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A escravido nas experincias constitucionais ibricas,
1810-1824.(*)
Mrcia Regina Berbel
Rafael de Bivar Marquese Departamento de Histria, FFLCH/USP
Seminrio Internacional Brasil: de um Imprio a outro (1750-1850)
Anfiteatro do Departamento de Histria USP 05 a 09 de setembro de 2005
* Verso provisria para discusso. Pede-se no citar sem a expressa autorizao dos autores.
2
Era das Revolues e experincias constitucionais
Alm da desagregao dos Imprios coloniais na Amrica, a Era das Revolues
Atlnticas trouxe um profundo questionamento de suas respectivas ordens escravistas.
Entre as dcadas de 1770 e 1840, a estreita ligao entre colonialismo e escravido que
estivera na base da construo dos sistemas escravistas modernos foi quebrada. Tanto as
relaes coloniais como as relaes escravistas entraram em crise, que, no raro,
manifestou-se em experincias constitucionais nas quais se evidenciaram conflitos de
diversa natureza, envolvendo metrpoles, colnias, provncias e estados. A escravido foi
um dos assuntos cruciais debatidos nessas instncias. As respostas fornecidas pelos atores
polticos nessas ocasies, por sua vez, foram decisivas para a determinao no apenas dos
diferentes arranjos polticos adotados em cada regio, mas, sobretudo, do porvir da
escravido negra.1
Um primeiro exemplo disso se encontra na independncia dos Estados Unidos.
Ainda no curso do conflito militar com a Inglaterra, foram reunidas assemblias
constituintes estaduais nas quais se discutiu o status da escravido no mbito de cada
unidade. No entanto, o grande debate ocorreu no plano federal. Durante a elaborao da
Constituio nacional, entre maro e setembro de 1787, o tema polarizou de tal forma os
delegados estaduais que, por um momento, pareceu que a questo da escravido levaria
quebra da conveno. A polmica prosseguiu nos meses seguintes, quando os diversos
estados da federao passaram pelo processo de ratificao da carta constitucional. O
debate girou fundamentalmente em torno de dois pontos: em primeiro lugar, a proibio do
Congresso Federal para tratar da questo do trfico negreiro transatlntico antes de 1808,
liberando os estados para legislarem vontade sobre a questo; segundo, a contagem ou
no dos escravos para fins de representao poltica e de taxao. O compromisso
finalmente adotado com a ratificao da Constituio Federal por todos os estados da unio
1 Para o problema da escravido na era das revolues, ver, alm do clssico de David Brion Davis, The Problem of Slavery in the Age of Revolution, 1770-1823. (1a. ed: 1975) New York: Oxford University Press, 1999, o trabalho de sntese de Robin Blackburn, The Overthrow of Colonial Slavery, 1776-1848. Londres: Verso, 1988. Ver tambm as sugestivas consideraes de Dale Tomich, Through the Prism of Slavery. Labor, Capital, and World Economy. Boulder CO: Rowman & Littlefield, 2004, pp.56-71.
3
acabou por sancionar integralmente a escravido negra, fornecendo o quadro institucional
que garantiu a expanso posterior do escravismo pelo territrio norte-americano.2
Um segundo exemplo de debate parlamentar sobre a escravido negra no contexto
da Era das Revolues deriva da campanha antiescravista na Inglaterra. O coro crescente
das vozes que se levantaram contra a escravido atlntica no quarto final do sculo XVIII
se converteu, na Inglaterra da dcada de 1780, em movimento poltico antiescravista. Em
1783, dentro do novo quadro aberto pela independncia dos Estados Unidos, os quacres da
Filadlfia e de Londres encaminharam respectivamente ao Congresso Continental e ao
Parlamento londrino peties para acabar com o trfico negreiro transatlntico. Em 1787,
ocorreu a virada decisiva no movimento antiescravista ingls, com a fundao da Sociedade
pela Abolio do Trfico de Escravos. Contando agora com William Wilberforce como
porta-voz parlamentar, a Sociedade deu incio nesse ano primeira campanha destinada a
acabar com o trfico negreiro, empregando como instrumento de presso sobre o
Parlamento peties assinadas por grandes massas3.
O foco da ao antiescravista inglesa, portanto, incidiu diretamente sobre a ao
parlamentar. A resposta dos senhores de escravos antilhanos operou no mesmo campo. O
lobby dos planters das ndias Ocidentais, que j tinha desempenhado papel de relevo na
crise imperial que culminou com a independncia dos Estados Unidos, rearticulou-se a
partir da dcada de 1790 para defender a instituio do cativeiro. importante ressaltar
que, at a segunda dcada do sculo XIX, todas essas discusses no Parlamento ingls
versaram exclusivamente sobre o trfico negreiro transatlntico. Em nenhum momento o
movimento antiescravista ou mesmo o lobby das ndias Ocidentais colocaram em debate o
estatuto colonial das ilhas caribenhas. A rigor, os proprietrios antilhanos que tinham
assento no Parlamento no representavam as colnias onde tinham investimentos, pois seu
acesso casa se dava pela compra de burgos podres no prprio Reino Unido4.
2 Sobre o assunto, ver Davis, The Problem of Slavery in the Age of Revolution, pp.104-5, 122-31; Blackburn, The Overthrow of Colonial Slavery, pp.122-6; Winthrop Jordan, White over Black. American Attitudes Toward the Negro, 1550-1812, Baltimore, Penguin, 1969, pp.321-5; Kenneth Morgan, Slavery and the Debate over Ratification of the United States Constitution. In: Slavery and Abolition. 22 (3): 40-65, December 2001. A citao foi retirada da p.40 do ltimo artigo. 3 Cf. Davis, The Problem of Slavery in the Age of Revolution, pp.33-4; Seymour Drescher, Capitalism and Antislavery. British Mobilization in Comparative Perspective. New York: Oxford University Press, 1987, pp.59-67; Blackburn, The Overthrow of Colonial Slavery, pp.137-46. 4 Sobre o lobby das ndias Ocidentais, ver, alm dos trabalhos citados de David Brion Davis (pp. 255-284) e Robin Blackburn (cap.4) nas notas anteriores, o trabalho clssico de Eric Williams, Capitalismo e escravido
4
Finalmente, o terceiro exemplo de experincia parlamentar em que se discutiu o
problema da escravido o da Frana, que, nesse aspecto, trouxe novidades profundas,
dentre as quais a de ter sido a primeira a dar lugar a representantes ultramarinos. Afora a
polmica sobre a abolio do trfico de escravos, j presente na experincia constitucional
norte-americana e no Parlamento ingls, a Assemblia Nacional Constituinte da Frana
posteriormente, Assemblia Nacional presenciou, entre 1789 e 1794, cidos debates
acerca do autogoverno para as possesses ultramarinas, dos direitos civis e polticos de sua
populao livre de cor e, no limite, da prpria escravido. Como se sabe, essas discusses
estiveram no centro dos episdios que levaram ao incio da revoluo de So Domingos,
que, em menos de quinze anos, acabou com a escravido e o domnio francs sobre a
colnia mais prspra do Novo Mundo no sculo XVIII5.
Essas trs experincias parlamentares foram acompanhadas de perto no universo
ibrico. No contexto da crise do Antigo Regime e do sistema colonial na Espanha e em
Portugal, elas serviram de baliza para a ao dos atores polticos envolvidos em seus
respectivos processos constitucionais. Nesta comunicao, examinaremos justamente como
isso se deu. Nosso objetivo, assim, analisar os argumentos e as estratgias que
sustentaram o projeto poltico escravista dos representantes cubanos e brasileiros nas Cortes
de Cdis (1810-1814), de Madri (1820-1823), de Lisboa (1820-1822) e na Assemblia
Constituinte do Rio de Janeiro (1823).
Em relao escravido, dois temas centrais foram tratados nessas ocasies: o
trfico negreiro transatlntico e os direitos de cidadania para os libertos e demais
descendentes de africanos. Para o primeiro ponto, a soluo encontrada pelos deputados de
Cuba e do Brasil foi a mesma, qual seja, silenciar o debate no mbito constitucional e jog-
lo para o campo diplomtico. A respeito do segundo ponto, no entanto, as sadas foram
distintas. Enquanto os deputados cubanos concordaram com a restrio dos direitos
polticos de libertos e descendentes de africanos inscrita na Constituio de Cdis (1812),
(1 ed: 1944; trad.port.) Rio de Janeiro: Americana, 1975, pp.95-108, e o mais recente de Andrew J. OShaughnessy, An Empire Divided. The American Revolution and the British Caribbean. Philadeplhia: University of Pennsylvania Press, 2000, em especial seu primeiro captulo. 5 A literatura sobre as relaes entre a Revoluo Francesa e a Revoluo de So Domingos bastante extensa. Para o tema tratado aqui, ver, alm do artigo de David Geggus, Racial Equality, Slavery, and Colonial Secession during the Constituent Assembly. In: The American Historical Review, 94 (5): 1290-1308, December 1989, o livro recente de Laurent Dubois, Avengers of the New World. The Story of the Haitian Revolution. Cambridge, Ma: Belknap Press/Harvard University Press, 2004, pp.60-90.
5
os deputados do Brasil defenderam em Lisboa e no Rio de Janeiro a concesso desses
direitos, afinal reconhecida pela Constituio Poltica do Imprio do Brasil (1824).
A comunicao procura explicar a aproximao e o distanciamento entre essas
solues levando em conta a inscrio de Cuba no quadro do Imprio espanhol e o peso do
conjunto das capitanias do Brasil no quadro do Imprio portugus. As consideraes finais
indicam de que modo a plataforma advogada pelos representantes cubanos e brasileiros
nessas experincias constitucionais acabou sendo decisiva para a configurao do devir
escravista da colnia de Cuba e do Imprio do Brasil ao longo do sculo XIX.
Cdis e Madri
No momento em que as Cortes espanholas reuniram-se em Cdis, no ano de 1810,
as questes referentes ao trfico negreiro e prpria escravido haviam se transformado em
pea importante da poltica internacional. A campanha pela abolio do trfico tornou-se
elemento fundamental utilizado pela Gr Bretanha contra a poltica de Napoleo Bonaparte.
Aps o colapso da Paz de Amiens, acordada entre as duas potncias nos anos de 1803-
1804, o tema voltou a ganhar relevo no Parlamento ingls, onde estivera em compasso de
espera desde meados da dcada anterior. Em 1807, poucas semanas depois da deciso do
Congresso federal norte-americano encerrar o comrcio negreiro transatlntico para o pas,
o Parlamento britnico aprovou a abolio do trfico de escravos entre a frica e as
possesses inglesas. At o ano de 1814, quando Bonaparte foi finalmente derrotado na
Europa, o assunto j integraria as prioridades da diplomacia britnica. Internamente, o
combate escravido unia a opinio pblica e, externamente, aps a independncia do
Haiti, a campanha pelo fim do trfico visava o esfacelamento do Imprio francs6.
