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Bernhard Schlink - Mentiras de Verão

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Bernhard Schlink - Mentiras de Verão

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Descobrir  os  meandros  do  comportamento  humano  e  como  somos  capazes  de  conviver   com   as   mentiras   da   vida   —   ou,   pior,   com   as   verdades   —   é   o   7io  condutor   dos   contos   de   Bernhard   Schlink   em   Mentiras   de   verão,   todos  extremamente  diretos  e  melancolicamente  belos.“O  dia  em  que  ela  parou  de  amar  os   7ilhos...”  Assim  começa  a  história  de  uma  mulher  que,  já  idosa,  percebe  que  o  sentido  da  a  vida  se  perdeu.  Então,  com  a  ajuda   de   uma   das   netas,   começa   uma   inconsciente   busca   por   seu   passado,   o  que  a  faz  reencontrar  o  homem  que  amou  quando  era  estudante  universitária.  Um  amor  correspondido,  arrebatador.  Teria  ela  então  tomado  a  decisão  errada?  Por  que  um  jovem  pai  tenta  manter  a  esposa  e  a  7ilha  isoladas  do  mundo?  O  que  leva   alguém  que   ama   a  mentir   com   frequência   à   pessoa   amada?  O   que   fazer  quando  uma  mentira  é  de  tal  modo  interiorizado  que  se  torna  uma  verdade?  E  como   nos   libertamos   das   amarras   que   nos   prendem   ao   passado   quando   um  novo  amor  promete  grandes  mudanças?  As  respostas  podem  estar  nos  contos  deste  livro  maravilhoso.

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Baixaestação

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lestiveramdesedespedirantesdocontroledebagagens.Mas,comonopequenoaeroportotodososguichêsecontrolesestavamreunidosnum

sóespaço,elefoicapazdesegui-lacomoolharquandoelacolocouabolsasobre a esteira, passou pelo detector de metais, apresentou o cartão deembarqueeseguiuparaoavião—queestavalogoatrásdaportadevidro,napista.

Elaoolhoumuitasvezeseacenou.Naescadaparaoavião,virou-sepelaúltimavez,sorriuechorou,colocouamãosobreocoração.Quandosumiuno interior da aeronave, ele acenou para as janelinhas, embora nãosoubesseseelaovia.Emseguida,osmotoresforamacionados,asturbinasgiraram,oaviãocomeçouaavançar,acelerouedecolou.

Seu voo partiria dali a uma hora. Ele pegou um café e um jornal e sesentou numbanco. Desde que se conheceram, não tinhamais lido jornalnemse sentado sozinho comumcafé.Apósquinzeminutos, sem ter lidonenhuma linhae sem ter tomadonenhumgole, elepensou:desaprendi aficarsozinho.Egostoudaideia.

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Tinhachegadofaziatrezesdias.Aaltatemporadahaviaterminadoe,comela, o tempobom. Chovia, e ele passou a tarde comum livro na varandacobertadapousada.Nodiaseguinte,quandoseforçouasairnotempofeioecaminhoupelapraiasobchuvaatéofarol,encontrouamulherprimeironocaminhodeidaedepoisnodevolta.Elestrocaramsorrisos,naprimeiravezcuriosos;nasegunda,jábemmaisconfiantes.Numaamplaextensãodeareia, ambos eram os únicos caminhantes, além de companheiros desofrimento e prazer; os dois prefeririam um céu claro, azul, masdesfrutavamachuvasuave.

Ànoite,elaestavasentadasozinhaàvarandadoapreciadorestaurantede frutosdomar,adaptadoparaooutonocomumacoberturaeproteçãodeplástico.Tinhaumcopocheioàsuafrenteeliaumlivro—umsinaldequeaindanãohaviacomidoequenãoesperavapelomaridoounamorado?Ficou indeciso junto à porta até que ela ergueu o olhar e lhe sorriu demaneiraamistosa.Foiquandoeletomoucoragem,aproximou-sedamesaeperguntousepoderiasesentarcomela.

—Porfavor—concedeu,ecolocouolivrodelado.Ele se sentou e, como ela já havia feito o pedido, pôde orientá-lo;

escolheuomesmobacalhauqueela.Emseguida,osdoisnãosabiamcomodarinícioaumaconversa.O livronãoajudava;estavaposicionadodeumjeitoqueelenãoconseguialerotítulo.Porfim,elefalou:

—FériastardiasemCapesãoespeciais.—Porcausadotempoagradável?—Elariu.Estava rindodele? Ele a observou, o rosto não era bonito, tinha olhos

pequenos e um queixo anguloso demais, porém a expressão não era dedesdém,masalegre,talvezumpoucoinsegura.

— Porque a praia é só nossa. Porque encontramos mesa nosrestaurantesqueficamsemprelotadosnaaltatemporada.Porqueestamosmenossolitárioscommenospessoasquecommuitas.

—Vocêsemprevemdepoisdaaltatemporada?

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—Éminhaprimeiravezaqui.Naverdade,eudeveriaestartrabalhando.Masmeudedoaindanãoestábom,eelepode fazerseusexercícios tantoaqui quanto em Nova York.— Ele movimentou o dedo mínimo da mãoesquerdaparacimaeparabaixo,curvou-oeoesticou.

Elaolhouodedinhoespantada.—Eeleseexercitaparaquê?—Paraaflauta.Toconumaorquestra.Evocê?—Aprendipiano,masagorararamentetoco.—Elaenrubesceu.—Não

foi isso que você perguntou. Estive aqui várias vezes com meus pais,quando era criança, e às vezes fico com saudades. E depois da altatemporada,Capetemofascínioquevocêdescreveu.Tudoestámaisvazio,maistranquilo.Eugostoassim.

Ele não falou que não tinha condições de bancar as férias na altatemporada,epressupôsqueomesmovaliaparaela.Elausavatênis,jeansemoletom, e sobre o encosto da cadeira havia um casaco impermeáveldesbotado.Aoestudaremjuntosacartadevinhos,elasugeriuumagarrafade um sauvignon blanc barato. Contou de Los Angeles, do seu trabalhonuma instituição que ensinava teatro a crianças do gueto, da vida seminverno,daviolênciadoPacífico,dotrânsito.Ele lhecontoudaquedaporcausa de um cabo mal colocado, quando quebrou o dedo, do braçofraturadoaopulardajanelaaosnoveanosedapernafraturadanoesqui,aos treze. Inicialmente estavam sentados a sós na varanda, em seguidaoutros clientes chegaram e na segunda garrafa de vinho os dois seencontravam sozinhos novamente. Quando olhavam pela janela, viam omareaareiaimersosnumaescuridãototal.Achuvabatianotelhado.

—Oquevocêpretendefazeramanhã?—Seiquetemcafédamanhãnapousada,masquertomarcomigo?Ele a levou para casa. Ela tomou seu braço sob o guarda-chuva. Não

conversaram. Sua casinha ficavano caminho, aumquilômetroemeiodapousada.Aluzdiantedaportaseacendeuautomaticamentee,derepente,

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eles se viram commuita claridade. Ela o abraçou rápido e seu beijo foifugaz.Antesdefecharaporta,eledisse:

—EumechamoRichard.Evocê...—MeunomeéSusan.

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Richardacordoucedo,cruzouosbraçosatrásdacabeçaeescutouachuvanas folhas das árvores e no cascalho do caminho. Ele gostava de ouvir ogotejaruniforme,tranquilizador,emboraissonãofossenenhumbomsinalpara o dia. Susan e ele iriam caminhar na praia depois do café? Ou naflorestaaoredordolago?Ouandardebicicleta?Richardnãotinhaalugadoum carro e supunha que ela também não. Desse modo, a distância dospasseiosjuntoseralimitada.

Elecurvoueesticouodedomínimoalgumasvezes,paranão terdeseexercitartantomaistarde.Estavacomumpouquinhodemedo.SeSusaneelerealmentepassassemodiajuntosapósocafédamanhãeaindafossemcomer ou até cozinhar, o que aconteceria depois? Precisaria transar comela?Mostrar-lhequeelaeraumamulherdesejável,eele,umhomemviril?Porque,senão,iriaofendê-laeseridicularizar?Richardtinhapassadoanossem ter relações comumamulher.Não se sentiamuitoviril nemahaviaachado especialmente desejável na noite anterior. Susan tinha muito acontar e muitas perguntas a fazer, ouvia com atenção, era animada eespirituosa.Eachoucharmosoqueela,antesdedizeralgumacoisa,semprehesitavaumpoucoe,quandoseconcentrava,semicerravaosolhos.Susandespertavaseuinteresse.Eseudesejo?

Ocafédamanhãestavapostonosalãoe,comonãoqueriadecepcionarocasal idoso que tinha espremido o suco de laranja, feito ovosmexidos epreparadopanquecas, ele sentou-see comeu.Amulher saíada cozinhaa

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cadadoisminutos,perguntandoseelequeriamaiscaféoumaismanteigaou outra geleia ou fruta ou iogurte. Até Richard entender que ela queriaconversar. Ele lhe perguntou há quanto tempomorava ali e ela largou agarrafatérmicadecaféeparouaoladodamesa.Haviaquarentaanos,seumaridotinharecebidoumapequenaherança,ecompraramacasaemCape,ondeelequeriaescrever,eela,pintar.Masaescritaeapinturanãoforamadiante, e, depois de os filhos terem crescido e de a herança ter sidoconsumida,elestransformaramacasanumapousada.

—TudooqueosenhorquisersabersobreCape,ondeficamoslugaresmaisbonitoseondeémelhorparasecomer,mepergunte.E,seosenhorsairhoje,mesmocomchuva,apraiacontinuasendoumapraiaeaflorestaestáapenasmolhada.

Aneblinaseagarravaàsárvoresdafloresta.Tambémenvolviaascasasque ficavammais afastadas da rua. O lugarzinho onde Susanmorava eraumaresidênciadecaseiroeao ladodelahaviaumaentradaque levavaaumagrande casa, ocultapelanévoa,misteriosa.Richardnão encontrou acampainhaebateu.

—Estouindo—avisouela,eavozpareciadistante.Eleaescutousubiruma escada, abrir uma porta e correr por um corredor. E então Susanapareceu diante dele, sem fôlego e com uma garrafa de champanhe nasmãos.

—Euestavanoporão.O champanhe o atemorizou de novo. Richard enxergou Susan e a si

diante de uma lareira acesa, taças nas mãos, sentados num sofá. Ela seaproximava.Ahoratinhachegado.

—Porquevocêestáparadoassim,comoolharperdido?Entre!No cômodo grande ao lado da cozinha, ele realmente viu uma lareira,

lenhaaoladoe,nafrente,umsofá.SusanhaviapostoamesanacozinhaeRichard voltou a tomar suco de laranja e comer ovosmexidos, e depoishaviasaladadefrutascomnozes.

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—Estavadelicioso.Masagoratenhodesairedarumacorrida,andardebicicletaounadar.

QuandoSusanolhou,confusa,paraachuva,elelhecontoudoseucafédamanhãduplo.

—VocênãoqueriadecepcionarJohneLinda?Quemeigo!—Elaoolhou,satisfeitaeespantada.—Sim,porquenãonadar?Vocênãoestádecalção?Vocêvai...

Susan o olhou com alguma incerteza, mas ele concordou. Ela colocoutoalhasnumabolsagrandealémdeumguarda-chuva, champanheeduastaças.

—Podemosatravessaroterreno.Émaisbonitoemaisrápido.

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Elespassarampelagrandecasa,umaconstruçãodecolunasaltasejanelasfechadas,quemesmodepertocontinuavamisteriosa.Subiramosdegrauslargos, chegaram ao terraço entre as colunas, deram a volta pela casa eencontraramaescadaparaavarandacobertaantesdopróximopiso.Delá,avistaenevoadaseestendiasobreasdunaseapraia,atéomarcinzento.

—Estábemcalmo—sussurrouela.Susanconseguiaverapesardadistância?Elaeracapazdeescutar?Não

choviamais,enessesilêncioprofundoRichardtambémapenassussurrou.—Ondeestãoasgaivotas?—Maradentro.Quandoachuvapara,asminhocassaemda terraeos

peixessobemàsuperfície.—Nãoacredito.Elariu.—Agentenãoianadar?Susansaiuemdisparada,tãorápidoecomtantaciênciadocaminhoque

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ele,comabolsagrande,nãoconseguiuacompanhá-la.Richardaperdeudevistanasdunase,quandochegouàpraia,elaestavatirandoaúltimameiaparacorreratéomar.Quandoelechegouaomar,Susanjánadavalonge.

Aáguaestavarealmentemuitocalmaeofriopassounoinstanteemqueele começou a nadar. Seu corpo nu era acariciado pelo mar. Richard foipara longe e ficou boiando. As braçadas de Susan a levavammais longeainda.Assimqueachuvarecomeçou,eleapreciouasgotasnorosto.

AchuvaapertoueelenãoconseguiamaisverSusan.Chamou-a.Nadounadireçãoemquesupunhaquea tivessevistopelaúltimaveze chamounovamente.Quandomal podiadistinguir a terra, deumeia-volta.Richardnãonadavarápido,tinhadeseesforçar,masavançavamuitolentamenteea lentidão aumentava seu pânico. Por quanto tempo ela seria capaz deaguentar?O celular estavanobolsoda calça?Havia sinal napraia?Ondeficavaa casamaispróxima?Elenão suportouo esforço, ficouaindamaislentoemaisangustiado.

Nesse momento, viu uma figura pálida sair do mar e ficar parada napraia.Araivalhedeuforças.Comoelaotinhadeixadopreocupado!QuandoSusanacenou,elenãorespondeu.

Aosepostardiantedela,furioso,elalhesorriu.—Oqueaconteceu?—Oqueaconteceu?Eufiqueicompletamenteempânicoquandonãovi

maisvocê.Porquenãopassounadandopormimaovoltar?—Eunãovivocê.—Vocênãomeviu?Elaficouvermelha.—Eusoumuitomíope.Derepente,suafúrialhepareceuridícula.Elesestavamnusemolhados

frente a frente, com a chuva escorrendo pelos rostos, ambos arrepiados.Tremiameaqueciamopeitocomosbraços.Susanoobservoucomoolharindefeso, questionador, que não expressava — como ele sabia agora —

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insegurança,masapenasmiopia.Richardviuasveiasazuisqueapareciamna fina pele branca, seus pelos pubianos, loiro-avermelhados, embora ocabelo fosse loiro-claro, a barriga lisa e o quadril estreito, os braços e aspernasfortes.Elesentiuvergonhadoprópriocorpoeencolheuabarriga.

—Sintomuitotersidogrosseiro.— Eu entendo. Você estava com medo. — Ela sorriu de novo para

Richard.Ele estava constrangido. Em seguida, como se tivesse recebido um

empurrão,indicoucomacabeçaolugarnasdunasondeestavamasroupas,disse “Já!” e saiu correndo. Susaneramais rápidaqueele epoderia tê-loultrapassadocomfacilidade.Mascorreuaseulado,eissoofezselembrardainfância,daalegriapelascorridasemgrupoaumobjetivocomumcomas irmãsouosamigos.EleviuospequenosseiosdeSusan,queelahaviaprotegido com os braços enquanto eles estavam na praia, e a bundapequena.

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Suas roupas estavam molhadas. Mas as toalhas permaneceram secas nointerior da bolsa, e Susan e Richard se enrolaram nelas, sentaram-sedebaixodoguarda-chuvaetomaramchampanhe.

Elaseencostounele.— Fale de você. Desde o começo, da sua mãe, do seu pai e dos seus

irmãos,atéagora.Vocêéamericano?—SoudeBerlim.Meuspaisdavamaulademúsica,eledepianoeelade

violinoeviola.Éramosquatrofilhoseeupudefrequentaraescolasuperiordemúsica,emboraminhastrêsirmãsfossemmuitomelhoresqueeu.Meupai quis assim; não conseguia suportar a ideia de que eu fosse fracassarcomoele.Então,porcausadelefrequenteiaescolasuperiordemúsica,me

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torneisegundoflautistanaOrquestraFilarmônicadeNovaYorke,paraele,algumdiavouseroprimeiroflautistanumaoutraboaorquestra.

—Seuspaisaindaestãovivos?—Meupaimorreuháseteanos,minhamãe,noanopassado.Susanrefletiu.Emseguida,perguntou:— Se você não tivesse se tornado flautista por causa do seu pai,mas

tivesseseguidoaprópriavontade,oquevocêseria?—Nãoriademim.Quandomeupaieminhamãemorreram,penseique

finalmente estava livre e que podia fazer o que quisesse.Mas eles aindaestãonaminhamenteeficammepersuadindo.Euteriademeafastarporumano,meafastardaorquestra,daflauta,teriadecorrer,nadar,refletiretalvez escrever sobre como foi a vida em casa commeus pais e minhasirmãs.Paraqueeusoubesse,nofinaldoano,oquerealmentequero.Talvezsejaatéaflautamesmo.

—Devezemquandoeudesejavaquealguémmepersuadisse.Meuspaissofreram um acidente de carro emorreram quando eu tinha doze anos.Minhatiamecrioueelanãogostavadecrianças.Tambémnãoseisemeupaigostavademim.Umavez,eledisseestaransiosoqueeuficassemaiorparaconseguirfazeralgumacoisacomigo.Nãosooumuitobem.

—Sintomuito.Comoerasuamãe?—Bonita.Elaqueriaqueeufossebonitacomoela.Meuarmárioeratão

chique quanto o dela, e, quando ela ajudava a me vestir, mamãe eramaravilhosa,amorosa,carinhosa.Elateriameensinadoalidarcomamigastraiçoeiraseamigosatrevidos.Mastivedeaprendertudosozinha.

Eles estavam sentados debaixo do guarda-chuva e desfiavam suasmemórias.Comoduascriançasqueseperderameestãocomsaudadesdecasa,pensouele.Richardselembroudoslivrospreferidosdasuainfância,nos quais meninos e meninas se perdiam e sobreviviam em cavernas ecasebres,eramatacadosemviagensesetornavamescravos,sequestradosem Londres e obrigados amendigar e a roubar ou vendidos de Ticino a

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Milãocomolimpadoresdechaminés.Elehaviasofridocomascriançasporteremperdidoospaisetorcidopelavoltadelasaolar.Masficavafascinadomesmo pelo fato de as crianças órfãs conseguirem sobreviver. Quandofinalmenteretornavamparacasa,tinhamseemancipadodospais.Porqueétãodifícilserindependente,emboraprecisemosapenasdenóseninguémmais?Richardsuspirou.

—Oquefoi?—Nada—respondeuele,colocandoobraçoaoredordela.—Vocêsuspirou.—Eugostariadesermaisdoquesou.Susanseaninhouaseulado.— Conheço a sensação. Mas não dizem que evoluímos em ondas?

Durante muito tempo não acontece nada e, de repente, temos umasurpresa,conhecemosalguém,tomamosumadecisãoenãosomosmaisosmesmosdeantes.

— Não somos mais os mesmos de antes? Há seis meses estive numencontrodeturmaeaquelesqueeramcomportadoseagradáveisnaescolacontinuavamassimeoscanalhascontinuavamsendocanalhas.Achoqueosoutrossentiramomesmoqueeu.Paramim,foiumchoque.Agenteinvesteem si, pensa que se transforma e se desenvolve, e os outros nosreconhecemimediatamentecomoaquelesquesemprefomos.

—Vocês,europeus,sãopessimistas.VocêsvêmdoVelhoMundoenãoconseguemimaginarqueomundoeaspessoasvãoserenovar.

—Vamoscaminharpelapraia.Achuvaquaseparou.Eles enrolaramas toalhasna cintura, atravessaramapraia e andaram

ladeandoomar.Aareiamolhadapinicavaospésdescalços.—Nãosoupessimista.Eusempreesperoqueminhavidavámelhorar.—Eutambém.Quando a chuva voltou a apertar, eles retornaram à casa de Susan.

Estavamcom frio.EnquantoRichard tomavabanho, Susan foi aoporãoe

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ligou o aquecimento; enquanto Susan tomava banho, Richard acendeu ofogonalareira.Eleestavausandooroupãoqueelahaviaguardadodopai,vermelho, quente, de lã pesada com forro macio. Eles penduraram asroupas molhadas para secar e descobriram como funcionava o samovarqueestavanoaparadordalareira.Depois,sentaram-senosofá,elacomaspernascruzadasnumcanto,elesobreosjoelhosnooutro,tomaramcháeseolharam.

—Daquiapoucovoupodervestirminhasroupas.—Fique.Oquevocêquer fazercomessachuva?Ficarsozinhonoseu

quarto?— Eu... — Ele queria dizer que não gostaria de ser invasivo, de

importuná-la, de atrapalhar sua rotina. Mas eram desculpas. Sabia queSusanestavagostandodasuacompanhia.Richard lia issoemseurostoeescutava em sua voz. Sorriu para ela, primeiro educado, depoisconstrangido. E se a situação despertasse expectativas em Susan que elenãoconseguiriasatisfazer?Maselamexeunumapilhadelivroserevistasao lado do sofá e começou a ler. Estava sentada e lia tão absorta, tãoconfortável, tão relaxada,queele tambémcomeçoua relaxar.Procuroueencontrouum livroque lhe interessava; não leu,mas ficou a observandoler.Atéelaergueroolharesorrirparaele,quecorrespondeu, finalmenterelaxado,ecomeçoualeitura.

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Àsdez,quandochegouàpousada,LindaeJohnestavamsentadosdiantedatelevisão.Ele lhesdissequenãoprecisariamprepararseucafédamanhãnodiaseguinte,iriatomá-locomajovemdacasinhaqueficavaacercadeum quilômetro e meio dali, uma mulher que conheceu no jantar dorestaurante.

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—Elanãomoranacasagrande?—Hámuitotempoqueelanãoficalá,quandovemsozinha.—Masnoanopassado...—Noanopassadoelaveiosozinha,massempreestavacomvisitas.Richard,cadavezmaisirritado,escutavaLindaeJohn.—VocêsestãofalandodeSusan...Percebeuqueelessótinhamseapresentadocomosprimeirosnomes.—SusanHartman.—Elaédonadocasarãocomascolunas?—Oavôdelacomprouolugarnosanosvinte.Depoisdamortedospais,

o caseiro deixou de cuidar da casa. Ele embolsava o pagamento e nãoinvestianada,atéqueSusanodemitiuhápoucosanosecolocouascasaseojardimemordemdenovo.

—Issodevetercustadoumafortuna.— Não doeu no bolso dela. Da nossa parte, ficamos contentes. Havia

pessoas interessadas em retalhar o terreno edividir a casaou fazerdelaumhotel.Tudoestariadiferenteporaqui.

Richarddeuboa-noitepara JohneLindae foiparaoquarto.Não teriapuxadoconversacomSusansesoubessedariquezadela.Elenãogostavade gente rica. Desdenhava da riqueza herdada e considerava a riquezaconquistadaumaextorsão.Seuspaisnuncaganharamosuficienteparadaraos quatro filhos o que gostariam de ter lhes dado, e seu salário naOrquestra Filarmônica de Nova York era o suficiente para sobrevivernaquelacidadecara.Richardnãotinhaamigosricos,nuncahaviatido.

EstavafuriosocomSusan.Eracomoseelaotivesseenganado.Comoseelaotivesseatraídoparaumasituaçãoqueagoraoprendia.Estavapreso?Nãoprecisavairatésuacasanamanhãseguinteparaocafé.Oupodiairelhe dizer que não podiammais se ver, eles eramdiferentes demais, suasvidas eramdiferentesdemais, seusmundos eramdiferentesdemais.Mastinham acabado de passar a tarde juntos, diante da lareira, e leram

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esporadicamente frases um para o outro, cozinharam juntos, comeram,lavaramalouça,assistiramaumfilmeeambossesentirambem.Diferentesdemais?

Richard escovou os dentes com tanta força quemachucou a bochechaesquerda.Sentou-senacama,colocouamãonabochechaesentiupenadesi mesmo. Estava de fato preso. Tinha se apaixonado por Susan. Só umpouquinhoapaixonado,disseele.Poisoquesabiasobreela?Oquegostavanela?Comoavançarahistóriacomasdiferençasdassuasvidasedosseusmundos?Talvez ela fosse achar charmoso jantarnopequeno restauranteitalianoqueelepodiapagarumasduasoutrêsvezes.Depoisdissodeveriapedir para ela pagar a conta? Ou começar a se endividar no cartão decrédito?

Nãodormiubem.Acordouatodoomomentoe,àsseis,quandopercebeuquenãoadormeceriamais,desistiu,vestiu-seesaiudacasa.Océuestavarepleto de nuvens escuras, mas havia um brilho vermelho a leste. SeRichard não quisesse perder o nascer do sol sobre omar, era preciso seapressaresaircorrendocomosmocassinsquehaviacalçadoemvezdostênis.Assolasressoavamnarua,espantandoumbandodegralhasedoiscoelhos.Overmelhoalesteficavamaislargoemaisforte;Richardjáhaviavistoumacenaparecidacomessaànoite,masnuncapelamanhã.DiantedacasadeSusan,eleseesforçouparasersilencioso.

Emseguida, chegouàpraia.O sol se elevava,dourado,deummarembrasasparaumcéuemchamas—durantealgunsinstantes,atéasnuvensapagaremtudo.Richardteveaimpressãodeque,subitamente,ficounãosómaisescuromastambémmaisfrio.

ElenãoprecisavaterseesforçadoparaficaremsilênciodiantedacasadeSusan.Elatambémjáestavaacordada.Sentadaaopédeumaduna,viu-o, levantou-se e foi ao encontrodele.Andavadevagar;nasdunas, a areiaerafofaedificultavaacaminhada.Richardfoiemsuadireção,masapenasporque queria ser gentil. Preferia ficar observando-a andar, como passo

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tranquilo,aposturasegura,acabeçaàsvezesbaixaeàsvezeserguida,e,quando estava erguida, seu olhar se fixava nele. Richard ficou com asensação de que eles iriamnegociar alguma coisa ao se dirigiremum aooutro,masnãosabiaoquê.Elenãoentendeuoqueorostodelaindagavaequais respostas ela encontrava no seu. Richard sorriu, mas Susan nãoretribuiueofitoucomseriedade.

Quandoestavamfrenteafrente,elapegouamãodele.“Venha!”Susanolevou até a casa; subindo a escada, chegaram ao quarto. Ela se despiu,deitou-senacamaeoobservoutirandoaroupaesedeitandotambém.

—Espereitantotempoporvocê.

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Susan o amava desse jeito. Como se o tivesse procurado durante muitotempo e finalmente houvesse encontrado. Como se eles não pudessemfazernadadeerrado.

Ela o conduziu, e ele permitiu. Richard não se perguntou: Como euestou?;enãoperguntouaela:Comomesaí?Depois,deitadosladoalado,elesoubequeaamava.Essapessoapequenacomolhospequenosdemais,comoqueixoangulosodemais,comapelefinademaisecomocorpomaissecoqueos corposdemulheresquehaviaamadoatéentão.Quepossuíaumasegurançaque,arrastadadepaismoderadamenteamorososparaumatiadesnaturada,nãodeveriapossuir.Quepareciatermaisdinheirodoqueerasaudávelparaela.QueenxergavaemRichardalgoqueelemesmonãoviaeque,dessamaneira,dava-lheisso.

Pela primeira vez, Richard amou umamulher como se não existissemimagensquepautassemoamor.ComosefossemumcasaldoséculoXIX,aquem o cinema e o teatro ainda não tinham prescrito suas imagens decomosebeijarcerto,gemercerto,ternorostoaexpressãocertadepaixão

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enocorpootremorcertodeprazer.Umcasalquehaviainventadoparasioamor,obeijareogemer.Susanparecianuncafecharosolhos.Semprequeavia,elatambémoestavavendo.Eleamavaseuolhar,absorto,confiante.

SusanseapoiouemRichardesorriu.— Que bom que eu sorri quando você não sabia o que fazer no

restaurante.Primeiroacheiquenãoeranecessário.Penseiquevocêviriaatémimpelocaminhomaisdiretoemaisrápido.

Richard tambémriu, feliz.Elesnãose lembraramdeconsideraraquiloquehaviaprovocado ruídosdurante a conversano restaurante comoumsinaldealerta.Osdoisachavamtudofrutodafaltadejeitoequepodiasersuperadocomumarisada.

Ficaramnacamaatéanoitecer.Emseguida,tiraramocarrodeSusandagaragem, um BMWmais velho, bem-cuidado, e atravessaram a noite e achuvaembuscadeumsupermercado.Aluzeraofuscante,ocheiroeradeprodutosquímicosdelimpeza,amúsicapareciadesintetizadoreospoucosclientesempurravam,cansados,seuscarrinhospeloscorredores.

— Deveríamos ter ficado na cama — sussurrou ela, e Richard ficoualiviado por Susan estar tão perturbada com a luz, o cheiro e a músicaquantoele.

Ela suspirou, riu, fez as compras e logo tinha enchido o carrinho. Àsvezeseletambémpegavaalgo,maçãs,panquecas,vinho.Nocaixa,Richardpagoucomocartãodecréditoesabiaquenomêsseguintepelaprimeiravez não pagaria toda a fatura. Isso o deixou inquieto, porém ficou aindamaisirritadopelofatodeessabobagemdeestourarolimitedocartãodecrédito continuaro inquietandonumdia comoaquele.Por isso, comproutrêsgarrafasdechampanhenalojadebebidasaolado.

Navoltaparacasa,Susanperguntou:—Vamosbuscarsuascoisas?—TalvezLindaeJohnjáestejamdormindo.Nãoqueroacordá-los.Susanassentiu.Eladirigiarápidoecomsegurança,eelepercebeu,pela

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maneiracomofaziaascurvas,queelaconheciabemotrajeto.—VocêveiodecarrodeLosAngeles?—Não,ocarroficaaqui.Clarktomacontadacasa,dojardimetambém

docarro.—Vocêsóficanacasamaiorquandotemvisitas?—Vamosnosmudarparaláamanhã?—Nãosei.Étão...—Émuitograndeparamim.Mascomvocêseriaagradável.Poderíamos

lernabiblioteca, jogarno salãodebilhar, vocêpoderiapraticar flautanasalademúsica,eupediriaparaservirocafédamanhãnosalãomenoreojantarnomaior.

Susanfalavacadavezmaisanimada,maisdecidida.—Dormiremosnoquartomaior,quemeusavósemeuspaisusaram.Ou

dormimos no meu quarto na cama em que sonhava com meu príncipequandoerapequena.

Richardviuorostosorridentedelaà luzopacadopainel.Susanestavaperdidaemsuaslembranças.Pelaprimeiravezdesdequeseconheceram,elaestavadistante.Richardqueriaperguntarcomqualatoroucantorhaviasonhado,queriasabertudosobreoshomensdavidadela,queriaouvirqueeramtodosapenasdeprofetas,eele,oMessias.Massuapreocupaçãopelosoutros homens lhe pareceu tãomesquinha quanto o limite do cartão decrédito estourado. Estava cansado e se apoiou no ombro de Susan. Elaacariciousuacabeçacomamãoesquerdaeapressionoucontraoombro.Richardadormeceu.

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Nosdiasseguintes,eleficousabendodetudosobreoshomensnavidadeSusan. Também soube da vontade de ter filhos, pelo menos dois, de

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preferênciaquatro.Nãotinhadadocertocomomarido,daíeladeixoudeamá-loeeles se separaram.RicharddescobriuqueSusanhaviaestudadohistóriadaarte,frequentaraumcursodeadministraçãoetinharecuperadoumaempresade trenzinhoselétricos.Haviaherdadoa empresadopai e,nessemeio-tempo,atinhavendidojuntoàsoutrasempresasherdadasporela. Descobriu que Susan mantinha um apartamento em Manhattan quetinha acabado de ser reformado, porque ela queria se mudar de LosAngelesparaNovaYork.Tambémdescobriuqueela tinhaquarentaeumanos,doisamaisqueele.

TudooqueSusanfalavadasuavidaatéentãoacabavaemplanosparaum futuro conjunto. Ela descreveu seu apartamento em Nova York: aescadalarga,quelevavadapartedebaixo,nosextoandar,atéadecima,nosétimo,oscorredoresamplos,oscômodosgrandes,altos,acozinhacomoelevador de comida, a vista para o parque. Susan tinha crescido nesseapartamentoatéseuspaismorreremesuatialevá-laparaSantaBarbara.

—Desciescorregandooscorrimãosdasescadaseandeidepatinsnoscorredores.Eucabianoelevadordecomidaatéosseisanosedacamaeuconseguiaveromovimentodascopasdasárvores.Vocêtemdeconheceroapartamento!

Elanãopodiamostrá-loaRichardporque tinhadepegarumaviãodeCapeatéLosAngeleseprepararamudançadafundaçãoeaprópria.

—Vocêsereúnecomosarquitetos?Aindapodemosmudartudo.Durante a crise econômica, o avô dela tinha arrematado barato não

apenas o apartamento de dois andares, mas todo o prédio na QuintaAvenida. Assim como o imóvel em Cape e um outro nas montanhasAdirondack.

—Tambémtenhodeajeitaresse.Vocêgostadearquitetura?Construir,reformar e decorar? Eu recebi as plantas e as trouxe. Você as analisacomigo?

Susanfaloudeumcasaldeamigosquefaziaanosquedesejavaterfilhos

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e acabara de passar as férias numa “fazenda de fertilidade”. Descreveu adieta e a programação, que orientava os horários dos dois para dormir,fazerexercícios,comere tambémdiziaquandodeviamtransar.Elaachouengraçadoe,aomesmotempo,umpoucoassustador.

— Ouvi dizer que vocês, europeus, não sabem o que é isso. Vocêsencaramavidacomoumdestino,noqualnãosepodemudarnada.

—Sim—concordouele—,e,seestáescritoquevamosmatarnossospaisedormircomnossasmães,entãonãohánadaquepossamos fazerarespeito.

Elariu.—Entãovocêstambémnãopodemternenhumarestriçãoà“fazendade

fertilidade”. Se ela não ajudar no destino de vocês, também não vaiatrapalhar.

Susandeudeombros,desculpando-se.—Ésóporquenãodeucertoantes,comRobert.Talvezoproblemanão

estivesse em mim, mas nele; não fizemos exames. Apesar disso, desdeentãotenhomedo.

Richardassentiu.Eletambémficoucommedo.Depelomenosdoisenomáximo quatro filhos. De ter de amar Susan na “fazenda de fertilidade”seguindo determinada dieta e em determinados horários. Do tique-taqueruidosodorelógiobiológico,atéachegadadoquartofilhoouquandonãopudessevirmaisnenhum.DequeaentregaeapaixãodoamordeSusannãofossemrecíprocas.

— Você não precisa ficar com medo. Estou apenas dizendo o que sepassa na minha cabeça. Isso não quer dizer que seja definitivo. Vocêcensuraoquediz.

—Issoéeuropeu.Elenãoqueriafalarsobreseumedo.Susantinharazão;elecensuravao

que dizia, ela dizia o que pensava e sentia nomomento. Não, Susan nãoestava pensando numa estada na “fazenda de fertilidade” com ele. Mas

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queriapensarnofuturocomele,e,emboraRichardtambémoquisesse,acadadiamais,eleentravacommuitomenosqueela:nadadeapartamento,casas, nada de dinheiro. Se ele e amulher que tocava o segundo violinotivessem se apaixonado, então procurariam um apartamento juntos edecidiriam, juntos, quais móveis dele e quais dela iriam para o novoendereçoeoqueelesteriamdeprocurarnaIkeaouemlojasdesegundamão.Susancertamenteestavadispostaadecorarumoudoisquartoscomascoisasdele.MasRichardsabiaqueissonãodariacerto.

Podia trazer sua flauta e as partituras e usar a estante que ela comcertezatinhaentreosmóveisparaosensaios.Elepodiacolocarseuslivrosnasprateleiras,guardarseuspapéisnoarquivodopaidelaeescreversuascartasnaescrivaninhadosogro.Omelhorafazereradeixarsuasroupasnoarmário dela ali na praia; na cidade, Richard não ficaria bem ao lado deSusan comessas peças. Ela lhe compraria roupas novas comprazer e deacordocomamoda.

Eleensaiavamuito.Emgeral,aseco,comodizia,quandosimplesmentecurvavaeesticavaodedomínimo.Mastambémcadavezmaiscomaflauta.Comonunca antes, ela se tornou parte deRichard. Ela lhe pertencia, eramuitovaliosa;comela,criavamúsicaeganhavadinheiro;elepodialevá-laatodosos lugares;e,semprequeestavaemsuacompanhia,sentia-seemcasa.E,comamúsica,eleofereceualgoaSusanqueninguémmaispoderialhe oferecer. Quando improvisava, Richard descobria melodias quecombinavamcomoshumoresdela.

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Oquartono cantoda casamaioreraopreferidodeles.Asmuitas janelasiamatéochãoe,quandoodiaestavabonito,eramabertas;quandoestavafeio, ficavamcobertascomcortinas.Lá,quandoachuvanãopermitiaque

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caminhassem pela praia, sentiam-se próximos do mar, das ondas, dosalbatrozesedoseventuaisnavios.Àsvezesachuvaaçoitavaseusrostosnapraiacomtantaforçaeeratãofriaquechegavaadoer.

O quarto todo era decorado com móveis de vime, espreguiçadeiras,poltronas,mesasealmofadasmaciassobreostrançadosduros.

—Pena—comentouele,quandoSusanoconduziupelacasaeRichardviuasespreguiçadeirasquesócomportavamumapessoa.Doisdiasdepois,enquanto tomavam o café da manhã no pequeno salão, um caminhãoestacionou e dois homens de macacões azuis carregaram umaespreguiçadeiraduplaparadentroda casa.Ela combinavacomosoutrosmóveis,easalmofadastinhamamesmaestampafloral.

O tempo se ocupava em deixar um dia igual ao outro. Choviaininterruptamente, às vezes aumentando até uma tempestade, às vezesestiandoporhoraseàsvezesapenasporminutos,àsvezesocéuseabriademaneirafugazeostelhadosbrilhavam.Quandootempopermitia,Susane Richard caminhavam pela praia; se a despensa ficava vazia, iam aosupermercado.Fora isso, ficavamemcasa.Ao trocaracasapequenapelamaior,SusanligouparaaesposadeClark,Mita,quepassouavirtodososdiasparacuidardafaxina,dasroupasedacomida.ElaeratãodiscretaqueRichardsóaviuapósalgunsdias.

Certanoite,elesconvidaramLindaeJohnparaojantar.SusaneRichardcozinharam,masnãotinhamnoçãodecomofazê-loesentiramdificuldadesatéparaseguiro livrode receitas.Masconseguiram,por fim, servirbifescom batatas fritas e salada, e ficaram com a agradável sensação deconseguir superar crises juntos. Com exceção dessa vez, não convidavamnemvisitavamninguém.

—Sempreteremostempoparanossosamigos.Aocairdanoite,elesseamavam.Aluzdoentardecereraobastantee,

quando escurecia totalmente, acendiam uma vela. Eles se amavam comtantacalmaqueRichardàsvezesseperguntavasedeixariaSusanmaisfeliz

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caso arrancasse suas roupas, caísse sobre ela e a subjugasse. Ele nãoconseguia e ela não parecia sentir falta. Não somos animais selvagens,pensavaRichard,somosdomesticados.

Atésuagrandebriga,aprimeiraeúnicaquetiveram.Elesqueriamiraosupermercado, e Susan deixou Richard esperando no carro porquesubitamente teve de fazer um telefonema e essa ligação não terminavanunca.O fatode tê-lodeixadoesperarsemexplicação,de tê-loesquecidoou simplesmente descuidado dele, deixou Richard tão nervoso que eledesceu do carro, entrou na casa e ergueu a voz nomomento emque elacolocavaofonenogancho.

—Éissooquemeaguarda?Oquevocêfazéimportanteeoqueeufaçonãoé?Seutempoéprecioso,eomeu,não?

Susannãooentendeuaprincípio.—UmaligaçãodeLosAngeles.Adiretoria...—Porquevocênãomedisse?Porquevocêsempreme...— Desculpe ter feito você esperar alguns minutos. Pensei que um

europeuvissesuamulher...—Oseuropeus...Nãoaguentomaisouvirisso.Fiqueimeiahoraláfora...Nesseinstante,elatambémficoufuriosa.—Meia hora? Foram algunsminutos. Se são longos demais, entre em

casaeleiaojornal.Vocêéummimado,você...—Mimado?Eu?Quemdenós...Susan o acusou de estar agindo de maneira incompreensível e

exagerada. Richard não entendia o que poderia ser incompreensível eexageradonofatodequererteromesmovalorqueela.Ele,quenãotinhanada;ela,quetinhatudo.Elanãoentendiaqueelepodiachegaràconclusãodisparatada de que não valia nada. Por fim, gritaram um com o outro,furiosos,confusos.

—Odeiovocê!Susan foi na direção dele, que desviou. Ela continuou próxima de

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Richarde,quandoopressionoucontraaparede,semteraondeir,bateunopeitodeleatéqueRichardaseguroueaabraçou.Primeiro,Susanmexeunosbotõesdacamisadele,depoisosarrancou.Richardtentoutirarojeansdela,eelaosdele,masoesforçoeragrandeeestavaindomuitodevagar,eassimelesprópriossedespiramdosjeans,daroupadebaixoedasmeiasnuminstante.Elesseamaramnochãodocorredor,apressados,ansiosos,apaixonados.

Emseguida,Richard ficoudeitadodecostaseSusanentreobraçoeopeitodele.

—Entãoéisso—declarouele,eriufeliz.Susanfezumpequenomovimento,balançouacabeça,ergueuosombros

e se aproximou ainda mais dele. Richard sentiu que ela, diferentementedele, não tinha transferido a paixão da briga para a paixão do amor. Elahavia arrancado sua camisa não porque queria sentir o peito dele, masporque queria encontrar o coração. Sua paixão havia sido dedicada aoretornoàcalmaqueelesperderamnabriga.

Os dois foram ao supermercado, e Susan encheu o carrinho como sefossem ficar mais semanas. No caminho de volta, o sol atravessou asnuvenseelestomaramapróximaruaatéomar,nãoatéomaraberto,masàbaía.Aáguaestavacalma,eoar,claro;elesavistaramopicodeCapeeooutroladodabaía.

—Gostodequandoavisibilidadeficatãoboa,eoscontornos,tãonítidosassim,antesdeumatempestade.

—Tempestade?—Sim.Nãoseiseéaumidadeouaeletricidadequedeixaoartãoclaro,

maséoaranterioraumatempestade.Traiçoeiro;eleprometeumtempobom,massurgeumatempestade.

—Porfavor,medesculpeportersidorudemaiscedo.Eunãoapenasfuirudecomogriteicomvocê.Sintomuito,deverdade.

Richard esperou que ela dissesse alguma coisa. Depois, viu que Susan

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estavachorandoeficouparado,assustado.Elaergueuorostomolhadodelágrimasecolocouosbraçosemtornodopescoçodele.

—Ninguémnuncamedissenada tãobonito.Pedirdesculpasporalgoquetenhafeito.Tambémsintomuito.Eutambémgritei,xingueiebati.Nãovamosrepetirissonuncamais,ouviu?Nuncamais.

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Echegouoúltimodia.Ovoodelaeraàsquatroemeia,eodele,àscincoemeia,eosdoistomaramcafédamanhãtranquilamente,aprimeiraveznoterraço.Osolbrilhavatãoquente,comoseachuvaeo frio tivessemsidoapenasumainfecçãodaqualoverãojáhaviaserecuperado.Depois,deramumacaminhadapelapraia.

—Sãoapenasalgumassemanas.—Euseidisso.—Vocêvaiselembrardareuniãodeamanhãcomoarquiteto?—Sim.—Edocolchão?—Eu nãome esqueci de nada. Vou comprar um colchão emóveis de

papelão e pratos e talheres de plástico. Quando tiver tempo, vou aodepósito demóveis ver se alguma coisa dos seuspaisme agrada. Vamosdecorartudojuntos,peçaporpeça.Euteamo.

—Foiaquiquenósnosencontramosnoprimeirodia.—Sim,nocaminhodeida.Enodevolta,ládooutrolado.Os dois conversaram sobre como tinham se encontrado, o quão

improvávelesseencontrohaviasido,porque teriasidomaisnaturalparaRichard pegar uma direção e, para Susan, uma outra, como não teriamficadojuntosànoite,norestaurantedefrutosdomar,casoelanãotivessesorridopara ele—não, caso elenão tivesseolhadopara ela; comoela o

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haviaencontrado—não,comoeleahaviaencontrado.—Vamos fazerasmalasedepoisabriras janelasdoquartodocanto?

Aindatemosalgumashoras.—Vocênãoprecisalevarmuitacoisa.Deixesuasroupasdeverãoede

praiaaqui,assimelasvãoestaresperandoporvocênoanoquevem.Richard assentiu. Embora Linda e John tivessem devolvido parte do

dinheiro que ele havia pagado adiantado, seu cartão de crédito estavairremediavelmente estourado. Mas a ideia de comprar coisas novas emNova York no lugar dessas que deixaria ali e aumentar aindamais suasdívidas já não o assustava. Era assim que tinha de ser quando se viviaacimadasprópriasposses.Nofim,encontrariaumasolução.

Com as bolsas de viagem arrumadas ao lado da porta, a casa passavaumasensaçãodeestranheza.Elessubiramasescadas,comofizeramtantasvezes.Porémpisavamcomcuidadoefalavambaixo.

Elesabriramas janelaseescutaramosomdomareosgrasnadosdasgaivotas.Osolaindabrilhava,masRichardbuscouocobertordoquartoeoesticousobreaespreguiçadeiradupla.

—Venha!Osdoissedespirameentraramdebaixodocobertor.—Comovoudormirsemvocê?—Ecomoeuvoudormirsemvocê?—VocênãopodemesmovircomigoaLosAngeles?—Tenhoensaios.VocênãopodevircomigoaNovaYork?Susanriu.—Euprecisocompraraorquestra?Eentãovocêremarcaosensaios?—Vocênãoconseguecompraraorquestratãorápido.—Devoligar?—Venhacomigo!Tinhammedodadespedidaeaomesmotemposuaiminênciaosdeixava

estranhamente leves. Eles não estavammais vivendo juntos e ainda não

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haviamchegadoàvidaindividual,estavamnumaterradeninguém.Eassimse amaram, inicialmente um pouco hesitantes, porque se tornarammaisestranhosdenovo,edepoiscomardor.Comosempre,Susanoobservavaenquantoisso,absorta,confiante.

ElesforamatéoaeroportonocarrodeSusan.Clarkiriabuscá-loelevá-lo de volta. Informaram um ao outro quando e onde estariam e se erapossívelfalaraotelefone,comosenãotivessemumcelularatravésdoqualestariam disponíveis a qualquer momento, em qualquer lugar.Descreveram um ao outro o que fariam nos dias e nas semanas até seureencontro,eàsvezesbrincavamcomcomofariamissoeaquilojuntos,nofuturo. Quanto mais se aproximavam do aeroporto, maior se tornava anecessidadedeRicharddesedespedirdizendoalgoquefosseacompanhá-la.Masnãotevenenhumaideia.

—Euteamo—diziaeleotempotodo.—Euteamo.

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Dointeriordoavião,elebemquegostariadetervistoacasaeapraiaoutravez.Maselasficavamaonorteeovooseguiaasudoeste.Eleavistoumareilhas,depoisLongIslande,porfim,Manhattan.OaviãofezumacurvabemabertaatéorioHudson,eRichardreconheceuaigrejaqueficavaapoucospassosdoseuapartamento.

Havia sidodifícil se acostumar aobairro.O lugar erabarulhento e, nocomeço,nocaminhodecasaànoite,aopassarpelosgarotosdescoladosevalentões que ficavam sentados nos degraus diante dos prédios ouencostados nos muros, bebendo, fumando e ouvindo música alta, eletambémnão se sentia em segurança.Às vezes, falavam comele, quenãoentendiaoquequeriameporqueoencaravamdemododesafiador,rindocomdesdémquandoRichard virava as costas. Certa vez, eles impediram

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suapassagemepediramacaixadaflauta—pensouquequisessemroubaro instrumento, mas desejavam apenas vê-la e ouvi-la. Eles desligaram amúsica e o silêncio súbito os deixou um pouco constrangidos. Richardtambém se sentiu constrangido e, mais ainda, com medo. No começo, aflauta soouaguda,porémdepois ele tomoumais corageme relaxou, eosgarotos assobiavam a melodia e batiam palmas para marcar o ritmo.Richard tomou uma cerveja com eles. Desde então, era cumprimentadocom“hey,pipe”ou“hola,flauta”,erespondia,aospoucosconhecendoseusnomes.

Seu apartamento também era barulhento. Ele escutava os vizinhosbrigando, agredindo-se e se amando, e conhecia suas preferências natelevisãoenorádio.Certanoite,escutouumtironacasaedurantealgunsdias,naescada,encaroutodosdemododesconfiado.Quandoumvizinhooconvidavaaumafesta,Richardtentavaligaraspessoasaossons:amulherde lábios finos à voz esganiçada, ohomemcomas tatuagensaos tapas, afilharoliçaeonamoradoaosruídosdequandofaziamamor.Umavezporano,ele retribuíaosconvitescomuma festaprópria,naqualosvizinhos,queseodiavammutuamente,suportavam-seporsuacausa.Richardnuncaouviureclamaçõessobreosomdasuaflauta;elepodiaensaiardemanhãcedooutardedanoiteepoderiaatétertocadoàmeia-noitesemperturbarninguém.Sempredormiacomprotetoresauriculares.

O bairro foi mudando ao longo dos anos. Jovens casais reformavamcasasdecadentesetransformavamimóveisvagosemrestaurantes.Richardconheceuvizinhosmédicos,advogadosebancários,epodiasairparajantarcomasvisitasnumlugarmaisarrumado.Seuprédio faziapartedaquelesquepermaneciamcomoestavam;osherdeirosdoimóvelbrigavamdemaisparaconseguirchegaraumconsensoquantoavendê-looureformá-lo.Maselegostavaassim.Gostavadobarulho.Issolhedavaasensaçãodevivernomundointeiro,enãoapenasnumenclavedariqueza.

