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benção meu Padim Cicero

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23ª Reunião Brasileira de Antropologia – Gramado, Junho de 2002.Fórum de Pesquisa:

RELIGIÕES, SAÚDE E PERCURSOS DE ‘CURAS ESPIRITUAIS’ NO BRASIL DE HOJE

TRABALHO:

“Benção Meu Padim Cícero!”: pedidos de saúde e representação simbólica

do toque dos romeiros nos lugares santos de Juazeiro.

Antônio Mendes da Costa Braga*

Todos os anos milhares de romeiros vão à cidade de Juazeiro, no Ceará, pedir a proteção

de Nossa Senhora das Dores. E se isso ocorre é porque Padre Cícero, que fora em vida o

grande líder espiritual, conselheiro e provedor desses romeiros, sempre desejou e estimulou a

devoção a Nossa Senhora das Dores e ao Sagrado Coração de Jesus. É impossível pensar a

romaria de Juazeiro destituída de seu caráter mariano. O próprio Cícero via Juazeiro como um

local sagrado, uma “terra santa”.

Entretanto a romaria de Juazeiro, como é notório, não se restringe a esse caráter

mariano. Compreendida e vivida como cidade santa pelos romeiros, Juazeiro tem na sua

história e nas romarias que a ela se dirigem a presença marcante do próprio Pe. Cícero. Os

rosários, os benditos, as celebrações litúrgicas e devocionais dedicadas a Nossa Senhora das

Dores são entrecortadas e permeadas por manifestações devocionais ao “Padim Cícero”.

Peregrinar ao Juazeiro é ao mesmo tempo uma romaria mariana e “ciceroniana”.

O presente trabalho se enquadra nesta segunda característica, ao abordar o significado

da figura do “Padrinho” nas romarias de Juazeiro. Trata-se sobretudo de uma reflexão sobre a

maneira como os romeiros constroem a figura de um “Padrinho” que é Santo (santo como o

são todos aqueles a quem se atribui capacidades demiúrgicas e uma vida cristã exemplar), mas

que antes de tudo é um “padrinho”, isto é, alguém cujo vínculo se dá por meio de laços

afetivos estreitos. Um “Padrinho” que, além de grande líder espiritual e modelo de referência

moral, esta sempre disposto em atende-los nas suas necessidades materiais e físicas.

* Mestre em Sociologia pela FFLCH-USP. Professor de Sociologia da Faculdade Maria Augusta, Jacareí, SP.

Colaborador da Comissão de Estudos sobre o Processo de Reabilitação Histórico-eclesial do Pe. Cícero Romão

Batista, Diocese do Crato, CE.

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Tanto para os romeiros que seguiam Pe. Cícero em vida, quanto para os de hoje, ele é

“O Padrinho”. O “Padrinho que é Santo”. Exatamente nesta ordem. Uma ordem que pode ser

apreendida quando observarmos a maneira como os romeiros transitam nos locais vinculados à

memória do Pe. Cícero (seu tumulo, sua caso no Horto, sua casa na cidade...) e deixam

emergir exatamente isso: expressões e manifestações do comunicar-se com o “Padrinho que

Santo” numa intensidade muito maior do que aquela que busca o “Santo que é Padrinho”.

Esta primazia dada ao status de “Padrinho” em relação ao de Santo revela-se inclusive

numa questão que poderia colocar em cheque a certeza da sua santidade: a ausência de um

reconhecimento oficial, por parte da Igreja Católica Apostólica Romana, da propalada

santidade de Pe. Cícero.

Primeiramente porque, mesmo que eventualmente se poça identificar algum tipo de

desapontamento dos romeiros para com o fato da Igreja Católica ainda não ter canonizado Pe.

Cícero, vê-se claramente que entre eles isso não é motivo que justifique uma cizânia ou tensão

com a instituição eclesial. Mesmo se Pe. Cícero está oficialmente ausente dos altares católicos,

para os romeiros a certeza da santidade do “Padrinho” independe de um veredicto aprobatório

da Igreja.

Podemos inclusive inferir que a ausência de uma iconografia do Pe. Cícero nos altares

terminou ajudando a corroborar seu papel de “Padrinho” entre os romeiros. Se suas

representações iconográficas estão ausentes dos altares, por outro lado constata-se que elas

estão presentes em diversas praças públicas e em diferentes rincões nordestinos, sem contar

aquelas imagens que podem ser vistas nas casas e manifestações devocionais dos romeiros.

