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BERNARDO, João. Até que ponto é solidária essa tal economia

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BERNARDO, João. Até que ponto é solidária essa tal economia

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  • [Publicado em Coletivo Pensamento Radical, [Novembro de 2005]]

    At que ponto solidria essa tal economia?

    por Joo Bernardo

    Economia Solidria um nome bonito. como pessoas bondosas. Como pode algum

    ser a favor de pessoas ms! Ou ser contra a beleza, ou contra o altrusmo! No entanto, se um

    nome conveniente para marketing, mau como conceito, porque ambguo e no define

    rigorosamente o seu objectivo. Tentarei esclarecer um pouco a questo.

    A partir das dcadas de 1960 e 1970, em vrios pases tanto da rea do capitalismo

    privado como da do capitalismo de Estado, surgiram e desenvolveram-se fora das estruturas

    sindicais e polticas tradicionais numerosos movimentos reivindicativos que deram lugar

    ocupao de empresas e continuao da produo sob o controlo directo dos trabalhadores.

    Se estudarmos estes movimentos, que esto relativamente bem documentados, verificamos

    que em quase todos eles se manifestou desde cedo uma tendncia para a alterao das relaes

    de trabalho, que em alguns casos pde chegar muito longe. As decises colectivas e

    rotatividade de funes, com a consequente diminuio das barreiras existentes entre a

    administrao e a produo, passaram nessas lutas para a ordem dia, em franco contraste com

    a prtica at ento habitual no movimento operrio, que se limitava a exigir a reformulao

    das relaes jurdicas, com a nacionalizao das empresas, e, no mbito global, a tomada do

    Estado por um partido comunista ou socialista. Mas a incapacidade manifestada

    repetidamente tanto pela social-democracia como pelo leninismo de abolir as relaes de

    explorao levou enfim os trabalhadores a compreenderem que podem ocorrer grandes

    remodelaes no plano poltico e no plano das relaes de propriedade e conservarem-se

    inalteradas as relaes de trabalho. A superao deste dilema constituiu a grande lio das

    lutas autonomistas iniciadas na dcada de 1960 e continuadas hoje em novas experincias.

    Outra coisa, muitssimo diferente, a converso de empresas falidas em cooperativas,

    onde a administrao continua a ser assegurada por especialistas e onde cabe aos

    trabalhadores, como sempre, trabalhar. Convm recordar que foi a burocracia dos partidos

    social-democratas alemo e belga, durante a poca da Segunda Internacional, ao manter sob o

    seu firme controlo a administrao de numerosas e riqussimas cooperativas, quem suscitou

    entre os seus opositores as primeiras anlises crticas da burocratizao do movimento

    operrio e as primeiras definies tericas da existncia de uma classe capitalista formada por

    gestores. E hoje, passados cem anos, a constituio de uma burocracia deste tipo, mas num

  • nvel econmico incomparavelmente mais medocre, que visa o projecto de formar gestores

    de terceira ou quarta ordem para se encarregarem de administrar empresas em vias de

    falncia. No plano puramente econmico trata-se de uma forma dissimulada de precarizao

    da fora de trabalho, introduzindo-se alguns paliativos destinados a evitar o desemprego e a

    impedir que as consequncias sociais do neoliberalismo e do toyotismo atinjam um nvel

    explosivo. Mas dois sculos de luta anticapitalista ensinaram, pelo menos, que enquanto a

    direco da actividade econmica estiver a cargo de especialistas continuar a existir a

    oposio entre a classe capitalista dos gestores e a classe trabalhadora, com a consequente

    extorso de mais-valia.

    De que lado se posiciona a Economia Solidria? De que lado se posiciona cada uma

    das pessoas que participam no projecto e o apoiam? Enquanto no ocorrer a necessria

    clarificao, a Economia Solidria servir somente para perpetuar confuses, e no em

    guas turvas que pode prosseguir a crtica terica e prtica ao capitalismo.

    Ocupar empresas, aprender a administr-las, levar avante a remodelao das relaes

    de trabalho a importncia destas experincias directamente social e poltica, no

    econmica. Elas valem apenas pelas novas relaes sociais que comeam a aplicar, ensinando

    os participantes a gerirem eles mesmos a sua luta, o que uma condio para mais tarde

    serem capazes de enfrentar o colossal desafio de gerir toda a sociedade. E isso sim, ser uma

    nova economia, verdadeiramente solidria porque no dar lugar a classes nem a explorao.

    Mas pretender que empresas que s so capazes de subsistir porque os seus

    trabalhadores aceitam apertar o cinto para no ficarem no desemprego, e que s so capazes

    de produzir bens ou servios de inferior qualidade ou duvidoso interesse, consigam apesar

    disto triunfar das empresas transnacionais num mercado cujas regras do jogo so ditadas nica

    e exclusivamente por essas empresas transnacionais uma tal ideia s no delirante porque

    demaggica e destina-se, uma vez mais, a manter os trabalhadores enquadrados na ordem

    econmica capitalista e sujeitos, como sempre, tutela dos especialistas, neste caso sados das

    incubadoras como pintainhos artificiais.

    Quando os trabalhadores dessas empresas comearem a dispensar os gestores que lhes

    impingem e eles mesmos rodarem nas funes de administrao, ao mesmo tempo que forem

    alterando as relaes de trabalho, ser ento que a Economia Solidria, remetendo para

    segundo plano o seu carcter de economia, servir para uma verdadeira experincia social de

    solidariedade. Ou isto, ou continuar servindo de cauo moral das hierarquias exploradoras.

    Novembro de 2005

    por Joo Bernardo