Richard percebeu que, ao descrever para Susan os dias e as semanas

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seguintes, tinha deixado de mencionar o segundo oboísta. Eles seencontravam uma vez por semana para jantar no italiano da esquina econversavamsobreavidanaqualidadedeeuropeusnosEstadosUnidos,asexpectativas e as decepções profissionais, as fofocas da orquestra emulheres— o oboísta era de Viena e achava as americanas tão difíceisquanto Richard as havia achado até então. Ele deixara de mencionartambém o velho que vivia no sótão do prédio e que às vezes ia até seuapartamento jogar uma partida de xadrez, de um jeito tão criativo eperspicazqueRichardnãose importavadesempreperder.ElenãohaviacontadonadasobreMaria,umadasgarotasdarua,que tinhaconseguidosabe-selácomoumaflautaelhepedidoajudanaembocadura,nosorifíciosenaleituradapartituraeque,nahoradesedespedir,abraçou-o,colouoslábiosaosseuseapertou-seaoseucorpo.Tambémnãohavialhecontadodasaulasdeespanholcomoprofessorsalvadorenhoexilado,quemoravaumaruaalém,nemdaacademiadecadentenaqualsesentiabem.Eletinhadescrito a Susan apenas os ensaios e as apresentações da orquestra, oflautista que vez ou outra ensaiava em seu apartamento, os filhos da tia,que depois da guerra emigrara para Nova Jersey com um soldadoamericano, que estava aprendendo espanhol, mas não com quem, e quefrequentavaumaacademia,masnãoqual.Richardnãoqueriaterescondidonadadela,masaconteceu.

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O táxi o deixou diante do seu prédio. Estava quente, mães com bebêssentavam-senosdegraus,criançasbrincavamdeesconde-escondeentreoscarros estacionados, velhos abriram cadeirasde armar e trouxeram latasde cerveja, alguns jovens se esforçavam para caminhar como homens, ealgumasgarotasolharamparaele,rindo.

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—Hola,flauta—cumprimentouovizinho—,devoltadaviagem?Richard olhou para cima e para baixo da rua, sentou-se na escada,

colocouabolsadeviagemaoseuladoeapoiouosbraçosnosjoelhos.Esseera seu mundo: a rua, as casas ajeitadas e as caindo aos pedaços; naesquina, o restaurante italiano no qual se encontrava com o oboísta; naoutraesquina,aruacomasmercearias,abancadejornaleaacademiadeginástica; e, sobre as casas, sobressaía a torre da igreja ao lado da qualmorava seu professor de espanhol. Richard não tinha apenas seacostumadoaessemundo.Eleoamava.DesdesuachegadaaNovaYork,não tivera nenhum relacionamento sério com uma mulher. O que oseguravaalierao trabalho,osamigos,aspessoasqueviviamnaruaenoprédio,arotinadascompras,daginástica,darefeiçãosemprenosmesmosrestaurantes.Nos dias emque buscava o jornal pelamanhã, trocava trêsfrasessobreotempocomAmir,odonodabanca,depoisliaojornalnocaféonde aprenderam a lhe servir dois ovos num copo com cebolinha e pãointegral tostado, depois ensaiava algumas horas, depois limpava oapartamento ou lavava roupa, depois treinava na academia, depoisensinava algo aMaria e era abraçado por ela, depois comia espaguete àbolonhesanorestaurante italiano,depois jogavaumapartidadexadrezedepoisiadeitar;nadalhefaltava.

Ele olhou para as janelas do seu apartamento no alto do prédio. Aclematite floria; talvezMariarealmentea tivesseregado.Haviacomeçadocom vasos, e agora elas se espalhavam diante de várias janelas. Mariatambém tinha prestado atenção no balde que recolhia as gotas do canoquebrado? Era preciso consertar isso, ele não tivera tempo antes daviagem.

Richard se levantou para subir. Mas se sentou novamente. Pegar acorrespondência da caixa, vencer a escada, destrancar a porta, arejar oapartamento, desfazer a bolsa de viagem, verificar a correspondência eresponderaume-mailououtro,depoistomarumbanhoquente,colocara

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roupasujanocestoetiraraspeçaslimpasdoarmário,entãoencontrarnasecretáriaeletrônicaaperguntadooboístasehojeànoiteelesiriamsevereretornara ligaçãoeaceitar—casovoltasseàsuavidaantiga,elanãoolargariamais.

Oquehavia imaginado?Quepoderia levar suavidaantigaparaavidacomSusan?Queeleatravessariaacidadealgumasvezesporsemanaparair à academia e às aulas de espanhol? Que então encontraria, por acaso,Mariaeosgarotos?Queovelhodoseuprédioiriapegarumtáxi,dirigir-seao apartamento de dois andares na Quinta Avenida e jogar uma partidacom Richard no salão, debaixo de um Gerhard Richter autêntico? Que ooboísta se sentiria à vontade num restaurante do East Side? Com razãotinha ocultado as muitas facetas da sua vida que não eram possíveis deseremencaixadasnavidacomSusan.Nãoquisenfrentarofatodequetinhadeabrirmãodavidaantigapelanova.

Edaí?EleamavaSusan.NaquelesdiasemCape,elahaviasidosua,eelesesentiupleno.Seriasuaalitambém,ealitambémsesentiriapleno.Afinal,osdiasemCapenãoforamtãomaravilhosossimplesmenteporestarlongeda sua vida! Sua vida ali não podia se intrometer entre os dois apenasporque estava a cerca de três quilômetros da nova vida, que era muitoconcreta!

Sim, ela podia se intrometer. Ou seja, Richard não podia subir aoapartamento, precisava ir embora, deixar a vida antiga para trás, partirparaanova,ali,agora.Acharumhotel.AcamparnoapartamentodeSusan,entre escadasdepintor e baldesde tinta. Pedir para alguémbuscar seuspertences e levá-los até ele. Mas a ideia de um quarto de hotel ou doapartamentodeSusanlhedavamedoeelejáestavacomsaudadesdecasa,emboraaindanãotivessepartido.

Ah, se ainda estivesse com Susan em Cape! Se o apartamento dela jáestivesse pronto e ela estivesse ali! Se um raio atingisse o prédio e oincendiasse!

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Richardfezumaapostaconsigomesmo.Casoalguémentrassenoprédionos próximos dez minutos, ele também entraria; caso contrário, pegariasua bolsa de viagem e semudaria para um hotel no East Side. Passadosquinzeminutos,ninguémaindahaviaentradonoprédioeele continuavasentado na escada. Tentou mais uma vez. Caso nos próximos quinzeminutosumtáxivaziopassassepelarua,eleopegariaeiriaatéumhotelnoEast Side; caso contrário, subiria até seu apartamento. Depois de umminutopassouum táxivazio.Richardnão fez sinalparaomotoristamastambémnãosubiu.

Confessou a si próprio que não conseguia resolver isso sozinho. EleestavadispostoaconfessaraSusantambém.Precisavadaajudadela.Susantinha de vir até ele e ficar ao seu lado. Tinha de ajudá-lo a desmontar oantigoapartamentoetinhadesemudarcomeleparaonovo.Depoisdissoelapoderia iraLosAngeles.Richardligouparaela,queestavanasaladeembarqueemBoston,masprontaparapartir.

—EstouprestesaembarcarnoaviãoparaLosAngeles.—Precisodevocê.—Eutambémprecisodevocê,meuquerido!Sintotantosuafalta.—Não,euprecisodevocêdeverdade.Nãoestouconseguindolidarcom

minhavidaantiganemcomanova.Vocêprecisavir;maistardevocêsegueparaLosAngeles.Porfavor!

Ofoneestalou.—Susan?Vocêestámeouvindo?—Estouindoparaoportãodeembarque.VocêvemparaLosAngeles?—Não,Susan,venhavocêparaNovaYork,estoupedindo.—Eugostariatantodeir,gostariatantodeestarcomvocê.Richardescutoualguémpedirocartãodeembarquedela.—Talvezpossamosnosvernopróximo finalde semana, combinamos

pelotelefone,tenhodeentrarnoavião,souaúltima.Euteamo.—Susan!

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Maselahaviadesligadoe,quandoeletelefonoudenovo,ouviuorecadodacaixapostal.

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Escurecia.Ovizinhosesentouaoseulado.—Problemas?Richardassentiu.—Mulheres?Richardriueassentiudenovo.—Euentendo.O vizinho se levantou e foi embora. Pouco depois ele voltou, colocou

umagarrafadecervejaaoladodeRichardepousouamãoemseuombro.—Beba!Richardbebeu,observandoamovimentaçãodarua.Ascriançasdeuns

prédiosadiantequefumavam,bebiameouviammúsicaalta.Otraficanteàsombra da escada, que distribuía em silêncio papelotes dobrados eembolsavanotasdedinheiro.Ocasalenamoradonaentradadoprédio.Oúltimovelhoqueaindanãotinhafechadoelevadoparacimasuacadeiradearmarequeàsvezespegavauma latadecervejadabolsa térmica.Aindaestavaquente;noar,nãohaviaindíciosqueanunciassemaaproximaçãodooutononessanoitedofinaldeverão,masapromessadeumaestaçãoqueterminariadevagar,suavemente.

Richard estava cansado. Ainda tinha a sensação de que precisava sedecidirpelavidaantigaouanova,queprecisavaapenasteropensamentocertoouacoragemnecessária—daíselevantariasozinhoesubiriaouseafastaria dali. Mas a sensação estava cansada, tão cansada quanto elepróprio.

PorquetinhadepegarumtáxiesedirigiraumhotelnoEastSidejusto

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hoje?Porquenãoamanhã?Porquenãopodiaficaremsuavidaantiga,atéseajustarànova?Afinal,seriaridículoseelenãoconseguissetrocaravidaantiga pela nova em algumas semanas. Também iria conseguir agora. Setivessedeserassim.Masnãotinha.Alémdisso,casopartisseagora,nadaoimpediria de voltar amanhã. Se partissemais tarde, não voltariamais. AvidanovacomSusanoseguraria.

O importante era se decidir. E havia se decidido. Abandonaria a vidaantigaecomeçariaumanovacomSusan.Assimqueelepudessecomeçarde verdade.Mas aindanãopodia. Richard iria fazê-lo quando chegasse ahora.Iriafazê-loporquetinhasedecidido.Eleiriafazê-lo.Sónãoagora.

Quandose levantou,seucorpoestavadoendo.Eleseaprumoueolhouaoredor.Ascriançasestavamemcasa,assistindoà televisão, jogandonocomputadoroudormindo.Aruaestavavazia.

Richardsegurouabolsadeviagem,abriuaportadoprédio,apanhouacorrespondência, subiu a escada e destrancou a porta do apartamento.Atravessouoscômodoseabriuasjanelas.Obaldequerecolhiaasgotasdocano quebrado estava quase vazio e um buquê de rainhas-margaridasrepousava sobre a mesa. Maria. O oboísta perguntava na secretáriaeletrônica se eles iriam se ver naquela noite. Num cartão-postal, oprofessordeespanholmandava lembrançasdas fériasnumcursode iogano México. Richard ligou o computador e depois o desligou; os e-mailspodiamesperar. Eledesarrumouabolsade viagem,despiu-se e jogou asroupasusadasnocesto.

Estava nu no quarto, escutando os ruídos da casa. Ao seu lado haviasilêncio. Uma televisão estava ligada baixinho no andar de cima. Dosandaresinferioreschegavaaconfusãodevozesdeumadiscussão,atéqueuma porta foi batida com força. O ar-condicionado zunia em algumasjanelas.Oprédiodormia.

Richardapagoualuzesedeitounacama.Antesdeadormecer,lembrou-sedeSusan,empénosdegrausdoavião,rindoechorando.

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AnoiteemBaden-Baden

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E

1

le levouTherese,porqueelaesperavapor isso.Porqueela ficavafelizcom isso. Porque, em sua felicidade, ela era uma boa companhia.

Porquenãohaviaumbommotivoparanãoalevar.Eraaestreiadasuaprimeirapeça.Eledeviaseacomodarnocamarotee,

nofinal,iraopalcoereceberosaplausosouasvaiasaoladodosatoresedodiretor.Achavaquenãomereciaservaiadoporumaapresentaçãoquenãohaviaencenado.Maselequeriamuitoestarnopalcoeseraplaudido.

Ele reservou um quarto duplo no Brenners Park-Hotel, onde nuncahaviaficadoantes.Sentia-sefelizpelo luxodoquartoedobanheiroeporconseguirpassearpeloparqueetomarearlgreyecomerumclubsandwichnavarandaantesdaapresentação.Elespartiramnoiníciodatarde;apesardo trânsito de sexta-feira, seguiram numa boa velocidade pela estrada echegaram às quatro em Baden-Baden. Primeiro, ela tomou banho nabanheira com acabamento em metais dourados, depois ele. Em seguida,caminharampelo parque e tomaram, após o earl grey e o club sandwich,champanhenavaranda.Estaremjuntoseraagradávelerelaxante.

MasTheresequeriamaisdeledoqueelequeriadelaedoquepoderialhedar.Duranteumanointeironãoquisvê-loporcausadisso,massentiafalta dessas noites a dois com cinema ou teatro e jantar, então seconformoucomofatodeelasterminaremnumbeijofurtivoàportadacasa

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dela.Àsvezes,Thereseseaninhavanelenocinemaeàsvezeselecolocavao braço ao redor dos seus ombros. Às vezes, ela segurava amãodele aocaminhar, e às vezes ele segurava a mão dela com firmeza. Será queTheresevianissoapromessadequeseriapossívelhaveralgomaisentreosdois?Elenãoqueriasaberaresposta.

Noteatro,foramcumprimentadospelodiretor,apresentadosaosatoreselevadosaocamarote.Entãoacortinaseergueu.Elenãoreconheceusuapeça.Nopalco,anoitenaqualumterroristaseescondenacasadospais,comairmãeoirmão,tinhasetransformadonumanoitegrotesca,naqualtodosseportavamdemaneiraridícula,oterroristacomsuasfrases,ospaiscomsuahonradezamedrontada,oirmãoalpinistasocialeairmãmoralista.Masfuncionoue,apósumabrevehesitação,elerecebeunopalcoaspalmasaoladodosatoresedodiretor.

Therese não havia lido a peça e estava simplesmente feliz com seusucesso.Issofezbemparaele.Nojantarapósaestreia,elanãoparavadelhe sorrir de modo amistoso, tanto que ele, sempre tenso em eventossociais,esqueceu-sedatimidez.Percebeuqueodiretornãotinhausadosuapeçaparaogrotesco,masa interpretadocomogrotesca.Eledeviaaceitarquehaviaescrito,semquereresemsaber,umapeçagrotesca?

Eles voltaram um pouco bêbados para o hotel. O quarto estavaarrumado para a noite, as cortinas, fechadas, e a cama pronta. Ele pediumeiagarrafadechampanhe,osdoissesentaramdepijamasnosofáeeleestourouarolha.Nãohaviamaisnadaadizer,porémnãoimportava.HaviaumaparelhodesomsobreacômodacomalgunsCDsaolado,entreelesumdemúsicasfrancesastocadascomacordeão.Thereseseaninhounele,quepassou o braço pelos seus ombros. Depois, o champanhe e o CDterminarameosdoisforamparaacama,dandoascostasumparaooutroapósumbeijorápido.

Nodia seguinte, demorarama voltarpara casa.Visitarama galeriadearteemBaden-Baden,pararamnumprodutordevinhoeforamaocastelo

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emHeidelberg.Acompanhiadelaeralevenovamente.Mas,quandosentiao telefone no bolso da calça, seu bem-estar desaparecia. Ele o tinhadesligado—oquehaviaseacumuladonoaparelho?

2

Nada,comonotouànoiteemcasa.SuanamoradaAnnenãotinhadeixadonenhum recado. Não era possível verificar se entre as ligações perdidashaviaalgumadela;talvezonúmerorestritofosseseu,talveznão.

EleligouparaAnne.Sentiamuitopornãoterconseguidoligarànoitedohotel.Haviachegadomuitotarde.Hoje,saíracedoenãoquisperturbá-la.Sim,eeletinhaesquecidoocelularemcasa.

—Vocêtentoufalarcomigo?—Foiaprimeiranoiteemsemanasquenãonosfalamos.Sentisuafalta.—Eutambémsentiasua.Eraverdade.Elesentiuqueaúltimanoitefoiumerro.Aproximidadena

cama tinha sido demais. Não correspondia a uma proximidade interior,incentivadapeloamor,pelodesejoouaindapelanecessidadedecaloroumedodasolidão.ComAnne,acama,anoiteteriamparecidocertas.

—Quandovocêvem?—perguntouela,deformacarinhosaeexigente.—Acheiquevocêviria.Elanãotinhaprometidopassaralgumassemanascomele,apósocurso

que estava ministrando em Oxford? Semanas pelas quais ele tanto sealegravaquantotemia.

—Sim,masaindafaltamquatrosemanas.—Voutentarirnãonesse,masnooutrofimdesemana.Anne ficou em silêncio. Quando ele quis perguntar se havia algum

problemanooutrofimdesemana,eladisse:—Vocêestádiferente.

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—Diferente?—Diferentedonormal.Temalgodeerrado?— Nada de errado. Talvez eu tenha comemorado demais depois da

estreia.Fuidormirmuitotardeeacordeimuitocedo.—Oquevocêfezhojeodiainteiro?—PesquisasemHeidelberg.Querofazerumacenasepassar lá.—Ele

não conseguiu pensar em outra coisa tão rápido. Agora uma cena dapróximapeçatinhadeacontecerlá.

Elaficouemsilênciodenovo,antesdedizer:— Isso nãonos faz bem.Você aí e eu aqui. Por que não escreve aqui,

enquantoestoudandoaula?—Nãoposso,Anne,nãoposso.Voumeencontrarcomodiretorartístico

do teatro Konstanz e o editor da editora do teatro, e prometi a Steffenajudá-lonacampanhaeleitoral.Vocêachaqueeu,diferentedevocê,possoorganizar tudo do jeito que quiser. Mas não posso deixar as coisas pelametade.

EleficouirritadocomAnne.—Campanhaeleitoral...—Ninguémobrigouvocê...Ele queria dizer que ninguém a havia obrigado a aceitar o curso em

Oxford.Mas a pesquisa dela era sobre a teoria feminista do direito, umaáreamuito restrita, com a qual ela não conseguia nenhuma cadeira fixa,apenascursosesporádicos.Annedeveriaterampliadosuaárea.Noentantoelanãoqueriafazernadadiferente,eaprocurapelosseuscursosmostravaqueeraboanaquilo.Não,elenãoqueriasermaldoso.

—Precisamosnosorganizarmelhor.Precisamosconversarquandoumquiser algo do outro. Precisamos combinar o que aceitamos e o querejeitamos.

—Vocêpodevirjánaquarta?—Voutentar.

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—Euteamo.—Eutambémteamo.

3

Ele estava com a consciência pesada. Tinha mentido para Anne, ficouirritado com ela, havia sido quasemaldoso e estava aliviado pelo fim daconversa ao telefone. Ao sair para a varanda, sentiu o calor e atranquilidade típicosdoverãoesesentou.Àsvezesumcarropassavanarua,àsvezeseleouviaosomdepassos.Tambémestavacomaconsciênciapesada porque não tinha ligado para Therese e perguntado se ela fizeraumaboaviagemeseestavatudobememcasa.

Depois, arrependeu-se por estar com a consciência pesada. Não devianadaaTherese.AquiloqueocultaradeAnneprecisavasermantidoassimporque ela iria reagir de maneira exageradamente enciumada. Suasnamoradas anteriores não teriam se incomodado ao saber que ele haviadividido a cama com outra mulher durante uma viagem ou uma visita,desdequefossesomenteacama.Anneficariaforadesi.Porqueelatinhadefazertantoescândaloporcausadeoutramulher?Eofatodeacharqueele escrevia as leis da própria vida sozinho e que estaria sempre àdisposição, enquantoelaprecisavaobedeceràs leisdaprofissão—comonão se irritar com isso?Elahavia escolhidoumcaminho, assimcomoeleescolheraopróprio.

Estava aliviado pelo fim da conversa pelo telefone e já estava ansiosopelapróxima.Osdoisseconheciameseamavamhaviaseteanoseaindanão tinham conseguido dar uma forma sólida à vida em comum. AnnedispunhadeumapartamentoeministravaumcursoemAmsterdã,quenãogarantia seu sustento e do qual poderia abrir mão a qualquermomentoparalecionarnaInglaterra,nosEstadosUnidos,noCanadá,naAustráliaou

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naNovaZelândia.Porisso,eleavisitavaaondefosseeficavaàsvezesmais,àsvezesmenostempo.Nosintervalos,AnnepassavadiasousemanascomeleemFrankfurt,eele,diasoumesescomelaemAmsterdã.Eleaachavaexigente demais em Frankfurt e ela o achava muito mesquinho. EmAmsterdãa tensãoeramenor,sejaporqueelaeramaisgenerosaqueele,sejaporqueeleeramaiscomedidoqueela.Passavamjuntospoucomaisdeumterçodoano.Norestantedotempo,avidadeAnneeranômade,umavidademalasehotéis,enquantoadeletranscorriasemmaioresagitações— com eventos e reuniões, com associação de escritores e partido, comamigose,sim,comTherese.

Nãoquetudoissolhesignificassemuitacoisa.Elesesentiaaliviadocomtodo evento que era cancelado, com todo compromisso postergado, comtodoconviteepedidopolíticoquenãoachavaocaminhoatésuacaixadecorreio ou de e-mail. Mas se afastar de tudo para ficar com Anne epercorreromundocomela—não,issoeraimpossível.

Eraimpossível,emboramuitasvezessentissefaltadasuapresença—edeumamaneiradolorosa.Quandoficavafelizequeriadividirafelicidadecomela,quandosesentiatristeeseuconsoloeranecessário,quandonãoconseguiaconversarsobreseuspensamentosedúvidas.Quandosedeitavasozinho na cama. Entretanto, quando estavam juntos, raramenteconversavam sobre seus pensamentos e suas dúvidas; no momento doconsolo, ela não era tão empática, e na felicidade, não tão entusiasmadaquanto ele desejaria. Anne era uma mulher que encarava as coisas demaneira decidida; e, quando a viu pela primeira vez, enxergou nela essadecisãoarrebatadoraemseulindorostocamponês,commuitassardaseocabelo ruivo, e gostou dela de imediato. Também gostava do seu corpopesado,forte,confiável.Adormecereacordarcomeleeencontrá-loànoitena cama — isso era muito bom tanto quando estavam juntos quantoquandoestavamseparadoseelefantasiava.

Independentemente da intensidade dos seus desejos, da delícia dos

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encontros, suas discussões eram destrutivas. Porque ele estava maisacostumadocomavidalongedelaqueadoisenquantoela,não.Porqueelenãoeratãoflexíveledisponívelquantoelaachavaquepoderiaser.Porqueela não assumia compromissos no trabalho que ele achava que deveriaassumir.Porqueelaespionavaascoisasdele.Porqueelementiaquandoaspequenas mentiras pressupunham evitar grandes conflitos. Porque elenunca fazia nada do jeito que ela julgava certo. Porquemuitas vezes elaachava que era tratada sem respeito nem carinho. Quando Anne ficavafuriosa, gritava e ele se retraía. Às vezes, emmeio à gritaria, um sorrisodesajeitadosurgianorostoindefesodeleeelaficavaaindamaisfuriosa.

Mas as feridas das discussões saravam mais rápido que as dores dasaudade.Depoisdeumtempo,restavamdasbrigasapenasalembrançadequehaviaporláumafontequentequevoltaemeiaborbulhava,sibilavaesoltava vapor, e que poderia chegar a cozinhá-los e queimá-losmortalmente,casocaíssemnela.Talvezalgumdiaeles tambémviessemadescobrir que essa fonte quente era apenas um fantasma. Algum dia?Talvezjánopróximoreencontro,peloqualansiavamesealegravam!

4

Ele não pegou o avião na quarta, mas apenas na sexta. Na segunda,enquantojantavanorestauranteitalianodaesquina,umsenhorquetinhapedido uma pizza para viagem se juntou a ele. Os dois começaram aconversar,ooutroseapresentoucomoprodutoreelesdiscorreramsobretemas,peçase filmes.Nahorade irembora,ooutrooconvidouparaumcafé em seu escritório na quinta. Era seu primeiro contato com umprodutor; ele sonhava com cinema havia tempos,mas nunca soubera deninguém a quem oferecer seus sonhos. Então, remarcou de quarta parasexta.

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ElenãofoiparaaInglaterralevandonobolsoocontratoparaumroteiroouumtratamentoderoteiro,comoesperava.Detodomodo,oprodutorohaviaconvidadoaescreverumasinopsesobreumtemaououtrosobreosquais eles conversaram. Isso já não era um sucesso? Não sabia, nãoconhecia os meandros do mundo do cinema. Mas ele embarcou bem-humoradonoaviãoebem-humoradoaterrissou.

ElenãoviuAnneeligouparaela.UmahoradeOxfordaHeathrow,umahoraesperandonoaeroporto,umahoraparavoltar—tinhade terminarumensaio e havia ficadopresa à escrivaninha.Afinal, elenão iria quererqueelaficassetrabalhandoanoiteinteira.Não,elenãoiriaquererisso.MasachouqueAnnepoderiatercomeçadooensaiocomantecedência.Elenãolhedisseisso.

Afaculdadehavialhedisponibilizadoumapartamentopequeno,dedoisandares.Eletinhaumachave,abriueentrou.

—Anne!Subiuaescadaeaencontrounaescrivaninha.Elapermaneceusentada,

envolveuabarrigadelecomosbraçoseapoiouacabeçaemseupeito.—Medêmaismeiahora.Vamosdarumavoltadepois?Fazdoisdiasque

nãoponhoospésforadecasa.Ele sabia quemeia hora eramodo de dizer, desfez amala, organizou

suas coisas e fez algumas anotações sobre a conversa com o produtor.QuandofinalmenteforampassearpeloparqueaolongodoTâmisa,osoljáestavabaixo,océubrilhavaemazul-escuro,asárvoreslançavamsombraslongas sobre o gramado baixo e os passarinhos já haviam encerrado ocanto. Um silêncio misterioso envolvia o parque, como se ele tivesse seafastadodosruídosdomundo.

Durante um bom tempo, nenhum dos dois falou nada. Então, Anneperguntou:

—ComquemvocêesteveemBaden-Baden?Oqueelaestavaperguntando?AnoiteemBaden-Baden,aconversaao

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telefone na noite seguinte, a leve mentira, a consciência pesada — eleachouquetudoissojáeracoisadopassado.

—Comquem?—Porquevocêachaqueeu...—LigueiparaoBrennersPark-Hotel.Ligueiparamuitoshotéis,masno

Brennerselesmeperguntaramseeraparaacordarossenhores.Dequeladodacamaficavaotelefone?Pensarqueelapodiaterpedido

paraquealigaçãofossetransferidaodeixouempânico.MasAnnenãofezisso.Comoopessoaldohotelfalou?Éparaacordarossenhores?

—Ossenhores.Elesseexpressamassim,tantofazsesãováriaspessoasou apenas uma. É só um modo de falar. Por que você não pediu paratransferiraligação?

—Paramimchega.Eleaenvolveucomobraço.—Nossosproblemasdecomunicação!Você lembraquandoeuescrevi

emalemãoquequeria“mitdirschmusen”,afagarvocê,equeentendeuqueeu queria “schmooze with you”, enrolar você? Ou quando me disse, eminglês, que viria ao encontro de família “in principle”, que entendi comosendoumaconfirmação,emboravocêsóestivessedizendoqueiriapensarnoassunto?

—Porquevocênãomecontouque ficounoBrennersPark-Hotel?Eume informei, o hotel estava lotado. Então você deve ter reservado comantecedência.Normalmente, vocêmediz onde vai passar a noite quandosabedeantemão.

— Eu esqueci. A reserva estava feita havia semanas, na sextasimplesmenteentreinocarroeemBaden-Badenverifiqueiospapéiscomoendereço e o horário da apresentação e o da reserva. Como eu estavaatrasado,conseguiapenasfazerocheck-inetrocarderoupa.Nãodeuparaligarparavocê.Depoisdapeçaedafesta,nãoquisacordá-la.

—Umquartoporquatrocentoseuros.Vocênãocostumagastartanto.

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—OBrennerséespecialepassarumanoiteláeraumsonhoantigo.Eu...— E você esqueceu que reservou esse sonho antigo? Por que está

mentindoparamim?—Nãoestoumentindoparavocê.Elelhecontoudoestressedasúltimassemanas.Dequetambémtinhase

esquecidodissoedaquilo,alémdecoisasimportantesquegostariadeterfeito.

Annecontinuoudesconfiada.— O Brenners é um sonho antigo seu e você chega tão tarde e vai

emboratãocedo,semaproveitarnadadolugar?Issonãofazsentido.—Não,nãofaz.Maseutambémnãoestavafazendosentidonasúltimas

semanas.Elecontinuou falandosobredesempenhoeestresse,contratosedatas,

reuniõesetelefonemas.Descreveuessassemanasdasuavidademaneiraexagerada,masnãototalmenteequivocada,eAnnenãotinhamotivonemdireito para não acreditar nisso. Quanto mais falava, mais crescia suaconfiança.Nãoera revoltanteAnnenãoacreditarnele eduvidarde tudo,semmotivonemdireito?Enãoeraridículoquebrigassecomeleporcausadeumanoitecomumamulhercomaqualelenãotinhatransadoedaqualnãosesentiaespecialmentepróximo?Brigarcomelenumparqueaquecidopelo calor do verão, silencioso como a noite e iluminado pelas primeirasestrelas?

5

Por fim,adiscussãoperdeu forçaassimcomoocarro ficousemgasolina.Assimcomoomotor,eleficouemsilêncio,faloualgodesupetão,ficouemsilêncio de novo e parou de falar de vez. Ambos foram jantar e fizeramplanos. Seráqueeles tinhamdepassaremFrankfurtas semanasemque

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Anneestariacomele?NãopoderiamviajarparaaSicília,aProvençaouaBretanha,alugarumacasaeescreveràmesa,ladoalado?

No apartamento, pegaram o colchão do estrado acabado, mole,deitaram-senochãoefizeramamor.Nomeiodanoite,eleacordoucomochorodeAnne.Eleaabraçou.

—Anne—chamouele.—Anne.—Euprecisosaberaverdade,sempre.Nãoconsigovivercommentiras.

Meupaimentiaparaminhamãeeatraiu,fezpromessasemaispromessasparameuirmãoeparamimquenuncacumpriu.Quandoeuperguntavaoporquê,eleficavafuriosoegritavacomigo.Passeiainfânciainteirasemumchãosegurosobospés.Vocêtemdemedizeraverdadeparaeusentirqueestoupisandoemalgoseguro.Entendeu?Vocêmepromete?

Durante um instante, ele pensou emdizer a verdade sobre a noite noBrenners Park-Hotel para Anne. Mas que confusão seria armada! E averdadeiriacompensarofatodetermentidoparaAnneduranteumahora—não,duranteduashoras?EaconfissãotardianãotornariaanoitecomTherese mais importante do que de fato havia sido? No futuro, sim, nofuturodiriaaverdadeaAnne.No futuro,elequeriaepodia lheprometerisso.

—Tudobem,Anne.Euentendovocê.Nãoprecisachorar.Prometodizeraverdadeavocê.

6

Três semanas mais tarde eles foram à Provença. Encontraram um hotelantigo,barato,napraçadomercadoemCucuron,eoquartograndecomavarandagrandenoandarsuperiorpoderiaserdelesporquatrosemanas,sem problemas. Não havia café da manhã nem jantar ou internet, e ascamassóeramarrumadasdevezemquando.Massolicitaramumasegunda

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mesa e uma segunda cadeira e conseguiram trabalhar no quarto ou navaranda,ladoalado,comotinhamplanejado.

Começaramcommuito ímpeto.Masacadadiao trabalhoparecia ficarmenosurgente,menosimportante.Nãoporqueestivessequentedemais;asparedes e o forro grossos da construção antiga deixavam o quarto e avarandafrescos.Otrabalho—nocasodela,umlivrosobreadiferençadegêneroedireitosequivalentes;nodele,umapeçasobreacrise financeira— simplesmente não tinha graça. Sentar no Bar de l’Etang, junto aolaguinho do vilarejo, quadrado e envolto por um muro, tomar um caféespressoeolharosplátanoseaáguatinhagraça.Ouiràsmontanhas.Ouconhecernovostiposdeuvasnumavinícola.OucolocarfloresnotúmulodeCamusnocemitériodeLourmarin.OupassearsemrumopelacidadedeAixou verificar os e-mails na biblioteca. Sem os e-mails, o passeio teria tidomaisgraça,porémAnneestavaaguardandoaconfirmaçãodeumemprego,eele,ocontratoparaumapeça.

—Éaluz—comentouele.—Comessaluz,dáparatrabalharnocampo,no vinhedo ou no olival, e talvez até seja possível escrever,mas sobre oamor,opartoeamorte,nãosobrebancosebolsas.

—Aluzeocheiro.Comooperfumedetudoémaisintenso!Alavanda,ospinheiros,opeixe,oqueijoeasfrutasnomercado.Ospensamentosquecoloco na cabeça dos meus leitores, que importância têm comparados aessesperfumes?

—Sim—ele riu—,mas comoperfumenonarizninguémmaisquermudaromundo.Seusleitorestêmdemudaromundo.

—Têmmesmo?Eles estavam sentados na varanda, com os notebooks à frente. Ele a

observoucomespanto.Annenãoqueriamudaromundoenãolecionavaeescreviaparaqueseusalunoseleitorestambémoquisessemmudar?Nãofoi por isso que ela se recusou a firmar acordos e adaptar a carreira àsnecessidades da universidade? Anne olhava por cima dos telhados, com

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lágrimasnosolhos.—Euqueroumfilho.Eleselevantou,foiatéela,ajoelhou-seaoladodacadeiraesorriu.—Podemosdarumjeitonisso.—Mascomo?Comovouterumfilholevandoessavida?— Você vem morar comigo. Nos primeiros anos, deixa as aulas e se

concentranaescrita.Depois,agentevêcomocontinua.—Depois,asuniversidadesnãovãomaismeconvidar.Elasmechamam

porquesempreestoudisponível.Enãosoutãoboaemescreverquantoemlecionar.Trabalhoháanosnomeulivro.

— As universidades vão convidá-la porque você é uma professoraincrível. E para que elas não se esqueçam de você nos primeiros anos,talveznãosejamáideiaescreveralgunsartigosemvezdeumlivro.Sabe,daqui a alguns anosomundovai estardiferente, comnovasprofissões ecursos;novoscargosparavocê.Tantacoisaestámudandotãorápido.

Annedeudeombros.—Esquece-setambémmuitorápido.Eleaenvolveunosbraços.—Simenão.VocênãomecontouqueadecanaemWilliamsaconvidou

porque vocês estiveram no mesmo seminário há vinte anos e ela ficouimpressionadacomvocê?Ninguémesquecevocêtãorápido.

À noite, encontraram um restaurante com terraço em Bonnieux, comumabelavistaparaocampo.Ograndegrupodeturistasaustralianos,que,rindo alegremente, havia ocupado a maioria das mesas, saiu cedo; elesestavam sozinhos na escuridão. E, sob o olhar de Anne, espantado equestionador,elepediuchampanhe.

—Aqueestamosbrindando?Elagirouataçaentreoindicadoreopolegar.—Aonossocasamento!Annecontinuougirando-a.Emseguida,encarou-ocomumsorrisotriste.

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—Eu sempre soube o que eu queria. Também sei que te amo. Assimcomoseiquevocêmeama.Equequerofilhoseosquerocomvocê.Efilhose casamento vêm juntos. Mas hoje foi a primeira vez que conversamossobreisso.Medêumtempinho.

Osorrisodelaficoualegre.—Vocêquerfazerumbrindeaoseupedido?

7

Algunsdiasmais tarde, eles foramparaa camade tarde, fizeramamoreadormeceram.Quandoeleacordou,Annehaviasaído.UmbilhetediziaqueelatinhaidoàbibliotecadeAixverificarseuse-mails.

Issofoiàsquatro.Eàsseteeleestavaespantadoporelanãotervoltadoainda;àsoito,estavapreocupado.Emborativessemtrazidooscelularesnaviagem, os aparelhos permaneciam desligados, dentro da cômoda. Foiverificar,encontravam-selá.Àsnovenãoaguentavamaisficaremcasaefoiatéo lagodovilarejo, juntoaoqualestacionaramocarro,quecontinuavaparadonolugardesempre.

Eleolhouaoredoreaviu;elaestavasentadanumamesadiantedoBardel’Etang,escuroefechado,fumando.Annetinhadeixadodefumarhaviaanos.

Foiatéláeficouparadodiantedamesa.—Oqueaconteceu?Fiqueipreocupado.Elanãoergueuoolhar.—VocêestevecomThereseemBaden-Baden.—Comoéque...Nesseinstante,Anneoencarou.— Li os seus e-mails. A reserva do quarto para duas pessoas. O

combinado com Therese. Amensagem depois: Foi agradável com você e

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espero que tenha chegado bem em casa.—Ela chorou.—Foi agradávelcomvocê.

—Vocêolhoumeuse-mails?Vocêtambémvasculhaminhaescrivaninhaemeuarmário?Comquedireito...

—Você émentiroso, infiel, você faz o que lhe convém. Sim, eu tenhotodoodireitodemeprotegerdevocê.Vocênãomedizaverdade,tenhodeencontrá-lasozinha.—Annevoltouachorar.—Porquevocêfezisso?Porquevocêfezissocomigo?Porquevocêtransoucomela?

—Eunãotranseicomela.Annegritoucomele.—Paredementirparamim,pare.Vocêvaicomessamulheraumhotel

romântico e divide o quarto e a cama com ela. Está achando que eu souidiota? Primeiro você acha que sou idiota demais para descobrir suasmentiras e agora que eu sou tão idiota que posso ser convencida docontrário?Seumentiroso,seupodre,canalha...—Elatremiadeindignação.

Ele se sentou à sua frente. Sabia que não deveria se importar casojanelas se abrissem e pessoas olhassempara fora e rissemdeles.Mas seimportava, sim. Ser xingado era humilhante o suficiente, ser xingadopublicamenteeraduplamentehumilhante.

—Possofalar?— Posso falar? — Ela o remedou. — O garotinho perguntou para a

mamãe se pode falar alguma coisa? Por que a mamãe vive oprimindo ofilhinhoenãopermitenemqueelefale?Nãosefaçadevítima!Assumadeumavezaresponsabilidadepeloquevocêdizefaz!Vocêéummentirosoeuminfiel.Assumaissopelomenos!

—Nãosounenhum...Anne lhe deuum tapana boca e continuou gritandoporquepercebeu

umarepulsanosolhosdelequeaassustou.Elasecurvouparaafrente,seusperdigotosatingindoorostodeleeofatodeelelimpá-losadeixavaaindamaisfuriosaedescontrolada.

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—Vocêéumlixo,ummerda,umnada!Não,vocênãopodedizernada.Quandovocêfala,éparamentir,e,comonãoaguentomaisouvirmentiras,nãoaguentomaissuaconversa.Entendeu?

—Eu...—Vocêentendeu?—Sintomuito.—Oquevocêsente?Senteporserummentirosoeuminfiel?Porficar

comoutrasmulheres...—Nãofiqueicomoutrasmulheres.Oqueeusintoé...—Queroquevocêesuasmentirassedanem!Anneselevantouefoiembora.Primeiroelequissegui-la,depoisficousentado.Lembrou-sedopercurso

decarronoqualumanamoradalheconfessouquesaíacomoutroshomensalémdele.EstavamnumaestradasinuosaatravessandoaAlsácia, e, apósessa confissão, ele simplesmente continuou andando em linha reta, daestradaasfaltadaparaumcaminhonafloresta,docaminhonaflorestaparaomeiodearbustos,domeiodearbustosparadentrodeumaárvore.Nãoaconteceunada,sónãoeramaispossívelcontinuaraviagem.Elepousouasmãos sobre o volante, a cabeça sobre asmãos e estava triste.Não sentiavontadedeatacaranamorada.Esperavaqueelalheexplicasseoquehaviafeitodeumamaneiraqueelecompreendesse.Queeledepoispudesseficarempaz.PorqueAnnenãoqueriaouvirnenhumaexplicação?

8

Ele se levantou e foi até o lago. Começou a chover; escutou as primeirasgotas caindo silenciosamente na água e as via formando círculos, antesmesmodesenti-las.Emseguida,estavamolhado.Achuvacaíafortesobreosplátanosesobreocascalho;tãotorrencialcomosequisesselavartudoo

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quenãomerecessetersentido.Teria gostado de ficar com Anne na chuva, teria gostado de tê-la

abraçadoportrásesentidoseucorpodebaixodasroupasmolhadas.Ondeela estaria? Será que também estava fora? Será que estava apreciando achuva tanto quanto ele, e será que compreendia que sua briga boba nãotinha sentido para ele? Ou será que havia pedido um táxi e estavaarrumandosuascoisasnohotel?

Não,quandochegouaohotel, as coisasdeAnneaindaestavam lá.Ela,não. Ele tirou as roupas molhadas e se deitou na cama. Queria ficaracordado,esperá-la,conversarcomela.Masdoladodeforaachuvacaía,eele, cansadopelo dia e exausto pela briga, adormeceu.Nomeio danoite,acordou.O luarbrilhavanoquarto.Anne estava ao ladodele.Deitadadecostas, os braços cruzados atrás da cabeça, os olhos arregalados. Ele seapoiounoscotoveloseaencarou.Elanãoolhouparaele,que tambémsedeitoudecostas.

— A sensação de que não posso contrariar uma mulher, de que nãopossorecusarnadaquevenhadela,dequedevoseratenciosoesolícito,deque devo flertar com ela... Acho que isso tem a ver comminhamãe. Eusempresintoisso,emecomportoassimdeformaautomática,gostandodamulher ou não, independentemente se quero algo dela ou não. Por isso,despertoexpectativasquenãopossoconcretizar;porumtempo,eutentomesmo assim, mas depois fico saturado e me retraio ou a mulher ficachateadaeseretrai.Éumjogoboboeeudeveriaaprenderaimpedi-lo.Eudeveriaconversarcomumterapeutasobremimeminhamãe?Tantofaz,oobjetivodojogonãoésedeitarcomapessoa,elejáestánascarícias.Talvezeucoloqueobraçoaoredordamulherouseguresuamão,masissoétudo.Seráqueoobjetivotambémtemrelaçãocomminhamãe?Nãoqueroficardevendonadaàmulher,e,seeumedeitarcomela,éoqueacontece.Emtoda minha vida, só me deitei com mulheres que amava ou pelas quaisestavaapaixonado.NãoamoThereseetambémnãoestouapaixonadopor

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ela. Ficar ao lado dela pode ser agradável, mas de um jeito leve,despretensioso, relaxado,oqueentrenósquasenuncaé fácil.Masnuncamepergunteiqualo significadodissoe sequeriadeixarvocêe ficar comela.

“Essaéumadascoisasqueeuquerialhedizer.Aoutraéque...”Anneointerrompeu.—Oquevocêsfizeramnodiaseguinte?—FomosaumagaleriaemBaden-Baden,aumprodutordevinhoseao

casteloemHeidelberg.—Porquevocêligouparaeladaqui?—Comoassim...—Ele lembrouquetinhareagidodessemesmomodo

quando ela lhe perguntou sobre a viagem com Therese e também haviasidointerrompido.

—Vinoseucelular.Vocêligouparaelahátrêsdias.—Elafezumabiópsiaporcausadeumasuspeitadecâncerdemamae

eupergunteicomofoi.—Osseiosdela...—Annefaloucomosebalançasseacabeça.—Elasabe

quevocêestáaquicomigo?Elasabequeestamosjuntos?Háseteanos?Oqueelasabedemim?

ElenãoescondiaAnnedeTherese,masdeixavaosdetalhesnaincerteza.QuandoviajavaparaficarcomAnne,estavaindoparaAmsterdã,Londres,TorontoouWellingtonparaescrever.MencionavaterencontradoAnnenoslugares e não desmentia que moravam juntos nessas situações mastambém não explicava. Ele não conversava com Therese sobre asdificuldadesquetinhacomAnne,dizendoasimesmoqueissoseriatraição.Mas tambémnão falavada felicidade comAnne. Ele dizia aTherese que,embora gostasse muito dela, não a amava mas também não falava queamava Anne. Por outro lado, também não escondia Therese de Anne.Entretanto,nuncatinhalhecontadoafrequênciacomqueseviam.

Nãoeracerto,elesabiadisso,eàsvezessesentiacomoumbígamoque

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temumafamíliaemHamburgoeoutraemMunique.Umbígamo?Erafortedemais. Ele não apresentava uma imagem errada a ninguém. Mostravaesboços em vez de imagens, e esboços não são errados, pois são apenasesboços. Por sorte ele tinha dito a Therese que Anne também estaria naProvença.

—Elasabequeestamosjuntosháanosequenósdoisestamosaqui.Oquemaiselasabe...Nãofalomuitosobrevocêcomamigoseconhecidos.

Annenãoretrucounada.Elenãosabiaseissoeraumbomoumausinal,masdepoisdeum temposua tensãodiminuiu.Percebeuoquantoestavacansado. Ele lutou para se manter acordado e ouvir o que Anne aindaqueria dizer. Suas pálpebras se fecharam e primeiro pensou queconseguiria ficar acordado de olhos cerrados, mas então sentiu queadormecia, não, que havia adormecido e acordado novamente. O que oacordara? Anne tinha dito alguma coisa? Ele se apoiou nos cotovelosnovamente;elaestavadeitadaaoseu ladodeolhosabertos,masdenovonãooencarou.Aluanãobrilhavamaisnoquarto.

EntãoAnne falou.Odia já começava a amanhecer do ladode fora; ouseja,eletinhamesmoadormecido.

—Nãoseiseconsigorelevaroqueaconteceu.Masseiquenãoconsigorelevar o fato de você continuar querendo me fazer acreditar que nãoaconteceunada.Pareceumagalinha,piacomoumagalinhaevocêquermeconvencer de que é um pato? Estou farta das suasmentiras, estou farta,farta. Se é para eu ficar comvocê, então apenas coma verdade.—Anneafastou o lençol para o lado e se levantou.—Achomelhor somente nosvermosdenovohojeànoite.EugostariadeficarcomoquartoeCucuronsóparamim.Porfavor,pegueocarroeváembora.

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EnquantoAnneestavanobanheiro,elesevestiue foiembora.Oaraindaestavafresco;asruas,vazias,nemmesmoopadeiroeocafétinhamabertoasportas.Elesesentounocarroedeuapartida.

Seguiu para as montanhas de Luberon, e, nos cruzamentos e nasbifurcações,simplesmentetomavaasdireçõesqueprometiamsubirmais.Quando não foi possível avançar mais para o alto, estacionou o carro eseguiumarcasdepneusqueestavamquaseescondidaspelavegetação,aolongodaencosta.

Porquenãodizia logoquetinhasedeitadocomTherese?Oquehavianelequetantoofaziaresistira isso?Ofatodenãoserverdade?Nogeral,costumava se sair bem com mentiras quando era necessário evitarconflitos. Por que dificultar as coisas naquele momento? Porquenormalmente ele apenas tornaria o mundo um pouco mais aprazível eagoradeveriafazerdesimesmoalgopiordoqueera?

Lembrou-sedequando era criança e fazia algo errado. Suamãenãoodeixava em paz até que ele tivesse confessado as más intenções que olevaram a cometer o ato. Mais tarde, leu sobre o ritual de crítica eautocrítica no Partido Comunista, no qual quem se desviava da linha dopartidoerapressionadoatésearrependerdassuas tendênciasburguesas— era isso que suamãe havia feito com ele e era isso que Anne estavafazendoagora.SeráquetinhaprocuradoamãeemAnneeaencontrara?

Então,nadadefalsaconfissão.DeviaterminarcomAnne.Afinal,elesnãobrigavam demais? Ele não estava farto dos gritos dela? Farto de elabisbilhotar seu notebook, seu celular, sua escrivaninha e seu armário?Fartodeelaesperarqueeleestivesseàdisposiçãoquandoelaprecisasse?Seráquea intimidadedeAnne tambémnão lheeraexcessiva?Apesardeser ótimo se deitar com ela, isso tinha de carregar tantos sentimentos eimportância? Será que com outra isso não poderia ser mais leve, maislúdico, mais físico? E as viagens? No começo, havia algo de atraente empassartrês,quatrosemanasnocomeçodecadaanonumauniversidadeno

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Oeste americanoe, nooutono,numauniversidadena costa australianae,nessemeio-tempo, viver diversosmeses em Amsterdã,mas agora isso oirritava.OspãezinhoscomarenquefrescovendidosnasbarracasderuadeAmsterdãeramdeliciosos.Masealémdisso?

Elepassoupela fundaçãodeumestábuloouceleiroesesentou.Comoeraaltoalinamontanha!Diantedesi,umaencostatomadaporoliveirassecurvavaemdireçãoaumvale,maisadiantemontanhasbaixas,atrásoplatôcompequenas cidades, entreasquaisumadeveria serCucuron.Numdiaclaro,seriapossívelenxergaromardali?Escutouocantodascigarraseosbalidos das cabras, que procurou com o olhar, em vão. O sol se erguia,aquecendoseucorpoefazendooalecrimexalarseuperfume.

Anne.Não importavaoquehouvessedeerradonela—quandofaziamamorà tarde,primeirocomodia claroedepoisoutravezaocrepúsculo,não se viam saciados e não se sentiam saciados, e, quando estavamdeitados lado a lado, exaustos, satisfeitos, a conversa surgiaespontaneamente. E como gostava de vê-la nadar, num lago ou no mar,compacta, forte e flexível como um leão-marinho. Como gostava de vê-labrincandocomcriançasecachorros,distantedomundoeesquecidadesimesma, entregue ao momento. Como ficava feliz quando Anneacompanhava um pensamento seu e, com facilidade e segurança,encontrava o ponto em que ele havia cometido um erro. Como ficavaorgulhoso quando estava entre seus amigos ou os amigos dela e elabrilhavacomsuainteligênciaeseuhumor.Comosesentiaacolhidoquandoseabraçavam.

Ele se lembrou de um relatório sobre soldados alemães, japoneses eitalianos em prisões russas. Os russos tentavam doutrinar os presos etreiná-los no ritual de crítica e autocrítica. Os alemães, acostumados aserem guiados, mas sem guia, participavam do ritual, os japonesespreferiamsermortosacolaborarcomoinimigo.Ositalianosentravamnojogo, porém não levavam o evento a sério, aplaudindo-o e aclamando-o

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feitoumaapresentaçãodeópera.Seráqueele tambémdeveriaparticipardo evento de crítica e autocrítica de Anne sem levá-lo a sério? Deveriaconfessar,depeitoaberto,tudoaquiloqueelaqueriaverconfessado?

Masconfessarnãoencerrariaoproblema.Elairiaquerersabercomofoipossívelchegaraesseponto.Nãodescansariaatédescobriroquehaviadeerrado com ele. Até ele concordar. E as conclusões serviriam o tempointeirocomoexplicaçõeseseriamusadascomoacusações.

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Apenasagoraelepercebeuoquantotinhacaminhadoeporquantotempohaviaficadosentadonomuro.Nocaminhodevolta,acadacurvaesperavaencontrar a estradinha e ver seu carro,mas apareceumais uma curva edepois outra. Quando finalmente chegou ao automóvel e consultou orelógio,erameio-diaeeleestavacomfome.