É notório que a figura do Pe. Cícero como “Padrinho” nasce com ele ainda vivo e

transcende sua morte, se estendendo até os dias de hoje. Os laços estreitos do processo de

apadrinhamento entre Pe. Cícero e seus romeiros combinam muito mais com a imagem de

alguém que esta em meio a eles, próximo ao seu cotidiano, do que com um certo tipo de

distanciamento e diferenciação proporcionado pela figura dos outros santos católicos que eles

encontram nos altares. É na sensação de proximidade entre o romeiro e seu “Padrinho” que

vamos encontrar parte da força e singularidade que reside no fenômeno Pe. Cícero.

Desta, ao excluir Pe. Cícero dos altares, a Igreja Católica terminou ajudando a inseri-lo

no espaço cotidiano daqueles que a ele recorrem e que se sentem seus “afilhados”. Na

realidade, ao não ser absorvido institucionalmente pela Igreja, Pe. Cícero foi e continua sendo

absorvido por aquelas categorias de indivíduos que em vida interagiam com ele e o seguiam:

os romeiros e os habitantes do Juazeiro. Portanto, mesmo depois de sua morte, ele não se

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ausenta do cotidiano dos romeiros, do cotidiano de Juazeiro e da vida de seus habitantes (que

em boa medida são descendentes de romeiros).

Mas Pe. Cícero não esta presente apenas no cotidiano dos romeiros, nas suas casas, nas

suas praças. Há um momento e um lugar onde sua presença esta mais viva e forte do que em

qualquer outro: a cidade de Juazeiro, no tempo e no espaço das romarias. Ali ele é vivificado a

cada momento num processo espacial-temporal cuja dimensão do sagrado esta dada num vasto

percurso no qual o epicentro é a “terra santa” do Juazeiro e cujo trecho principal vai da Igreja

Nossa Senhora das Dores à Capela do Socorro, onde é seu túmulo, passando por sua casa na

cidade e se estendendo até a Colina do Horto, para enfim chegar no Santo Sepulcro, que fica

localizado fora do perímetro urbano da cidade. Um espaço onde a presença do “Padrinho” é

vivificada não só pelas práticas devocionais mas também pela rememoração de casos e

passagens de sua vida que são transmitidas através da tradição e da história oral, passadas de

pai para filho, recriadas pela literatura de cordel, etc.

Sobre esse processo de rememoração do Pe. Cícero dentro da tradição oral romeira é

necessário destacar que ao invés de valorizarem uma história dotada de princípio, meio e fim,

onde sobressai a vida de um “santo homem” - que através do seu esforço e de sua ação

“virtuosa” tornou-se merecedor do “Céu”, Santo inconteste -, o que aparece com maior

recorrência são as histórias do “Padrinho” que ajudou dessa forma, que deu este conselho, que

indicou esse remédio, que deu esse perdão, que apartou esse ou aquele conflito, que foi doce e

manso com aquele, severo e justo com aquele outro...

Essa recorrência é relevante primeiramente porque a história da grande maioria desses

romeiros é uma história marcada pelo sofrimento decorrente das condições sócio-econômicas

e das adversidades geográficas. Pontuada pelo desapontamento para com o descaso do Estado

e dos donos do poderes políticos e econômicos. E não raro pela violência de alguns deles.

Uma história onde pesa o estigma de desvalidos. Uma história onde os momentos de aridez da

caatinga e do sertão se confundem com aqueles em que lhes faltam perspectivas. Portanto,

dada essas questões, é perfeitamente compreensível a importância que atribuem ao fato de

encontrarem em Juazeiro a figura de um homem bom, justo e caridoso, disposto a se importar

e lutar por eles. A certeza de que em Juazeiro eles têm um “Padrinho” é a convicção de que

agora eles têm a quem recorrer nos seus sofrimentos: “Valei-me meu Padim Cícero!”

Daí que para o romeiro é sempre o “Padrinho” que entre em cena em primeiro lugar. É

ele que interfere e intercede. Que protege seus romeiros e está sempre disposto a escuta-los e

propor-lhes uma resolução para os problemas que eles lhe trazem. Aquele “Padrinho” que

nunca lhes faltou em vida, não faltará agora que se encontra entre os Santos.

