Beims Rw Td68

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    ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA

    INSTITUTO ECUMNICO DE PS-GRADUAO EM TEOLOGIA

    ROBERT WALTER BEIMS

    A RELIGAO DOS SABERES E A TEOLOGIA:

    O SISTEMA DAS CINCIAS DE PAUL TILLICH NO HORIZONTE

    DO PENSAMENTO COMPLEXO DE EDGAR MORIN

    So Leopoldo

    2008

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    ROBERT WALTER BEIMS

    A RELIGAO DOS SABERES E A TEOLOGIA:

    O SISTEMA DAS CINCIAS DE PAUL TILLICH NO HORIZONTE

    DO PENSAMENTO COMPLEXO DE EDGAR MORIN

    Tese de DoutoradoPara a obteno do grau de Doutor emTeologiaEscola Superior de TeologiaInstituto Ecumnico de Ps-Graduaorea: Teologia e Histria

    Orientador: Enio Ronald Mueller

    So Leopoldo

    2008

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    BEIMS, Robert Walter. A religao dos saberes e a teologia: o Sistema das Cincias de PaulTillich no horizonte do Pensamento Complexo de Edgar Morin. So Leopoldo : EscolaSuperior de Teologia, 2008.

    RESUMO

    O tema principal deste trabalho o estatuto terico da teologia. A cientificidade de qualquerdisciplina do conhecimento dependente principalmente da conceituao de cincia e esteconceito dependente do processo histrico real. Os diversos conceitos de cincia ao longo dahistria ocidental criaram classificaes de cincias que concederam cientificidade paraalgumas disciplinas enquanto negaram este estatuto a outras. Atualmente, por conta do

    reconhecimento da falta de um fundamento slido para o conhecimento, reconhece-setambm a impossibilidade de uma definio ltima do conceito de cincia, de verdade, etc.Reconhece-se cada vez mais que ao lado dos grandes resultados positivos, conseqncia doconceito e mtodo cientfico moderno, que ainda est em vigor, existem tambmconseqncias negativas como o distanciamento entre as diferentes cincias e saberes. Paradiminuir esta distncia, busca-se a religao dos saberes para a qual este trabalho pretendecontribuir, especialmente na questo de re-incluso da teologia entre os saberes vlidos. Paraisto, no primeiro captulo, busca-se conhecer a situao atual da fragmentao dos saberes e atentativa de reverter este quadro por meio do Pensamento Complexo de Edgar Morin. Nosegundo e terceiro captulos apresentado o Sistema das Cincias de Paul Tillich. Em 1923Tillich escreveu o textoDas System der Wissenschaften nach Gegenstnden und Methoden(O

    Sistema das Cincias segundo objetos e mtodos) com o objetivo de encontrar um lugar entreas cincias para a teologia. No Sistema de Tillich, a soluo para o problema da unidade ediversidade dos saberes est na caracterstica fundamental do ser humano enquanto esprito, acriatividade. Por fim, no quarto captulo, so apresentados alguns aspectos relevantes para areligao dos saberes a partir do presente trabalho, como, por exemplo, uma possvelconceituao de cincia.

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    BEIMS, Robert Walter. A religao dos saberes e a teologia: o Sistema das Cincias de PaulTillich no horizonte do Pensamento Complexo de Edgar Morin. So Leopoldo : EscolaSuperior de Teologia, 2008.

    ABSTRACT

    The main theme of this dissertation is the theoretical status of theology. The scientific statusof any area of knowledge depends heavily on the respective concept of science. And thisconcept is, in turn, dependent of the real historical process. The various concepts of sciencethrough Western history created science classifications which conceded the status of scienceto some disciplines and refused it to others. Today, because of the recognition that we lack asolid foundation for knowledge, there is also recognition of the impossibility of an ultimate

    definition of concepts like science, truth, etc. There has been a growing recognition that,besides great positive results which are consequences of the still dominant modern scientificconcept and method, there are also negative consequences, like the distance between differentsciences and forms of knowledge. In order to reduce this distance, there has been search for areunion of forms of knowledge. This dissertation aims to contribute to this process, especiallyin regard to the re-inclusion of theology among the valid forms of knowledge. In the firstchapter the focus is on recognizing the present situation of knowledge fragmentation and theattempt of Edgar Morin to revert it through Complex Thought. The second and third chaptersare dedicated to a revisiting of the System of Sciences of Paul Tillich. In 1923, Tillichpublished his book Das System der Wissenschaften nach Gegenstnden und Methoden (TheSystem of Sciences according to Objects and Methods), with the ultimate goal of finding a

    place for theology among the sciences. In Tillichs System, the solution for the problem ofunity and diversity in knowledge lies in the fundamental characteristic of human being asspirit, creativity. Finally, in the fourth chapter some relevant aspects for the reunion ofdifferent forms of knowledge are presented, as for example a possible concept of science.

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    DEDICATRIA

    Dedico este trabalho a trs pessoas muito queridas que j no esto conosco e que, nombito deste trabalho, so smbolos:

    Rosemari Beims, me de Susan e Rafael, nossos filhos. Smbolo da capacidade

    criadora humana, que na direo do universal capaz de criar o novo nico, um particular, o

    que se torna visvel e incontestvel nos filhos.

    Irmgard Maria Beims, minha me. Nela, com um primeiro e descuidado olhar

    predominava a forma. Mas sob um olhar mais cuidadoso a forma se retrai para revelar o seucontedo, uma (quase) inabalvel tranqilidade e o seu estar a para os outros.

    Harry Beims, meu pai. Nele predominava a alegria e o entusiasmo escancarado pela

    vida e seu ministrio. Mas no assim como se todo este contedo estivesse sem forma, que

    estivesse a apenas para fruio egosta. Ele viveu com o seu contedo para os outros.

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    AGRADECIMENTOS

    Ao Instituto Ecumnico de Ps-Graduao em Teologia IEPG.

    Ao professor Dr. Enio R. Mueller, por sua orientao e apoio.

    Associao dos Amigos do Ceteol, por seu apoio financeiro durante boa parte do perodo de

    pesquisa.

    Ao ex-diretor da Faculdade Luterana de Teologia, Dr. Euler R. Westphal e sua esposa

    Simony, pelo apoio e incentivo.

    Rosane e ao Enio, pela amizade e pelas incontveis vezes que me hospedaram em sua casa

    durante o perodo.

    Rosel e ao Pedro, pela amizade e pelas cobranas carinhosas.

    minha esposa Liliane, pela cumplicidade, amor e compreenso.

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    SUMRIO

    INTRODUO......................................................................................................................11

    1 A RELIGAO DOS SABERES NO PENSAMENTO DE EDGAR MORIN ...........18

    1.1 Do mito razo autnoma em poucas palavras............................................................18

    1.2 Surge uma novarealidade.............................................................................................22

    1.3 Opensamento complexode Edgar Morin.....................................................................27

    1.3.1 O encontro com o universo complexo...................................................................28

    1.3.2 O pensamento complexo.......................................................................................31

    1.3.2.1 Os paradigmas................................................................................................33

    1.3.2.2 O grande paradigma do Ocidente...................................................................341.3.2.3 O paradigma da complexidade.......................................................................38

    1.3.3 O conhecimento complexo e a religao dos saberes............................................39

    1.3.3.1 A physis e suas emergncias..........................................................................41

    1.3.3.2 Os doispensamentos Mito e Razo............................................................45

    1.3.3.3 A religio........................................................................................................49

    1.3.4 O pensamento complexo e a teologia....................................................................51

    1.3.5 O pensamento complexo e a superaoda religio..............................................531.3.6 A complexidade do paradigma da complexidade..................................................57

    1.3.6.1 O sujeito que pensa complexamente..............................................................58

    1.3.6.2 Complexidade e metafsica............................................................................62

    1.4 O sujeito para alm da razo e do mito......................................................................65

    1.5 Como continuar?...........................................................................................................70

    2 O AGENTE DA RELIGAO DOS SABERES: O SER HUMANO CRIATIVO.....72

    2.1 Paul Tillich pensador a partir de fronteiras................................................................742.2 O ser humano que conhece............................................................................................76

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    2.2.1 Oprincpiofundamental do conhecimento...........................................................78

    2.2.1.1 O esprito e seu mtodo..................................................................................83

    2.2.1.1.1 O mtodo metalgico.............................................................................84

    2.2.1.1.2 O esprito................................................................................................86

    2.2.2 A Gestalt portadora de esprito e criatividade.......................................................87

    2.2.2.1 Os limites da criatividade...............................................................................91

    2.2.3 A Gestalt portadora de esprito e sentido...............................................................93

    2.2.3.1 A configurao das reas de sentido..............................................................95

    2.2.3.2 A atitude do esprito autonomia e teonomia...............................................96

    2.2.3.2.1 Religio e cultura...................................................................................98

    2.3 O ser humano que conhece o conhecimento.................................................................992.3.1 O carter produtivo da cincia do esprito.............................................................99

    2.3.2 O carter normativo da cincia do esprito..........................................................101

    3 O SISTEMA DAS CINCIAS DE PAUL TILLICH....................................................105

    3.1 A cincia do esprito....................................................................................................107

    3.1.1 Objeto e mtodo da cincia do esprito................................................................107

    3.1.2 Os elementos da cincia do esprito.....................................................................109

    3.1.2.1 A filosofia....................................................................................................1103.1.2.1.1 Os objetos da filosofia..........................................................................110

    3.1.2.1.2 O mtodo da filosofia...........................................................................113

    3.1.2.2 A histria do esprito....................................................................................115

    3.1.2.3 A sistemtica................................................................................................117

    3.1.2.3.1 O sistema..............................................................................................119

    3.1.3 Os objetos da cincia do esprito.........................................................................121

    3.1.3.1 Os objetos da rea terica............................................................................1213.1.3.1.1 A cincia (cognio).............................................................................122

    3.1.3.1.2 A arte....................................................................................................123

    3.1.3.1.3 A metafsica..........................................................................................125

    3.1.3.2 Os objetos da rea prtica............................................................................128

    3.1.3.2.1 O direito................................................................................................129

    3.1.3.2.2 A comunidade......................................................................................132

    3.1.3.2.3 O etos....................................................................................................134

    3.2 As cincias...................................................................................................................136

    3.2.1 As cincias do pensamento..................................................................................137

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    3.2.1.1 A lgica........................................................................................................138

    3.2.1.2 A matemtica...............................................................................................140

    3.2.1.3 Cincias do pensamento e fenomenologia...................................................141

    3.2.2 As cincias do ser................................................................................................143