Continuou nas montanhas e no vilarejo seguinte encontrou umrestaurantecommesasnacalçadaevistaparaaprefeituraeaigreja.Haviasanduícheseelepediuumcompresuntoeumcomqueijo,alémdevinho,água e um café com leite. A garçonete era jovem e bonita e não tinhapressa; relaxada, aceitou a admiração dele e lhe explicou que tipo depresunto ela poderia buscar no açougue da esquina e que tipo de queijoelesserviam.Primeiroelatrouxeovinhoeaágua,eantesdeossanduícheschegaremelejáestavaumpoucobêbado.

Eraoúnicocliente.Quandoagarrafadevinhoacabou,eleperguntousehaveria uma de champanhe no porão. Ela riu, encarando-o de maneiradivertidaeconspiratória,e,aosecurvarparatirarostalheresdamesa,odecotedablusarevelouumpoucodosseusseios.Eleaacompanhoucomoolharepediu:

—Tragaduastaças!

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Elariacomfacilidade.Porterselevantadoeafastadoacadeiraparaelasesentar.Porestourararolhadochampanhe.Porbrindarcomela.Porlheperguntar,demaneiratãocautelosa,sobreavidadeumamulheratraentenum vilarejo isolado nas montanhas. No verão, ela ajudava os avós norestaurante.No restodo tempo,estudava fotografiaemMarselha,viajavamuito, já haviamorado nos Estados Unidos e no Japão e publicado suasfotos.ElasechamavaRenée.

—Fechamosdastrêsàscinco.—Vocêtiraumasesta?—Seriaaprimeiravez.—Oqueémaisagradávelnomeiododiaque...—Euseidealgo.—Elariu.Eleretribuiuosorriso.—Vocêtemrazão...Eutambém.Elaolhouparaorelógio.—Hojeorestaurantefechaàsduasemeia.—Quebom.Eles se levantaram e levaram o champanhe. Ele a seguiu pelo salão e

pelacozinha.Estavaembriagadopelabebidaepelaexpectativa,e,quandoRenéesubiuaescadaescuradiantedele,desejavaarrancarasroupasdela.Mas estava coma garrafa e as taçasnamão.Aomesmo tempo,Anne e abrigapassarampelasuacabeça—nãohaviaumprincípiosegundooqual,quandosomoscondenadosporumatoquenãocometemos,nãopodemosserpenalizadosse,porfim,ocometermos?Doublejeopardy?Anneotinhacastigadoporalgoqueelenãofizera.Agoraelepodiafazê-lo.

Renéetambémriafácilnacama.Rindo,elatirouoabsorventeinternoeo colocou no chão, ao lado da cama. Fazia amor com a objetividade e ahabilidade com as quais se praticam esportes. Ela se tornou carinhosaapenasdepoisdeosdoisestaremexaustos,beijou-oesedeixoubeijarporele.Nasegundavez,elaoseguroucommaisforçaquenaprimeira,mas,ao

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terminar, logo olhou para o relógio e omandou embora. Eram quatro emeia.Osavóschegariamlogo.Eelenãoprecisavavoltar;emtrêsdias,suaestada no lugar abandonado nas montanhas, como ele o chamara, teriaacabado.

Renéeoacompanhounaescada.Debaixo,elevoltouaolharparacima.Ela estava encostada no corrimão e no escuro era difícil reconhecer aexpressãodoseurosto.

—Foibomcomvocê.—Sim.—Eugostodasuarisada.—Válogo.

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Eleteriagostadodeumatempestadedeverão,masocéuestavaazulefaziamuitocalornaestradaestreita.Sentadonocarro,viuumaMercedesparardiantedorestauranteeumcasalidosodesembarcar.Renéesaiupelaporta,cumprimentouosdoiseajudouacarregarosmantimentosparaointeriordacasa.

Andava devagar, para conseguir ver Renée mais um pouquinho noespelho retrovisor. De repente, foi tomado pela saudade de uma vidatotalmentediferente,umavidacomo invernonacidade juntoaomareoverãonovilarejonamontanha,umavidaderitmoconstante,confiável,naqual os trajetos percorridos eram sempre os mesmos, as camas para sedormireramsempreasmesmas,aspessoaseramsempreasmesmas.

Ele quis correr por onde tinha corrido pelamanhã e não encontrou olugar. Parou num outro ponto, desceu, mas não conseguiu se decidir secorria,entãosesentounumaclareira,arrancouumafolhadagrama,apoiouosbraçosnosjoelhosecolocouagramaentreosdentes.Olhounovamente

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sobre as encostas e asmontanhas baixas até o platô. Suas saudades nãoeramdeRenéenemdeAnne.Nãosetratavadessaoudeoutramulher,masdaconstânciaedasegurançadavidaemsi.

Sonhouemabrirmãodetodas,deRenée,quejánãooqueriamesmo,deTherese, que só gostava do que era fácil nele, de Anne, que queria serconquistada,masnãoconquistar.Masdaíelenãoteriamaisninguém.

Ànoite,elediriaaAnneoqueelaqueriaouvir.Porquenão?Sim,maistardeelasemprevoltariaaoqueeletinhaditoeusariaaconfissão.Edaí?Comoissopoderiaprejudicá-lo?Oque,afinal,poderiaprejudicá-lo?Elesesentiainvulnerável,intocável,eriu—deviaserochampanhe.

EramuitocedoparavoltaraCucuroneparaAnne.Ele ficousentadoeobservouoplatô.Vezououtrapassavaumcarro,àsvezesbuzinava.Vezououtraeleviaalgobrilharnoplatô—aluzdosolquerefletianajaneladeumacasaounovidrodeumcarro.

Sonhoucomoverãonovilarejonasmontanhas.Renée,Chantal,Marie,ou sabe-se lá como se chamavam, e ele chegariamemmaio e abririamorestaurante, nada de almoços, apenas para o jantar, dois ou três pratos,cozinhasimplesdointerior,vinhodaregião.Algunsturistasiriamaparecer,alguns artistas estrangeiros que tivessem comprado e reformado casasantigas,algunsmoradoreslocais.Cedinhopelamanhãeleiriaaomercadofazer as compras, no começo da tarde eles se amariam, mais tardepreparariamjuntosacomidanacozinha.As folgasseriamnassegundaseterças.Emoutubro,fechariamorestaurante,trancariamjanelaseportasevoltariam para a cidade. Na cidade, iriam... Ele não tinha ideia do quefariam na cidade. Uma livraria ou uma galeria de arte? Papelaria?Tabacaria? Uma loja apenas no inverno? Como daria certo? Ele queriamesmoterumaloja?Abrirumrestaurante?Apenassonhosvazios.Oamornocomeçodatarde,issoeraoqueimportava,tantofaziasenacidadejuntoaomarouaorioounumvilarejonasmontanhasounoplatô.

Observouoplatô,mastigandoafolhadegrama.

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ElechegouàsseteemCucuron,estacionouocarro,nãoencontrouAnnenoBardel’Etangefoiaohotel.Elaestavasentadanobalcão,comumagarrafadevinhotintosobreamesaeduastaças,umacheiaeumavazia.Comoelaolhavaparaele?Nãoqueriasaber.Eleencarouochão.

—Nãoquerodizermuitacoisa.EumedeiteicomThereseesintomuito,eesperoquevocêpossameperdoarequepossamosdeixarissoparatrás.Nãohoje,eusei,nemamanhã,mas logo,edeumamaneiraque fiquemosbem.Euteamo,Anne,e...

—Vocênãoquersesentar?Elesesentou,continuoufalandoepermaneceuolhandoparaochão.— Eu te amo e não quero perder você. Espero que já não a tenha

perdidoporalgotãobanal.Entendooquantoissoéimportanteparavocêeo porquê. E, como eu tinha condições de saber isso, tambémdeveria sermuitoimportanteparamimeeunãodeveriaterfeitoaquilo.Euentendo.Masrealmentenãotemimportância.Euseique...

—Ajeite-seprimeiro.Vocênãoquer...— Não, Anne, por favor, me deixe terminar de falar. Eu sei que os

homens sempre dizem, assim como asmulheres, que uma escorregadelanãoénadademais,quesóaconteceuporquehouveumaoportunidadeoufoia solidãoouoálcool,quenãorestounada,nãorestouamor, saudade,desejo.Elesserepetemtantoqueissosetornouumclichê.Masclichêssãoclichêsporquesãoverdadeiros.Mesmoqueumatraiçãoàsvezespossaserdiferente,emgeraléassim,exatamentecomofoicomigo.ThereseeeuemBaden-Baden,issonãotevenenhumaimportância.Vocêpode...

—Vocêquerme...—Logo você vai poder falar o quequiser.Quero apenasdizer que eu

entendosenãoquiseralguémquenãodáimportânciaaumatraição.Masapartedemimqueconsideraumatraiçãobanalépequena.Amaiorparteé

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aquelapara aqual vocêémais especialque tudonomundo,que te ama,comaqualvocêficouporanos.AntesdeBaden-Badeneununca...

—Olheparamim!Eleergueuoolhareaencarou.— Está tudo bem. Eu liguei para Therese e ela confirmou que não

aconteceunada.Talvezvocêqueirasaberporquenãoacrediteiemvocêepor que acredito nela. Pela voz de umamulher, melhor que pela de umhomem,euseiseapessoaestámentindoounão.Elaachouquevocênãofoihonestoemrelaçãoaelaeamim,e,seTheresesoubesseháquantotempoestamos juntos e o graudanossa relação, não teria insistido tanto em tever. Mas essa é outra história. De qualquer modo, vocês não dormiramjuntos.

—Ah!Elenãosabiaoquedizer.Enxergoufragilidade,alívio,amornorostode

Anne.Deveriaselevantar,iratéelaeabraçá-la.Masficousentadoedisseapenas:

— Venha! — E ela se levantou e se sentou em seu colo, apoiando acabeçaemseuombro.Eleaenvolveucomosbraçoseolhou,porcimadacabeça dela e dos telhados, para a torre da igreja. Será que ele deveriacontardatardecomRenée?

—Porquevocêestábalançandoacabeça?Porqueacabeidedecidircontaravocêsobreaoutratraiçãoquecometi

hojeàtarde...—Acabeidepensarquefaltoupoucoparanós...—Eusei.

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Eles não falaram mais sobre Baden-Baden, sobre Therese nem sobre

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verdade e mentira. Não era como se nada tivesse acontecido. Se nadativesseacontecido,elesteriambrigado,semnenhumtemor.Dessamaneira,tomavam cuidado para um não trombar com o outro. Eles semovimentavamcomcuidado.Trabalhavammaisquenocomeço,enofinalela havia terminado o ensaio sobre diferença de gêneros e direitosequivalentes,eele,umapeçasobredoisbanqueirosquepassaramumfimde semana presos num elevador. Quando faziam amor, ambos semantinhamumpoucoreservados.

Naúltimanoite,elesestiveramnovamentenorestauranteemBonnieux.Doterraço,viramosolsepondoecomoanoitechegava.Oazul-escurodocéu se tornou um preto profundo, as estrelas brilhavam e as cigarrascantavam. A escuridão, o brilho, o canto— era uma noite festiva.Mas adespedidapróximaosdeixavamelancólicos.Alémdisso,océuestreladoofaziapensarnaleimoralenashorascomRenée.

—VocêestáchateadaporeunãoterfaladomaisdevocêcomThereseedeTheresecomvocê?

Annebalançouacabeça.—Issomedeixoutriste.Masnãoestouchateada.Evocê?Estáchateado

comigopor ter suspeitadoe chantageadovocê?Sim, foi issooqueeu fiz:chantageei,e,comovocêmeama,vocêsedeixouserchantageado.

—Não, eu não estou chateado. Fico commedo pela rapidez com quetudoaconteceu.Masissosãooutrosquinhentos.

Elacolocouamãosobreadele,masnãooencarou,esevoltouparaocampo.

—Por que ficamos assim...Não sei como chamar. Você sabe o que euquerodizer?Nósficamosdiferentes.

—Diferentesparaobemouparaomal?Elaafastouamãodadele,recostou-seeoobservou.—Tambémnãosei.Perdemosumacoisaeganhamosoutra,nãoé?—Perdemosainocência?Ganhamossobriedade?

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—Eseasobriedadeforalgobome,apesardisso,amortedoamor.Esesemacrençaingênuanooutronadaforpossível?

—Averdadedaqualvocêdizprecisarcomoumchãosobospésnãoésempresóbria?

—Não,averdadeàqualmerefiroedaqualprecisonãoésóbria.Elaéapaixonada,àsvezesbonita,àsvezesfeia,elapodetefazerfelizepodetetorturar,eelasempreteliberta.Sevocênãoperceberimediatamente,issoacontecedepoisdeumtempo.—Anneassentiu.—Sim,elapoderealmentetetorturar.Daívocêxingaedesejanãotersedeparadocomela.Masentãopercebe que não é ela quem te tortura, mas aquilo sobre o que ela é averdade.

—Eunãoentendo.A verdade e aquilo sobre o que ela é verdade— o que Anne queria

dizer?Aomesmotempo,elepensavasedeverialhecontardeRenée,agora,porquedepoisseriatardedemais.Masporquedepoisseriatardedemais?Esetambémfossepossívelcontardepois,porqueprecisariacontar?

—Esqueça.—Maseugostariadeentenderoque...—Esqueça.Émelhorvocêmedizercomovamoscontinuar.—Vocêqueriaumtempinhoparapensarsobreocasamento.—Sim,achoqueeuprecisodeumtempo.Vocênãoprecisa?—Darumtempo?—Darumtempo.

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Annenãoqueriadiscutirisso.Não,elenãotinhafeitonadadeerrado.Nadaque ela pudesse dar um nome. Nada que ela quisesse conversar numaterapiadecasais.

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Acomidachegou.Elacomeucomvontadeeeleficouespetandoogarfonopeixe.Quandoestavamnacama,Annenãoorejeitoumastambémnãoodesejou,eeleteveasensaçãodequeelajáhaviasedecididoeeleperdera.

Namanhãseguinte,Anneperguntouseelese importavaem levá-laaoaeroportoemMarselha.Eleseimportava,porémlevouetentousedespedirdeumjeitoqueelavissesuadormastambémsuadisposiçãodeaceitaradecisão.Quetivesseumaboarecordaçãodeleeoquisessereveretê-lodevolta.

Depois, ele atravessou Marselha, esperando encontrar Renéesubitamentenacalçada,massabiaquenão iriaparar.Naestrada,pensoucomo seria sua vida emFrankfurt semTherese. Emque iria trabalhar.Ocontrato para uma nova peça pelo qual esperava não tinha chegado. Elepoderia sedebruçar sobre a sinopseparaoprodutor.Mas issopodia serfeitoemqualquerlugar.Naverdade,nadaoatraíaaFrankfurt.

OqueAnnetinhadito?Quandovocêficafrenteafrentecomaverdadeesentequeelao tortura,nãoéelaquemtortura,masaquilosobreoqueéverdade. E ela sempre o liberta. Riu. A verdade e aquilo sobre o que éverdade—aindanãoestavaclaroparaele.Eissodelibertar—talvezsejao contrário, talvez seja preciso ser livre para conseguir viver com averdade.Nadaseopunhaafazerumatentativadelidarcomaverdade.Emalgumlugarelesairiadaestradaesehospedarianumhotel,nasCevenas,naBorgonha,nosVosges,eescreveriatudoparaAnne.

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Acasanafloresta

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À

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svezes,eletinhaaimpressãodequesuavidasemprehaviasidoessa.Comosesempretivessevividonessacasanafloresta,nogramadocom

asmacieiras e os sabugueirinhos, com o lago e o salgueiro. Como se elesempretivessetidoaesposaeafilhaaoredor,recebendosuasdespedidasquandopartiaesendorecepcionadocomboas-vindasaoretornar.

Umavezporsemanaelas ficavamdiantedacasaeacenavamparaele,aténãoenxergaremmaisocarro.Eleseguiaparaacidadezinha,buscavaacorrespondência,levavaalgoparaserreparado,retiravaoquetivessesidoconsertado ou encomendado, fazia exercícios para as costas com ofisioterapeuta, ia ao supermercado fazer compras. Ficavamaisum tempopor lá, juntoaobalcão,antesdecomeçarocaminhodevolta, tomavaumcafé,conversavacomumvizinho,liaoNewYorkTimes.Nãopassavamaisde cincohoras longe. Ele sentia falta da proximidadeda esposa. E sentiafalta da proximidade da filha, que não o acompanhava porque ficavaenjoadanocarro.

Elas o escutavam de longe. Nenhum outro carro tomava o caminhoestreito,decascalho,que levavaatéacasaporumvaleextenso, cheiodeárvores. Elas ficavam novamente diante da casa, de mãos dadas, até elesubirnogramado.RitasesoltavadeKateesaíacorrendoparasejogarnosbraçosdele,quemalconseguiadesligaromotoredescerdocarro.

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—Papai,papai!Eleasegurava,arrebatadopelocarinhocomoqualelaenrodilhavaseu

pescoçocomosbraçoseencostavaorostinhonoseu.Nesses dias, Kate era dele e de Rita. Juntos eles descarregavamo que

haviatrazidodacidade,trabalhavamnacasaounojardim,juntavamlenhanafloresta,pescavampeixesnolago,preparavamconservasdepepinosoucebolas,geleiaouchutney,assavampão.Rita,cheiadeamorpelafamíliaealegriadeviver,corriadopaiparaamãeedamãeparaopai,falandosemparar. Após o jantar, jogavam a três, ou ele e Kate contavampara Rita ahistóriaquetinhaminventadoenquantocozinhavam,cadaqualfazendoumpapel.

Nos outros dias, Kate saía de manhã do quarto e sumia em seuescritório.Quandolhetraziacaféefrutas,elaerguiaoolhardocomputadoresorriaamistosamente,e,quandoelediscutiaumproblemacomela,Katese esforçava em compreender.Mas seus pensamentos estavam em outrolugar, e ela tambémestava longequandoos três se sentavamàmesa, nahorado almoço eno jantar.Atéquando se sentavapertodele, depoisdahistória para Rita dormir e o beijinho de boa-noite, e ambos escutavammúsicaouassistiamaumfilmeouliamumlivro,ospensamentosdeKaterondavamaspersonagenssobreasquaiselaescrevianomomento.

Ele não se queixava. Saber que ela estava em casa, ver sua cabeça najanelaquandoele trabalhavano jardim,escutarseusdedosnotecladodocomputadorquandoficavanasoleiradaporta,tê-ladiantedesinojantareaoseuladoànoite,senti-la,cheirá-la,escutarsuarespiração—issoofaziafeliz. E ele não podia esperar mais dela. Kate havia lhe dito que sóconseguiaviverescrevendoeeledissequeaceitava.

Damesmamaneira, ele aceitava estar, dia após dia, sozinho comRita.Eleaacordava,ajudavanobanhoenahoradesevestir,tomavacafécomela, deixavaqueo observasse e tambémajudassequando fosse cozinhar,lavar, limpar, nos trabalhos no jardim, na manutenção do telhado, do

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sistema de aquecimento e do carro. Respondia às perguntas dela. Ele aensinou a ler, cedodemais. Rolava comRita pelo chão, embora as costasdeledoessem,poisachavaqueafilhatinhaderolar.

Eleaceitavaascoisascomoeram.Masdesejavamais tempo juntosemfamília. Desejava que os dias com Kate e Rita não acontecessem apenasumaveznasemanaemsuavida,masamanhãcomohojeeontem.

Toda felicidade deseja eternidade? Assim como todo prazer? Não,pensavaele,elaquerconstância.Quersemanterno futuroe já tersidoafelicidade do passado. Os amantes não fantasiam que já se encontraramquandocriançasequegostaramumdooutro?Quebrincaramnomesmoparquinho ou que frequentaram amesma escola ou que passaram fériascomospaisnomesmolugar?Elenãofantasiavanenhumencontroanterior.Sonhava que Kate, Rita e ele criariam raízes ali e que resistiriam a todovento,atodatempestade.Sempreesempre.

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Mudaram-separa lá havia seismeses. Ele havia começado a procura porumacasanocamponaprimaveradoanoanteriorepassouoverãonessabusca. Kate estava ocupada demais, até para olhar fotos das casas nainternet. Ela dizia que queria uma casa nas proximidades de Nova York.MasnãoerajustamenteelaquemqueriaseafastardasdemandasimpostasporNovaYork?Quenãoadeixavamescrevernemficarcomafamília?Queela gostaria de rejeitar, mas não podia, porque a vida como escritorafamosaemNovaYorkexigiaserencontráveleestardisponível?

No outono, ele achou a casa: a cinco horas de Nova York, junto àfronteiracomVermont,longedascidadesmaiores,magicamentelocalizadanomeio de um bosque, com lago e gramado. Foi até lá sozinho algumasvezes e negociou com o corretor e o proprietário. Então Kate o

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acompanhou.Elahaviaacabadodepassarpordiasexaustivos,adormeceuquandoeles

entraram na estrada, e acordou apenas quando entraram numa estradasecundária.O teto solar estava aberto eKate enxergou acimade si o céuazuleasfolhascoloridas.Elasorriuparaomarido.

— Bêbada de sono, de cores, de liberdade... Não sei onde estou nemaondeestamosindo.Eumeesquecideondevenho.

Aúltimahoradaviagemtranscorreuentrealuminosapaisagemdeumveranico no outono, inicialmente em estradas secundárias com a faixaamarelapintadanapista,depoisemestradasvicinaissemafaixa,eporfimnumcaminhocheiodeburacosquelevavaatéacasa.QuandoKatedesceudocarroeolhouaoredor,elesabiaqueaesposatinhagostadodacasa.Seuolharvarreuobosque,ogramado,olago,acalmou-seaochegaraoimóveleficoupresonumdetalheapósooutro:aportadebaixodaproeminênciadotelhadoapoiadaemduas colunas estreitas, as janelas, nememsequênciareta nem uma sobre a outra, a chaminé torta, a varanda aberta, aconstruçãolateral.Emboracarregasseasmarcasdotempo,acasademaisdeduzentosanoshaviamantidoadignidade.Kateencostouneleeindicoucomo olhar as janelas de cantodoprimeiro andar, duas voltadas para olagoeumaparaogramado.

—Esseé...—Sim,esseéoseuquarto.O porão era seco, os pisos eram estáveis. Antes da primeira neve, o

telhado foi refeito e um novo aquecimento foi instalado, demodo que oazulejador, o eletricista, o marceneiro e o pintor puderam trabalhartambém no inverno. Na mudança, na primavera, as tábuas do assoalhoaindanãoestavamlixadas,alareiraabertaaindanãotinhasidofechada,osmóveisdacozinhaaindanãoestavaminstalados.Masnodiaseguinteaodamudança,eleguiouKateatéseuescritóriojámontado.Depoisdetudotersido descarregado e o caminhão ter ido embora, ele lixou as tábuas do

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assoalho e, na manhã seguinte, carregou a escrivaninha e as prateleirasparacima.Elasesentouàescrivaninha,acariciouotampo,abriuagavetaea fechou novamente, olhou para o lago pela janela esquerda e para ogramadopeladireita.

—Vocêcolocouamesanolugarcerto.Nãoconsigomedecidirpelaáguaoupelaterra.Então,quandoolhoparaafrente,olhoparaaquina.Nascasasantigas,osespíritosentrampelasquinasenãopelasportas.

OquartodocasaleodeRitaeramcontíguosaoescritóriodeKate,nosfundos da casa ficavam o banheiro e um pequeno cômodo, suficienteapenasparaumamesaeumacadeira.Notérreo,aportadeentradadavapara a área ampla que incluía a cozinha e as salas de jantar e estar,separadasporumalareiraevigasdemadeira.

—Não émelhor queRita e você troquem?Ela só fica no quarto paradormireopequenocômodoéapertadodemaisparavocêescrever.

Ele disse a si mesmo que Kate estava bem-intencionada. Talvez elaestivessecomaconsciênciapesada,poisenquantoacarreiraliteráriadelaestavaemascensão,asuadescendia.Oprimeiroromancedele,best-sellernaAlemanha,tinhaencontradoumeditoremNovaYorkeumprodutoremHollywood.FoiassimqueconheceuKate,umjovemautoralemãoemturnêde leituraspelosEstadosUnidos, aqui e ali ainda sem fazer sucesso,maspromissor, complanosparaopróximo romance.Maspor causado filme,que nunca foi rodado, das viagens com Kate, que logo passou a receberconvites do mundo inteiro, e da preocupação com Rita, ele havia feitoapenasalgumasanotaçõesparaopróximoromance.Quandoquestionadosobresuaprofissão,elecontinuavadizendoqueeraescritor.Masnãotinhanenhumprojeto,mesmonãooconfessandoaKateeàsvezestentandoseenganararespeitodisso.Sendoassim,oqueelefariacomoquartogrande?Sentircommaisintensidadeaindaqueestavamarcandopasso?

Adiouopróximoromanceparamaistarde.Casoaindalheinteressasse.Sua maior preocupação, cada vez mais frequente, era se Rita teria de

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frequentarapré-escola.Daíelanãoseriamaisdele.

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ClaroqueambosospaisamavamRita.MasKatepoderiaterimaginadoumavidasemfilhos,elenão.Quandoficougrávida,elaagiucomosenãofossenadademais.Ele insistiuqueaesposa fosseaomédicoeàginásticaparagrávidas. Pendurou os ultrassons na parede. Ele acariciava a barrigagrande,conversavacomela, liapoemasemvozaltae tocavamúsicaparaela,coisasqueKatetoleravacompaciência.

Kate amava de maneira objetiva. Seu pai, professor de história emHarvard, e suamãe, pianistaquase sempre em turnês, criaramosquatrofilhos com a eficiência usada para administrar um empreendimento. Ascrianças dispunham de uma boa babá, frequentavam boas escolas, bonscursosdemúsicaedeidiomas,eeramapoiadaspelospaisemtudooquemetiam na cabeça. Elas entraram na vida com a consciência de quealcançariamoquegostariamdealcançar,seusmaridosouesposasseriambem-sucedidos no trabalho, na casa e na cama, e seus filhos osacompanhariamcomanaturalidadecomqueelesprópriosacompanharamospais.Amoreraoóleoquelubrificavaessamáquinadefamília.

Paraele,amorefamíliaeramaconcretizaçãodeumsonhoquecomeçoua desejar quando o casamento dos pais, um funcionário público e umamotoristadeônibus,começouasertragadocadavezmaisparaofundodeumredemoinhodedesprezo,gritoseviolência.Àsvezes,ospais tambémbatiam nele. Mas, quando isso acontecia, ele aceitava como sendo umareação a uma bobagem que tinha feito. Quando seus pais primeiroberravamumcomooutroedepoiscomeçavamasebater,eracomoseogelo começasse a quebrar sob seuspés e os das irmãs. Seu sonho comoamorea famíliaeraumgeloespessosobreoqualerapossívelpisarcom

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forçaeatédançar.Aomesmotempo,apoiava-senessesonhocomamesmaintensidade com que ele e as irmãs se apoiavam quando a tempestadecomeçava.

Kateeraapromessadessegeloespesso.Numjantarduranteafeiradolivro em Monterey, o anfitrião os sentara lado a lado: a jovem autoraamericana, cujo primeiro romance havia acabado de ser vendido para aAlemanha,eojovemautoralemão,recém-chegadoaosEstadosUnidoscomoprimeiroromance.IfICanMakeItThere,I’llMakeItAnywhere—desdequetinhavistoseulivronaslivrariasemNovaYork,elesesentiaincrível,erelatoucomempolgaçãoparaavizinhademesaseussucessoseplanos.Aomesmo tempo, era desajeitado como um filhotinho de cachorro. Ela sedivertiueficoutocada,elhepassouasensaçãodesegurança.Eleconheciae detestava o fato de mulheres mais velhas, bem-sucedidas, sentirem-seatraídasporeleequereremadotá-lo.Katesimpatizoucomele,enãotinhanemsuaidadenemfaziatantosucesso.Ojulgamentodaspessoasparecianão a incomodar. Quando ele se levantou de repente, para espanto doanfitrião,eaconvidouparadançar,elariueaceitou.

EleseapaixonouporKatenessanoite.Elaadormeceuconfusa.QuandosereencontraramnafeiradolivroemPasoRobleseKateolevouaoquarto,elenãoeraomeninodesajeitadoqueelahaviaimaginado,masumhomemcom uma entrega apaixonada. Ninguém a amara daquela maneira. E,durante o sono, ninguém se aninhara nela, abraçando-a e apertando-adaquelamaneira.Eraumtipodeamorsemreservas,monopolizador,queKatenãoconheciaequeaassustavaeexcitava.AovoltaremaNovaYork,ele ficou e a cortejou de maneira obstinada e atrapalhada, até queconseguiu se mudar para a casa dela. Seu apartamento era grande osuficiente.Comoavidaadoiseraboa,elessecasaramdepoisdeseismeses.

Avidaadois se transformou.No início,ambos trabalhavamemmesaslado a lado, em casa ou na biblioteca, e apareciam juntos em eventos.Depois,Katelançouosegundolivro,quesetornoubest-seller.Edaíapenas

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ela aparecia.Apóso terceiro livro,Kate começoua viajar omundo.Ele aacompanhava com frequência, porém não queria mais participar doseventos oficiais. Embora Kate sempre o apresentasse como o renomadoautoralemão,ninguémconhecia seunomeouseu livro,eeledetestavaacordialidadecomaqualerarecebidosóporqueeramaridodeKate.Notavaomedoqueelasentiadasuapossívelinveja.

—Nãotenhoinveja.Vocêmereceosucesso,euadoroosseuslivros.Ainterseçãoentreasduasvidassereduziu.— Assim não dá para continuar— comentou ele. — Você fica longe

tempo demais, e, quando está aqui, se sente exausta demais; exaustademaisparaconversareexaustademaisparaoamor.

—Eu tambémsofro comaagitação. Já estou recusandoquase tudo.Oquedevofazer?Nãopossorecusartudo.

—Ecomovaisercomofilho?—Filho?—Encontreiotestecomasduasmarcas.—Issonãoquerdizernada.Katenãoquisacreditarnoprimeirotestedegravidezefezumsegundo.

Quando se tornou mãe, inicialmente também não quis acreditar quedeveriamudarsuavida,eseportavacomoantesdoparto.Mas,quandoelachegava a casa à noite e pegava a filha no colo, Rita se debatia em seusbraçoseprocuravaopai.Nessemomento,Katefoiassoladapelodesejodeter outra vida, umavida coma filha, omarido, a escrita e nadamais.Notumultododiaseguinte,odesejodesapareceu.Maselevoltava,maisemaisforte,àmedidaqueRitacrescia,eKateficavacadavezmaisassustada.

Certanoite,elefalouantesdepegarnosono:—Nãoqueromaisviverassim.Subitamente,Kateficoucommedodeperdê-loedeperderRita,eavida

comosdoislhepareciaacoisamaispreciosa.—Eutambémnão.Nãosuportomaisasviagens,asleituras,aspalestras,

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oseventos.Queroficarcomvocês,escreverenadamais.—Issoéverdade?—Seeupuderescrever,sóprecisodevocês.Nãoprecisodemaisnada.Elestentaramviverdeummododiferente.Depoisdeumano,chegaram

àconclusãodequeissonãoseriapossívelemNovaYork.— A vida aqui te consome. Você ama os gramados, as árvores e os

pássaros.Vouprocurarumacasanocampoparanós.

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Depoisdeviveremalgunsmesesnocampo,eledisse:— Não são apenas os gramados, as árvores e os pássaros. Como as

coisasnascemecrescem...Acasaestáquasepronta,Ritaestámaissaudáveldo que na cidade, e as macieiras, que Jonathan e eu podamos, vão ficarcarregadas.

Elesestavamno jardim.ElecolocouobraçoaoredordeKate,eelaseencostounomarido.

—Sómeulivroqueaindavaidemoraraficarpronto.Noinvernoounaprimavera.

— Isso vai acontecer logo! E escrever aqui não é mais fácil que nacidade?

—Nooutonovouestarcomumaprimeiraversão.Vocêquerler?Kate sempre tinha dito que não se deviamostrar a ninguémo que se

estavaescrevendo,tambémnãosedeviafalararespeito,poisdavaazar.Eleficoucontentecomaconfiançadaesposa.Eleficoucontentepelacolheitadasmaçãs e domosto que faria delas. Ele tinha encomendado um tachogrande.

Ooutonochegoucedoeageadaprecocetingiuobordodeumvermelhoflamejante.Ritanão se cansavadeobservaras coresdasárvoresnemde

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como, nas noites frias, o calor do fogo nascia do papel e da madeira nalareira.Eleadeixavaamassaropapel,empilharasmadeiraseoscavacos,riscarofósforoeosegurar.Apesardisso,eladizia:

—Olhe,papai,olhe!Tudocontinuavaummilagreparaela.Quando estavam os três diante da lareira, ele serviamosto quente de

maçã, com uma folha de hortelã para Rita e um pouco de Calvados paraKateeele.Talvezoresponsávelpelaesposacedercommaisfrequênciaàsinvestidas dele na cama fosse o Calvados. Talvez fosse seu alívio por terterminadoaprimeiraversão.

ElequerialertodososdiasumpouquinhoeexplicouaRitaquetinhadebrincar sozinha por um tempo. No primeiro dia, ela bateu à sua portaorgulhosa depois de duas horas, foi elogiada e prometeu que no diaseguinte ficaria sozinha por mais tempo. Porém no dia seguinte estavafeito.Eletinhaselevantadoànoiteeterminadoaleitura.

Os trêsprimeiros romancesdeKatedescreviamavidadeuma famíliaduranteaGuerradoVietnã.Oregressotardiodofilho,quetinhasidofeitoprisioneiro, para sua amada, que está casada e temuma filha, e o dramadessa filha, cujo pai não é o homem casado com a mãe, com quem elacresceu,masaquelequeretornou.Cadaromanceeraindependente,masostrêsformavamoretratodeumaépoca.

OnovoromancedeKatesepassavanopresente.Umcasaljovem,ambosempregados, ambos bem-sucedidos, que não consegue ter filhos, desejaadotar crianças e as procura no exterior. Nesse processo, sai de umacomplicaçãoeentraemoutra,enfrentaobstáculosmédicos,burocráticosepolíticos, encontra ajudantes engajados e negociantes corruptos, cai emsituaçõesestranhaseperigosas.NaBolívia,diantedaescolhaentreadotarum casal de gêmeos encantadores ou denunciar os criminosos nosbastidoresearriscaraadoção,ocasalcomeçaabrigar.Asimagensqueelestêm de si próprios e dos outros, seu amor, seu casamento — nada se

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adequava mais. No fim, a adoção fracassa e o futuro que imaginaram édespedaçado.Masavidadelesestáabertaparanovidades.

Aindaestavaescuroquandoelecolocouaúltimafolhanapilhadaslidas.Apagoualuzeabriuajanela,respirouoarfrescoeobservouageadasobreogramado.Haviagostadodolivro,quetinhasuspense,muitaaçãoeestavaescrito comuma leveza inéditaemKate.Os leitoresamariamo romance;sofreriametorceriamdurantealeituraeficariamsatisfeitosemfabularofinalaberto.

Mas seráqueKatehavia lhepassadoooriginalpor confiança?O casalcujavidaestáabertaparanovidades—Kateeele?Elaoestavaalertando?Queria lhedizerquesuasvidasantigasnãoseadequavammaisequeeraprecisoseprepararparaumaoutra?Elebalançouacabeçaesuspirou.Isso,não. Mas talvez também fosse algo bem diferente. Talvez ela estivessecomemorando, como finaldo livro,o fatodeosdois terem iniciadoumanovavida.Elesnãoeramocasalcomavidadespedaçada.Eramocasalcujavidaficaraempedaçosequetinhainiciadoumanovavida.

Ele escutouosprimeirospassarinhos.Depois, clareou; amassa escurado bosque atrás do gramado se transformou em árvores isoladas. O céuaindanãorevelavaseodiaseriaensolaradoounublado.DeveriafalarcomKate? Perguntar se o original continha umamensagem para ele? Ela iriafranzir o cenho e fitá-lo irritada. Restava a ele chegar a uma conclusãosobre o final da procura do jovem casal. Havia um conflito latente sob avida que Kate e ele levavam? Kate estava fatigada. Mas como não estarfatigada!Elaquiscumpriroprazoqueelaprópriahaviadeterminadoparaaprimeiraversãoe,nasúltimassemanas,escreveunoitesadentro.

Não, não existianenhumconflito latente em suas vidas.Desde a brigaidiota sobre a feirado livro emParis, para a qualKatehavia confirmadopresença sem falar com ele, e depois cancelado, eles não brigarammais.Estavamdormindojuntosmaisvezesnovamente.Elenãosentiaciúmesdosucessodela.Elesamavama filha.Quandoa três, riammuitoe cantavam

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com frequência. Queriam um labrador preto e tinham falado com umcriadorsobreapróximaninhada.

Elese levantoueseaprumou.Aindadavaparadormirmaisumahora.Despiu-see subiu comcuidadoaescadaque rangia.EntrounoquartonapontadospéseficouparadoatéKate,quehaviaseagitadocomoabrirefechardaporta,voltaradormircalmamente.Emseguida,foiparadebaixodascobertasaoseuladoeseencostounela.Não,nenhumconflito.

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Napróximavezquefoiàcidadezinha,ele fezcomprasparao inverno.Naverdade,nãoeranecessário;noúltimoinverno,nãodemoroumaisqueumdia para as ruas terem sido limpas da neve. Mas as batatas no saco, ascebolasnacaixa,orepolhonotoneleasmaçãsnaprateleira tornariamoporãoumlugaraconcheganteparaRita.Elasedivertiriaemdescer,contarasbatataselevá-lasparacima.

Eleencomendouasbatatas,cebolaseosrepolhosnafazendaqueficavanocaminho.Ofazendeiroperguntou:

— O senhor poderia levar minha filha à cidade e trazê-la de voltadepois?Quandovierbuscarassuascoisas.

Assim,deucaronaàfilhadedezesseisanosquequeriabuscarlivrosnalivrariaeencheuonovovizinhodeperguntascuriosas.Suaesposaeeleseencheramdacidade?Estavamàprocuradesossegonocampo?Oqueelesfaziamnacidade?Elanãoparouatédescobrirqueeleeaesposaescreviam,eachouexcitante.

—Comosechamaasuamulher?Possoleralgoqueelaescreveu?Eledesconversou.Maistarde,eleseirritou.Porquenãodisseraqueaesposaeratradutora

ouwebdesigner? Eles não saíram de Nova York para, no campo, cair no

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turbilhão seguinte ao redor de Kate. E depois descobriu, peloNew YorkTimes, a notícia de que em poucos dias seria anunciado o livro do ano.TodosostrêsdeKatehaviamsidoconsideradosparaoprêmio.Nesseano,nenhum livro dela havia sido publicado. Mas apenas nesse ano a críticatinhareconhecidoeaplaudidoostrêstítuloscomooretratodeumaépoca.ElenãoconseguiaimaginarKateausentedeumalistadeconcorrentes.Seelarecebesseoprêmio,aconfusãoiriarecomeçar.

Elefoiatéalivrariaebuzinou.Afilhadofazendeiroestavacomoutrasgarotas junto à entrada; ela acenou e as outras olharam. Na viagem devolta,contou-lhecomoasamigasacharamincrívelofatodeeleeamulherserem escritores e morarem nas redondezas. Será que a esposa ou elepoderiamviralgumdiaàescolafalarsobreaescrita?Elesjáreceberamavisitadeumamédica,deumarquitetoedeumaatriz.

—Não— respondeu ele,mais rispidamente que o necessário—, nãofazemosessascoisas.

Apósdeixá-lanafazenda,carregarsuascoisaseficarnovamentesozinhonocarro,elefoiatéomirantepeloqualsemprehaviapassadoeparounoestacionamentovazio.Diantedele,obosquemulticoloridoseestendiaporumvale largo,voltavaasubirmaisà frenteecontinuava iluminadoatéaprimeiraserra.Nasegunda,ascoresesmaeciam,adistânciaobosqueeasmontanhas derretiam junto do opaco céu azul. Uma águia descreviacírculossobreovale.

Ofazendeiro,queseinteressavapelahistórialocal,contou-lhecertavezdeumsurpreendenteiníciodeinverno,em1876,danevequecaíaemmeioa umveranico, primeiro esparsa e divertida para as crianças, então cadavez mais intensa, até que tudo estava coberto, fechando a passagem etornandoascasasinalcançáveis.Aquelessurpreendidospelanevenomeiodocaminhonãotiveramchance,porém,algunsdaquelestrancadosemcasatambémmorreram de frio. Havia casas distantes de todas as estradas, eapenas na primavera, com o derretimento da neve, alguém conseguiu

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chegarnovamenteaovilarejo.Ele olhou para o céu. Ah, se nevasse agora! Primeiro bem pouco,

permitindo que quem estivesse fora conseguisse chegar em casa, masdepoistãofortequenenhumautomóvelconseguissesemoverpordias.Eseumgalhosequebrassecomopesodaneveearrancasseasnovaslinhastelefônicas.EseninguéminformasseaKatequeelatinhavencidooprêmionem a convidasse para a entrega, se ninguém pudesse levá-la à cidade,perturbando-a com entrevistas, programas de televisão e recepções.Depois,comoderretimentodaneve,oprêmioencontrariaseucaminhoatéKate e ela não ficaria menos feliz do que agora. Mas a confusão teriapassadoeseumundopermaneceriaintacto.

Quando o sol se pôs, ele seguiu viagem. Foi da estrada larga para avicinalepassoupelocaminhodecascalho,subindoolongovale.Atépararedescer. Ao lado da rua, a três metros de altura, passavam os cabos detelefone, presos em postes novos, ainda claros. Por causa deles algumasárvorestinhamsidoderrubadas,algunsgalhosforamcortados.Masoutrascontinuavampertodoscabos.

Encontrou um pinheiro com a ramagem vazia, alto, torto, morto. Eleamarrouacordaaoredordaárvoreenoengateparareboquedoveículo,acionouatraçãoquatroporquatroedeuapartida.Omotorfezumruídoforteemorreu.Eledeuapartidamaisumavezemaisumavezomotorfezumruídoforteemorreu.Naterceiratentativa,asrodasgiraramemfalso.Desceu,tiroudamaletadeferramentasapádobrável,ficoucutucandoopéda árvore na terra e chegou a uma pedra, em cujas frestas as raízes seagarravam. Ele tentou soltá-las, e cavou, sacudiu, empurrou. Sua camisa,seu pulôver, sua calça — tudo estava molhado de suor. Se conseguisseenxergarmelhor!Escurecia.

Elevoltouasesentarnocarro,acelerouatéacordaseretesar,deixouocarro andar para trás e avançou novamente. Avançar, voltar, avançar,voltar—osuorescorriapelosseusolhosesemisturavaalágrimasdeódio

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pelaárvorequenãoqueriacair,epelomundo,quenãoqueriadeixarKateeeleempaz.Avançava,voltava,avançava,voltava.EleesperavaqueKateeRita não estivessem escutando. Esperava que Kate não ligasse para ofazendeiroouparaosupermercado.Elenuncatinhachegadotãotardeemcasa.Esperavaqueelanãoligasseparaninguém.

Semnenhumsinalprévio,comouma inclinaçãogradual,aárvorecaiu.Bateunoscabos logoao ladodeumposte,eárvoreepostedesceramatéqueoscabosestouraram.Eseestatelaramnochão.

Eledesligouomotor.Faziasilêncio.Estavaexausto,exaurido,vazio.Masentãoumsentimentodetriunfocresceudentrodele.Haviaconseguido.Iriaconseguir todo o resto também. Quanta força existia em seu interior!Quantaforça!

Desceu,desamarrouacorda,guardou-acomapáefoiembora.Delonge,avistouasjanelasclaras—suacasa.Amulhereafilhaestavamdiantedela,comosempre, e, comosempre,Ritaveio correndoabraçá-lo.Tudoestavabem.

6

Katelheperguntouapenasnanoiteseguinteporqueotelefoneeainternetnão estavam funcionando. Pela manhã e no começo da tarde, ela nãodeixavaquenadaperturbassesuaescrita,esepreocupavacomose-mailsapenasnofinaldatarde.

—Vouverificar.Ele se levantou, foi olhar os plugues e os cabos do telefone e do

computadorenãoencontrounada.—Possoiramanhãatéacidadeechamarumtécnico.—Daí vou perdermetade do dia de novo. Esperemais um pouco. Às

vezesessesproblemastécnicosseresolvemsozinhos.

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Após alguns dias, quando o problema não tinha se resolvido sozinho,Katereforçou:

—Esevocêforamanhã,perguntetambémseháalgumaoutraredequepodemosacessaraqui.Nãodáparaficarsemcelular.

Osdoishaviamseanimadopelosinaldocelularnãopegarnacasanemnoterreno.Elesnãoseriammaisencontráveisnemestariamàdisposiçãoaqualquer momento. Também não atendiam ao telefone fixo emdeterminadoshoráriosnemtinhamumasecretáriaeletrônica.Nãopediamparaacorrespondênciaserentregue,masiambuscá-la.EagoraKatequeriaumcelular?

ElesestavamdeitadosjuntosnacamaeKateapagoualuz.Eleaacendeu.—VocêquermesmoquefiquenovamenteigualaNovaYork?Como ela não respondeu, ele não sabia se ela não havia entendido a

perguntaousenãoqueriarespondê-la.—Querodizer...—OsexoemNovaYorkeramelhordoqueaqui.Éramosávidosumpelo

outro. Aqui... somos como um velho casal, carinhosos, mas não maisapaixonados.Comoseapaixãotivesseacabado.

Elese irritou.Sim,osexohaviaficadomaistranquilo,maistranquiloemais íntimo. Em Nova York eles muitas vezes se atracaram, ávidos eapressados, e isso tinha seu encanto como a vida ávida e apressada dacidade.Osexoentreosdoiseracomoavidadeles,tantoaquicomolá,e,seKate sentia falta de avidez e pressa, então era possível que isso não serestringisse somente ao sexo. Será que tinha precisado da tranquilidadesomente para terminar o livro? Terminado o livro, teria ela terminadotambémavidanocampo?Elenãoseirritoumais.Estavacommedo.

—Eugostariadefazeramorcomvocêmaisvezes.Eugostariadeentrarde repente no seu quarto e levá-la nos braços, e você iria colocar seusbraçosaoredordomeupescoçoeeuiriacarregarvocêatéacama.Eu...

—Eusei.Nãofoioqueeuquisdizer.Quandoolivroestiverpronto,tudo

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vaificarmelhor.Nãosepreocupe.Kate se aninhou nele e fizeram sexo. Na manhã seguinte, quando ele

despertou, ela já havia acordado e o observava. Não falou nada, e ele sedeitoude ladoeolhouparaKate,emsilêncio.Nãoconseguia lerosolhosdela,nãoconseguiasaberoqueelasentiaoupensava,etentavanãotrairseumedocomosolhos.Ontem,nãohaviaacreditadoqueelanãodesejavadizeroque tinhadito, ehoje continuava semacreditar. Seumedoestavarepleto de saudade e desejo. O rosto de Kate com a testa alta, assobrancelhasarcadasdemaneiraorgulhosasobreosolhosescuros,onarizlongo,abocagenerosaeoqueixo,queliso,inchadooufranzido,expressavaseuhumor—essaeraapaisagemnaqualseuamorsesentiaemcasa.Esseamorsesentiaemcasa,alegre,quandoorostoseabriaesevoltavaparaele;commedo,quandosefechavaeorejeitava.Umrosto,pensouele,nadamais, e isso é toda a variedade de que preciso e que suporto. Ele sorriu.Kate continuava encarando-o em silêncio e séria, mas colocou o braçosobreascostasdeleeopuxouparapertodesi.

7

No trajeto até a cidade, ele parou junto à árvore e ao poste caídos e aoscabosrompidos.Quandoderrapou,ospneusdocarrodeixarammarcasnarua.Eleasapagou.

Tudopareciateracontecidosemquerer.Elepodiairàcidadeealertaracompanhia telefônica. Ainda não pesava nenhuma acusação contra ele.Mesmosemalertaracompanhiatelefônica,nãohaviaacusaçãonenhuma.Elenãotinhavistoaárvoreeopostecaídosnemoscabosrompidos.Comopoderia tê-losvisto?O técnico,que instalaraos caboseos computadoresemsuacasa,eaquemeletinhaprometidoinformar,podiaveroquehaviaacontecidoquandopassasseporlá.Ounão.

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O técnico não estava em sua oficina. Havia um bilhete pendurado naporta,informandoavisitaaumclienteeavoltaembreve.Porémobilheteestavaamarelado,eas janelassujasdeixavamadúvidaseaoficinaaindafuncionavaousetinhafechadoparao invernooupara férias.Telefonesecomputadoresseespalhavampelasmesas,cabos,plugues,chavesdefenda.

Nosupermercado,eraoúnicocliente.Odonoveiofalarcomeleecontouda festa na cidade no próximo sábado. Não gostaria de vir? E trazer amulhereafilha?ElenuncahaviaencontradoKateeRitanosupermercadonememnenhumaoutra lojaourestaurante.Àsvezeselespassavampelacidade,issoeratudo.Oquemaisoproprietáriosabiasobreeles?

Então ele viu a fotodeKatenoNewYorkTimes. O prêmio era dela. Amatériadiziaqueelanãohaviacomparecidoàsolenidadedeentrega,quesuaagentetinharecebidooprêmioequeKatenãoforaencontradaparasemanifestararespeito.

Será que o dono do supermercado lia o jornal? Será que haviareconhecidoKatenafoto?Eleatinhavistovezesosuficientequandoelaiaàcidadeemsuacompanhia?SeráqueoutraspessoasobservaramKatecommaisatençãoquandoelaiaàcidadeemsuacompanhiaeareconheceramna foto?LigariamparaoNewYorkTimes ediriamondeKatepoderia serencontrada? Ou iriam informar o editor doWeeklyHerald, que circulavasemanalmentetrazendoanúnciospublicitáriosaoladodepequenosrelatossobre crimese acidentes, inaugurações e aberturas, jubileus, casamentos,notíciasdenascimentoemortes?

Havia mais três exemplares do New York Times sobre o balcão. Eleestavacomvontadedelevartodos,paraqueninguémmaisoscomprasseeoslesse.Noentantoissoteriachamadoaatençãododono.Poressarazão,ficou com apenas um. E mais uma pequena garrafa de uísque, que oproprietárioembalounumsacodepapelpardo.Nocaminhoparaocarro,ele passou por cavaletes azuis empilhados e fitas de isolamento, com asquaisapolícia iria fechara ruaprincipalparaa festadacidade.Foimais

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umavezàoficinadotécnicoenovamentenãooencontrou.Elepodiadizerquetinhatentado.

