertao, assim, triangula consideraes de autores

    chave na concepo do Projeto Cineclube nas Escolas - Bergala; Martn-Barbero e

    Rancire - colocando-as em relao construo coletiva dos movimentos

    cineclubistas e com os apontamentos sobre as bases sociais e epistemolgicas do

    conhecimento escolar que Jean-Claude Forquin elencou ao estabelecer relaes

    entre escola e cultura (1993). Referncias que sinalizam o potencial transformador

    do cinema e da escola e problematizam as estruturas e finalidades das instituies

    de ensino formais.

    Considerando o longo histrico de dilogos do cinema com a educao por

    meio da prtica cineclubista, o presente projeto de pesquisa pretendeu investigar o

    Cineclube nas Escolas no sentido de verificar onde est sua originalidade e de

    entender que concepes de cinema, cineclubismo e educao esto em jogo.

    Assim, trs so as questes centrais:

    13

    Colquio internacional Arte, Esttica e Poltica: dilogos com Jacques Rancire. Organizado por MAR, UFRJ e UFF. Rio de Janeiro, 8 a 11 de outubro de 2012.

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  • 22

    - Que tipo de cinema est sendo cultivado? caracterizao da lista dos

    filmes exibidos conforme diversidade e quantidade de ttulos, facilidade de acesso

    s obras, opes estticas e temticas que sejam preferidas ou constantes.

    - Como se organiza o cineclube na escola? quem so os atores envolvidos

    (professores, alunos, funcionrios, comunidade escolar) e como participam das

    atividades? Quanto tempo dedicam ao cineclube, que tarefas e responsabilidades

    tomam para si? Que dimenses e prticas do cineclubismo so privilegiadas?

    - Qual projeto de educao se configura? seria uma proposta de educao

    por meio do cinema ou para o cinema? O que se ensina e o que se aprende; que

    conhecimentos so eleitos para serem transmitidos?

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  • 23

    2. Imagem em movimento: prticas e pedagogias cineclubistas

    No website do Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros (CNC Brasil),

    Macedo & Pimentel Neto (s/d) informam que os cineclubes assumiram diferentes

    prticas conforme o desenvolvimento das sociedades em que se instalaram. Este

    captulo pretende apresentar uma reviso de literatura que, junto aos depoimentos

    dos cineclubistas entrevistados, possibilite entender, posteriormente no campo,

    quais prticas/dimenses do cineclubismo so privilegiadas nas escolas

    participantes do projeto Cineclube nas Escolas, da Secretaria Municipal de

    Educao do Rio de Janeiro (SME-RJ).

    A partir do breve histrico do cineclubismo apresentado nas pginas

    seguintes, ser possvel perceber que as dinmicas praticadas nestas associaes e a

    relao que seus membros estabelecem com o universo simblico e imaginrio do

    cinema/audiovisual configuram muitas pedagogias e formas de ao social.

    Apesar da possibilidade de registros anteriores do uso do termo cineclube, a

    origem desse tipo de associao amplamente atribuda a um grupo de intelectuais

    e artistas que, em 1920 na Frana, lanou a revista Cin Club (1920-1921). Em

    reunies regulares e com produo de textos para discutir filmes e as possibilidades

    cinematogrficas, o grupo, que envolveu personalidades como Louis Delluc e

    Germaine Dulac14

    , pretendia abrir espao para um cinema inovador e esteticamente

    criativo, que no era exibido nas salas comerciais e tinha expectativas de formar

    espectadores que soubessem apreciar este tipo de cinema. O que nos permite supor

    que o cineclubismo teve, desde a origem, vocao educativa.

    Na Europa desse momento, as vanguardas artsticas engajavam-se em afirmar

    a importncia da arte como expresso humana fundamental, leitura, ou meio de

    transformao do social e a iniciativa cineclubista alimentava o debate sobre a

    vocao e a natureza do cinema. De uma forma geral, o cinema era considerado

    socialmente como uma diverso vulgar, mero entretenimento. Porm, surrealistas,

    14

    Germaine Dulac (1882-1942) foi uma cineasta, jornalista, crtica e terica do cinema francesa,

    precursora do cinema surrealista. Louis Delluc (1890-1924) era roteirista, crtico e diretor de filmes,

    mais associado corrente impressionista.

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  • 24

    expressionistas, construtivistas, knoks15

    , artistas experimentavam a temporalidade, a

    impresso de realidade e/ou a expresso dela proporcionadas pelo cinematgrafo.

    Empenhavam-se na inveno de uma linguagem cinematogrfica especfica e/ou no

    reconhecimento do estatuto artstico do que Ricciotto Canudo, fundador do Club

    des Amis du Septime Art C.A.S.A (1921-1924), definiu como a sntese de todas

    as artes, chamando o cinema de stima arte16

    , em 1911.

    Mesmo dentro do cinema industrial, os fundadores da escola clssico-

    narrativa, da qual o norte-americano D.W. Griffith considerado o grande pai,

    buscavam sofisticao em produzir obras de valor artstico, preocupando-se com a

    verossimilhana na representao das emoes humanas e investindo no espetculo

    de cenrios luxuosos e elencos formados por estrelas e figuraes numerosas.

    Como observam Duarte & Tavares (2010, p.26), a ideia de que o cinema

    deveria participar diretamente da educao, poltica e esttica das massas parece ser

    recorrente nos textos fundadores desses movimentos, embora tenha adquirido

    caractersticas distintas em cada um deles. Desde a inveno do cinematgrafo, o

    aparato foi utilizado como ferramenta pedaggica, podendo auxiliar estudos e

    demonstraes cientficas. Mas entre as vanguardas artsticas, havia uma

    preocupao com a formao de um pblico mais crtico para a arte, enquanto

    criao transformadora. O poder de alcance do advento, na comunicao com as

    massas, tambm evidenciava sua capacidade de influncia na formao poltico-

    ideolgica de indivduos e grupos. Esta possibilidade inspirou no s uma srie de

    filmes revolucionrios na Unio Sovitica (URSS), como as obras de Serguei

    Eisenstein, mas tambm reuniu milhares de trabalhadores por toda a Europa em

    associaes sindicais ou em organizaes, em iniciativas muitas vezes incentivadas

    pelo governo sovitico, voltadas para a exibio de fitas para as classes populares.