    3.2.2.1 A meta do conhecimento das cincias do ser...............................................143

    3.2.2.2 A atitude do conhecimento nas cincias do ser............................................149

    3.2.2.3 A via do conhecimento nas cincias do ser..................................................150

    3.2.2.4 O grau do conhecimento nas cincias do ser...............................................151

    3.2.2.5 As categorias das cincias do ser.................................................................152

    3.3 O sistema das cincias e a teonomia............................................................................154

    3.3.1 Os elementos da cincia do esprito tenoma......................................................1563.3.1.1 A filosofia e a histria do esprito tenomas................................................156

    3.3.1.2 A sistemtica tenoma a teologia..............................................................157

    3.3.1.2.1 As tarefas da teologia...........................................................................159

    3.3.2 Os objetos da cincia do esprito tenoma..........................................................160

    3.3.2.1 Metafsica tenoma......................................................................................161

    3.3.2.2 Cincia e arte na teonomia...........................................................................162

    3.3.2.2.1 Implicaes para a teologia..................................................................1623.3.2.3 A tica tenoma...........................................................................................163

    3.3.2.4 Direito e comunidade na teonomia..............................................................164

    3.3.2.4.1 Implicaes para a teologia..................................................................165

    3.3.3 A teologia sistemtica..........................................................................................166

    3.3.4 Sistema das cincias e verdade............................................................................168

    3.3.4.1 A unidade do sistema em torno do criatividade...........................................169

    3.3.4.2 A cincia criativa e verdade.........................................................................173

    3.3.4.3 A cincia criativa e a vida............................................................................175

    3.3.5 A cincia entre metafsica e amor........................................................................178

    4 A UNIDADE ENTRE SER HUMANO E CONHECIMENTO....................................184

    4.1 A religao dos saberes...............................................................................................184

    4.1.1 A totalidade do saber...........................................................................................186

    4.1.2 Sentido, verdade e princpio unificador...............................................................188

    4.2 O que conhecimento e cincia para Tillich? Um resumo.........................................189

    4.3 Conhecimento, revelao e amor................................................................................191

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    CONCLUSO.......................................................................................................................197

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................................200

    NDICE DE FIGURAS.........................................................................................................203

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    INTRODUO

    Este trabalho centra-se na anlise do pensamento de Paul Tillich, especificamente

    sobre a organizao das diferentes cincias e suas relaes e de suas relaes com a teologia.O objetivo principal a pergunta em torno do estatuto terico da teologia. Entretanto esta pergunta

    somente poder ser respondida satisfatoriamente se for equacionada a questo da unidade das

    cincias. Por isto a presente pesquisa tem tambm como alvo contribuir com subsdios para o atual

    dilogo inter/transdisciplinar e para a discusso sobre a organizao e a religao dos saberes em

    nossos dias.

    Para tanto, ser revisitado um texto importante, mas no muito conhecido, do telogo

    e filsofo Paul Tillich, Das System der Wissenschaften nach Gegenstnden und Methoden (O

    Sistema das Cincias segundo objetos e mtodos), texto que ele escreveu com a inteno de

    encontrar um lugar legtimo para a teologia no conjunto das diversas cincias.1Tillich escreveu este

    texto em 1923 em meio a uma grande efervescncia em muitas reas. Quatro anos antes fora

    promulgada a Constituio de Repblica de Weimar, preocupada com reformas na educao e que

    mantm a Faculdade de Teologia nas universidades. No mesmo ano a Teoria Geral da Relatividade

    de Einstein foi confirmada experimentalmente. Em 1922 o Crculo de Viena comea a se reunir, o

    que marca o incio do Positivismo Lgico. Na contramo do Positivismo Lgico, a Mecnica

    Quntica insiste em nascer e em 1927 Heisenberg formula o Princpio da Incerteza e Bohr o

    Princpio da Complementaridade.

    A incerteza do conhecimento algo presente atualmente em todas as cincias.

    Incerteza no sentido de que impossvel alcanar um conhecimento verdadeiro de maneira

    absoluta e universal. Em outras pocas, com base no fundamento que o mtodo cientfico

    conferia, esta incertezaera percebida de maneira transparente apenas nas cincias humanas e

    na teologia. Atualmente, por conta do reconhecimento da falta de um fundamento ltimo para

    1 TILLICH, Paul. Auf der Grenze.Mnchen/Hamburg: Siebenstern-Taschenbuch Verlag, 1964. p. 33.

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    o conhecimento, esta incertezatambm assalta as cincias fsico-matemticas.

    Aceita-se hoje cada vez mais que em todas as suas dimenses a realidade

    complexa. Esta realidade no pode ser conhecida usando-se apenas o mtodo que a separa empartes simples e que a contempla de maneira disjunta, como diz Edgar Morin. Este

    mtodo, que trouxe muitos conhecimentos e grandes avanos tecnolgicos, apontado por

    muitos como uma das principais razes da fragmentao do ser humano e dos saberes. Os

    prejuzos para a humanidade resultantes da distncia entre a cultura humanista e tecnolgica

    so cada vez menos contestados.

    Busca-se, portanto, a religao dos saberes que torne o conhecimento mais humano e

    menos excludente. Uma reaproximao das culturas humanista e cientfica, em tese, no tem

    mais o impedimento epistemolgico fundamental resultante da maior ou menor verdade do

    conhecimento alcanado em cada uma delas. Com base nesta nova realidade possvel

    retomar a questo do estatuto terico das cincias humanas e tambm o da teologia, pois no

    possvel descart-las legitimamente a partir de um fundamento ltimo para o conhecimento.

    O religioso e a teologia, mesmo tendo perdido a sua cientificidade, estiveram sempre

    presentes na histria da humanidade e ressurgem com maior vigor nos dias atuais, talvez porcausa da incapacidade do mtodo cientfico de alcanar a verdade. O reconhecimento do curso

    de graduao de teologia pelo Ministrio da Educao (MEC) um indcio desta situao.

    Porm, o reconhecimento do curso de teologia pelo MEC no confere, por si, cientificidade

    teologia, esta deve ser procurada em outro lugar.

    O momento atual, no qual vivemos a incertezageneralizada e presenciamos a busca

    por uma reaproximao dos saberes e, no por ltimo, o reconhecimento pelo MEC dos

    cursos de teologia no Brasil, oferece-nos de um lado a oportunidade e, de outro lado, a

    necessidade de buscar a re-legitimao da teologia como cincia. Esta situao justifica

    retomar a questo da religao da teologia procurando pelo seu lugarno conjunto de todos os

    saberes.

    Na busca pela religao dos saberes e na procura por seu fundamento comum, esto

    surgindo vrias propostas que assumem diferentes faces, desde racionais a msticas. No

    presente trabalho, por conta do momento atual onde ainda predomina o racional, seranalisado o pensamento de Edgar Morin. Ele sugere que a religao dos saberes passa

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    necessariamente por aquilo que ele denomina de Pensamento Complexo.Este pensamento

    racional, porm, com o mrito de no excluir de todo o pensamento irracional, nem permitir

    que este seja excludo por aquele. Os dois so faces da mesma razo e esto numa constante

    dialgica procurando conhecer a realidade. Por este motivo, dentre as diversas tendncias

    atuais, o pensamento de Morin foi escolhido como horizontepara o pensamento de Tillich.

    Em sua base, o pensamento de Tillich tambm racionale pode, desta maneira, ser colocado

    ao lado do de Morin de forma mais coerente.

    Tillich foi provavelmente o ltimo entre os telogos protestantes que se ocupou de

    forma abrangente com a questo de um Sistema das Cincias.Procurou mostrar a unidadeque

    subjaz a todas as cincias, incluindo a filosofia e a teologia, apesar da diferena entre os seusobjetos e mtodos, enfatizando a necessidade de adquirir conhecimento a partir de todas as

    formas de cognio. Isto assim pois, segundo Tillich, o ser humano real busca pelo sentido

    das coisas e pelo sentido de conjunto das coisas. O conhecimento uma forma de conferir

    sentido.

    O conhecimento adquirido a partir de um tal Sistema, de fundamental importncia

    no apenas para o dilogo interdisciplinar com vistas religao dos saberes, mas, tambm,

    para o ser humano que carece e anseia por um sistema explicativo coerente no todo da

    realidade em que vive. O ser humano que no consegue viver a sua vida em compartimentos

    estanques, seja ele religioso ou cientfico, anseia por livrar-se do viver esquizofrnico

    resultante da fragmentao dos saberes. O Sistema de Tillich, alm de possibilitar e fomentar

    o dilogo interdisciplinar capaz de gerar uma viso de mundo que propicia uma vida mais

    coerente e, portanto, mais saudvel em todas as dimenses da existncia humana.

    Se o momento atual confere a possibilidade de retomar de forma legtima a religao

    dos saberes, levanta-se a questo: como religar saberes que ainda so rotulados e classificados

    como no-cientficos (menos verdadeiros)? Para responder a esta questo faz-se necessrio

    uma reviso dos conceitos e valores que determinam as relaes e o dilogo interdisciplinar.

    A (des)unio das cincias e qualquer classificao das cincias acontece com base numa idia

    de (des)unio das cincias, num conceito de cincia/cientificidade e ainda por conta da

    inteno com que se procura uma religao ou a manuteno da fragmentao dos saberes.

    Neste sentido, necessrio encontrar uma base comum, uma idia de unidade que desestimule

    a fragmentao e auxilie no dilogo interdisciplinar. Da mesma maneira deve ser encontrado

    um conceito de cincia/cientificidade que reconhea todas as cincias. Mas, o que significa

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    todas as cincias? Na verdade, todos estes conceitos determinam-se mutuamente e no

    possvel sair satisfatoriamente deste crculo a no ser, assim me parece, pela mtua articulao

    com sentido do conjunto. o sentido do conjunto que confere cientificidade ou no s

    cincias humanas e teologia.

    Atualmente os conceitos de cincia, de unio das cincias, etc., que procuram religar

    os saberes tm dificuldades de alcan-la. Neste trabalho ser analisada a proposta de Edgar

    Morin, que com o seu Pensamento Complexodefende esta religao sem, contudo, alcanar

    um conceito de cincia que permita a re-incluso da teologia no universo do saber cientfico.

    O desenvolvimento deste trabalho procurar mostrar que o princpio sobre o qual o

    Sistema das Cincias de Tillich foi construdo, torna-o suficientemente abrangente e aberto de

    maneira a integrar todas as dimenses da vida. Desta forma o Sistema poderia possibilitar o dilogo

    inter/transdisciplinar inclusive com a teologia como uma importante dimenso da vida humana.