Acorrespondênciaquetiroudoescaninhoficousemseranalisada.Eleacolocounoforroabertodoquebra-sol.Retornouaomirante,estacionouebebeu. O uísque ardia na boca e na garganta, ele engasgou e soltou umarroto.Olhouparaosacodepapelpardocomagarrafanamãoepensounossem-tetoqueficamsentados,bebendo,nosbancosdoCentralParkcomseussacospardos.Porquenãotinhamconseguidodarcontadoseumundo.

Daúltima vez que esteve sentado ali, o bosque ainda reluzia colorido.Hoje as cores estavamopacas, gastaspelo outono e abafadaspelanévoa.Ele abaixou a janela e respirou o ar gelado, úmido. Tinha criado tantaexpectativa em relação ao inverno, o primeiro inverno na nova casa, asnoites junto à lareira, fazer artesanato e cozinhar juntos, a coroa doAdventoeaárvoredeNatal,maçãscozidasevinhoquente.EemrelaçãoaKate,queteriamaistempoparaeleeparaRita.

Também em relação aos amigos de Nova York, que eles queriamfinalmenteconvidarnoinverno.Osamigosdeverdade,PetereLiz,SteveeSusan,nãoacorjadopessoaldeagências,editoraseimprensa,comquemseencontravamemeventosefestasquaisquer.PetereLizescreviam,StevelecionavaeSusandesenhavajoias—eramosúnicoscomosquaistinhamconversado seriamente sobre os motivos da mudança para o campo.Tambémeramosúnicosaquemderamonovoendereço.

Sim,elestinhamseunovoendereço.EseviessemporqueleramoNewYork Times e souberam que a notícia ainda não havia chegado a Kate,desejandoquefossemosmensageiros?

Ele tomoumais um gole. Não podia ficar bêbado, tinha demanter asideias em ordem, e pensar no que tinha de fazer. Ligar para os amigos?Dizer que Kate sabia do prêmio, só não queria entrar na confusão? Osamigos conheciam Kate, sabiam como ela gostava de comemorar seusfeitos.Nãoacreditariamneleeiriamexatamenteporisso.

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Opânicotomoucontadele.Seamanhãosamigosaparecessemdiantedasuaporta,depoisdeamanhãKateestariaemNovaYorketudocomeçariade novo. Se não quisesse isso, teria de pensar numa saída. Com qualmentiraseriapossívelmanterosamigoslonge?

Ele desceu do carro, esvaziou a garrafa e a lançou nas árvores,descrevendo um grande arco. Em sua vida, sempre tinha sido assim:quandoprecisavaescolher,asalternativaseramruins.Entreavidacomamãe e a com o pai, quando ambos finalmente se separaram. Entre umafaculdadequeeletinhadepagarequelheconsumiriatodootempolivreeumtrabalhoqueodiavaequelhedeixariatempolivreparaescrever.EntreaAlemanha, onde sempre se sentiuumestrangeiro, eosEstadosUnidos,ondecontinuavaestrangeiro.Elequeriafinalmentetercartastãoboasnasmãosquantoosoutros.Queriapoderescolherentreboasalternativas.

Elenãoligouparaosamigos.Foiparacasa,faloudavisitainfrutíferaaotécnicoeque tentariadenovonodia seguinte, senecessárioprocurandooutro técnico na cidade vizinha e na companhia telefônica. Kate estavairritada,nãocomele,mascomavidanocampo,cujainfraestruturanãosecomparava à deNova York. Quando percebeu que isso omachucava, elacontemporizou:

—Vamos investir na infraestrutura e levantarumpostenamontanhaatrás da casa. Temos dinheiro para isso. Daí vamos ficar umpoucomaisindependentesdostécnicosedacompanhiatelefônica.

8

Eleacordounomeiodanoite.Faltavapoucoparaasduas.Levantou-seemsilêncioe,entreascortinas,olhoupelajanela.Océuestavaclaroe,mesmosemalua,ogramado,obosqueeocaminhoeramfacilmentereconhecíveis.Comummovimento certeiro, elepegou suas roupasda cadeira e saiudo

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quarto na ponta dos pés, descendo a escada que rangia. Vestiu-se nacozinha,ocasacoacolchoadosobreojeanseopulôver,umgorrodelãnacabeçaebotasnospés.Estavafriodoladodefora;elehaviaenxergadoageadasobreogramado.

Aportadacasaabriuefechousemfazerbarulho.Ospoucospassosatéocarroforamvencidosnovamentenapontadospés.Elecolocouachavenaignição e destravou o volante. Em seguida, postou-se ao lado da portaaberta e empurrou o veículo do gramado até o caminho. Foi difícil e eleofegavaesuava.Nãoseouvianadadocarrosobreogramado.Nocaminho,o cascalho rangia sob as rodas e o ruído lheparecia infernal.Mas logo ocaminhoseinclinoueocarroganhouvelocidade.Elepulouparadentroedepoisdealgumascurvas,jáforadoalcancedaaudição,ligouomotor.

No trajeto até a cidade, alguns carros vieram no sentido oposto,mas,pelo que pôde perceber, nenhum conhecido. Na cidade, havia luz empoucas janelas;eramprédios,eele imaginouamãe juntoàcamado filhodoenteouopaipreocupadocomosnegóciosouoidosoquenãoconseguiamaisdormir.

Naruaprincipal,todasasjanelasestavamescuras.Eleapercorreuenãoviu ninguém, nenhum bêbado num banco, nenhum casal de namoradosnuma entrada. Passoupela delegacia; tambémestava escura, e diante doestacionamento com as duas viaturas de polícia havia uma corrente. Eledesligouosfaróis,deurébemdevagareparouaoladodoscavaletesazuisempilhados e da fita de isolamento. Esperou para ver se havia algumamovimentação, desceu em silêncio e carregou cuidadosamente trêscavaletes e duas traves na caçamba. Voltou a entrar sem fazer barulho,esperou novamente por um tempo e andou com os faróis desligados atédeixaracidade.

Ligou o rádio. “We Are The Champions” — ele amava essa músicaquandoeragarotoehaviatempoquenãoaouvia.Cantou-aemvozalta.Efoi tomado por uma sensação de triunfo novamente. Tinha conseguido

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novamente.Haviamaisneledoqueosoutrosconseguiamver.DoqueKateconseguiaver.Doquesuaautoconfiançaemgerallheassegurava.Maisumavezeleconseguiraarranjarascoisasdeumamaneiraqueninguémpoderiaacusá-lo de nada. Um engano, uma brincadeira — quem poderia sabercomoocaminhotinhasidointerditado?Quempoderiasaber?

Ele seguiadirigindo,pensandoondemontaria a interdição.O caminhoparasuacasaeraperpendicularàestrada,faziaumacurvafechadaedepoisseguia quase em paralelo com a estrada. Se a interdição ficasse logo nodesvio,chamariaatençãodemais;nacurvaseriaperfeita.

Foi tudomuito rápido. Parou depois da curva, montou os cavaletes ecolocouastravessobreeles.Ocaminhoestavainterditado.

Ainda antes de subir o aclive diante da casa, ele desligou o motor eapagoua luz.O impulsoera suficiente.Ocarrodeslizou,emsilêncioenoescuro,docaminhoatéogramado.Eramquatroemeia.

Ele ficou sentado, ouvindo. Escutou o vento nas árvores e, às vezes, oruído de algum animal ou um galho sendo quebrado. Mas não vinhanenhumbarulhodacasa.Logoamanheceria.

Kateperguntou:—Ondevocêestava?Mas não despertou. Na manhã seguinte, quando Kate comentou ter

ficadocomaimpressãodequeeletinhasaídodoquartoevoltadoànoite,eledeudeombroseexplicou:

—Fuiaobanheiro.

9

Nos dias seguintes, ele estava feliz. E havia um pouquinho de medomesclado à felicidade. O que aconteceria se o delegado encontrasse ainterdição, se um vizinho a visse e a denunciasse, se não fosse possível

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manterosamigosadistância?Masnãoveioninguém.Umavezpordiatiravaumatrave,empurravaumcavaleteparaoladoe

passava com o carro. Ele foi novamente à oficina fechada. Foi à cidadevizinhaeencontrouumtécnico,masnãoochamou.Tambémnãoligouparaacompanhiatelefônica.Asensaçãoderetirarecolocaratraveeempurraro cavalete para lá e para cá era boa. Como se ele fosse o senhor de umcastelo,queabriaefechavaoportão.

Voltavaparacasadassuasviagensomaisrápidopossível.Katequeriaficarnaescrivaninhadelaeelequeriaaproveitarseumundo:asegurançadequeKateestavasentadanoandardecima,escrevendo,aalegriadeterRitaporperto,aestabilidadedasrotinasdomésticas.ComooDiadeAçãode Graças se aproximava, ele contou a Rita dos velhos peregrinos e dosíndios, e eles fizeram um desenho grande, no qual todos comemoravamjuntos:osperegrinos,osíndios,Kate,Ritaeele.

—Elesvêmnosvisitar?Osvelhoseosíndios?—Não,Rita,elesmorreramfaztempo.—Masqueroquealguémvenhaaqui!—Eutambém.—Kateestavaàporta.—Estouquaseacabando.—Olivro?Elaassentiu.—E,quandoeuterminar,vamosfazerumafesta.Econvidarosamigos.

Eminhaagenteeminhaeditora.Eosvizinhos.—Quaseacabando...Comoassim?—Nofinaldasemana.Vocênãoestácontente?Elefoiatéelaeaabraçou.—Claroqueestoucontente.Éumlivrofantástico.Vaireceberresenhas

incríveis, aBarnes&Noblevai fazerpilhasgigantescasna seçãodebest-sellersevaisetornarumfilmeexcelente.

Kateergueuacabeçadoombrodele,foiumpoucoparatrásesorriu.—Vocêémaravilhoso.Foitãopaciente.VocêcuidoudemimedeRita,

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da casa e do jardim, entra dia, sai dia, sempre igual e você nunca sequeixou.Agoraavidavaivoltaraonormal,euprometo.

Eleolhoupela janelaparao jardimque ficavaatrásdacozinha,paraapilha de lenha e a de adubo. O lago estava um tantinho congelado namargem,logoelespoderiampatinarnogelo.Issonãoeranormal?Doqueelaestavafalando?

—Segunda-feiravouàcidade.Tenhode iraocybercafée,alémdisso,telefonar.VamoscomemoraroDiadeAçãodeGraçascomosamigos?

—Nãopodemosconvidá-losassimdevéspera.EoqueaRitavaifazerentretantosadultos?

— Todos vão gostar de ler para Rita ou brincar com ela. Ela é tãomaravilhosaquantovocê.

Oqueelaestavadizendo?Eleeramaravilhosocomoafilha?—Também posso perguntar a Peter e a Liz se eles querem trazer os

sobrinhos.Provavelmenteospaisvãoquererficarcomelesnoferiado,masnãocustaperguntar.EminhaeditoratemumfilhodaidadedeRita.

Ele não estavamais escutando. Kate o tinha traído. A promessa haviasido terminar no inverno ou na primavera,mas em vez disso ela queriaacabaragora.Emalgunsmesesaagenteteriaentregadooprêmioemcasa,sem alvoroço, tomando uma taça de champanhe. Agora toda a balbúrdiapor causa do prêmio iria começar, apenas com um pouco de atraso. Elepodia fazer algo a respeito?O que teria feito até o final do inverno ou oiníciodaprimavera?SeráqueteriaconseguidoconvencerKateaaguardaroconsertodainstalaçãodotelefoneesesatisfazercomeletrazendoseuse-mails do cyber café da cidade? Ela confiava nele em relação ao correioconvencional, por que não com os e-mails? Talvez tivesse começado anevar,nãoparandomais,comoem1876,eelesteriampassadooinvernoescrevendo, lendo, brincando, cozinhando, dormindo, sem se interessarpelomundoláfora.

—Vousubir.Nóstrêsvamoscomeçarfazendoanossafestanodomingo,

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certo?

10

Era para ele desistir? Mas Kate nunca estivera tão calma e nunca tinhaescritocomtanta tranquilidadequantonoúltimosemestre.Elaprecisavadavidaali.Ritatambém.Elenãoentregariaseuanjoaotrânsito,aocrimeeàs drogas da cidade. Se conseguisse fazer mais um filho com Kate, ou,melhor,maisdois,eledariaaulasemcasa.Comum,oempreendimentolheparecia pedagogicamente duvidoso,mas comdois ou três eraOK. TalvezcomumtambémjáfosseOK.Afinal,elenãocuidariamelhordeRitadoqueumaescolaruim?

Nodomingo,Katelevantoucedoeterminounofinaldatarde.—Terminei—avisouela,correndoescadaabaixo,dandoumadasmãos

aRitaeaoutraaele,edançaramjuntosaoredordaspilastrasdemadeira.Emseguida,Kateamarrouumavental.—Vamoscozinhar?Oquetemosemcasa?Vocêsestãocomvontadedecomeroquê?

Enquanto cozinhavam e comiam, Kate e Rita eram de uma levezainacreditável, rindode tudoede todos.Adoré a saudadedo riso—eraassimque suaavóalertavaosnetosdas lágrimasque se seguiamao risodescontrolado e assim ele queria também alertar Kate e Rita. No fim,porém, ele achou que seria desmancha-prazeres e desistiu. Mas estavaficandocadavezmaisabatido.Alevezadasduasomachucava.

—Umahistória,umahistória—pediaRitaapósojantar.Kate e ele não pensaram em nenhuma enquanto cozinhavam,mas na

verdadebastavaumcomeçareooutroprosseguir,equeambosprestassematenção. Hoje ele ficou se esquivando até ter acabado com a vontade deKate e Rita de ouvir a história. Quando se sentiu mal por isso, nãoconseguiumudaroclima.Alémdomais,erahoradeRitadormir.

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—Voucolocá-lanacama—disseKate.Ele escutou Rita rindo no banheiro e pulando na cama. Quando tudo

ficouemsilêncio,esperouqueelaochamasseparaumbeijodeboa-noite.Maselanãoofez.

—Rita dormiu imediatamente— explicou Kate, quando se sentou aoseu lado. Ela não falou nada sobre o humor soturno dele. Ainda estavainebriadaeopensamentodequenãopercebiaqueeleestavamalodeixavapiorainda.Kateestavaradiantecomohaviatemposnãoficava;asmaçãsdorostocoravameosolhosbrilhavam.Ecomquesegurançasemovimentavapara láeparacá!Elasabeoquantoébonita,queébonitademaisparaavidanocampoequeseulugaréemNovaYork.Elepensounissoeperdeuacoragem.

—Vouamanhãcedodepoisdocaféatéacidade.Vocêquerqueeutragaalgumacoisa?

—Nãodá.Prometia Jonathanajudarnoconsertodotetodoceleiro,evouprecisardocarro.Vocêtinhaditoqueterminarianofimdesemana,edaípenseiquevocêpoderiaficarcomRitaamanhã.

—Maseudissequequeriairàcidadeamanhã.—Oqueeuqueronãoconta?—Nãofoiissoqueeudisse.—Pareceu.—Sintomuito.—Elanãoqueriabriga, e simresolveroproblema.—

DeixovocênoJonathanecontinuocomocarroatéacidade.—ERita?—Levocomigo.—Vocêsabequeelaficaenjoadanocarro.—Entãoeuadeixocomvocê;atéJonathansãoapenasvinteminutos.—VinteminutosdecarrosãovinteminutosdemaisparaRita.—Ritapassoumalduas vezes e foi tudo.Ela andavade táxi emNova

Yorksemproblemaseveioatéaquidecarro.Essaéumaideiafixasua,de

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queelanãopodeandardecarro.Vamostentar...— Você quer fazer uma experiência com Rita? Será que ela vai ficar

enjoada ou será que vai conseguir? Não, Kate, você não vai fazerexperiênciascomminhafilha.

—Sua filha, sua filha... Rita éminha filha também.Falenossa filhaouRita,masnãodêumadepaipreocupado,queprecisaproteger a filhadamãemalvada.

—Nãoestoudandoumadenada.Eumepreocupomais comRitaquevocê.Seeudigoqueelanãovaiandardecarro,elanãovaiandardecarro.

—Porquenãoperguntamosaelaamanhã?Ritasabemuitobemoquequer.

—Elaéumacriançapequena,Kate.Eoquevaiacontecerseelaquiserireficarenjoada?

—Entãoeuapegonocoloeatragoparacasa.Ele apenas balançou a cabeça. Kate estava sendo tão teimosa que ele

sentiucomosetivessemesmodeconsertarotetodoceleirocomJonathan.Eleselevantou.

—Equetalaquelameiagarrafadechampanhequeestánageladeira?—Ele a beijou no alto da cabeça, trouxe a garrafa e duas taças e serviu abebida.—Avocêeaoseulivro!

Kateseesforçouparasorrir,ergueuataçaebebeu.—Achoquevoudarmaisumaolhadinhanomeutexto.Nãoesperepor

mim.

11

Elenãoesperoue foi sozinhoparaacama.Mas ficouacordadoatéelasedeitar ao seu lado. Estava escuro, ele não disse nada, continuou com arespiraçãoregular,e,depoisdeKateficarumbomtempodeitadadecostas,

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como se estivesse pensando se devia acordá-lo e conversar, ela virou delado.

Na manhã seguinte, ao acordar, a cama ao lado dele estava vazia.EscutouKateeRitanacozinha,vestiu-seedesceu.

—Papai,possoandardecarro!—Não,Rita,vocêpassamal.Vamosesperaratévocêficarmaioremais

forte.—Masmamãedisse...—Mamãequisdizermaistarde,nãohoje.— Nãome diga o que eu quis dizer.— Ela se conteve ao falar. Mas,

subitamente, a contenção acabou e Kate gritou com ele.— Você só estáfalando merda! Você diz que quer ajudar Jonathan com o celeiro, masdorme até tarde?Vocêdiz quequer esquiar comRita no inverno, e achaandardecarroperigosodemais?VocêquermetransformarnumaAmélia,queesperapacienteatéomaridopermitirqueelauseocarro?OuvamosagoraostrêsedeixovocênoJonathanoueueRitavamossozinhas.

— Eu quero transformar você numa Amélia? O que eu sou, se não aversãomasculina de Amélia? Só um escritor fracassado? Que vive à suacusta?Quecuidadafilha,masnãopodedecidirnada?Babáefaxineira?

Kate havia readquirido o autocontrole. Ela o observou com asobrancelhaerguida.

—Vocêsabequenãoestouquerendodizernadadisso.Vousairagora...Vocêvemjunto?

—Vocênãovai!Maselacolocouocasacoeossapatos,ajudouRitaafazeromesmoefoi

atéaporta.Quandoelesepostoudiantedaportadeentrada,obstruindoapassagem, Kate pegou Rita no colo e foi para a varanda. Ele hesitou, foiatrás de Kate, alcançou-a, segurou-a. Nesse momento, Rita começou achorareelesoltouamulher.SeguiuKatequandoelaatravessouogramadoatéocarro.

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—Porfavor,nãofaçaisso!Katenãorespondeu.ElasesentounobancodomotoristaecolocouRita

nodopassageiro,fechouaportaeligouocarro.—Nobancodafrentenão!Elequisabriraporta,masKateatravou.Elebateunaporta,seguroua

maçaneta,queriasegurarocarro.Katedeuapartida.Elecorreuaolado,viuqueRitaestavaajoelhadanobancoequeo fitavaassustada, como rostoinundadoporlágrimas.

—Ocintodesegurança—gritouele.—ColoqueocintoemRita!—MasKatenãoreagiu,ocarrotomouvelocidadeeeletevedesoltá-lo.

Correuatrásdo carro,porémnão conseguiumais alcançá-lo.Katenãoestava andando rápido, mas mesmo assim escapava dele. A cada trechoentreduascurvasadistânciaentreelesaumentava.Depois,ocarrosumiueeleoescutoucadavezmaislonge.

Ele continuou correndo. Tinha de correr atrás do carro, mesmo nãoconseguindoalcançá-lo.Tinhadecorrer—paramanteramulher,a filha,suavida.Tinhadecorrerparanãovoltarparaacasavazia.Tinhadecorrerparanãoficarparado.

Chegouummomentoemquenãopodiamaiscorrer.Elesecurvouparaafrenteeapoiouasmãosnosjoelhos.Quandoseacalmouedeixoudeouviraprópriarespiração,escutouocarrojámuitodistante.Eleseergueu,masnãoconseguiuenxergá-lo.Oruído longínquopermanecia, silenciandoaospoucos,eeleesperouquefossecessar.Emvezdisso,houveumestrondo.Depoisosilêncio.

Ele voltou a correr. Imaginou o carro batido contra uma trave e umcavaleteoucontraumaárvore,porqueKateaindatinhaconseguidodesviaro volante, viu as cabeças ensanguentadas de Kate e Rita no para-brisaestourado,KateindotrôpegaatéaestradacomRitanosbraços,carrosquepassavamsemseimportar,escutouRitagritandoeKatesoluçando.Ouseráqueambasestavampresasenãoconseguiamsair,eaqualquermomentoa

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gasolinairiapegarfogoeexplodirocarro?Elecontinuoucorrendo,emboraaspernasnãoquisessemmais levá-loesentissecomoseopeitoeobaçoestivessemsendoperfuradosporagulhas.

Então ele viu o carro. Graças a Deus, não estava em chamas. Estavavazio, não se viaKatenemRita em lugarnenhum,nemno carronemnaestrada.Eleesperou,acenou,masnãorecebeucarona.Voltouatéocarro,viuquetinhaatropeladotraveecavaleteequeocavaletehaviaamassadode talmaneira o chão do carro e o para-choque que não davamais paraandar.Aportaestavaabertaeelesesentounobancodomotorista.Opara-brisanãoestavadestruído,massujodesangue,nãodoladodomotorista,masdopassageiro.

Achaveestavanaignição,porém,aodaramarchaaré,elecarregouocavalete junto.Amarrouocavaletecomumacordanumaárvore, foiparatrásevoltouparaafrente,paratráseparaafrente,muitasvezes.Issolhepareceu uma punição pelo dano na linha telefônica, e, quando o carrofinalmentesesoltoudocavalete,eleestavatotalmenteexausto,comoantes.Conduziuo carro comas traves eos cavaletes e foi atéohospital. Sim, amulher e a filha foram levadas até lá faziameia hora. Ele pediu para lhemostraremocaminho.

12

Os corredores eram mais agradáveis que aqueles que ele conhecia doshospitais alemães— largos, compoltronasde couroe arranjosde flores.No elevador, um cartaz anunciava que o hospital tinha sido eleitonovamente o hospital do ano, pela quarta vez consecutiva. Pediram queficasse numa sala de espera, o médico logo iria chegar, ele se sentou,levantou-se, observou as fotografias coloridas nas paredes, achoudeprimentes as ruínas de templos cambojanos e mexicanos, sentou-se.

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Depois de meia hora, a porta se abriu e o médico o cumprimentou. Erajovem,cheiodevida,alegre.

— Sorte no azar. Sua esposa colocou o braço direito na frente da suafilha—eleesticouobraçodireito—,e,quandosua filhabateunelecomforça, sofreu uma fratura. Mas a fratura é simples e talvez isso tenhasalvado a vida damenina.Alémdisso, suamulher está com três costelasquebradas e um traumatismo por efeito chicote. Mas isso vai melhorar.Ficaremoscomelaapenasporalgunsdias.—Omédicoriu.—Éumahonrateravencedoradoprêmiodelivrodoanocomopaciente,efoiumaalegriaespecial para mim comunicar essa boa notícia a ela. Eu a reconheciimediatamente,masquasenão tive coragemdecomentar sobre isso comela.Eelanãosabiadenadaaindaeficoucontente.

—Eminhafilha?— Ela sofreu um corte na testa, mas já suturamos e agora está

descansando. Vamos tomar conta dela durante a noite, e, se tudo correrbem,amanhãosenhorpoderálevá-laparacasa.

Eleassentiu.—Possoverminhaesposa?—Euacompanhoosenhoratélá.Kateestavanumquartoindividual.Pescoçoebraçodireitoimobilizados.

Omédicodeixouosdoissozinhos.Eleaproximouumacadeiradacama.—Parabénspeloprêmio.—Vocêsabia.VocêestevequasetododianacidadeevocêlêoNewYork

Times quandoestápor lá.Porquenãodissenada? Jáquevocênãoéumescritordesucessoeutambémnãopossoser?

—Não,Kate,euqueriaapenasmanteronossomundo.Nãosouinvejoso.Vocêpodeescreverquantosbest-sellers...

—Eunãomeachomelhorquevocê.Vocêmereceomesmosucessoesintomuitoporessemundonãoserjustoenãodá-loavocê.Masnãoposso

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deixardeescreverporcausadisso.Nãopossomeanular.—Seanularcomoeu?—Elebalançouacabeça.—Eunãoqueriaquea

confusãocomeçassedenovo,asentrevistas,osprogramasdetelevisãoeasfestaseseilámaisoquê.Queascoisasvoltassemasercomoantes.Essesseismesesaquinosfizeramtãobem.

—Nãosuportomeverreduzidaaumasombraquesomepelasmanhãsnaescrivaninhaeànoite ficasentadaaoseu ladodianteda lareiraequebrincadefamíliaumavezporsemana.

— Não ficamos sentados diante da lareira, nós conversamos, e nãobrincamosdefamília,somosuma.

—Vocêsabeoqueeuquerodizer.Aquiloquefuiparavocênosúltimosseismesesqualquermulherqueseocupasozinha,nãofalamuitoegostadecarinhoànoitepoderiasertambém.Nãopossovivercomumhomemquedetantociúmesópermitequesobreissodemim.Ouqueameapenasisso.

—Doquevocêestáfalando?—Vamosdeixarvocê.Vamosnosmudar...—Vocês?VocêeRita?Rita, dequemeu troquei as fraldas, deibanho,

paraquemfizcomidaeensineialereaescrever?Dequemcuideienquantoestavadoente?NenhumjuizvaidaraguardadeRitaavocê.

—Depoisdoseusurtodehoje?—Meusurto...—Elebalançounovamenteacabeça.—Nãofoiumsurto.

Eusótenteibloqueartudo,otelefone,ainternetetambémarua.— Foi um surto, e o motorista que me trouxe até aqui vai avisar o

delegado.Ele estava sentado com as costas arqueadas e a cabeça baixa. Nesse

instante,aprumou-se.—Conserteinossocarro,vimcomeleatéaquieobloqueionãoexiste

mais.Tudooqueodelegadovaiconseguirdescobriréquevocêandoucomnossa filhasemcadeirinhae semcintodesegurança.—Eleolhouparaamulher. — Nenhum juiz vai deixar Rita com você. Você vai ter de ficar

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comigo.ComoKate olhou para ele? Cheia de ódio?Não era possível. Limitada.

Nãoeramascostelaseobraçoquebradosquelhedoíam.Oquelhedoíaeraqueelehaviaacabadocomsuasesperanças.Nãoqueriaacreditarquesuascontasnão fechavamsemele.Estavanahoradeela finalmenteaprender.Eleselevantou.

—Euteamo,Kate.Comquedireitoelaolhavadecepcionadaparaele?Comquedireitoela

lhedisse:—Vocêficoumaluco.

13

Ele foi à cidade pela via principal. Bem que gostaria de ter devolvido astravas e os cavaletes de maneira discreta, mas a festa da cidade tinhapassadoeaspilhasestavamarrumadas.

Dosupermercadoeleligouparaacompanhiatelefônicaeavisousobreafiaçãoarrebentada.Elaprometeuenviarumaequipedemanutençãoaindaàtarde.

Em casa, foi de cômodo em cômodo. No quarto, afastou as cortinas eabriu as janelas, ajeitou a cama e dobrou o pijama e a camisola. Noescritório de Kate, ficou parado junto à porta. Ela havia arrumado ocômodo; a escrivaninha estava vazia, à exceção do computador, daimpressoraedeumapilhadepapéisimpressos,eoslivroseospapéisqueelacolocaranochãoestavamdevoltaàsprateleiras.Kateparecianãoterencerradoapenasumlivro,masumapartedasuavida,eeleficoutriste.OquartodeRita tinhaumaromademenininha; fechouosolhos, cheirouoursinhodepelúciaqueelenãotinhapermissãoparalavar,seuxampu,seusuor.Nacozinha,colocoulouçasepanelasnamáquinadelavaredeixouo

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restocomoestava:opulôver,comoseKatepudesseentraraqualquerhoraevesti-lo,astintas,comoseRitalogofossesesentaràmesaecontinuarseudesenho.Elesentiufrioeaumentouatemperaturadoaquecedor.

Foi até a porta. Nenhum juiz tiraria Rita dele. Na pior hipótese, aadvogada certa conseguiria uma pensão generosa para ele. Então viveriasozinhocomafilhaalinasmontanhas.EntãoRitacresceriacomumamãequeviviaacincohorasdecarrodedistância.Kateinsisteemlevarascoisasatéofinal?Queaguardeentãooqueaespera.

Ele olhou para a floresta, para o gramado com as macieiras e ossabugueirinhos,parao lagocomossalgueiros.Nadadepatinaçãono lagocongelado? Nada de descer de trenó, juntos, a ladeira do outro lado damargem?EmboraRitaconseguisseviveremocionalmentebemsemamãeeele sevirasse financeiramentesemKate,nãoqueriaperderomundoqueno verão havia lhe parecido às vezes ter sido sempre o seu, e quecontinuariasendoparasempre.

Elepensarianumplanoparalevaravida.Impossívelnãodarcertosemasboascartasquetinhanamanga!AmanhãbuscariaRita.Emalgunsdias,Ritaeeleestariamdiantedohospital,esperandoKate.Comflores.Comumcartazescrito“Bem-vinda!”.Comoamordeles.

Foiatéocarro,descarregoutravasecavaleteseoslevouparaosfundosdacasa,nolugarondeserravaecortavalenhaparaalareira.Eletrabalhouatéescurecer,tirouospregosdoscavaleteseserrouecortouastravasempedaços menores. Com a luz que vinha da cozinha, arrumou a madeiranuma pilha; tirou uma parte daquela que já havia armazenado para oinvernoecolocouapilhanovanomeio.

Ele carregou madeira velha e nova num cesto e o levou à lareira. Otelefone tocou; era a companhia telefônica avisando que a linha estavafuncionandonovamente.Ele ligouparaohospitalesoubequeKateeRitaestavamdormindoequenãohaviamotivoparasepreocupar.

Ofogocomeçouaarder.Elesesentoudiantedeleeobservouamadeira

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sertomadapelaschamas,tornar-sebrasaedesabar.Numpedaçoazulera

possível ler “LINE”, parte da inscrição “POLICE LINEDONOTCROSS”.Ofogoderretiaatinta,borravaaescritaeaconsumia.Daliaalgumassemanas,eraassimqueelequeriasesentarcom

KateeRitadiantedalareira.Kateleria“NOT”ou“DO”numpedaço

demadeira e se lembraria do dia de hoje. Ela entenderia o quanto ele aamavaeiriaseaproximareseaninharnele.

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Oestranhonanoite

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—V

1

ocêmereconheceu,nãofoi?Mal se sentou a meu lado, puxou conversa. Era o último

passageiro;ascomissáriasfecharamasportasatrásdele.—Nós estivemos...—Nós estivemos junto dos outros passageiros no

bardasaladeespera.Achuvabatiacontraovidro,ovoodeNovaYorkaFrankfurt tinha sido adiado várias vezes, e passávamos o tempo e airritação com champanhe e histórias de voos atrasados e oportunidadesperdidas.

Elenãomedeixouterminardefalar.—Vinosseusolhos.Conheçoesseolhar:primeiroquestionador,depois

cheio de certeza, então decepcionado. Como é que você sabe... Quepergunta idiota,minhahistória apareceu em todosos jornais e canais detelevisão.

Olheiparaele.Deviaterporvoltadecinquentaanos,eraaltoemagro,tinha um rosto inteligente, agradável, muitos fios grisalhos em meio aocabelopreto.Nobar,nãosedestacoucomnenhumahistória;sómelembrodoseuternodebomcaimento,comvincosdelicados.

— Sinto muito. — Não sei por que falei que sentia muito. — Não oreconheci.

Oaviãodecolouerapidamenteganhoualtitude.Gostodosminutosem

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queascostasficampressionadascontraoencosto,abarrigagelaeocorposente que está voando. Através da janela enxerguei o mar de luzes dacidade.Depois,oaviãofezumacurvaaberta,passeiaversomenteocéu,eporfimomar—refletindoaluzdalua—estavasobmim.

Meuvizinhodeassentoriubaixinho.—Voltaemeiaalguémvinha falar comigoeeunegava.Agoraeuquis

pegar o touro pelo chifre,mas não tem touro nenhum.— Ele continuourindoeseapresentou.—WernerMenzel.Quetenhamosumbomvoo!

Duranteoaperitivo,trocamosamenidades,nojantarassistimosafilmesdiferentes. Nada me preparava para que, assim que as luzes da cabinefossemapagadas,elesevirasseparamim.

—Vocêestámuitocansado?Seiquenãotenhoodireitodeperturbá-lo,massepuder lhecontaraminhahistória...Nãoémuitodemorada.—Elehesitou,voltouarirbaixinho.—Sim,vaidemorarmuito,maseulheseriamuitograto.Sabe,atéagoraquemcontouaminhahistóriafoiamídia.Masnão era a minha história, era a história dela. Minha história ainda nãoexiste. Primeiropreciso aprender a contá-la. E qual amelhormaneiradefazer isso senão contando a um estranho, alguém que nunca ouviu falardela,oestranhodanoite?

Nãosoudaquelesquenãoconseguemdormirnoavião.Masnãoquisserantipático.Alémdisso,haviaumadelicadeza irônicanamaneiracomoelefaloudoestranhodanoite,quemetocouemeseduziu.

2

—A história começa antes da Guerra do Iraque. Eu tinha assumido umposto noMinistério da Economia e fui convidado para participar de umgrupo de jovens colegas do Ministério do Interior, do Ministério dasRelações Exteriores e da universidade. Um grupo de leitura e discussão.

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Naquelaépoca,essessalõesestavamnovamentenamodaemBerlim.Nósnos encontrávamos a cada quatro semanas às oito, debatíamos,esvaziávamosumagarrafadevinhoouduasemuitasvezesasnamoradaschegavamàsonze,nocaminhoparacasa,vindasdotrabalho,doconcertooudoteatro,desdenhandodaseriedadecomquetratávamososlivrosedaalegriadasnossasconversasintermináveis.Nofinal,comfrequênciaficavarealmentemuitoanimado.

“Àsvezesnossosdiplomatasnosconvidavamparasuasrecepções;nãoasrelevantes,masaquelascomescritoreseartistasestrangeiros.Primeiroeu ficava com aminha namorada junto das pessoas que já conhecíamos.Depoispercebemosqueasoutraspessoasficavamcontentesquandoíamosfalarcomelas.Claro,haviaaquelasqueeramimportantesdemaisparaseinteressarempelagenteeaquelasquefingiaminteresse.Eramexceções.Eununcateriaimaginado.Dáparasedivertirmuitonasrecepções.

“Eudeveriaterpercebido...PercebiqueoadidodaembaixadadoKuwaitflertavacomaminhanamorada.Eudeveriaterevitadoocontatoporcausadisso? Ele flertava brincando, mais admirava a beleza dela do que agiaabertamente.Éassimqueflertotambém,quandoaprecioumamulher:parafazer com que ela saiba disso, não para conquistá-la. Minha namoradaretribuiu o flerte; ela não o encorajou propriamente, apenas demonstrousuaalegriapeloselogios.”

Eletinhaseapoiadonobraçodoassentoaofalar.Agora,recostava-se.—Elaeramaravilhosa.Comoeuamavaseuscabelosloiros!Suasmechas

claras e escuras, as ondulações que caíam sobre seus ombros, a luz quefaziaseurostobrilhar. “Meuanjo”,eracomoeuqueriachamá-lao tempotodo. “Meuanjo.”Eoportedela!—Escutei-o rirbaixinhonovamente.—Você sabe como as mulheres podem ser cruéis consigo mesmas. Talvezsuaspanturrilhasfossemmesmoumpoucogrossasdemais,maseugostavadelas. Elas davam firmeza à sua beleza loira. Combinavam com o avôcamponêseopaiferroviárioecomofatodeelaserumamédicadecidida.

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Eutambémgostavaquealigaçãoentreseunarizeseulábiosuperiorfosse,por um capricho da natureza, um pouco curta demais, deixando muitasvezes uma frestinhada boca aberta. Issodava a ela a expressãode estarencantada, como uma criança que admira o mundo. Mas, quando seconcentravaefechavaoslábios,seurostomostravatodooseuardecidido.Ah,ecomoelaandava...Vocêconheceamúsicaquediz“Ellenemarchepas,elledanse”?

Eleassobioudeleveumamelodia.— Não deveríamos ter aceitado o convite do adido. Mas minha

namoradagostavadeviajarparapaísesdistantes, e eu,quenãogostodeviajar...Nãoécurioso?Eunãogostodeviajare teriapreferidonãoviajarnaquelaépoca,eagora,comoviajeinopassado,tenhodeviajarporminhavida.Querodizer,eudeviaaelaaviagemeestavacontentepornãosermosturistas idiotas.Teríamosalguémparatrocar ideiaseumlocalaondenosdirigir. Ninguém nos alertou, por que iriam? Aceitamos o convite epegamosumaviãoparaoOriente.

“Ficamoshospedadosnumhotelenãonobairrodecasascomquintaisejardinsondeo adidomorava comseu clã. Paramim, já era suficiente elenosdaratenção.Estávamossempreindoaalgumlugaremsuacompanhia,muitas vezes também com seus irmãos e amigos. Fomos ao deserto, aoscamposdepetróleoe saímosparaomar comospescadores, visitamosauniversidade e o parlamento e apostamos e ganhamos na corrida decamelos.Nãoforamaventuras,masfériasdegenterica;ainfraestruturaseparece com a da Flórida, os restaurantes contam com cozinheirosfranceses, os piqueniques são feitos emmesas com toalhas, servidos empratos de porcelana e talheres de prata, e andávamos em carrões. Eraimpressionante.Maseumesentiaaliviadoporànoiteestarmosnanossasuíte.Ouporassistiraonascerdosoldanossavaranda.FossenomardoNorteounoMediterrâneo, jáhavíamosvistoosolsepôrnomardiversasvezes,masnuncanascer.”

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3

Elepousouamãosobremeubraço.— Você é muito paciente. Vamos tomar um vinho tinto? Eles tinham

Bordeaux,masopinotnoirdoRussianRiverValleyémelhor.Nãoesperouminharesposta.Chamouacomissáriaeaconvenceuanos

deixar a garrafa inteira. Ele parecia vigoroso, como se a lembrança e orelatoorejuvenescessem.

—Certamanhãnãopuderamnosbuscareresolvemospegarumtáxi.Noponto,doissenhoresquetomaramocafédamanhãaduasmesasdenós,ecom quem tínhamos trocado jornais, nos perguntaram se queríamoscarona até a cidade. Entramos no carro, minha namorada na frente, euatrás,saímosenumsemáforovermelhoomotoristamepediuparaqueeujogasserapidamenteumacartanumacaixadecorreio.Porqueparamim,vocêvaiseperguntar,porqueelenãopediuparaooutrohomemousaiuelemesmodocarro?Ooutrohomemmancava,eulogohaviapercebido,eomotoristaestavadoladoesquerdo,acaixaficavanoladodireito,euquasepoderiatê-laalcançadodocarroe jogadoacartaatravésda janela.Entãodesci,osemáforoficouverdeeocarroandou.Haviamuitotrânsitoepenseiqueomotoristanãoqueriaparar,entãoeledariaumavoltanoquarteirãoelogoestariadevolta.

Ele não continuou falando. Apagou a luzinha que, do alto, iluminavanossosassentos.Seráqueelequeriaescondersuador?Eunãofaleinada,maspegueisuamãoeaaperteiporuminstante.

—Sim,elenãovoltou.Eufiqueiparadoláedepoisdemeiahoraligueipara o adido, que ligou para o ministro, e o ministro chamou a políciaimediatamente,quefechouasruas,reforçouoscontrolesdosaeroportoseavisoua guarda costeira. Fui levadoà centraldepolícia ememostraramcentenasdefotos.Nãoreconhecinenhumdosdoishomens.Oembaixadoralemão e sua esposa me buscaram e me levaram para sua casa; não

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queriam me deixar sozinho naquela situação. Todos eram atenciosos,simpáticos,esforçados.

“Naprimeiranoite,nãodormi.Masonovodiarenovanossacoragem,emelevanteicheiodeesperança.Nosoutrosdias,tambémmelevanteicheiode esperança. Até que tive de aceitar que a situação era grave. Oembaixadormecontouoquesabiasobreotráficodemulhereseuropeiasno Oriente Próximo. Ao voltar à Alemanha, li tudo o que encontrei arespeito. Antigamente havia um ponto de transbordo, se quiser chamarassim,ondeasmulheressequestradaseramvendidaseondeerapossíveltentarrecuperaraprópriamulhernumleilão.Hojesefazem,secretamente,vídeosdasmulheres;osinteressadososveemnainternet,dãoseuslanceseencomendam pelo computador. Apenas então a mulher é sequestrada.Quando o marido ou namorado avisa a polícia, todas as pistas já foramapagadas.

“Você vai querer saber o que acontece com as mulheres. Estamosfalandodemulheresdealtíssimoníveledepreçosaltíssimos.Quandoelascolaboram,tudocorrebem.Casocontrário,elasmudamdemãosalgumasvezeseacabamnumbordelemMombaça.”

Tentei me colocar na situação dele. Como sentir a perda da mulheramada quando só podemos esperar que ela esteja se sentindo bem nosbraçosdeoutro?QuesóvoltaráquandonemmaisummarinheirobêbadoemMombaçaaquiser?Porquantotemposeficadeluto?Porquantotemposeespera?

4

—UmanomaistardeestourouaguerranoIraque.Eunãopensavaqueissotivesse alguma relação comigo.Mas, no Kuwait, as famílias ricas ficaramcommedoefugiramparaLosAngelesouCannesouGenebraouondequer

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quetivessemcasas.“Em Genebra ela escapou. Pulou da janela, escalou a cerca, parou um

carronaruaemeligouimediatamentepelocelulardomotorista.Tomeiovoo seguinte para Genebra. Como estava com medo de ser procurada eencontrada, ela não queria ficar sozinha, e o motorista, um estudanteuniversitário, levou-a à sala de leitura da biblioteca da universidade. Elaficousentadaláatéeuchegar.

“Você conhece a biblioteca da Universidade de Genebra? Umaconstruçãoimponentecomumasaladeleituracomoquesaídadeumlivroilustradodaviradaparao séculoXX.Elaestavanomeiodaprimeira fila,vestidademaneirachamativa,maquiada,perfumada.Quandochegueiàsuamesa, estava de cabeça baixa. Toquei seu braço e ela ergueu os olhos egritou.Sóentãomereconheceu.”

O piloto anunciou uma turbulência pelos alto-falantes e nos alertou amanter os cintos afivelados. As comissárias passavam pelo corredor,verificandoseasorientaçõesdopilotoestavamsendoseguidas,acordavamaquelesquetinhamadormecidoecujasmantasescondiamaáreadocintoerecolhiamcopos.

Meuvizinhodeassentoparoudefalareacompanhouamovimentação.— Eles estão falando sério. Nunca vi as comissárias acordando os

passageiros da primeira classe. — Ele me olhou. — Você tem medo deproblemas durante o voo? Ou acredita em Deus? Que a mão d’Ele estásempreláparasegurá-lo?EunãoacreditoemDeus.NãoacreditoemDeuse não sei se ainda acredito na justiça e na verdade. Antigamente, eupensavaquequemnãotemmuitotempodevidadizaverdade.Mastalvezaquelescomamenorexpectativadevidasejamosmaioresmentirosos.Seelesnãoseexpuseremagora,entãoquandoofarão?Averdade...Oqueéaverdade,paraaqualojuiznãodánenhumatestado?Eamentira,quepodeexpor alguém?O que é a verdade, quando ela fica apenas vagando pelascabeçasenãoé fixadademodoadequado?—Eleriunovamenteseuriso

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baixo,suave.—Medesculpe,estouumpoucoconfuso.Ficocommedocomproblemas durante o voo, e o que está acontecendo agora cheira aproblema.MasvouparardefalarcomoPilatosouRaskólnikov.Senãovocêvaiseperguntarporqueéobrigadoameouvir.

Então foi como se uma grande mão pegasse o avião e começasse abrincar comele.Elaobalançava,deixava cair, seguravadenovo,deixavacairdenovo.Meucorpoestavapresopelocintodesegurança,maspareciaquemeusórgãoshaviamsaídodolugar;coloqueiamãosobreabarrigaeossegurei.Dooutroladodocorredor,umamulhervomitou,àminhafrenteum homem chamou por socorro, atrás de mim bagagens caíam. Apenasquandoo avião tornou a voar suavemente veioomedo, que valiaparaoquetinhaacontecidoeparaoqueaindapoderiaacontecer.Ofimaindanãohavia chegado.O aviãodesceumais umavez e a gravidadedeumais umtranconocorpoenosórgãos.

5

—Foiassimquando ficamos juntosdenovo.Comtrancose turbulências.Eracomoumveneno.Àsvezes,ascoisasfluíamcomtranquilidade,masnãoconfiávamosumnooutro.Ficávamosnosespionando,atéumdosdoisnãoaguentarmais.Entãopassávamosanos tratar com frieza e rispidez, comgritosegrosserias.

Elejáestavafalandooutravez?Doquê?“Comtrancoseturbulências”?Comoassim?

—Eraessaasensação.Comoatempestadequebalançaonossoavião.Umaforçamaispoderosaquenós.Nosabraçamosnasaladeleituraeeuaabracei durante a noite inteira, tanto essa primeira como as noitesseguintes,efomosmorarjuntos,algoquenãotínhamosousadofazerantes,e pensamos que daria tudo certo. Mas ela não quis se deitar comigo.

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Inicialmenteacheiqueestavatraumatizada,comodepoisdeumestupro,eque precisava de tempo, cuidado e carinho, mas então passei a meperguntarseelaaindameamava.Seráqueumapartedoseucoraçãohaviaficadocomoadido?Seráquenofimdascontasotempocomelenãohaviasidotãoruim?

—Comoadido?—Sim,foielequemordenouosequestro.—Oadido?Elefoicondenado?—ParaconseguirpegaroaviãodeGenebraparaBerlim,elaprecisava

deumdocumentodeidentidadeprovisório,efomosaoembaixadoralemãoemBerna e relatamos tudo a ele.O embaixador conversou comapolíciasuíçaeeladissequedevíamos falar comapolíciaalemã.NaAlemanha,apolícia nos disse que ela só poderia se reportar à polícia suíça. NinguémqueriaumconflitopolíticocomoKuwait.Poderíamosterchamadojornaise revistas; depois de uma reportagemnoBild e uma entrevista naStern,talvezapolíciaeoMinistériodasRelaçõesExteriorestivessemfeitoalgo.Masnãoqueríamosficaràmercêdamídia.

—Vocêsuspeitavadasuanamorada,emboraela...— Embora ela tivesse escapado? — Ele assentiu algumas vezes. —

Entendo sua pergunta. Eumesmome perguntei isso diversas vezes.Massofrer um ataque, um sequestro, passar por exploração, pode ter seuencanto sexual, tanto para mulheres quanto para homens. Eles haviamflertadoumcomooutro.Elanãoqueriapassaravidanoharémdoadido.Então, teve de fugir. Mas isso não quer dizer que ela não tivesse tido aexperiênciasexualdesuavida.O fatodeelatersenegadoamimedeeususpeitartambémnãoeratudo.Elatambémsuspeitavademim.Euahaviaposto em perigo com a viagem ao Kuwait, e depois do sequestro eu nãotinhafeitotudooqueestavaaomeualcance.

As luzes da cabine se acenderam e as comissárias foram cuidar dovômitodooutro ladodo corredor, dopassageiroque lamentava aminha

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frente e das bagagens caídas às minhas costas. Meu vizinho de assentovoltoua falar,maseuestavaescutandoo ruídodosmotores,quepareciaestranho,epareideprestaratençãonele.Atéqueoouvifalar:

—Maselaestavamorta.—Morta?— Eram apenas dois andares, e eu achava que ela havia quebrado

algumacoisa,aspernas,umbraço.Masestavamorta.Bateucomacabeça.—Como...—Euaempurrei,maselahaviamebatido.Euqueriaapenasafastá-la,

não queria receber mais tapas. Sei que não devia tê-la empurrado. Nãodevíamos ter brigado.Mas naquela época brigávamosmuito; na verdadenão fazíamos outra coisa. Também não foi a primeira vez que nosagredimos fisicamente. Mas foi a primeira vez na varanda e minhanamoradaeraalta,eabalaustrada,baixa.Aindaagarreiseusbraçosetenteisegurá-la, mas ela bateu nasminhasmãos.— Ele balançou a cabeça.—Achoqueelanãosabiaoriscoquecorrianemoqueestava fazendo.Masnãosei.Eseelapreferissemorreradeixarqueeuasalvasse?

6

Segureinovamentesuamãoeaapertei.Comoalguémpodevivercomumadúvidadessas?Depois,porém,nãoeraapenasoruídodosmotoresquemesoavaestranho.

—Você não disse que a história dela apareceu em todos os jornais ecanais de televisão? Afinal, a mídia não se interessa por quedas devarandas!

Elenãoseapressouemresponder.—Aindatinhaoassuntododinheiro.—Dinheiro?

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—Bem—ele faloudevagarepreocupado—,oadidohaviacontadoaela que a tinha comprado de mim. Ela não acreditou nisso, mas ficouremoendoaideia,eporissoàsvezesmeperguntavasobreoassuntoeàsvezesconversavacomaamigaarespeito.Apóssuamorte,aamigacontouàpolícia.

—Issoétudo?—Apolíciaachouodinheironaminhaconta.Quandoos trêsmilhões

entraram,tenteiimediatamentetransferi-losdevolta.Masodepósitotinhasido feito em dinheiro, em Cingapura, Délhi ou Dubai, e não podia serestornado.

—Alguémsimplesmentetransferiutrêsmilhõesparasuaconta?Elesuspirou.—Quandonos conhecemos, às vezes o adido fazia graça e se portava

comoobeduínoquevivedeacordocomseuscostumes.Ah,mulher loirabonita. Trocar mulher? Camelos, aceita? Eu entrava no jogo e nósnegociávamosebarganhávamos.Fixamosopreçodocameloemtrêsmileeupusopreçodemilcamelosnaminhanamorada.Eraumjogo.