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Aqui poderia se argumentar, numa leitura um tanto quanto positivista, que muitos dos

fatos e histórias que os romeiros atribuem a Pe.Cícero nunca ocorreram de fato, numa alusão à

idéia de que o “mito supera a realidade”. Mas é necessário destacar que, além desse tipo de

argumento ser questionável do ponto de vista antropológico, é notório que sua vida foi

marcada pelo seu empenho em cuidar daqueles que se dirigiam a Juazeiro na condição de seu

romeiro. E se a figura do “padrinho” é algo de extrema importância na cultura nordestina, não

é absurdo afirmar que ao longo de sua vida Pe. Cícero incorporou como poucos esse arquétipo

e tinha uma perfeita compreensão do que isso significava para os romeiros.

Desde sua chegada a Juazeiro, em 1872, ele foi construindo uma reputação e foi se

envolvendo num enredo histórico cuja direção colocou-o na condição de “Padrinho”.

Condição essa que ele tratou com zelo durante toda a sua vida. Inicialmente com os membros

de sua paróquia. Depois com aqueles que se dirigiram a Juazeiro a partir “Milagre da Beata

Maria”. Depois com aqueles que iam a Juazeiro justamente para buscar um conselho ou ajuda

do “Padrinho”.

É a partir da construção desse sentimento de afilhadagem, que Pe. Cícero realizou ao

longo de sua vida com aqueles que o procuravam, que vai se configurando a romaria de

Juazeiro. Uma conformação que não se extingue com sua morte, mas que permanece existindo

a partir de uma certa continuidade entre o relacionamento que ele estabeleceu durante sua vida

com os seus romeiros e o relacionamento que os romeiros estabelecem ainda hoje com a sua

figura. Uma continuidade que é perceptível justamente na permanência da dimensão afetiva,

do sentimento de afilhadagem, onde os pedidos e manifestações devocionais se dirigem ao

“Padrinho” zeloso e protetor. O seu novo status, o ser Santo, não implicou numa ruptura ou

alternância substancial no relacionamento de afilhadagem. Para o romeiro a morte corporal de

Pe. Cícero não o impede de continuar cumprindo zelosamente o seu papel de “Padrinho”.

Mas o que vem a ser um “padrinho”? Quem é o “Padrinho”? Como se estabeleceu e foi

construído esse sentimento de afilhadagem?

Segundo Luitgarde Barros, “quando alguém usa a expressão ‘meu padrinho’, é porque

identifica nesta pessoa a capacidade muito pronunciada de se responsabilizar por seus

afilhados. Milhares de pessoas identificarem essa qualidade em u’a mesma pessoa, equivale a

uma afirmação do lugar privilegiado por ela ocupado, entre os membros da comunidade.

Indivíduos relapsos nas obrigações de padrinhagem, por mais rico que fossem, não

receberiam este título conferido espontaneamente pelos membros do grupo. Quando alguém

se dirige a outro pela expressão ‘meu padrinho’, está-lhe rendendo ao mesmo tempo

gratidão, oferecendo-lhe seus préstimos, afirmando-lhe fidelidade, tudo isso com o

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significado de um título que é também de orientador, aquele que merece respeito, enfim, é um

símbolo de prestação de obediência, é a escolha espontânea de alguém que merece, por sua

conduta, a confiança de dirigir e aconselhar suas próprias opções de vida”.1

Pe. Cícero efetivamente conquistou esse lugar privilegiado na comunidade. Seja entre

seus cronistas, seja na literatura acadêmica, na história oral dos romeiros ou nas

reminiscências dos habitantes mais antigos de Juazeiro, não faltam relatos ou constatações de

que de fato Pe. Cícero auxiliava aqueles que lhe recorriam em busca de seu auxílio. São vários

os relatos onde ele auxilia determinado romeiro com um amparo econômico, como a oferta de

uma ocupação ou emprego, um conselho sobre como cuidar da lavoura, da saúde, com a

entrega de remédios, a indicação de meizinhas, a arbitração de litígios entre famílias,

conselhos espirituais e práticos.

Não fossem esses relatos ainda é possível constatar a veracidade destes fatos mediante

uma série de bilhetes e missivas que os romeiros encaminhavam para o Pe. Cícero e que,

eventualmente eram acompanhadas de respostas escritas de próprio punho pelo sacerdote. São

o caso daqueles que foram preservados e se encontram nos Arquivos do Padre Cícero, que

hoje estão sob a custódia dos Salesianos de Juazeiro.