    Poderia ainda deixar transparecer a unidade que subjaz a todas as cincias. Poderia, portanto,

    contribuir para que o ser humano alcance uma viso de mundo mais coerente que inclua todas as

    suas dimenses existenciais.

    Para alcanar este objetivo procuro no primeiro captulo introduzir muito brevemente atrajetria do conhecimento humano desde o mito razo autnoma, a questo da fragmentao dos

    saberes, suas origens e conseqncias e, ao mesmo tempo, fazer lembrar que ao logo da histria

    sempre estiveram presentes com os mais diversos acentos os dois grandes rivais: razo e mito,

    cincia e religio, etc. Pressuponho um empate na disputa entre cincia e religio pela primazia de

    acesso ao conhecimento verdadeiro, principalmente por no ser possvel declarar um vencedor. A

    razo para esta impossibilidade est na impossibilidade atual de encontrar um fundamento seguro

    para o conhecimento humano. Grande parte das disputas tm como fundamento a (hoje sabemos)

    auto-decretao de acesso privilegiado ao conhecimento.

    Ainda no primeiro captulo apresento o Pensamento Complexode Edgar Morin sob o vis

    da religao de todos os saberes, inclusive da teologia, e sero exploradas as possibilidades de

    alcanar este objetivo por seu intermdio.

    No segundo captulo ser revisitado o j citado texto de Tillich, Das System der

    Wissenschaften (O Sistema das Cincias), sobre a organizao das diferentes cincias dentro de umaperspectiva do saber que est alm da meramente classificatria, holstica ou sistemtica. Neste

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    captulo, o olhar se volta sobre as categorias com que Tillich constri o Sistema das Cincias e a

    religao de todos os saberes. No terceiro captulo apresentarei o Sistema das Cincias propriamente

    dito, mesmo que, como ficar claro, no possvel uma distino clara entre as categorias do

    captulo dois e o Sistema mesmo, objeto do terceiro captulo. Nisto transparece interdependncia do

    conjunto de seus elementos, fato que o sistema de Tillich antes de querer esconder procura

    evidenciar como caracterstica fundante.

    Em todo o trabalho evitei analisar e definir conceitos como, por exemplo, cincia, sistema,

    etc. A razo para isto que estes conceitos, como j coloquei, determinam-se mutuamente e

    assumem significados distintos dependendo do ambiente e da poca. Optei em deixar surgir de

    dentro do conjunto o seu significado sem compar-los diretamente com as diversas possibilidades.Porque, na verdade, o objetivo deste trabalho apresentar o conjunto das categorias que define os

    conceitos a partir do pensamento de Tillich e tambm de Morin como representante de uma dentre

    as vrias perspectivas atuais. Assim, no quarto captulo procuro fazer um apanhado dos conceitos e

    seus significados que determinam o estatuto terico dos saberes e da relao de uns com os outros.

    Portanto, no a inteno deste trabalho comparar com outras tentativas o rearranjo disciplinar e

    interdisciplinar que uma conseqncia inevitvel de qualquer empreendimento desta natureza.

    Certamente um estudo comparativo entre, por exemplo, o significado da teologia no sistema de

    Tillich e outras classificaes muito importante e necessrio, mas isto est fora do escopo deste

    trabalho.

    A razo da nfase em buscar um lugar legtimo no todo do saber para a teologia, no

    est apenas no reconhecimento da teologia pelo MEC e a impossibilidade de decretara partir

    desta resoluo a sua cientificidade. Tambm porque, na vida real, encontramos tanto a

    cultura profana com suas cincias, estabelecida nas universidades, nas indstrias,

    comunidades e indivduos, bem como, a cultura religiosa com as suas cincias, estabelecidanas universidades, nas igrejas, nas comunidades e indivduos. Em todo indivduo humano

    certamente convivem elementos de ambas as culturas e nem sempre de maneira saudvel, por

    conta da dicotomia imposta pelo arranjo disciplinar vigente. Ambas as culturas se fazem

    presentes no dia-a-dia do indivduo e das comunidades, de maneira que impossvel decretar

    a morte de uma delas sem lesar profundamente a cultura como um todo. Ambas as culturas

    com suas muitas realizaes positivas e negativas para o ser humano ao longo de toda a

    histria ocidental, permanecem resistindo a toda sorte de ataques de uma contra a outra. Quemse atreve a declarar um vencedor a partir de um ponto de vista vlido para ambas?

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    O presente trabalho procurar mostrar que possvel, obviamente com rearranjos

    conceituais, a convivncia fecunda entre cincia e religio tanto na Universidade como na

    comunidade e no indivduo. Estes rearranjos podem implicar mudanas na conceituao e rea

    de atuao vigentes das diferentes disciplinas. Isto se faz necessrio porque fora de um

    conjunto das disciplinas cientficas que faa sentido impossvel estabelecer um dilogo

    frutfero. Este espao legtimo para todas as disciplinas deve ser encontrado tambm para que

    sejam garantidas as suas autonomias. Isto porque, o impasse atual entre religio e cincia se

    d em grande medida por conta do receio de uma interferncia heternoma de uma pela outra,

    receio que, certamente, possui respaldo na histria das suas relaes.

    Para finalizar esta introduo, seguem algumas observaes importantes para aleitura do texto.

    A bibliografia consultada sobre o pensamento de Morin restringiu-se s obras

    traduzidas para o portugus, principalmente os seis volumes de O Mtodo. Existe uma grande

    variedade de literatura disponvel, pois, no Brasil, a obra de Morin tem chamado a ateno

    principalmente na rea da educao. Aparentemente ele no tem a mesma presena em outras

    reas, o que pode levantar a pergunta: por que Morin? No existe uma razo ou um motivo

    especial, a no ser que a apresentao do seu pensamento pode nos dar uma idia da situao

    atual da cincia e da filosofia da cincia, obviamente sob a sua tica. Alm desta

    confrontaocom o hoje, Morin arrisca dar um passo em direo religao dos saberes

    incluindo as humanidades, assunto que nos interessa no contexto deste trabalho. Mas,

    certamente, teria sido da mesma forma frutfero se em lugar de Morin, o escolhido fosse, por

    exemplo, Humberto Maturana, que insiste na base biolgica do conhecimento.

    A bibliografia primria utilizada da obra de Tillich est praticamente toda em alemo

    e ingls. A traduo dos textos do alemo e do ingls minha, salvo quando indicado na nota

    de rodap. Existe uma traduo para o ingls do System der Wissenschaftenque, no entanto,

    no me foi possvel consultar. Isto certamente teria facilitado a compreenso deste denso

    texto. A dificuldade de compreend-lo no est apenas na distncia histrica que me separa de

    1923 com suas nuances e da vida real de Tillich, mas, tambm, porque a sua leitura pressupe

    um profundo conhecimento histrico-filosfico. Alm de eu no ter cursado um Gymnasium

    alemo daquela poca, a minha graduao em engenharia me manteve longe desta realidade e

    no me foi possvel recuperar o terreno durante o tempo de pesquisa. Mesmo assim, apesar

    destas dificuldades, creio que o que segue pode contribuir para uma aproximao ao texto de

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    Tillich.

    No encontrei bibliografia secundria para O Sistema das Cincias. Consegui ver os

    ttulos de alguns poucos trabalhos que tratam do Sistema das Cincias na internet. E interessante observar a no referncia ao Sistema das Cincias em outras publicaes que

    tratam deste assunto. Ser isto conseqncia do desconhecimento do texto, ou, por ser

    considerado irrelevante? Como exceo, encontrei uma referncia ao Sistema na tese de

    doutorado de Andreas Rtzer com o ttulo:Die Einteilung der Wissenschaften: Analyse und

    Typologisierung von Wissenschaften (A classificao das cincias: anlise e tipologizao de

    cincias). Mas esta referncia acontece apenas como exemplo de uma classificao do tipo

    filosfica sem maiores comentrios. Portanto, restaram-me as poucas referncias que Tillichmesmo fez ao Sistema.

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    1 A RELIGAO DOS SABERES NO PENSAMENTO DE EDGAR MORIN

    O ser humano tem necessidade de adquirir conhecimento. Esta parece ser uma

    caracterstica do Homo Sapiens. Mas ele no se satisfaz apenas em saber, ele procura o

    conhecimento que confere sentido. Ou, em outras palavras, o ser humano procura por um

    conhecimento verdadeiro que explique o todo.Isto transparece na histria da filosofia e da

    cincia na busca pelo princpio fundamental, pela matria fundamental, pela lei ou teoria que

    rege o todo e ainda nas snteses filosficas e teolgicas.

    A longa jornada do pensamento ocidental na busca por um mtodo que permitissealcanar esse conhecimento verdadeiro, parece ter chegado a um final frustrante. O ser

    humano at o presente momento, apesar do seu esforo homrico que resultou em enormes

    benefcios e malefcios ao seu mundo, no pode afirmar verdades universais. Entre as

    conseqncias negativas desta busca tm sido apontadas a desumanizao do mundo e a

    fragmentao dos saberes.

    1.1 Do mito razo autnoma em poucas palavras

    Na antigidade, a explicao mitolgica era a forma de conhecimento predominante.

    Ela proporcionava conhecimento e sentido para a maioria das pessoas da poca. As

    circunstncias especiais da Grcia antiga, permitiram e fomentaram o surgimento da razo

    humana ocidental. Esta, por assim dizer, comeou a questionar o fundamento mitolgico do

    conhecimento e, em conseqncia, iniciou o processo de sua autonomia. A razo parecia mais

    promissora como fonte de conhecimento seguro. No entanto, assim como a explicao mtica,

    tambm a realidade se apresentava como um fundamento na questo do conhecimento e

    oferecia resistncia autoridadeda razo. J nos primrdios da histria da filosofia pode-se

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    encontrar sistemas filosficos onde, grosso modo, o fundamento na questo do conhecimento

    recai ora sobre a razo e ora sobre a realidade ou, obviamente, sobre alguma de suas infinitas

    combinaes. A novidade da filosofia grega em relao ao pensamento mitolgico foi a de

    utilizar somente a razo como a tentativa de aproximao explicao do sentido tododas

    coisas.2 A razo se lana sobre o ser na busca pelo sentido todo, ou seja, procura na realidade

    pela ordem e coerncia que ela acredita existir.