Eunãoestavaacreditandonosmeusouvidos.—Um jogo?No qual você disseOK, sorrindo, e concordou? E quando

viajouparaoKuwaitnãoficoucommedodequeojogosetornassesério?—Medo?Não,eunão tivemedo.Euestavaumpouquinhocuriosoem

saber se ele continuaria jogando e garantiria os mil camelos ou iria meoferecercavalosdecorridaoucarrosesportivos.Meempolgava,nãodavamedo.—Elepousounovamenteamãonobraço.—Seiquecometiumerroterrível.Masvocê iriameentender, caso conhecesseoadido.EstudounaInglaterra, culto, divertido, conhecedor do mundo... Eu realmente penseiqueestávamosjogandouminofensivojogointercultural.

— Mas quando sua namorada sumiu... Ou, pelo menos, quando odinheirochegou,vocêsabiaquemestavacomela.Quandochegou?

—AovoltardoKuwaiteleestavanaminhaconta.Oqueeudeviafazer?

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Ir ao Kuwait e pedir ao adido para pegar o dinheiro de volta e devolverminhanamorada?Eseelerissedaminhacara,irmequeixaraoemir?PediraonossoministrodasRelaçõesExterioresparafalarcomoemir?Contrataralguns sujeitos da máfia russa e revirar com eles o lugar onde o adidomorava e onde supostamente a mantinha presa? Sei que um homem deverdade,queamasuamulher, iriabuscá-ladequalquerjeito.Separaissoele tem de se sacrificar, então vai se sacrificar.Melhormorrer de formadignaquevivernacovardia.Tambémseiquecomostrêsmilhõeseuteriadinheirosuficienteparaarranjarrussos,armas,helicópteroetodoorestoquefossenecessário.Masissoécoisadecinema.Nãoéomeumundo.Eunão consigo. Os sujeitos da máfia russa iriam simplesmente arrancar odinheirodemim,asarmasestariamenferrujadaseohelicópteroviriacomumafalhamecânica.

7

Eutinhameesquecidodosmotores.Porémopilototambémouviraosomestranho e talvez tenha visto algumas luzinhas se acenderem e algunsponteirossemexerem.Dacabine,anunciouqueemumahorapousaríamosem Reykjavik. Não havia motivos para se preocupar; conseguiríamoschegaraFrankfurtcomopossívelprobleminha,masporsegurançaopilotoiriapedirquefizessemumarevisãonaaeronaveemReykjavik.

O anúncio inquietou os passageiros. Nenhummotivo de preocupação?Masentãoporqueeleiriapousar,vistoquepodíamosseguirviagem?Serámesmoquepodíamosseguirviagem?Asituaçãonãoeraperigosa?Outroscomeçaram a trocar entre si o que sabiam sobre Reykjavik e a Islândia,sobreosverõesclaroseos invernosescuros,osgêisereseasovelhas,ospôneis eomusgo.Encostos foramcolocadosnaposiçãovertical,mesas emonitoresforamfechados,comissáriasforamchamadas.Ospassageirosse

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tornaramcorajosos,barulhentos,ocupados.Atéquealguémdescobriuquesaíafumaçadeumadasturbinas.Anotíciacorreudebocaembocaequematransmitiasecalavadepois.Empoucotempo,oaviãoestavaemsilêncio.

Meuvizinhodeassentosussurrou:—Talvezumraioda tempestade tenhaacertadoa turbina.Ouvidizer

queissoacontececomfrequência.—Sim—sussurreitambém.Acheiquehaviaescutadoaturbinaestalar,

comosequisesse,emvão,trituraralgoquetivesseentradonela.Comoseestivessemachucada e exausta, sem forças. Eu sentiamedo, e aomesmotempo o ruído damáquina ferida mexeu comigo como se ela fosse umapessoa.—Oquevocêfezcomodinheiro?

—Euseiquenãodeviatertocadonele,quedeviatê-lodeixadolá.Maslevo jeito com dinheiro. Sempre investi um pouco e sempre fui maisrentável que qualquer fundo, qualquer índice. — Ele ergueu os braços,desculpando-se. — Agora eu tinha dinheiro de verdade. Agora podiafinalmenteirfundo.Emtrêsanos,fizcomqueostrêsmilhõessetornassemcinco. Quem ganharia com o dinheiro parado? Ninguém. Você conhece aparábola dasmoedas emprestadas?Do lorde que dá a cada umdos seustrêsservosdezmoedasedepoisdoseuretornogratificaosdoisservosquetrabalharamcomodinheiroecastigaaquelequeodeixouparado?Quemtem,recebe,equemnãotem,perdeoquetem.Éassim.

“Masdiantedotribunalpercebiqueninguémcompreendia isso.—Elebalançou a cabeça. — Os juízes falavam comigo como se eu tivesserealmentevendidoaminhanamorada.Senãofosse isso,porqueeuteriapegadoodinheiroetrabalhadocomele?Comoseeuativesseassassinado.Será que ela havia descoberto tudo e estava me ameaçando ouchantageando? O promotor ficou devendo somente as provas. Até que avizinhaapareceu.”

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Eunãoviaaturbinaeafumaçapreta,masnãoparavadeouvirosestalos.Até que eles cessaram.Aomesmo tempo, um suspiro perpassou o avião,umsuspirodospassageirosqueconseguiamveraturbinaqueatéjáhaviaexpelidofogo.

Meuvizinhodeassentotremiaeseseguravanosbraçosdapoltrona.— Não consigo me controlar, tenho medo de avião, embora já tenha

perdido a conta das vezes que dei a volta aomundo. Não fomos criadosparavoarpeloscéusecairdedezmilmetrosdealturasobreaterraouomar. Ao mesmo tempo, minha cabeça está totalmente OK com a mortenuma queda. Sabemos que a hora chegou, tomamos mais uma taça dechampanhe,nosdespedimosdavidaebum,acabou.—Eletinhavoltadoasussurrar,mas ergueu a voz no “bum” e bateu uma palma. A comissáriaveioeelepediuchampanhe.—Vocêtambémquer?

Balanceiacabeça.Apóstersidoservidopelacomissária,elevoltouafalar.—Sabe,eusómesintoconfortávelnumacasanova,numbairronovo,

quandoconheçoaspessoasdolocal.Quandoseidavidadajornaleiraenãoprecisodizeraelapelasmanhãsoquequero.Quandoconheçotãobemofarmacêuticoque elemedáo remédio controlado sem receita.Quandoorestauranteitalianoumpoucoadiantepreparaparamimumpratoquenãoestánocardápio.

“A vizinha que consegue olhar da varanda dela para a minha é umasenhora idosaquetemdificuldadeparaandaremaisaindaparacarregarpeso. Eu já a ajudeimuitas vezes coma escada e comas compras. Gostodela e ela também gosta demim.Durante o processo, elame ligou emechamouemcasaparamedizerquetalvezestivesseenganada,masdiantedo tribunal só ia poder dizer o que viu, e que para ela pareceu que nãoapenas empurrei aminhanamorada como tambémapressionei contra a

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balaustrada. Ela estava muito constrangida e se desculpou comigo e measseguroudequeachavaquetudoseresolveria.Haviasidoeumesmoquebriguei com a minha namorada naquela noite? Ela não conseguia mereconhecer.

“Que chancemeu advogado tinha diante do júri contra uma adorávelvelhinha,ex-professora,dementealertaeclara,queaindaporcimagostavademim?Alémdisso,surgiuaindaumantigoamigodaminhanamorada,umfamoso jornalista, que fez com que o caso ganhasse as manchetes e euaparecessecomoomaudahistória.Vocêconheceessesamigosantigosqueasmulheresàsvezestêm?Daescolaouatédojardimdeinfância?Quenãoaconquistam,masqueacompanhamtodaasuavidacompequenosatosdedevoção e submissão? De modo que a mulher se pergunta por que oparceironãoétãodevotoesubmisso?Elenãogostavademim,mesmonãosabendonadasobreocaso.Ofatodeminhanamoradaeeuestarmosjuntoseraosuficiente.

“Eu não queria ir para a cadeia. Como tinha sido acusado apenas dehomicídio culposo, não estava com a prisão preventiva decretada emeudinheironãohaviasidoconfiscado.Transferi tudoparaas ilhasVirgensemedespedidaAlemanhananoiteanterioraotestemunhodavelhinha.”

Eunãoconseguiasossegar.—Vocêamavasuanamorada?Nasuahistória,elanemnometem.— Ava. Amãe dela idolatrava Ava Gardner. Sim, eu a amava. Ela era

linda,nuncatínhamosproblemas,querodizer,atéosproblemasrealmentecomplicadoscomeçaremaaparecer. Ircomelaaumarecepçãoouaumapré-estreia ou apenas ao restaurante, andar com ela no conversível pelacidadeouatravessaro campo,passear comelapelomercado, tirar fériascomela numhotel na praia... Éramos um casal que chamava a atenção egostávamos disso. Soa um pouco superficial? Soa não à paixão, mas àvaidade? Não era superficial. Nós dois gostávamos da boa vida. Ambosgostávamosdequandoomundoerabeloepodíamosentrar,belos,nobelo

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mundo.Nãoapenasgostávamos,amávamoscompaixão.Nossapaixãoeradiferente, sem lançar ao céu gritos de alegria, sem afligir-se até amorte,semtempestadeeímpeto.Maseraumapaixãoautêntica,profunda.

—Porquevocênãopartiuquandoascoisasdeixaramdeserbelas?PorquevocênãoliberouAva?

—Eu tambémnãoentendo.Quandoela começouame interrogar,meacusaremejulgar,eusimplesmentenãoconseguiadeixarbarato.Tinhademedefender,tambémtinhadeatacá-la.Euqueriaqueelamerespeitasse.

—Vocêqueriaqueelapedissedesculpas?—Elaqueriaqueeupedissedesculpas.Esperei, mas ele não respondeu à minha pergunta. Antes de eu

conseguirmedecidirserepetiaaperguntaouseadeixavaparalá,oaviãoaterrissoucomsuavidadenapistadeReykjavik.

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A comissária nos deu as boas-vindas emReykjavik e informou que eramduasdamanhã.Aspistasdepousoestavamlivres,osprédios,escuros,eoaviãologochegouaoseufinger.Fomosorientadosalevarnossasbagagensdemão;talvezprosseguíssemosemoutraaeronave.

Mesmo nessa situação a etiqueta foi mantida; nós, passageiros daprimeira classe, descemos, enquanto os das outras duas classesaguardavam.Nasaladeespera,quefoiabertaespecialmenteparanós,ospassageiros da primeira classe se juntaram aos da executiva. No bar,reuniram-se novamente os passageiros da primeira classe que em NovaYork também estiveram em torno do bar. Não havia champanhe e quemnão estava contando a história de um acidente ou quase acidente aéreoouvia desinteressado as histórias dos outros. Por que se interessar porperigosdosquaisosoutroshaviamescapado?

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Maisumavezmeuvizinhodeassentoestavamudo.Euolhavaparaeleàsvezes,quesorriadevolta,eseusorrisoerasilenciosoesuavecomosuarisada. Fora isso, eu prestava atenção nas histórias. Até que um copo seestilhaçounochão.Onarradorinterrompeuseurelato,osouvintesviraramacabeça.Eletinhadeixadoocopocair.Masnãosecurvouemdireçãoaoscacosnemlimpouasmanchasdacalça.Ficouimóvel.

Fuiatéeleecoloqueiasmãosemsuascostas.—Possoajudá-lo?Eletevedificuldadeemmepercebereresponderalto.—Ele...Eleé...Elepressentiuosolharesdosoutroseparoudefalar.Umgarçomveio,

varreuoscacoselimpouovinho.Euquerialevarmeuvizinhodeassentoaté a janela, onde estava mais calmo. Porém ele se negou com uma vozestranhamentequeixosa.

—Não,paraajanelanão.—Olheiaoredor.Tambémestavacalmoondeficavamosjornais.

—Devochamarummédico?—Ummédico... Não, ummédico não vai conseguirme ajudar.— Ele

respirou fundo algumas vezes. Depois disso, conseguiu se controlar denovo.—Lá,juntoàjanela,ohomemdeternoclaro...Eusabiaqueeleestavameseguindo,maspenseiqueeuestavaumoudoisvoosàsua frente.Eleatirouemmimhádoisanos.Nãoseisequeriameacertaretivesorteousefoiapenasparamemandarumrecado.

—Eleatirouemvocê?Vocêprestouqueixa?—Oshospitaischamamapolíciaquandorecebemferidosabala.Euo

descrevi e olhei muitas fotografias, mas foi em vão. Na Cidade do Cabo,onde isso aconteceu, os tiros são comuns e apolícia achouque talvez eutivesse simplesmente ido aonde não devia. Mas eu sabia. O que teriaadiantadocontaràpolícia?

Espereiparaverseelemecontariaahistória.

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—QuandodeixeiaAlemanha,voeiparaláeparacáatéfinalmenteficarna Cidade do Cabo. Se você tem dinheiro e sabe se movimentar peloslugares certos, é possível ter sossego naÁfrica do Sul. Aluguei a casa docaseirodeumvinhedonaperiferiadaCidadedoCabo,omardeumlado,parreirais do outro, um pequeno paraíso. Mas depois de alguns mesesrecebi uma carta. Ele não precisava ter se colocado como remetente noversodoenvelope,nãoeranecessário.Ahistóriaquemeenvioudiziatudo.Amulher de um xeique foge com outro homem. Ela era sua preferida, ameninadosolhos,jovemebonita.Oxeiqueestátriste,mas,emborasejaumhomem orgulhoso, tem um coração grande e entende que a mulher queamaestáseguindooprópriocoração.Anosmaistarde,onovomaridomataamulhernumacessoderaiva.Oxeique,que tolerousuapropriedade terseguidoospróprioscaminhos,nãotoleraofatodeoutrodestruí-la.Então,encomendaamortedonovomarido.

“Nodiaseguinte,aosairdoterrenoechegaràruadecarro,ohomemdeterno claro estava do outro lado. Ele sempre usa um terno claro e essesternos são sempre um pouco grandes demais. Sua aparência podia serlamentável e ridícula.Mas suapostura, seusmovimentos e seu caminharemanavam uma ameaça, e ele não parecia lamentável e ridículo, masperigoso.Peloretrovisor,enxerguei-oatravessandoaruaeentrandonumcarro.Poucodepoisviqueseucarroseguiaomeu.”

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Eledeualgunspassosatéumacadeira,virou-adetalmodoqueohomemdeternoclaronãoconseguissevê-lo,sentou-se,colocouosbraçossobreosjoelhos,cruzouasmãosedeixouacabeçatombar.Busqueioutracadeiraemesenteidiantedele.

—EntãoeleatirouemvocênaCidadedoCabo?

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—Nas semanas seguintes, eu o revi o tempo todo. Ele se apoiava nopostediantedorestauranteondeeucomiaeestavanafrentedalivrariadeonde eu estava saindo. Quando entrei numa livraria e ele não estava lá,encontrei-osentadonoônibusdiantedemimaoergueroolhardojornal.Eutinhaomaràminhaportaetodasasmanhãsenoitesdavaumpasseiopelapraia.Quando,certavezànoite,euovicaminhandoemminhadireçãonapraia,passeiaficaremcasa.Masàsvezeseraprecisosair,eeleatirouemmim enquanto eu fazia compras na Cidade do Cabo. À luz do dia, nomeiodarua.

“Depois de alguns dias no hospital, recomecei a voar, mudando dedireçãootempotodoefinalmenteacheiquetinhaconseguidoescapar.Eleprecisoudeumanointeiroparamereencontrar.”

Olhei para o homem de terno claro. Ele direcionou seu olhar a mim,comosebrincassecomigodaquelabrincadeiradecriançaemqueéprecisosustentaroolhardooutrosempiscar.Apósumtempo,desvieiosolhos.

Meuvizinhodeassentosorriu.—Que ano!Eu amoomar e encontrei novamenteuma casanapraia,

dessa vez na Califórnia. Nos Estados Unidos, com dinheiro e sabendo semovimentar,tambémépossívelpassardespercebidoeincólume.Primeiro,acheiirritantenãopoderusarmeuscartõesdecrédito;elesdeixamrastros.Mas,quandonãosetempressa,tambémdáparaviversemeles.Olocadortambémpreferiadinheirovivonolugardodeplástico;eleprovavelmentenãodeclaravaaquantianoimpostoderenda.

“Você conhece a costa ao norte de São Francisco? Em certos pontosrochosa e áspera, então novamente arenosa e suave, o Pacífico menosamistosoemaisimplacávelquequalqueroutromar,asmontanhasquesedebruçamsobreomarenvoltasnaneblinadasmanhãse,depois,aosoldomeio-dia e à noite, brilhando douradas com sua grama seca marrom. Écomoseomundoserecriasseemsuabelezaacadadia.Minhacasaficavanaencosta,tãoabaixodaruaqueeunãoconseguiaescutarotrânsito,etão

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próxima domar que o som das ondasme acompanhava demanhã até anoite,nãoaltoeagressivo,masbaixinhoeaconchegante.Ah,eopôrdosol!Eugostavaprincipalmentedaqueles emvermelhoe cor-de-rosa,pinturasde um colorido superlativo. Mas também fico emocionado com os maiscontidos, nos quais o sol mergulha, opaco e em meio à névoa, no mar,sumindosemdeixarrastros.”

Eleriubaixinho,entreirônicoeconstrangido.— Comecei a me entusiasmar? Sim, com certeza. Eu poderia me

entusiasmarmuitomais:comoarvigoroso,salgado,ecomastempestadeseosarco-íris sobreomarecomovinho.EcomDebbie,queera jovemeloiraequenãoandavapelavida,masdançava.ElaeraofantasmadeAva,mas, enquanto os fantasmas sobre os quais lemos querem o mal dosviventes,Debbiequeriaomeubem.Elamoravaameiahoradedistância,tinhaumacasanamontanha,umcavaloeumcachorroefaziailustraçõesparalivrosinfantis.Elaeraboa.Possuíaumapercepçãodomomento,assimcomoascrianças.Elaviviao instante,e semelaeunão teriaaproveitadomeuúltimoanoemliberdadedamaneiracomoaproveitei.

—Seuúltimoanoemliberdade?Eleapontoucomacabeçaparaohomemdeternoclaro.—Depoisdeumano,eleestavanovamentediantedaentradadomeu

terreno.Eupoderiatê-loassassinado...Ah,sim,eutinhaarranjadoarmaseaprendidoaatirar;mirandorápido,conseguiaacertaralvosdistantes.Masentãochegariaumoutro.PenseiqueoadidotalvezsesatisfizessecasoeufossejulgadonaAlemanhaeaceitasseoveredicto,semcontestá-lo.Talvezdepoisviesseabonança.

—Vocêquerseapresentar?— Estou indo para a Alemanha para isso. Se possível, não quero ser

presologonocontroledepassaportesnoaeroporto.Gostariaprimeirodeverminhamãeeconversarcommeuadvogado.Émelhorserlevadoaojuizna companhia do advogado para se apresentar do que ser preso pela

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políciae indiciado.Aindanãosei como...—Elesedirigiuamimcomseusorrisosuaveeemvozbaixa.—Vocêquermeemprestarseupassaporte?Somosparecidoso suficiente.Vocêdizque sua carteira foi roubadaevaipassar por algumas chateações,mas nada terrível. O terrível de se ter acarteiraroubadaérefazertodososdocumentos,porémvocênãoprecisasepreocupar. Depois de alguns dias você vai encontrar sua carteira na suacaixadecorreio.

Apenasolheiparaele.—Aideiaveiodemaneirasúbitademais?Sintomuito.Equetalnósdois

tirarmos um cochilo?— Ele olhou ao redor.— Tem uma poltrona livrepertoda janelaeumapertodachapelaria.Vocêsabequevoudeixaradajanelaparavocêeficarcomaoutra,certo?—Eleselevantou.—Boanoite.Obrigadopormeouvir.—Elepegousuamalajuntoaobar,tirouocasacoeochapéudachapelaria,sentou-se,colocouaspernassobreamala,cobriu-secomocasacoepuxouochapéuparacimadorosto.

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Aproximei-me da janela. Do lado de fora, o dia estava claro. O sol tinhanascido, vermelho, e agora estava totalmente amarelo diante do céubranco.TenhoumvelhosonhodeviajarparaSãoPetersburgonoverãoeconheceranoitebranca.Aquipasseiminhanoitebranca.Mas,emvezdeolhar para a água, pontes, pessoas flanando e casais enamorados, eu viaesteirasrolantesvazias,fingersescuroseconstruçõesdeconcreto.Nenhumavião,nenhumcarro,nenhumapessoaemtrânsito.

Asaladeesperatinhaficadosilenciosa.Ninguémviatelevisão,ninguémestavajuntoaobarbebendo,ninguémconversava.Algunshaviamabertoocomputador,outrosumlivro.Muitostentavamdormir,algunsseesticaramno chão. Fui até o balcão de recepção e perguntei se havia informações

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sobre o prosseguimento do voo. A jovem escutara que estavamdisponibilizandoumaviãoemFrankfurt.Elenão chegaria antesdasoito;comcertezaaindademorariaquatrohorasatéseguirmosviagem.

Voltei,afasteiapoltronavaziadaluzdajanela,trouxe-aatéasombradaparedeemesentei.Aquiohomemdeternoclaronãoconseguiriamever.Antesdisso,todasasvezesqueeuolhavaparaele,seusolhospousavamemmim.

Talvez esteja na hora de eume apresentar.Meu nome é Jakob Saltin,estudei física, especializei-me em gestão do tráfego e sou diretor doInstituto de Ciência do Fluxo do Tráfego na Universidade de Darmstadt.Quantos trens necessitam de quantas plataformas? Quantos carrosprecisamdequantaspistas?Oquegeraocongestionamentoeoquefazerparaevitá-lo?Ondeéprecisohaversemáforoseondeelesnãodevemserposicionados?Estãoreguladosdamelhormaneirapossível?Éumaciênciafascinante.Maselaésóbriacomotodasasciênciaseassimcomoeu.

Não leio mais a grande literatura— quando encontraria tempo paraisso?Masháanosliumahistórianaqualumviajanterelataaoutroviajantequehaviamatadoaprópriaesposa.Ela tinhaumamante—seráqueeletambémomatou?De qualquermaneira, ele havia agidopor desespero epaixão,amúsicaeoálcooltinhamsubidoàsuacabeça.Nãotenhocertezado álcool,mas damúsica. Seme lembro bem, o viajante apenas ouviu ooutro.Ooutronãolhepediunada.

Meuvizinhodeassentotestousuahistóriacomigo.Embreveeleteriadecontá-la à polícia, ao promotor e ao juiz e queria saber seu efeito. Comoaparecianela.Oqueeraprecisoressaltareoqueeramelhorocultar.Seráque ele escolheu justamente a mim como ouvinte por termos algumasemelhançanoportefísico,norostoenaidade?Seráqueeleestavacomaintençãodepedirmeupassaportedesdeo começo?Emecomoverde talmodocomsuahistóriaqueeunãoconseguiriarecusaropedido?

Mas não. O voo estava lotado; ele não pôde escolher o assento nem a

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mimcomoouvinte.Porqueeuestavatãodesconfiado?Eletinhaditoqueamáfiarussanãofaziapartedoseumundo—eomeunãoincluirecepçõesdiplomáticasemBerlim,piqueniquesnodesertodoKuwait,casascarasnolitoraldaÁfricaedosEstadosUnidoseespeculaçãocommulheres,camelose milhões. Ele não sabia quantas vezes já dera a volta ao mundo— eununca dei e não teria sentado na primeira classe caso a executiva nãoestivesse lotada e eu não ganhasse um upgrade. Não conheço o mundoonde se desenrolam as histórias domeu vizinho de assento. Será que oconheço?Seráqueeleassassinouanamorada?

Paranós, cientistasdo fluxodo tráfego,acidentessãoapenasmaisumparâmetro. Não sou cínico mas também não sou sentimental. Sei quetambémexistemacidentesna espéciehumana.Hápessoasque são feitasunicamentedeavidezpelodinheirorápidoepelavidafácil.Reconheçoessetipodegenteemalgunsalunosecolegas,naeconomiaenapolítica.Não,meu vizinho de assento não era assim. Ele não estava em busca de umavidafácil,masdabelezanavida.Nãoeraávidopordinheiro,masbrincavacomele.

Ouseráquenãohaviadiferençanisso?Odifícilnavidaésaberquandotemosdenosateranossosprincípiosequandopodemosabrirmãodeles.Seidissoquandosetratademeumétier.Masedorestante?

Emseguida,adormeci.Nãodormiprofundamente;euescutavaquandoumamalatombava,quandoumcelulartocavaaltoequandoalguémerguiaa voz. Às sete e meia, fomos informados pelo alto-falante que um aviãopousariadentrodeumahoraenos levariaaFrankfurt.Equeumcafédamanhãhaviasidoservidonamesadobufê.

Meuvizinhodeassentoveioatémim.—Vamos?Fomosatéobufê,servimo-nosdecaféechá,croissantseiogurteenos

sentamosaumamesa.—Vocêconseguiudormir?

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Conversamosdeformapolidasobreodormiremviagenseaqualidadedaspoltronasnassalasdeespera.

Ao sermos convidados a embarcar no avião, seguimos juntos. Haviapessoas nos corredores, as lojas tinham aberto e os painéis e os alto-falantesanunciavamchegadasepartidas.Oaeroportohaviadespertado.

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NovoodeReykjavikatéFrankfurttambémnossentamosladoalado.Nãoconversamosmuito.Elemeperguntouporesposae filhos.Soudepoucaspalavrasquandooassuntoéminhamulher,quemorreu,eminhafilha,quemedeixou.Queminhamulheraindaestariavivaeminhafilhaaindaestariacomigo se eu tivesse sidomelhorpara asduas—comocontar isso?Mastalveznãofosseverdadeeeuestivessemeculpandosemnecessidade.

Espereiparaverseelemepediriaopassaportemaisumavez.Nãogostode ser imiscuído nos problemas pessoais de estranhos. Resolver osproblemasdotráfegojámeésuficiente.Elesexigemtodaminhadedicaçãoe valem essa dedicação; se fossem resolvidos, o mundo seria um lugarmelhor. Sinto orgulho de ter desenvolvido um projeto de tráfego para oMéxicoquedesafogouoscongestionamentosantesdiáriosepermitiuqueolugar, que estava sufocando, voltasse a respirar. Ou que poderia teralcançado esses resultados, caso os políticos o tivessem implantadocorretamente.

Mas meu vizinho de assento já não era um estranho. Eu havia mesentado ao seu lado no escuro, esvaziado com ele uma garrafa de pinotnoir, escutado sua história, visto como ele ficava animado, emocionado etranstornado, tinha apertado sua mão e colocado a minha sobre suascostas.Euestavadecididoalhedarmeupassaporte.

Porémelenãopediunovamenteenãooforcei.Estávamossentadosno

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andar superior, última fileira, e quando o avião chegou à sua posição deparadajuntoaofinger,emFrankfurt,fomososprimeirosachegaraoandarinferioreosprimeirosjuntoàporta.Quandoosinaldeabri-lasfoidado,eleme abraçou. Na verdade, não apreciomuito a cultura contemporânea debeijinhoseabraços.Masretribuíseuabraço;doishomensseencontraram,doisestranhosnanoite,conversaram,nãoderamumaooutrotudodequedispunham,masseaproximaram.Talvezeu tenharetribuídooabraçodemaneiraespecialmentecarinhosaporquehaviabebidochampanheeestavaumpoucoalto.

Entãoaportaseabriuemeuvizinhodeassentonãoarrastousuamala,maslevantou-aesaiucorrendo.Nãooencontreimaisnasdependênciasdoaeroporto.Tambémnãoovinocontroledepassaportes.Elehaviasumido.

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Commeupassaporte.Quandofuipegarminhacarteira,nahorademostraro documento, ela não estavamais lá; seu lugar cativo é no bolso internoesquerdo deminha jaqueta e, quando ela não está lá, não está em lugarnenhum.Seiondeficamminhascoisas.

Duranteovoo,tantominhajaquetaquantoadeleficaramaoscuidadosdacomissária;emalgummomento,meuvizinhodeassentodeveterpedidoa sua,dandomeunúmerodeassento.Recebeuminha jaquetae retirouacarteira.Elenãoqueriaarriscarqueeurecusasseseupedido.

A polícia foi simpática. Eu falei que tinha mostrado o passaporte emNovaYorkequedesdeentãonãootinhamaisusado.Quenãofaziaideiadeondepudeterperdidoacarteiraoudeondeelapôdetersidoroubada.Umpolicialme acompanhou de volta ao avião, do qual os passageiros aindadesembarcavam, e procurei em vão minha carteira no assento, noscompartimentos de bagageme no roupeiro dos comissários. Em seguida,

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tivedeiraumpostopolicial.Felizmente,haviaumafotominhanapáginadauniversidadenainternetetinhagentenoescritóriododiretordaárea;confirmaramqueeufalavaaverdade.

Tomeiumtáxi.ApenasquandochegamosaDarmstadt,masaindasemchegaràminhacasa,lembreiquesótinhaodinheiroqueestavanobolso,poucoparaumacorridatãolonga.Eudisseissoaomotoristaetambémquetinhadinheirosuficienteemcasa.Maselenãoconfiouemmim,exigiuoqueeutinhae,sobreclamaçõesepalavrões,expulsou-medocarro.

Estavamuitocalor,masnãoabafado.Apósanoiteeamanhãnosaviõese nas salas de espera, no posto policial e no táxi, achei o ar revigorante,emborafosseapenasoarurbanodeDarmstadt,quecheiraagasolinanossemáforosvermelhoseaóleoquentediantedaslanchonetesturcas.Eumesentia melhor a cada passo; estava extasiado pela sensação de terconseguidoalgo.Oquê?Eunãosaberiadizer.Porémnãotinhaimportância.

Alémdisso,ninguémestava interessadonaquiloqueeunão conseguiadizer.Teriasidodiferenteseminhaesposaestivessemeesperandoemcasaouseeusoubessequeminha filhame ligariaànoiteemedariaasboas-vindaseperguntariasobreminhasimpressõesdaviagem.

Chegueiàminhacasanocomeçodatarde.Minhapequenacasatinhaumjardinzinho.Abriaespreguiçadeiraemedeitei.Levantei-memaisumaveze busquei uma garrafa de vinho e uma taça. Bebi, peguei no sono edespertei — e a sensação boa de ter conseguido fazer alguma coisapersistia. Imagineimeuvizinhodeassentopassandocommeupassaportepelo controle, tocando a campainha na casa da mãe, abraçando-a etomandochácomela.Efalandocomseuadvogadoesedirigindoaojuiz.

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Namanhãseguinteminhavidacontinuou.Asúltimassemanasdosemestre

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são especialmente cheias; alémde seminários, aulas e reuniões, há aindaprovas, além daquilo que eu tinha deixado de fazer por causa daconferênciaemNovaYork.Euestavasemtempodepensaremmeuvizinhode assento e em o que tinha me contado. Sim, ele era um sujeitointeressante, assim como o que tinhame contado.No geral, porém, tudonãohavia passadodeumanoite, umanoite bemmais curta pelo fusodeseishoras,prolongadaumpouconaparadaemReykjavik,masnotodoumanoitecurta.

Depoisdeumasemana,minhacarteirachegoupelocorreio.Não fiqueiespantado,tinhaconfiadonele.Masestavaaliviado;sentiumpoucoafaltadoscartõesdedébitoedecrédito.

Encontreiobilhetequemeuvizinhodeassentohaviametidonobolsointernoesquerdodeminhajaquetaapenassemanasmaistarde.“Preferirianão ter pegado sua carteira. Você foi um companheiromaravilhoso.Masprecisodela e vocênãoprecisa doproblemade se decidir emaceitar ounãomeupedido.Seráquevocêvemmevisitarnaprisão?”

Nessesdias,osjornaisjáhaviamnoticiadoqueelehaviaseapresentadoequeoprocessologoseguiriaseucurso.Quandofalavamsobreoprocesso,sempre se referiam tambémà senhora idosaque supostamentevirameuvizinho de assento não apenas empurrar sua namorada como tambémforçá-la por sobre a balaustrada. Ela não havia aparecido diante do júri;sumiu poucos dias após ele ter se apresentado. Mas seu depoimento napolícia foi lido. Eu achava que depoimentos protocolados, irrefutáveis,eram mais perigosos para o acusado que um depoimento diante dotribunal, queo advogadodedefesapodedesmontar.Masna verdade é ocontrário. É mais difícil pôr em dúvida uma testemunha que acusar umpolicial de não ter perguntado isso ou aquilo e, consequentemente, terrecebidoeprotocoladoumdepoimentounilateralesemvalor.

Elahaviadesaparecidopoucosdiasdepoisdeomeuvizinhodeassentoter seapresentado.Eunãoconseguiaaceitar isso. Seráqueele...Não, era

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inimaginável.Hátantosmotivosparaumapessoaidosasumirderepente.Ela pode ter se aproximado demais de um barranco durante umacaminhada e caído, pode ter se perdido e tombado, exausta, pode tersofridouminfartonacasadeveraneioenãoserencontradapormeseseanos.Essascoisasvoltaemeiaacontecem.

Meu vizinho de assento recebeu oito anos — algumas pessoasconsideraramapenamuitosevera,eoutras,muitobranda.Otribunalnãoaceitouahipótesedehomicídioculposonemocondenouporassassinato,masporhomicídioprivilegiadonodesesperodeumconflitotorturante,delongaduração,comumaescaladasúbita.

Nãoqueromemeter.Minhaáreaéotráfego,nãoodireitopenal.Avaliocomoépossívelsalvardoinfartootrânsitodeumacidade.Adecisãosobreaculpaédosjuízes,queentradia,saidia,nãofazemoutracoisa.

Masoveredictonãomeconvenceu.Naverdade,háalgodeverdadeiroquandosedizquequemtiraumavidadáasua.Prendê-loportodaavidanão faz sentido.Qual a relaçãoda vida numa cela coma vida que já nãoexiste mais? Visto que existem erros de julgamento, a pena de morte éproibida—seidisso.Masoitoanos?Eraumapenaridícula.Quempenalizadessa maneira não confia no próprio julgamento. Quem penaliza dessamaneiradeveriadeclararainocênciadooutro.

Penseiemvisitá-lonaprisão.Masasvisitasemhospitaisjásãodifíceisparamim.Quandoodoentemedápena,nãoencontroaspalavrascertas,equando ele nãome dá pena é que não as encontromesmo.Melhoras—assimnuncaestáerrado.Oquesedesejaaumpreso?

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Depois de cinco anos ele apareceu diante de minha porta. Era verãonovamente,umfimdetardequente.Pegueisuabolsa,conduzi-oaojardim,

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abriduasespreguiçadeirasebusqueidoiscoposdelimonada.—Desdequandovocêestálivre?Eleseespreguiçou.— Como é bonito aqui! As árvores, as flores, o cheiro do gramado

podado,ocantodospássaros.Évocêmesmoquemcortaagrama?Foivocêquemplantouashortênsias?Ouvidizerqueacordashortênsiasvariadeacordocomosmineraisdosolo.Nãoésurpreendentequeahortênsiacor-de-rosacresçaaoladodahortênsiaazulaquinoseujardim?Desdequandoestoulivre?Desdeontem.Passeiosúltimosanosemliberdadecondicionalerecebiumaououtraimposição,masnadaquemeimpediriadevoarporalgunsdiasaosEstadosUnidosedarumaolhadanomeudinheiro.—Eleriu. — De alguma maneira você está no meu caminho para os EstadosUnidos.

Olhei para ele. No rosto, não consegui encontrar nenhumamarca dosanos anteriores. O cabelo estava grisalho,mas não o envelhecia, e sim otornavamaisatraente.Suaconversaeratãoagradávelquantoantes,elesemovimentava com a mesma tranquilidade e se sentava com o mesmorelaxamento.

—Foiruim?Elevoltouasorrir,eseusorrisoeracalmoesuavecomoantes.— Organizei a biblioteca, li o que sempre quis ter lido, e pratiquei

esportes.Memeticomgentecomaqualnãoqueriatermemetido.Masissonãoéimperiosoquandoestamosentrepessoas?

—Eoqueaconteceucomohomemdeternoclaro?— Ontem ele não estava em frente à prisão. Espero que basta seja

realmente basta.—Ele respirou fundo.—Você sabe que devolvo aquiloque pego emprestado. Você pode me ajudar? Não é fácil economizar naprisãoeeunãosabiaparaquemmaispedirdinheiroparaapassagemdeavião.Minhamãemorreupoucodepoisdoprocesso.

—A senhora idosa que o havia observado...—Simplesmente saiu. Eu

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nãosabiacomocontinuar.— Se assassinei a testemunha de acusação?— Ele me fitou com um

desdémamigável,leniente.—Porquevocêpensatãomalameurespeito?Porquevocêpensaprimeiroemassassinatoenãoqueeutenhacompradoa velhinha com dinheiro? Para ela sumir não na cova, mas nas ilhasBaleares ou nas Canárias? — Ele balançou a cabeça. — Você acha quepoderia ter impedido amorte? Que deveria ter impedido amorte? Vocêtem razão, surgem perguntas quando uma morte acontece. — Elecontinuavaaolharcomdesdém.—Masnãoseidizersehouveumamorte.Devodizeravocêquenadaaconteceu.Veja,assimnãovamosavançar.

Não,assimnãoavançamos.—Dequantodinheirovocêprecisa?—Cincomileuros.—Devoterfeitoumaexpressãodeespanto,poisele

explicou, sorrindo:— Acho que você compreende que sou velho demaisparaficarnumalatadesardinhasedormiremalbergues.

—Possofazerumchequeparavocê.—Levantei-me.—Vocêconseguemedarodinheirovivo?Nãoseiseconsigodescontar

umvalortãoaltosemavisoprévio.Erapoucoantesdasseiseosbancosestavamfechados.Mas,commeu

cartãodedébitoeosdecrédito,seriapossíveljuntaraquantia.—Entãovamos.— Não tem pressa. Passou pela minha cabeça que talvez eu também

possadesfrutardasuahospitalidadeporalguns...Ele estava torcendo para eu não o deixar terminar a frase. Para eu

convidá-locomohóspedeporalgunsdias.Eporquenão?Emboraeunãogostedebagunçaemcasa, tenhoumquartoeumbanheirodevisitaseadesordemquemeushóspedesfazeméajeitadadepoispelafaxineiraenãopercebonada.Ficocontenteemteralguémànoitecomquempossabebereconversar;émelhorqueficarsozinho.Masnãoreagiimediatamente.

—Passaríamosalgunsbonsdias juntos.Mas infelizmentenãovaidar.

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Tenho de partir, e quanto mais cedo, melhor. Você poderia me levar aoaeroporto?

Levei-odecarroaoaeroporto,saqueicincomileurosdediversoscaixaseletrônicos e dei para ele. Nós nos despedimos, dessa vez não com umabraço,mascomumapertodemão.Eudeveriaconvidá-loparamevisitarmaisumavez?Nãoconseguimedecidirrápidoobastante.

—Tudodebom!Elesorriu,assentiuefoiembora.

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Acompanhei-ocomoolharatéelesumirnomeiodaconfusãodegente.Emseguida,atravesseiaruaparasairdoaeroporto,fuiatéoestacionamentoepegueioelevadorparaoterraço.Nãoencontreimeucarroimediatamente,equandooencontreiestavasemaschaves.Océutinhasefechado,sopravaum vento frio. Parei de procurar e fiquei em pé, olhando os outrosestacionamentos,oshotéis,oaeroportoeosaviõesquelevantavamvooouaterrissavam.Logomeuvizinhodeassentoestarianumdosaviõesprestesadecolar.

Essefoiofimdonossoencontro.Quandonosdespedimospelaprimeiravez,nãomepreocupeiemsabersenosveríamosdenovo.Agorasabiaqueissonãoiriaacontecer.Seráquealgumdiaeuencontrariaumacartacomumchequenaminhacaixadecorreio?

Euestavacomfrio.Aquiloquepassavaasensaçãotãoagradávelemsuacompanhia, de repente se tornou ruim; aquilo que foi tão próximo ecaloroso, de repente estava estranho e distante.Durante sua narrativa, ofatodeeutertorcidocomele,termesentidoacuadocomele.Deeuterlhedadomeupassaporte,casoelenãootivessetiradodemim,emeuquartode visitas, caso ele não tivesse fugido. De eu terme alegrado por ele ter

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conseguido enganar a polícia ao entrar no país, visitar a mãe e seaconselharcomseuadvogado.Deeuteracreditado,contraqualquerbomsenso,queamortedasuanamoradahaviasidoumafatalidade,eosumiçodavelhinha,ummistério.

Oqueeutinhafeito?Porquemepermitiacreditarnele?Porquepermitique ele me usasse? Só por que ele tinha um sorriso calmo e suave, eraagradável no convívio e usava um terno de bom caimento, levementeamarrotado? O que havia de errado comigo? Onde tinha ficado minhasobriedade,quemetornaumobservadoratento,umpensadorclaroeumbomcientista,edaqualmeorgulho?Nogeral,tenhoumaboaintuiçãonoquedizrespeitoàspessoas.Confessoquetiveilusõesemrelaçãoàminhaesposa,nocomeço.Maslogopercebiqueportrásdorostobonitoedojeitosimpático não havia nada, nenhumpensamento, nenhuma força, nenhumcaráter.E,pormaisqueeuachasseminhafilhaumdoceepormaisqueaamasse, logo percebi, quando ela ficou maiorzinha, que ela só queriareceberequenãomostravadisposiçãonemresultados.

Não,eraincompreensíveleutermedeixadoenganarporessehomem.E eu ter demorado tanto para finalmente... Será que minha razão só

tinhavoltadoporqueumventofrioestavasoprando?Seráqueseocalortivessesemantidoeuainda...?

Observei o avião decolar, um jumbo da Lufthansa. A caminho dosEstadosUnidos?Talvezeletivesseconseguidorapidamenteumapassagemeseencontrassedentrodesseavião.Seráqueestavamagoadodenãoestarvoandodeprimeiraclasse,masdeexecutiva?

Porummomento,osolqueestavasepondoatravessouasnuvensefezoavião reluzir. Como se estivesse embrasa, como sequisesse se consumirnumabolade fogoeseestilhaçar.NãorestarianadadeWernerMenzelenadademinhateimosia.

O sol desapareceu por trás das nuvens e o avião subiumais, fez umacurvaeentrouemsua rota.Encontrei a chave, entreino carroe fuipara

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casa.

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Oúltimoverão

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E

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leselembroudoseuprimeirosemestrecomoprofessoremNovaYork.Comoestavacontente:quandooconvitechegou,quandoconseguiuo

vistonopassaporte,quandosubiunoaviãoemFrankfurtedesceunocalordoJFKcomabagagem,quandopegouumtáxiparaacidade.Tambémtinhagostadodovoo,emboraasfileirasfossemapertadas,eosbancos,estreitos;quandoestavamvoandosobreoAtlântico,enxergouaolongeoutroavião,eficoucomaimpressãodeestarsentadonodequedeumnavioqueenxerganomarabertooutronavio.

Já estivera antes emNova York, como turista, visitando amigos, comoconvidadodeconferências.Agoravivianoritmodacidade.Elefaziapartedela. Dispunha de um apartamento próprio, como todos; o imóvel ficavapróximo ao centro, não muito distante do parque e do rio. Como todos,tomavaometrôpelasmanhãs,apresentavaobilhete,atravessavaacatracae vencia as escadas até a plataforma, espremia-se num vagão, nãoconseguiasemexernemvirarapáginadojornaledepoisdevinteminutosse espremia para sair do vagão. À noite, encontrava um assento livre nometrô,terminavadelerojornalecompravaoqueprecisassenavizinhançaondemorava.Elepodiairapéaocinemaeàópera.

Ofatodenãopertencerrealmenteàuniversidadenãooincomodava.Oscolegasnãodiscutiamcomeleoquetinhamparadiscutirentresi,eele—

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que ficaria apenas um semestre — não era levado tão a sério pelosestudantes quanto os outros professores com os quais teriam de seencontrar ano após ano. Mas os colegas eram simpáticos, e os alunos,atentos; sua aula era um sucesso, e da janela da sua sala via uma igrejagóticadearenitovermelho.

Sim, tinha ficado contente, já antesdepartir e atédepoisdo regresso.Masnaverdadeeleestava infelizpor lá. Seuprimeiro semestreemNovaYork foi o primeiro semestre no qual ele não precisou lecionar numauniversidade alemã— ele gostaria de ter aproveitado essa liberdade emvezdedaraulasnovamente.SeuapartamentoemNovaYorkeraescuro,oar-condicionado fazia tanto barulho nos fundos que era preciso usarprotetores auriculares para conseguir dormir. Nasmuitas noites em quejantou sozinho em restaurantes baratos ou assistiu a filmes ruins, ele sesentia solitário. Em seu escritório, o ar-condicionado soprava ar seco emseu rosto, até que seus seios paranasais ficaram cheios de pus e eleprecisouoperar.Aoperaçãofoiterrível,equandoeleacordoudaanestesianão se viu numa cama hospitalar, mas numa espreguiçadeira numa salacom outros pacientes em espreguiçadeiras, e pouco mais tarde recebeualta,comacabeçadoendoeonarizsangrando.

Elenãosesentia responsávelpela infelicidade.Queriaser feliz.Queriaser feliz porque tinha conseguido sair da pequena cidade universitáriaalemãparaagrandeNovaYorkefaziapartedela.Queriaserfelizporquetinha desejado tanto essa felicidade e agora ela havia aparecido — ouaquilo que ele imaginava serem seus ingredientes. Às vezes, dava paraouvirumavozbaixinhaqueanunciavaessadúvidapelafelicidade.Maseleaemudecia.Quandocriança,naescolaounafaculdade,elesofriaaoterdepartir para uma viagem e deixar seumundo e seus amigos. O tanto queteriaperdido,casosempretivesseficadoemcasanaquelaépoca!Porisso,emNovaYork,eledisseasimesmoqueseudestinoerasuperarasdúvidasafimdedescobrirafelicidadeondeelaaprincípionãopareciaestar.

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Neste verão chegou novamente um convite para Nova York. Ele tirou oenvelopedacaixadecorreioeoabriunocaminhoparaobanconoqualliasua correspondência. A Universidade de Nova York, com a qual ele serelacionavahaviavinteecincoanos,convidava-oparaarealizaçãodeumseminárionaprimaveraseguinte.

Obancoficavajuntoaolago,numapartedoterrenoseparadadorestoporumaruazinhaepelacasa.Quandoelescompraramacasa,suaesposaeos filhos do casal ficaram incomodados com a rua. Eles se acostumaramcomela.Desdeocomeço,elehaviagostadodacasa,poiseraumpequenoreino particular, do qual podia abrir e fechar a porta. Quando recebeu aherança, reformou o antigo ancoradouro e ampliou o madeiramento dotelhado.Esseforaseulocaldetrabalhoemmuitosverões.Masnesseverãopreferiusesentarnobanco,queeraseuesconderijo:doancoradouroedopíer, onde os netos gostavam de brincar, ele não era visto. Quandonadavamparalonge,aísimoviamevice-versa,entãotrocavamacenos.

NaprimaveraseguinteelenãolecionariaemNovaYork.NuncamaisirialecionaremNovaYork.Suavida lá,quecomopassardosanosse tornouumapartenaturaldavida—demodoqueelenãoseperguntavamaisseera feliz ou infeliz emNova York—, havia ficado para trás. Como haviaficado para trás, seus pensamentos retornaram ao primeiro dessessemestres.

Confessar a simesmoque estava infeliz naquela época emNova Yorknãoseria ruimcaso issonão levasseà confissãoseguinte.AoretornardeNova York, ele conheceu umamulher num acidente; os dois trombaramcom as bicicletas, quando andavam de maneira descuidada — eleconsiderava um belo modo de se conhecer. Durante dois anos seencontraram,foramàópera,aoteatroesaíramparajantar,algumasvezeschegaramatéaviajarporalgunsdias,evoltaemeiaelapassavaanoitena

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casadele ou elena casadela. Ele a considerava suficientementebonita esuficientemente inteligente, gostava de tocá-la e ser tocado por ela, epensavaque finalmente tinha chegado lá.Mas, quando ela semudouporcausa da profissão, o relacionamento rapidamente se tornou cansativo eterminou.Apenasentãoeleaceitouestaraliviado.Que jáhaviaachadoosdoisprimeirosanoscansativos.Quemuitasvezesteriaficadomaisfelizsetivesse permanecido em casa, lendo e escutando música, em vez deencontrá-la.Eleaencontravaporquepensava,outravez,quepossuíatodososingredientesparaafelicidadeequetinhadeserfeliz.

Comofoicomasoutrasmulheresdasuavida?Comseuprimeiroamor?FicoufelizquandoBarbara,agarotamaisbonitadaturma, foicomeleaocinema,deixouquelhecomprasseumsorvete,queaacompanhasseatéemcasaequefossebeijadadiantedaporta.Eletinhaquinzeanoseessefoiseuprimeiro beijo. Alguns anos mais tarde, Helena o levou para a cama efuncionou já da primeira vez; ele não gozou muito rápido, ela tambémgozou,eatéamanhãseguintedeuaelaoqueumhomempodedaraumamulher,elecomdezenoveanoseelacomtrintaedois.FicaramjuntosatéelasecasaremLondrescomumadvogadodetrintaecinco,comoqual—descobriumais tarde— já estavanoivahavia tempos.Naquela épocaeleestava fazendo provas, com resultadosmuitomelhores do que esperava,tornou-seassistente,escreveuensaioselivrosevirouprofessor.Eleestavafeliz—ouseráquemaisumavezapenasqueriaserfeliz?Seráquepensavanovamentequetinhadeserfelizporquetudoestavanoseixos?Seráqueafelicidade que sentia era apenas os ingredientes dela? Às vezes ele seperguntavaseavidanãoseriadiferentenumoutrolugar,entãoreprimiaoquestionamento. Assim como tinha reprimido ser a vaidade que o faziacortejar Barbara e servir Helena, e que com frequência considerava queagiremnomedavaidadeeraexaustivo.

Elenãoarriscavapensaremsuafelicidadenocasamentoecomafamília.Queriasealegrarpelocéuazul,pelolagoazul,peloverdedosgramados

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edafloresta.EleamavaapaisagemnãoporcausadosAlpesadistância,esimporcausadaondulaçãosuavecomaqualasmontanhaspróximasseerguiam e o lago se aninhava entre elas. Ao longe, uma garota estavasentadanumbarcocomumgaroto;eleremavaeelaestavacomaspernaspendendosobreaágua.Asgotasquecaíamdoremobrilhavamaosol,easondassuavesformadaspelobarcoepelospésdagarotacontinuavamporumbomtemposobreasuperfícielisa.Ascrianças—deviamserMeike,afilhamaisvelhadoseufilho,eDavid,ofilhomaisvelhodasuafilha—nãoconversavam. Desde que o carro dos correios passara, nada mais tinhaatrapalhadoacalmadamanhã.Suaesposa lhepreparavaocaféemcasa;logoosnetosviriamchamá-lo.

