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Catequeses de Bento XVI sobre S. Paulo 1 - A doutrina da justificação das obras à (13) – (19 de novembro de 2008). Queridos irmãos e irmãs! No caminho que estamos a percorrer sob a guia de São Paulo, desejamos agora refletir sobre um tema que está no centro das controvérsias do século da Reforma: a questão da justificação. Como se torna justo o homem aos olhos de Deus? Quando Paulo encontrou o ressuscitado no caminho de Damasco era um homem realizado: irrepreensível em relação à justiça que provém da Lei (cf. Fl 3,6), superava muitos dos seus coetâneos na observância das prescrições moisaicas e era zeloso na defesa das tradições dos padres (cf. Gl 1,14). A iluminação de Damasco mudou radicalmente a sua existência: começou a considerar todos os méritos, adquiridos numa carreira religiosa integérrima, como “esterco” face à sublimidade do conhecimento de Jesus Cristo (cf. Fl 3,8). A Carta aos Filipenses oferece-nos um testemunho comovedor da passagem de Paulo de uma justiça fundada na Lei e adquirida com a observância das obras prescritas, para uma justiça baseada na fé em Cristo: ele tinha compreendido que tudo o que lucrado até então na realidade era, perante Deus, uma perda e por isso decidiu apostar toda a sua existência em Jesus Cristo (cf. Fl 3,7). O tesouro escondido no campo e a pérola preciosa em cuja aquisição investir tudo o resto já não eram as obras da Lei, mas Jesus Cristo, o seu Senhor. A relação entre Paulo e o Ressuscitado tornou-se tão profunda que o induziu a afirmar que Cristo não era apenas a sua vida mas o seu viver, a ponto que para o poder alcançar até morrer era um lucro (cf. Fl 1,21). E não desprezava a vida, mas tinha compreendido que para ele o viver já não tinha outra finalidade e não sentia outro desejo a não ser o de alcançar Cristo, como numa competição atlética, para permanecer sempre com Ele: o Ressuscitado tinha-se tornado o início e o fim da sua existência, o motivo e a meta da sua corrida. Só a preocupação pela maturação na fé dos que tinha evangelizado e a solicitude por todas as Igrejas por ele fundadas (cf. 2Cor 11,28), o levavam a abrandar a corrida para o seu único Senhor, para aguardar os discípulos a fim de que pudessem, com ele, correr para a meta. Se na precedente observância da Lei nada tinha para se reprovar sob o ponto de vista da integridade moral, uma vez alcançado por Cristo preferia não pronunciar juízos sobre si mesmo (cf. 1Cor 4,3-4), mas limitava-se a predispor-se a correr para conquistar Aquele pelo qual tinha sido conquistado (cf. Fl 3,12). É precisamente por esta experiência pessoal da relação com Jesus Cristo que Paulo põe precisamente no centro do seu Evangelho uma irredutível oposição entre dois percursos alternativos rumo à justiça: um construído sobre as obras da Lei, o outro fundado na graça da fé em Cristo. A alternativa entre a justiça para as obras da Lei e a justiça pela fé em Cristo torna-se assim um dos motivos dominantes que atravessam as suas Cartas: “Nós somos judeus de nascimento e não pecadores da gentilidade; sabendo, entretanto, que o homem não se justifica pelas obras da Lei, mas pela fé em Jesus Cristo, nós também cremos em Cristo Jesus para 1 http://escritosdepaulo.blogspot.com.br/2010/02/audiancias-de-2008-2009-do-papa-bento.html

Bento XVI, Catequeses Sobre S. Paulo

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Catechesis to St. Paul

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  • Catequeses de Bento XVI sobre S. Paulo1

    - A doutrina da justificao das obras f (13) (19 de novembro de 2008).

    Queridos irmos e irms!

    No caminho que estamos a percorrer sob a guia de So Paulo, desejamos agora refletir sobre um

    tema que est no centro das controvrsias do sculo da Reforma: a questo da justificao. Como

    se torna justo o homem aos olhos de Deus? Quando Paulo encontrou o ressuscitado no caminho

    de Damasco era um homem realizado: irrepreensvel em relao justia que provm da Lei (cf.