    A aposta por trs desse empreendimento foi a de que seria possvel encontrar um

    fundamento slido que possibilitasse o conhecimento verdadeiro. Nessa busca, os filsofos

    gregos trocaram a autoridade dos instveis deuses mitolgicos pelo fundamento com acento

    na razo (Plato) e pelo fundamento com acento na realidade (Aristteles). Mais tarde entraem cena outra autoridade, o Deus cristo. A teologia e a tradio passam a ser o critrio do

    conhecimento verdadeiro e a filosofia se torna instrumento da teologia, esta era considerada a

    rainha das cincias. Mesmo assim, neste retorno de um fundamento do tipo mitolgico, no

    foi mais possvel ignorar o caminho percorrido pelos gregos e a teologia tem, por isso, ora um

    tom platnico (Agostinho) ora um acento aristotlico (Aquino) ou, ainda, uma das infinitas

    combinaes possveis. Na Era Moderna a razo e, conseqentemente, a realidade,

    paulatinamente declararam sua autonomia em relao ao Deus cristo.3

    O ser humano, alm do seu aspecto racional, apresenta faces irracionais como as

    emoes e os sentimentos. Desde cedo a razo identificou as emoes e at mesmo os

    sentidos, que so imprescindveis para ao conhecimento, como possveis causadores de

    distrbios que impedem o conhecimento isento. Ele procurou ento por maneiras de anular

    estes causadores de rudos, o que foi uma das causas da quebra da unidade do ser humano.

    Com o Racionalismo e o Empirismo ou alguma combinao entre os dois, o

    pensamento cientfico no final do sculo XIX acreditava ter encontrado o fundamento slido

    para o conhecimento, qual seja, o mtodo cientfico. Com ele a razo seria tambm autnoma

    em relao ao ser humano que a hospeda. A razo autnoma considera-se isenta da

    subjetividade humana, constitui-se no sujeito que transforma a realidade em objetodo seu

    conhecimento. Tanto o sujeitocomo o objetoj no mais integram o tododa realidade, mas

    so elementos dela retirados pela razo e pelo mtodo cientfico. Neste caso, o sujeito que

    conhece j no mais o ser humano que faz parte da realidade como um todo. O objetoque

    2 REALI, Geovanni, ANTISERI, Dario.Histria da filosofia: Antigidade e Idade Mdia. So Paulo: Paulus, 1990. p. 23.3 Para uma breve histria da cincia que revela o seu incio mitolgico/religioso, ver: CHASSOT, Attico. A cincia atravs dos tempos.

    So Paulo: Moderna, 2004.

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    ele procura conhecer tambm no faz mais parte da realidade como um todo. Mesmo assim,

    esse tipo de conhecimento mostrou-se muito profcuo.

    O efeito colateral dessa jornada em busca do conhecimento do todo mostrou-separadoxalmente disjuntivo, no dizer de Edgar Morin4. E isto no poderia ser diferente. Para

    eliminar ao mximo as interferncias e obter o conhecimento seguro foi necessrio repartir a

    realidade em pores cada vez menores. O resultado foi a especializao que garantiu o

    sucesso do empreendimento cientfico moderno. Ao mesmo tempo, o sujeitoao olhar para a

    realidade como composta por diversos objetosseparados uns dos outros, criou as diferentes

    cincias especializadas que foram se afastando cada vez mais umas das outras.

    No final do sculo XIX a razo com seu mtodo cientfico, no s acreditava ter o

    acesso realidade como tal, como tambm se considerava a detentora exclusiva deste acesso.

    O pensamento cientfico rotulava todos os outros tipos de conhecimento como no

    verdadeiros, no confiveis, etc. A verdade cientfica era sustentada principalmente pelos

    grandes sucessos alcanados por meio do mtodo cientfico nas cincias fsico-matemticas e

    na tecnologia, por conta dos seus grandes e inegveis benefcios humanidade. Impulsionadas

    por esse sucesso e apoiando-se consciente ou inconscientemente na crena da ordem

    universal, as diferentes cincias procuraram aplicar o mtodo cientfico em sua rea, para no

    serem excludas da verdade. Assim, a tentativa de mecanizao a exemplo da fsica, se imps

    tambm nas outras cincias sem, no entanto, alcanar o mesmo sucesso. Procurou-se explicar

    at mesmo o ser humano como sendo uma mquina que funcionaria segundo as leis fsicas,

    qumicas, biolgicas psicolgicas e sociais. Estas leis de fato existem e por isto que o ser

    humano e a natureza continuam sendo estudados desta maneira, porm, ao lado dos

    significativos resultados desse empreendimento, a especializao fragmentou tanto o ser

    humano quanto a natureza.

    A teologia tambm foi afetada. A razo autnoma que conhece pelo mtodo

    cientfico, no deve estar sujeita a qualquer outra autoridade a no ser sua prpria lei e, s

    assim, livre de qualquer interferncia estaria apta para o conhecimento verdadeiro. Desta

    forma as explicaes mitolgicas, o Deus cristo e o conhecimento religioso passaram a ser

    questes impossveis de conciliar com o conhecimento cientfico pois, alm de no serem

    passveis de verificao segundo o seu mtodo, pressupunham outro fundamento. Para a razo

    autnoma, os deuses e a religio no eram mais necessrios e, mais ainda, no eram realidade.

    4 MORIN, Edgar. Introduo ao pensamento complexo.Porto Alegre: Sulina, 2005.p.11.

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    A sujeio nova autoridade e a adoo do novo fundamento para o conhecimento

    verdadeiro, o mtodo do conhecimento cientfico, libertaria o ser humano desta iluso.

    A trajetria da emancipao da razo e do sujeito esteve sempre emoldurada porsistemas filosficos que se opunham primazia da razo diante da realidade. Alguns

    pensadores questionaram a capacidade da razo de chegar ao conhecimento do objeto, o que

    no abalou a crena nas capacidades da razo. O Romantismo foi uma destas vertentes no

    pensamento moderno, na medida em que incorporava e valorizava outras formas de cognio

    como a fantasia, os sentimentos, a vontade, etc. Com estas faculdades aliadas aos sentidos e

    razo, o romntico tambm buscava a ordem e o sentido. A teologia crist tambm procurou

    resistir ou adequar-se nova realidade. O resultado da sua resistncia normalmente foi oafastamento cada vez maior das outras cincias ou a sua adequao ao esprito cientfico que

    resultou na perda de sua substncia religiosa.5

    Mesmo existindo dvidas quanto a sua aplicao universal, a razo autnoma e o

    mtodo cientfico reinavam no final do sculo XIX. O conhecimento mitolgico primitivo que

    integrava toda a realidade e o ser humano em suas explicaes, evoluiupara um conhecimento

    no qual o sujeito que conhece deve estar necessariamente distanciado do objeto que quer

    conhecer. Assim, no final do sculo XIX, a razo cientfica se elevou sobre a realidade. A

    conseqncia natural desse processo foi a fragmentao da realidade e dos saberes, a

    hierarquizao das cincias segundo a sua capacidade de alcanar o conhecimento verdadeiro

    (objetivo) e a excluso dos saberes nos quais no era possvel usar o mtodo consagrado.

    Pode-se at dizer que a razo autnoma e o mtodo cientfico foram consagrados no sentido

    religioso da palavra. Mesmo assim, e, justamente porque aconteceu assim, foram possveis as

    grandes conquistas da cincia. O problema a pretenso da cincia/mtodo cientfico de

    possuir o acesso exclusivo ao conhecimento, o que resultou na depreciao, quando no aanulao, de outras dimenses fundamentais da vida.

    Porm, a auto-decretao de exclusividade no acesso ao conhecimento verdadeiro

    pela razo autnoma, sustentada pelo mtodo cientfico, foi profundamente abalada a partir do

    final do sculo XIX, o que se consolidou durante o sculo XX. Esse abalo atingiu a cincia

    que parecia inabalvel, a fsica.

    5 Para uma histria do pensamento cristo veja: TILLICH, Paul. Histria do pensamento cristo. So Paulo: Aste, 2000.e TILLICH,Paul. Perspectivas da teologia protestante nos sculos XIX e XX. So Paulo: Aste, 1999.

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    1.2 Surge umanovarealidade

    Em aproximadamente trs dcadas as grandes certezas da fsica foram minadas. Os

    tomos no eram mais os menores e indestrutveis componentes da matria e a matria podese tornar em energia e vice-versa. Com a Teoria da Relatividade, o espaoe o tempodeixaram

    de ser absolutos. Depois da Mecnica Quntica no mais possvel falar em observao

    objetiva e nem verificar uma causalidade estritamente mecanicista em todos os fenmenos

    fsicos. Assim, caram os ltimos absolutos e com eles a ltima base slida, instalando-se, em

    seu lugar, a incerteza.

    Paralelamente tornou-se evidente que alguns dos produtos da cincia no so apenas

    positivos, mas so tambm potencialmente negativos, a ponto de colocarem em risco a

    sobrevivncia de toda a humanidade. Exemplos disto so a questo ambiental e a inquietante

    constatao de que o ser humano capaz de no apenas construir mas, tambm, detonar uma

    bomba atmica. Transparece aqui a frustrao da expectativa do pensamento cientfico de

    promover um comportamento mais tico.

    Por outro lado, tambm pela filosofia, histria e sociologia da cincia ela mostrou-se

    incapaz de sustentar a sua crena de possuir um mtodo isento de interferncias. Karl Popper6

    mostrou que a cincia somente consegue apresentar teorias falsificveis, ou seja, uma teoria

    nunca pode ser declarada verdadeira. Thomas Kuhn7 mostrou que a cincia precisa de

    ambientes conceituais, os paradigmas, que ensinamao cientista qual o dado a escolher, como

    construir uma teoria e como interpretar os resultados.

    Assim o ocidente perdia mais uma aposta de conhecer verdadeiramenteo mundo, as

    cincias. Elas, nas palavras de Grard Fourez,

    no descrevem de modo algum o mundo tal como , mas apenas um mundo talcomo pode ser relatado, narrado e controlado de um lugar a outro. E obnubilam-sedessa forma todos os desvios dos raciocnios cientficos, todas as negociaes daobservao, todos os componentes afetivos, religiosos, econmicos, polticos daprtica cientfica, a fim de reter somente uma imagem relativamente abstrata.8

    O ser humano, quando no consegue libertar-se do olhar unilateral da realidade,

    imposto pela cincia, obrigado a viver como que em compartimentos distintos. Ele vive as

    suas diferentes realidades (cientfica/tcnica, artstica, afetiva, religiosa) nestes6 POPPER, Karl. A lgica da pesquisa cientfica. So Paulo: Cultrix, 1974.7 KUHN, Thomas S. A estrutura das revolues cientficas. So Paulo: Perspectiva, 1990.8 FOUREZ, Grard. A construo das cincias: introduo filosofia e tica das cincias.So Paulo: Editora UNESP, 1995.p. 166.