A reunio das Cortes de Cdis em 1810 ocorreu nesse cenrio: a maior parte do
territrio espanhol estava tomada pelos exrcitos napolenicos, que haviam forado a
deposio de dois reis e mantinham um deles, Fernando VII, no cativeiro. A soberania da
nao espanhola, reivindicada pelas Cortes, era ento associada fidelidade ao rei deposto
6 Cf. Davis, The Problem of Slavery in the Age of Revolution, p.285-342; Blackburn, The Overthrow of Colonial Slavery, cap.VIII.
6
e tornado prisioneiro pelos exrcitos franceses. Nesse contexto, a aliana com a Inglaterra
era fundamental para manter a resistncia ao invasor e concluir os trabalhos constituintes7.
A questo foi colocada nas Cortes espanholas durante a sesso de 25 de maro de
1811, por Jos Miguel Guridi y Alcocer: o deputado pela Nova Espanha apresentou oito
proposies que previam a abolio imediata do trfico negreiro transatlntico, a liberdade
das futuras crianas nascidas de ventre escravo, o direito legal do cativo alforria e
medidas legislativas para garantir o bom tratamento pelos senhores8. O projeto se inspirava
claramente nas leis antiescravistas adotadas pelos estados do norte dos Estados Unidos
desde a independncia9. Em Cdis, a proposta de Alcocer causou surpresa e pnico; a
discusso acabou sendo postergada e o texto enviado para a Comisso de Constituio.
A secretaria das Cortes se esforou para no tornar pblica essa discusso at o dia
2 de abril. Nesta data, o deputado liberal de Espanha, Augustn Arguelles, apresentou um
texto mais moderado, que se considerou passvel de publicao: o projeto se limitava
abolio imediata do trfico de escravos africanos para as provncias americanas e a
extino da tortura em todo o Imprio espanhol. O liberal espanhol, apoiado pelo
americano eleito em Quito, Mexia Lequerica, conseguiu atrair as atenes do plenrio para
essa nova proposio, que foi motivo de acirrados debates10.
A proposta de extino do trfico feita por Arguelles previa um encaminhamento
bastante significativo: o Conselho de Regncia espanhol deveria dirigir-se ao governo
britnico e revelar as intenes antiescravistas das Cortes para que possa conseguir em
toda a extenso o grande objeto que se props a nao inglesa no clebre bill da abolio
do comrcio de escravos11. O deputado referia-se ao decreto britnico de 1807 e aos
planos de estend-lo para os demais pases europeus e para alm mar. Uma deciso das
Cortes nos termos propostos pelo deputado expressaria, ento, o total alinhamento da
7 Os problemas relativos ocupao da Espanha pelos exrcitos napolenicos e as dificuldades resultantes da guerra so retomados por todos os autores que recentemente se ocuparam da anlise das Cortes de Cdis. Ressaltamos, aqui, o clssico traballho de Miguel Artola, Espanha de Fernando VII , Madrid : Espasa, 1999. 8 Cf. Documentos de que hasta ahora se compone el expediente que principiaron las Cortes extraordinarias sobre el trfico y esclavitud de los negros (1 ed: 1814). In: Francisco de Arango y Parreo. Obras. Havana: Ministerio de Educacin, 1952, 2v, t.II, pp.224-5. 9 Cf. Davis, The Problem of Slavery in the Age of Revolution, pp.23-31; Blackburn, The Overthrow of Colonial Slavery, 1776-1848, pp.117-26. 10 Dirio das Sesses das Cortes, de abril de 1811, CD Rom, Congreso de los Diputados, Srie Histrica. Reproduo da 2. edio, Madri, imprensa J.A.Garcia, 1870, 9 volumes. 11 Dirio das Sesses das Cortes, 2 abril de 1811, apud Arango, op.cit, p.226.
7
Espanha com esses objetivos gerais e garantiria o indispensvel apoio ingls.
Paralelamente, o exrcito britnico daria sustentao ao embate contra as tropas
napolenicas na Galcia e nas Astrias e, em sesses secretas das Cortes, negociava-se um
tratado comercial com os ingleses12.
O alinhamento de Arguelles revelava-se no restante da argumentao: no se
tratava, naquele momento, de extinguir a escravido. As propriedades humanas dos
plantadores estariam asseguradas. No adiantava qualquer medida abolicionista, pois
reconhecia que isto afetaria a contribuio financeira oferecida por regies espanholas leais
na Amrica, notadamente Peru e Cuba. Mas, a extino do trfico permitiria, assim como
ocorrera no Imprio britnico, uma gradativa e obrigatria melhora nas tcnicas de cultivo
dessas regies escravistas13.
No entanto, os argumentos no foram convincentes nessas mesmas regies. J na
sesso em que fora apresentado o projeto de Arguelles, o deputado cubano Andres Jauregui
alertou para o risco que haveria em se publicar o contedo desse debates no Dirio das
Cortes. Segundo o deputado, a ilha de Cuba, em especial Havana, a quem represento,
passava por um perodo de profunda tranquilidade, enquanto movimentos demasiados
funestos e conhecidos de V.M. sacudiam uma grande parte da Amrica uma referncia
direta revolta popular de Morelos na Nova Espanha. Em uma pergunda retrica
ameaadora, indagou Jauregui: nos exporemos a alterar a paz interior de uma das mais
preciosas pores da Espanha ultramarina? Ainda em tom de intimidao, concluiu:
lembre-se V.M. da imprudente conduta da Assemblia Nacional da Frana, e dos tristes e
fatais resultados que produziu, ainda mais de seus exagerados princpios, nenhuma
reflexo ... digo mais, a precipitao e inoportunidade com que tocou e conduziu um
negcio semelhante.14 A experincia parlamentar francesa, assim, convertia-se na boca de
Jauregui em pea de defesa do trfico negreiro transatlntico e da ordem escravista cubana.
Em uma clara indicao do concerto que havia entre o deputado cubano em Cdis e
as autoridades metropolitanas em Cuba, discutiu-se em sesso secreta das Cortes, no dia 7
de julho, uma carta do capito general de Cuba, marqus de Someruelos, na qual informava
12 Cf Manuel Chust. La question nacional americana em las Cortes de Cdiz. Valncia: Centro Francisco Toms y Valiente, 1999, pp.79-114. 13 Cf. Documentos de que hasta ahora se compone el expediente que principiaron las Cortes extraordinarias sobre el trfico y esclavitud de los negros, pp.229-30. 14 Idem, pp.230-1.
8
que a divulgao das proposies de Arguelles, feitas em 2 de abril e publicadas nos
Dirios das Cortes, haviam provocado enorme inquietao na ilha. Panfletos e jornais
anunciavam o risco de uma revoluo como a de So Domingos. Someruelos pedia, ento,
que a discusso sobre o tema no mais fosse veiculada publicamente. Sutilmente, fazia
lembrar que os fundos obtidos em Cuba por meio de impostos eram indispensveis para
ganhar a guerra contra os franceses. Ainda que baseados na produo escravista, tais rendas
eram parte decisiva na sustentao dos exrcitos espanhis e, por isso, mais importantes
que o apoio diplomtico ingls15.
Uma resposta mais longa aos projetos de Alccer e Arguelles veio luz em 20 de
julho de 1811, com a declarao pblica conjunta do Ayuntamiento, do Real Consulado e
da Sociedade Econmica dos Amigos do Pas de Havana, redigida pelo eminente porta-voz
dos proprietrios cubanos, Francisco de Arango y Parreo. O documento expressava uma
leitura bastante aguda de seu autor a respeito da poltica internacional da escravido e das
experincias constitucionais e parlamentares da Inglaterra, dos Estados Unidos e da Frana,
sintetizando ainda grande parte do repertrio pr-escravista que vinha sendo elaborado no
espao atlntico desde fins do sculo XVIII16. Nele, Arango afirmou que as Cortes no
tinham legitimidade para tratar do assunto, e, para comprovar o ponto, lembrou os
procedimentos que haviam sido seguidos nos Estados Unidos e na Inglaterra, onde a
questo fora discutida exaustivamente por duas dcadas com participao ativa dos
interesses escravistas. Nos prprios acordos diplomticos recm-assinados entre Inglaterra
e Portugal, a Corte do Brasil no obstante ser hoje uma provncia inglesa no fez
outra coisa sobre o assunto do que um oferecimento vago e indeterminado de abolir este
comrcio. J nas Cortes de Cdis, afora o fato de as deputaes das provncias da Amrica
estarem sub-representadas, Argelles props o fim imediato do trfico. Em uma seqncia
15 Cf. Marie Laure Rieu-Millan. Los diputados americanos em las Cortes de Cadiz. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, 1990, p.171. A carta de Someruelos est reproduzida em Jos Antonio Saco. Historia de la Esclavitud desde los tiempos mas remotos hasta nuestros dias. (2 ed). Havana: Editoral Alfa, 1944, 6v., v.5, p.63. 16 Para comprovar seu conhecimento a respeito do quadro atlntico, Arango anexou sua representao diversos textos que tratavam dessas experincias, como um documento sobre a proibio de importar escravos nos Estados Unidos da Amrica; o artigo VII da Constituio do Estado de Kentucky; um informe dos lordes comissrios do conselho de Sua Majestade britnica sobre comrcio e colnias estrangeiras; o artigo X do Tratado de Amizade e Aliana entre o Rei da Inglaterra e o Regente de Portugal, firmado no Rio de Janeiro em 19 de fevereiro de 1810. Ver Documentos de que hasta ahora se compone el expediente que principiaron las Cortes extraordinarias sobre el trfico y esclavitud de los negros, pp.188-196.
9
de perguntas retricas, Arango indagou se as Cortes poderiam interferir no sagrado da
propriedade, adquirida em conformidade das leis da propriedade, (...), cuja inviolabilidade
um dos grandes objetos de toda associao poltica, e um dos primeiros captulos de toda
Constituio? Podem tocar-se to espinhosos, to respeitveis pontos quando com
especialidade se dirigem aos maiores interesses de todos os habitantes de vrias
provncias; de vrias provncias submissas entre tantas que no o so, e que esto no
catlogo das que no completaram sua representao no Congresso?