    O militante mais conhecido deste movimento foi o francs Lon Moussinac, amigo

    de Louis Delluc e criador do cineclube Les Amis de Spartacus, em 192817

    .

    Embora os grupos pioneiros tenham produzido alguns filmes, pode-se

    destacar, como contribuio principal para a cultura cinematogrfica, a realizao

    15

    C.f. Duarte & Alegria, 2008. 16

    A expresso foi difundida com a divulgao, entre 1911 e 1912, do Manifesto das Sete Artes e

    Esttica da Stima Arte, publicado pelo intelectual Canudo, italiano radicado na Frana. C.f. idem. 17

    Fechado pela polcia no mesmo ano. C.f. Macedo, On-line, s/d (b).

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  • 25

    de encontros e conferncias sobre cinema e as publicaes que, alm de divulgar a

    programao das salas de exibio, compartilhavam aspectos tcnicos e ideias sobre

    os rumos da arte cinematogrfica, defendendo claramente o valor esttico dos

    filmes, salientando seus fins sociais e educativos, e condenando a produo com

    fins meramente comerciais. Tais iniciativas, que Gusmo (2007, p.166) descreve

    como sendo uma atitude ligada muito mais crtica cinematogrfica que

    produo, tiveram um importante papel na consolidao das bases de uma teoria

    sobre as imagens em movimento.

    Em 1917, dialogando com o debate europeu e tambm com a indstria

    estadunidense, atividades de carter cineclubista j eram realizadas no Rio de

    Janeiro pelo Paredo, um grupo de jovens que, querendo fazer cinema como atores

    e tcnicos, se reuniam para ver filmes, coment-los e debat-los a propsito do

    cinema brasileiro (ANDRADE, publicao eletrnica, 200918

    ). A publicao de

    revistas especializadas em arte e cinema foi um esforo de intelectuais e cineastas

    empreendedores da poca em promover produes cinematogrficas de qualidade

    no pas e refletir sobre elas.

    De acordo com Rud de Andrade (idem), o termo cineclube foi utilizado

    pela primeira vez no Brasil, em 1925, pelo clube de jogos do cantor, ator e,

    posteriormente, diretor do Cassino da Urca Jayme Redondo. As projees eram

    um meio de atrair os jogadores. O resultado desta aventura foi a produo de dois

    filmes pelo Cineclube (Op. Cit.). Porm, a literatura consultada reconhece como o

    primeiro cineclube brasileiro o Chaplin Club, fundado em 1928 na cidade do Rio de

    Janeiro. Segundo o crtico Luiz Zanin Orichio (2007), a escolha do nome no se deu

    por acaso: criador do grande vagabundo do cinema mudo, Charles Chaplin era

    mais ou menos como um sinnimo da arte cinematogrfica ento. Herdeiro da

    tradio da vanguarda francesa (GUSMO, 2007, p. 167), esse coletivo operava

    como um grupo de pesquisa sobre o cinema, enquanto linguagem artstica

    especfica, e editava o peridico O Fan (1928-1930) para divulgar suas atividades e

    reflexes. Uma de suas bandeiras era a luta contra o advento dos filmes sonoros19

    ,

    18

    Trecho do relatrio A ao dos cineclubes e das cinematecas na Amrica Latina para o

    desenvolvimento da cultura cinematogrfica (1961), de autoria de Rud de Andrade (na poca,

    conservador-adjunto da Cinemateca Brasileira de So Paulo). 19

    O lanamento de O Cantor de Jazz (Alan Crosland), primeiro filme com falas, data de 1927.

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  • 26

    sendo assim extinto em vista do sucesso inexorvel do cinema falado (ZANIN

    ORICHIO, 2007).

    A preocupao com relao a possveis perdas que o cinema sonoro poderia

    implicar para o desenvolvimento de uma linguagem indita nas artes, de acordo

    com Lunardelli (2000, p. 93) foi importante para que cineclubes da poca

    desenvolvessem a dimenso de preservao da memria e da cultura

    cinematogrficas20

    :

    A valorizao de um filme antigo leva ao desejo de t-lo

    preservado. Ainda que algumas vozes pioneiras tenham se

    manifestado a favor da conservao de filmes, medidas efetivas

    s comearam a ser tomadas depois da inveno do cinema

    sonoro, como gesto de resistncia em favor do filme silencioso.

    Correntes hostis aos talkies promoviam dentro dos clubes de

    cinema a exibio de filmes mudos prestigiados como clssicos.

    Do quadro desses clubes surgiram os organizadores e

    conservadores de cinematecas em Paris, Berlim, Milo, Londres

    e Nova York, pessoas como Iris Barry, Henri Langlois, Luigi

    Rognoni e Ernest Lindgren.

    No por acaso, a histria da Cinemateca Brasileira tem origem no segundo

    cineclube brasileiro de que se tem registro: o Clube de Cinema de So Paulo (1940).

    Seus fundadores eram jovens estudantes do curso de Filosofia da USP, entre eles,

    Paulo Emilio Salles Gomes, Dcio de Almeida Prado e Antonio Candido de Mello e

    Souza21

    . A proposta era estudar o cinema como arte independente, por meio de

    projees, conferncias, debates e publicaes (BUTRUCE, 2011, p.20), ainda

    restrita a uma certa intelectualidade urbana.

    A popularizao das sesses sistemticas com discusso de filmes, pelo

    mundo, ocorreu no fim da 2 Guerra e a queda de regimes totalitrios, associada

    propagao de mensagens civilizatrias e humanistas. Nos anos 1940-60, os

    cinfilos compartilhavam a percepo do cinema como manifestao cultural, ao

    tempo em que consideravam ser o consumo cinematogrfico um meio para

    viabilizar a manuteno ou a transformao de atitudes humanas e de condutas

    cotidianas (GUSMO, 2007, p. 170).