    Fl 3,6), superava muitos dos seus coetneos na observncia das prescries moisaicas e era

    zeloso na defesa das tradies dos padres (cf. Gl 1,14). A iluminao de Damasco mudou

    radicalmente a sua existncia: comeou a considerar todos os mritos, adquiridos numa carreira

    religiosa integrrima, como esterco face sublimidade do conhecimento de Jesus Cristo (cf. Fl

    3,8). A Carta aos Filipenses oferece-nos um testemunho comovedor da passagem de Paulo de

    uma justia fundada na Lei e adquirida com a observncia das obras prescritas, para uma justia

    baseada na f em Cristo: ele tinha compreendido que tudo o que lucrado at ento na realidade

    era, perante Deus, uma perda e por isso decidiu apostar toda a sua existncia em Jesus Cristo (cf.

    Fl 3,7). O tesouro escondido no campo e a prola preciosa em cuja aquisio investir tudo o resto

    j no eram as obras da Lei, mas Jesus Cristo, o seu Senhor.

    A relao entre Paulo e o Ressuscitado tornou-se to profunda que o induziu a afirmar que Cristo

    no era apenas a sua vida mas o seu viver, a ponto que para o poder alcanar at morrer era um

    lucro (cf. Fl 1,21). E no desprezava a vida, mas tinha compreendido que para ele o viver j no

    tinha outra finalidade e no sentia outro desejo a no ser o de alcanar Cristo, como numa

    competio atltica, para permanecer sempre com Ele: o Ressuscitado tinha-se tornado o incio e

    o fim da sua existncia, o motivo e a meta da sua corrida. S a preocupao pela maturao na f

    dos que tinha evangelizado e a solicitude por todas as Igrejas por ele fundadas (cf. 2Cor 11,28), o

    levavam a abrandar a corrida para o seu nico Senhor, para aguardar os discpulos a fim de que

    pudessem, com ele, correr para a meta. Se na precedente observncia da Lei nada tinha para se

    reprovar sob o ponto de vista da integridade moral, uma vez alcanado por Cristo preferia no

    pronunciar juzos sobre si mesmo (cf. 1Cor 4,3-4), mas limitava-se a predispor-se a correr para

    conquistar Aquele pelo qual tinha sido conquistado (cf. Fl 3,12).

    precisamente por esta experincia pessoal da relao com Jesus Cristo que Paulo pe

    precisamente no centro do seu Evangelho uma irredutvel oposio entre dois percursos

    alternativos rumo justia: um construdo sobre as obras da Lei, o outro fundado na graa da f

    em Cristo. A alternativa entre a justia para as obras da Lei e a justia pela f em Cristo torna-se

    assim um dos motivos dominantes que atravessam as suas Cartas: Ns somos judeus de

    nascimento e no pecadores da gentilidade; sabendo, entretanto, que o homem no se justifica

    pelas obras da Lei, mas pela f em Jesus Cristo, ns tambm cremos em Cristo Jesus para

    1 http://escritosdepaulo.blogspot.com.br/2010/02/audiancias-de-2008-2009-do-papa-bento.html

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    sermos justificados pela f em Cristo e no pelas obras da Lei, porque pelas obras da Lei ningum

    justificado (Gl 2,15-16). E aos cristos de Roma recorda que todos pecaram e todos esto

    privados da glria de Deus, e so justificados gratuitamente, por sua graa, em virtude da

    redeno realizada em Cristo Jesus (Rm 3,23-24). E acrescenta: Ns sustentamos que o

    homem justificado pela f, sem as obras da Lei (Ibid., v. 28). Sobre este ponto, Lutero traduziu:

    Justificado unicamente pela f. Voltarei a este aspecto no final da catequese. Primeiro devemos

    esclarecer o que significa esta Lei da qual somos libertados e o que so aquelas obras da Lei

    que no justificam. J na comunidade de Corinto existia a opinio que depois voltaria

    sistematicamente histria; a opinio consistia em considerar que se tratasse da lei moral e que a

    liberdade crist fosse portanto a libertao da tica. Assim em Corinto circulava a palavra

    (tudo me lcito). obvio que esta interpretao errada: a liberdade crist no

    libertinagem, a libertao da qual fala So Paulo no libertao de praticar o bem.