Ao lado do primado da propriedade e do tpico da importncia econmica e da
fidelidade poltica de Cuba Espanha, a defesa do trfico apresentada por Arango em 1811
tambm recorreu ao espectro de So Domingos. O autor afirmou que os projetos de Alccer
e Argelles ameaavam os interesses fundamentais da economia cubana ao acenar para os
escravos a possibilidade de uma libertao prxima: na estupidez do negro e solido de
nossas haciendas, escreveu, est a subordinao mais precisa e mais temvel. Se o
Sr.Alcocer houvesse visto, por seus olhos, a fermentao que a princpio produziu o
anncio da felicidade que nos procuraria, haveria temido, como temeram os judiciosos,
que aqui se comearia a acender a fogueira em que ardeu So Domingos, se no com
maior violncia, decerto com maior culpa.17
Diante das presses dos representantes escravistas cubanos, que mobilizaram
habilmente o tema da lealdade cubana ao Imprio e o espectro de So Domingos para frear
o impulso antiescravista presente em Cdis, os projetos de Alccer e Argelles foram
retirados de pauta ainda em 1811. Com isso, a estratgia de silenciar o debate sobre o
trfico negreiro transatlntico e a escravido no mbito constitucional e jog-lo para o
campo diplomtico passou com sucesso por seu primeiro teste no universo poltico ibrico.
A vitria cubana sobre as posies defendidas pelos liberais peninsulares e
americanos eleitos pela Nova Espanha esteve relacionada a outro ponto fundamental dos
debates realizados em Cdis: as definies constitucionais referentes cidadania.
Sintetizadas nos artigos 22 e 29 da Constituio, elas resultaram de uma longa discusso
ocorrida entre os dias 4 e 14 de setembro de 1811 e da derrota da maior parte dos
representantes americanos presentes em Cdis. Os artigos se remetiam populao de
17 Francisco de Arango y Parreo. Representacin de la Ciudad de La Habana a las Cortes Espaolas (1811). In: Obras., t.II, p.182.
10
origem africana do Novo Mundo e adotavam critrios bastante rgidos para a concesso do
ttulo de cidados aos habitantes marcados por essa herana, que praticamente os excluam
da cidadania e do censo populacional18. Ressalte-se, aqui, que a aprovao dessas
definies ocorreu alguns meses aps o encerramento das discusses sobre o trfico, e,
contra todos os deputados da Amrica, contou com o apoio do cubano Jauregui.
O tema esteve presente desde a primeira convocao para as Cortes e foi um dos
mais importantes pontos de divergncia entre espanhis europeus e americanos. As
decises referentes cidadania e s bases para a eleio de deputados se reportavam a uma
questo de relevo: o nmero de representantes americanos na reunio constituinte. O
problema existia desde 1809, quando a Junta Central, visando a integrao da Amrica na
resistncia a Napoleo, convocou um representante por Vice-Reino para compor o governo
central, totalizando o nmero de 9 americanos reunidos a 36 europeus. As manifestaes de
insatisfao juntaram-se, ento, s reivindicaes pela convocao de uma assemblia
constituinte19. Dotadas, assim, de um novo contedo, as Cortes foram convocadas para
Cdis, a partir de 1810, e a preparao contou com o envolvimento dos americanos. No
entanto, o primeiro decreto para as eleies na Amrica e sia, emitido em 14 de fevereiro
de 1810, previa a integrao de 28 suplentes em uma assemblia com mais de cem
europeus. Nesse momento, os protestos em Caracas e Buenos Aires iniciaram os cabildos
abertos e anunciaram o rompimento dos laos de algumas regies da Amrica com as
Cortes de Cdis20. Como conseqncia, em 20 de agosto de 1810, um novo decreto trazia
mudanas importantes: os ndios e seus filhos com espanhis (vizinhos e domiciliados em
18 Artigo 22: aos espanhis que por qualquer linha so havidos ou reputados por oriundos da frica, lhes fica aberta a porta da virtude e do merecimento para ser cidados; consequentemente as Cortes concedero carta de cidado aos que fizerem servios qualificados Ptria, ou aos que se distinguirem por seu talento aplicao e conduta, com a condio de que sejam filhos de legtimo matrimnio de pais livres e que estejam casados com mulher livre e domiciliados nos domnios das Hespanhas, e que exeram alguma profisso, ofcio ou indstria til com um capital prprio. TITULO III das Cortes Captulo I De modo de formar as Cortes, artigo 27: as cortes so a unio de todos os deputados que representam a nao, nomeados pelos cidados na forma que dir; artigo 28: a base para a representao nacional a mesma em ambos os hemisfrios Artigo 29: Esta base a povoao composta dos naturais que por ambas as linhas sejam originrias dos domnios espanhis e daqueles que tenham obtido das Cortes carta de cidado, como tambm dos compreendidos no artigo 21. In: Constituio de Hespanha, Lisboa, Impresso Rgia, 1820. 19 Os problemas referentes a essa primeira incluso americana so tratados por GUERRA, Franois-Xavier. Dos anos cruciales (1808-1809). In: Modernidad e independencias. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1997, p. 115-148. 20 Cf. Timothy Anna. A Independncia do Mxico e da Amrica Central; David Bushnell. A Independncia da Amrica do Sul Espanhola. In: Bethell, L. (org.) Histria da Amrica Latina. Vol.III: Da Independncia at 1870. (trad.port.) So Paulo: EDUSP-Braslia: Fundao Alexandre de Gusmo, 2001.
11
territrio hispnico) eram considerados integrantes da nao e, enquanto as eleies
ocorriam na Amrica, 30 suplentes tomariam parte das sesses das Cortes, reunidas a partir
de 23 de setembro. Integrava-se, assim, boa parte das chamadas castas hispano-americanas,
entendidas como parte da populao mestia livre residente no continente. Nessa condio,
foram tratadas nas primeiras sesses da Assemblia e no decreto de 15 de outubro, onde se
procurou estabelecer a igualdade das representaes europia e americana na composio
da nao espanhola.
Contudo, j em dezembro de 1810, os americanos eleitos em suas provncias
manifestaram a divergncia quanto aos critrios institudos. As insatisfaes, registradas em
um Manifesto de unidade americana apresentado em onze itens ao Congresso no dia 16 de
dezembro de 1810, evidenciavam outras preocupaes21. A populao americana, estimada
em 15 ou 16 milhes, era composta por 6 milhes de ndios e 6 milhes de mestios livres,
integrantes das castas. Entre estes ltimos confundiam-se aqueles cuja origem era
estritamente indgena e espanhola com aqueles cujos antepassados, de origem africana,
haviam sido escravos. Representantes da Nova Espanha, Guatemala e Venezuela foram
incisivos em alertar sobre os perigos implcitos na excluso desses homens do direito de
cidadania. Nessas regies, afirmavam, tratava-se de dividir um nico setor indiferenciado
da populao, sempre integrado em servios teis Ptria, e transform-los em poderosos
inimigos internos nesses difceis tempos de solidificao da unidade nacional. Derrotados
nesse momento, os americanos tinham esperanas de integrar esses princpios ao projeto de
Constituio, sob responsabilidade de uma comisso composta por europeus e americanos,
entre eles o representante de Cuba. O texto foi exposto e discutido por itens somente a
partir de 25 de agosto de 1811, quando o debate foi reiniciado em tons dramticos. Antes
disso, a oposio entre americanos e europeus ficou diversas vezes patente, evidenciando a
falta de acordo no interior da comisso destinada a preparar o projeto de Constituio.
Assim, interessante notar que a proposta do liberal Arguelles sobre a extino do
trfico tenha sido apresentada no incio do ms de abril de 1811, enquanto se elaborava o
projeto constitucional. A discusso sobre a incluso das castas no processo eleitoral havia
sido interrompida em 7 de fevereiro e, desde 12 de maro, discutia-se a abolio de tributos
21 Texto reproduzido por Chust, Manuel. La cuestion nacional americana en las Cortes de Cadiz. Parte 1 La cuestion nacional americana: Ideas y accion, op.cit. p. 87
12
recolhidos dos ndios, agora transformados em cidados. O liberal espanhol moderava a
proposio feita em 25 de maro pelo mexicano Guridi y Alcocer, um dos mais importantes
defensores dos direitos de cidadania para as castas. Para este ltimo, a extino do trfico,
associada liberdade para os filhos de escravos, visava a ampliao das bases para a
cidadania. Derrotado momentaneamente, Alcocer ainda lutava pelos termos do projeto de
Constituio, apresentando uma proposta que, em sua radicalidade, era contrria aos
interesses das regies escravistas do Imprio, notadamente Cuba. Talvez esperasse um
acordo: com os espanhis, na defesa do fim do trfico, ou com os cubanos, at ento
omissos quanto incluso das castas. No caso de Arguelles, porm, a importante questo
internacional do trfico no abalaria as definies j adotadas sobre a participao dos
americanos: o liberal espanhol jamais admitiu a incluso dos oriundos da frica nos
clculos para a representao ou entre os cidados da monarquia22.
A concepo sobre cidadania expressa pelos americanos, Alcocer entre eles,
baseava-se na noo de vizinhana. O projeto de Constituio anunciava que a nao
espanhola era a reunio de todos os espanhis de ambos os hemisfrios. Alcocer
apresentou, ento, uma outra formulao: a nao seria a coleo de todos os vizinhos da
Pennsula e demais territrios da monarquia unidos em um governo e sujeitos autoridade
soberana. O termo coleo (ou aglomerado) visava acentuar as diversas vontades
expressas autonomamente em um Imprio que ele entendia como hispnico e global. Nessa
concepo, as vontades prprias e os direitos da residncia (vizinhana) primariam sobre os
do nascimento. Os laos resultantes das relaes entre vizinhos incluam as castas e, em
ltima instncia, os nascidos em qualquer outra parte do mundo, desde que optassem pelo
domiclio espanhol. Assim, a proposta possibilitaria o aumento do nmero de
representantes americanos nas Cortes. Mas, ia alm disso. Tratava-se de uma definio que
visava compatibilizar todas as diversidades do Imprio, incluindo africanos e ndios, e
fortalecer os laos interiores a cada unidade provincial. Nessa concepo, a integrao das
castas aparecia como elemento indispensvel para a unidade e para a autonomia de cada
uma dessas partes diversas. A proposta completava-se com a formulao de um modelo
federal, baseado na mais ampla autonomia das provncias23.
22 Dirio das Sesses das Cortes, sesses entre 4 e 14 de setembro de 1811, op.cit. 23 Manuel Chust. Nacin y federacin: cuestiones del doceaismo hispano. In: Federalismo y cuestion federal en Espaa. Valncia: Universitat Jaume I, 2004.
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Durante as sesses em que se discutiu a composio da nao espanhola, Arguelles
foi o principal opositor s teses americanas. Argumentava que a palavra cidadania era
compreendida erradamente pelos deputados americanos. A concepo moderna do
conceito, aplicada pela primeira vez na Espanha, em nada se assemelharia antiga
concepo dos direitos de cidade ou do cidado como o residente da cidade. A nova
cidadania seria identificvel pela racionalidade dos princpios polticos, elaborados de
forma a serem aplicados uniformemente em todo o Imprio. As mesmas definies
permitiriam dissociar o indivduo de seu local de residncia (ou at de nascimento) para
torn-lo cidado da monarquia. Dessa forma, o exerccio desse direito estaria condicionado
capacidade de contribuir fsica e moralmente para o conjunto da nao, o que no inclua,
momentaneamente, os descendentes da frica24.