    20

    Sobre a preservao da memria e cultura cinematogrficas, c.f. Gomes, 1959. e c.f. Correa Jr.,,

    2007. 21

    Extrado da seo Histria, do website da Cinemateca Brasileira, s/d:

    Acesso em 23 jun. 2012.

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  • 27

    O carter pedaggico do cinema foi enfatizado na prtica cineclubista desse

    perodo. Foi nesse momento que os cineclubes entraram nas escolas, expanso da

    qual a Igreja Catlica foi o principal agente no Brasil at o incio dos anos 1960. Por

    meio da publicao de encclicas22

    , o Vaticano expressava seu interesse e

    preocupao com o cinema, visto como um poderoso meio de influncia. Nesta

    perspectiva, so criados o Ofcio Catlico Internacional do Cinema OCIC, em

    1928, e, no contexto nacional, o Servio de Informaes Cinematogrficas (1936) e

    o Centro de Orientao Cinematogrfica (1953)23

    . O objetivo destas organizaes

    era a promoo de filmes edificantes e o controle dos contedos que circulavam

    pelas telas, por meio da realizao de sesses e cursos de cinema e da publicao de

    crticas, da concesso de prmios e de classificaes morais das fitas.

    Segundo Campelo (apud CHAVES, 2010, p. 84) o discurso oficial da Igreja

    media os valores artsticos das obras por seus valores morais. E toda essa

    mobilizao em torno do cinema d uma medida de como este era considerado um

    meio efetivo de realizar um projeto de sociedade alis, uma disputa constante em

    toda a histria da Igreja:

    O Secretariado Nacional de Cinema [da Ao Catlica

    Brasileira] servia de guia aos espectadores catlicos em prol da

    elevao do nvel moral e cultural da arte cinematogrfica,

    orientados pelos princpios da encclica Vigilanti Cura e

    tambm buscando entrar em entendimento com os poderes

    competentes a fim de que seja oportunamente melhorada a

    legislao referente aos problemas criados pelo cinema no meio

    social.

    Para Butruce (2011, p.21), a Igreja com suas organizaes, seminrios,

    documentos, declaraes e crticas sobre cinema elaborou um verdadeiro mtodo

    cineclubista catlico, baseado na promoo dos princpios cristos, que se aplicava

    ao cinema e na educao do pblico.

    Para alm das intenes do Vaticano, o professor do Departamento de

    Comunicao Social da PUC-Rio Miguel Serpa Pereira, que iniciou sua atuao em

    cineclubes quando era seminarista no incio da dcada de 1960, ressaltou, em

    entrevista gravada concedida a esta pesquisa, que o trabalho dos padres foi crucial

    para a disseminao do conhecimento sobre cinema no Brasil, pois promoveu o

    22

    C.f. Chaves, 2010. 23

    Fonte destas datas: Gusmo, 2007.

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  • 28

    acesso no s a filmes inditos no pas como a toda uma bibliografia especializada,

    principalmente francesa e italiana. Segundo o professor, os cursos da Ao Social

    Catlica (ASA) contriburam para a formao de cineastas como Lus Srgio

    Person, Carlos Reichenbach e Cac Diegues. Ele lembra que Andr Bazin um dos

    principais crticos de cinema da Frana, um dos criadores da Bblia dos cinfilos,

    a revista Cahiers du Cinma (1951) era catlico. E, aqui, Cosme Alves Netto,

    uma importante referncia para o Movimento Cineclubista brasileiro, muito antes

    de ser diretor da Cinemateca do MAM-RJ, atuava na Juventude Estudantil Catlica

    (JEC), com a qual ajudou a criar vrios cineclubes, tanto catlicos quanto no

    catlicos.

    Igualmente, o Estado Novo concebia o cinema como instrumento pedaggico,

    mas, atuando de forma diferenciada da Igreja, via com maus olhos a instituio de

    alguns cineclubes, tendo ordenado o fechamento do Clube de Cinema de So Paulo,

    em 1941. Com o fim da Ditadura Vargas, o Clube saiu da clandestinidade e outros

    cineclubes de carter laico comearam a se difundir pelas capitais brasileiras, como

    o Clube de Cinema da Faculdade Nacional de Filosofia (Rio de Janeiro, 1946), o

    Clube de Cinema de Porto Alegre (1948) e o Centro de Estudos Cinematogrficos

    (Belo Horizonte, 1951). Nesse grande intervalo que vai dos 1940 aos 60, o

    cineclubismo se consolidou no Brasil como um projeto de ao maior do que a pura

    cinefilia. Fosse em nome do projeto civilizatrio, inspirado no modelo francs24

    ,

    fosse na tomada de posies poltico-ideolgicas ou na f em uma moral religiosa,

    era forte a crena no cinema como poderoso veculo de comunicao de massas, o

    principal entretenimento das cidades. Em outro trecho do relatrio de Rud de

    Andrade (1961)25

    , percebemos uma sntese do que se pensava a respeito do papel

    do cineclube e de que tipo de experincias ele seria capaz de instituir pelas

    cidadezinhas da Amrica Latina:

    (...) atravs dele que se abrem para jovens exclusivamente

    cinfilos os horizontes da literatura, do teatro, da msica e das

    artes plsticas. Numa dessas cidades, criou-se uma escola de

    ensino superior, e o professor de Literatura Inglesa confessa que

    s conseguiu atingir esteticamente os alunos atravs do clube de

    cinema recm-criado. Nessas localidades longnquas da

    Venezuela, Argentina e Brasil, ou de qualquer outro pas latino-

    24

    C.f. Lisboa, 2007. 25

    Trecho extrado de Gusmo, 2007, p. 170.