Então pensou que não deveria considerar negativa, e sim positiva, anoçãodequãoenganadorahaviasidosuafelicidade.Oquepoderiahaverdemelhorparaalguémquedesejasedespedirdavidadoqueessanoção?Queriapartirporqueosúltimosmesesque lherestavamseriamterríveis.Não que ele não conseguisse suportar dores. Só partiria quando elas setornasseminsuportáveis.

Maselenãoconseguiaencararessanoçãodemodopositivo.Aideiadeum verão em grupo, seu último verão, tinha sido a ideia de um últimomomento de felicidade em grupo. Não precisou se esforçar muito paraconvencerosdois filhosapassarquatrosemanascomasfamíliasnacasado lago, mas um pouco de esforço foi necessário. Também teve deconvencerumpouquinhoaesposa;elapreferiateridocomeleàNoruega,deondevinhaaavódelaeondenuncaestiveram.Agoraelehaviareunidoafamília, alémdeumvelho amigo, que viriapassar algunsdias. Imaginaraqueoúltimomomentodefelicidadeemgrupotivessesidobem-ordenado.Agoraseperguntavaseoutravezhaviareunidoapenasosingredientesdeumareceitadefelicidade.

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—Vovô!Ele escutou uma voz de criança e passos infantis rápidos, que

caminhavamsobrearuaeogramado.EraMatthias,o filhomaisnovodasua filha, omais jovementre seus cinconetos, umgarotinhovigorosodecincoanos,decabeloloiroeolhosazuis.

—Ocafédamanhãestápronto.QuandoMatthiasviuobarcocomseuirmãoesuaprima,eleoschamou

novamente e ficou pulando no píer de um lado para o outro, até elesatracarem.

—Vamosapostarumacorrida?Ascriançassaíramemdisparadaeeleasseguiudevagar.Umanoatrás

aindateriaparticipado,algunsanosantesteriaganhado.Masvê-loscorrerasubidanasuafrenteedepoisosmaioresficandoparatrás,poisqueriamver omenorzinho ganhar, foimais gostoso que participar. Sim, ele haviaimaginadodessaformaoúltimoverãoemgrupo.

Eletambémimaginaracomoiriapartir.Ummédicoamigoseuhavialhearranjadoocoquetelqueasorganizaçõesdeapoioàeutanásiadãoaosseusintegrantes. Coquetel — ele gostava da denominação. Nunca sentiu umapreçoporcoquetéisenuncahaviaexperimentadoum;oprimeirotambémseria o último. Tambémgostava da denominação “anjo damorte” para ointegrantedaorganizaçãoquetrazocoquetelaomoribundo;eleseriaseupróprioanjodamorte.Semnenhumalarde,quandoahorativessechegado,elese levantariadareuniãodasnoitesnasalade jantar, sairia, tomariaocoquetel,lavariaeguardariaosfrascosesesentarianovamentenasala.Eleficaria ouvindo as conversas, adormeceria e morreria, as pessoas odeixariamdormireoencontrariammortonamanhãseguinte,eomédicoconstatariaumataquecardíaco.Umamorteindolorepacíficaparaele,umadespedidaindolorepacíficaparaosoutros.

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Masahoraaindanãohaviachegado.Amesaestavaposta.Noiníciodoverão,eleahaviatrazidoparaforaeimaginadoqueàcabeceirasesentariacomaesposa;aoseuladoafilhacomomarido;aoladodaesposa,ofilhocomamulher;enasoutrascadeiras,oscinconetos.Osoutros,porém,nãose importavam com essa ordem e se sentavam onde dava. Hoje o únicolugarvagoeraentreanoraeo filhodeseisanosdela,Ferdinand,queseafastouvisivelmentedamãe,acabrunhado.

—Oqueaconteceu?—Ferdinand,porém,balançouacabeçasemdizernada.

Eleamavaos filhos,ogenroeanoraeosnetos.Gostavade tê-losporperto, suas atribulações, suas conversas e suas brincadeiras, até seubarulhoesuasbrigas.Oquemaisgostavaeradesesentarnocantodosofáesedeixar levarpelospensamentos,estarentreelese,aomesmotempo,estar sozinho. Ele também apreciava trabalhar em bibliotecas e cafés;conseguia manter a concentração quando ao lado papéis farfalhavam,pessoasconversavamecaminhavam.Àsvezesjogavabochacomosoutros,acompanhava com a flauta quando tocavam música ou fazia umaobservação em suas conversas. Todos reagiam surpresos, inclusive elepróprio, ao perceber que estava junto deles no jogo, na música ou naconversa.

Alémdisso, amava a esposa. “Claroque amominha esposa”, teriaditocasoalguémlheperguntasse.Erabomquandoelasesentavapertodelenocantodosofá.Melhoraindaeravê-laentreosoutros.Emmeioaosjovens,elaparecianovacomosefosseoutravezaestudantedoprimeirosemestrequeeleconheceunaépocadasprovasfinais.Elanãopossuíarefinamentonem malícia, não tinha nada daquilo que tornava Helena desejável edesagradável. Para ele, era como se o amor pela esposa o purificassedaquiloquehaviasobradodarelaçãocomHelena:aexperiênciadeusareserusado.Elessecasaram,tambémporqueelaconcluiusuaformaçãoesetornouprofessora.Os dois filhos vieram rápido e amulher logo voltou à

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escolapormeioperíodo.Ela conseguiadar contade tudocom facilidade:dos filhos, da escola, do apartamento na cidade e da casa no campo, àsvezesoacompanhando,comosfilhos,porumsemestreemNovaYork.

Não,eledisseasipróprio,nãoprecisavaterreceiosaorefletirsobreafelicidadedoseucasamentoedasuafamília.Estavatudoemordem.Assimcomo os primeiros dias do verão em grupo; os netos passavam os diasjuntos, os filhos e o genro e a nora aproveitavam o tempo de quedispunham,eaesposatrabalhavafeliznojardim.David,dequatorzeanos,estava apaixonado por Meike, de treze — ele percebia isso, os outrospareciamnãover.Otempoestavabom,céudebrigadeiro,disseamulher,rindo, e a trovoadana segundanoite foiuma trovoadadebrigadeiro; eleestava sentado na varanda, emocionado com o negrume das nuvens, osraioseostrovõese,porfim,peloaguaceirolibertador.

Ainda que ele novamente estivesse apenas juntando os ingredientesparauma receitade felicidade, aindaque a felicidadedesseúltimoverãoem grupo ocultasse uma infelicidade, qual era o problema? Ele nuncadescobriria.

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Ànoite,quandoestavamdeitadosnacama,eleperguntouàesposa:—Vocêfoifelizcomigo?—Estoucontenteporestarmosaqui.NaNorueganãoestaríamosmais

felizes.—Não,querodizer,sevocêfoifelizcomigo.Elaseaprumoueolhouparaele.—Emtodososanosemquefomoscasados?—Sim.Elavoltouasedeitar.

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—Não lidei bem como fato de você se ausentar tanto.De ficar tantotempo sozinha.De terde criaros filhos sozinha.QuandoDagmar saiudecasa,aosquinzeanos,eficouforaporseismeses,vocêestavapresente,masseretraiuemdesesperoemedeixousozinha.QuandoHelmut...Masdoqueeuestoufalando?Vocêsabemuitobemquandoeuestavamelhoroupior.Afinal,seiissodevocê.Quandoascriançaserampequenaseeurecomeceina escola, você não recebeumuita atenção. Você gostaria que eu tivesseparticipadomaisdoseutrabalho.Queeu lesseoquevocêtivesseescrito.Vocêgostariadetersedeitadomaisvezescomigo.—Elaseviroudeladoelhedeuascostas.—Eugostariadetertrocadomaiscaríciascomvocê.

Depoisdeumtempo,eleescutouumarespiraçãotranquila.Issoqueriadizerquenãohaviamaisnadaaserdito?

Seuquadrilesquerdodoía.Adornãoeraforte,mascontínuaeuniforme,parecendo querer se tornar crônica. Ou será que já havia se tornadocrônica?Nahoradesubirasescadas,suapernaeseuquadrilesquerdosjánão pareciam pesados havia dias, oumelhor, semanas? Já não havia umtempo que ele sentia uma fraqueza superada com força extra e uma dorlancinante? Ele não tinha se preocupado com isso. Após ter superado aescada, a dor passava. Mas por causa disso a dor lancinante ao subi-lapoderia ter sido tambémamensageiradadorqueagorasentiaeque lhedava medo. A cintilografia óssea não havia apontado alta atividademetabólicanoquadrilesquerdo?

Elenãose lembravamais.Nãoqueriaserdaquelesdoentesquesabemtudoarespeitodesuadoença,queseinformamnainternetecomlivroseconversas,constrangendoseusmédicos.Quadrilesquerdo,quadrildireito— ele não prestou atenção quando o médico lhe relatou quais ossos jáestavamcomprometidos.Elepensouqueiriaperceberporcontaprópria.

Tambémsevirouparaolado.Oquadrilesquerdoaindadoía?Agoraeraodireito?Eleprestouatenção.Eletambémouviupelajanelaabertaoventonasárvoreseocoaxardossaposnolago.Avistouestrelasnocéuepensou

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queelasnão sãodouradasnemresplandecem,masbrilhamduras e friasfeitopequenosedistantespontosdenéon.

Sim, o quadril esquerdodoía.Mas tambémodireito.Quandoprestavaatenção nas pernas, a dor estava presente, assim como quando se fixavanascostas,nanucaenosbraços.Ondequerqueprestasseatenção,adoroaguardavaparadizerqueagoraelamoravaali.Queadorestavaemcasa.

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Eledormiumaleselevantoucedo.Foiatéaportanapontadospés,entãoaabriuefechoucomcuidado.Ospisos,asescadas,asportas,tudorangia.Nacozinha, fez chá e levou a xícara para a varanda. Clareou. Os pássaroscomeçaramafazerbarulho.

Vezououtraeleajudavaaesposanacozinha,nahoradecolocaramesaou lavar a louça. Nunca havia posto uma refeição à mesa sozinho. Nopassado,quandoamulherprecisavaviajar,ocafédamanhãerasuspensoeelesaíaparaalmoçare jantarcomos filhosemrestaurantes.Nopassado,porém,elenãotinhatempo.Agora,sim.

EncontrouomanualdeculináriadoDr.Oetkernacozinhaeotrouxeatéa varanda. Coma ajuda de um livro, até ele—o filósofo especialista emfilosofiaanalítica—teriadeser capazde fazerpanquecasparaocafédamanhã. Até ele? Justamente ele! “Aquilo que pode ser descrito tambémpodeacontecer”,ensinaWittgensteinnoTractatuslogico-philosophicus.

Mas não havia nenhuma panqueca no livro de culinária. Será que apanqueca tinha outro nome? O que não pode ser nomeado também nãopodeserencontrado.Oquenãopodeserencontradotambémnãopodesercozinhado.

Eleencontrouocrepe,leuoquetinhadefazerecalculouosingredientespara onze pessoas. Em seguida, pôs-se a trabalhar na cozinha. Precisou

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procurarumbocadoatéjuntar688gramasdefarinha,11ovos,poucomaisdeumlitrode leite,poucomaisdeumterçode litrodeágua,quasemeioquilo de margarina, açúcar e sal. Ficou irritado porque a quantidade deaçúcaresalnãoestavadescrita.Comodividirsal,comodividiraçúcaremquatroedepoismultiplicarporonze?Também ficou irritadopornão terencontradoorientaçãosobrecomosepararasclarasdasgemasebatê-lasemneve.Elegostariadefazeraspanquecasouoscrepesdelicadosefofos.Masconseguiupeneirar,bateremisturarsemqueseformassempequenosgrumos.

Quando foipegara frigideiradoarmário,elaescorregoudasuamãoecaiu tilintando sobreo chãodepedra. Ele a ergueu eprestou atençãonacasa.Depoisde alguns segundos, escutouospassosda esposana escada.Elachegoudecamisolaàcozinhaeobservouaoredor.

É agora, pensou ele. Ele a abraçou. Ela estava tensa. Eu tambémdevoestarpassandoessatensão,pensouele.Quantotemposepassoudesdequenosabraçamospelaúltimavez?Eleasegurou,e,emboraelanãotivessesedeixadoabraçardeverdade,colocouosbraçosaoredordele.

—Oquevocêestáfazendonacozinha?— Panquecas. No momento estou fritando o número zero. Frito as

outrasquando todosestiveremsentadosàmesadocafé. Sintomuitoporteracordadovocê.

Elaolhouparaamesa,naqualaindahaviafarinha,ovos,margarinaeatigelacomamassa.

—Vocêquefezisso?—Querprovaronúmerozero?Ele soltou a esposa, acendeu o fogão e colocou a frigideira sobre a

chama; consultouo livro, aqueceu150gramasdemargarina, colocouumpoucodemassanafrigideira,tirouapanquecasemiprontaealevouaumprato; aqueceu mais margarina, colocou de volta a panqueca virada nafrigideirae,porfim,apresentou-adouradaàmulher.

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Elacomeu.—Temgostodepanquecadeverdade.—Éumapanquecadeverdade.Ganhoumbeijo?— Um beijo? — Ela o fitou com espanto. Quando foi, pensou ele

novamente,quenosbeijamospelaúltimavez?Devagar,elasoltouogarfoeoprato,foiatéelejuntoaofogão,deu-lheumbeijonorostoeficouparadaaoseulado,comosenãosoubesseoquedeviafazeremseguida.

Nesse instante,Meikeapareceuàportaeolhouquestionadoraparaosavós.

—Oqueestáacontecendo?—Eleestáfritandopanquecas.—Vovôestáfritandopanquecas?—Elanãoacreditava.Masláestavam

os ingredientes,a tigelacomamassa,a frigideira,meiapanquecasobreopratoeoavôdeavental.Meikedeumeia-volta,subiucorrendoaescadaebateuàsportas.—Ovovôestáfritandopanquecas!

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Nesse dia, ele não se refugiou no banco do lago. Buscou uma cadeira noancoradouro e se sentou no píer. Abriu um livro, mas não leu. Ficouobservandoosnetos.

Sim,DavidestavaapaixonadoporMeike.Comoeletentavaimpressioná-la, como se esforçava em parecer relaxado em cada postura e em cadamovimento,comosecertificoudequeelaassistiuaomergulhoqueeledeucomuma cambalhota, como se vangloriava dos livros que tinha lido, dosfilmes que tinha visto, como falava com indiferença niilista sobre seufuturo! Meike não percebia ou estava brincando com David? Ela nãoparecia impressionada e não dava aDavidmais de sua atenção e alegriaqueaosoutros.

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Ossofrimentosdoprimeiroamor!ElepercebeuainsegurançadeDavidesentiunovamenteainsegurançaqueotorturarahaviamaisdecinquentaanos. Naquela época, ele também queria ser tudo. Isso às vezes pareciaverdade e depois parecia não ser nada. Naquela época, também pensavaque, se Barbara visse quem ele era e o quanto a amava, ela também oamaria—maselenãoconseguiamostrarquemeranemdizerqueaamava.Também procurava, naquela época, um compromisso em cada pequenogesto de atenção e de confiança, embora soubesse que Barbara não lheprometianada.Eletambémserefugiava,naquelaépoca,numaindiferençaheroica, na qual não acreditava em nada, não esperava nada e nãoprecisavadenada.Atéqueodesejootomassedeassaltonovamente.

Elesentiupenadoneto—edesi.Ossofrimentosdoprimeiroamor,asdoresdocrescimento,asdecepçõesdavidaadulta—gostariadedizeralgoqueencorajasseouconsolasseDavid,porémnãosabiaoquê.Masseráquepodia ao menos ajudá-lo? Ele se ergueu e se sentou, com as pernascruzadas,juntoaosdoisnopíer.

—Sério,vovô,eunãocolocavaféemvocêfazendopanquecas.—Descobri o prazer em cozinhar. Vocês doismais velhosme ajudam

amanhã?Nãoquero ficarmuitopretensioso,maseudevoconseguir fazerumespagueteàbolonhesaesaladacomaajudadevocês.

—Edesobremesamussedechocolate?—SeestivernolivrodereceitasdoDr.Oetker.Em seguida, continuaram sentados, mudos. Ele havia interrompido a

conversadelesenãosabiacomoreiniciá-laatrês.—Entãovouindo.Amanhãàsonze?Primeirofazerascomprasedepois

cozinhar?Meikesorriuparaele.—Beleza,vovô,masagenteaindasevê.Ele voltou à sua espreguiçadeira. Matthias e Ferdinand haviam

encontradoumlugarrasonolago,apoucosmetrosdamargem,etraziam

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todasaspedrasqueencontravampela frenteparaconstruirumailha.EleprocurouairmãdedozeanosdeDavideMatthias.

—OndeArianeestá?—Noseubanco.Ele se levantounovamentee foi atéobanco.Oquadril esquerdodoía.

Comumpésobreobancoeolivrosobreojoelho,Arianeestavalendo;elaoouviuseaproximareergueuosolhos.

—Tudobemeumesentaraqui?—Éclaro.Possomesentartambém?Elatirouopédobanco,fechouolivroeescorregouparaolado.Ariane

viuqueeleliaotítulo:Odestinobateàsuaporta.—Estavanaestantedevocês.Talveznãosejaparamim.Masprendea

atenção.Penseiqueagenteiriafazermaiscoisasjuntos.MasDavidsóquersaberdeMeikeeMeike,deDavid,mesmoqueela fique fazendodecontaquenãoéverdadeequeelenãoperceba.

—Vocêtemcerteza?Ela olhou para o avô, precoce e compassiva, e assentiu. Ariane vai se

tornar umamulher bonita, pensou ele, e a imaginou certo dia tirando osóculos,soltandoocabeloerealçandooslábios.

—EntãocomDavideMeikeéassim.Vamosfazeralgonósdois?—Oquê?—Podemosvisitar igrejasecastelosouumpintorqueeuconheço,ou

ummecânicodecaminhões,quetemumaoficinaqueparecedecinquentaanosatrás.

Elapensou.Depois,levantou-se.—Bom,vamosvisitaropintor.

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Apósumasemana,suaesposaquissaber:— O que está acontecendo? Se esse verão está correndo bem, então

todososoutroscorrerammal;e,setodososanteriorescorrerambem,essenãoestáassim.Vocênãolêmaisenãoescrevemais.Sóficaperambulandocomosnetoseontemfoiatéojardimedissequequeriapodaracercaviva.Quandoexisteumachancedemetocar,vocêmetoca.Sério,écomosenãopudessetirarasmãosdemim.Nãoestoudizendoquenãopodemetocar.Vocêpode...—Elaenrubesceuebalançouacabeça.—Detodomodo,tudoestádiferenteeeuquerosaberomotivo.

Elesestavamsentadosnavaranda.Osfilhoseogenroeanorapassavamanoitecomamigos,eosnetosjáestavamnacama.Elehaviaacendidoumavela,abertoumagarrafadevinhoeservidoamulhereasimesmo.

—Tomarvinhoàluzdevelas...Issotambéménovidade.—Nãoéhoradeeu começar com isso?Com issoe comosnetos eos

filhoseacercaviva?Deeusabernovamentecomoébomtocarvocê?—Elecolocouobraçoaoredordaesposa.

Maselaorepeliu.—Não, ThomasWellmer. Assimnão.Não souumamáquina que você

pode ligar e desligar. Imaginei que nosso casamento seria diferente,masparecequenãopodiaserassimeporissomeadapteiàquiloquedavaparaser.Nãovouentrarnumestadodeespíritoquevaipassardaquiapoucassemanas.Prefiropodarminhacercaeumesma.

—Há três anos larguei a universidade. Sintomuito por ter demoradotantotempoatéentenderaliberdadedaaposentadoria.Nauniversidade,aaposentadorianãosignificaumfimtãoradicalquantonumórgãopúblico;aindaháospós-graduandos,umseminárioparaministrar,umacomissãoparaparticipareficamoscomaimpressãodequeéprecisoescreveroquesempresequis,masnuncahaviatempo.Écomodesligaromotoredeixarocarroandarempontomorto.Searuaaindaforumpoucoíngreme...

—Vocêéocarroqueaaposentadoriadesligouomotor.Equeméarua

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íngreme?—Todosquemetrataramcomoseomotoraindaestivesseligado.—Entãoprecisotratardevocêdeumamaneiraespecial.Nãocomoseo

motoraindaestivesseligado,masdesligado.Então...—Não,vocênãotemdefazernada.Depoisdetrêsanosocarroparoude

andar.—...Eagoravocêseocupadosnetosepodaacercaviva?Eleriu.—Enãotiroasmãosdevocê.Estavamsentadosladoalado,eelepercebeuoceticismodaesposa.Ele

o percebia no ombro dela, no braço, no quadril, na coxa. Se voltasse acolocarobraçoaoseuredor, talvezelanãoorepelisse—osdoishaviamconversadoeouvidooqueooutrotinhaadizer.Maselaesperariaatéqueeletirasseobraçodenovo.Ouseráquedepoisdeumtempoiriaencostaracabeçaemseuombro?Assimcomoelaoenvolveracomosbraçosnahoradas panquecas, não por cumplicidade, não como combinado,mas só porfazer?

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Ele a cortejou. De manhã, levava o chá na cama; quando ela estavatrabalhando no jardim, ele vinha com refresco; ele podou a cerca viva ecortouagrama;resolveucozinhar todasasnoites,emgeralauxiliadoporAriane; estava à disposição dos netos quando eles se entediavam; ficavaatento para o estoque de suco demaçã, águamineral e leite não acabar.Todososdiasconvidavaaesposaparapassear,apenasosdois.Nocomeçoela queria voltar rapidamente para casa e para o trabalho, mas depoispermitiuqueeleampliasseospercursoseàsvezessegurassesuamão—até ela precisar da mão porque queria erguer, colher ou examinar algo.

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Certa noite foram até o restaurante na outra margem do lago, queostentava uma estrela e onde lhes serviram o jantar num gramado sobárvoresfrutíferas.Elesobservaramaágua,cintilanteàluzdosolqueaindabrilhava à noite feitometal derretido, chumbo comum toque de bronze,lisa,atéquedoiscisnesaterrissarambatendoasasas.

Elecolocouamãoesquerdasobreamesa.—Vocêsabequeoscisnes...—Eusei.—Elacolocouamãosobreadele.—Quandovoltarmosparacasa,queromedeitarcomvocê.Elanãoretirouamão.—Vocêaindaselembradequandonosdeitamospelaúltimavez?—Antesdasuaoperação?— Não, foi depois. Achei que já dava de novo. Vocême disse que eu

estavatãobonitaquantoantesequeamavaonovoseiodamesmaformaque amava o antigo. Mas então tive de ir ao banheiro e vi a cicatrizvermelha,entãopercebiquenãoerapossívelequetudonãopassavadeumesforço;eumeesforceievocêseesforçou.Vocêreagiucomcompreensãoedelicadeza,dizendoquenãoqueriamepressionar.Queeudeveriadarumsinalquandoestivessepronta.Mas,quandonãolhedeinenhumsinal,vocêconcordou,e fezomesmo.Depoispercebiquenãoeradiferenteantesdaoperação equedesde aquela épocanadamais acontecia se eunãodessenenhumsinal.Eunãoqueriamaisdarnenhumsinal.

Eleassentiu.—Anosperdidos.Nãoconsigodizeroquantolamentoporeles.Naquela

época,eupensavaqueeranecessáriomeafirmarparamimmesmoeparaos outros, tornando-me reitor ou secretário de Estado ou presidente daassociação,e,comovocênãoparticipavadisso,eumesentitraído.Masvocêtinharazão.Seolhoparatrás,vejoqueosanosnãotêmimportância.Elesforamapenasbarulhentosepassaramrápido.

—Vocêtinhaumaamante?

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— Ah, não. Com exceção do trabalho, não permiti que nada nemninguémseaproximassedemim.Deoutromodo,eunãoteriaconseguido.

Ela riu baixinho. Por estar se lembrando do seu ímpeto por trabalharnaquelaépoca?Porestaraliviadaporelenãotertidonenhumaamante?

Elepediuaconta.—Vocêachaqueaindaconseguimos?—Estoucomtantomedoquantodaprimeiravez.Ouatémais.Nãosei

comovaiser.

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Nãodeuemnada.Adorveioemmeioaoabraço.Elaexplodiunocóccixeemitiu suas ondas para costas, quadris e coxas. Foi pior que a pior dasdores que ele havia sentido até então. Ela exterminou seu desejo, suapercepção, seu pensamento. Ela o transformou em seu ser, algo que nãopodiasedesprenderdela,quenãopodianemmesmosonharemse livrardela.Semquererouatésemnotar,elegemeualto.

—Oquefoi?Eleroloudecostasepressionouasmãoscontraatesta.Oquedeveria

dizer?—Achoqueestoupassandopelapiorcrisedeciáticoquejátive.Comesforço,eleselevantou.Nobanheiro,tomouumaNovalginaqueo

médicolhereceitaraparaascrises.Eleapoiouosbraçosnapiaeseolhouno espelho. Embora estivesse se sentindo como nunca tinha se sentidoantes, seu rosto era o mesmo de sempre. O cabelo loiro escuro com astêmporaseasmechasgrisalhas,osolhosquefaiscavamentrecinzaeverde,orostomarcadopelarugaprofundasobreonarizedonarizatéaboca,ospelosquenasciamdasnarinasequeelecortariaamanhã,abocafina—erabomdividiradorcomorostoconhecidoeasseguraraeleeasimesmoque

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aindahaviavidanaquelecachorrovelho.Quandoasdoresdiminuíram,elevoltouaoquarto.

Sua esposa tinha adormecido. Ele se sentou na beirada da cama, comcuidadoparaqueelanãoacordasse.Aspálpebrasdelatremiam.Seráqueaindanãoestavadormindocompletamente?Seráquesonhava?Comoqueestariasonhando?Conheciatãobemorostodela.Tantoorostojovemquelá habitava quanto o velho. O infantil, animado, inocente, e o cansado,amargo.Comoosdoisrostosdiferentessesuportavamumaooutro?

Elepermaneceusentado.Nãoqueriaprovocarsuador.Adorhavia lhemostradoquenãoapenasestavaemcasaemseucorpocomotambémqueera a dona. Agora ela havia se retraído para um quarto nos fundos,masdeixara asportas abertaspara estar apostos casoo respeitoque lhe eradevidonãofossehonrado.

O cabelo da mulher tocou nele. Estava tingido de castanho e cresciagrisalho e branco— a luta contra o envelhecimento, um embate após ooutro, uma batalha perdida, mas sem jogar a toalha. Se a esposa nãotingisseocabelo,elasepareceriacomumasábiaíndiaidosa,comseunarizadunco, seus ossosmalares salientes, suas rugas e seus olhos. Ele nuncadescobrira se os olhos dela eram inescrutáveis pelos seus sentimentosseremmuitoprofundosoumuitovazios.Nuncadescobriria.

Elasedesculpounamanhãseguinte.—Sintomuito.Ochampanhe,ovinho,acomida,ainterrupçãodonosso

momento juntonacamaquandoestava ficandobom,seuciático...Foiumpoucodemais.Eusimplesmenteadormeci.

—Não, sou eu que peço desculpas. Omédicome disse que posso terdoresnociáticoeentãodevotomarcomprimidos.Nãoimagineiquefossemtão fulminantes e que pudessem aparecer numa hora tão errada.— Eleestavacommedodesedeitardeladoeesticouobraço.

Elaapoiouobraçoemseuombro.—Tenhodeprepararocafédamanhã.

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—Não,nãotem.—Tenhosim.Elaestavaapenasbrincando.Queriaomesmoqueele.Elepediuà sua

dorqueficassenoquartodosfundosnessamanhã,nessahora.—Vocêficaporcima?

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Quando eles desceram, os outros já haviamquase terminado de tomar ocafé da manhã. Ariane olhou para os avós como se soubesse por queestavamtãoatrasados.Ariane,dedozeanos?Eleeamulherenrubesceram.Emseguida,comosequisessemostraratodosquehaviaalgoentreosdois,elalhedeuumbeijo.

Por volta da hora do almoço, ele buscou o velho amigo na estação. Otrem entrou e parou, e, como a composição era muito alta para aplataformaouaplataformaeramuitobaixaparaacomposição,seuamigoteve de dar um pulinho. Ele o fez com um sorriso resignado, como seestivesseprontoparacair,e,emvezdeumabrevevisitaaumvelhoamigo,oqueseanunciavaeraumalongaestadanumhospital.

Resignado, como se o jogo tivesse terminado antes de começar, e aomesmotempocheiodeumcharme jovial, comosedissessequeascoisassãoassim,mastantofaz—elesemprefoidessejeito.Foidessaformaquecursou auniversidade, semmuito esforço e ambição,mas simpático comtodosequeridoportodos,tambémentreaquelesquelheaplicavamprovas,e mais tarde entre aqueles que o empregaram. Tornou-se um advogadobem-sucedidoequedeviaseusucessotantoaoseuconhecimentotécnicoquantoàmaneiracomolidavacomcontratantes,partescontráriasejuízes.Eleusavaseucharme.Usavaseucharmetambémcommulheresefilhosdeamigos; eles o amavam, embora uma ou outra esposa dos seus amigos

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quisesseomaridoparasi,longedosvelhoscompanheiros.OfilhoHelmutgostavaespecialmentedoamigo;quandocriança,viajara

àsvezescomopaieeleduranteasférias,asfériasdoshomens.Noinvernoesquiavam— e, quando ele não queria ou não aguentavamais, o amigo,que descia a pista de jeans e casaco, levava-o entre as pernas. Para ogarotinho,oamigodecasacoescuroesvoaçantequeolevavaemsegurançaaté o vale era um herói feito o Batman. Mais tarde, aconselhou-lhe nosestudos e na carreira. Sem ele, Helmut não teria decidido se tornaradvogado.Eleteriagostadodeiràestação.Masasviagensdaestaçãoparacasa e, na noite seguinte, da casa para a estação, eram as únicasoportunidadesparaambososamigosestaremasós.

Nopercurso,conversaramsobreaposentadoria,famílias,verão.Entãooamigoperguntou:

—Ecomovaiocâncer?—Vamosaté láemcima—eleapontouparaamontanhaàqualarua

conduzia—edarumacaminhada.Ele tinhaseperguntadoalgumasvezessedeviarevelarsuas intenções

aoamigo.Elesnãomantinhamsegredosentre si, epassarama falar commaisfacilidadesobreocâncerquandoambosdividiramomesmodestino;osdoisforamdiagnosticadoscomcâncerháanos,moléstiasdiferentesedeevolução diferente, mas ambos necessitando de operação, radiação equimioterapia. Mas como o amigo iria encarar a família uma vez quesoubessedesuaintenção?

Elessubiram.Àdireitacomeçavaafloresta,àesquerdaavistaseabriapara o lago, as montanhas e, ao longe, os Alpes. Estava quente, o calorsuave,envolvente,doverão.

—Éumaquestãodetempoatéosossosestaremtodoscomprometidos.Até começarem a esfarelar e quebrar e a dor se tornar insuportável. Àsvezesreceboumaperitivo,masaindadáparalevar.Eoseucâncer?

—Estáquietoháquatroanos.Nomêspassadoeraparaeufazerexames,

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maspelaprimeiravezsimplesmentenãofui.—Demodofatalista,oamigoergueuasmãoseasdeixoucairnovamente.—Oquevocêvaifazerquandoasdoresficareminsuportáveis?

—Oquevocêfaria?Os dois caminharam um bom tempo sem o amigo responder. Em

seguida,elesorriu.—Aproveitaroverãodamelhorformapossível.Oquemais?

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Depoisdojantar,elesesentounocantodosofá,observandoosoutros.Elesjogavamumjogoquepermitianomáximooitoparticipantes.Eleconseguia,semchamarmuitaatenção,variarconstantementeaposição,colocandoasalmofadasoraatrásdascostas,oracontraoquadril,orasobacoxa.Cadamudançatraziaalívio,atéqueadordominavaanovaposiçãocomotinhafeito com a antiga. Ele havia tomado Novalgina, mas não estava maisajudando.Eagora?Seráquedevia iràcidadeepedirmorfinaaomédico?Outinhachegadoahoradetiraragarrafadaadegaclimatizada,escondidaatrásdemeiagarrafadechampanhe,etomarocoquetel?

Nasvezesemquehavia imaginadosuaúltimanoite, eleavislumbrarasem dores. Agora percebia que não era assim tão simples determinar anoite correta. Quantomais vivesse e quanto pior seu estado, mais rarasseriamasnoitessemdores,asmaisbem-vindaseasmaisimprescindíveis.Como se entregar à morte numa noite dessas? Por outro lado, ele nãoqueriavivercomdor.Amorfinaseriaasolução?Comela,asnoitessemdorsetransformariamderaridadesimprescindíveisemmomentosrealizáveis?

Portase janelasestavamabertas,eoventomornotraziamosquitosdolago.Aoquereracertarummosquitonobraçoesquerdocomamãodireita,elenãoconseguiuerguê-la.Amãonãolheobedecia.Quandoacolocouem

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outra posição, deu certo, e voltou a funcionar quando ele retomou apostura na qual havia pouco a mão não tinha lhe obedecido. Testoudiversasposições e foi capazdeerguer amãoem todas elas, demaneiraque acabou se perguntando se aquela dificuldade havia sido apenasimaginação sua. Mas sabia muito bem a verdade, e sabia também queaconteceraalgoquenãotinhamaisvolta.

O jogo havia terminado, e o amigo contava casos do escritório. Nopassado,osfilhosnãosecansavamdosseuscasos;agora,nemosnetos.Eleficou envergonhado.O que teria tido para contar aos filhos?O que tinhapara contar aos netos? Que Kant era um bom jogador de bilhar e queganhavaodinheirodosestudoscomisso,queHegelimitavacomaesposaavida familiardeMartinhoLuteroeCatarinavonBora, queSchopenhauertratavaamãeeairmãmuitomal,equeWittgensteincuidavamuitobemdairmã—eleconheciaalgumasanedotasdafilosofiaeoutrasdahistória,queseuavôlhecontara.Masnãosabiacontarnadainteressantedotrabalho—o que isso atestava a seu respeito? Sobre seu trabalho? Sobre a filosofiaanalítica? Não seria também apenas um desperdício refinado dainteligênciahumana?

Emseguida,oamigopediulicençaesesentouaopiano.SorriuparaeleetocouachaconadaPartitaemrémenor,queambosouviramMenuhintocarquandoestudanteseseapaixonaramporela.Umarranjoparapiano—elenãosabiaqueexistianemqueoamigootocava.Seráqueahaviaensaiadoparaele?Estavapresenteando-acomodespedida?Amúsicaeopresenteolevaramàslágrimas,quenãopararamdeescorrerquandooamigopassouatocarjazz—aquiloqueosfilhoseosnetosqueriamrealmenteouvir.

Suaesposaviuacena,sentou-seaoseuladoeencostouacabeçaemseuombro.

—Tambémvouchorardaquiapouco.Odiacomeçoueterminoumuitobem.

—Sim.

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—Vamosnoslevantaresubir?Quandoosoutrosperceberemquenãoestamosmaisporaqui,elesvãoentender.

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Aviagemchegouàmetade.Elesabiaqueasegundametadedoverãoemgrupopassariamais rapidamentequeaprimeira—eaprimeirapassaravoando.Pensounoquemaispoderiadizeraos filhos.Dagmar—quenãoerapara ela sepreocupar tanto comos filhos?Que eraumaboabióloga,que não deveria desperdiçar seu talento, e sim voltar a trabalhar? Quemimava o marido e que isso não era bom nem para ele nem para ela?Helmut—seráqueeleestavamesmointeressadoemsaberqualempresase fundiria com qual e qual empresa assumiria a outra? Será que estavamesmo interessado em todo aquele dinheiro que juntava? Será que nãodeveria se tornar um advogado diferente do que era, espelhando-se noexemplodovelhoamigo?

Não,issonãoerapossível.Dagmarhaviasecasadocomumcabeça-ocametido,eelesópodiatorcerparaqueocasalnãosedessecontadissoequecontinuasse a se ofuscar pela riqueza e pelos bons modos dele. Helmuttinha aprendido o gosto do dinheiro e se viciara nisso, e sua esposaaproveitava os frutos. Talvez ambos os filhos tivessem, por insegurança,entrado numa vida superficial, e talvez ele não lhes tenha transmitidosegurançaosuficiente.Agorajánãoeramaispossível.Elepodialhesdizerque os amava. Tinha de conseguir expressar aquilo que pais e filhosconseguemexpressarunsaosoutroscomfacilidadenosfilmesamericanos.

Independentementedoquehaviadeerradocomseusfilhos,nesseverãoelesestavamdespretensiosos,suportáveiseamorosos.Osnetosnãoteriamlhe trazido tantas alegrias caso os filhos não os estivessem criando bem.Não,elenãopodiadarnenhumconselhoaosfilhos.Podiaapenasdizerque

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osamava.Certodia, asdores se tornaram tão fortesque ele tomouo trematé a

cidade e pediu morfina ao médico. O médico lhe passou a receita doanestésicocomhesitaçãoetodotipodealertasobreadosagemeosefeitos.Mais simpática que omédico foi a farmacêutica, de quem ele era clientehavia anos e que lhe entregou a embalagem e um copo d’água com umsorrisotriste.

—Entãoestánahora.Ele perdeu o trem da tarde e tomou o noturno. Seu carro estava

estacionadonaestação,eeleseperguntousepodiadirigir,mas,comonãohavia recebido nenhuma orientação a respeito, conduziu o veículo pelasruasvaziasechegouemsegurança.Acasaestavaescura.Setodosestavamdormindo,elenãoprecisavaterpressa.Podiasesentarnobancodolago.Podiaaproveitarquenessanoiteadornão tinhaapenasseretraídoparaumquartodosfundos,masestavatrancadademodoconfiável.

Sim,amorfinaeraasolução.Comela,umanoitesemdorrealmentenãoeramaisumararidadeimprescindível,masummomentorealizável.Elesesentia leve; seu corpo não apenas não doía mas pulsava suave e firme,amparava-o,carregava-o,tinhaasas.Semsemexer,eleconseguiatocarasluzesdaoutramargemdolagoeatéasestrelas.

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Ele escutou passos e reconheceu o caminhar da esposa. Escorregou paraumdosladosdobanco,paraqueelapudessesesentardooutro.

—Vocêescutouocarro?Elasesentousemresponder.Quandoquisenvolvê-lacomumbraço,ela

securvoudemodoqueseugestocaiunovazio.Elaergueuagarrafacomocoqueteleperguntou:

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—Issoéoqueeuestoupensando?—Oquevocêestápensando?—Nãofaçajoguinhoscomigo,ThomasWellmer.Oqueéisso?— É um analgésico extremamente potente, que deve ser mantido

refrigeradoenãopodecairnasmãosdosnossosnetos.—Por isso você o escondeu atrás da garrafa de champanhe na adega

climatizada?—Sim.Nãoentendoporquevocê...—Estoucomdoresmuitomuitofortes.Desdequeencontreiagarrafa,

porquequeria preparar um jantar com champanhepara você, estou comdoresmuitofortes.Entãoémelhoreubeberoconteúdodessagarrafa.—Eladesatarraxouatampaelevouagarrafaàboca.

—Nãofaçaisso.Elaassentiu.—Umanoite,quandoestivermosjuntosefelizes,vocêvaisair,esvaziar

agarrafa,voltareadormecer.Antesaindanosdiráqueestámuitocansadoequetalvezadormeçaequeéparanãooacordarmos?

—Nãopenseinessesdetalhes.—Masvocêqueriafazerissosemmedizer,semmeperguntar,semfalar

comigo.Nissovocêpensou,certo?Eledeudeombros.—Não entendo o que você tem. Eu queria partir quando as dores se

tornasseminsuportáveis.Queriapartirdemaneiraanãoserumproblemaparaninguém.

—Vocêselembradonossocasamento?Atéqueamorteossepare?Nãoatéquevocêseinsinueparaamorteefuja.Evocêselembradequeeunãoqueriameentregaràfelicidadedeumverãoquepassariadepoisdepoucassemanas?Vocêpensouqueeunãodescobririaaverdade?Oupensouquejáestariamortoquandoissoacontecesse?Quedaíeunãopoderiamaispedirexplicações a você? Você não teve amantes, mas o modo como está me

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traindoagoranãoémelhor;não,éatépior.— Pensei que não seria descoberto. Também pensei que seria uma

despedidabonita.Oquevocêteria...—Umadespedidabonita?Vocêestápartindoeeunãosouinformada?

Issoéparaserumadespedidabonita?Nãoénenhumadespedida.Detodomodo,nãoumadespedidaqueeuaceitedevocê.Evocêtambémnãoestásedespedindodemim,masdesimesmo,equerqueeusejafigurante.

—Aindanãoentendoporquevocêestátãoindignada...Elaselevantou.—Sim,vocênãoentendeoqueestáfazendo.Amanhãcedovoucontara

nossosfilhoseirembora.Façaoquequiseraqui.Nãovouserfiguranteeeuficaria espantada se eles se dispuserem a isso. — Ela colocou a garrafasobreobancoefoiembora.

Elebalançouacabeça.Algumacoisatinhadadoerrado.Nãosabiabemoquê.Masnãohavia dúvidade que algonão tinha saídodo jeito previsto.Seriaprecisoconversarcomaesposanamanhãseguinte.Faziatempoqueelenãoaviatãoindignada.

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Ela não estava na cama de casal quando ele se deitou nem quando selevantou.Elepreparouocafédamanhãcomosfilhoseacordouosnetos.Quandotodosestavamsentados,elachegou.Nãosesentou.

—Estouindoparaacidade.Opaidevocêsquersematarnospróximosdias na companhia daqueles que ama. Descobri isso por acaso; ele nãoqueriafalarnadadissonemamimnemavocês,massimplesmentetomaradroga, adormecer emorrer. Não quero ter nada a ver com isso. Que elerealizesozinhoaquiloquepensousozinho.

Dagmardisseaomarido:

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—Pegue as crianças e vá fazer algo com elas. Não só as nossas,mastodas.

Ela falou com tantadeterminaçãoqueomarido se levantoue foi, eosnetososeguiram.Emseguida,elasevirouparaopai.

—Vocêquersematar?Dojeitoquemamãefalou?— Achei que isso não precisava ser do conhecimento de todos. Na

verdade, não precisava ser do conhecimento de ninguém. A dor estáficandocadavezpiore,quandosetornarinsuportável,voumedespedir.Oquehádeerradonisso?

— Você não ter falado nada conosco nem querer ter falado. Nem àmamãe,casonãoquisesseterfaladoconosco,seusfilhos.Oquandodadorsetornarinsuportáveltambémdependedequantomamãepodeajudá-loasuportá-la.Penseiquenóstambém...

Helmutselevantou.— Deixe para lá, Dagmar. São nossos pais que têm de resolver a

situação.Eu,deminhaparte,nãovoumemeter,eémelhorvocêtambémficardefora.

— Mas eles não estão fazendo de comum acordo. Mamãe acabou dedizerqueelanãoquer ternadaavercom isso.—Dagmarolhouconfusaparaoirmão.

— Essa também é umamaneira de se chegar a um acordo.— Ele sevirouparaaesposa.—Vamos,vamosfazerasmalaseirembora.

Elessaíram.Dagmarlevantou,hesitante,olhouinterrogativamenteparaopaieparaamãe,nãorecebeurespostasetambémsaiu.Acasaecoavaaatividadedeesvaziararmáriosecômodas,juntarlivrosebrinquedos,tirarroupasdecama,arrumarmalas.Ospaismandavamos filhosbuscarmaisissoeaquiloenãoesquecerdaquilooutro,eascrianças,percebendoqueomundohaviasaídodostrilhos,obedeciam.

Sua mulher já havia arrumado suas coisas durante a noite. Ela aindaficouumtemponacozinha,olhandoparaafrente.Depoisoencarou.

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—Estouindoagora.—Vocênãoprecisair.—Sim,preciso.—Vocêestáindoàcidade?—Nãosei.Aindatenhoquasetrêssemanasdeférias.—Elafoi,eelea

ouviu se despedindo dos filhos e dos netos, abrindo e fechando a porta,dando a partida no carro e saindo. Pouco depois, os outros também seaprontaram.Eles foramàcozinhasedespedir,os filhosconstrangidos,osnetosconfusos.Eletambémosescutoudeixandoacasa,batendoportasdecarroepartindo.Emseguida,tudoestavaemsilêncio.

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Ficousentado,semconseguiracreditarnarapidezcomqueacasatinhaseesvaziado.Elenãosabiaoquefazer.Comquepreencheramanhãeodia,odiaseguinteeasemanaseguinte,sedeviasematarlogooumaistarde.Porfim,levantou-seetirouamesa,colocoualouçaeostalheressujosnolava-louça, colocou sabão, ligou a máquina, recolheu a roupa de cama e astoalhasdoandardecimaeas levouaoporão.Aocontráriodo lava-louça,elenuncahaviausadoamáquinadelavar,masencontrounochão,emmeioaosprodutosde limpeza, as instruçõesdeusoe as seguiu.Umamáquinadava conta da roupa de duas camas; ele precisaria de quatro ou cincomáquinas.

Ele foi até o lago e se sentou no banco. Com o barulho dos netosbrincandoesebanhando,olugarpareciaamesanabibliotecaounocafé,ouaindaosofádasala—eleestavajuntodaspessoasmastambémestavaasós.Semosruídos,estavaapenassolitário.Elequeriarefletirsobreoquefazer, porémnão tevenenhuma ideia. Em seguida, quis pensar sobreumdosproblemasfilosóficosquehaviatrazidoparaaaposentadoria,masnão

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selembroudenadaquederivassedeumproblema,nãoselembrounemdoproblemaemsi.Recordava-sedassituaçõesdasúltimassemanas:DavideMeike no barco, Matthias e Ferdinand construindo a ilha, Ariane com olivro sobre o joelho, Ariane e ele visitando o pintor, cozinhando com ascrianças, cortando a cerca viva, o chá e o refresco para a esposa, aproximidade crescente, amanhã emque se amaram. Ele sentia uma levesaudade, apenas leve, porque ainda não tinha compreendido direito quetudo havia passado. Ele sabia que era assim, escutara com os própriosouvidoseviracomosprópriosolhos.Masaindanãohaviacompreendidodireito.

Ele ficou quase feliz quando a dor semanifestou. Assim como se ficaquasefelizquandoestamosnumlugarestranho,sozinhos,eencontramosalguém de quem não gostamos, mas com quem estamos ligados por umpassadocomumnaescola,nauniversidade,na fábricaounoescritório.Oencontro distrai da solidão. Além disso, a dor lhe trazia a lembrança domotivodeestarali:nãoparaconvivercomafamília,massedespedirdela.Só que a despedida tinha vindo um pouco adiantada e foi um poucodiferentedoplanejado.

Sim, era assim. Ou será que não? Ele se levantou para pendurar aprimeiralevaderoupanovaralelavarapróxima.Antesdechegaracasa,soube que a despedida que havia ficado para trás não fora somente umpoucoadiantadaeumpoucodiferentedoplanejado.Elanãotinhanadaemcomumcomadespedidaqueestiveraporvir.Adespedidaquehaviaficadoparatráspassou.Adespedidaqueestáporvirpodeseratrasada,impedida;podeacontecerummilagre.Elenãoacreditavaemmilagres.Maspercebeuque havia se enganado. Imaginara que a dor ficaria cada vezmais forte,cadavezmaisdifícildesuportar,entãosetornariainsuportáveleadecisãopara a despedida aconteceria naturalmente. Em vez disso, a dor fez comque o analgésico também se tornasse mais forte. A decisão de tomar ocoquetelesedespedirnãoaconteceunaturalmente.Eletinhadetomá-la,e,

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comoaindadispunhadetempo,nãoconfessouasiprópriooquãodifícillheerafazerisso.Setivessequebradoobraçoouaperna—então,sim,ahorateriachegado?

Vezououtraeleobservaraamulherpendurandoroupa.Ela limpavaovaral que estava esticado no jardim, trazia o cesto de roupas do porão,sacudiacadapeçaeaprendiacompregadoresquetiravadeumsaquinhoque carregava feito um avental. Ele fez assim também. Curvar-se parapegaraspeças, sacudi-las, tirarospregadoresdosaquinho,esticar-seemdireção ao varal e prender as roupas—a cadamovimento, via amulherdiante de si; não, ele a sentia fazendo esses mesmos movimentos. Foitomadodetalmaneiraporumaempatiacomocorpodamulher,quetevedesuportaroesforçodotrabalho,daadministraçãodolaredosfilhos,dasdores dos partos e do aborto, a facilidade para infecções na bexiga e assujeições à enxaqueca, que ele começou a chorar. Queria parar.Mas nãoconseguia.Sentou-senosdegrausdavarandae,entreaslágrimas,assistiuao vento insuflando as roupas, fazendo com que subissem e caíssemnovamente.

Doúltimoverãonãorestarianadadaquiloqueelehaviaplanejado tãocuidadosamente. Mais uma vez tinha conseguido juntar todos osingredientes, mas a felicidade não estava certa. As outras vezes foramdiferentes;porumtempo,elerealmenteestevefeliz.Masafelicidadenãoquisperdurar.

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Nomesmodiaelecomeçouaprestaratenção.Estavanojardimounolagoeprestava atenção para saber se aquilo que tinha acabado de ouvir era ocarrodamulher.Estavanoprimeiroandar,escutavaumruídonotérreoeprestavaatençãoparasaberseerampassos.Estavanotérreo,escutavaum

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ruídonoprimeiroandareprestavaatençãoparareconhecervozes.Nos dias seguintes, às vezes teve certeza de ter notado a mulher

passando de carro em frente à casa ou subindo as escadas, ou Matthiascorrendo à sua frente ou Ariane o chamando. Nessas horas, ele ficavadiantedaporta,iaatéaescadaousevirava,enãohavianinguém.Certodia,ficouotempotodoindodacasaatéolago,poishaviametidonacabeçaqueaesposaviriadebarco,entãosesentarianobancoeesperariaqueelesesentasse ao seu lado. Quando ele estava no banco, a ideia lhe pareciaabsurda.Aovoltarpara casa,porém,nãodemoravamuitopara achar terouvidoapotênciadiminuídadomotordeumbarcoatracando.