O arquivista Antenor de A. Silva2, ao estudar e catalogar estes arquivos, constatou que,

dentre os pedidos escritos que ele conseguiu identificar, a maioria envolvia pedidos de

remédios, meizinhas ou conselhos solicitados pelos romeiros, ainda que constassem também

aqueles que envolvia problemas entre vizinhos ou com negócio com imóveis, pedidos de

esmolas, envio de dinheiro para pagar promessas ou esmolas, permissão para passar seus

últimos dias na santa Juazeiro, etc.

Para ilustrar a abordagem e análise que estou propondo neste trabalho selecionei uma

das missivas que constam no livro de compilações de Antenor Silva:

1a.)“9* 5 de novembro de 908

Sou de Voça Rm filha espiritual q. todo bem lhe deseja

Josefa Ma. De Jesus.

........eu mando pedir a vosça Rvma q. me manda aplicar um remédio para filha mq.

Estar doente de uma dor de Cabesça é uma atontícia q. é (dimais?) q. não hove remédio

também sinto uma dor no rim do lá do (sic) esquerdo provia de uma Comida di um ouvo eu

1 Barros, Luitgarde O. C.- A Terra da Mãe de Deus. Francisco Alves;Brasília:INL, 1988. (página 173)2 Silva, Antenor de A.- Padre Cícero: Sacerdote, Médico e Conselheiro. Livraria Salesiana, Salvador-BA, 1992

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pesço também q. mia plique(sic) um remédio para um homem q. veve a mutos tempos com

uma inchação em todo Corpo. Os tomago safoçado di uma falta di folgo.”

Num outro livro de compilações, de T. S. Guimarães e A. Dumoulin, temos a seleção de

algumas respostas de Pe. Cícero a esses pedidos dos romeiros. Reproduzo aqui duas cartas que

também nos ajudam a compreender o tipo de relacionamento que ele estabelecia com seus

romeiros, sendo que na segunda consta a solicitação de uma jovem romeira e a solução

apresentada por Pe. Cícero:

1a.)(Pasta VI-14/4/30): “Meu afilhado Manoel Vicente. Deus o guarde em saúde, paz

com todos os seus. Tome o chá de batata, cávola e velame muito tempo pela manhã e de noite.

Reze o seu ofício às almas do purgatório todo dia. Do padrinho e amigo”.

2a.) (Sal.36/69) (Capricho 9/1/34):

“...O fim desta carta é para saber se o senhor me quer para eu ir para a casa do

Senhor ou para a casa de minha avó...eu não posso mais morar aqui, aconteceu um desgosto

muito grande em mim que meu coração não deseja morar aqui. Eu tenho desejado tato a

morte e tenho tido vontade de beber veneno que se eu não for para lá o meu fim é este...me dê

um conselho que estou sem plano, o meu pensamento é só para me matar...”

Após escrever uma carta para o pai da moça, onde relata o fato e propõe a solução Pe.

Cícero escreve à sua jovem romeira:

(Sal. 36,69) (sem data):

“Maria, Deus te abençoe. Nesta data, escrevo a seu pai, pedindo para ele consentir na

sua vinda. Espero que ele me atenderá. Enquanto não vier, tenha paciência, reze todos os

dias, pela manhã e à noite, o seu rosário, retirando do seu espírito todas idéias más,

principalmente, a de beber veneno, porque isto são coisas ensinadas pelo demônio para

perder as criaturas. Do seu padrinho e amigo”.3

Para o desenvolvimento destes estudos as Irmãs Annete Dumouli e Ana Teresa

Guimarães, diretoras do Centro de Psicologia da Religião, em Juazeiro, me deram acesso a

vários dos bilhetes e missivas que os romeiros costumam deixar no tumulo de Pe. Cícero e no

Horto. Analisando este material causou-me impressão que ao mesmo tempo em que eles

dirigem suas solicitações ou agradecimentos a um Santo intercessor, também se percebe em

muitos desses bilhetes e cartas a existência de uma forma de se dirigir ao “Padrinho” que em

alguns momentos lembram o tipo de relacionamento que existia entre o Pe. Cícero e seus

3 Dumoulin, A., Guimarães, T. S.- O Padre Cícero Por Ele Mesmo. Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 1983.