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  • 29

    americano, o clube tende a ultrapassar o seu papel de simples

    difuso intelectual e artstica, para transformar-se num dos

    ncleos mais intensos da vida social, num rgo sensvel de

    receptividade inovao de ideias ou de costumes, e em

    instrumento capaz de introduzir modificaes nos sistemas de

    valores correntes.

    tambm a partir desse perodo que se pode falar da articulao de um

    Movimento social Cineclubista no Brasil, com a realizao dos primeiros encontros

    e a criao de federaes regionais e nacional, com conexes internacionais. Os

    cineclubes e cinematecas dos anos de 1940-50 foram as escolas que formaram os

    cineastas mais influentes nas mobilizaes juvenis das duas dcadas subsequentes,

    como os franceses Franois Truffaut e Jean-Luc Godard e os brasileiros Joaquim

    Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Cac Diegues e Glauber Rocha, representantes

    do Cinema Novo.

    Sobre a gerao cineclubista seguinte, Butruce (2011, p.21) escreve:

    Diante de toda agitao pela qual passava a sociedade brasileira

    na dcada de 1960, especialmente entre os jovens, o

    desenvolvimento dos cineclubes concentrou-se principalmente

    em universidades e escolas, acompanhando o ritmo de algumas

    manifestaes culturais do perodo, como o Centro Popular de

    Cultura organizado pela Unio Nacional dos Estudantes.

    A pesquisa Cineclubismo: memrias dos anos de chumbo, em que Rose Clair

    Matela (2008) entrevista cineclubistas do perodo mais duro do Regime Militar at

    a democratizao do pas, revela o papel do cineclubismo na mobilizao de uma

    juventude empenhada na construo de uma sociedade democrtica, polifnica, que

    compartilhava utopias polticas, estticas e comportamentais com os jovens

    cinfilos de maio de 1968, na Frana. Para a autora (p.156), importante ressaltar

    que este movimento tambm se identificava com a movimentao estudantil

    internacional (...) lutando contra as injustias, as guerras, os colonialismos e

    ditaduras presentes em vrias partes do mundo.

    As restries da ditadura militar fortaleceram a dimenso do engajamento

    poltico no cineclubismo: com a priso das principais lideranas polticas e

    sindicais, os movimentos culturais e estudantis catalisaram as resistncias (Matela,

    2008, p.155). Apesar de a represso ter desarticulado parte do Movimento

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  • 30

    Cineclubista26

    , os cineclubes eram os poucos espaos nos quais ainda era possvel

    se reunir em grupos e expor ideias alternativas; algumas vezes se estabeleceram

    como pretexto para atividades de partidos clandestinos. Segundo Miguel Serpa

    Pereira (2012), a Igreja, com suas contradies internas, tambm foi importante

    para a manuteno das atividades cineclubistas nesse perodo, abrigando, por

    exemplo, o Cineclube Glauber Rocha (1972) na Igreja de So Francisco do

    Engenho Velho27

    , frequentado por militantes do Partido Comunista Brasileiro.

    Neste contexto, uma das entrevistadas por Matela, salienta a importncia da

    associao dos cineclubes com partidos polticos para esta gerao:

    ...onde tinha uma manifestao pelas liberdades democrticas

    ou pela liberdade de expresso, a gente estava l,

    organizadamente, jovens, em nmeros expressivos, nunca era

    um ou dois, era sempre nmero grande, ento eu acho que isso

    teve uma importncia, teve um papel que no se pode desprezar,

    nada, nem na resistncia, nem na construo das condies de

    abertura (Aninha apud MATELA, 2008, p.158).

    Naturalmente em consequncia de todas estas questes levantadas poca, os

    cineclubes viviam a tenso entre aqueles que viam a cultura como meio de

    mobilizar ou engajar pessoas para fins estritamente partidrios, (...), e aqueles que

    percebiam que a cultura estava envolvida pela dimenso poltica, mas no poderia

    ser instrumentalizada por esta (MATELA, p.164). Mas a discusso sobre a

    orientao poltica ou esttica dos cineclubes no era o nico debate no modelo

    cineclubista das dcadas de 1960-70. A organizao democrtica tambm era um

    dos objetivos principais destas associaes.

    Entre as narrativas reunidas na pesquisa de Matela, encontram-se as de jovens

    que viam no cineclube uma forma de atuao poltica alternativa ao prprio

    movimento estudantil, envolvendo uma variedade de atores, interesses e projetos

    polticos, que compreendia trabalhadores e a recente, na poca, mobilizao

    homossexual. Por isso a autora, que entrevistou cineclubistas atuantes na cidade do

    Rio de Janeiro, afirma que a diversidade marca a constituio do movimento

    cineclubista brasileiro entre a segunda metade da dcada de 1960 e o princpio dos

    26

    De acordo com Macedo, On-line, s/d (a), aps a 7 Jornada Nacional de Cineclubes, em 1968, os

    cineclubes passam a ser perseguidos. estabelecida na prtica a censura prvia s suas atividades e

    todo tipo de entraves e presses vo desmantelando todas as entidades no Pas. 27

    Na Tijuca, bairro do Rio de Janeiro.

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  • 31

    anos 1980 (p.161). Como sugere o depoimento a seguir, a participao em um

    cineclube era vivida por muitos como um exerccio de intercmbio e negociao:

    Era uma coisa muito de troca, mesmo, de conhecimento e

    menos engajado. Ento, menos ideologicamente fechado,

    tnhamos posies polticas diversas, as brigas, as filiaes

    partidrias, mas isso tudo era... era menor do que a afinidade, o

    amor ao cinema, o interesse pelo cinema era maior que as

    divergncias. (depoimento de Ana apud MATELA, 2008,

    p.21)

    Alm das sesses regulares com debates, nas quais eram distribudos jornais e

    folhetos sobre os filmes programados e sobre o cinema de uma forma geral, os

    cineclubes desse perodo organizaram mostras, festivais, retrospectivas de

    cinematografias e de cineastas consagrados pela crtica, muitas vezes enfrentando as

    dificuldades impostas pelo regime autoritrio da ditadura militar. Pois,

    independentemente das tendncias polticas dos filmes, desde que a gerao cinfila

    anterior reconheceu o valor dos autores da indstria28

    , interessava aos

    cineclubistas o acesso a tudo que fosse considerado importante ou alternativo no

    campo do cinema.