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    compartimentos por serem, segundo a atual conjuntura, irreconciliveis entre si. E, quanto

    mais os desvios dos raciocnios cientficos forem significativos para a pessoa, tanto mais

    instalam-se nela realidades diferentes que precisam ser integradas para que a unidade

    psicolgica da pessoa no seja quebrada. Por outro lado, a pessoa que fez da prtica cientfica

    vigente o seu fundamento e sobre ela construiu a sua viso de mundo, tem a sua unidade

    quebrada porque precisa ignorar ou sufocar os desvios. Nesses casos a soluo para a pessoa

    pode ser: no fazer determinadas perguntas por saber de antemoque elas no tm resposta

    sem lanar mo de outros saberes (no-cientficos). Essa atitude, que contradiz o prprio

    esprito cientfico, aponta para a fragmentao da pessoa. Uma questo crucial : ser possvel

    ao ser humano viver significativamente e em harmonia consigo e com o seu mundo,

    ignorando ou sufocando o seu lado artstico, afetivo, comunitrio e religioso?

    A preocupao em torno da unidadedo ser humano, da unidadeda natureza, das

    conseqncias negativas dos pressupostos das cincias, tm levantado a questo da religao

    dos saberes. Esta unidade, vale lembrar, tem forte conotao de sade em todos os sentidos.

    Para tentar diminuir estes efeitos negativos so apontados como possveis solues a

    reaproximao entre a cultura humanista e cultura cientfica, a revalorizao das qualidades e

    realidades do ser humano e da natureza. A reflexo em torno deste assunto tem cunhado

    termos como inter/transdisciplinaridade, holismo, reencantamento do mundo, sistema,

    pensamento sistmico, complexidade e pensamento complexo, entre outros. Todos expressam

    a partir do estado atual das coisas, cada qual a seu modo, o anseio pelo todoperdido.

    Uma das conseqncias positivas que possvel perceber a partir das reflexes sobre

    os limites da cincia e do conhecimento, a abertura, ou a possibilidadede buscar uma re-

    unio, mesmo ainda no sabendo exatamente como. Esta possibilidade e tambm a sua

    dificuldade possvel perceber em muitos livros de metodologia cientfica. Eles nomeiam ostipos de conhecimento com termos semelhantes aos usados por Marconi e Lakatos9:

    Conhecimento Popular, Conhecimento Cientfico, Conhecimento Filosfico e Conhecimento

    Religioso (Teolgico). Isto significa que os conhecimentos Popular, Filosfico e Religioso

    tm reconhecida a sua existncia. Porm, na classificao das cincias adotada pelas autoras

    no livro citado, no h espao para a filosofia nem para a teologia. Chama a ateno que nesta

    classificao no consta sequer a histria.10

    9 LAKATOS, Eva M., MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia Cientfica. So Paulo: Atlas, 2000.p. 18.10 LAKATOS, Eva M., MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia Cientfica. p. 28.

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    Nesta ausncia transparece a dificuldade do momento atual. Ainda que no seja

    (mais) possvel excluir os desvios dos raciocnios cientficos da realidade, o conceito de

    cincia vigente no permite a sua incluso na realidade cientfica, mesmo sabendo que um

    desvio como a filosofia, por exemplo, de fundamental importncia para o conjunto do

    saber. Pela histria da filosofia sabemos que ela, assim como o mito (ou o religioso),

    estiveram presentes na gnese das atuais cincias e, pela histria das cincias sabemos que

    sem a filosofia e sem a teologia, a cincia no seria hoje o que . Essa excluso dos desvios

    poderia ser justificada apenas se ela se configurasse como sendo mais abrangente e

    integradora em termos de saber e sentido, o que no parece ser o caso. A configurao atual

    das coisas mantida por conta das grandes conquistas alcanadas por meio da cultura da

    especializao.

    Resumindo, podemos dizer com Urbano Zilles que,

    as cincias modernas, com seus mtodos analticos, proporcionam ao homem umconhecimento fragmentado. Com isso o homem ocidental que, na modernidade,apostou na cincia como caminho para a soluo de seus problemas, hoje desconfiano s das cincias mas da prpria razo cientfica. Toma conscincia no s de queo conhecimento cientfico no o nico vlido mas tambm de que a razo humanano se reduz apenas razo cientfica ou instrumental. Alm disso o homem no apenas razo. Por isso busca o sentido para a sua existncia em vises de sntese da

    filosofia ou da religio.11

    Estas concluses, incertezas e suspeitas apontam para a necessidade de rever os

    conceitos que promovem a excluso e fragmentao: cincia, conhecimento, mtodo

    cientfico, etc. Porm, s possvel question-los e julg-los, da forma como est sendo feito,

    porque surgiram questionamentos internos. Paul Tillich coloca esta questo da seguinte

    maneira:

    Mas para poder construir uma classificao abrangendo toda a diversidade dascincias, necessrio que a prpria natureza da cincia fique clara. Somente muitotarde o esprito cientfico fez esta pergunta. Isto aconteceu apenas quando o mundodos objetos, sobre o qual ele se lanara com ilimitada confiana (Kraftbewusstsein) eilimitada ingenuidade, lanou-o de volta sobre si mesmo. Apenas quando a dvidadestruiu a imediata autoconfiana, somente ento ele refletiu e perguntou: enfim, oque conhecimento e o que cincia? Assim ele criou a mais peculiar e profunda desuas criaturas, a cincia da cincia, a Teoria do Conhecimento.12

    11 ZILLES, Urbano. Teoria do Conhecimento.Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. p. 165.12 TILLICH, Paul. Das System der Wissenchaften nach Gegenstnden und Methoden. In: WENTZ, Gunther. Paul Tillich:Main Works /

    Hauptwerke. Philosophical Writtings. Berlin/New York: De Gruyter Evangelisches Verlagswerk GmbH, 1989. Vol. 1. pp. 115-116.Um aber die Mannigfaltigkeit der Wissenschaften gliedern und aufbauen zu knnen, mu das Wesen der Wissenschaft selbst klar ge-worden sein. Erst spt hat der wissenschaftliche Geist diese Fragen gestellt. Erst nachdem ihn die Welt der Gegenstnde, auf die er sich

    mit unbegrenztem Kraftbewutsein und unbegrenzter Naivitt strzte, zurckgeworfen hatte auf sich selbst, erst nachdem der Zweifel dieunmittelbare Selbstsicherheit zerstrt hatte, erst da besann er sich und fragte: Was ist denn eigentlich Erkennen und was ist Wissen-schaft? Und so schuf er die merkwrdigste und tiefsinnigste seiner Schpfungen, die Wissenschaft von der Wissenschaft, die Wissen-schaftslehre.

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    A partir desta observao pode-se dizer que a conscincia da necessidade de criar

    novos conceitos que permitam a religao dos saberes, s possvel graas dinmica da

    histria do pensamento ocidental. E, como tal, os seus erros e acertos so necessrios na

    construo do novo. Este novo, portanto, precisa reorganizar as conquistas alcanadas at aqui

    e deve permitir a incluso daqueles desvios que hoje so julgados como necessrios ao

    conjunto do saber. O saber cientfico com o seu mtodo, alcana um conhecimento eficiente

    sobre os objetos que coloca. No pode, portanto, ser excludo do conjunto do saber apenas por

    ter a pretenso de ser o nico acesso realidade. Nesse contexto se levanta a pergunta, qual

    o critrio pelo qual se pode definir o conjunto das cincias e, principalmente, o que permite e

    promove a unidade do conjunto das cincias, ou ainda, qual o fator de unidade no conjunto

    do saber? Fica evidente que esse fator no pode ser encontrado no interior do pensamentocientfico atual, j que ele fecha o conjunto do saber nele mesmo. Por outro lado, tambm

    parece evidente que, na atual conjuntura impossvel alcanar oconjunto das cincias no qual

    se encerre a totalidade do saber. Para Tillich impossvel alcan-lo, porm, possvel e

    necessrio que cada gerao procure ter clareza sobre o que conhece, sobre os objetos e

    mtodos de conhecimento13.

    Vrios pensadores contemporneos tm apresentado propostas para sair do conjunto

    fechado e limitado do saber. Entre eles, Edgar Morin, pensador francs, entende que a sada se

    encontra no Pensamento Complexo que , para ele, o estado supremo do marranismo (a

    preocupao em integrar pontos de vista diferentes e s vezes antagnicos, inclusive o ponto

    de vista da racionalidade, do misticismo e da f)14. Outro pensador o chileno Humberto

    Maturana. A sua anlise do conhecimento e cincia se d a partir da sua base biolgica.

    Escreve que no final das contas, (...) a referncia unificadora da relatividade de todos os

    domnios de realidade est na referncia em relao qual so relativos - e esta referncia a

    biologia15. A brasileira Maria J. E. de Vasconcellos sugere o Pensamento Sistmico como

    o novo paradigma da cincia. Ela diz que quando falo de pensamento sistmico, estou me

    referindo a uma viso de mundo que contempla as trs dimenses que distingo na cincia

    contempornea16. As dimenses que ela distingue so a complexidade, a instabilidade e a

    intersubjetividade. J Fritjof Capra encontra o novo paradigma na ecologia profunda.

    Enquanto que a ecologia rasa antropocntrica (...) e v os seres humanos como situados

    13

    TILLICH, Paul. Das System der Wissenschaften.p. 116.14 MORIN, Edgar.Meus demnios.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 145.15 MATURANA, Humberto. Cognio, cincia e vida cotidiana.Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. p. 116.16 VASCONCELLOS, Maria J. E. de. Pensamento sistmico:o novo paradigma da cincia. Campinas: Papirus, 2002. p. 148.