    Mas o que significa ento a Lei da qual somos libertados e que no salva? Para So Paulo, como

    para todos os seus contemporneos, a palavra Lei significava a Torah na sua totalidade, ou seja,

    os cinco livros de Moiss. A Torah implicava, na interpretao farisaica, a que era estudada e

    tornada prpria por Paulo, um conjunto de comportamentos que ia do ncleo tico at s

    observncias rituais e cultuais que determinavam substancialmente a identidade do homem justo.

    Particularmente a circunciso, as observncias acerca do alimento puro e geralmente a pureza

    ritual, as regras sobre a observncia do sbado, etc. Comportamentos que, com frequncia,

    aparecem tambm nos debates entre Jesus e os seus contemporneos. Todas estas

    observncias que expressam uma identidade social, cultural e religiosa tinham-se tornado

    singularmente importantes no tempo da cultura helenista, comeando pelo sculo III a.C. Esta

    cultura, que se tinha tornado a cultura universal de ento, e era uma cultura aparentemente

    racional, uma cultura politesta, aparentemente tolerante, constitua uma forte presso rumo

    uniformidade cultural e ameaava assim a identidade de Israel, que era politicamente obrigado a

    entrar nesta identidade comum da cultura helenista com a consequente perda da prpria

    identidade, perda portanto tambm da preciosa herana da f dos Padres, da f no nico Deus e

    nas promessas de Deus.

    Contra esta presso cultural, que ameaava no s a identidade israelita, mas tambm a f no

    nico Deus e nas suas promessas, era necessrio criar um muro de distino, um escudo de

    defesa em proteo da preciosa herana da f; tal muro consistia precisamente nas observncias

    e prescries judaicas. Paulo, que tinha aprendido tais observncias precisamente na sua funo

    defensiva do dom de Deus, da herana da f num nico Deus, viu esta identidade ameaada pela

    liberdade dos cristos: perseguia-os por isto. No momento do seu encontro com o Ressuscitado,

    compreendeu que com a ressurreio de Cristo a situao tinha mudado radicalmente. Com

    Cristo, o Deus de Israel, o nico Deus verdadeiro, tornava-se o Deus de todos os povos. O muro

    assim diz na Carta aos Efsios entre Israel e os pagos, no era mais necessrio: Cristo que

    nos protege do politesmo e todos os seus desvios; Cristo que nos une com e no nico Deus;

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    Cristo que garante a nossa verdadeira identidade na diversidade das culturas. O muro j no

    necessrio, a nossa identidade comum na diversidade das culturas Cristo, e Ele quem nos

    torna justos. Ser justo significa simplesmente estar com Cristo e em Cristo. E isto suficiente. No

    so mais necessrias outras observncias. Por isso, a expresso sola fide de Lutero

    verdadeira, se no se ope a f caridade, ao amor. A f olhar Cristo, confiar-se a Cristo,

    apegar-se a Cristo, conformar-se com Cristo e com a sua vida. E a forma, a vida de Cristo, o

    amor; portanto, acreditar conformar-se com Cristo e entrar no seu amor. Por isso, So Paulo na

    Carta aos Glatas, sobretudo na qual desenvolveu a sua doutrina sobre a justificao, fala da f

    que age por meio da caridade (cf. Gl 5,14).

    Paulo sabe que no dplice amor a Deus e ao prximo est presente e completada toda a Lei.