    Outra prtica cineclubista dessa gerao que merece destaque era a

    distribuio de ttulos em 16 mm, com a criao da Distribuidora Nacional de

    Filmes para Cineclubes (Dinafilme), durante a X Jornada Nacional de Cineclubes

    (1976) em Juiz de Fora (MG). Segundo Macedo (Macedo, s/d), a Dinafilme foi

    criada para:

    1) garantir a existncia de um movimento realmente nacional,

    atravs da distribuio de filmes para todo o territrio

    brasileiro; 2) criar as bases para um circuito alternativo,

    constitudo pelos cineclubes e entidades semelhantes, que

    servisse de base para a alimentao de um cinema mais prximo

    das realidades das comunidades em que os cineclubes atuam o

    que, ao fim e ao cabo, significa lanar as bases de um cinema

    mais popular, livre das injunes e padres do cinema

    comercial. Outro elemento fundamental de constituio da

    Dinafilme era a resistncia Censura, que na poca reinava

    absoluta.

    28

    A poltica dos autores promovida pelos crticos da revista francesa Cahiers du Cinema a partir do

    final da dcada de 1950, defendia a noo de autoria no cinema compreendendo o diretor como

    figura central das produes cinematogrficas. Sobre a poltica dos autores c.f. Berdardet, 1994.

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  • 32

    Para tanto, a distribuidora dos cineclubes chegou tambm a investir em

    algumas produes. Seus objetivos sintetizavam os propsitos do Movimento

    Cineclubista no final dos anos de 1970, mas a Dinafilme no conseguiu se sustentar

    financeiramente. Encerrando suas atividades em meados da dcada de 198029

    , o

    fornecimento de cpias para exibio em cineclubes foi ainda mais dificultado.

    Aps uma drstica retrao, no perodo da redemocratizao do pas e

    coincidente momento de fechamento de muitas salas de exibio, o incio do sculo

    XXI testemunhou uma expressiva proliferao de cineclubes, novamente com

    grande diversidade de propostas. Em 2006, o ento diretor administrativo da

    Associao de Cineclubes do Rio de Janeiro (ASCINE-RJ), Rodrigo Bouillet

    (2006) escreveu que, apesar da heterogeneidade, h um esprito que parece

    permear (e unir) a todos, que o de proporcionar uma forma alternativa de lazer,

    cultura e reflexo atravs da exibio do audiovisual (p.106). O cineclubista da

    Retomada30

    cria um ambiente de encontro festivo com o cinema, aliando-o a outras

    linguagens artsticas; apropria-se das novas tecnologias de exibio e captura de

    imagem e som para construir e expressar sua identidade, usando as mdias digitais

    para se articular politicamente, ou apenas para manifestar seu amor ao cinema

    (BOUILLET, 2006; BUTRUCE, 2011; FAUSTINI, 2011).

    No h tanto daquela preocupao dos pioneiros da dcada de 1920 em

    distinguir o que seria o bom cinema as perspectivas so a de pesquisa, dos

    diferentes fatos cinematogrficos que vo das raridades ao cinema pipoca31

    , e a

    da incluso de novos grupos produtores. Muitos cineclubes so organizados por

    alunos de cursos de cinema que tambm se espalham pelo pas (NORTON, 2011).

    Ao mesmo tempo, mudanas na poltica social do governo federal, na perspectiva

    da reduo do Estado, que desde a dcada de 1990 vm configurando novas formas

    de mobilizao social e cultural, impulsionaram o surgimento de um grande nmero

    de organizaes no governamentais trabalhando com jovens de comunidades de

    baixa renda, usando o audiovisual como ferramenta de empoderamento e elevao

    da autoestima.

    29

    A data precisa do encerramento das atividades da Dinafilme no foi encontrada. Em Macedo, On-

    line, s/d (c), a ltima referncia do ano de 1984. 30

    Como Bouillet (2006, p. 106), uso o termo em aluso chamada Retomada do Cinema Brasileiro. 31

    Jargo do meio cinematogrfico para se referir pejorativamente a grandes produes do cinema

    industrial, geralmente norte-americano.

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  • 33

    A produo de filmes passou a ser central nos cineclubes ligados s ONGs

    que, em meio discusso sobre um contexto multicultural, trabalham a questo da

    comunicao para a cidadania. Se, dos anos 1940 at os 1960 era bastante difundida

    uma ideia de que os jovens pobres eram carentes de cultura e conhecimento, hoje a

    prtica cineclubista no Brasil, alm de contribuir para formao de novos cineastas,

    tem um papel importante na ocupao das telas por minorias polticas32

    .

    No novo contexto, muitos grupos que comearam assistindo a filmes se

    autorreferenciam como coletivos ou cooperativas, enfatizando sua atuao

    como realizadores de filmes/vdeos e de eventos que integram o audiovisual a

    outras linguagens. importante notar a troca desses produtos entre os cineclubes, a

    colaborao para adquirir novos contedos agora atrelada possibilidade de

    difuso dos seus prprios. O audiovisual alternativo que circula majoritariamente

    a produo de curtas-metragens dos cursos de cinema ou dos prprios cineclubes e

    coletivos afins. Entre agosto e setembro de 2006, 25 cineclubes realizaram a

    primeira edio do Circuito Cineclubista de Estreias (CCE):

    De cara, cineclubes em oito estados do pas (ES PB, PR, RJ,

    SC, RN, RS, SP) tomaram a empreitada de selecionar filmes

    curtos, organizando ou no programas para exibio, gravar

    DVDs domesticamente (lembremos que filmes continuam

    procura de serem vistos...) e envio via correio da mdia Carta

    Registrada mesmo! Tudo realizado de forma muito comunitria,

    cada cineclube assumindo os encargos de envio pela vontade

    mesmo de levar frente uma ao que vai de encontro s

    estruturas de distribuio e exibio audiovisual ainda muito

    rgidas no Brasil. (BEZ, On-line, s/d)