A discusso foi feita sistematicamente entre os dias 4 e 11 de setembro de 1811,
quando finalmente aprovou-se o artigo 22 e a excluso poltica da populao de origem
africana. Foi retomada em 14 de setembro, quando se tentou manter os oriundos da frica
como base para o clculo eleitoral nas Amricas mas, aprovou-se, ento, o artigo 29.
Tornava-se evidente, assim, a vitria da comisso que elaborou o Projeto e a derrota dos
deputados americanos. O que mais nos interessa em todo esse processo o fato de o
conjunto dos debates indicar a unidade de ao e a uniformidade de argumentos entre os
representantes das diversas provncias americanas, com uma nica exceo: o cubano
Jauregui. possvel identificar uma clara diviso entre europeus e americanos devido
extensa argumentao apresentada pelos integrantes dos dois grupos, e, justamente por isso,
destaca-se a posio assumida pelo cubano, um dos representantes da Amrica no interior
da comisso. Signatrio da proposta vencedora, Jauregui foi um dissidente entre os
americanos; sua nica manifestao pblica nesses debates ocorreu no dia 25 de setembro,
quando se declarou favorvel ao artigo 2925.
Como explicar o comportamento do deputado cubano? A reivindicao mais
importante para os proprietrios de Cuba o silncio sobre o trfico e a escravido j
havia sido contemplada no ms de abril, e muito provvel que Jauregui fosse portador de
um acordo com os europeus desde aquele momento. Tanto assim que aceitou os artigos
24 Idem, ibidem. 25 Declarao registrada no Dirio de las sessiones, 25 de setembro de 1811, op.cit.
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22 e 29, dando provas de colaborao com os europeus. Durante o ano de 1812, as posies
adotadas em Cdis motivaram contestaes na Amrica e mesmo em Cuba, onde as
discusses metropolitanas sobre os critrios de cidadania serviram de combustvel para a
conspirao de Aponte, um mulato livre, arteso e ex-capito de milcias que se inspirou no
exemplo dos generais negros do Haiti26. Em todo esse quadro de crise, a fiel ilha apareceu
como baluarte do constitucionalismo europeu. Em 13 de junho de 1812, a sesso das Cortes
foi aberta com uma manifestao feita por Jauregui, que, nesta altura, j tinha por
companheiro o outro deputado cubano, Juan Bernardo OGavan: o Consulado de Havana
enviava uma contribuio voluntria de 200 mil pesos para o auxlio da monarquia. E,
finalmente, em 9 de setembro de 1812, Jauregui tinha o prazer de anunciar ao Congresso
que seu pas era o primeiro onde se registrava a publicao e o juramento do texto
constitucional na Amrica. Diante da convocao para as Cortes ordinrias, presente na
ilha desde o ms de julho, os cubanos haviam iniciado o processo eleitoral para a integrao
na nova legislatura e manifestavam, assim, a total concordncia com os termos
estabelecidos no texto constitucional27. No por acaso, um dos deputados eleitos nesta
ocasio foi justamente o grande idelogo da classe senhorial escravista cubana: Francisco
de Arango y Parreo.
O afinamento poltico da elite escravista de Cuba com a Espanha no foi abalado
pela restaurao absolutista de Fernando VII. O prprio deputado Arango no teve pudores
em ingressar, j em 1815, em uma tpica instituio do Antigo Regime espanhol revivida
pela volta do absolutismo: neste ano, passou a fazer parte do Conselho das ndias. O
fechamento das Cortes ordinrias em 1814, enfim, pareceu dar aos senhores cubanos uma
certa sensao de segurana28. Contudo, ainda em 1814, um outro desafio, este bem mais
srio, foi lanado ao escravismo cubano. A Inglaterra deu incio, com o Congresso de
Viena, a uma fortssima presso diplomtica sobre Portugal e Espanha para que essas duas
26 Sobre a conspirao de Aponte, ver o artigo de Matt D. Childs. A Black French General Arrived to Conquer the Island. Images of the Haitian Revolution in Cubaa 1812 Aponte Rebellion. In: David P. Geggus (ed). The Impact of Haitian Revolution in the Atlantic World. Columbia, SC: The University of South Carolina Press, 2001. A propsito, vale lembrar que, em 23 de maio de 1812, Jauregui e Juan Bernardo OGavan apresentaram um memorial s Cortes de Cdis a respeito desse episdio, repisando a argumentao de Arango sobre os riscos de a assemblia tratar do assunto. 27 Posies verificveis nos registros dos Dirios de las sessiones de 13 de junho e 9 de setembro de 1812, respectivamente. 28 Cf. Jos Antonio Saco. Historia de la Esclavitud, v.5, pp.78-9; Manuel Moreno Fraginals. Cuba/Espaa, Espaa/Cuba: Historia Comn. Barcelona: Crtica, 1995, p.162.
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metrpoles abolissem o trfico de escravos para Brasil e Cuba. A despeito da defesa
apresentada pelos burocratas coloniais espanhis e representantes cubanos no Conselho das
ndias dentre os quais Arango sobre a necessidade do comrcio negreiro transatlntico,
o governo espanhol, assim como o portugus, se viu coagido a assinar com a Inglaterra
convenes que proibiam a compra de escravos no litoral africano ao norte da linha do
Equador. No caso espanhol, todavia, o tratado assinado em 1817 previa o trmino definitivo
do trfico transatlntico em trs anos, isto , em 1820, ao passo que o tratado assinado com
os diplomatas portugueses no mesmo ano jogava essa deciso para o futuro29.
Como de se esperar, a reao dos senhores cubanos ao tratado anglo-espanhol de
1817 foi bastante adversa. Ocorre que, na dcada de 1810, Cuba adquiriu uma importncia
central para o colonialismo espanhol. Enquanto as guerras de independncia no continente
americano erodiam o Imprio, as crescentes exportaes cubanas de acar e caf,
alimentadas pelo trfico negreiro transatlntico, convertiam-se em um dos principais esteios
das finanas imperiais. A segunda revoluo de Cdis, iniciada em janeiro de 1820 com um
motim de soldados que se recusaram a ir para a Amrica combater os insurgentes, tornou o
problema do trfico particularmente agudo no jogo poltico espanhol. Ao reinstituir as
Cortes agora sediadas em Madri e a Constituio de 1812, os revolucionrios espanhis
voltaram a colocar em pauta a questo do comrcio negreiro transatlntico para Cuba.
Como forma de atrair as simpatias inglesas, foi criada nas Cortes de Madri, em maro de
1821, uma comisso para discutir meios capazes de acabar com as violaes ao tratado
anti-trfico de 1817, como a incluso de suas resolues no novo cdigo criminal a ser
elaborado para a Espanha e suas provncias ultramarinas30.
Ciente dos riscos que as novas Cortes poderiam trazer para a ordem escravista
insular, a oligarquia cubana instruiu seus representantes enviados Espanha a defenderem a
posio favorvel ao trfico negreiro. Um desses representantes foi o prelado Juan
Bernardo OGavan, ex-deputado cubano nas Cortes de Cdis e signatrio da Constituio
de 1812. Cnone da Catedral de Havana, professor do Seminrio de San Carlos (instituio
29 Cf. A.F. Corwin. Spain and the Abolition of Slavery in Cuba, 1817-1886. Austin: The University of Texas Press, 1967, pp.28-34; Leslie Bethell. A abolio do comrcio brasileiro de escravos. A Gr-Bretanha, o Brasil e a questo do comrcio de escravos, 1807-1869. (1ed: 1969; trad.port.) Braslia: Senado Federal, 2002, pp.28-43. 30 Cf. A.Corwin, Spain and the Abolition of Slavery in Cuba, p.36; Eduardo Torres-Cuevas. De la Ilustracin reformista al reformismo liberal. In: M.C.Barca; G.Garca; E.Torres-Cuevas. (Org). Historia de Cuba. La Colonia. Evolucin socioeconmico y formacin nacional. La Habana: Editora Poltica, 1994, pp.335-342.
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de ensino de eleio da oligarquia escravista havaneira), membro destacado da Sociedade
Econmica dos Amigos do Pas, OGavan era um intelectual com grande prestgio na
sociedade cubana. A resposta de OGavan aos trabalhos da comisso anti-trfico das Cortes
tornou-se pblica em um opsculo editado em Madri em 1821, as Observaciones sobre la
suerte de los negros del Africa. Nele, encontra-se a formulao mais acabada da ideologia
pr-escravista elaborada em Cuba at a data, na qual a defesa da instituio se articulou de
modo explcito ao projeto da elite escravista sobre o porvir poltico da ilha.
Segundo OGavan, a comisso das Cortes carecia de legitimidade, pois no continha
representantes das ilhas espanholas de Ultramar, argumento similar ao esgrimido por
Arango em 1811. Falando como representante do pas em que nasci, isto , Cuba,
OGavan no se encarava como um defensor da escravido, mas sim do trabalho, sem o
qual no h produo, nem populao, nem fora, nem riqueza, nem nenhum modo de
aperfeioar a inteligncia dos homens para lhes impedir que caiam na barbrie, no
embrutecimento, em todas as desordens, em todas as misrias. 31
A defesa do trabalho era um mero eufemismo para preservar com todas as letras o
edifcio escravista cubano. Para tanto, OGavan recorreu a parte do arrazoado clssico da
ideologia escravista elaborada no espao atlntico na segunda metade do sculo XVIII. O
primeiro ponto do discurso era a explicao climtica para justificar a escravido nos
trpicos32. Nos climas frios, o homem escravo de suas necessidades: a natureza o cerca
por todas as partes, e vela sem intermisso para o obrigar ao trabalho; j nos climas
quentes, o legislador chamado para desempenhar as augustas funes da natureza. As
leis civis, a religio, todas as instituies devem com ela estimular o homem em todos os
instantes de sua vida, compelindo-o ao trabalho: sem este, no haver nenhuma
organizao social, nenhum meio de aperfeioar a espcie humana.33 Dessa maneira,
eram as leis civis dos Estados localizados das regies tropicais com a colnia de Cuba
que sancionavam a escravido, mal menor diante do estado selvagem em que o africano
vivia em seu continente de origem.
31 Juan Bernardo OGavan. Observaciones sobre la suerte de los negros del Africa, considerados en su propia patria, y transplantados a las Antillas espaolas: y Reclamacion contra el Tratado celebrado con los ingleses el ao de 1817. Madri: Imprenta del Universal, 1821, p.4. 32 Cf. David Brion Davis. The Problem of Slavery in Western Culture. (1ed: 1966) New York: Oxford University Press, 1988, pp..394-5. 33 J.B. OGavan, Observaciones sobre la suerte de los negros, p.4.