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    acima ou fora da natureza (...) a ecologia profunda no separa seres humanos ou qualquer

    outra coisa do meio ambiente natural. Nela os fenmenos esto fundamentalmente

    interconectados e so interdependentes. E acrescenta que a percepo da ecologia profunda

    percepo espiritual e religiosa.17 Ervin Laszlo, por sua vez, aposta numa revoluo da

    cincia. Acredita que ela est acontecendo nos trabalhos recentes nas cincias fsicas e

    biolgicas e nas teorias de vanguarda que buscam uma compreenso da evoluo da vida e da

    mente a partir do universo fsico desde suas origens no big-bang,se no antes18. O resultado

    desta revoluo aponta, segundo ele, para uma fonte csmica que basicamente energia,

    portanto um princpio fsico, que ele descreve assim:

    O espao e o tempo se unem como a dinmica de fundo do universo observvel. A

    matria est desaparecendo como a caracterstica fundamental da realidade, sendosubstituda pela energia. Campos contnuos substituem as partculas elementarescomo os elementos bsicos de um cosmos banhado de energia.19

    Esta energia ou fonte csmica renovadora e revitalizadora do processo csmico ,

    na verdade, segundo ele, uma intuio recorrente na histria da humanidade expressa por

    smbolos como: a Grande Me, a rvore Csmica, a rvore da Vida, o um, etc.20

    A busca pela religao dos saberes est sendo efetuada a partir das mais diversas

    tendncias, seja ela racional, racional/mstica ou declaradamente mstica.21

    Neste item procurei lembrar que as categorias filosofia, cincia e religio, razo

    (pensamento) e realidade (ser) estiveram sempre presentes na histria do pensamento

    ocidental. A sua mtua desconfiana quanto possibilidade de alcanar a certeza da verdade

    no conhecimento das coisas certamente fizeram de cincia, filosofia, religio e teologia o que

    elas so hoje. Com esta lembrana no quis apenas apontar para a sua, por assim dizer, mtua

    pertena mas tambm para o fato de que pensamento e ser esto presentes em todas as

    manifestaes do conhecimento e condicionaram-se mutuamente ao logo da histria do seu

    confronto. Pensamento e ser so as categorias fundamentais na concepo do Sistema das

    Cincias de Tillich.

    No prximo item procuro conhecer a anlise da situao atual, na questo da

    17 CAPRA, Fritjof. A teia da vida:uma nova compreenso cientfica dos sistemas vivos. So Paulo: Cultrix, 1996 (?).pp. 25-26.18 LASZLO, Ervin. Conexo csmica:guia pessoal para a emergente viso da cincia. Petrpolis: Vozes, 1999 p. 13.19

    LASZLO, Ervin. Conexo csmica.pp. 205-206.20 LASZLO, Ervin. Conexo csmica.p. 206.21 Neste sentido, vale a pena ler as entrevistas realizadas por Rene Weber com, entre outros, David Bohm, Krishnamurti, Ilya Prigogine e

    Stephen Hawking. WEBER, Rene. Dilogos com cientistas e sbios:a busca da unidade. So Paulo: Crculo do Livro, 1986.

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    fragmentao dos saberes e a proposta de sua religao, no pensamento de Edgar Morin. Alm

    disso, procuro ainda encontrar nesta proposta o lugarda teologia ou do religioso. Esta anlise

    que no ser exaustiva, servir como um horizonte a partir do qual poder ser avaliada a

    atualidade do Sistema das Cincias de Paul Tillich.

    1.3 Opensamento complexode Edgar Morin

    Edgar Morin, filho de judeus espanhis que emigraram para a Frana, nasceu em

    Paris no dia 8 de julho de 1921. Desde cedo sua vida foi marcada por contradies: vida e

    morte, amor e abandono, esperana e desesperana, ceticismo irremedivel e esperana

    sempre renovada, inocncia e culpa, f e dvida, contradies polticas, entre outras. Escreveu

    que

    nunca deixei de estar submetido presso simultnea de duas idias contrrias e queme parecem ambas verdadeiras, que me leva ora a ir de uma a outra, segundo ascondies que acentuam ou diminuem a fora de atrao de cada uma, ora a aceitarcomo complementares essas duas verdades que, no entanto, deveriam logicamente seexcluir uma outra. Tenho, ao mesmo tempo, o sentimento da irredutibilidade dacontradio e o sentimento da complementaridade dos contrrios. umasingularidade que vivi, primeiramente admitida, depois assumida, enfim integrada.22

    Por dez anos foi membro do Partido Comunista da Frana. Morin escreve que oMarxismo representou para ele a abertura e no uma teoria reducionista, impelindo-o ao

    saber total, isto , ao conhecimento do todo enquanto tal, permitindo integrar o

    conhecimento das diversas partes constituintes desse todo. Esta viso satisfazia, naturalmente,

    meu desejo de abraar tudo23. Em 1962, quando convalescia de um distrbio cardaco num

    hospital de Nova Iorque, decidiu procurar por um mtodo para coligar as cincias humanas, a

    fsica e a biologia. Ele prprio via a sua enfermidade como um sinal de que o seu modo de

    vida anterior tinha chegado a um beco sem sada24

    .

    A sua vida impulsionou-o a buscar, como no poderia deixar de ser, com muito

    entusiasmo a realizao desse projeto. Nas palavras de Myron Kofman, Morin se via como

    um orquestrador ou organizador de uma cruzada25. Este projeto a religao dos saberes

    pelo pensamento complexo, cujo significado Morin explica usando uma metfora: como o

    Vale recebe riachos que vm das encostas opostas, pude elaborar o pensamento complexo

    22

    MORIN, Edgar.Meus demnios.p. 47.23 MORIN, Edgar.Meus demnios.p. 28.24 KOFMAN, Myron. Edgar Morin: doBig Brother fraternidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. p. 27.25 KOFMAN, Myron. Edgar Morin.p. 35.

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    reunindo o separado e acrescenta:

    Religar, religar. Tornou-se, no a palavra-chave, mas a Idia-me. O conhecimentoque religa o conhecimento complexo. A tica que religa a tica fraternal, a

    poltica que religa a poltica que sabe que a solidariedade vital para odesenvolvimento da complexidade social.26

    1.3.1 O encontro com o universo complexo

    Morin faz uma anlise bastante extensa da situao em que se encontra o pensamento

    cientfico atual. A sua anlise racional-emprica mesmo que comporte, como veremos, a

    dialgica com o irracional. Esta j est na basedo conhecimento cientfico, ou seja, no

    possvel de todo excluir a dialgica existente entre os quatro fundamentos da cincia atual:empirismo e racionalismo, imaginao e verificao.27

    Escreveu O Mtodo, sua obra maior de seis volumes ao longo de trinta anos que,

    segundo ele,constitui um esforo polivalente contra as armadilhas da falsa racionalidade.

    Esse esforo, que vale para as concepes filosficas e cientficas, de importncia vital para

    o pensamento e ao polticos.28

    A falsa racionalidade a racionalidade imposta pelo paradigma cientfico damodernidade que ainda est vigente. Ela est fundamentada na lgica clssica: deduo,

    induo e na absolutizao pela razo e cincia clssicas, dos trs princpios bsicos e

    inseparveis da lgica identitria: o princpio da identidade, o princpio de no-contradio e o

    princpio do terceiro excludo. Os trs axiomas [absolutizados] estruturaram a viso de

    mundo coerente, inteiramente acessvel ao pensamento, tornando ao mesmo tempo fora da

    lgica, fora do mundo e fora da realidade tudo o que excedia a essa coerncia. 29 As

    contradies, entre outras, que surgem a partir do exerccio do pensamento emprico-racional(onda/corpsculo30), e outras inerentes prpria racionalidade (as antinomias kantianas)31,

    no podem ser toleradas. Para a cincia clssica, a contradio s podia ser o indcio de um

    erro de raciocnio e, por isso mesmo, devia no apenas ser eliminada, mas determinar a

    26 MORIN, Edgar.Meus demnios.p. 260.27 MORIN, Edgar. Cincia com conscincia.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 190.28 MORIN, Edgar.Meus demnios.p. 237.29 MORIN, Edgar.O Mtodo 4:as idias, habitat, vida, costumes, organizao.Porto Alegre: Sulina, 2002. p. 213.

    30 No mbito da fsica clssica, impossvel que algo tenha propriedade de partcula (matria) e simultaneamente de onda (energia), ou seja,ficou caracterizada uma contradio quando por experimentos constatou-se essa simultaneidade nas partculas subatmicas. Esseexperimento cientfico foi um dos primeiros a desembocar em contradio no mago da cincia racional por excelncia, a fsica.

    31 MORIN, Edgar.O mtodo 4.p. 226.

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    eliminao do raciocnio que a ela conduzia32. a partir do encontro dessa lgica com o real

    que a racionalidade se apresenta como simplificadora, pois o real no se submete inteiramente

    ao pensamento racionalista, ou seja, a realidade complexa. Aqui se encontra o problema

    fundamental do pensamento cientfico: A racionalidade pervertida e a racionalidade

    simplificadora so as doenas degeneradoras que ameaam a todo o instante o exerccio de

    nosso pensamento33, pois resultam na simplificao e conseqentemente na fragmentao da

    realidade.

    Grande parte do trabalho de Morin tem sido o de levantar, em todas as reas do saber,

    as contradies em que caiu a racionalidade moderna e apresentar as caractersticas da

    racionalidade no pervertida.

    Para Morin a verdadeira racionalidade

    comporta, (...) no a recusa da contradio, mas o enfrentamento das contradiesque surgem a partir do exame emprico-lgico dos problemas. No nego a lgicaclssica, coloco-a em dialgica com a transgresso lgica. No digo que contradioest no centro mesmo da realidade, digo que nosso esprito, logo que se aproxima docerne da realidade, desemboca em contradies.34

    Morin adverte que no se trata de qualquercontradio. Interessa neste caso somente

    aquela que surge ao final de uma deduo correta a partir de premissas

    consistentes(Watzlawick)35. Caso contrrio,

    qualquer incoerncia teria o estatuto de verdade superior. O que nos interessa ainadequao entre a coerncia interna de um sistema de idias aparentementeracional e a realidade qual ele se aplica: a coerncia lgica impede a adequaoe esta impede a coerncia lgica.36

    Ele exemplifica esse tipo de inadequao com a contradio onda/corpsculo. E

    argumenta que ela no se originou da falta de raciocnio lgico e sim do experimento, o que

    levou necessidade lgica de consider-los, onda e corpsculo, como sendo complementares.

    Outro exemplo pode ser a constatao cientfica da convivncia paradoxal entre ordem e

    desordem no universo. Pelo segundo princpio da termodinmica sabe-se que o universo tende

    para a desordem mxima e, mesmo assim, nele as coisas se organizam, se complexificam e

    32 MORIN, Edgar.O mtodo 4.p. 220.33

    MORIN, Edgar.Meus demnios.p. 236.34 MORIN, Edgar.Meus demnios.p. 63.35 MORIN, Edgar. O mtodo 4.p. 220.36 MORIN, Edgar.O mtodo 4.p. 223. Grifo de Morin.