    No incio de 2007, a Secretaria do Audiovisual (SAV/MinC) lanou a

    Programadora Brasil, uma espcie de verso digital da Dinafilme, com distribuio

    em DVD de um catlogo de filmes nacionais, e coordenada pelo Centro Tcnico

    Audiovisual (CTAv), rgo da SAV, em parceria com a Sociedade Amigos da

    Cinemateca. A Programadora Brasil fruto da necessidade de ampliar o pblico

    para o cinema brasileiro e de democratizar o acesso cultura, desenvolveu-se no

    dilogo da SAV com o Movimento Cineclubista, que se reestruturou a partir do

    32

    A comparao entre os longas-metragens Cinco Vezes Favela, produzido pelo CPC/UNE (1962), e

    5x Favela, Agora Por Ns Mesmos (2010) so um bom exemplo de como cineclubistas de duas

    geraes se colocaram diante dessa questo.

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  • 34

    chamado do grupo de cineclubistas histricos33

    , chefiado por Orlando Senna, que

    assumindo a Secretaria em 2003, no mesmo ano convidou os diferentes cineclubes

    para um encontro durante o 36 Festival de Braslia do Cinema Brasileiro. A partir

    da, o CNC foi reativado e as Jornadas Nacionais voltaram a ser realizadas. Alm

    do flego da sociedade organizada, o estmulo abertura de cineclubes passou a ser

    poltica pblica. Leopoldo Nunes, diretor-geral da Programadora Brasil poca de

    seu lanamento, explicou os objetivos da SAV:

    Ele, o secretrio, foi educado num colgio marista, em que os

    padres mantinham cineclubes, fundamentais na educao, na

    formao artstica e na formao do olhar para uma das mais

    belas artes. Eu, igualmente, iniciei-me no cinema atravs do

    cineclubismo. (...) Queramos principalmente, retomar a

    dimenso no-comercial do filme, digo, pensar em alternativas

    ao filme de lanamento, de shopping, de bilhete caro, ou seja,

    um circuito cineclubista. (NUNES, 2007)

    At dezembro de 2011, a Programadora Brasil e outras aes envolvendo

    uma srie de programas do governo federal (no mbito dos ministrios MEC e

    MinC) como o Cultura Viva34

    , editais de Pontos de Cultura, Mais Cultura e Mais

    Educao fomentaram um circuito alternativo de exibio, atuando em 830

    cidades do pas35

    . A ao Cine Mais Cultura (orientada pelo programa Mais

    Cultura) a mais especfica para a abertura de salas de exibio alternativas,

    chamadas de Cines. Por meio de editais, a iniciativa disponibiliza equipamento

    audiovisual de projeo digital, obras brasileiras do catlogo da Programadora

    Brasil36

    e oficina de capacitao cineclubista37

    para instituies sem fins

    lucrativos. Em 2012, havia mais de mil Cines cadastrados, atendendo

    prioritariamente periferias de grandes centros urbanos e municpios, de acordo com

    33

    De acordo com o Caderno 4: formao de pblico e cineclubismo dos Cadernos Cine Mais , s/d,

    p.15: [d]epois de 14 anos organizada, por iniciativa de um cineclubista, ento atuando no

    Ministrio da Cultura, Leopoldo Nunes, uma Jornada de Reorganizao do Movimento Cineclubista,

    em Braslia, em 2003. 34

    Lanado em 2004 pelo MinC. Fonte:

    Acesso em 10 mar. 2013. 35

    C.f. Programadora Brasil, On-line, 23/12/2011: A Programadora Brasil alcanou em 19 de

    dezembro de 2011, a marca de 500.917 espectadores, em mais de 13 mil sesses informadas pelos

    pontos de exibio associados, localizados em mais de 830 cidades de todos os Estados do pas. Mais

    de 300 destes municpios no possuem salas comerciais de exibio. 36

    Que no obrigatrio exibir. 37

    De acordo com o site da Ao Cine Mais Cultura: http://www.cinemaiscultura.org.br/

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  • 35

    os indicadores utilizados pelo Programa Territrios da Cidadania (site do Cine

    Mais Cultura idem).

    De acordo com Rodrigo Bouillet, que tambm foi Coordenador de Rede do

    Cine Mais Cultura (2008-2012), essas polticas contriburam para uma nova

    situao de diversidade para o movimento cineclubista38

    . As geraes anteriores

    eram ou de pessoas ligadas profissionalmente ao cinema, fs, amadores, aspirantes,

    realizadores e tericos; ou de grupos com um projeto poltico que apostasse

    fortemente na metodologia da formao tico-ideolgica e/ou moral-religiosa

    atravs do cinema. Devido s dificuldades de acesso s informaes necessrias

    para o funcionamento de um cineclube, de aquisio de filmes e equipamentos,

    alm das pessoas da rbita do cinema, quem conseguia articular os cineclubes ou

    era a Igreja ou uma elite universitria, que dialogava ou no com outros

    movimentos sociais:

    Voc precisa que o grupo tenha uma resoluo muito forte ou

    uma pessoa do grupo tenha uma resoluo muito forte, porque a

    mecnica era muito difcil. (...) O Cine Mais Cultura, qualquer

    instituio pode concorrer. Ento, o cara no tem compromisso

    com audiovisual. O compromisso da colnia de pescador, antes

    de ser com o audiovisual, com a colnia. O cara da associao

    de bairro tem compromisso com as questes prementes da

    associao e no com audiovisual. O audiovisual apoio,

    instrumental, ele resolve outras coisas que no o carter de

    cinema. Digo isso priori, porque os grupos de audiovisual tem

    o audiovisual como coisa principal. (BOUILLET, 2012)

    Desde a gesto do ministro Gilberto Gil at o momento em que esta pesquisa

    encerrou, em que Marta Suplicy39

    assumiu a pasta da Cultura e nomeou Leopoldo

    Nunes como secretrio da SAV, o Movimento Cineclubista nacional manteve

    constante dilogo com o governo federal. Alm disso, grande parte dos estados

    brasileiros e um nmero expressivo de municpios passaram a interagir com o

    Movimento Cineclubista da maneira mais intensa de toda a sua histria. Como

    afirma Bouillet, para os editais do Cine Mais Cultura muitos lugares s tiveram o

    nmero de inscritos por causa do esforo da secretaria estadual de cultura (2012).