    Assim, na comunho com Cristo, na f que cria a caridade, toda a Lei realizada. Tornamo-nos

    justos, entrando em comunho com Cristo, que amor. Veremos a mesma coisa no Evangelho do

    prximo domingo, solenidade de Cristo-Rei. o Evangelho do juiz, cujo nico critrio o amor. O

    que Ele exige s isto: Tu visitaste-me quando estava doente? Quando estava na priso? Tu

    deste-me de comer quando eu tinha fome, tu vestiste-me quando eu estava nu? E assim a justia

    decide-se na caridade. Assim, no final deste Evangelho podemos quase dizer: s amor, s

    caridade. Mas no h contradio entre este Evangelho e So Paulo. a mesma viso, segundo

    a qual a comunho com Cristo, a f em Cristo, cria a caridade. E a caridade realizao da

    comunho com Cristo. Assim, somos justos permanecendo unidos a Ele, e de nenhum outro

    modo.

    No final, s podemos rezar ao Senhor que nos ajude a crer. Crer realmente; assim, acreditar

    torna-se vida, unidade com Cristo, transformao da nossa vida. E assim, transformados pelo seu

    amor, pelo amor a Deus e ao prximo, podemos ser realmente justos aos olhos de Deus.

    - A doutrina da justificao: da f s obras (14) (27 de novembro de 2008).

    Queridos irmos e irms!

    Na catequese de quarta-feira passada falei sobre a questo de como o homem se torna justo

    diante de Deus. Seguindo So Paulo, vimos que o homem no est em condies de se tornar

    justo com as suas prprias aes, mas s pode realmente tornar-se justo diante de Deus

    porque Deus lhe confere a sua justia unindo-o a Cristo, seu Filho. E o homem obtm esta unio

    com Cristo atravs da f. Neste sentido So Paulo diz-nos: no so as nossas obras que nos

    tornam justos, mas a f. Contudo, esta f no um pensamento, uma opinio, uma ideia. Esta f

    comunho com Cristo, que o Senhor nos doa e por isso se torna vida, conformidade com Ele.

    Ou, por outras palavras, a f, se verdadeira, se real, torna-se amor, caridade, expressa-se na

    caridade. Uma f sem caridade, sem este fruto no seria verdadeira. Seria f morta.

    Encontramos por conseguinte na ltima catequese dois nveis: o da irrelevncia das nossas

    aes, das nossas obras para a consecuo da salvao e o da justificao mediante a f que

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    produz o fruto do Esprito. A confuso destes dois nveis causou, ao longo dos sculos, no

    poucos mal-entendidos na cristandade. Neste contexto importante que So Paulo na mesma

    Carta aos Glatas acentue, por um lado, de modo radical, a gratuidade da justificao no pelas

    obras, mas que, ao mesmo tempo, ressalte tambm a relao entre a f e a caridade, entre a f e

    as obras: "Em Jesus Cristo nem a circunciso nem a incircunciso tm valor, mas a f que atua

    pela caridade (Gl 5,6). Por conseguinte, existem, por um lado, as obras da carne que so

    prostituio, impureza, desonestidade, idolatria... (Gl 5,19-21): todas elas so obras contrrias

    f; por outro lado, a ao do Esprito Santo alimenta a vida crist suscitando amor, alegria, paz,

    magnanimidade, benevolncia, bondade, fidelidade, mansido, domnio de si (Gl 5,22): so estes

    os frutos do Esprito que brotam da f.

    No incio deste elenco de virtudes citada o gape, o amor, e na concluso o domnio de si. Na

    realidade, o Esprito, que o Amor do Pai e do Filho, efunde o seu primeiro dom, o gape, nos

    nossos coraes (cf. Rm 5,5); e o gape, o amor, para se expressar em plenitude exige o domnio

    de si. Do amor do Pai e do Filho, que nos alcana e transforma a nossa existncia em

    profundidade, falei tambm na minha primeira Encclica: Deus caritas est. Os crentes sabem que

    no amor recproco se encarna o amor de Deus e de Cristo, por meio do Esprito. Voltemos Carta

    aos Glatas. Nela So Paulo diz que, carregando os fardos uns dos outros, os crentes cumprem o

    mandamento do amor (cf. Gl 6,2). Justificados pelo dom da f em Cristo, somos chamados a viver

    no amor de Cristo pelo prximo, porque com este critrio que seremos julgados, no final da

    nossa existncia. Na realidade, Paulo repete o que o prprio Jesus tinha dito e que nos foi

    reproposto pelo Evangelho do domingo passado, na parbola do Juzo final. Na Primeira Carta

    aos Corntios, So Paulo difunde-se num famoso elogio do amor. o chamado hino caridade:

    Ainda que eu fale as lnguas dos homens e dos anjos, se no tiver caridade, sou como bronze

    que ressoa, ou como o cmbalo que tine... A caridade paciente, a caridade benigna, no

    invejosa; a caridade no se ufana, no se ensoberbece, no inconveniente, no procura o seu

    interesse... (1Cor 13,1.4.5). O amor cristo muito exigente porque brota do amor total de Cristo

    por ns: aquele amor que nos reclama, acolhe, abraa, ampara, at nos atormentar, porque

    obriga cada um a no viver mais para si mesmo, fechado no prprio egosmo, mas para Aquele

    que morreu e ressuscitou por ns (cf. 2Cor 5,15). O amor de Cristo faz-nos ser nEle aquela

    criatura nova (cf. 2Cor 5,17) que comea a fazer parte do seu Corpo mstico que a Igreja.

    Vista nesta perspectiva, a centralidade da justificao sem obras, objeto primrio da pregao de

    Paulo, no entra em contradio com a f ativa no amor; alis, exige que a nossa mesma f se

    exprima numa vida segundo o Esprito. Com frequncia viu-se uma infundada oposio entre a

    teologia de So Paulo e a de So Tiago, que na sua Carta escreve: Assim como o corpo sem a

    alma morto, assim tambm a f sem obras morta (2,26). Na realidade, enquanto Paulo est

    antes de tudo preocupado em mostrar que a f em Cristo necessria e suficiente, Tiago reala

    as relaes consequenciais entre a f e as obras (cf. Tg 2,2-4). Portanto quer para Paulo quer

    para Tiago a f ativa no amor confirma o dom gratuito da justificao em Cristo. A salvao,

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    recebida em Cristo, tem necessidade de ser constituda e testemunhada com respeito e temor.

    De fato, Deus quem suscita em vs o valor e as obras segundo o seu desgnio de amor. Fazei

    tudo sem murmurar e sem hesitar... mantendo firme a palavra de vida, dir ainda So Paulo aos

    cristos de Filipos (cf. Fl 2,12-14.16).

    Muitas vezes somos levados a cair nos mesmos mal-entendidos que caracterizaram a

    comunidade de Corinto: aqueles cristos pensavam que, tendo sido justificados gratuitamente em

    Cristo pela f, tudo lhes fosse lcito. E pensavam, e muitas vezes parece que o pensam tambm

    os cristos de hoje, que lcito criar divises na Igreja, Corpo de Cristo, celebrar a Eucaristia sem

    se preocupar com os irmos mais necessitados, aspirar aos melhores carismas sem se dar conta

    que so membros uns dos outros, e assim por diante. So desastrosas as consequncias de uma

    f que no encarna no amor, porque se reduz ao arbtrio e ao subjetivismo mais nocivo para ns e

    para os irmos. Ao contrrio, seguindo So Paulo, devemos tomar conscincia renovada do fato

    que, precisamente porque justificados em Cristo, j no pertencemos a ns mesmos, mas

    tornamo-nos templos do Esprito e por isso somos chamados a glorificar Deus no nosso corpo

    com toda a nossa existncia (cf. 1Cor 6,19). Seria desbaratar o valor inestimvel da justificao

    se, comprados a caro preo pelo sangue de Cristo, no o glorificssemos com o nosso corpo. Na

    realidade, precisamente este o nosso culto razovel e ao mesmo tempo espiritual, pelo que

    somos exortados por Paulo a oferecer o nosso corpo como sacrifcio vivo, santo e agradvel a

    Deus (Rm 12,1). Ao que se reduziria uma liturgia dirigida apenas ao Senhor, sem se tornar, ao

    mesmo tempo, servio pelos irmos, uma f que no se expressasse na caridade? E o Apstolo

    coloca com frequncia as suas comunidades face ao juzo final, por ocasio do qual todos

    havemos de comparecer perante o tribunal de Cristo, para que cada um receba o que mereceu,

    conforme o bem ou o mal que tiver feito, enquanto estava no corpo (2Cor 5,10; cf. tambm Rm

    2,16). E este pensamento do Juzo deve iluminar-nos na nossa vida de todos os dias.