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De fato, prosseguia OGavan, como os povos da frica viviam fora da vida
civilizada, em estado de completa barbrie, o trfico transatlntico trazia enorme ganho
para eles. Os efeitos civilizadores do trfico tornavam-se ainda evidentes ao se comparar o
padro de vida de um escravo negro nas plantations americanas com a vida dos operrios
europeus. Enquanto o primeiro era bem tratado e amparado pelo senhor da infncia
velhice, a liberdade do trabalhador branco na Europa era simplesmente a faculdade de
morrer de fome. O melhor ndice dos ganhos trazidos com o trfico para o negro, segundo
OGavan, encontrava-se no fato de que nenhum de nossos libertos jamais tentou se
restituir s selvas de onde receberam a vida, a esse pas que os anglo-manacos
representam como habitado por homens livres e felizes.34
Alm de defender a legitimidade do trfico e da escravido negra, OGavan voltou
suas baterias contra o Tratado de 1817, segundo ele uma imposio imperialista da
Inglaterra, interessada em enfraquecer os concorrentes de suas colnias escravistas
caribenhas e abrir espao para suas produes coloniais do Oriente. Em especial, o autor
lembrou as implicaes polticas caso o Tratado de 1817 fosse seguido de fato, como estava
tentando fazer a comisso especial das Cortes. Segundo OGavan, havia, para os senhores
cubanos, trs possibilidades de ao poltica, todas condicionadas pela deciso que as
Cortes iriam tomar a respeito do trfico negreiro. Caso preservassem o negcio, cuidando
da felicidade e da existncia de Cuba, a colnia seguiria sua experincia histrica de
fidelidade me-ptria, isto , Espanha. No entanto, caso fossem de fato encampadas
leis pouco meditadas e que dessem um golpe mortal sua prosperidade, ou os cubanos
seguiriam o caminho da independncia (opo criticada pelo autor, dados os riscos que
traria para a ordem escravista, como o exemplo das colnias continentais espanholas
demonstrara), ou seguiriam o da anexao aos Estados Unidos, algo que vinha sendo
34 Idem, p.9. A litania pr-escravista de OGavan usou argumentos anlogos aos que estavam sendo empregados por autores ingleses, franceses e portugueses na passagem do sculo XVIII para o XIX. Ver, por exemplo, as obras de Bryan Edwards. The History, Civil and Commercial, of the British Colonies in the West Indies. Dublin: 1793, 2v; M.-L.-. Moreau de Saint-Mry. Description Togographique, Physique, Civile, Politique et Historique de la Partie Franaise de l'isle de Saint-Domingue. (1ad: 1797) Paris: Socit Franaise d'Histoire d'Outre-Mer, 1984, 3v; Jos Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho. Anlise sobre a justia do comrcio do resgate dos escravos da costa da frica. (1 ed. fr: 1798; 1.ed.port.: 1808) In: Obras Econmicas. Org. Srgio Buarque de Holanda. So Paulo: 1966.
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aventado pelos presidentes Jefferson, Madison e Monroe desde o comeo do sculo XIX e
que contava com alguma receptividade em certos setores da oligarquia escravista cubana35.
A opo de OGavan era claramente pelo primeiro caminho, o que, na verdade,
expressava de forma cabal o projeto da oligarquia escravista cubana. Nos embates polticos
das Cortes de Madri, foi justamente esta a plataforma que se tornou vitoriosa. Os demais
projetos alternativos que estiveram em jogo no perodo foram todos derrotados. O melhor
exemplo disso o caso de Flix Varela, companheiro de OGavan no Seminrio de San
Carlos e representante cubano nas Cortes ordinrias de 1822 e 1823. Contrariando as
instrues para a Deputao Provincial de Cuba, Varela apresentou em Madri uma
memria na qual criticava duramente o colonialismo espanhol, a escravido negra e as leis
que oprimiam os negros e mulatos livres da ilha. O autor tinha em vista sobretudo a
Constituio de 1812, que negava o direito da cidadania a esses grupos. Recorrendo ao
espectro de So Domingos, Varela afirmava que a carta de Cdis aproximava os negros e
mulatos livres e libertos dos escravos, criando entre esses diversos setores subalternos um
sentimento de identidade contra seus opressores brancos. Para evitar esse quadro explosivo,
era fundamental no s ampliar os direitos de cidadania, revendo os termos da Constituio
de 1812, como tambm garantir a liberdade a todos os escravos. Por essa razo, Varela
anexou sua memria um projeto de lei que previa o incio imediato da abolio gradual da
escravido cubana (para ele, o fim do trfico era favas contadas, j garantido pelo Tratado
Anglo-Espanhol de 1817)36.
Como era de se esperar, a oligarquia escravista se ops frontalmente ao projeto de
Varela. Aps o novo fechamento das Cortes em 1823, sua volta para Cuba tornou-se
invivel, e ele acabou indo para o exlio, onde morreria trs dcadas depois. A elite
escravista cubana, por sua vez, no demonstrou qualquer contrariedade com o
encerramento de mais uma experincia parlamentar na Espanha. Os critrios restritivos de
cidadania definidos em 1812, e que foram pea importante para impulsionar o processo de
independncia das colnias continentais, contaram desde o incio com o apoio dos cubanos.
35 Sobre os projetos anexionistas, ver o trabalho antigo mas ainda til de Ramiro Guerra y Sanchz. Manual de Historia de Cuba (Econmica, Social y Poltica). Havana: Cultural, 1938, pp.205-233. Ver tambm Torres-Cuevas, De la Ilustracin reformista al reformismo liberal, p.332. 36 O projeto de Varela encontra-se reproduzido em J.A. Saco, Historia de la Esclavitud, v.5, pp.158-175. Ver, sobre a questo, Torres-Cuevas, De la Ilustracin reformista al reformismo liberal, pp.333-8, e Miltred de la Torre. Posiciones y actitudes en torno a la esclavitud en Cuba, 1790-1830. In: (Colectivo de Autores) Temas acerca de la esclavitud. Havana: Editorial de Ciencias Sociales, 1988, pp.80-1.
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Os que se opuseram a esses critrios, como Varela, foram simplesmente excludos do
xadrez poltico insular. O contraponto residiu no silncio dos deputados e monarcas
espanhis a respeito do trfico negreiro transatlntico, ilegal desde 1820. Tanto os liberais
como os absolutistas peninsulares sabiam que a fidelidade e os recursos que Cuba
propiciava ao Imprio dependiam da continuidade do infame comrcio. Essa equao, que
combinava trfico ilegal / Cuba submetida Espanha / constrio da cidadania para negros
e mulatos livres, e que fora construda ainda na primeira experincia constitucional ibrica,
duraria at a dcada de 1860.
Lisboa e Rio de Janeiro
As Cortes Constituintes da Nao Portuguesa reuniram-se a partir de janeiro de
1821, como resultado da revoluo iniciada no Porto em agosto de 1820. Os liberais
portugueses exigiam o retorno do rei D.Joo VI, instalado no Rio de Janeiro desde 1808, e
o juramento da Constituio a ser elaborada em Portugal. O perodo compreendido entre
agosto de 1820 e abril de 1821, quando finalmente o monarca jurou a Constituio e
decidiu retornar para Lisboa, foi de profunda incerteza; at aquele momento, os
revolucionrios portugueses agiram em consonncia com os espanhis, empenhados na
reconstruo liberal da monarquia desde janeiro de 1820. Os liberais de ambos os pases
visualizaram a concretizao de uma Unio Ibrica constitucional, caso se confirmasse a
negativa do rei portugus e o apoio britnico sua possvel opo pelo Brasil. Os liberais
portugueses temiam, inicialmente, que os governantes europeus se unissem na defesa da
ordem estabelecida pelo Congresso de Viena e, por esse motivo, buscaram a mais estreita
aliana com os liberais espanhis37.
Dessa forma, a experincia constitucional portuguesa de 1821 e 1822 foi
profundamente marcada pelas decises tomadas na Espanha. O texto constitucional de
Cdis, smbolo do liberalismo resistente, foi retomado em Madri em janeiro de 1820 e
serviu de referncia em Lisboa durante o ms de agosto. Foi jurado pelo rei portugus no
Rio de Janeiro e aclamado pelas juntas constitucionalistas do Par (janeiro de 1821) e da
Bahia (fevereiro de 1821). No entanto, como veremos, as definies portuguesas referentes
37 Cf. Valentim Alexandre, Os sentidos do Imprio questo nacional e questo colonial na crise do Antigo Regime portugus. Porto: Afrontamento, 1993, parte V, captulo 1, Berbel, Mrcia Regina. A Nao como Artefato, So Paulo: Hucitec/Fapesp, 1999, captulo1.
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ao trfico negreiro, escravido e aos direitos de cidadania para os libertos e demais
descendentes de africanos basearam-se em princpios diferentes. Passados os meses de
incerteza quanto s posies de D.Joo, os portugueses trabalharam pela unidade luso-
brasileira e tentaram evitar a desagragao j visvel nos domnios espanhis. No caso
portugus, porm, essa unidade s poderia ser mantida se atendesse aos interesses
escravistas, predominantes em todas as regies da Amrica lusa.
Com efeito, em nenhum momento o trfico negreiro chegou a ser discutido pelos
constituintes portugueses, ao contrrio portanto do que ocorrera em Cdis e Madri. O
silncio reivindicado pelos cubanos em 1811 e 1821 sobre o tema foi plenamente
contemplado pelos deputados portugueses de 1821 e 1822. A explicao para a diferena
reside tanto no peso do escravismo para o Imprio portugus na Amrica como nas prprias
circunstncias das relaes internacionais.
A negociao portuguesa para a extino do trfico tem histria complexa. A
invaso francesa no ano de 1807 levou transferncia da Corte portuguesa para o Rio de
Janeiro com proteo da esquadra britnica e garantias de defesa aos domnios europeus da
monarquia. Encerrava-se, assim, a fase de neutralidade oficial mantida pela diplomacia
portuguesa durante as guerras napolenicas38. Seguiram-se, como se sabe, vrias
concesses econmicas e polticas: abertura dos portos navegao estrangeira em 1808,
transformada em privilgios concedidos ao ingleses com a assinatura do Tratado de 1810.
Nesse contexto, a diplomacia inglesa intensificou a presso para a abolio do trfico,
dissociando-o da continuidade da escravido, que poderia ser mantida.
No artigo 10 do Tratado de Aliana e Amizade de 19 de fevereiro de 1810, o
Regente D. Joo, estando plenamente convencido da injustia e m poltica do comrcio
de escravos e da grande desvantagem que nasce da necessidade de introduzir e
continuamente renovar uma estranha e factcia populao para entreter o trabalho e
indstria nos seus domnios do sul da Amrica, comprometia-se a cooperar com a
Inglaterra na causa da humanidade e justia, adotando os mais eficazes meios para
conseguir em toda a extenso de seus domnios uma gradual abolio39. Com essas
38 Cf Valentim Alexandre, op.cit., parte III. 39 Tratado de 19 de fevereiro de 1810. In: Silvia Hunold Lara. Legislao sobre escravos africanos na Amrica portuguesa. Nuevas Aportaciones a la Historia Juridica de Iberoamerica. Madrid: Fundacin Histrica Tavera-Digibis-Fundacin Hernando de Laramendi, 2000 (Cd-Rom).