Quando passou a escutar apenas o vazio da casa e do jardim, eleentregouospontos.Oritualmatutinode tomarbanho, fazerabarbaesevestirestavaacimadassuasforças.Aoiràscompras,colocavaumacalçaeumajaquetasobreopijama,enãosepreocupavacomoolhardosoutros.Aolongodatardecomeçavaabeber,enoiníciodanoiteestavabêbadoou,quando álcool e remédios agiam juntos, quase inconsciente. Só então sesentia totalmente sem dor. Caso contrário, algo sempre estava doendo emuitasvezeseraocorpointeiro.

Certanoiteelecaiunaescadadoporão,masestavabêbadodemaisparaseergueresubir.Sentou-senodegrau,apoiou-senaparedeeadormeceu.Ànoite, ao acordar, percebeuqueamãodireita estava inchadaedoía.Nãoera a dor conhecida,mas umador jovem, fresca, que surgia lancinante acadamovimento damão, do pulso até os dedos. Ela lhe dizia que amãoestavaquebrada.Tambémlhediziaqueomomentocertohaviachegado.

Porémelenãobuscouocoquetel,masfoiatéacozinhaepassouumcafé.Embrulhoucubosdegelonumatoalha,sentou-seàmesa,resfriouamãoebebeu o café. Ele não conseguiria dirigir. Era preciso chamar um táxi.Sentia-se constrangido por sua aparência e cheiro, e se forçou a entrardebaixodochuveiroevestirumaroupalimpaeumterno.Eleligouparaaempresa de táxis, tirou da cama o chefe que conhecia havia anos e que

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queria vir pessoalmente, sentou-se no terraço e esperou. A noite estavaquente.

Entãoascoisassedesenrolaramsozinhas.Otáxio levouaohospital,omédicolhedeuumainjeçãoeoencaminhouàradiografia,atécnicafezaschapaseomandouparaasaladeespera.Eleeraoúnicopaciente,estavasentado sob a luz branca dos tubos de néon numa cadeira de plásticobranca e olhava para o estacionamento vazio. Ele esperava e escrevia,mentalmente,umacartaàesposa.

Demorou uma hora até ser chamado. Havia outro médico ao lado doprimeiro.Eletomouapalavra,explicando-lheaquantidadeeoestadodosossosdamão,dosquaisdoisestavamquebrados,quenãohavianadaaseroperadoouengessado,queumaimobilizaçãofirmeseriasuficienteeque,naverdade,tudodeveriaficarbemnovamente.Elelhecolocouatadurasepediuparavoltaremtrêsdias.Arecepçãoiriachamarumtáxi.

O velho chefe da empresa de táxi, que o havia levado ao hospital,também o levou de volta para casa. Conversaram sobre os filhos. O diaclareoue,quandoeledesembarcou,ospássarostrinavamfeitoamanhãemqueelepreparouaspanquecas. Isso tinhasidoquanto tempoatrás?Trêssemanas?

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Elefoiatéseuescritórioesesentouàmáquinadeescrever.Comela,haviaescritocartas,ensaioselivros,atéquelheforadestinadaumasecretáriaàqual podia ditar. Na aposentadoria, ele deveria se acostumar aocomputador. Mas preferiria ter ao lado a velha secretária ou parar deescrever.

Escreveràmáquinanãoeraalgofamiliar,eelesesentiaespecialmentedesajeitadosemamãodireita.Eraprecisoprocurar letrapor letracomo

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indicador.“Não consigo sem você.Não por causa da roupa; eu lavo, seco, dobro.

Nãoporcausadacomida; façocomprasecozinho.Limpoacasae regoojardim.

“Nãoconsigosemvocêporquesemvocêtudoénada.Ascoisasquefizduranteavidasófizporquetinhavocê.Senãotivesse,nãoteriachegadoalugarnenhum.Desdequenão a tenhomais, estoudefinhandoe, por fim,definheiporcompleto.Felizmentetiveumacidenteemeconscientizei.

“Sintomuitopornãoterlhecontadotudosobreminhasituação.Porterplanejado sozinho como daria fim àminha vida. Por ter cogitado decidirsozinhoomomentodenãosuportarmaisviver.

“Vocêconheceocofrequeherdeidomeupai.Voutrancaragarrafaneleemetê-lo na geladeira. A chave está nesta carta; dessamaneira, não vouconseguir decidir nada sem você. Quando não houver mais saída,decidiremosjuntosquenãohámaissaída.Euteamo.”

Ele trancouagarrafano cofre, colocou-onageladeira,pôsa chaveeacartanoenvelopeeaendereçouaoapartamentodelesnacidade.Esperoupelocarteiroelheentregouacorrespondência.

Malocarteirosaiu,elefoitomadopordúvidas.Suavida,suamorte,nasmãosdela?Eseelanãorecebesseacarta,nãoaabrisse,nãoquisessefazê-lo?Elegostariadeterrelidooquehaviaescrito,masnãotinhafeitoumacópia.De todomodo,haviaumaversãoquasepronta,queele jogara foraporcausadosmuitoserros.Eraprecisoachá-lanocestodelixo.

Aoseposicionardiantedaescrivaninha,viuumachavenagavetaaberta.Pegou-a. Ele tinha se esquecido de que havia uma segunda chave para ocofre.Riueaguardounobolso.

Ele se deitou no sofá do escritório e dormiu o sono que não haviaconseguidoconciliarànoite.Depoisdeduashoras,quandoadornamãooacordou, foi até o lago e se sentou no banco. Se não tivesse viajado, elareceberiaacartaamanhã.Setivesseviajado,poderiademorardias.

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Eleselevantou,tirouachavedobolsoeajogouomaislongequeamãoesquerda conseguiu. A chave brilhou à luz do sol e continuou brilhandoquandoafundounaágua.Algumaspequenasondascircundaramolocal.Olagoficoucalmonovamente.

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JohannSebastianBachemRügen

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N

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ofinaldofilme,eleficoucomvontadedechorar.Mesmosemumfinalfeliz;ofilmenãoterminavacomapromessadeumfuturofeliz,apenas

com uma vaga esperança. Os dois, que estavam destinados um ao outro,haviam sedesencontrado,mas talvez fossem se reencontrar.Osnegóciosdamulherestavamacabados,porémelatentavarecomeçar.

Seusnegócios foramarruinadosporquesua irmãhaviaacabadocomodinheiro. Ela podia tentar recomeçar porque o pai, um velho rabugento,quemuitasvezescuidavamaismaldofilhodelaquebemeemgeralestavacheiodeideiasmalucas,surpreendentementevendeusuacasaelhedeudepresenteofurgãodoqualelaprecisava.Emseguida,paiefilhaestavamnarua, observandoo furgão, ela coma cabeça apoiada em seuombro, e elecomobraçoenvolvendo-a.Elatrabalhavanalimpezadecenasdecrimes,enaúltimacenaopaisepôsaacompanharafilha,demacacãoazul,máscaracirúrgicaecomumaconfiançaquenãonecessitavadepalavras.

A vontade que ele tinha de chorar com finais felizes de filmes surgiacadavezcommaisfrequência.Sentiaopeitoapertado,osolhosumedeciame tinhadepigarrearantesde falar.Masas lágrimasnãovinham.Elebemque gostaria de chorar, não apenas nos finais felizes do cinema mastambémquandosesentiatristepelofimdoseucasamentooupelamortedoamigoousimplesmentepelaperdadassuasesperançaseseussonhos

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devida.Quandocriança,choravaatédormir—elenãoconseguiamais.Aúltimavezquetinhaconseguidochorardeverdadehaviamuitosanos.

Ele tivera uma discussão política com o pai, dessas comuns entre asgeraçõesna época, nas quais os pais sentiamque tudopelo que viveramestava ameaçado, e os filhos se sentiam proibidos de tudo que queriamfazerdeumamaneiradiferenteemelhor.Elecompreendiaerespeitavaadordopaisobreaperdadeummundoconfiáveleamado.Queriaapenasqueopairespeitasseigualmenteseudesejoporumnovomundo.Masopaio xingava de desatinado e inexperiente, arrogante, desrespeitoso eirresponsável,atéquesurgiaavontadedechorar.Elenãoqueriadaressavitória ao pai. Engolia as lágrimas e, embora não conseguisse falar,enfrentavaopai.

Seupaiteriavendidoacasaelhedadoumfurgão,seprecisassedeum?Seupaiteriavestidoummacacãoazul,colocadoumamáscaracirúrgicaeoajudado na limpeza de cenas de crimes? Ele não sabia. O que importavapara o pai e para ele não eram furgões,macacões emáscaras. Seu pai oapoiaria,seeleperdesseoempregoporcausadoseuengajamentopolítico?Ele o ajudaria a recomeçar num novo emprego ou num outro país? Ouachariaqueofilhoestavacolhendooquehaviaplantadoequenãomereciaajuda?

Ainda que o pai o tivesse ajudado, isso nunca aconteceria naquelaconfiançamudaqueexistiaentrepaiefilhanofilme.Eraumpequenofinalfeliznograndefinalvagodofilme.Umpequenomilagre.Lágrimaspodiamescorrerporcausadisso.

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Tinha a intençãodepedir um táxi e trabalhar em casanumartigoque ojornalpublicarianoiníciodasemanaseguinte.Mas,quandosaiudocinema

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e sentiu na rua o ar quente de verão, decidiu caminhar. Pela praça,passando ao lado do museu, ao longo do rio — a animação das ruas osurpreendeu. Ele encontrou grupos de turistas, e muitas vezes velhos emoços seguiam juntos. Um grupo de italianos o comoveu de um modoespecial.Avôeavó,paiemãe,filhosefilhaseprovavelmentetambémseusnamorados e namoradas vieramem suadireção, de braços dados, comopassocurtoe cantandobaixinho,olharamparaeledemaneira simpática,como se o chamassem, convidassem, e passaram antes mesmo de elecomeçar apensarno significadodo chamadoedo convite ede comoerapossívelreagir.Seráqueficosentimentalaoverpaisefilhosjuntos,felizes?

Ele se perguntou omesmoquando tomoumais uma taça de vinho norestaurante italiano da vizinhança. Duas mesas à frente, pai e filhoconversavamanimadamente.Emseguida,seuhumormudou;eleficoucominveja, amargurado, amargo. Não conseguia se lembrar de nenhumaconversa parecida com o pai. Se conversavam com vivacidade, estavamdiscutindosobrepolítica,direitoousociedade.Aconversasóeraamistosaquandofalavamdeamenidades.

Namanhãseguinte,seuhumormudoumaisumavez.Eradomingo,eletomava o café damanhã na sacada, o sol brilhava, omelro cantava e ossinosda igrejatocavam.Nãoqueriaseramargo.Tambémnãoqueriaque,depoisdamortedopai,sobrassemapenas lembranças insípidasouruins.Quandoospaisretornaramdaigreja,eleligouparaeles.Suamãeatendeu,comosempre,ecomosempreaconversaemudeceudepoisdasperguntasmútuassobreatividades,saúdeeotempo.

— Você acha que eu poderia convidar o papai para uma pequenaviagem?

Demorouumtempoatéelaresponder.Elesabiaquehaviapoucascoisasquesuamãedesejavamaisqueumrelacionamentomelhordosfilhoscomopai.Hesitavaporquenãoconseguiareprimiraalegriapelapergunta?Ouporquetinhamedodequeasituaçãoentreelesfosseirremediável?Porfim,

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perguntou:—Emquetipodepequenaviagemvocêestápensando?—PapaieeutemosemcomumgostardomaredeBach.—Eleriu.—

Você se lembra demais alguma coisa? Eu não. Em setembro haverá umpequeno festival Bach emRügen, e estou pensando emdois ou três diascomalgunsconcertosealgunspasseiosnapraia.

—Semminhapresença.—Sim,semvocê.Novamente suamãe hesitou ao responder. Como se tivesse dado a si

mesmaumempurrão,elafalouporfim:—Queboaideia!Vocêpodeescreverumacartaaoseupai?Tenhomedo

de que, ao telefone, a notícia o pegue de supetão e ele reaja de formanegativa. Embora ele fosse se lamentar em seguida.Masporque corrigirposteriormenteaquiloquevaisermelhorentendidoporcarta?

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Numa quinta-feira em setembro buscou o pai na cidadezinha onde seuspaismoravameondeelehaviacrescido.Oquartonohoteleos ingressospara os concertos estavam reservados. Havia decidido não procurarlugaresenormescomcasarõesimponentesdaviradadoséculo;comoseupai gostava de coisas mais modestas, eles se hospedariam num hotelsimples num vilarejo, lá onde a praia se estende por quilômetros equilômetros.Nasextaàtarde,elesassistiriamàsSuítesfrancesas,nanoitede sábado dois Concertos Brandenburgo e o Concerto italiano, e, nodomingoàtarde,motetos.Eletinhaimpressoosprogramasdosconcertoseosdeuaopaiquandoestavamnaestrada.Alémdisso,haviapreparadooqueperguntariaaopaiduranteaviagem:pelainfânciaepelajuventude,afaculdadeeoinícionaprofissão.Deveriaconseguirfazerissosembrigas.

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—Bom—disseopaidepoisdelerosprogramas,esecalou.Eleestavasentado com as costas retas, as pernas cruzadas, os braços apoiados nosbraços da poltrona e as mãos pendendo diante deles. Era assim que sesentava na poltrona de casa e foi assim que o rapaz viu o pai quando ovisitounotribunalantesdefazeraprovadeconclusãodoensinomédioenumaaudiência.Elepareciarelaxado,acabeçainclinadaeainsinuaçãodeumsorrisoprometiamumaescutaatentaeinteressada.Aomesmotempo,a postura indicava distância; é assim que relaxa quem não confia naspessoasenasituação,éassimqueapoiaacabeçaesorriquemseescondeatrás do sorriso e escuta com muito ceticismo. Desde que flagrou a simesmosentadocomoopai,elesabiadisso.

Ele perguntou pela sua primeira lembrança e o ouviu falar de umuniformedemarinheiro, que o pai havia recebidodeNatal quando tinhatrês anos. Perguntou-lhe pelas dores e pelas delícias da escola, e seu paificoumaisfalante,contandosobreosexercíciosnaeducaçãofísica,asaulasde história nacional e sua dificuldade com as redações, até passar aescrevê-lasseespelhandonosartigosdeumlivroqueeletinhaencontradonoarmáriodopai.Contoudasaulasdedançaedosencontrosdealunosdoúltimoanodoensinomédio,nosquaissebebiacomonasbebedeirasdosgrêmios estudantis e depois dos quais aqueles que se sentiamespecialmenteadultosiamaobordel.Não,elenuncafoi,etambémnahorada bebida participava com apenas metade do entusiasmo. Quando eraestudante universitário, ele havia se recusado a entrar num grêmio,embora seu pai fizesse pressão. Ele queria estudar e encontrar nauniversidade alguma riqueza de espírito. Ele contou de professores dosquaistinhasidoaluno,deeventosaqueassistiraeficoucansado.

—Vocêpodebaixaroencostoedormir.Elebaixouoencosto.— Vou apenas descansar. — Mas não demorou muito para ele estar

dormindo,roncandoeàsvezesatéestalandooslábios.

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Seupai dormindo—elepercebeuquenuncao tinha visto assim.Nãoconseguia se lembrar de brincar com os pais na cama, adormecer ouacordar junto deles quando criança. Os pais passavam as férias sem ascrianças; ele e os irmãos erammandados a avós, tias e tios. Ele tambémgostava disso; as férias eram vividas sempre como uma libertação nãosomente da escola como também dos pais. Olhou para o pai, viu oschumaçosdebarbanoqueixoenasmaçãsdorosto,ospelosquenasciamdasnarinasedasorelhas,asalivanoscantosdaboca,asveiassaltadasnonariz. Além disso, seu pai estava cheirando — um tanto embolorado eazedo. Ficou aliviado porque, com exceção dos beijos de saudação edespedida,nãohavianemnuncahouveracaríciasentreseuspaiseele.Emseguida,perguntou-seseiriaencararocorpodopaicommaiscarinhocasoelastivessemexistido.

Eleabasteceuocarro,eopaiseviroudelado,omelhorqueconseguia,econtinuou dormindo. Estava parado num congestionamento, umaambulânciaabriaocaminhocomogiroscópioeasirene,opaimurmuroualguma coisa,mas não acordou.O sono profundo do pai o irritou; sentiaqueissoexpressavaumaconsciêncialimpa,comaqualseupaihavialevadoa vida demodo presunçoso e com a qual ele o julgara e condenara.Masentão o trânsito passou a fluir, ele circundou Berlim, atravessouBrandemburgo e chegou a Mecklenburg. A paisagem pouco vistosa odeixavamelancólico;anoitecaindo,indulgente.

—Comoomundoébonançoso,epeloanoitecerenvolto,tãofamiliaretão delicado.— Seu pai havia despertado e citavaMatthias Claudius. Elesorriuparaopaiefoicorrespondido.—Sonheicomsuairmã,quandoelaerapequena.Elaestavasubindonumaárvore,cadavezmaisalto,eentãoelacaiunosmeusbraços,levefeitoumapluma.

Suairmãeraafilhadaprimeiraesposadopai,quemorreraaodaràluzequeerachamadana famíliademamãedocéu,a fimdediferenciá-ladasegundamulher, que estava presente na Terra comomamãe. A segunda

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esposa também se tornoumãe da sua irmã; os dois sempre se sentiramtotalmenteirmãos,nuncameios-irmãos.Masàsvezeseleseperguntavaseo amor especial do pai pela sua irmã era uma extensão do amor pelaprimeira mulher. A noitinha, o sorriso, o sonho compartilhado comoconfissão de uma saudade e sinal de confiança— ele pensou que podiaperguntaraopai.

—Comoerasuaprimeiraesposa?Opainãorespondeu.Elespassaramdoiníciodanoiteparaaescuridão,

nãosendopossívelenxergarseurostoe interpretá-lo.Elepigarreou,masnãodissenada.Quandoofilhojáhaviadesistidodaresposta,opaifalou:

—Ah,nãomuitodiferentedamamãe.

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Na manhã seguinte ele acordou cedo. Estava deitado na cama e seperguntou se seu pai havia fugido da resposta ou se não conseguia falarmaisdaprimeiraesposadoquetinhadito.Teriafundidoasduasmulheresem sentimentos e pensamentos por não conseguir aguentar a tensão delembrar,sentirafalta,esquecer?

Essas não eram questões para serem feitas durante o café damanhã.Eles estavam sentados na varanda com vista para o mar. O pai lhetransmitiu lembranças da mãe, com quem havia acabado de falar aotelefone, quebrou a casca do ovo, cobriu metade de um pãozinho compresunto e a outra com queijo e comeu num silêncio concentrado. Apósterminar,leuojornal.

O que ele e a mãe conversaram ao telefone? Será que apenasinformaramcomo tinhamdormidoe comoestavao tempoaqui e lá?Porque ele a chamava de mamãe, embora nenhum dos filhos a chamasseassim?Estariainteressadonojornalousóseescondiaatrásdele?Aviagem

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comofilhooconstrangia?—Acreditoquevocêdevaacharbomqueogoverno...Issosoavacomoseopaiquisesseabrirsuashabituaisdiscussõessobre

política.Elenãoodeixouterminardefalar.—Hádiasnãoleioojornal.Sónasemanaquevem.Vamosàpraia?—O

pai insistiu em terminar de ler o jornal,mas não tentoumais envolvê-lonumadiscussão.Porfim,eledobrouojornaleocolocousobreamesa.—Vamos?

Elesforamàpraia,opaideterno,gravataesapatospretos,eledecamisaejeans,ostênisamarradospeloscadarçosjogadossobreoombro.

—Naviagem,vocêfaloudauniversidade...Oqueaconteceudepois?Porquevocênãoprecisouiràguerra?Qualfoiomotivoparavocêterperdidoocargodejuiz?Vocêgostavadeseradvogado?

— Quatro perguntas de uma só vez! Naquela época, eu já tinha aarritmianocoraçãoquetenhoatéhoje;elamesalvoudaguerra.Ocargodejuizeuperdiporqueorientei juridicamenteaIgrejaConfessional. Issoeraumafontede irritaçãoparaopresidentedotribunalregionalassimcomoparaaGestapo.Entãometorneiadvogadoecontinueiaorientara igreja.Meussóciosnoescritóriomedeixaramàvontade;eumalmeenvolviacomos assuntos advocatórios autênticos de contratos, sociedade, hipotecas etestamentos,eraramentefuiaotribunal.

— Li o texto que você escreveu em 1945 noTageblatt. Nada de ódiocontra os nazistas, nada de acerto de contas, nada de compensação,superaçãoconjuntadasurgências,construçãoconjuntadascidadesevilasdestruídas, aproximação comos refugiados... Por que tão conciliador?Osnazistasfizeramcoisasmás,eusei,maselesforamresponsáveisporvocêperderseuemprego.

Seguiamdevagarpelaareia.Opainãomostravaindíciosdequeiriatiraros sapatos e as meias e arregaçar a calça, e continuava avançandopesadamente passo a passo. Para ele, tanto fazia que, nesse ritmo, não

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chegariam ao fim da praia longa e clara e ao cabo Arkona,mas— dissotinha certeza—não era assimpara o pai, que sempre traçava objetivos,tinhaplanosepediuinformaçõessobreocabonocafédamanhã.Emtrêshoras,elesdeviamestardevoltaaohotel.

Maisumavezelequeriadesistirdeesperarporumaresposta,quandoseupaidisse:

—Vocênãofazideiadecomoéquandosuavidasaidostrilhos.Nessashoras,omaisimportanteéquetudovolteaolugar.

—Ojuizdotribunalregional...—...mecumprimentouamistosamentenooutonode1945,comoseeu

estivessevoltandodeumasfériaslongas.Elenãoeraummaujuiznemummau presidente. Ele tinha saído dos trilhos como todos nós e estavaaliviadopelacoisatodaterpassado.

Eleviuasgotasdesuornatestaenastêmporasdopai.— Você sairia dos trilhos se andasse descalço e tirasse o terno e a

gravata?—Não.—Eleriu.—Talveztenteamanhã.Hojegostariademesentar

emfrenteaomareobservarasondas.Quetalaqui?—Elenãodissesenãoqueria ou não podia mais. Arregaçou as pernas da calça para nãoprenderemnosjoelhos,sentou-sedepernascruzadasnaareia,olhouparaomarenãofaloumaisnada.

Ele se sentou ao lado do pai. Quando se libertou da sensação de quetinham de ficar conversando o tempo todo, apreciou a vista do martranquiloeasnuvensbrancas,avariaçãoentresolesombra,oarsalgado,oventosuave.Nãoestavanemquentenemfriodemais.Eraumdiaperfeito.

— Como assim você leu meu texto de 1945? — Essa foi a primeirapergunta que o pai lhe dirigiu desde que saíram; ele não conseguiuperceberseeradesconfiançaousimplesmentecuriosidade.

—FizumfavorparaumcoleganoTageblatteelemeenviouumacópiado texto. Suponho que ele deva ter pesquisado no arquivo para ver se

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encontravaalgoquemeinteressasse.Seupaiassentiu.—VocêtinhamedoquandoorientavaaIgrejaConfessional?Seu pai descruzou as pernas, esticou-as e se apoiou nos cotovelos. A

posição parecia desconfortável e provavelmente o era, porque depois deumtempoeleseaprumoudenovoevoltouacruzaraspernas.

—Durantemuitotempotiveaintençãodeescreveralgosobreomedo.Masnaaposentadoria,quandotivetempo,nãoofiz.

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Oconcertocomeçavaàscinco.Aoestacionaremàsquatroemeiadiantedocastelo, em cujo salão o evento ocorreria, a maioria das vagas estavadisponível. Ele sugeriu passear pelos jardins do palácio até o começo daapresentação.Masseupaiinsistiuemsesentarnaprimeirafileiradosalãovazioeaguardar.

—EssaéaprimeiravezqueRügenorganizaumfestivaldeBach.—Aspessoasprecisamprimeiroseacostumar,issovaleparatudo.Elas

também tiveramprimeiro de se acostumar àmúsica deBach. Você sabiaqueBachfoidescobertoetocadonoséculoXIXporMendelssohn?

OpaicontousobreBacheMendelssohn,dacriaçãodasuítecomoumacombinação de danças no século XVI, do surgimento do nome partita aoladodesuítenoséculoXVII,dassuítesepartitasdeBachcomosuasobrasespecialmentesuaves,dasversõesanterioresdealgumassuítesnoPequenolivro de Anna Magdalena Bach, do surgimento das Suítes francesas, dasSuítesinglesas edaspartitas entre1720e1730,das trêsSuítes francesasemtonsmenoreseastrêsemtonsmaioreseseusdiferentesmovimentos.Ele falava animadamente, estava contente pelo seu conhecimento e pelaatençãodofilho.Reforçouoquantoestavafelizpelamúsica.

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Umjovempianista,doqualnempainemfilhotinhamouvidofalar,tocoucom uma fria precisão. Como se os sons fossem algarismos, como se assuítes fossem contas. E ele fez uma reverência igualmente fria diante dopequenopúblicodepoisdaapresentação.

—Eleteriatocadocommaiscoraçãodiantedeumpúblicomaior?— Não, na opinião dele é assim que se toca Bach. Ele considera

sentimental a maneira como ouvimos Bach. Mas isso não é incrível?Nenhuma interpretaçãopodeafetarBach,nemmesmoessa.Nemmesmoquandoéusadocomotoquedecelular.Estousentadonobonde,escutoumtelefone,eaindacontinuasempresendoBachesempreébom.

Opaifalavacomardor.Nopercursodevoltaaohotel,elecomparouasinterpretações das Suítes francesas por Richter, Schiff, Fellner, Gould eJarrett,eofilhotantoseimpressionoucomoconhecimentodopaiquantoestranhou a torrente de fala, que— sem interrupção, sem reafirmaçõespara verificar se as explicações eram de interesse, sem convite a umquestionamentoouumcomentário—nãoparavade jorrar. Era como seestivesseescutandoummonólogo.

Continuou assim no jantar. O pai passou da interpretação das Suítesfrancesasàsmissas,oratóriosepaixões.Quandoofilhovoltoudobanheiro,após uma longa pausa, a torrente de fala havia secado. A vivacidade, aalegria,ocalordopaitambémdesapareceram.Ofilhopediuumasegundagarrafa de vinho tinto e estava preparado para ouvir uma observaçãocríticadopaisobreluxoeexagero,masesteaceitoudebomgradotersuataçaservida.

—DeondevemseuamorporBach?—Quepergunta!Ofilhonãodesistiu.—ExisteummotivoparaalguémgostardeMozart,outrodeBeethoven

eumterceirodeBrahms.EumeinteressoporsaberporquevocêgostadeBach.

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Mais uma vez o pai estava sentado com as costas retas, as pernascruzadas, os braços apoiados nos braços da cadeira e asmãos pendendodiantedeles,acabeçainclinadaecomasugestãodeumsorriso.Eleolhavaparaovazio.Ofilhoobservouorostodopai,atestaaltasobocabeloaindacheioegrisalho,asrugasprofundassobreonariz,eentrenarizecantosdaboca,osossosmalaresforteseasbochechasflácidas,oslábiosfinos,abocacansada e o queixo proeminente. Era um rosto bonito, o filho enxergavaisso,mas não conseguia ver por trás dele, não sabia quais preocupaçõestinhamcriadorugastãoprofundasnatesta,porqueabocaestavacansada,porqueoolharnãosustentavanada.

—Bachme...—Elebalançouacabeçaerecomeçou.—Suaavóeraumamulher caprichosa, radiante, e seu avô, um funcionário público muitoconsciente,nãolivrede...

Maisumavezeleparoudefalar.Quandogaroto,ofilhotinhavisitadoaavóalgumasvezesnoasilo juntodopai;elaestavasentadanacadeiraderodas,nãofalava,edeumaconversaentreopaieomédicoeleselembravade ter ouvido a expressão depressão senil. Do avô, ele não guardavarecordações.Porqueopainãoconseguiafalarsobreosprópriospais?

— Bach concilia os opostos. O claro e o escuro, o forte e o fraco, opassado... — Ele deu de ombros. — Talvez tenha sido apenas porqueaprendipianocomBach.Durantedoisanos,nãopudetocarnadaalémdeestudos,edepoisoPequenolivroacabousendoumpresentedoscéus.

—Vocêtocavapiano?Porquenãotocamais?Quandofoiqueparou?—Euquisvoltarateraulasquandoestivesseaposentado.Masacabou

nãodando.—Ele se levantou.—Vamosdarumavoltanapraia amanhãdepoisdocafé?Achoquemamãecolocouumacalçaadequadanamala.—Ele colocouamãoporum instante sobreoombrodo filho.—Boanoite,meugaroto.

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6

Maistarde,aoselembrardaviagemcomopai,osábadoseresumiaacéuemarazuis,areiaerochas,florestasdefaiasepinheiros,camposemúsica.

Elessaíramdepoisdocafédamanhã,elenovamentedejeansecomostênis sobre os ombros, seu pai numa calça de linho claro, um pulôveramarradonacinturaesandáliasnasmãos.Quandoaareiaterminou,elessecalçaram.Avançavamnumbomritmo,edepoisdealgumashoras tinhamchegado ao cabo. Não conversavam. Quando perguntava ao pai se elequeria realmente prosseguir ou se preferia dar meia-volta, recebia umacenodecabeçacomoresposta.

No cabo, eles descansaram, novamente sem conversar, chamaram umtáxi para o retorno, sentaram-se em silêncio no carro e observaram apaisagem.Nohotel, descansaramaté chegar ahorade ir à cidadeparaoconcerto.Asalamagnadaescolaestavacheia,e,sempalavras,paie filhoentraramemsintoniacomaanimaçãocomquesefaziamúsica.

— Estou contente que eles vão tocar oQuarto de Brandenburgo comflautas transversaisenãocomflautasdoces—foioúnicocomentáriodopai.

Nohotel,fizeramumlanchelevebemtarde,torceramparaqueotempododiaseguintefossebom,planejaramparadepoisdocafédamanhãumaexcursãoatéasfalésiasbrancasedesejaramboanoiteumaooutro.

Ele levouagarrafadevinhopelametadeparaoquartoesesentounasacada.Estaracompanhadopelopaihaviasidosilenciosocomootrabalhoemconjuntodepaiefilhanofimdofilme.Masaimpressãoeramaisdeumcessar-fogo sempalavras que de confiançamuda; seu pai não queria seracuadonuncamais,esim ficarempaz,eeleo tinhadeixadoempaz.Porquesuasperguntasoacuavam?Porqueelenãoqueriaexporseu interior,nemmesmo para o filho? Porque em seu interior, cujas portas e janelasnuncahaviaaberto, tudoestavaressecadoemorto,eelenãosabiaoque

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seufilhoqueria?Porqueelecresceuantesdeasdescobertaspsicanalíticase psicoterapêuticas se tornarem algo corriqueiro, sem saber comoexpressaroquevinhadointerior?Porqueele,independentementedoquefizeraoudoquelheacontecera,enxergavatamanhacontinuidadeentreosdoiscasamentoseentreasatividadesprofissionaisantesedepoisde1945quenaverdadetudoerasempreamesmacoisaenãohavianadaasedizerarespeito?

Ele voltaria a falar com o pai na manhã seguinte. Esperar por umaconfiança muda era demais. Também não precisava esperar por umaconfiançarepletadepalavras.Maselequeriaalcançá-lo.Depoisdamortedopai,elequeriatermaisqueumafotosobreaescrivaninhaelembrançasdasquaisgostariadeabrirmão.

Ele se lembroudas tentativas impacientes,desajeitadas,dopai em lheensinar anadar, dospasseiosmonótonos, semalegria, que ele faziaduasvezes por ano com ele e o irmão no domingo, depois da igreja, dasperguntas sobre o desempenho na escola e na universidade, dastorturantes discussões sobre política, da irritação do pai quando ele seseparou, a primeira separação na família. Ele não encontrou nenhummomentofelizdoqualpudesseselembrar.

Nãohavianadaentreeleeopai,nada.Onadalhedeixavatãotristeque,na cama, sentia um aperto no peito e seus olhos umedeciam. Mas nãochorou.

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ApenasquandoasfalésiasbrancasestavamàvistaseupailhedissequejáestiveraemRügennopassado.Aprimeiraveznaviagemdenúpciascomaprimeiraesposaeasegundanamesmaviagemcomasegundamulher.Odestino de ambas era a Hiddensee, e o desvio até as falésias teria sido

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muitograndenasduasvezes.Eleestavacontenteemfinalmentevê-las.Noalmoço,eleperguntou:—Quaismotetosserãocantadoshojeàtarde?Ofilhoselevantouebuscouoprograma:Fürchtedichnicht, ichbinbei

dir; Der Geist hilft unser Schwachheit auf; Jesu, meine Freude; Singet demHerrneinneuesLied.*

—Vocêconheceasletras?—Asletrasdosmotetos?Vocêasconhece?—Sim.—Detodososmotetos?Detodasascantatas?— Existem centenas de cantatas e poucos motetos; quando

universitário, euos canteino coro. “Fürchtedichnicht, ichbinbei dir, ichstärke dich, ich helfe dir, ich erhalte dich durch die Hand meinerGerechtigkeit.”**Umabelaletraparaumestudantededireito.

—Seiquevocêvaitododomingoàigreja.Porcostumeouporrealmenteacreditar? — Sabia que estava fazendo uma pergunta delicada. O paidescobriu com pesar que os três filhos não queriam sabermais nada daIgrejaainda jovens,porémapenasdeuaentenderpelorostoaflitocomoqualselevantavanasmanhãsdedomingodamesadocaféeiaàigrejasemeles.Nuncahaviaconversadosobrereligiãocomosfilhos.

Seupaiserecostou.—Acreditaréumaquestãodecostume.—Torna-seumcostume,masnãocomeçaassim.Comovocêcomeçoua

acreditar?— Essa era uma questão ainda mais delicada. A mãe sugeriucerta vez que o pai, que cresceu sem religião, converteu-se quandouniversitário.Mas ela não falou nada sobre como isso aconteceu e o paitambémnuncatocounoassunto.

Ele se recostou ainda mais, as mãos seguravam com firmeza asextremidadesdosbraçosdacadeira.

—Eu...Eusempretiveaesperança...—Eleolhouparaovazio.Depois

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balançoudevagaracabeça.—Vocês têmdedescobrirporsipróprios.Senãoforporvocêsmesmos...

— Converse comigo. Mamãe sugeriu certa vez que você se converteuquandoeraestudante.Essedeve tersidoomomentomais importantedasuavida.Comopodeocultarissodosseusfilhos?Vocênãoquerqueagenteo conheça?Que saibamos o que é importante para você e por quê?Vocênãopercebeoquantoestamosdistantes?Achaquefoiapenasaprofissãoque levou sua filha a São Francisco e seu primogênito a Genebra? Porquantotempoaindaqueresperaratéconversarcomagente?—Eleestavaficandocadavezmaisnervoso.—Vocênãoentendequeosfilhosqueremmaisdopaiqueumcomportamentoponderado,umsilênciodistanteeumadiscussão eventual sobre alguma questão política que amanhã já estaráesquecida?Vocêestácomoitentaedoisanoseumdiaestarámortoetudooquevaimerestardevocêseráaescrivaninhaquegostodesdecriançaequemeus irmãos ainda pequenos diziam que eu poderia ficar. Sim, e àsvezesvoumeflagrarsentadodojeitoquevocêestásentadoagora,porquequero ter tão pouco contato commeu interlocutor quanto você quer tercomigoagora.—Seumaiordesejoeraselevantareirembora.

Ele se lembrou de uma cena da infância. Devia estar com dez anosquando trouxe uma gatinha preta para casa que os irmãos e os amigosqueriam afogar no rio junto de toda a ninhada. Ele cuidou da gata,adestrou-aparaserhigiênica,alimentou-a,brincoucomela,amou-a,eseupai,quenãogostavadela,tolerava-a.Certanoite,porém,quandoafamíliaestava sentada à mesa jantando e a gata pulou sobre o piano, o pai selevantou e a varreu comummovimentoostensivodobraço, como se elafossepoeira.Elesentiucomoseopaioestivessevarrendoesesentiutãoferidoeconfusoqueselevantou,pegouagataesaiudecasa.Masaondeir?Apóstrêshorasnofrio,eleestavadenovoemcasa,opailheabriuaportaemsilêncio,eficarfrenteafrentecomelefoitãoruimquantoservarrido.Depoisdepoucassemanas,agatacomeçouasofrerdeasmaefoidoada.

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Opaiolhouparaele.—Achoquevocêsmeconhecem.Aconversão...Nãofoicomonocasodo

jovemMartinhoLutero,quandoumraioacertouumaárvorepróximaaele.Vocênãoprecisapensarqueestouescondendoalgotãodramático.—Emseguida, ele consultou o relógio. — Eu deveria descansar um pouco.Quandoprecisamossair?

8

Ele dividia com o pai o amor pela música de Bach, mas sempre seinteressou apenas pela música mundana. Seu Bach era o das VariaçõesGoldberg, das suítes e das partitas, daOferendamusical e dos concertos.Quandocriança,eleassistiracomospaisàPaixãosegundosãoMateuseaoOratóriodeNatal, tinhaseentediadoeaprendidoqueamúsicaespiritualdeBachnãoeraparaele.Seosmotetosnãofizessempartedaprogramaçãodaviagemcomopai,nuncanempensariaemouvi-los.

No entanto, sentadona igreja, escutando amúsica, ela o comoveu. Elenão entendia as letras, e, comonãoqueria se dispersar damúsica comaleitura, tambémnãoacompanhavaoprograma.Queriadegustaradoçuradamúsica. Para ele, doçura nunca tinha combinado com Bach e, em suaopinião,ninguémteriaideiadecombiná-lacomBach.Eradoçura,porém,oque sentia, às vezes dolorosa, às vezes arrebatadora, profundamenteconciliadanoscorais.EleselembroudarespostaqueopaideraàperguntasobreporquegostavadeBach.

No intervalo, eles foram para a frente da igreja e observaram amovimentação da tarde de domingo no verão. Turistas passeavam pelapraça ou estavam sentados nas mesas de cafés e restaurantes, criançascorriamaoredordafonte,oarestavaimpregnadopelaconfusãodevozesepelocheirodelinguiçasgrelhadas.Omundonaigrejaeomundoforadela

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nãopoderiamsermaisopostos.Masissonãooirritava.Eletambémestavaconciliadocomessaoposição.

Novamenteelesnãoconversaram,nemnointervalonemnotrajetoatéohotel.Nojantar,opaicomeçouafalarmuitoeexplicouosmotetosdeBach,seu papel em casamentos e enterros, sua apresentação originalprovavelmentecomorquestra,masdesdeoséculoXIXsemela, seu lugarno repertório do coro de meninos de Leipzig. Depois da refeição, o paisugeriuumpasseiopelapraia,entãoelespartiramquandoanoiteestavacaindoevoltaramnaescuridão.

—Não—disseele—,eunãoseiquemévocê.Opairiubaixinho.—Outalvezvocênãogoste.Nohotel,eleperguntou:—Quandoteremosdesairamanhãcedo?—Precisoestaramanhãànoiteemcasaegostariadesairdaquiàsoito.

Podemostomarcaféàsseteemeia?—Sim.Durmabem.Mais uma vez ele se sentou na sacada diante do quarto. Era isso. Na

viagemde volta ele poderia continuar perguntando sobre seus estudos esua profissão. Mas por que deveria? Ele nunca descobriria aquilo quegostariadedescobrir.

Ele havia perdido a vontade de fazer perguntas ao pai. Após muitossilênciosemconjunto,aideiadeumretornoparacasaemsilênciotambémnãolhedavamaismedo.

9

Eles não foram em silêncio absoluto. Havia as placas da estrada queindicavamospontosturísticos,sobreosquaisopai tinhaumalembrança

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ou uma explicação a dar. Ou ocasionalmente surgiam avisos de trânsito,anunciandocongestionamentosetrânsitolentoouumcavalonapista,eopaiconfirmavaqueissonãolhesdiziarespeito.Ouopaipercebiaqueeleandavamaisdevagardiantedeumpostodegasolinaeperguntavaseeraprecisoabastecereeleexplicavaqueestavapensandosedeviapôrgasolinanesseounopostoseguinte.Ouperguntavaaopaiseelequeriabeberumcaféoualmoçaroubaixaroencostoedormir.

Eletratavaopaicomeducação,cortesia,solicitude.Faziaoquetambémfaria caso se sentisse ligado ao pai.Mas não se sentia ligado a ele; o paiestavafrioedistante.Elepensavanaquiloqueoesperavanodiaseguintenojornal,nacoluna,nasériecomperfisenograndeartigosobreareformadodireitoàpensãoalimentícia,quedeviaparaasemanaseguinte.Estariaseu pai, com suas reminiscências, explicações, afirmações e perguntas,tentandoiniciarumaconversa?Issolheeraindiferente,eelepermaneceumonossilábico.

Quandoaindafaltavaumahoraparadeixaropai,elesenfrentaramumatempestade.Acionavao limpadordepara-brisa emmodos cadavezmaisrápidos, e por fimnão estavammais em condições de enfrentar a chuva.Debaixodeumaponte, ele entrouno acostamento eparou.Deumahoraparaaoutra,ocrepitardachuvasobreocarrocessou.Ospneusdosoutroscarrossibilavamnapistamolhada.Foraisso,estavatudoemsilêncio.

—Eupoderia...Ele tinha um CD player no carro, mas nenhum CD. Quando andava

sozinho,trabalhava,telefonavaeditava.Quandoestavacansadoequeriasemanteracordado,o rádiodavaconta.Mas,apósoconcertodeontem,eletinhacompradoumCDcomagravaçãodocorocomosmotetosdeBach.Eleopôsparatocar.

Novamenteelefoitomadopeladoçuradamúsica.Etambémconseguiaentenderfragmentosdaletra.“Tuésminhaporqueestásdiantedemimenãosairásdemeucoração,óminhaluz”—nãofoiassimqueeledisse,mas

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foi assim que sentiu quando estava amando a mulher e sabia que elatambém o amava. “Somos feito a grama, uma flor, folhas caídas, o ventosopra e nada mais há”— como ele conhecia bem essa sensação, tantasvezeselasurgia,detrabalhoatrabalho,dereuniãoareunião,nasuavidacorrida. “Debaixo de seu abrigo estou livre das tempestades de todos osinimigos”—elesesentiaassim,protegidopeloviadutodaestradae livredas trovoadas da tempestade, dessa tempestade e das tempestades queaindaestavamporvir.

Queria fazer uma observação sobre seu contentamento em relação àsletraseolhouparaopai.Eleestavasentadocomosempresesentava,ereto,aspernascruzadas,osbraçosposicionadossobreosbraçosdoassentoeasmãospendendodiantedeles.Lágrimasescorriampeloseurosto.

Primeiro ele não conseguiu desviar os olhos do pai chorando. Emseguida,sentiu-seinvasivo,afastou-oseolhouparaachuva.Opaitambémestariavendoachuva?Achuvaeapistaeoscarrosqueatravessavamumapoçaapósoviaduto, recebendo jorrosd’águaeespirrando-a feito fontes?Ou tudodesapareciapara elepor trásdo véude lágrimas?Não apenas achuva, a pista e os carrosmas tudo o que não levava à continuidade e àconformidade?Seráqueseusfilhos,comsuasmudanças,seusequívocoseseusprotestos,tornaram-notãotristequeelenãoqueriavê-los?“Penaquecrescem”,disseraopaià filha,quandoconheceuasnetasgêmeas,dedoisanos,noaniversáriodesetentaanosdemamãe.

Elesficaramsoboviadutoatéatempestadepassareamúsicaterminar.Opaisecouorostocomolenço.Emseguida,dobrou-ocuidadosamente.Elesorriuparaofilho.

—Achoquepodemosseguir.

Notas:*“Nãotemas,estoucontigo;Oespíritonosfortaleceemnossafraqueza;Jesus,minhaalegria;CantaiaoSenhorumanovacanção.”(N.daT.)**“Nãotemas,porqueestoucontigo,eutefortaleço,euteajudo,eutesustentocomminhamãofiel.”

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(N.daT.)

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Aviagemparaosul

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O

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diaemqueelaparoudeamarosfilhosnãofoidiferentedosoutros.Nodiaseguinte,nãoencontrourespostaquandoseperguntouoquehavia

causadoaperdadoamor.Asdoresnascostasteriamsidotãotorturantes?Ofracassonumasimplestarefadomésticaateriahumilhadotantoassim?Uma discussão com os funcionários a teria machucado tanto assim?Deveria ter sido algo pequeno dessa natureza. Coisas grandes nãoaconteciammaisemsuavida.

Independentemente do que fosse, porém, a perda estava lá. Ela havialevantado o fone para ligar para a filha e combinar o aniversário, osconvidados,olugar,acomida,edesligou.Elanãoqueriafalarcomafilha.Também não queria falar com nenhum outro filho. Não queria ver seusfilhos,nememseuaniversárionemdepois.Emseguida,ela ficousentadadiante do telefone, esperando a vontade de ligar reaparecer. Mas nãoreapareceu.Ànoite,quandoo telefone tocou,elaapenasatendeuporque,senão, os filhos ligariam preocupados para a portaria e os funcionáriosviriamcorrendo.Entãoeramaissimplesmentir,dizerquenãopodiafalar,estavacomvisitas.

Elanãotinhareclamaçõesafazerquantoaosfilhos.Tevesortecomeles.Asoutrasmulheresdoresidencialpara idosostambémlhediziamquantasorte tinha comeles. Comosederambem:umdos filhos, um importante

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juiz, e o outro, um diretor de museu; uma das filhas, casada com umprofessoruniversitário,eaoutra,comumconhecidomaestro!Comoeramatenciososcomela!Vinhamvisitá-la,nãodeixavamqueointervaloentreasvisitasdecadaumfossemuitogrande,ficavamporumaouduasnoites,àsvezes a levavam para casa por dois ou três dias e, no seu aniversário,traziamasfamílias.Elesaajudavamcomadeclaraçãodoimpostoderenda,com o plano de saúde e com os benefícios sociais, acompanhavam-na aomédico e na compra dos óculos e do aparelho de audição. Tinham suasfamílias, suas profissões, suas vidas. E deixavam a mãe participar dissotudo.

Dessa maneira, ela se deitou sentindo ummal-estar, assim como nosdeitamoscomummal-estarnoestômagoeumantiácidoounocomeçodeumresfriadoeumaaspirina,paraacordarnamanhãseguintecomosenadativesse acontecido. Ela não tinha um remédio contramal-estar de amor,mas fezchá,umamisturadecamomilaementa,eestavacertadequenamanhãseguintetudoestariabemdenovo.Masnamanhãseguinteaideiadeverouligarparaosfilhoslheeratãoestranhaquantonanoiteanterior.

2

Elafezocaminhodetodasasmanhãs:passandopelaescolaepelocorreio,farmácia e mercadinho de frutas, através do conjunto habitacional até afloresta, da encosta até a fazenda Bier e voltando. O percurso ofereciaconstantemente a vistadaplanície, que ela amava. Eraplano epodia seratravessadoemumahora.Omédicolhedisseraqueeraprecisocaminhartodososdiasporumahoranomínimo.

Achuvadosúltimosdiascessaraànoite,océuestavaazul,eoar,fresco.Odiaseriaquente.Elaescutouosruídosdafloresta:oventonasárvores,picançosecucos,osgalhosestalandoeofarfalhardasfolhas.Elaprocurou

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porveadoselebres;aquieraminúmerosedestemidos.Gostavadoaromadafloresta;depreferênciamolhadadechuvaeaquecidapelosol.Mashaviaalguns anos não conseguia mais sentir cheiros. O olfato simplesmentedesapareceu certo dia, assim como o amor aos filhos. Um vírus, disse omédico.

Com o olfato também se foi o paladar. Comer nunca tinha sidomuitoimportanteparaela,eofatodenãoconseguirmaisreconhecergostosnãoeraruim.Ruimeranãopodermaissentiroaromadanatureza,nãoapenasda floresta mas também das árvores frutíferas em flor, das flores nassacadas e no vaso, do pó quente e seco das ruas, sobre o qual caem osprimeirospingosdechuva.

Além disso, ela considerava uma afronta não conseguir mais sentircheiros. Afinal, isso é intrínseco. Assim como ver e ouvir, andar, ler eescrever, fazer contas. Ela sempre tinha funcionado e, de repente, parou.Não porque algo de fora havia acontecido,mas porque seu equipamentoquebrara.Aindaporcimahaviaomedodequepoderiaestarmalcheirosa.Elaaindaselembravadasvisitasàmãenoasilo.

—Elesperderamoolfato—dissera-lheamãedepoisdeelaterfeitoumcomentáriosobreocheirodosoutrosidosos.Seráqueestariafedendoiguala eles? Ela fazia questãode umahigienemeticulosa e usavauma colôniaqueasnetasgostavam.

— Como você está cheirosa, vovó!—Mas nunca se sabe. Usando emexcesso,fede-seaágua-de-colônia.

Além do seu médico, ninguém sabia que tinha perdido o olfato e opaladar. Ela elogiava a comida quando os filhos a levavam para sair, echeirava os buquês que lhe traziam. Quando apontava para as flores nasacada,dizia-lhes:

—Sintamocheiro,sãomaravilhosas!Era assimque ela precisava agir como amor perdido. Amar os filhos,

netosenetasétãointrínsecoquantover,ouvir,cheirar,andar,ler,escrever

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e fazercontas.Recusar-sea telefonar, comohavia feitoontem—não,elanão se permitiria isso de novo. O aniversário seria comemoradonormalmente, asvisitas continuariamnormalmente.Outravez suamentefoiassaltadaporumarecordação.Quandoeragarotinha,perguntouàmãe—quehaviasecasadocomumviúvocomdoisfilhosesogros,cunhadosecunhadas difíceis, exigentes — se ela realmente amava os parentes daprimeiraesposadomarido,dosquaisdeviacuidar.

Suamãehaviasorrido.—Sim,minhaquerida.—Mas...—Oamornãoécoisadosentimento,masdavontade.Elaconseguiraporanosedécadas,eagoranãoconseguiamais.Quando

se quer de verdade, é possível transformar um dever em pendor e umaresponsabilidadeemamor.Porémnão tinhamaisresponsabilidadesobreosfilhosnemdeveresemrelaçãoaosnetosenetas.Nãohavianadaqueelapudessequerertransformaremamor.Nãohaviamotivo,noentanto,paraferir os filhos, que se saíram tão bem, e irritar as outras mulheres doresidencialeseridicularizar.

Começaraopasseioalegre.Ovazio,depoisdeterperdidooamorpelosfilhos,assustou-amastambémadeixoualiviada.Elasesentiavivazassimcomo é possível se sentir vivaz com uma febre alta ou num jejumprolongado—trata-sedeumestadoquedevesersuspensoeque,mesmoassim, fazbem.Sentadanobancoda fazendaBier,percebeucomoestavaficandopesadaecansada,voltandodenovoàTerra.

