6
BERDIAEV LIBERDADE E CRIAÇÃO

Berdiaev - Liberdade e Criação

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Berdiaev - Liberdade e Criação

Citation preview

BERDIAEV

LIBERDADE E

CRIAÇÃO

LIBERDADE E CRIAÇÃO, BERDIAEV

O pensamento e a vida de Nicolas Berdiaev encontram seu eixo

principal na busca da liberdade1. Toda a filosofia dele repousa sobre a

liberdade e sua experiência espiritual é uma descoberta da liberdade.

“Amava a liberdade acima de tudo (...), ela é para mim o ser primordial. (...) É na liberdade que está escondido o mistério do mundo. Deus quis a liberdade e foi dela que surgiu a tragédia do mundo. A liberdade está no começo e está no fim. (...) Estou convencido de que Deus só está presente onde está a liberdade e só age por meio dela.”2

Contrariamente ao que pensa a opinião comum, a liberdade não é

amada. Os homens preferem submeter-se a uma autoridade, obedecer

preceitos e entregar para outros o cuidado pelo seu destino e o peso de suas

responsabilidades. Basta entender o sentido da Lenda do grande inquisidor,

para perceber que a liberdade é para muitos um peso e uma provação3. Para

Berdiaev, a verdadeira liberdade está num plano metafísico e identificar

liberdade e livre-arbítrio é cair na confusão. A liberdade não é o resultado de

uma aquisição e Berdiaev dirá em relação a si mesmo

“Na minha via espiritual e na experiência da minha vida, fiz muitas aquisições, contudo não adquiri a liberdade, ela era inata para mim, ela é o a priori da minha vida. A idéia de liberdade foi anterior para mim à idéia de perfeição porque é impossível admitir que essa possa ser obtida pelo constrangimento.”4

A liberdade escapa a qualquer definição e é um conceito limite.

Do mesmo modo, o tema da criação, da vocação criadora do homem

será considerado por Berdiaev outro tema essencial da vida dele e totalmente

ligado à sua busca em relação à liberdade. Ele considera esse tema como

“uma experiência interior vivida, uma luz interior”5. Ele se pergunta: o

cristianismo justifica a obra criadora cultural – em outras palavras, o

cristianismo não se mostra obscurantista por princípio? Ora, ele não colocou a

1 Além dos textos de Berdiaev, aproveitamos várias análises de Marie-Madeleine Davy em

DAVY, Marie-Madeleine, Nicolas Berdiaev ou la révolution de l’esprit, Paris, Albin Michel, 1999, capítulo Liberté et création p. 103s 2 BERDIAEV, Nicolas, Essai d’autobiographie spirituelle, Paris, Buchet / Chastel, 1992, p. 65. A

tradução em português da citações de Berdiaev é minha. 3 DOSTOIEVSKI, Feodor, Os irmãos Karamazovi, São Paulo, Martin Claret, 2006, p. 252-268

4 BERDIAEV, Nicolas, Essai d’autobiographie spirituelle, Paris, Buchet / Chastel, 1992, p. 67

5 BERDIAEV, Nicolas, Essai d’autobiographie spirituelle, Paris, Buchet / Chastel, 1992, capítulo

VIII Le monde de la création, le sens de l’acte créateur et l’expérience de l’extase créatrice p. 260 s

pergunta da justificação da atividade criadora, mas a da justificação pela

criação. A criação não precisa de justificação: ela é que justifica o homem: é

uma “antropodicéia”. É o tema do comportamento do homem em relação a

Deus, da sua resposta a Deus. O tema do comportamento em relação à cultura

humana, das obras e dos valores culturais é um tema derivado e secundário.

Foi sempre atormentado pelo problema da relação entre a criação e o pecado,

a criação e a redenção, tendo vivido uma época de consciência aguda da

pecabilidade humana. Pode o homem se justificar, não só pela sua docilidade à

potência suprema, mas também pela sua exaltação criadora?

É importante entender que o ato criador, para Berdiaev, não é nem

uma exigência, nem um direito do homem: é uma exigência de Deus dirigida ao

homem e uma obrigação para o homem. Deus espera o ato criador do homem

em resposta ao ato criador de Deus. A Escritura não contém a revelação em

relação à obra criadora do homem. Deus não a revelou: manteve-a escondida.

A audácia criadora é o cumprimento da vontade de Deus, de uma vontade

implícita porque o tema do ato criador integra-se no tema cristão fundamental

da humana-divindade e é justificado pelo caráter humano-divino do

cristianismo.

“A idéia de Deus sobre o homem é infinitamente mais alta do que as noções ortodoxas tradicionais, advindas de uma consciência oprimida e encolhida. A idéia de Deus é a idéia humana a mais alta. A idéia do homem é a idéia divina a mais alta. O homem espera o nascimento de Deus nele. Deus espera o nascimento do homem nele. É nessa profundidade que deve ser posto o problema da criação. (...)O drama das relações entre o divino e o humano revela-se na experiência espiritual do homem, não na especulação teológica.”6

O mistério da criação não se opõe ao mistério da redenção: marca

um momento diferente do itinerário espiritual, um outro ato do drama místico.