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palavras, o negociador luso, o poderoso ministro D.Rodrigo de Sousa Coutinho, abandonou
os argumentos favorveis ao trfico que at ento haviam circulado no Imprio portugus,
passando a operar no campo discursivo do movimento antiescravista ingls. Como sugere
Joo Pedro Marques, a ausncia de um debate pblico aberto sobre o tema em Portugal nas
dcadas anteriores levou os representantes diplomticos portugueses a desconsiderarem a
seriedade que a questo do trfico adquirira na Inglaterra40. De todo modo, o regente
D.Joo reservava aos seus sditos o direito de continuar realizando o comrcio em suas
possesses na frica, sem interferncia nos domnios de outros pases.
J em 1811, os cruzadores britnicos comearam a apreender tumbeiros portugueses
com base no acordo assinado no ano anterior. No entanto, ao interceptarem os vasos
negreiros que seguiam do norte da frica para algumas regies do Brasil, os ingleses foram
alm do que o Tratado assinado em 1810 previra, iniciando uma prtica que, alm de ser
repudiada como ingerncia nos assuntos internos da monarquia, representava aos olhos das
autoridades portuguesas e dos prprios colonos uma sria ameaa produo das principais
zonas agrcolas do Brasil. Ainda no ano de 1811, D.Rodrigo de Sousa Coutinho (Conde de
Linhares), que fora signatrio do Tratado de 1810, endereou um ofcio ao rei Jorge III cujo
contedo se aproximava em muito do que Arango estava expondo s Cortes de Cdis neste
exato momento. A mensagem de D.Rodrigo era clara: a ao antitrfico britnica poderia
colocar em risco a aliana entre Portugal e Inglaterra contra Napoleo Bonaparte. Afora
isso, contrariando o que havia escrito em fevereiro de 1810, afirmava ainda D.Rodrigo que
os escravos africanos eram indispensveis para a economia imperial, e que somente em um
longussimo prazo (bem mais dilatado do que os 20 anos requisitados por Arango) o trfico
transatlntico poderia vir a ser encerrado para o Brasil41.
40 Cf. Joo Pedro Marques. Os Sons do Silncio: o Portugal de Oitocentos e a Abolio do Trfico de Escravos. Lisboa: Imprensa de Cincias Sociais, p.57. 41 Segundo as palavras de D.Rodrigo, na Gra-Bretanha, a maioria do Parlamento (...) teve que lutar mais de vinte anos antes de obter da oposio a abolio do trfico dos negros. Agora, mesmo que uma populao exuberante encha o territrio (exguo) das ilhas, ela quer exigir que Sua Alteza Real de Portugal possa abolir subitamente um comrcio que o nico a poder fornecer os braos indispensveis s minas e s culturas do Brasil. evidente que, mesmo em um meio-sculo, Sua Alteza Real no poder acabar no Brasil com este comrcio triste mas necessrio, como desejaria muito, se a coisa fosse compatvel com o bem pblico e a existncia de seus povos. Um tal resultado pode ser obtido somente lenta e progressivamente, e nunca pela fora, procedimento que o Governo britnico parece querer adotar, que irrita sem produzir nenhum bem.O injusto apresamento dos vasos portugueses faz temer Sua Alteza Real que o povo e os negociantes portugueses chegem a um ponto de irritao tal que se tornar difcil a Sua Alteza Real reprimir as manifestaes sem que resulte em vinganas contra as propriedades inglesas no Brasil, o que causaria uma
22
Por todas essas razes, quando se instalou o Congresso de Viena e as tropas
napolenicas foram definitivamente derrotadas, novas esperanas surgiram para a corte
bragantina. Em Viena, os representantes portugueses tentaram inmeras alianas com os
demais representantes europeus para defender uma idia central, j delineada pelo Conde
de Linhares quatro anos antes: o comrcio de escravos s poderia terminar lenta e
gradualmente e a ingerncia inglesa deveria ser contida pelo Congresso42. Por fim, diante
das dificuldades encontradas, os emissrios portugueses negociaram diretamente com os
diplomatas britnicos. Nesse acordo, conseguiram o compromisso para indenizaes
referentes aos apresamentos indevidos realizados nos anos anteriores e, atendendo aos
objetivos ingleses, prometeram abolir o trfico ao norte do Equador. A promessa era
acompanhada das antigas decises: o comrcio negreiro no hemisfrio sul seria feito
somente para o abastecimento das possesses portuguesas. Esta foi a base para a assinatura
da conveno de 1817 que, como j foi referido, lanava para o futuro a total extino do
trfico portugus43.
A plataforma de D.Rodrigo, exposta na carta de 1811 ao soberano ingls, parecia ter
vingado. No incio da dcada de 1820, Portugal era o nico pas europeu com permisso
para realizar legalmente o trfico negreiro. O acordo conseguido com a Gr-Bretanha
devia-se, entre outras coisas, a um enorme esforo de diplomacia realizado durante os
ltimos anos. A despeito de o equilbrio ser precrio, no havia urgncia no trato do
assunto, uma vez que a presso cessara por tempo indefinido.
Com o advento da Revoluo do Porto e a instaurao das Cortes em Lisboa, os
deputados portugueses tinham fortes motivos para no mexer nas peas desse jogo que, em
outros momentos, j havia provocado efeitos indesejados. A discrio justificava-se, ento,
sobretudo para os representantes eleitos no Brasil. Contudo, a nova Constituio deveria
pena imensa Sua Alteza Real. Tudo isso poderia assim arruinar em um momento os esforos constantes de Sua Alteza Real para fundamentar sobre bases permanentes a Aliana e a Amizade perptua entre as duas naes. As conseqncias seriam das mais deplorveis para o sucesso da luta contra o inimigo comum. Arquivo do Estado da Bahia, cdice 112, flio 522, apud VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do trfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos, dos sculos XVII a XIX. (trad.port.) So Paulo: Corrupio, 1987, pp.301-2. 42 Sobre a poltica implementada por Palmela, Saldanha da Gama e Lobo da Silveira em nome de Portugal no Congresso de Viena, ver Valentim Alexandre. Os Sentidos do Imprio. Questo Nacional e Questo Colonial na Crise do Antigo Regime Portugus, Porto: Afrontamento, 1993, parte III, captulos 3 e 4, e Joo Pedro Marques, Os Sons do Silncio, pp.95-112. 43 Cf. Leslie Bethell, A abolio do comrcio brasileiro de escravos, pp.35-41.
23
definir os termos para a obteno da cidadania e, inicialmente, adotou-se aqueles
estabelecidos em Cdis, incluindo-se os artigos 22 e 29. O silncio prevaleceu tambm
sobre esse tema, mas, aqui, houve algum rudo: as primeiras decises adotadas apontavam
para um rumo distinto daquele escolhido pelos deputados espanhis.
Aps o conhecimento da adeso de Joo VI, em abril de 1821, os deputados de
Portugal tiveram uma poltica ofensiva para a eleio dos deputados de ultramar. Essa
poltica foi favorecida pela aprovao das Bases da Constituio e pelo decreto para a
eleio dos deputados ultramarinos, ambos expedidos em maro. No momento das eleies,
e j com a aceitao das Cortes por D. Joo, as Bases Constitucionais portuguesas
substituram a Constituio de Cdis. No novo texto, no se observava qualquer distino
entre homens livres e escravos e tampouco havia uma definio diferenciadora para a
concesso da cidadania44. De todo modo, as Bases constituicionais portuguesas, ao serem
enviadas para a Amrica, foram acompanhadas pelas instrues eleitorais aprovadas na
Espanha de 1812. Nesse movimento, ocorreu uma modificao sutil, mas altamente
significativa: ao adaptarem as instrues eleitorais espanholas para a realidade portuguesa,
os deputados de Lisboa subtraam as distines estabelecidas em Cdis (artigos 22 e 29)
para a concesso da cidadania. Assim, o primeiro nvel das eleies incluiu, no Brasil, toda
a populao negra e mulata livre, concretizando de certo modo o sonho americano
enunciado em Cdis durante os anos de 1810 e 1811.
O tpico da escravido na nao portuguesa no demorou a ser abordado pelo
Congresso. Na sesso de 2 de agosto de 1821, poucos dias antes do ingresso dos primeiros
deputados eleitos no Brasil, o liberal portugus Braacamp aludiu o assunto, referindo-se ao
Projeto de Constituio. Chamou a ateno para a separao estabelecida entre livres e
escravos, distino implcita na lei fundamental: confesso que me custa sancionar este
44 As Bases da Constituio Poltica da Monarquia Portuguesa foram aprovadas no dia 9 de maro de 1821. Trata-se de um pequeno texto, dividido em duas sees: uma declarao de direitos e definies gerais sobre as bases polticas e constitucionais para a organizao do Estado. Na seo II, artigo 16, observa-se somente a seguinte definio quanto a composio da nao a nao portuguesa a unio de todos os portugueses de ambos os hemisfrios e no h uma especificao quanto qualidade de cidado. H, ainda, uma nica referncia ao processo eleitoral, registrada no artigo 21: somente Nao pertence fazer a sua Constituio ou lei fundamental, por meio de seus representantes legitimamente eleitos. Esta lei fundamental obrigar por ora somente aos portugueses residentes nos Reinos de Portugal e Algarves, que esto legalmente representados nas presentes Cortes. Quanto aos que residem em outras trs partes do mundo, ela lhes tomar comum, logo que pelos seus legtimos representantes declarem ser esta sua vontade. In: Joel Serro (sel) Liberalismo, Socialismo, Republicanismo. Antologia de Pensamento Poltico Portugus, 2. ed., Lisboa, Livros Horizonte, 1979.
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princpio numa assemblia onde vejo residirem as ideias mais liberais. Todos os homens
livres, diz o artigo e a palavra livre creio que deve ser riscada deste artigo. Vejo que somos
obrigados a conservar a escravatura nas possesses ultramarinas, mas quisera que esta
triste necessidade fosse indicada como exceo e no como regra geral, que h de regular
por todos os nossos vindouros. Quisera este artigo indicasse que, por ora, enquanto no se
pode abolir a escravatura, faremos esta diferena. Mais a frente, na mesma sesso, o
deputado Margiochi, tambm eleito em Portugal, retomou o tema e foi mais longe: props
que os escravos fossem considerados cidados, clamando pelos Direitos do Homem, e
reivindicou a criao de mecanismos para impedir a venda de cativos. Admitiu, finalmente,
que a apresentao de projetos de lei para a abolio da escravatura deveria ser lanada
para o futuro mas, agora, propunha a suspenso dos direitos de cidado para quem
continuasse a negociar escravos. Propunha, ainda, que a representao brasileira fosse
impedida de tomar assento no Soberano Congresso caso no aderisse aos princpios
antiescravistas que acabara de anunciar. Como era de se esperar, Margiochi no teve apoio
de nenhum deputado portugus e todos preferiam aguardar a chegada dos deputados do
Brasil para decidir esse assunto45. Os pernambucanos chegaram algumas semanas mais
tarde e o tema jamais foi retomado nesses termos.