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romeiros quando este ainda estava vivo. Reproduzo, a título de comparação, três desses

bilhetes para que vocês tenham uma idéia do tipo de semelhança que estou falando:

1a.) “Querido padrinho, quero que o senhor nos ajude a vender nossa casa e nos dê muita

saúde. Ajude toda nossa família e as pessoas que amamos. Dê saúde para o Luís e faça com

que ele para de beber.”

2a.)“padre çiço eu peço a sua proteção e sua graça sobre meu probema que eu sofo

tanto sobre meu filho, ele me matrata muito padre siço. Peço que me libeta desi sofrimento.

Eu tenho probrema na coluna...eu peço a sua graça e proteção que cura deste probema padre

çiço. Peço saúde paz e felicidade. Bastante saúde padre cícero. Eu espero alcançar a sua

graça e me libertar deste sofrimento e abença padre çiço eu espero alcançar seu milagre que

eu peço.”

3a.)Ao meu Padrinho Cícero de Juazeiro,

Em primeiro lugar quero lhe pedir a sua benção.

Meu Santo Padre de Juazeiro, esta é a segunda vez que eu escrevo a vós, da 1a. vez que

lhe escrevi, eu pedi muitas coisas, pois realmente estava passando por muitos problemas,

principalmente na minha área profissional, mas hoje, quando volto a lhe escrever, já é com a

cabeça muito melhor, mais tranqüila, graças a Deus e a intercessão Vossa, que hoje me sinto

mais seguro, mais protegido.(...) (segue toda uma carta com pedidos para ele e para familiares

e agradecimentos e orações para o Pe. Cícero.).

Evidentemente o vínculo entre os romeiros e o “Padrinho” incorpora aqueles tipos de

relacionamentos presentes na religiosidade popular católica que envolve a devoção do crente

com o seu Santo (a peregrinação, o toque na imagem do Santo, o costume de se deixar pedidos

em determinados lugares sagrados, participar de celebrações litúrgicas e ritos devocionais,

etc.) e que fazem parte de outros casos de devoção popular. Entretanto, por maior que sejam

essas similitudes, penso que a força e singularidade do fenômeno que já foi citada

anteriormente se sobressaem: a certeza de que a romaria é um encontro com o “Padrinho”.

Uma certeza que não significa somente encontrar-se com o Santo e taumaturgo, mas também

com alguém cujos laços devocionais e afetivos, sobre-naturais e humanos estão o tempo

inteiro se interpenetram de maneira indissociável, onde o guia espiritual e modelo de vida

cristã se confundem com o conselheiro e mestre, o taumaturgo com o “médico”, o intercessor

com o “juiz” e “provedor de bens materiais”. etc.

Trata-se aqui de uma interpenetração entre o os laços humanos e a devoção ao sagrado

que, ao meu ver, revela-se com certa nitidez através do toque nas imagens e lugares santos. E

isso porque, ao meu ver, se por um lado o toque ocorre mediante a percepção de ali existe

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alguma forma de hierofania, a percepção de que ali o sagrado se manifesta, também esta

contida nesta prática dos romeiros de Juazeiro a intenção de se re-atualizar o pedido de

“benção” ao “Padrinho”, incorporando no gesto um forte significado afetivo. Penso inclusive

que o trajeto dos romeiros em Juazeiro - a visita à casa onde Pe. Cícero morou (que também

fora o local onde ele faleceu),a visita ao seu tumulo na Capela do Socorro e a peregrinação à

Colina do Horto-, bem mais que um culto a esses lugares, representa a imersão num percurso

cujo sentido é a aproximação cada vez maior com o “Padrinho”, onde a devoção e o processo

de rememoração tem a intenção de revivifica-lo.

Na casa da cidade, por exemplo, a parte mais importante é o quarto onde Pe. Cícero

faleceu. A casa é composta de vários cômodos. Num cômodo na parte de trás da casa os

romeiros podem assistir a filmes religiosos que são projetados num telão. No último, que está

próximo à saída, tem um grande osso de baleia, onde alguns romeiros costumam esfregar as

costas para se curarem ou evitarem males da coluna. Mas o coração da casa é o quarto aonde

ele veio a falecer e onde hoje se encontra uma cama disposta no centro. É costume entre os

romeiros, após a tocarem, rezarem e darem três voltas ao seu redor. Antes alguns costumavam

passar por cima e por baixo, mas como essa prática foi proibida e a parte de baixo da cama

lacrada, eles passaram a circunda-la . Neste momento os pedidos são feitos, os votos são

pagos. É um momento de pedir e agradecer as graças, como aqueles referentes à saúde e as

necessidades materiais. Entretanto o que me causa maior impressão é a maneira como os

romeiros se apropriam desse espaço. Há um respeito decorrente da proximidade com o

sagrado. Todavia esse respeito é permeado por um clima de “sentir-se na casa do Padrinho”,

onde a maneira simples, pouco cerimoniosa e afetuosa dos romeiros flui sem o menor

constrangimento.