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    se desenvolvem37. Ou seja, a aceitao da contradio no significa a negao da

    racionalidade nem a valorizao da irracionalidade e do pensamento incoerente. Trata-se

    antes, da aceitao de que a realidade no se deixa submeter inteiramente sob a razo e seus

    instrumentos. Essas contradies ou brechas, no existem apenas no conhecimento cientfico

    (fsica contempornea). Morin identifica ainda outras: na lgica (paradoxo do cretense 38), na

    ontologia (filosofias dialticas) e no formalismo (teorema de Gdel39). Destas brechas lgicas

    retira duas lies:

    a) Elas limitam o conhecimento, na medida em que: um sistema explicativo no

    [pode] explicar a si mesmo; um princpio de elucidao cego em relao a si mesmo; e o que

    define no pode ser definido por si mesmo.

    40

    b) Elas apontam uma nova via para o conhecimento.Pois, Toda descoberta de uma

    limitao abre paradoxalmente uma nova via para o conhecimento, a qual muito claramente

    indicada por Gdel e Tarski. O teorema de Gdel, ao mesmo tempo em que evidencia o

    limite de uma teoria/sistema, abre a possibilidade de recorrer a uma teoria/sistema mais geral,

    que Morin denomina metassistema ou metaponto de vista. Este metassistema, por sua vez,

    tambm limitado, mas pode tambm fazer uso de um metametassistema e assim por diante.

    De maneira anloga, Tarski demonstrou que o mesmo acontece com as linguagens

    formalizadas. O conceito de verdade relativo a uma linguagem no representvel nessa

    linguagem podendo, porm, recorrer para este fim a uma linguagem mais rica

    (metalinguagem). Portanto, existe a limitao do conhecimento mas, nela mesma, est a

    possibilidade de avanar no conhecimento recorrendo infinitamente a uma instncia mais

    complexa.41

    Como h a possibilidade de ultrapassar a incerteza ou a contradio recorrendo a

    um metassistema, Morin pode dizer que as contradies ou as brechas que resultam desse

    processo no so mais, como na lgica clssica, indicao de erro. Elas passam a ser o

    indcio e o anncio do verdadeiro.42 Ou, em outras palavras, elas so o atingir de uma

    camada mais profunda da realidade que, justamente por ser profunda, no encontra traduo

    37 MORIN, Edgar.Introduo ao pensamento complexo.p. 61.38 Um cretense afirma: todos os cretenses so mentirosos.39 Expressa que todo sistema formal sofre de incompletude e de incapacidade para demonstrar a sua no-contradio (consistncia)

    apoiado apenas nos seus recursos. Cf. MORIN, Edgar. O mtodo 4.p. 88.40 MORIN, Edgar.O mtodo 4.p. 229.41 MORIN, Edgar.O mtodo 4.p. 229-230.42 MORIN, Edgar.O mtodo 4.pp. 222.

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    em nossa lgica43. Mas, ao mesmo tempo e por isto mesmo, a verdadeira racionalidade nunca

    est completa, ou seja, a complexidade no deve ser confundida com completude nem com

    certeza.

    Portanto, tanto a capacidade de descobrir como o enfrentamento dessas

    contradies/brechas apontam para uma outra racionalidade, a racionalidade complexa. Por

    sua vez, a racionalidade e o pensamento complexos pressupe uma lgica diferente da lgica

    clssica.

    1.3.2 O pensamento complexo

    Como vimos, a racionalidade complexa e o pensamento complexo no podem surgir

    no contexto da lgica clssica. Na verdade, o que deve acontecer a abertura ou o

    enfraquecimento da lgica, para que a constatao de uma contradio no exclua

    sumariamente esta poroda realidade da realidade toda. Neste sentido, se o conhecimento

    pretende alcanar o todo, a sua lgica deve ser fraca o suficiente para poder ser transgredida.

    Se no h como evitar a necessidade lgica da separao dos objetos, deve-se,

    simultaneamente, aceitar a exigncia da complexidade. Por isto a complexidade metalgica

    (engloba a lgica, embora transgredindo-a)44. Para Morin, a complexidade salva a lgicacomo higiene do pensamento e transgride-a como mutilao do pensamento45. importante

    notar que a complexidade no surge de alguma sntese mas vive na e a partir da dialgica46

    entre opostos:

    O pensamento complexo tem como tarefa no substituir o certo pelo incerto, oseparvel pelo inseparvel, a lgica dedutiva-indentitria pela transgresso de seusprincpios, mas efetuar uma dialgica cognitiva entre o certo e o incerto, o separvele o inseparvel, o lgico e o metalgico. O pensamento complexo no asubstituio da simplicidade pela complexidade, ele o exerccio de uma dialgicaentre o simples e o complexo.47

    Se a complexidade salvae transgridea lgica, ela passa a ser o novo referencial para

    o pensamento, como ser possvel alcan-lo? Abaixo esto relacionados os sete principais

    princpios que, segundo Morin, so os guias para o pensamento complexo:

    43 MORIN, Edgar.Introduo ao pensamento complexo.p. 68.44 MORIN, Edgar.O mtodo 4.p. 253.45

    MORIN, Edgar.O mtodo 4.p. 248.46 O termo dialgico quer dizer que duas lgicas, dois princpios, esto unidos sem que a dualidade se perca nessa unidade. MORIN,Edgar.Cincia com conscincia.p. 189.

    47 MORIN, Edgar.Meus demnios.p. 199.

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    1. Princpio sistmico ou organizacional: liga o conhecimento das partes aoconhecimento do todo, conforme a ponte indicada por Pascal (...): Tenho porimpossvel conhecer o todo sem conhecer as partes, e conhecer as partes semconhecer o todo. A idia sistmica, oposta reducionista, entende que o todo mais do que a soma das partes.(...) A organizao do ser vivo gera qualidades

    desconhecidas [emergncias] de seus componentes fsico-qumicos. Acrescentemosque o todo menos do que a soma das partes, cujas qualidades so inibidas pelaorganizao de conjunto.

    2. Princpio hologramtico (inspirado no holograma, no qual cada ponto contm aquase totalidade da informao do objeto representado): coloca em evidncia oaparente paradoxo dos Sistemas complexos, onde no somente a parte est no todo,mas o todo se inscreve na parte. Cada clula parte do todo - organismo global -mas o prprio todo est na parte: a totalidade do patrimnio gentico est presenteem cada clula individual; a sociedade como todo, aparece em cada indivduo,atravs da linguagem, da cultura, das normas.

    3. Princpio do anel retroativo: introduzido por Norbert Wiener, (...). Rompe com oprincpio de causalidade linear: a causa age sobre o efeito, e este sobre a causa, (...).

    O anel de retroao (ou feedback) possibilita, na sua forma negativa, reduzir odesvio e, assim, estabilizar um sistema. Na sua forma mais positiva, o feedback ummecanismo amplificador; (...). Inflacionistas ou estabilizadoras, as retroaes sonumerosas nos fenmenos econmicos, sociais, polticos ou psicolgicos.

    4. Princpio do anel recursivo: supera a noo de regulao com a de autoproduo eauto-organizao. um anel gerador, no qual os produtos e os efeitos so produtorese causadores do que os produz. (...)

    5. Princpio de auto-eco-organizao (autonomia/dependncia): os seres vivos soauto-organizadores que se autoproduzem incessantemente, e atravs dissodespendem energia para salvaguardar a prpria autonomia. Como tm necessidadede extrair energia, informao e organizao no prprio meio ambiente, a autonomiadeles inseparvel dessa dependncia, e torna-se imperativo conceb-los como auto-

    eco-organizadores. O princpio de auto-eco-organizao vale evidentemente demaneira especfica para os humanos, que desenvolvem a sua autonomia nadependncia da cultura, e para as sociedades que dependem do meio geoecolgico.(...)

    6. Princpio dialgico (...). Une dois princpios ou noes devendo excluir um aooutro, mas que so indissociveis numa mesma realidade. (...).A dialgica permite assumir racionalmente a associao de noes contraditriaspara conceber um mesmo fenmeno complexo. (...), por exemplo, a necessidade dever as partculas fsicas ao mesmo tempo como corpsculos e como ondas. Nsmesmos somos seres separados e autnomos, fazendo parte de duas continuidadesinseparveis, a espcie e a sociedade. Quando se considera a espcie ou a sociedade,o indivduo desaparece; quando se considera o indivduo, a espcie e a sociedade

    desaparecem. O pensamento complexo assume dialogicamente os dois termos quetendem a se excluir.

    7. Princpio da reintroduo daquele que conhece em todo conhecimento: esseprincpio opera a restaurao do sujeito e ilumina a problemtica cognitiva central:da percepo teoria cientfica, todo conhecimento uma reconstruo/traduo porum esprito/crebro numa certa cultura e num determinado tempo.48

    O pensamento complexo antes de tudo um guia para a constatao das limitaes

    da lgica e do pensamento disjuntivo dominado pelo paradigma cientfico. Ele pode, segundo

    Morin, dar a cada um de ns um lembrete, avisando: No esquea que a realidade mutante,

    48 MORIN, Edgar.Da necessidade de um pensamento complexo.Disponvel em:http://sevicisc.incubadora.fapesp.br/portal/Members/pelegrini/ntc/pensamentocomplexo.pdf.Acesso em 22/04/2006. pp. 15-18.

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    no esquea que o novo pode surgir e, de todo modo, vai surgir49. E a esperana de Morin

    que o pensamento complexo trar consigo uma mudana paradigmtica. Essa se faz necessria

    porque, no seu entender, os indivduos conhecem, pensam e agem conforme os paradigmas

    neles inscritos culturalmente. Os sistemas de idias so radicalmente organizados em virtude

    dos paradigmas.50 Portanto, aps o despertar da complexidade por meio de pensamento

    complexo ele deve ser consolidado com o advento do paradigma da complexidade. Este, nas

    palavras de Kofman no uma formalizao da realidade, mas um caminho atravs de uma

    realidade impenetrvel.51

    1.3.2.1 Os paradigmas

    Morin alerta que ele utiliza o termo paradigma no s para o saber cientfico, mas

    para todo conhecimento, todo pensamento, todo sistema noolgico52. O paradigma, que

    culturalmente inscrito no indivduo, determina tanto o seu conhecimento como o seu

    pensamento e a sua ao. O paradigma organiza o sistema de idias do indivduo. Alm disso,

    ele produz a verdade do sistema legitimando as regras de inferncia que garantem a

    demonstrao ou a verdade de uma proposio53. Morin destaca trs caractersticas da sua

    definio de paradigma: Semanticamente, o paradigma determina a inteligibilidade e d

    sentido. Logicamente, determina as operaes lgicas centrais. Ideo-logicamente, o princpio

    primeiro de associao, eliminao, seleo, que determina as condies de organizao das

    idias54.