Ainda que de forma sutil, a questo poderia ter sido recolocada, a partir de fevereiro
de 1822, pelos deputados eleitos em So Paulo. Em 9 de janeiro, D. Pedro havia decidido
permanecer no Brasil e, assim, deu incio a um conflito aberto entre os governos do Rio de
Janeiro e de Lisboa. Os deputados paulistas chegaram em Portugal como portadores de uma
plataforma que visava a defesa da unidade do Reino do Brasil, inclua a presena do
Prncipe no Rio de Janeiro na condio de Regente e tinha o feitio de um verdadeiro
programa para a reestruturao do Imprio portugus. O documento, alm do mais,
abordava diretamente o problema da escravido. De fato, nas Instrues do Governo
Provisrio de So Paulo aos deputados da Provncia s Cortes Portuguesas, para se
conduzirem em relao aos negcios do Brasil, pode-se ler a seguinte passagem: requer
imperiosamente iguais cuidados de legislatura sobre melhorar a sorte dos escravos,
favorecendo a sua emancipao gradual e converso de homens imorais e brutos em
45 Dirio das Cortes Constituintes, sesso de 2 de agosto de 1821, cpia arquivada na Biblioteca Nacional de Lisboa e exposta no site http://debates.parlamento.pt
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cidados ativos e virtuosos, vigiando sobre os senhores dos mesmos escravos para que
estes os tratem como homens e cristos (...) mas tudo isso com tal circunspeo que os
miserveis escravos no reclamem estes direitos com tumultos e insurreies que podem
trazer cenas de sangue e de horrores46.
O trecho, porm, jamais foi lido ou mencionado no Congresso. O contedo geral do
Programa assinado pela Junta de So Paulo foi defendido bravamente nas Cortes por
Antonio Carlos de Andrada e Silva47. Tal defesa custou-lhe a antipatia da maior parte dos
deputados eleitos em Portugal, a oposio da imprensa de Lisboa e a total ruptura com as
Cortes devido sua intransigente defesa da unidade do Reino do Brasil. No entanto, o
deputado em nenhum momento se referiu passagem do programa transcrita acima.
Durante os trabalhos constituintes, os deputados de So Paulo buscaram alianas com os
deputados das demais provncias americanas na defesa do Reino do Brasil. As proposies
sobre a abolio gradual da escravido, tal como se l nas Instrues, certamente afastariam
os representantes dessas provncias, absolutamente dependentes do trfico e do trabalho
escravo, e este era, seguramente, mais um dos elementos definidores da omisso do tema.
Ademais, convm lembrar que o prprio Antonio Carlos no esposava neste momento as
convices antiescravistas de seu irmo, Jos Bonifcio de Andrada e Silva, o provvel
autor das palavras contrrias instituio gravadas nas Instrues: nos debates em que se
discutiu o sistema que deveria reger as relaes comerciais entre Brasil e Portugal, Antonio
Carlos afirmou com todas as letras que o trabalho escravo, por ser mais barato que o
trabalho livre, era vital para o sucesso da produo brasileira de acar e, por conseguinte,
para a economia imperial48.
46 Jos Bonifcio de Andrada e Silva, Escritos Polticos. So Paulo: Obelisco, 1964, p.18. 47 Sobre as repercusses dessa defesa, ver Mrcia Regina Berbel. A Nao como Artefato. Deputados do Brasil nas Cortes portuguesas, 1821-1822. So Paulo: Fapesp/Hucitec, 1999. 48 No Dirio das Cortes Constituintes, sesso de 27 de abril de 1822, pode-se ler as seguintes palavras de Antonio Carlos: O Brasil no pode temer que as outras naes o rivalizassem nos aucares, e mais gneros de sua produo (...) embora gema a humanidade, certo que o escravo trabalha barato porque consome pouco. Com essa assertiva, o irmo de Jos Bonifcio inverteu o clebre argumento de Adam Smith de que o nico interesse do escravo era comer o mximo e trabalhar o mnimo. Prosseguiu Antonio Carlos, descartando uma eventual concorrncia das produes baseadas no trabalho livre: E o mesmo se pode dizer da Espanha e da Amrica Inglesa. Podero por ventura rivalizar com nossos aucares os de Havana...? No h o que temer apesar de sua barateza, a sua inferioridade basta para aquietar-nos (...) Na Havana ainda que esse trabalho seja feito por escravos to grande o preo de seu trabalho, e to acanhado o preo de seu resgate, que no h de poder competir conosco. Sobre a importncia de Adam Smith para o iderio antiescravista de Jos Bonifcio, ver Antonio Penalves Rocha, Idias antiescravistas da Ilustrao europia na sociedade escravista brasileira. In: Revista Brasileira de Histria. Vol.20, n39: 37-68, 2000.
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A estratgia de silenciar o debate sobre a escravido no mbito constitucional,
testada com sucesso pelos representantes cubanos nas Cortes espanholas, foi reiterada em
Lisboa pelos deputados do Brasil e mesmo pelos de Portugal. Afora o descaso com as falas
de Braacamp e Margiochi, o destino reservado ao projeto de lei do deputado baiano
Domingos Borges de Barros, lido em sesso de 18 de maro de 1822, bem o prova. Dados
os pontos de contato de seu contedo com o que seria escrito na representao sobre a
escravatura que Jos Bonifcio enderearia Assemblia Constituinte do Imprio do Brasil
em 1823, possvel aventar a hiptese de que o trecho antiescravista das Instrues do
Governo Provisrio de So Paulo, omitido nos discursos de Antonio Carlos, tenha
estimulado a composio do projeto de Borges de Barros. A conjectura factvel se
lembrarmos as articulaes que vinham sendo estabelecidas entre as bancadas paulista e
baiana49.
O deputado baiano propunha, inicialmente, medidas capazes de garantir o fluxo
contnuo de imigrantes europeus para o Brasil, como a formao de juntas de colonizao
na Amrica, a distribuio de comissrios brasileiros pelos pases da Europa e promessas de
tratamento diferenciado aos imigrantes pelas leis brasileiras. O artigo 22 do projeto
esclarecia qual o objetivo em vista: se a imigrao de estrangeiros para o Brasil for
grande nesses primeiros tempos, terminar o trfico de escravos entre aquele Reino, e
frica dentro de seis anos, contados do dia em que se promulgar a Constituio no
Brasil50. O projeto continha ainda artigos que buscavam melhorar a sorte dos escravos,
como a possibilidade legal de o cativo comprar sua alforria ou requerer a mudana de
senhor em caso de maus tratos. O ltimo item do projeto previa estmulos para as escravas
que tivessem muitos rebentos: os senhores devero animar e favorecer o casamento entre
seus escravos. A escrava casada que apresentar seis filhos vivos ter carta de alforria,
ficando o senhor obrigado a sustent-la durante a criao do ltimo filho51.
Qual o destino dado ao projeto de Borges de Barros? Nos seis meses seguintes,
cujas sesses ainda contavam com deputados do Brasil, ele no foi discutido sequer uma
49 O projeto inicial dos paulistas para a defesa do Reino do Brasil no fazia meno autonomia das provncias e os baianos temiam a concentrao de poderes no Rio de Janeiro. Os paulistas incorporaram essa reivindicao em seu programa, chegaram a propor dois centros administrativos para o Reino e, finalmente, propuseram a realizao de uma Constituinte no Brasil para o acerto das diversas pendncias entre os habitantes da Amrica. 50 Dirio das Cortes Constituintes, sesso de 18 de maro de 1822, op.ct. 51 Dirio das Cortes Constituintes, sesso de 18 de maro de 1822, op.cit.
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vez. Alm do mais, as tmidas disposies reguladoras propostas por Borges de Barros se
esvaeciam diante do contedo de fundo do projeto: medidas como o condicionamento do
fim do trfico ao afluxo de imigrantes europeus ou os estmulos reproduo vegetativa da
escravaria representavam a confirmao do sistema escravista, no o seu fim.52
Tal como ocorrera em Cdis, a questo do trfico negreiro foi habilmente retirada da
pauta dos trabalhos constituintes portugueses. No que se refere ao tema dos direitos de
cidadania para os libertos, as definies a respeito foram abordadas somente no momento
de discusso e aprovao do Projeto de Constituio, e no retomaram o teor antiescravista
das falas de Braacamp e Margiochi, pronunciadas em agosto de 1821 sem a presena de
deputados do Brasil. Em 17 de abril de 1822, quando foram debatidos os artigos referentes
ao procedimento eleitoral, o deputado Miranda (de Portugal) apresentou um aditamento em
que propunha que os libertos e seus filhos no tivessem o direito de votar. A declarao
retomava de forma direta os termos da Constituio espanhola e os famosos artigos 22 e 29.
No entanto, as reaes apresentadas no Congresso portugus evidenciaram um quadro
poltico completamente diverso. Os principais expoentes do liberalismo vintista dentre
eles, Manoel Fernandes Toms, lder da Revoluo do Porto preferiram no se manifestar
de pronto sobre o tema, afirmando estarem dispostos a acatar as avaliaes a serem
expostas pelos deputados do Brasil.
Manifestaram-se, ento, os baianos Jos Lino Coutinho, Lus Paulino Pinto da
Frana e Marcos Antonio de Sousa e os fluminenses Custdio Gonalves Ledo e Francisco
Vilela Barbosa. O que veio a seguir foi radicalmente distinto do que ocorrera em Cdis
durante o ms de setembro de 1811: com exceo de Vilela Barbosa, os deputados do
Brasil defenderam enfaticamente os direitos polticos (e no apenas os civis) dos ex-
escravos e seus descendentes. Nas palavras de Custdio Ledo, de maneira nenhuma pode
passar o aditamento [do deputado Miranda]. No h razo alguma para privar os libertos
deste direito. H muitos libertos no Brasil, que hoje interessam muito sociedade, e tm
grandes ramos de indstria; muitos tm famlias; por isso seria a maior injustia privar
estes cidados de poderem votar, e at poderia dizer que agravar muito o mal da
escravido. Marcos Antonio de Sousa, por sua vez, ressaltou a importncia dos libertos
para a ordem social: admitida essa indicao se iria fazer um grande cisma no Brasil,
52 As palavras so de Joo Pedro Marques, Os Sons do Silncio, p160.
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aonde um tero da sua populao consta de libertos, e entre eles h homens de muita
inteireza e probidade.53
Os discursos dos oradores do Brasil convenceram por completo os deputados de
Portugal. Por voto unnime das Cortes, o aditamento foi rejeitado, garantindo-se assim o
direito ao voto para os libertos e seus descendentes. Fernandes Toms sumariou o motivo
de tal consenso: voto contra a emenda. Como poderia votar a favor se os ilustres
deputados do Brasil que vieram de l dizem que periga a segurana deles? 54
Como se v, em Lisboa no houve nada parecido com as longas sesses de Cdis
em que se discutiu acidamente os direitos polticos das castas da Amrica espanhola.