Outro local importante desse percurso é a Colina do Horto, que fora a casa de descanso

do Pe. Cícero. Ali existem outras formas de apropriação do sagrado, fortemente marcadas pela

presença do “Padrinho”: já próximo ao local onde fica a capela e a casa que fora de Pe. Cícero

há uma pequena subida tomada por uma feira onde se misturam barracas de comida, de bens

religiosos e de produtos diversos, como os “made in China”. Dentre as barracas que vendem

bens religiosos chama atenção aquelas que vendem “pomadas e remédios do Pe. Cícero”,

numa imagem que conflui a lembrança daquelas meizinhas que Pe. Cícero indicava a seus

romeiros com a das barracas de ervas e produtos medicinais presentes em várias feiras

brasileiras. Um pouco mais à frente podemos ver a casa e a capela que pertenceram a Pe.

Cícero e que recentemente foram transformadas num museu vivo, onde várias imagens em

tamanho natural reconstituem cenas do seu cotidiano. Em frente a esse museu, por sua vez,

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podemos ver uma imponente estatua do Pe. Cícero, de aproximadamente 28 metros de altura.

Dois tipos de leitura sobre o Pe. Cícero aparentemente estranhas ao universo romeiro: a casa

do Pe. Cícero incorporando uma distância museológica, fruitiva e didática; um Pe. Cícero

sobre-humano, monumental.

Mas é justamente nesta aparente tentativa de propor, ou impor, aos romeiros uma leitura

estranha ao seu mundo que podemos perceber como a devoção ao “Padrinho” é um agente

catalisador capaz de absorver e incorporar novos elementos ao seu universo simbólico, dado

que os novos elementos quase sempre têm seus significados redefinidos dentro de novas

práticas devocionais criadas pelos romeiros. Frágil na aparência, o romeiro se mostra dotado

de uma admirável capacidade de gerar e revivificar a presença do “Padrinho” no Horto.

No caso da grande estatua do Horto, por exemplo, boa parte dos romeiros resistiu a sua

construção, entre outros motivos porque implicou na derrubada de um pé de juazeiro do tempo

do Pe. Cícero e ao qual depositavam grande afeto. Entretanto hoje faz parte da peregrinação

do Horto tocar na estátua e dar três voltas ao redor da grande bengala do “Padrinho”. E desta

forma a grande estátua foi incorporada ao universo romeiro através do toque. Neste caso,

como afirma A. Dumoulin e T. S. Guimarães, “a caminhada até o Santuário não é mais só

uma aproximação do poder, mas um itinerário para uma existência mais religiosa da qual o

santo venerado é modelo. Mesmo os gestos de contato físico tomam o sentido de uma

veneração expressa em um comportamento simbólico. Ora, nesse contexto, o que faz passar

do sentido realista ao sentido simbólico é a representação que a gente faz do Santo. Se o

Santo representa um poder mágico, o rito de contato é primitivo (apropriação do poder). Se o

Santo representa um modelo de vida cristã, o rito de contato se espiritualiza (desejo de

aproximação do modelo, veneração)”4. O toque na grande estátua, desta forma, redimensiona

Pe. Cícero como Santo e taumaturgo. Mas não só isso. O toque reconstitui Pe. Cícero como

“Padrinho”, o reaproxima dos seus romeiros, como se aquilo fosse um gesto que também

incorporasse o pedido de “benção ao meu padrinho” , trazendo-o de volta a proximidade e

cumplicidade que existe entre ele e seus romeiros.