    Se a tica que Paulo prope no decai em formas de moralismo e se demonstra atual para ns,

    porque, todas as vezes, recomea sempre da relao pessoal e comunitria com Cristo, para se

    imbuir na vida segundo o Esprito. Isto essencial: a tica crist no nasce de um sistema de

    mandamentos, mas consequncia da nossa amizade com Cristo. Esta amizade influencia a

    vida: se verdadeira encarna-se e realiza-se no amor ao prximo. Por isso, qualquer decadncia

    tica no se limita esfera individual, mas ao mesmo tempo desvalorizao da f pessoal e

    comunitria: dela deriva e sobre ela incide de modo determinante. Deixemo-nos, portanto,

    alcanar pela reconciliao, que Deus nos deu em Cristo, pelo amor louco de Deus por ns:

    nada e ningum jamais nos poder separar do seu amor (cf. Rm 8,39). Vivamos nesta certeza.

    esta certeza que nos d a fora para viver concretamente a f que realiza o amor.

    - Ado e Cristo: do pecado (original) liberdade (15) (3 de dezembro de 2008).

    Queridos irmos e irms!

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    Detemo-nos na catequese de hoje sobre as relaes entre Ado e Cristo, traadas por So Paulo

    na conhecida pgina da Carta aos Romanos (5,12-21), na qual ele entrega Igreja as orientaes

    essenciais da doutrina sobre o pecado original. Na realidade, j na primeira Carta aos Corntios,

    tratando da f na ressurreio, Paulo tinha introduzido o confronto entre o progenitor e Cristo:

    Assim como todos morrem em Ado, assim tambm, em Cristo, todos sero vivificados... O

    primeiro homem, Ado, foi feito alma vivente: o ltimo Ado um esprito vivificante (1Cor

    15,22.45). Com Rm 5,12-21 o confronto entre Cristo e Ado torna-se mais articulado e iluminador:

    Paulo repercorre a histria da salvao de Ado at Lei e dela at Cristo. No centro do cenrio

    no se encontra tanto Ado com as consequncias do pecado sobre a humanidade, quanto Jesus

    Cristo e a graa que, atravs dEle, foi derramada em abundncia sobre a humanidade. A

    repetio do muito mais relativo a Cristo ressalta como o dom recebido nEle supera, em grande

    medida, o pecado de Ado e as consequncias causadas sobre a humanidade, de modo que

    Paulo pode chegar concluso: Onde, porm, abundou o pecado, superabundou a graa (Rm

    5,20). Portanto, o confronto que Paulo traa entre Ado e Cristo pe em realce a inferioridade do

    primeiro homem em relao prevalncia do segundo.

    Por outro lado, precisamente para pr em ressalto o dom incomensurvel da graa, em Cristo,

    que Paulo menciona o pecado de Ado: dir-se-ia que se no tivesse sido para demonstrar a

    centralidade da graa, ele no teria demorado a tratar o pecado que, por causa de um s homem,

    entrou no mundo e, com o pecado, a morte (Rm 5,12). Por isso, se na f da Igreja maturou a

    conscincia do dogma do pecado original foi porque ele est relacionado inseparavelmente com o

    outro dogma, o da salvao e da liberdade em Cristo. A consequncia disto que nunca

    deveramos tratar o pecado de Ado e da humanidade separando-os do contexto salvfico, isto ,

    sem os incluir no horizonte da justificao em Cristo.