Nesse assunto, os deputados de Portugal deram voz e obedeceram ao p da letra a opinio
dos deputados do Brasil: todos concordaram que a continuidade da escravido deveria
conviver com a concesso dos direitos de cidadania para os libertos e seus descendentes. Os
representantes da Amrica portuguesa, no entanto, foram mais alm, pois, em outra
ocasio, chegaram a afirmar que a estabilidade da ordem social escravista brasileira,
adquirida com o concurso da populao livre oriunda do cativeiro, descartava qualquer
necessidade de interferncia ou apoio vindos do governo central de Lisboa.
Isto ocorreu em 22 de maio de 1822, quando se decidiu o envio de tropas para a
Bahia contra o voto da maior parte dos deputados do Brasil. As discusses que envolveram
o tema e avanaram as sesses subseqentes fizeram retornar os argumentos referentes ao
censo americano, com referncias diretas ao peso numrico dos escravos na Amrica
portuguesa. O deputado reinol Moura recorreu a trs pontos para justificar o envio de foras
militares para a Bahia: primeiro, elas seriam indispensveis para reprimir o ideal de
independncia que j se fazia sentir em diferentes provncias; segundo, elas garantiriam a
segurana pessoal dos portugueses e demais europeus residentes no Brasil; terceiro, elas
seriam vitais para proteger os prprios naturais do Brasil de levantes escravos55. O espectro
de So Domingos, portanto, era aqui mobilizado para atemorizar os representantes de
ultramar, lembrando-lhes a insegurana inerente a todas as sociedades escravistas56.
53 Dirio das Cortes Constituintes, sesso de 17 de abril de 1822, op.cit. 54 Idem. 55 Dirio das Cortes Constituintes, sesso de 22 de julho de 1822, op.cit 56 Como se sabe, o uso retrico do tema da revolta escrava no ocorreu apenas nesta ocasio. Aps a Revoluo de So Domingos, o exemplo do Haiti serviu para antiescravistas e pr-escravistas fundamentarem suas plataformas: no caso da crtica escravido, argumentava-se que, se no fossem adotadas medidas para
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A reao dos deputados do Brasil foi imediata, prolongando-se em sesses dos
meses seguintes. Cipriano Barata (Bahia), Jos Ricardo Costa Aguiar de Andrada (So
Paulo) e Antonio Carlos, quando se negaram a subscrever a Constituio portuguesa j
finalizada, repudiaram com veemncia as falas que seguiram o teor do discurso de Moura,
afirmando no haver quaisquer riscos de eventos semelhantes aos de So Domingos virem
a ocorrer no Brasil. A razo para tanto repousava na especificidade da demografia
brasileira, que contava com um grande contingente de homens livres. O tom foi de
indignao ou de escrnio. Para a primeira variante, eis as palavras de Antonio Carlos:
clamam uns nobres preopinantes, e tem-se neste recinto aturdido a todos com a repetio
da mesma linguagem: para guardar os brasileiros contra os negros que se lhe mandam
os batalhes no pedidos, antes detestados. Assombrosa audcia! Terrvel zombaria
acrescentada mais escandalosa opresso! To ignorantes nos acreditam que recebamos
como obsquio insultos e ofensas! No sabemos ns melhor que ningum que os escravos
no so para temer, que o seu nmero insignificante comparado com o dos livres, e que a
doura da servidade domstica entre ns, tem feito dos nossos escravos antes amigos do
que inimigos? Para a segunda, a acidez de Barata: Quanto aos escravos, isso merece
risada: no tenha o Congresso d do Brasil: no se compadea de ns: pobres escravos!
melhor no falarmos nisso; vamos ao que interessa.57
A aproximao entre falas de homens com perspectivas polticas to distintas como
Antonio Carlos e Cipriano Barata na questo do envio de tropas para a Bahia serve como
mais um indcio da aliana selada entre baianos e paulistas a partir de maio, em pontos
como os critrios de cidadania, a autonomia provincial e, em especial, o estabelecimento de
uma constituinte no Brasil. Com o aprofundamento das diferenas entre deputados do
Brasil e de Portugal, trs representantes de So Paulo e dois da Bahia se recusaram a
aboli-la, So Domingos se repetiria na sociedade escravista em questo; no caso de sua defesa, argumentava-se que o Estado no poderia legislar sobre a escravido, pois isto estimularia os cativos a buscarem o caminho da libertao coletiva, exatamente o que havia ocorrido em So Domingos. Ver, sobre a questo, os trabalhos recentes de Michel-Rolph Trouillot. Silencing the Past. Power and the Production of History. Boston: Beacon Press, 1995, p.85; Marcel Dorigny. La Socit des Amis des Noirs: antiesclavagisme et lobby colonial la fin du sicle des Luminres (1788-1792). Marcel Dorigny; Bernard Gainot. La Socit des Amis des Noirs, 1788-1799. Contribution l histoire de l abolition de lesclavage. Paris: Unesco-Edicef, 1998, pp.19-20; Antonio Penalves Rocha. Idias antiescravistas da Ilustrao europia na sociedade escravista brasileira. In: Revista Brasileira de Histria. Vol.20, n39: 37-68, 2000, p.59; Olwyn M. Blouet. Bryan Edwards and the Haitian Revolution. In: David P. Geggus (ed). The Impact of Haitian Revolution in the Atlantic World. Columbia, SC: The University of South Carolina Press, 2001, p.50. 57 Dirio das Cortes Constituintes, 22 de julho de 1822.
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assinar a Constituio da Nao Portuguesa em 24 de setembro de 182258. Duas semanas
aps, sete integrantes dessas bancadas fugiriam juntos para a Inglaterra, de onde lanariam
os manifestos de Falmouth59.
Nessa altura, contudo, j fora convocada para o Rio de Janeiro uma assemblia
destinada a elaborar uma constituio para o Imprio do Brasil, independente do Reino de
Portugal. Os trabalhos da Assemblia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do
Brasil comearam em maio de 1823, com a indicao de uma comisso responsvel pela
preparao do projeto de constituio. O comit, composto por sete deputados, contava
com parlamentares experientes, que haviam participado ativamente das Cortes de Lisboa,
dentre os quais Antonio Carlos e Jos Ricardo, eleitos por So Paulo, e Pedro de Arajo
Lima e Francisco Muniz Tavares, eleitos por Pernambuco. Tambm faziam parte da
comisso Jos Bonifcio (deputado por So Paulo), Antonio Luiz Pereira da Cunha (Rio de
Janeiro) e Manoel Ferreira da Cmara Bittencourt e S (Minas Gerais).
Em 30 de agosto de 1823, a comisso apresentou Assemblia seu Projeto de
Constituio. As definies de cidadania a contidas sobretudo nos itens que se referiam
aos libertos seguiam em linhas gerais o que havia sido estipulado em Lisboa em abril de
1822, mas, por conta de seu teor especfico, o tema foi matria de intensos debates nas
sesses de 23 a 30 de setembro de 1823. Ao contrrio da Constituio portuguesa60, o
Projeto marcava uma diferena entre nacionalidade e cidadania, pois distinguia direitos
civis, cabveis a todos os que eram entendidos como brasileiros, e direitos polticos,
58 Os paulistas Antonio Carlos de Andrada e Silva, Diogo Antonio Feij, Nicolau Campos Vergueiro e Jos Ricardo Costa Aguiar Andrada e os baianos Cipriano Barata e Agostinho Gomes no assinara a Constituio. Alm disso, Jos Lino Coutinho no participou do juramento do texto. Cf Dirio das Cortes Constituintes, sesso de 30 de setembro de 1822, op.cit 59 Os paulistas e baianos que no assinaram e/ou juraram o texto constitucional deixaram Lisboa clandestinamente e, utilizando-se de um barco ingls, seguiram para Falmouth. Os dois manifestos emitidos por esse deputados explicita os motivos das divergncias com a poltica das Cortes portuguesas e foram publicados por Mello Moraes, Histria do Brasil-Reino e do Brasil-Imprio, tomo II, SoPaulo:Eduso, 1982. 60 A Constituio Portuguesa finalmente aprovada em 1822 no faz referncia a homens livres e define a nao no artigo 20 do ttulo II: a unio de todos os portugueses de ambos os hemisfrios. O artigo 21 afirma que os portugueses so cidados e, em uma nica referncia escravido, o item IV admite que tambm seriam portugueses e cidados os escravos que alcanarem alforria. O artigo 33 do ttulo 3 regula o procedimento eleitoral em seu primeiro captulo e a observa-se a excluso do direito de voto de uma parte dos cidados: Da presente disposio se excetuam ... VII: os libertos nascidos em pas estrangeiro. In: Mello Moraes, op.cit. tomo 2, pp.198-237.
31
reservados a indivduos que cumprissem requisitos previamente determinados61. Pela letra
do Projeto, seriam brasileiros todos os homens livres habitantes do Brasil, todos os
portugueses residentes no Brasil antes de 12 de outubro de 1812 [data da aclamao de
D.Pedro I como Imperador no Rio de Janeiro] e os escravos que obtiverem carta de
alforria. Os libertos, portanto, teriam garantia a seus direitos civis, isto , a defesa de suas
propriedades, de sua segurana e da liberdade pessoal. Para participar do processo eleitoral,
contudo, a carta de alforria no bastava: o Ttulo V (Das eleies), Artigo 123 estipulava
que seriam cidados ativos, aptos a votar nas Assemblias paroquiais, apenas os libertos
nascidos no Brasil que tivessem um rendimento lquido anual igual ou superior ao valor
de 150 alqueires de farinha de mandioca. O Projeto, partindo do pressuposto de que o
trfico negreiro transatlntico no seria encerrado to cedo, discriminava claramente os ex-
escravos nascidos no Brasil dos libertos estrangeiros, isto , africanos.
Nos debates que se seguiram, os deputados acabaram por concordar com os
princpios gerais do Projeto, substituindo a rubrica do artigo 5 de so brasileiros por so
cidados brasileiros. O intuito foi salientar a diferena entre os brasileiros que eram
cidados e os que no eram. O deputado baiano Francisco Carneiro de Campo, recorrendo
ao pensamento de John Locke, expressou isso de forma ntida: o