Acredito que o mesmo processo de incorporação começa a se dar no museu do Horto,

tal como revela a prática dos romeiros de tocarem numa estátua do Pe. Cícero que esta

disposta logo na sala de entrada. Alguns tocam suas mãos, outros com maior poder aquisitivo

tiram fotos ao lado do “Padrinho”. Mães incentivam a filha ou o filho a tocarem nas mãos da

estátua. Ainda percebe-se um certo constrangimento dos romeiros no processo de apropriação

4 Dumoulin, A., Guimarães T. S. – Romaria em Juazeiro e a Devoção ao Padre Cícero (fotocópia, A Vida em Cristo e na Igreja, página 18)

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do espaço. Mas esse constrangimento esconde uma grande capacidade de leva-los a encontrar

o que realmente eles vão buscar no Horto: o “Padrinho”. Não um Pe. Cícero que está atrás de

um cordão de isolamento ou de uma redoma de vidro. Mas o “Padrinho” que sempre os

acolheu em sua casa e em suas necessidades.

Como este fórum aborda os estudos sobre os percursos de “curas espirituais” no Brasil

penso que as romarias de Juazeiro e o fenômeno Pe. Cícero não podem passar à margem

destes estudos. Acredito que ali se revela uma modalidade de percurso espiritual que, ao

incorporar a figura do “Padrinho”, abre amplas possibilidades de repensarmos como se dá a

interpenetração e as fronteiras entre o sagrado e profano na vida religiosa nordestina, e porque

não, brasileira. A experiência de Juazeiro abre novas possibilidades na abordagem dessa

temática quando, por exemplo, temos mais uma oportunidade de repensarmos até onde se dá o

antagonismo de categorias como religiosidade primitiva e moderna e em que medida os

percursos e romarias que visão “curas espirituais” depositam a possibilidade da cura apenas no

contato com o mágico, ou se a taumaturgia também não deriva de outras dimensões dessa

mesma experiência religiosa. Por fim desejo que este trabalho, mesmo que tenha apenas

cumprido com a tarefa de estabelecer os primeiros contornos de um objeto a ser estudado e

aprofundado, possa contribuir para que a riqueza dessa romaria e do fenômeno do “Padrinho”

Pe. Cícero se incorpore cada vez mais nos debates e estudos de Antropologia da Religião no

Brasil.

BIBLIOGRAFIA:

ARRUDA, João, CASIMIRO, Renato. Anais do Seminário – 150 anos de Pe. Cícero. 1ª edição. Fortaleza, RCV. Gráfica e Editora, 1994.

BARBOSA, Geraldo Menezes. Memorial: revista documentária comemorativa dos 150 anos de nascimento do Padre Cícero Romão Batista. Edição única. Juazeiro, Lions Clube, 1994.

BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. A Terra da Mãe de Deus. Rio de janeiro, Francisco Alves; INL, 1988.

CAMURÇA, Marcelo. Marretas, Molambudos e Rabelistas: a revolta de 1914 no Juazeiro. 1ª edição. São Paulo, Maltese, 1994.

CAVA, Ralph Della. Milagre em Joaseiro. 2ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.

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DUMOULIN, Anne, GUIMARÃES. O Padre Cícero por ele mesmo. 1ª edição. Petrópolis, Editora Vozes, 1983.

___________, Romaria em Juazeiro e a devoção ao Padre Cícero. Fotocópia. (A Vida em Cristo e na Igreja, página 11-27)

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. 1ª edição. São Paulo, Martins Fontes Editora, 1992.

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. 6ª edição. São Paulo, Editora Perspectiva, 2002.

FORTI, Ma. do Carmo Pagan. Maria do Juazeiro: a beata do milagre. 2a. edição. São Paulo, Annablume Editora, 2000.

LIMA, Marinalva Vilar de. Narradores do Padre Cícero; do auditório à bancada. 1ª edição. Fortaleza, UFC, 2000.

SILVA, Antenor de Andrade. Padre Cícero: sacerdote, médico e conselheiro. 1a. edição. Salvador, Livraria Salesiana, 1992.

STEIL, Carlos Alberto. O Sertão das Romarias: um estudo antropológico sobre o santuário de Bom Jesus da Lapa – Bahia. 1ª edição. Petrópolis, Editora vozes, 1996.

STINGHEN, Marcela Guasque. Padre Cícero: a canonização popular. Dissertação (mestrado). Mimeo. Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, 2000.

OBS.: Cartas e Missivas dos Romeiros: material cedido pelo Centro de Psicologia da Religião, Juazeiro do Norte, CE.

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