    Mas como homens de hoje devemos perguntar-nos: o que este pecado original? O que ensina

    So Paulo, o que ensina a Igreja? Ainda hoje se pode afirmar esta doutrina? Muitos pensam que,

    luz da histria da evoluo, j no haveria lugar para a doutrina de um primeiro pecado, que

    depois se teria difundido em toda a histria da humanidade. E, por conseguinte, tambm a

    questo da Redeno e do Redentor perderia o seu fundamento. Portanto, existe ou no o

    pecado original? Para poder responder devemos distinguir dois aspectos da doutrina sobre o

    pecado original. Existe um aspecto emprico, isto , realidade concreta, visvel, diria tangvel para

    todos. E um aspecto mistrico, relativo ao fundamento ontolgico deste fato. O dado emprico

    que existe uma contradio no nosso ser. Por um lado, cada homem sabe que deve fazer o bem e

    intimamente at o quer fazer. Mas, ao mesmo tempo, sente tambm o outro impulso para fazer o

    contrrio, para seguir o caminho do egosmo, da violncia, para fazer s o que lhe apraz, mesmo

    sabendo que assim age contra o bem, contra Deus e contra o prximo. So Paulo na sua Carta

    aos Romanos expressou esta contradio no nosso ser assim: Quero o bem, que est ao meu

    alcance, mas realiz-lo no. Efetivamente, o bem que quero, no o fao, mas o mal que no quero

    que pratico (7,18-19). Esta contradio interior do nosso ser no uma teoria. Cada um de ns

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    a vive todos os dias. E sobretudo vemos sempre em nossa volta a prevalncia desta segunda

    vontade. suficiente pensar nas notcias quotidianas sobre injustias, violncia, mentira, luxria.

    Vemo-lo todos os dias: uma realidade.

    Como consequncia deste poder do mal nas nossas almas, desenvolveu-se na histria um rio

    impuro, que envenena a geografia da histria humana. O grande pensador francs Blaise Pascal

    falou de uma segunda natureza, que se sobrepe nossa natureza originria, boa. Esta

    segunda natureza faz sobressair o mal como normal para o homem. Assim tambm a expresso

    habitual: Isto humano pode querer dizer: este homem bom, realmente age como deveria agir

    um homem. Mas isto humano tambm pode significar falsidade: o mal normal, humano. O

    mal parece ter-se tornado uma segunda natureza. Esta contradio do ser humano, da nossa

    histria deve provocar, e provoca tambm hoje, o desejo de redeno. E, na realidade, o desejo

    que o mundo seja mudado e a promessa que ser criado um mundo de justia, de paz, de bem,

    est presente em toda a parte: na poltica, por exemplo, todos falam desta necessidade de mudar

    o mundo, de criar um mundo mais justo. precisamente esta a expresso do desejo que haja

    uma libertao da contradio que experimentamos em ns prprios.

    Por conseguinte, o fato do poder do mal no corao humano e na histria humana inegvel. A

    questo : como se explica este mal? Na histria do pensamento, prescindindo da f crist, existe

    um modelo principal de explicao, com diversas variaes. Este modelo diz: o prprio ser

    contraditrio, tem em si quer o bem quer o mal. Na antiguidade esta ideia inclua a opinio que

    existiam dois princpios igualmente originrios: um princpio bom e um princpio mau. Este

    dualismo seria insupervel; os dois princpios esto no mesmo nvel, por isso haver sempre,

    desde a origem do ser, esta contradio. A contradio do nosso ser, portanto, refletiria apenas,

    por assim dizer, a contrariedade dos dois princpios divinos. Na verso evolucionista, ateia, do

    mundo volta de maneira nova a mesma viso. Mesmo se, nesta concepo, a viso do ser

    monista, supe-se que o ser como tal desde o incio tenha em si o mal e o bem. O prprio ser no

    simplesmente bom, mas aberto ao bem e ao mal. O mal igualmente originrio como o bem. E

    a histria humana desenvolveria apenas o modelo j presente em toda a evoluo precedente.

    Aquilo a que os cristos chamam pecado original na realidade seria apenas o carter misto do ser,

    uma mistura de bem e de mal que, segundo esta teoria, pertenceria prpria capacidade do ser.

    No fundo, trata-se de uma viso desesperada: se assim , o mal invencvel. No final conta

    unicamente o prprio interesse. E cada progresso deveria ser necessariamente pago com um rio

    de mal e quem quisesse servir o progresso deveria aceitar pagar este preo. No fundo, a poltica

    delineada precisamente sobre estas premissas: e vemos os seus efeitos. Este pensamento

    moderno pode, no final, criar tristeza e cinismo.