    O paradigma apresenta-se assim, como a autoridade final sobre o conhecimento e

    comportamento a ponto de Morin afirmar que, em nvel paradigmtico, o esprito do sujeito

    no tem qualquer soberania, assim como a teoria no tem qualquer autonomia.55

    Segundo Morin, ao paradigma podem associar-se caratersticas como sendo no

    falsificvel; como tendo autoridade axiomtica; como sendo o critrio de excluso;

    como aquele que cega (as partes excludas); invisvel (somente pode ser visto nas suas

    manifestaes); cria evidncia (quem est submetido a ele, pensa estar obedecendo aos fatos,

    49 MORIN, Edgar.Introduo ao pensamento complexo.p. 83.50 MORIN, Edgar.O mtodo 4.p. 261.51 KOFMAN, Myron. Edgar Morin.p. 147.52

    MORIN, Edgar.O mtodo 4.p. 261.53 MORIN, Edgar.O mtodo 4.p. 264.54 MORIN, Edgar.O mtodo 4.p. 261.55 MORIN, Edgar.O mtodo 4.p. 263.

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    experincia, lgica); invulnervel (mesmo que sempre haja indivduos desviantes em

    relao ao paradigma vigente); entre paradigmas divergentes existe incompreenso e

    antinomia; ele est recursivamente ligado aos discursos e sistemas que gera (o

    determinismo precisa sempre de novo confirmar-se como determinismo); ele determina

    uma viso de mundo (pelas teorias e ideologias) e comanda a viso da cincia; da filosofia,

    da razo, da poltica, da deciso, da moral...; por fim, por todas essas caratersticas, no h

    como enfrent-lo diretamente. Um paradigma s pode ruir se no seu interior surgirem

    contradies ou brechas que, apesar de todos os esforos em super-las (exignciado prprio

    paradigma), se mostram resistentes. preciso, em suma, um vaivm corrosivo/crtico entre

    dados, observaes, experincias nos ncleos tericos, para que, ento, possa acontecer o

    desabamento do edifcio minado, arrastando, na sua queda, o paradigma cuja morte poder,como a sua vida, manter-se invisvel....56

    Existem muitos paradigmas que podem ser diferenciados pelos campos onde atuam,

    porm, o grande paradigma do Ocidente que engloba todos os outros, que determina se estes

    diversos paradigmas podem coexistir pacificamente ou no. Assim, por exemplo, o

    materialismo e o espiritualismo obedecem a dois paradigmas diferentes que so inimigos entre

    si, mas, segundo Morin, ambos so ramos do mesmo grande paradigma. Por isso,

    necessrio considerar as grandes matrizes paradigmticas as quais no se limitam a dominar a

    noosfera e a cultura de uma poca, mas dizem tambm respeito infratextura social57.

    Dentro da concepo complexa essa relao no pode ser entendida estaticamente onde, por

    um lado, o paradigma apenas impe e dispe (como um demiurgo oculto) ou, pelo outro lado,

    o paradigma apenas o produto da organizao social. Preferencialmente deve ser

    concebido um crculo ativo em que a organizao sociocultural alimente o paradigma que a

    alimenta.58

    Na tentativa de encontrar o n grdio, a caracterstica fundamental que domina todos

    os paradigmas, cabe agora acompanhar Morin na sua caracterizao do grande paradigma do

    Ocidente.

    1.3.2.2 O grande paradigma do Ocidente

    O grande paradigma do Ocidente o resultado do desenvolvimento da histria

    56 MORIN, Edgar.O mtodo 4.pp. 265-268.57 MORIN, Edgar.O mtodo 4.pp. 269.58 MORIN, Edgar.O mtodo 4.pp. 269.

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    europia desde o sculo XVII, a partir da separao entre sujeito e objeto por Descartes. Essa

    dissociao vai se prolongando: alma/corpo, esprito/matria, qualidade/quantidade,

    finalidade/causalidade, liberdade/determinismo, etc. Nos sculos XVIII e XIX consolida-se a

    distino entre a cultura cientfica e a cultura humanstica, aps a disjuno entre cincia e

    filosofia. O desenvolvimento de ambas as culturas dependente do mesmo paradigma, atuam

    no mesmo terreno, mas excluem-se mutuamente.59 No interior da cultura humanstica baseada

    na reflexo, proibido fazer uso do saber objetivo, enquanto que a cultura cientfica, baseada

    na especializao, no pode refletir sobre si mesma.60 Os resultados (positivos e negativos)

    dessa disjuno podem ser vistos em todas as dimenses da atuao do ser humano, inclusive

    na sua vida como indivduo. Morin o descreve assim:

    ... a esquizofrenia particular nossa cultura d a cada um ao menos uma dupla vida.Por um lado, uma vida existencial e moral, com a presena e a interveno daexperincia interior, uma viso das coisas e dos acontecimentos segundo asubjetividade (qualidades, virtudes, vcios, responsabilidade), a adeso aos valores,as impregnaes e contaminaes entre juzos de fato e juzos de valor, os juzosglobais; por outro lado, uma vida de explicaes deterministas e mecanicistas, devises fragmentadas e disciplinares, de disjuno entre juzos de fato e juzos devalor.

    Assim, a prpria vida cotidiana de cada um determinada e afetada pelo grandeparadigma...61

    Atualmente, segundo a avaliao de Morin, o trao comum presente em todas as

    dimenses da atuao do ser humano (princpios de organizao da cincia, da sociedade, da

    economia e do Estado-nao) o paradigma da cincia clssica que, desta forma, articula-se

    profundamente no grande paradigma do Ocidente62.

    Esse trao comum aparece no prprio tratamento do real (reduo/disjuno), amesma ocultao mtua do sujeito pelo objeto e do objeto pelo sujeito, a mesmareduo ordem, medida, ao clculo, em detrimento das qualidades, dastotalidades, das unidades complexas, a mesma especializao e hierarquizao, o

    mesmo pragmatismo, o mesmo empirismo, o mesmo manipulacionismo, a mesmatecnologizao e tecnoburocratizao, a mesma racionalizao sob a gide da razo,a mesma dissociao entre o humano e o natural, a mesma transformao em objetofechado de tudo o que apreendido pelo conceito, pelo instrumento, pela mquina,pelo programa...63

    No interior do paradigma da cincia clssica, ao lado da reduo/disjuno, surge

    ainda a excluso que elimina pura e simplesmente da cientificidade e, por isso mesmo, da

    59 MORIN, Edgar.O mtodo 4.p. 270.60

    MORIN, Edgar.Introduo ao pensamento complexo.p. 76.61 MORIN, Edgar.O mtodo 4.pp. 272-273.62 MORIN, Edgar.O mtodo 4.p. 27363 MORIN, Edgar.O mtodo 4.p. 273.

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    verdadeira realidade, todos os ingredientes da complexidade do real64. O resultado da

    aplicao dos princpios do paradigma da cincia clssica a viso de mundo onde reina a

    ordem, a unidade e a simplicidade. Ao mesmo tempo em que exclui do (mesmo) mundo tudo

    o que no se conforma com os seus princpios. A necessidade de encontrar a ordem e a

    unidade satisfaz, segundo Morin, a aspiraes religiosas: a necessidade de certeza, a vontade

    de inscrever no prprio mundo a perfeio e a harmonia perdidas com a expulso de

    Deus...65.

    Com efeito, os resultados da aplicao do grande paradigma do Ocidente se mostram

    geralmente mutilantes. At porque, o paradigma da cincia clssica nunca conseguiu ficar

    totalmente livre de dialgicas como, por exemplo, a do empirismo/racionalismo. Porm, estasituao ao mesmo tempo em que divide, oportuniza a dialgica entre os opostos que se

    mostrou produtiva para ambos os lados, mesmo que na maioria das vezes de forma

    inconsciente.66

    Morin identifica a presena do grande paradigma

    no apenas na sociedade (disjuno entre a organizao tecno-buroeconocrata e avida cotidiana), na cultura (disjuno entre cultura das humanidades e cultura

    cientfica), mas tambm nos psiquismos e nas vidas, suscitando as passagens porsaltos quase qunticos do mundo dos sentimentos, das paixes, da poesia, daliteratura, da msica, para o mundo da razo, do clculo, da tcnica...67

    O grande paradigma determina a organizao de uma sociedade ao mesmo tempo em

    que esta o determina, porque

    toda sociedade o produto das intercomputaes e intercogitaes68 entre indivduosque a constituem, sociedade que retroage de maneira megacomputante sobre osindivduos fornecendo-lhes normas, padres, esquemas, que se inscrevem noimprinting cultural69desses indivduos e guiam as suas computaes/cogitaes.70

    64 MORIN, Edgar.O mtodo 4.p. 276.65 MORIN, Edgar.O mtodo 4.p. 277.66 MORIN, Edgar.O mtodo 4.p. 274.67 MORIN, Edgar.O mtodo 4.p. 280.68 A computao o tratamento de estmulos, de dados, de signos, de smbolos, de mensagens, que nos permite agir dentro do universo

    exterior, assim como de nosso universo interior, e conhec-los. MORIN, Edgar. A cabea bem feita.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,2005. p. 120. No animal verificam-se computaes intercelulares. Na atividade cognitiva do crebro animal, Morin reconhece haveruma megacomputao (ela envolve, analisa, sintetiza computaes de computaes). Por sua vez, a complexidade organizacional doaparelho neurocerebral do ser humano permite-lhe desenvolver e transformar as computaes em cogitaes ou pensamento, atravsda linguagem, do conceito e da lgica, o que exige um campo sociocultural. Cf. MORIN, Edgar. O Mtodo 3: o conhecimento doconhecimento.Porto Alegre: Sulina, 2002. p. 88.

    69 O imprintingcultural [familiar e social] inscreve-se cerebralmente desde a mais tenra infncia pela estabilizao seletiva das sinapses,inscries iniciais que marcaro irreversivelmente o esprito individual no seu modo de conhecer e de agir. MORIN, Edgar. O mtodo4.p. 30.

    70 MORIN, Edgar.O mtodo 4.p. 281.

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    A instncia paradigmtica situa-se assim no nucleuscomum e obscuro onde normas,

    padres e esquemas guiam as computaes e as cogitaes que as atualizam71. Tornando-a o

    n grdio onde esto unidos a organizao primordial do cognitivo e a organizao

    primordial do social. Ou, em outras palavras, o grande paradigma o n arqueolgico 72 da

    organizao do cognitivo, do noolgico, do cultural, do social.73

    Tambm a organizao do conhecimento na cultura atual est sob a influncia do

    grande paradigma Ocidental e as conseqncias so igualmente fragmentadoras. Morin afirma