Em vez de uma ontologia racional, a via filosófica apresenta-se como uma

fenomenologia de uma experiência espiritual, descrita de modo simbólico. Para

ele o ato criador não consiste tanto em formar no finito, a produzir: consiste em

transpassar o finito, e levantar vôo em direção do infinito – não objetivação,

mas sim transcendência. A êxtase criadora é uma abertura para o infinito. Esse

problema da criação é o problema de uma nova antropologia religiosa; essa

6 Ibid. p. 262

nova antropologia difere da antropologia dos padres da Igreja e da escolástica,

assim como da antropologia humanizada, pelo fato que essa foi fundada de

modo naturalista. Passou de um período de acabrunhamento por causa da

consciência do pecado o que leva o homem a não mais contemplar Deus mas

sim o pecado, a meditar sobre as trevas e não sobre a luz. A partir dessa

experiência, Berdiaev entende que a consciência da pecabilidade deve

converter-se em consciência criadora; senão o homem desaba. O mistério

cristão não pode se esgotar no mistério da redenção: a redenção é somente

um ato do mistério. A experiência do ato criador triunfa sobre o

acabrunhamento, o desdobramento e a servidão.

Quando se fala de criação, entende-se o abalo e a exaltação do ser

inteiro tenso para a outra vida, a vida suprema e o ser novo. Ele se revela na

experiência criadora de que o “eu”, o sujeito, é primordial e superior ao “não

eu”, o objeto. Ao mesmo tempo, o ato criador é contrário ao egocentrismo, é

esquecimento de si, aspiração em direção a tudo que ultrapassa. Essa

experiência não é uma meditação sobre a própria imperfeição; é um impulso

orientado em direção da transformação do mundo, do céu novo e da terra

nova, que o homem deve preparar. O criador é solitário e ato criador não é

coletivo nem geral, mas sim individual e pessoal. Não é porém, de nenhum

modo, uma contenção em si, mas sempre uma saída de si. A auto-absorção

oprime enquanto a saída de si liberta.

É claro que o ato criador do homem precisa de matéria e não pode

dispensar a realidade do mundo. Todavia, o ato criador não pode ser

inteiramente determinado pelos materiais do mundo. Existe nele um elemento

novo não determinado de fora. É um elemento de liberdade inerente a todo ato

criador autêntico. Nisso consiste o mistério da criação. Nesse sentido a criação

é ex nihilo e significa que ela é também uma emanação da liberdade não

determinada por elementos de fora. Sem isso, ela só seria nada mais do que

um rearranjo dos elementos do mundo e o aparecimento da novidade seria

ilusório. Assim o homem recebe seus dons criadores de Deus; existe, todavia,

um elemento de liberdade inerente aos atos criadores do homem que não é

determinado nem pelo mundo nem por Deus. A criação é a resposta do homem

ao apelo de Deus.

É absurdo e estéril perguntar se, do ponto de vista de uma religião

da redenção, a criação pode ser justificada. A obra da redenção e a salvação

pode dispensar a criação. Todavia, para o Reino de Deus, a ação criadora do

homem é indispensável. É também graças à ação criadora do homem que o

Reino de Deus chega. A nova revelação totalmente acabada será a revelação

da criação do homem. Será a época tão esperada do Espírito. Então, o

cristianismo, enquanto religião da humana-divindade, será enfim realizado. A

criação humana continua a criação do mundo. A continuação, a perfeição da

criação do mundo é uma obra humano-divina: Deus obrando com o homem, o

homem obrando com Deus.

Não se trata de renegar a criação cultural, nem a importância dos

produtos dessa criação nesse mundo. É a via do homem, o homem devendo

passar pela criação da cultura e da civilização. É, porém, uma criação

simbólica apresentando somente os sinais da transfiguração real. Uma criação

realista seria a transfiguração e o fim desse mundo, o aparecimento da terra e

dos céus novos. O ato criador é um ato escatológico orientado para o fim do

mundo. A perfeição de uma obra criadora aqui só pode ser simbólica, sinal de

uma outra perfeição, num outro mundo e num outro plano de existência.

Assim, para Berdiaev, a espera de uma nova era criadora não é um

renascimento humanista. O humanismo seria, para ele, aprofundado na

afirmação de um humano pré-eterno em Deus. O humano é inerente à

Segunda Pessoa da Trindade. É o núcleo real do dogma: o homem é um ser

metafísico. Deus é humano, mas o homem é inumano. A fé no homem, no

humano, é a fé em Deus e não implica ilusões em relação ao homem. A

afirmação que o homem basta a si mesmo, transforma-se em negação do

homem, leva à decomposição do princípio propriamente humano num princípio

pretendendo superar o humano (o “super-homem”), e num outro

incontestavelmente inferior ao humano: é a “animalo-divindade”, em vez da

humana-divindade, que é assim afirmada.

Berdiaev reconhece que Dostoievski, Nietzsche e Marx tiveram uma

influencia decisiva na sua compreensão da dialética existencial humanista7.

Essa fé na vocação criadora do homem convive como um sentimento

7 Ibid. p. 272

catastrófico da vida que impede de acreditar na solidez e na estabilidade da

ordem social e mundial porque, segundo ele, o mundo entrou na época anti-

humana caracteriza por processos de desumanização. Isso não abala a fé na

vocação criadora do homem que se relaciona com abismos metafísicos. Esse

pensamento é totalmente alheio ao conceito de uma evolução retilínea,

continua, ininterrupta do mundo e da humanidade: não se pode admitir uma

continuidade, expressão do determinismo, quando se aceita um corte ligado à

irrupção da liberdade na evolução mundial. O ato criador marca o fim desse

mundo e o começo de um outro mundo.