    E assim perguntamos de novo: o que diz a f, testemunhada por So Paulo? Como primeiro

    ponto, ela confirma o fato da competio entre as duas naturezas, o fato deste mal cuja sombra

    pesa sobre toda a criao. Ouvimos o captulo 7 da Carta aos Romanos, poderamos acrescentar

    o captulo 8. O mal simplesmente existe. Como explicao, em contraste com os dualismos e os

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    monismos que consideramos brevemente e que achamos desoladores, a f diz-nos: existem dois

    mistrios de luz e um mistrio de trevas, que contudo est envolvido pelos mistrios de luz. O

    primeiro mistrio de luz este: a f diz-nos que no existem dois princpios, um bom e um mau,

    mas h um s princpio, o Deus criador, e este princpio bom, s bom, sem sombra de mal. E

    por isso tambm o ser no uma mistura de bem e mal; o ser como tal bom e por isso bom

    ser, bom viver. esta a boa nova da f: h apenas uma fonte boa, o Criador. E por isso viver

    um bem, bom ser um homem, uma mulher, a vida boa. Depois segue-se um mistrio de

    escurido, de trevas. O mal no provm da fonte do prprio ser, no tem a mesma origem. O mal

    vem de uma liberdade criada, de uma liberdade abusada.

    Como foi possvel, como aconteceu? Isto permanece obscuro. O mal no lgico. S Deus e o

    bem so lgicos, so luz. O mal permanece misterioso. Apresentamo-lo com grandes imagens,

    como faz o captulo 3 do Gnesis, com aquela viso das duas rvores, da serpente, do homem

    pecador. Uma grande imagem que nos faz adivinhar, mas no pode explicar quanto em si

    mesmo ilgico. Podemos adivinhar, no explicar; nem sequer o podemos contar como um fato ao

    lado do outro, porque uma realidade mais profunda. Permanece um mistrio de escurido, de

    trevas. Mas acrescenta-se imediatamente um mistrio de luz. O mal vem de uma fonte

    subordinada. Deus com a sua luz mais forte. E por isso o mal pode ser superado. Portanto a

    criatura, o homem, curvel. As vises dualistas, tambm o monismo do evolucionismo, no

    podem dizer que o homem curvel; mas se o mal s vem de uma fonte subordinada, uma

    verdade que o homem curvel. E o livro da Sabedoria diz: So salutares as criaturas do mundo

    (1,14 vulg). E finalmente, ltimo aspecto, o homem no s curvel, de fato est curado. Deus

    introduziu a cura. Entrou pessoalmente na histria. Ops fonte permanente do mal uma fonte de

    bem puro. Cristo crucificado e ressuscitado, novo Ado, ope ao rio impuro do mal um rio de luz.

    E este rio est presente na histria: vejamos os santos, os grandes santos mas tambm os santos

    humildes, os simples fiis. Vemos que o rio de luz que provm de Cristo est presente, forte.

    Irmos e irms, tempo de Advento. Na linguagem da Igreja a palavra Advento tem dois

    significados: presena e expectativa. Presena: a luz est presente, Cristo o novo Ado, est

    conosco e no meio de ns. J resplandece a luz e devemos abrir os olhos do corao para ver a

    luz e para nos introduzirmos no rio da luz. Estar sobretudo, gratos pelo fato de que o prprio Deus

    entrou na histria como nova fonte de bem. Mas Advento significa tambm expectativa. A noite

    escura do mal ainda forte. E por isso rezemos no Advento com o antigo povo de Deus: Rorate

    caeli desuper. E rezemos com insistncia: vem Jesus, d fora luz e ao bem; vem onde

    dominam a mentira, a ignorncia de Deus, a violncia, a injustia, vem, Senhor Jesus, d fora ao

    bem no mundo e ajuda-nos a ser portadores da tua luz, artfices da paz, testemunhas da verdade.

    Vem Senhor Jesus!