    38

    Em 8 de novembro de 2012, a campanha de filiao do CNC Brasil, havia cadastrado 449

    entidades. Fonte: Re: [Circuito RS] Segue a Campanha de (Re)Filiao e mobiliza in:

    [CNCdialogo] Resumo 3208[1 Anexo] , Correspondncia da lista CNCdialogo em 10/11/2012. 39

    Precedida por Ana de Hollanda; Juca Ferreira e Gilberto Gil (em ordem decrescente de sucesso de

    ministros at 2003.

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  • 36

    Nestas circunstncias, e com a incontestvel contribuio das novas tecnologias de

    captura e exibio de vdeo, a articulao e manuteno de atividades cineclubistas

    hoje encontram condies favorveis, principalmente para indivduos sem

    experincia de trabalho com audiovisual.

    Porm, o contexto atual complexifica alguns antigos desafios do Movimento

    Cineclubista. Em 2010, o CNC, juntamente com a Associao de Difuso Cultural

    de Atibaia (SP) e o Difuso Cineclube, organizou o I Encontro Internacional dos

    Direitos do Pblico, entendendo que:

    Desde que surgiram, no incio do sculo passado, os cineclubes

    foram as nicas instituies a questionar a uniformizao e a

    unilateralidade do discurso cinematogrfico hegemnico.

    Apenas os cineclubes tm por objetivo a organizao do pblico

    para a sua participao no processo integral da comunicao

    audiovisual. Somente os cineclubes se estruturam, se enrazam,

    de maneira sistemtica e permanente nas diferentes

    comunidades em que se encontra o pblico. No campo do

    audiovisual, os cineclubes so os representantes do pblico.

    (CNC in: Primeiro Encontro Internacional dos Direitos do

    Pblico, p.17)

    Hoje, os avanos tecnolgicos problematizam a propriedade intelectual e a

    bandeira do acesso cultura enfatizada. Esta, por sua vez, frequentemente

    vinculada a outra dimenso cineclubista tradicional que se atualiza: a vocao

    pedaggica. No mesmo encontro, a ento diretora de Memria do CNC, Saskia S

    (2010, p.40), argumentou:

    A imerso no universo audiovisual atravs da prtica

    cineclubista como forma de implantao de uma educao que

    respeite as diferenas e que trabalhe a auto-organizao do

    pblico em coletivos, atravs do livre acesso ao mundo cultural

    e audiovisual como um direito, traz em si, a prtica

    transformadora democrtica e plural sem a qual, corremos o

    risco de renunciarmos a nossa humanidade.

    O que o Movimento Cineclubista contemporneo reivindica, diante das

    diferentes esferas de governo, deriva de uma histria de prticas e lutas muito

    diversificadas que tensionam outros interesses do campo do audiovisual.

    Entre as tantas possibilidades de aes e relaes disparadas pela organizao

    cineclubista, vistas aqui, apenas duas caractersticas, quando combinadas,

    identificam a atividade cineclubista: 1) reunir pessoas em torno do audiovisual; 2)

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  • 37

    proporcionar a troca de percepes e concepes entre diferentes sujeitos40

    . No

    entanto, a presena destas duas condies no suficiente para distinguir os

    cineclubes do circuito comercial de exibio. Procurando proteger a tradio

    cineclubista sem comprometer a sustentabilidade do setor audiovisual produtor, a

    ANCINE faz a distino necessria, definindo o que um cineclube. Por meio da

    Instruo Normativa n 63 (2007)41

    , que estabelece normas para o seu registro

    facultativo e d outras providncias, o rgo regula a atividade:

    Art. 3 Os cineclubes devero constituir-se sob a forma de

    sociedade civil, sem fins lucrativos, em conformidade com o

    Cdigo Civil Brasileiro e normas legais esparsas, aplicando

    seus recursos exclusivamente na manuteno e

    desenvolvimento de seus objetivos, sendo-lhes vedada a

    distribuio de lucros, bonificaes ou quaisquer outras

    vantagens pecunirias a dirigentes, mantenedores ou

    associados.

    Sem fins lucrativos, os cineclubes potencializam suas caractersticas

    essenciais anteriormente apontadas, no sentido de proporcionar oportunidades

    educativas. No website do CNC-Brasil, Macedo & Pimentel Neto (s/d42

    ) entendem

    que,

    Organizados com base na mobilizao de seus associados em

    funo de um objetivo no financeiro, os cineclubes se voltam

    para fins culturais, ticos, polticos, estticos, religiosos. Quase

    sempre realizam, de alguma forma, mesmo parcialmente, seus

    objetivos. Ou seja, os cineclubes produzem fatos novos,

    interferem em suas comunidades, contribuem para mudar

    conscincias e formar opinies, mobilizam. No raro, so as

    sementes que chegam florao de cineastas e outros artistas;

    crescem como instituies, transformando-se em museus,

    cinematecas, centros de produo; criam o caldo de cultura para

    mudanas culturais, comportamentais, para a gerao de

    movimentos sociais. Os cineclubes produzem e modificam a

    cultura.

    40

    Lugar de encontros de pessoas e destas com o cinema (Cf. Bergala, 2008). 41

    http://www.ancine.gov.br/legislacao/instrucoes-normativas-consolidadas/instru-o-normativa-n-63-

    de-02-de-outubro-de-2007 42

    Disponvel em O que cineclube, site do CNC-Brasil: http://cncbrasil.wordpress.com/o-que-e-

    cineclube/

    [citado 2012-06-20]

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    2.1. Cineclubismo e Educao

    Na origem do cineclubismo, Lunardelli (2000, p.18) chama ateno para sua

    vocao pedaggica:

    Contra a percepo ligeira e descartvel, o cineclubismo

    buscava valorizar o cinema como cultura, interpondo-se na

    relao do espectador com o filme no intuito de criar um

    pensamento crtico. Ao mesmo tempo em que propunha uma

    forma superior de recepo, o cineclube reconhecia a condio

    coletiva do espetculo cinematogrfico ao tomar a forma

    associativa como modelo de agrupamento. Considerando seus

    elevados ideais, os cineclubes sero, invariavelmente, criados

    pelas elites intelectuais, desejosas de constituir um espao de

    recepo diferenciada. Revestiam-se de um dissimulado papel

    educativo, que est na gnese do cineclubismo, evidenciado na

    linha doutrinria adotada pelos cineclubes catlicos.

    De acordo com MATELA (2008, p.20), as atividades cineclubistas

    cumpriram um papel poltico-pedaggico importante na formao dos brasileiros

    que participaram deste movimento durante o Regime Militar:

    ofereceu condies para a elaborao de uma perspectiva de

    vida voltada para os ideais de liberdade e de concepes ticas e

    estticas como fundamentos de constituio dos seres humanos,

    no momento em que o conhecimento difundido e ensinado nas

    universidades e nas escolas sofria censura por parte das

    instituies dominantes.

    Hoje, o Movimento Cineclubista acena para que as escolas participem mais, e

    melhor, das mediaes que marcam a relao de estudantes/espectadores com o

    audiovisual. De acordo com Leite (2012, pp.101-102), na plenria Cineclubes e a

    democratizao do acesso produo audiovisual, realizada na Assembleia

    Legislativa do Estado do Rio de Janeiro Alerj, em 12 de dezembro de 2011:

    foi recorrente nas falas dos cineclubistas presentes a

    necessidade das escolas municipais serem locais de divulgao

    do cinema e de formao audiovisual, tornarem-se, portanto

    espaos cineclubistas. Esta reivindicao foi direcionada aos

    representantes da ASCINE-RJ e das Secretarias Municipais de

    Cultura e de Educao do Rio de Janeiro que estavam

    presentes.43

    43

    Infelizmente, a fonte no nos permite saber se eram de diversos municpios do Estado ou se eram apenas as secretarias do municpio do Rio de Janeiro.

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  • 39

    Alm das mencionadas polticas culturais especialmente voltadas para o

    incentivo atividade cineclubista, polticas educacionais atuais tambm tm

    investido em projetos envolvendo o cinema e o audiovisual, algumas apontando

    para o cineclubismo, como o caso do Projeto Cineclube nas Escolas.

    O quadro terico do Projeto CNE e tambm desta pesquisa assinala que a

    potncia da experincia esttica e as dinmicas de mediao permeiam a forma

    como os sujeitos se relacionam com o audiovisual, dentro e fora dos clubes de

    cinema. Mas a reviso de literatura tambm aponta que o cineclubista experimenta

    uma recepo especial dos filmes e do cinema. De acordo com Gusmo (Gusmo,

    2007), em 2003, o discurso do ento secretrio Orlando Senna da Secretaria do

    Audiovisual (rgo do MinC) compreendia que:

    O cineclube a maneira mais ativa, coletiva e penetrante de

    acmulo da cultura cinematogrfica. Ao longo do tempo tem se

    mostrado a forma mais dinmica de relacionamento com essa

    cultura, pois alm de possibilitar a assistncia de filmes, a

    atividade cineclubista pode incluir em sua programao

    informao histrica, crtica sobre os filmes e a partir dos

    comentrios a reflexo sobre essa exemplar expresso artstica.

    (p. 173)

    Alguns cineclubes tm uma proposta que define seu carter ou perfil,

    orientando toda a sua programao: temas, identidades profissionais ou culturais,

    cinematografias especficas, ideologias... pretextos. Outros j preferem ter uma

    programao mais aberta. Mesmo nestes casos, temticas ou um recorte podem ser

    positivos como um ponto de partida para cada sesso programada, desde que haja

    predisposio para uma conversa livre. O professor e cineclubista Miguel Pereira

    v o cineclubismo como uma forma de coparticipao, de interao de ideias:

    O cineclube no apenas voc ver o filme, mas intercambiar

    vises a respeito de filmes. E do ponto de vista da proposta de

    ensino e aprendizagem, isso absolutamente fundamental.

    Voc nunca aprende sozinho, voc aprende sempre com os

    outros. Sejam eles prximos a voc, vis a vis, seja atravs da

    leitura ou da viso flmica que voc tenha. Voc est entrando

    no universo do outro. Ento, o cineclube um pouco isso, um

    processo pedaggico de entrar no espao que o outro abre pra

    voc e voc interagir com ele. Ento um processo educativo

    fundamental. (PEREIRA, 2012)

    Cada grupo e cada contexto definem os caminhos dos debates na prtica

    sistemtica, mas estabelecer relaes, colocar ideias em dilogo, desde a concepo

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    de cada sesso uma das contribuies mais frteis dos cineclubes, estes espaos de

    educao no-formal, para a reflexo sobre a educao formal. Enquanto uma das

    principais finalidades desta ltima o desenvolvimento nos indivduos da

    capacidade de anlise relacional, justamente esta competncia que permite ao

    espectador interpretar e atribuir sentidos, ao que v e ouve, e compartilhar esses

    sentidos com outros.

    O exerccio de pr em relao discursos e ideias, em torno do universo de

    contedos e formas audiovisuais, to importante para a formao de um cidado

    crtico e emancipado que, em seu pequeno tratado de transmisso do cinema

    dentro e fora da escola, Bergala (2008) constata o prazer do lao (p.68) e

    defende uma pedagogia da articulao (p.113). Segundo este autor, o espectador

    pode afetar-se por uma obra flmica estabelecendo relaes ntimas e pessoais com

    ela. Para ele, isto positivo, mas, a esta apropriao individual, a educao deve

    acrescentar o acesso a algo de mais universal do que a satisfao fugid