Será que deveria comemorar o aniversário na fazenda Bier? Quandoaindaeracasada,àsvezesvinhacomomaridodecarroatéaliparapassearetomarumcafé.Erammomentosemqueelefaziaumapausadoescritório,eela,dosfilhos,afimdeconversaremoqueocotidianonãodeixavaespaçopara ser conversado. Até que um dia ele subiu à fazenda com ela paraconfessarquehaviadoisanossedeitavacomsuaassistente.

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Desdeentão,olugarforaampliado,reformado,embelezado.Afazenda,naquelaépocaprecária,tinhaagoraumaaparêncialuxuosa,eseuinteriorcertamentenão lembravamais emnadaa salaonde seumaridoesteveàsua frente, desajeitado, querendo ser consolado pelo seu coração grandedemaisque amavaduasmulheres.A recordação, quedoeudurante tantotempo,nãodoíamais.Tambémagoraelanãosentiaapenaqueomaridohaviaprocurado,masumatristeindiferençaemrelaçãoaessapessoaquesempre escolheu o lado mais fácil da vida achando que estava no maisdifícil, lutando. Ela gostaria de não ter passado pelos últimos anos docasamento. Porém ele fez questão de ficar com ela até o filhomais novoterminaraescola.Noúltimoanoelechegouatéaterminaroromancecomaassistente.Nãotendosidogratificadocomodeveriapelaesposa,começouoromanceseguintecomaassistenteseguinte.

Ela se levantouecomeçouocaminhodevolta. Sim,avidacontinuariacomo se nada tivesse acontecido. Ah, se pudesse parar de viver para osoutrose finalmentevivesseaprópriavida!Mas,para isso,elanãoapenaseravelhademais como tambémnão faziaamínima ideiadequalera suaprópria vida. Enfim fazer o que lhe dava prazer? O único prazer que elahaviaaprendidoforacorresponderàssuasresponsabilidadescomamorerealizarsuasobrigações.Tambémhaviaanatureza.Porémnãopodiamaissentirseuaroma.

3

Namanhãdoseuaniversário,elaseembelezou.Conjuntinhodetricôlilás,blusa branca com bordados brancos e fita branca, sapatos lilases. Acabeleireiraquecostumavafrequentarveioecacheouoscabelosgrisalhos.

—Seeu fosseumsenhor idoso, iriacortejá-la.E, seeu fossesuaneta,mostrariaasenhoracommuitoorgulhoparaminhasamigas.

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Todosvieram.Osquatrofilhos,osquatrogenrosenoraseostrezenetosenetas.OsfilhoseoscunhadosseguiramjuntosnocaminhoparaafazendaBier,easfilhaseascunhadassereuniramnumoutrogrupo;asnetaseosnetos mais velhos conversavam sobre a prova de conclusão do ensinomédio e a faculdade, e os mais jovens, sobre música pop e jogos decomputador. Ela ficouum tempo comcada grupo, primeiro saudada comanimaçãoedepoisdesprezadacomsimpatia,porqueaconversavoltavaaoponto no qual ela a havia interrompido. Isso não a incomodava.Antigamente teria ficado feliz pelo fato de seus entes queridos de tantoscasamentosefamíliassedaremtãobem,masagoraelaseespantavacomsuas conversas.Música pop e jogos de computador? Qual curso prometedarmuitodinheiro?Deve-se tentarusarBotox?Como tirar fériasbaratasnasSeychelles?

Oaperitivofoiservidonoterraço;acomida,numalongamesanumasalaaolado.Depoisdasopa,ofilhomaisvelhofezumdiscurso.Lembrançasdequandoerampequenos,admiraçãopelosucessodelanacomunidadeapósosfilhossaíremdecasa,agradecimentopeloamorquededicouededicaanetosenetas—umpoucoseco,mascomboaintençãoeeloquente.Elaovia diante de si como se ele estivesse conduzindo uma reunião ou umaconsultoria. Seu marido, seu casamento, sua separação não surgiram nodiscurso; isso a fez se lembrar das fotografias da Revolução Russa, queStalinmandou retocar, sumindo com Trotski. Como se ele nunca tivesseexistido.

—Vocêsachamqueeunãoconseguiriasuportaralgumamençãoaoseupai?Queeunãoseiquevocêsseencontramcomeleecomaesposa?Quecomemoraram juntos seu aniversáriode oitenta anos?Vocês apareceramcomelenafotografiadojornal!

— Você nunca mais o mencionou depois que ele saiu de casa. Entãopensamos...

— Vocês pensaram? Por que não perguntaram?— Ela perscrutou os

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filhos com o olhar, um após o outro, e os filhos devolveram o olhar,irritados.—Em vez de perguntar, vocês pensaram. Pensaramque, se eunão o menciono, quer dizer que não suporto que vocês o mencionem.Pensaramqueeu iriadesmoronar?Chorar,gritarou fazerumescândalo?Queeuosproibiriadevê-lo?Queoscolocariadiantedaescolha:oueleoueu?—Elabalançouacabeça.

Novamentefoiafilhamaisnovaquemfalou.—Estávamoscommedodequevocê...—Medo?Vocêsestavamcommedodemim?Sou tão forteapontode

lhesmetermedoe tão fracaapontodepassarmalsemencionassemseupai?Nãofazsentido!—Elapercebeuquesuavozestavamaisaltaemaisaguda.Agoraosnetoseasnetastambémolhavamirritadosparaela.

Omaisvelhoentrounaconversa.—Tudoaseutempo.Cadaumdenóstemsuahistóriacomopapai,cada

umdenósvaificarcontenteemconversarcomcalmacomvocêsobreele.Mas agora não vamos deixar a garçonete esperando mais tempo pelopróximoprato;senãoaprogramaçãodelaficaconfusa.

—Aprogramaçãodagarçonete...Elaenxergouasúplicanorostodafilhamaisnovaeparoudefalar.Não

lhe foidifícil nãodizernada sobrea salada, a carneassadae amussedechocolate.Todosconversavam,eelaprecisavaseesforçarparaentenderoquealguémaoseuladoouàsuafrentelhedizia.Erasempreassimcomelaquandomuitaspessoasconversavam;omédicotinhadadoumnomeaisso,audiçãodefesta,eanotíciadequenãoerapossívelfazernadaarespeito.Elaaprenderaasedirigircomsimpatiaaquemestavaàsuafrente,vezououtra sorria ou mexia a cabeça com complacência, e, ao mesmo tempo,pensavaemoutracoisa.Emgeral,seuinterlocutornãopercebianada.

Antes do café, Charlotte, a netamais nova, levantou-se e bateu com acolher no copo até que todos estivessem prestando atenção. O tio haviafeito um discurso para a mãe e ela queria fazer um para a avó. Todos

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sentados ali, netos e netas, aprenderam a ler com a avó. Não palavras efrases,issolhesforaensinadonaescola,maslivros.Semprequepassavamas férias com ela, a avó lia em voz alta para eles. Ela nunca terminava olivroatéofimdasférias,maserasempretãointeressantequeelesprópriostinhamdelê-loatéofim.Logodepoisdocomeçodaescola,aavóenviavaumpacotinhocommaisumlivrodomesmoautor,queelesprecisavamler,claro.

—Issoeratão legalquetivemosdeconvencerovovôeAnnia fazeramesmacoisa.Muitoobrigada,vovó,porvocênoster levadoà leituraeaoamorpeloslivros!

Todosbaterampalmas,Charlottedeuavoltanamesacomocopo.—Muitosemuitosanosdevida,vovó!—Elabrindoucomaavóe lhe

deuumbeijo.No momento de silêncio, quando Charlotte voltava para seu lugar e

antesdeaconversarecomeçar,elaindagou:—QueméAnni?Perguntou, embora imaginassequedevia se tratarda segundamulher

doseuex-maridoequeaquestãoiriaconstrangerosoutros.—Annaéaesposadepapai.Ascriançaslogopassaramachamaroavô

devovôeAnnadeAnni.—Omaisvelhofaloudemodoobjetivoecalmo.—Aesposadepapai?Vocênãoestásereferindoamim,masàsegunda

esposa de papai? Ou será que já existe uma terceira? — Ela sabia queestavasendodifícil.Nãoqueria,masnãoconseguiaparar.

—Sim,Annaéasegundaesposadepapai.—Anni.—Elapronunciouoicomironia.—Anni.Achoquedevoficar

agradecidaporvocêsnãoachamaremdevovóeatornaremumasegundaavó. Ou será que a chamam às vezes de vovó? — Quando ninguémrespondeu,elainsistiu.—Charlotte,comoé?VocêàsvezeschamaAnnidevovó?

—Não,vovó,chamamosaAnnideAnni.

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—Comoelaé,aAnni,quevocêsnãochamamdevovó?Seufilhocaçulaseintrometeu.—Nóspodemosencerrar,porfavor?—Nós? Não, já que não começamos com isso, também não podemos

encerrar.Fuieuquemcomeçou.—Elaselevantou.—Tambémpossopararcomisso.Voumedeitarumpouquinho.Daquiaduashorasvocêsvêmmebuscardecarroparaochá?

4

Elarecusouasofertasdecompanhiae foisozinha.Ondetinhamficadoasboasintenções?Aomenoshaviaselevantadoeidoembora.Elapreferiatercontinuado. Será que teria conseguido fazer os filhos ficarem fora de si?Fazerojuizergueravozebateropé?Odiretordemuseujogaralouçanochão ou contra a parede? A filha olhá-la nãomais com súplica,mas comódio?

Quando o neto mais velho foi buscá-la, ela não queria irritar nemprovocar mais ninguém. No breve percurso, Ferdinand contou sobre osexames que teria de prestar em poucas semanas. Ela sempre o acharaespecialmente centrado. Agora confessava a si mesma que ele eraespecialmentetedioso.Estavacansada.

Nodiaseguinteàfesta,elaadoeceu.Nadaderesfriadooutosse,doresdeestômagoouproblemasdedigestão.Simplesmenteestavacomumafebrealta,contraaqualnemantitérmicosnemantibióticosajudavam.

—Umvírus—declarouomédico,dandodeombros.Maseleligouparao filhomais velho, que enviou a segunda filha, que devia se ocupar dela.Emiliatinhadezoitoanoseaguardavasuavaganocursodemedicina.

Emiliatrocavaaroupadecama,friccionavaascostaseosbraçosdaavócom álcool mentolado e envolvia as panturrilhas com compressas frias.

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Pelamanhã, trazia suco de laranja espremido na hora; no almoço, maçãralada;ànoite,vinhotinto,noqualtinhabatidoumagema;esemprechádehortelãoucamomila.Elaarejavaoquartováriasvezespordia,váriasvezespordiafaziaquestãodequeaavódessealgunspassospeloquartoepelocorredor.Umavezaodiaenchiaabanheira,erguia-aeacolocavaládentro.Emiliaeraumagarotaforte.

Demorou cinco dias para a febre começar a ceder. Ela não queriamorrer. Mas estava tão cansada que tanto fazia viver ou morrer,convalescer ou continuar doente. Talvez ela até preferisse ficar doente aconvalescer.Amavaasonolênciafebrilcomqueacordavaedaqualsaíadosono e que abafava tudo o que via e ouvia. Mais ainda, transformava obalanço da árvore diante da janela na dança de uma fada, e o canto domelro, no chamado de uma maga. Ao mesmo tempo, ela gostava daintensidadecomaqualsentiaocalordaáguadobanhoeofrescordoálcoolmentolado sobre a pele. Gostava até do calafrio que a assolou algumasvezes nos primeiros dias; ele fazia com que ela sonhasse apenas com ocaloreimpediaqualqueroutropensamentoousensação.Ah,equandoelaseaqueciadeverdade!

Ela rejuvenesceu.As imagenseos sonhos febriseramas imagenseossonhos febris da sua infância. Com a fada e a maga vieram trechos decontos de fadas que ela tanto gostava:Branca de Neve e Rosa Vermelha,Irmãozinho e irmãzinha,Conto de Allerleirauh,A gata borralheira, A belaadormecida.Quandooventosoproupela janelaaberta,elase lembroudarainha, que podia controlar o vento: “Sopre, sopre, ventinho, leve ochapeuzinhodo Joãozinho”—elanão sabiao resto. Jovem, sabiaesquiarbem; num sonho, ela deslizava por uma encosta branca, levantava voo eplanava sobre florestas, vales e cidades. Em outro sonho, tinha deencontraralguém,nãosabiaquemnemonde,sóqueeraemumanoitedeluacheiaecomocomeçavaacançãoquefariacomquesereconhecessem;ao acordar, era como se já tivesse sonhado o sonho quando estava

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apaixonadapelaprimeiravez,eelaselembravadosprimeirosacordesdeumaantigamúsicamuitopopular.Amelodiaaacompanhoudurantetodoodia.Certavez,sonhouqueestavanumbaileedançavacomumhomemsemumbraço,masquea conduziademaneira tãosegurae levecomooutroqueelanãotinhademexeraspernas;elaqueriadançaratéamanhã,mas,antesdeosolnascernosonho,elaacordoucomaverdadeiraalvorada.

MuitasvezesEmiliasesentavaemsuacamaeseguravasuamão.Comosuamãosesentiaacolhida,leve,nasmãosfortesdamoçaforte!Agratidãoporsertãoquerida,tãocuidadaetãoprotegida,porterpermissãoparaserfraca,nãoprecisar falarnemfazernada, levava-aàs lágrimas.Sechorava,só conseguia parar depois de muito tempo; as lágrimas de gratidão setransformavam em lágrimas de tristeza por aquilo que não se realizoucomodeviaterserealizadonavidaeemlágrimasdesolidão.Erabomsercuidada por Emilia. Ao mesmo tempo, ela estava tão sozinha, como seEmilianãoestivesselá.

Quando ficoumelhoreos filhosavisitaram,umdepoisdooutro, foi amesmacoisa.Osfilhosestavamlá,maselaestavatãosozinha,comoseelesnão estivessem. Esse é o fim do amor, pensou. Estar tão sozinha com ooutrocomoseestivéssemossemele.

Emilia ficou; primeiro passou a fazer passeios curtos e depois maislongoscomela,acompanhava-anoalmoçonorestaurantedoresidencialeà noite assistia à televisão em sua companhia. Ela estava sempre ao seulado.

—Vocênãotemdeestudar?Ouganhardinheiro?— Eu tinha um trabalho. Mas seus filhos decidiram que era para eu

deixaroempregoecuidardevocêqueelesmepagariamoqueeuestariaganhandolá.Nãoeraumempregobom,nãovaliaapena.

—Seutrabalhocomigoduraatéquando?Emiliariu.—Atéseusfilhosteremaimpressãodequevocêestábemdenovo.

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—Maseseeuperceberantesdissoquejáestoubemdenovo?—Acheiquevocêgostavadaminhapresença.—Não gostoquandooutraspessoasquerem sabermais que eu como

estoumesentindoedoquepreciso.Emiliaassentiu.—Entendo.

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SeriapossívelafastarEmiliacomgrosserias?Os filhosconsiderariamissoum sinal de que ela ainda estava doente, assim como haviam usado odesenvolvimento da doença para explicar seu comportamento durante oaniversário.Seriapossívelsuborná-laafimdequeelaconvencesseospaisdasuaconvalescença?

—Não—Emiliariu—,comovouexplicaraosmeuspaisquederepentetenho dinheiro? Se fizer de conta que continuo sem, terei de voltar atrabalhar.

Ànoite,elatentoudenovo.—Eunãopoderiadarodinheirodepresenteavocê?—Vocênuncadeunadaaumdenósquenão tivessedadoaosoutros

também.Quandoéramospequenos,nãofazianemumpasseioconoscoquenãofizessecomtodososoutrostambémpelosdois,trêsanosseguintes.

—Issofoiumpoucodeexagero.—Papaisempredizquesemvocêelenãoteriasetornadojuiz.—Apesardisso,foiumpoucodeexagero.Vocêpodeviajarcomigo?Uma

viagem,paraeumesentirmelhor?Emiliaaolhoudesconfiada.—Vocêquerdizerumtipodetratamento?—Querosair.Oapartamentoseparececomumaprisãoevocêcomuma

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vigia. Sintomuito,mas é assime continuaria sendo aindaque você fosseumasanta.—Elasorriu.—Não,éassimapesardevocêserumasanta.Semvocêeunãoteriaconseguido.

—Aondevocêquerir?—Paraosul.—Eunãopossodizerapapaieamamãequevouviajarcomvocêparao

sul!Precisamosdeumdestino,umarotaeasparadas,eelestêmdesaberonde vão chamar a polícia e pedir para nos procurar caso não façamoscontato.Comovocêquerviajar?Decarro?Elesnuncavãopermitir.Talvezseeudirigisse,masnãosevocêdirigir.Quandovocêaindaestavasaudável,eles já pensavam em chamar a polícia para que você fosse convocada,refizesse a carteira, não passasse e não pudesse mais dirigir. Agora quevocêestádoente...

Comespanto,elaouviuaneta.Comoagarotaforteeramedrosa,comotinha uma fixação nos pais. Que destino, que rota, que paradas ela deviaanunciar?

— Não basta dizermos pela manhã onde estaremos à noite? SedissermosamanhãcedoqueamanhãànoiteestaremosemZurique?

ElanãoqueriairaZurique.Tambémnãoqueriairparaosul.Elaqueriair à cidade onde começara a faculdade no início dos anos 1940. Sim, acidadeficavanosul.Masnãoeraosul.Noiníciodoanoenooutonoelaviamuitachuva,enoinverno,neve.Apenasnoverãoerasedutoramentelinda.

Aomenoseraassimqueelaselembravadacidade.Nãovoltavaládesdeafaculdade.Porquenãohouveraoportunidade?Porqueseenvergonhava?Porqueelanãoqueriaacabarcomoencantodoúltimoverão,overãocomoalunosemumbraçoecomoqualeladançounobailedamedicinaenosonhofebril?Eleusavaumternoescuro,tinhametidoamangaesquerdanobolsoesquerdo,conduzia-acomsegurançae levezacomobraçodireitoefoiseumelhordançarinonaquelanoite.Alémdisso,eradivertido,contoudaperdadobraçoaosquinzeanosporcausadeumabombacomosefosse

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uma piada e dos filósofos que estudava como se fossem amigosextravagantes.

Ouseráqueelanuncamaisesteveláporquenãoqueriarelembraradordadespedida?Apósobaile,elealevouparacasaeabeijoujuntoàporta.Osdois se reviram logo no dia seguinte e depois todos os dias até elesubitamente viajar. Era setembro, a maioria dos alunos tinha deixado acidade,elahaviaficadoporsuacausaeenganaraospais,queaaguardavamemcasa,dizendoalgosobreumestágio.Levou-oatéotremeeleprometeuescrever,telefonarevoltarlogo.Porémelenuncamaisdeunotícias.

Emiliaestavanasacadacomospaisaotelefone.Emseguida,relatouqueelesestavamdeacordo,masaguardavamumaligaçãopelamanhã,umanahoradoalmoçoeumaànoite.

—Aresponsabilidadeéminha,vovó,eesperoquevocênãodificulteascoisas.

—Estáquerendodizerparaeunãofugir?Nãomeembriagar?Nãosaircomhomensestranhos?

—Vocêsabeoquequerodizer,vovó.Não,elanãosabia—masnãodisseisso.

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Namanhãseguinte,Emiliacarregavaofardodaresponsabilidadecommaislevezaeestavacontentepelaviagem.Achavainteressanteiràcidadeondea avó viveu com a idade que ela estava nomomento. Durante a viagem,Emilia começou a fazer perguntas: sobre a cidade, a universidade, aorganização do curso, a vida dos estudantes, como moravam e o quecomiam e como se divertiam, se depois da guerra estavam maisinteressados em ter prazer ou ganhar dinheiro, se namoravam muito ecomoeraométodoanticoncepcional.

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—Vocêencontrouovovôduranteocurso?—Jánosconhecíamosdesdecrianças,nossospaiseramamigos.—Issonãosoamuitoemocionante.Queroemoção.TermineicomFelix

porque não queria carregar uma história da escola para a universidade.Umanovaetapaéumanovaetapa.FelixeraOK,masagoraqueromaisqueOK.Liquepodedarcertoquandoospaisarranjamocasamentodosfilhos.Issonãoserianadaparamim.Eu...

—Masnãofoiassim.Nossospaisnãoarranjaramnossocasamento,eleseramamigos.Nósnosvimosalgumasvezesquandocriançasesó.

—Nãosei.Ospaistransmitemmensagensaosfilhos,dasquaisosfilhosnãotêmconsciência.Dasquaisnemospaisprecisamterconsciência.Elessimplesmentepensamqueseusfilhoscombinamporcausadaorigemedodinheiro e que seria conveniente se se casassem. Eles pensam nissoconstantemente, cada vez que veem os filhos juntos. Fazem brevesobservações, alusões, encorajamentos que se prendem feito pequenosanzóis.

E ela continuou. Emilia tinha lidoquenos anos1950as garotas aindaacreditavamquepodiamengravidardeumbeijo.Queoshomenspediamdivórcionanoitedenúpcias,casodescobrissemquesuasesposasnãoerammais virgens. Que os esportes se popularizaram entre as garotas porqueelaspodiamdizerqueohímentinhaserompidoquandopraticavamessaatividade.Quemulheresjovensenxaguavamavulvacomvinagredepoisdarelação para não ficar grávidas, metiam agulhas de tricô no útero paraabortar.

— Fico aliviada por nada disso acontecer mais hoje em dia! Vocês,virgens,nãoficavamcomummedoterríveldanoitedenúpcias?Ovovôfoioúnicohomemcomquemvocêtransounavida?Vocênãotemasensaçãodeterperdidoalgumacoisa?

Elaobservouaneta falar, o rostobonito, liso,osolhosvivos,oqueixoenérgico, a boca que se abria e fechava, diligente, soltando tolice após

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tolice. Ela não sabia se devia rir ou xingar. A geração inteira era assim?Viviam todos exclusivamente no presente, só conseguindo entender opassadodemaneiradeformada?Ela tentou falardaépocadaguerraedopós-guerra, dos sonhos que mulheres jovens e adultas tinham naquelaépoca, dos garotos e homens que elas encontravam, do relacionamentoentre os gêneros. Mas aquilo que contava parecia opaco e insípido, elaprópriapercebeu.Então,começouafalardesimesma.Quandochegouaobeijodepoisdobaile,elaficouirritada—deviaterdeixadoahistóriacomoestudantedeumsóbraçodelado.Porémjáeratardedemais.

—Comoelesechamava?—Adalbert.Depois, Emilia não a interrompeu mais. Ela ouvia, concentrada, e,

quando chegouahoradadespedidanaplataforma, tomouamãodaavó.Intuíaqueahistórianãoterminariabem.

—Oqueseuspaisdiriamseavissemtirandoamãodovolante?—ElasoltousuamãodadeEmilia.

—Vocênuncamaisouviufalardele?—ElereapareceuemHamburgodepoisdealgumassemanas.Masnão

faleimaiscomele.Nãoqueriavê-lo.—Vocêsabeoqueelesetornou?— Certa vez, vi um livro dele numa livraria. Não faço ideia se ele se

tornoujornalistaouprofessorousabe-selámaisoquê.Nãofolheeiolivro.—Qualeraosobrenomedele?—Nãoédasuaconta.—Nãosepreocupe,vovó.Sóqueropesquisaroqueohomemqueamou

efoiamadopelaminhaavóescreveu.Estoucertadequeeleaamavatantoquantovocêaele.ConheceoditadoNow,ifnotforever,issometimesbetterthannever?Éverdade.Domodocomovocêconta,suaslembrançasnãosãosóamargas.Sãodoces.Agridoces.

Elahesitou.

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—Paulsen.—AdalbertPaulsen.—Emiliamemorizouonome.Haviamdeixadoaestradaeseguiamasondulaçõesdeumrionumarua

secundária. Eles caminharam ao longo do rio naquela época? Na outramargem,ondenãohavianemruanemlinhaférrea?Elanãoestavaseguradequereconheceriaorestaurante,ocasteloeacidade.Talvezfosseapenasa atmosfera do rio, da floresta, dasmontanhas e das construções antigasque não havia mudado. Eles gostavam de caminhar, com vinho, pão elinguiçanamochila,nadavamnorioetomavambanhodesol.

Elas logo chegariam. Não fazia sentido adormecer agora. Mas elaadormeceu mesmo assim e acordou apenas quando Emilia estacionoudiante do hotel que havia encontrado de manhã ao pesquisar nocomputador.

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Oqueelaesperava?Ascasasnãoerammaiscinza,masbrancaseamarelas,ocreeatéverdeseazuis.Aslojaseramfiliaisdegrandesredes,eondeelase lembravade restaurantes e bares grandes e pequenoshavia fast-food.Tambémalivraria,queelaamava,faziapartedeumaredeesóvendiabest-sellerserevistas.Aomenosorioaindacorriaatravésdacidadeassimcomono passado, e as vielas eram tão estreitas, o caminho até o castelo tãoíngremeeavistadocastelotãoamplaquantoantes.Sentou-secomEmilianoterraçoevislumbrouacidadeeocampo.

—Eaí?Écomoimaginava?— Ah, filha, me deixe ficar um pouco sentada e observar o lugar.

Felizmentenãoimagineimuitacoisa.Estavacansadaquando jantaramno terraço;assimqueencontraramo

hotelnovamente,elafoilogosedeitar,emborafossemapenasoito.Emilia

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pedirapermissãoparacircularmaisumpouquinhopelacidade,eopedidoasurpreendeuecomoveu.Emilianãoeraindependente?

Apesar de todo seu cansaço, ela não adormeceu. Lá fora ainda estavaclaro e ela conseguia reconhecer tudo com nitidez: o armário de trêsportas, a mesa junto à parede com o espelho em cima, escrivaninha oupenteadeira,deacordocomanecessidade,ambasaspoltronasaoladodaprateleira,sobreaqualhaviaumagarrafad’água,umcopoeumcestocomfrutas,oaparelhodetelevisão,aportadobanheiro.Oquartolhelembravaaquelesnosquaispernoitaracomomaridoquandoaindaoacompanhavaemconferências;eraoquartodeumbomhotel—naquelacidadezinha,omelhorhotel—,mastãofuncionalquenãotinhapersonalidade.

PensounoquartoondeAdalberteelapassaramaprimeiranoitejuntos.Haviaumacama,umacadeira,umamesacombaciaecanecaparaselavar,umespelhoestavapendurado sobreamesae, sobreaporta, umgancho.Erafuncional.Mesmoassim,continhasegredoemagia.Soboolharseveroda gerente, Adalbert e ela haviam se hospedado em dois quartos comcamasde solteironumhotel-fazenda.Apóso jantar, foramaosquartose,embora não tivessem combinado, ela sabia que ele viria. Já sabia pelamanhãetinhatrazidoamelhorcamisola.Vestiu-a.

Será que com Adalbert este quarto também teria personalidade? Nacompanhiadele,elatambémteriaviajadotanto,passadotantasnoitesemhotéis?Comoteriasidoavidacomele?Tambémseriaavidaaoladodeumhomemcommuitasresponsabilidades,queviajavamuitoeficavapoucoemcasa, que tinha casos? Ela não conseguia imaginar a vida com Adalbertdessamaneiramastambémnãoconseguiaimaginardeoutraforma.SentiamedoaopensarnumavidacomAdalbert,umasensaçãocuriosadefaltadechão.Porqueeleadeixouesperando?

Elahaviafechadoajanelaeescutavaapenasosruídosdaruaabafados:o riso sonorodemulheres jovens, a fala barulhenta de homens jovens, ocarroquepercorriadevagaraáreadepedestres, amúsicadeuma janela

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aberta,oestilhaçartilintantedeumagarrafa.Seriaumbêbadoquedeixouagarrafacair?Tinhamedodebêbados,emboraimediatamentelhesdeixassemuitoclaro,comvozfirme,quenãotolerarianadadeles.Narealidade,elapensou, é curioso que insuflar medo nos outros não nos protege de termedodeles.

Quantomaiselapermaneciadeitadaali,pensando,maisacordadaficava.OqueEmiliaestaria fazendo?Quetipodemédicaelase tornariaumdia?Resolutaoucautelosa?Porqueestavasefazendoessasperguntas?Afinal,amava a neta? E como era com os outros netos e netas? Ela deixara otelefonema compulsório domeio do dia e da noite para Emilia e fez umsinalnegativoquandoospaisdanetaquiseram falar comela.Queria serdeixada em paz pela família, isso não havia mudado. Seria melhor queEmiliatambémadeixasseempaz.

Ela se levantou e foi até o banheiro. Tirou a camisola e se olhou. Aspernaseosbraçosmagros,abarrigaeosseiosflácidos,acinturagrossa,asrugasnopescoçoenorosto—não,elanãogostavadesimesma.Nemdasuaaparência,nemdecomosesentianemdecomovivia.Vestiuacamisoladenovo,deitou-senacamaeligouatelevisão.Comquenaturalidadeelesse amavam, homens emulheres, pais e filhos! Ou será que todos apenasjogavamumjogo,noqualumrepresentaalgoaooutro,afimdequeooutrotambém permita que o primeiro mantenha sua ilusão? O jogosimplesmente teria perdido a graça para ela? Ou será que o esforço nãovaliamaisapenapoiselanãoprecisavamaisdeilusõesparaosanosquelherestavam?

Tambémnãoprecisavamaisdeviagens.Viajareraapenasuma ilusão,aindamaisefêmeraqueoamor.Elavoltariaparacasanodiaseguinte.

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Namanhãseguinte,porém,quandoelabateuàsnoveàportadeEmilia,nãohouve resposta, e, quando chegou ao terraço onde era servido o café damanhã, a neta não estava sentada a nenhumamesa. Ela foi à recepção edescobriuqueajovemsenhoritatinhasaídodoestabelecimentohaviameiahora.

—Eladeixoualgumrecado?Não,nãohaviadeixado.Mas,depoisdeumtempo,asimpáticamoçada

recepção veio à mesa do café da manhã e disse que a jovem senhoritaligara, pedindo para informar que chegaria aomeio-dia e buscaria a avóparaoalmoço.

Ela não gostou de ficar presa lá. Queria ter partido às dez, estar naestradaàsonzeeàsquatrodevoltaemcasa.Ficouesperando,então.Osolbatianopátiointernoesobreoterraçoondeeraservidoocafédamanhã,osgarçonsnãoaapressavamnemamandavamaobufê,maslhetraziamdelá seus pedidos. Tomates com muçarela, truta defumada com creme deraiz-forte, salada de frutas com iogurte e mel — depois da perda dopaladar,osdiversospratosaindaerammordidosemastigadosdemaneirasdiferentes.Qual seria a sensaçãoemrelaçãoaosdiferentes filhos enetosapósaperdadoamor,elapensou.Assimcomoconsegui,nofimdascontas,apreciarumpoucoacarnemacia,compacta,datrutaaoladodocremederaiz-fortesuaveebranco,eudeveriaconseguirtambémcomosfilhoseosnetos.Emiliateriaconhecidoumrapaznacidade,ontemànoite,eestariaseocupandodelecomtantaenergiaquantohaviaseocupadodaavóedosdesejosdospais?Sim,ajovemeraenérgica,forte,competente.Aomesmotempo,tinhaumcoraçãoenorme.Elaseriaumaboamédica.

Ela ficou sentada atéque asmesas estivessemprontasparao almoço.Seurostoardia; tinha ficadodebaixodosolescaldantee sequeimaraumpouco. Também estava um pouco confusa quando se levantou, foi àrecepção e se instalou numa poltrona. Adormeceu e acordou comEmiliasentadanobraçodapoltrona,limpandosuabocacomumlenço.

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—Babeienquantodormia?—Babou,vovó,masnãofazmal.Euoencontrei.—Você...—EncontreiAdalbertPaulsen.Foi simples:eleestána lista telefônica.

Tambémseiqueelefoiprofessordefilosofianauniversidadedaqui,queéviúvoequetemumafilhaquemoranosEstadosUnidos.Abibliotecáriadodepartamento de filosofia me mostrou os livros que ele escreveu. Umaprateleirainteira.

—Vamosvoltarparacasa.—Nãoquervê-lo?Vocêtemdevê-lo!Foiporissoqueviemosatéaqui.—Não,nós...—Talveznãosejaconscienteparavocê.Mas,acredite,seuinconsciente

trouxevocêatéaquipararevê-loeparavocêssereconciliarem.—Nóstemosde...—Sim,vocêsdevemsereconciliar.Vocêtemdeperdoaraquiloqueele

lhefez.Deoutramaneira,nemvocênemelevãoficarempaz.EstoucertadequeeleanseiaporissoesónãotomaainiciativaporquevocênãoquissaberdeleemHamburgonaquelaépoca.

—Deixeestar,Emilia.Arrumesuascoisas.Almoçamosnocaminho.—Marqueidevocêsseencontraremàsquatro.—Vocêfezoquê?—Euestavalá,queriasaberseelecontinuavavivo,epenseiquepodia

aproveitar paramarcar um encontro. Ele hesitou um pouco, assim comovocê, mas depois concordou. Acho que ele está feliz por revê-la. Estácuriosoparasaberdevocê.

—Sãoduascoisasdiferentes.Não,filha,essanãofoiumaboaideia.Vocêpode ligar para ele e desmarcar ou eu simplesmente não apareço. Nãoquerovê-lo.

Mas Emilia continuou insistindo. Ela não tinha nada a perder, só aganhar, será que ela não sentia que ainda estava amarga e não podia

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continuar assim, será que ela não compreendia que se existe umaoportunidadedeperdoare fazeralgodebomépreciso iremfrente, seráqueelanãoestavanemumpoucocuriosa,essaeraaúltimaaventuraqueavida lhe proporcionava. Emilia falava e falava até sua avó ficar exausta.Simplesmentenãoconseguiasuportarmaisessagarotatãoconvencidadosseuschavõespsicológicosedasuamissãopsicoterapêutica.Porisso,cedeu.

9

Emiliaseofereceuparalevá-la,maselapreferiupegarumtáxi.Nãoqueriaouvirúltimasrecomendações.Quandodesceuesedirigiuàcasadosanos1960,semmaioresatrativos,estavamuitotranquila.Eleadeixaraporumacasadessas?Podiaatétersetornadoumprofessor—porémtambémtinhaviradoumfilisteu.Ouseráquesemprehaviasido?

Ele abriu a porta. Ela reconheceu seu rosto, os olhos escuros, assobrancelhasgrossas,ocabelobasto,agorabranco,onarizafiladoeabocalarga. Era mais alto do que ela se lembrava, magro, e o terno, mangaesquerdanobolsoesquerdo,estavapenduradoemseusossoscomonumcabide.Eleesboçouumsorriso.

—Nina!—Nãofoiminhaideia.MinhanetaEmiliaachouqueeudevia...— Venha. Você pode começar me explicando por que não quer estar

aqui.Elefoinafrenteeelaoseguiuatravésdeumcorredoredeumquarto

cheio de livros até o terraço. A vista passava por árvores frutíferas egramadosatéchegaraumaextensaformaçãodemontanhascomflorestas.Eleviucomoelaestavaespantada.

—Eutambémnãogostavadacasaatéchegaraoterraço.—Ofereceu-lheapoltrona,serviucháesesentoudiantedela.—Porquevocênãoquer

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estaraqui?Ela foi incapaz de decifrar o sorriso dele. Desdenhoso? Constrangido?

Compadecido?—Nãosei.Aideiaderevê-loalgumdiamepareciainsuportável.Talvez

elatenhasetornadoumhábito.Maseuatinha.—Comosuanetachegouàconclusãodequevocêqueriamerever?— Ah — ela fez um movimento com a mão, como se estivesse

descartandoalgo—,euconteiaeladonossoverão.Minhanetatinhaideiastão absurdas sobre como era a vida e o amor naquela época que nãoconseguimesegurar.

—Oquevocêcontoudonossoverão?—Elenãoestavamaissorrindo.—Doquevocêquersaber?Vocêestavapresentenobailedamedicina,

nobeijosobaportaenoquartonohotel.—Ela ficou irritada.—Evocêestavanaplataformadaestaçãoesubiunotrem,foiemboraenuncamaisdeunotícias.

Eleassentiu.—Porquantotempovocêficouesperandoemvão?—Não seimaisquantosdias e semanas foram.Umaeternidade,disso

aindamelembro,umaeternidade.Eleolhouparaelacomtristeza.—Nãoforamnemdezdias,Nina.Depoisdedezdiaseuvolteiesoube,

pelasuasenhoria,quevocêhaviasemudado.Umrapaztinhavindobuscarvocê,colocadosuascoisasnocarroevocêspartiramjuntos.

—Vocêestámentindo!—Elafaloucomumtomrude.—Não,Nina,nãoestoumentindo.—Vocêquerqueeupercao chão sobmeuspés?Queeupercaminha

razãoenãoconfiemaisnasminhaslembranças?Queeuenlouqueça?Comovocêécapazdedizeressascoisas!

Eleserecostoue,comamão,alisouorostoeacabeça.—Vocêlembraparaondeeufuinaquelaépoca?

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—Não, nãome lembro.Mas lembro que você nãome escreveu e nãotelefonoueque...

—FuiaumcongressodefilosofiaemBudapesteedelánãoerapossívelligar nem escrever para você. Foi durante a Guerra Fria, e, como eu nãopodiaestarlá,tambémnãopodiamandarnotícias.Euhaviaexplicadotudoavocê.

— Ainda lembro que você fez uma viagem, da mesmamaneira comopoderianão ter feito.Mas você era assim: tinha sua filosofia, em seguidanãovinhanada,depoisvinhamseusamigosecolegasedepoiseu.

—Issotambémnãoconfere,Nina.Ofatodeeu,naquelaépoca,trabalharfeito um alucinado na dissertação era porque queria terminá-la logo,encontrar um trabalho e me casar com você. Você queria se casar, issoestava claro, e o rapaz de Hamburgo estava sempre um passo à frente.Vocêsnãoseconheciamda infância?Suas famíliasnãoeramamigaseeleeraassistentedoseupai?

— Tudo o que você está dizendo é mentira. Meu pai o orientou nosestudos e na formação prática porque gostava dele, mas assistente, não,meumaridonuncafoiassistentedomeupai.

Eleolhouparaelacansado.— Você estava com medo de sair do seu mundo burguês para meu

mundo empobrecido? Não receber comigo o que estava acostumada e oqueprecisava?EuestavadiantedacasadosseuspaisemHamburgo...Foiisso?

—Quepetulância,metransformarnumamocinhaburguesamimada?Euteamava,vocêestragouissoesimplesmentenãoquismaissaber.

Eleficouemsilêncio,virouacabeçaeseuolharpassousobreoscamposesefixounasmontanhas.Oolhardelaseguiuodele,eviuovelhaspastandonocampo.

—Ovelhas!— Eu as estava contando. Você se lembra de como eu podia ficar

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irritado? Provavelmente também te assustei com isso. Ainda posso ficarirritado,econtarovelhasajuda.

Elatentou,emvão,lembrar-sedosacessosdeiradele.Seumarido,sim,seumarido conseguia estremecê-la com sua cólera gelada. E a levava aocompletodesesperocasosemantivessenervosopordias.

—Vocêgritoucomigo?Elenãorespondeu.Emvezdisso,perguntou:— Você me conta sobre sua vida? Sei que é divorciada; quando seu

marido fezoitentaanos,vio retratodeleno jornal comoutramulher.Osfilhosdeletambémestavamnafoto.Sãoseus?

—Vocêquerouvirqueminhavidadeuerrado?Quenaquelaépocaeudeviateresperadoporvocê?

Eleriu.Elaselembroudequegostavadoseurisosolto,transbordante,equeaomesmotempoissoaassustava.Percebeuqueelenãoestavarindoapenas pela pergunta; ele desanuviava a tensão da conversa. Mas o quehaviadeengraçadonasuapergunta?

—Umavezescreviqueasgrandesdecisões,asdecisõesvitais,nãosãoverdadeirasoufalsas,poisapenasvivemosdiferentesvidas.Não,nãoachoquesuavidatenhadadoerrado.

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Ela contou.Deixaraosestudosporqueomaridoprecisavadela.Ele tinhaconseguido um cargo de diretor médico, embora não tivesse a livre-docência— e era esperado que a conseguisse rapidamente. Além disso,assumiraachefiadeuma importanterevistaespecializada.Elaescreviaerevisavatextosparaele.

— Eu era boa. O sucessor de Helmutme ofereceu um trabalho comoassistente de redação. Mas Helmut respondeu a ele que isso tinha de

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esperaratéeumetornarumaviúvaalegre.Entãovieramos filhos.Chegaramemrápidasucessãoe,senãotivesse

havidocomplicaçõesnoquarto,seriamaindamais.— Você tem uma filha. Não sei como vocês fizeram,mas com quatro

filhoseraimpossívelpensaremretomarosestudos.Eueraocupadíssima.Mastambémfoibomverascriançascrescendoetomandoseuscaminhos.Omaisvelhoéjuiznotribunalfederal,osegundoédiretordeummuseu,easmeninassãodonasdecasaemãescomoeu,masumaécasadacomumprofessoruniversitário,eaoutra,comummaestro.Tenhotrezenetos.Vocêtemalgum?

Elebalançouacabeça.— Minha filha não é casada e não tem filhos. Ela tem um pouco de

autismo.—Oquesuamulherfazia?—Elaeraquasetãoaltaemagraquantoeu.Escreviapoemas,poemas

maravilhosos, loucos, desesperados. Eu amo os poemas, embora muitasvezesnãooscompreenda.Tambémnuncacompreendiadepressãocontraaqual Julia lutoudurante todaavida.Nãoseioqueadisparoueoqueaencerrou,sehaviaumritmodosolouda lua,seaquiloquecomíamosoubebíamostinhaalgumaimportância.

—Maselanãosesuicidou!—Não,elamorreudecâncer.Elaassentiu.—Depoisdemimvocêprocuroualguémbemdiferente.Eugostariade

ter lidomaisnaminhavida,masduranteumbomtempo liapenasoquetinhadelerparaaredação,edepoisquisleraquiloqueascriançasliamnomomento,parapoderconversarcomelasarespeito,entãodesaprendialerparamim.Agoraeuteriamuitotempoparaler.Mas,quandoeutiverlido,oquevoufazercomisso?

—Euestavanacozinhaquandovocêpercorreuo trechocurtoentrea

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rua e a casa. Reconheci seu passo imediatamente. Você ainda pisa comtanta firmeza quanto naquela época. Claque, claque, claque... Nuncaencontrei umamulher que andasse com tamanha determinação.Naquelaépoca,penseiquevocêeratãodecididaquantoeracaminhando.

—Enaquelaépocaeupensavaquevocêmeconduziriadeummodotãosimpleseseguropelavidacomomeconduziunadança.

—Tambémgostariadetervividocomodançava.Julianãodançava.—Vocêfoifelizcomela?Vocêéfelizpelasuavida?Elerespirouprofundamenteeserecostou.— Não consigo mais imaginar a vida sem ela. Também não consigo

imaginar nenhuma outra vida além daminha. Claro que dá para pensarnissoenaquilo,maspermanecenoplanodoabstrato.

— Comigo não é assim. Vivo imaginando coisas diferentes do queaconteceram.Oqueteriaacontecidosetivesseterminadoosestudoseidotrabalhar? Se eu tivesse assumido o cargo de assistente de redação? SetivessemeseparadodeHelmutassimqueele teve seuprimeiro caso?Senão tivesse educado as crianças demaneira tão rígida e séria,masmaiscaóticaealegre?Senãotivessevistoavidaapenascomoumaengrenagemdedevereseresponsabilidades?Sevocênãotivessemedeixado?

—Eu...—Elenãoterminoudefalar.Elateriaderepetirapergunta.Masnãoqueriabriganemirritá-lo,então

indagou:—Euconsigoentenderoquevocêescreveu?Gostariamuitodetentar.—Vouenviaralgumacoisaquetalvezinteresseavocê.Podemepassar

seuendereço?Elaabriuabolsaelhedeuumcartãodevisita.—Obrigado.—Elesegurouocartãonamão.—Nuncativeumcartãode

visitanavida.Elariu.—Nãoétardedemais.—Elase levantou.—Vocêchamaumtáxi,por

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favor?Elaoseguiuatéseuescritório.Ficavaaoladodoquartocomoterraçoe

tambémtinhaumavistaparaasmontanhas.Enquantoele faziaa ligação,elaolhouaoredor.Tambémaliasparedeseramtomadasdeestantes;aoladoda escrivaninha com livros epapéis, deum ladoumamesa comumcomputadoredooutroumquadrode cortiça cheiode contas, recibosdeentrega,recortesdejornais,notasmanuscritas,fotografias.Amulheraltaemagra com os olhos tristes devia ser Julia, a mais jovem com o rostofechado,suafilha.Numadasfotos,umcachorropretoolhavaparaacâmeracomolhostristescomoosdeJulia.Numaoutra,Adalbertestavadeternoaolado de outros senhores de ternos pretos, como se fossem formandostardios.Ohomemdeuniformee a enfermeiradebraçosdadosdiantedaportadacasadeviamserospaisdeAdalbert.

Em seguida viu a pequena fotografia em preto e branco deles dois.Estavam numa plataforma abraçados. Não era possível... Ela balançou acabeça.

Elebaixouofoneefoiparaseulado.— Não, não é da nossa despedida. Um dia, nós buscamos você na

estação,suaamigaElena,meuamigoEberhardeeu.Eranofimdatardeefomos juntosaorio fazerumpiquenique.Eberhard tinhaherdadodoavôum gramofone a corda e encontrado uns discos velhos no adeleiro.Dançamosanoiteinteira.Vocêaindaselembra?

—Afotosempreestevependuradaaoladodasuaescrivaninha?Elebalançouacabeça.—Nãonosprimeirosanos.Masdesdeentão.Otáxiestáchegando.Elesforamparaarua.—Évocêquemcuidadojardim?—Não,issoquemfazéumjardineiro.Eucortoasrosas.—Muito obrigada—disse ela, enlaçando-o comos braços e sentindo

seusossos.—Vocêestásaudável?Ésópeleeosso!

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Eleaenvolveucomobraçodireitoeasegurou.—Cuide-se,Nina.Otáxiapareceu.Adalbertsegurouaporta,ajudou-aaentrarefechoua

porta.Elaseviroueoviuparado,ficandocadavezmenor.

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Emiliaestavaesperandonarecepção,levantou-senumpuloefoiatéaavó.—Comofoi?—Eucontoamanhãduranteaviagem.Tudooquequeroagoraéjantar

eiraocinema.Elas comeram no terraço do jardim interno. Estava cedo, eram as

primeirashóspedeseoquarteirãodecasasabafavaosruídosdaruaedotrânsito.Ummelrocantavanumtelhado,àsseteossinostocaram,foraissohavia silêncio. Emilia, um poucomelindrada, não queria falar, e por issocomeramcaladas.

O filme ao qual assistiriam não lhe importava. Ela não tinha ido aocinemacomfrequênciadurantesuavidaenuncaseacostumaraàtelevisão.Entretanto, achava as imagens coloridas em movimento na tela grandeavassaladoras,enessanoiteelaqueriasesentirassolada.Ofilmecumpriuisso,porémnãodemodoafazê-laseesquecerdetudo,masaselembrar:ossonhos que sonhava quando criança, seu desejo por algo que eramais emais bonito que o dia a dia da família e da escola, suas tentativasdeploráveis de encontrar issono balé e nopiano.O pequeno garoto cujahistóriaacompanharamerafascinadoporcinema,nãodeixouoprojetistadosfilmesempaznaquelepequenovilarejosicilianoatépoderajudá-loemação e, por fim, tornou-se diretor. Dos sonhos da sua infância restou, nofim,somenteencontrarohomemcerto,enemissodeucerto.

Mas ela nunca se permitira sentir autopiedade, e continuava sem se

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permitir.Emiliasaiudocinemacomlágrimasnosolhos,envolveu-acomobraçoeseaninhounela.AavótocouascostasdeEmiliaparatranquilizá-la;envolvê-lacomosbraços—issoelanãoconseguia.Emilialogoseretraiueelasandaramladoaladopelacidade,nanoiteclaradeverão,atéohotel.

—Vocêquermesmovoltaramanhãcedoparacasa?—Nãoprecisoestarcedodemaisemcasaenãoprecisamospartircedo.

Tudobemtomarocaféàsnove?Emiliaassentiu.Porémnãoestavasatisfeitacomaavóeosúltimosdois

dias.—Agoravocêvaidormircomosenadativesseacontecido?Elariu.— Não durmo como se nada tivesse acontecido nem mesmo quando

nadaacontece.Sabe,quandoseéjovem,dormimosouestamosacordadosealertas.Naidade,háumaterceiraopção,asnoitesnasquaisnãosedormenem se está acordado. É um estado específico, e um dos segredos deenvelhecerestáemaceitá-locomotal.Sequiser,podecontinuar flanandopelacidade,euautorizo.

Ela foiparaoquartoesedeitounacama.Preparou-separaumanoiteem que iria adormecer e acordar e lembrar e pensar e adormecer eacordar.Maselaacordounamanhãseguinte.

Entãoestavamsentadasnocarro,percorrendonovamentearuazinhaeseguindo as ondulações do rio. Emilia compreendera que suas perguntasnãolevavamanadaeparoudefazê-las.Elaesperou.

—Nãofoiexatamentecomoconteiavocênaviagemdeida.Elenãomedeixou. Eu o deixei.— Na verdade, isso foi tudo. Por Emilia, porém, elacontinuoufalando.—Quandonosdespedimosnaestação,eusabiaqueelevoltarialogoequenãopodialigarouescrever.Eupoderiateresperadoporele,masmeuspaisdescobriramqueeunãoestavafazendoestágionenhumemandaramHelmut.Eraparaelemelevarparacasaeelemelevouparacasa. Eu tinhamedo da vida comAdalbert, da pobreza em que ele havia

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crescido e que não dava importância, dos seus pensamentos que eu nãoentendia, do rompimento commeuspais.Helmut erameumundo, e fugiparaele.

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—Porquevocêmecontoutudodiferente?—Euachavaquetinhasidodiferente.Mesmoenquantoconversavacom

Adalbert.—Masnãodá...— Sim, Emilia, dá. Não suportei o fato de ter feito a escolha errada.

Adalbert diz que não há escolhas erradas, então eu simplesmente nãosuportei ter feito a escolha que fiz. Será que, realmente, escolhi algumacoisa? Naquela época, eu tinha a sensação de que estava sendo puxadaprimeiro para Adalbert, e depois, com aindamais força, parameu velhomundoeparaHelmut.E,quandonãofuifeliznomeuvelhomundoecomHelmut,nãoperdoeiAdalbertpornãotervistomeusmedosenãotermeajudado, não ter me apoiado. Eu me senti abandonada por ele, e alembrançamontoutodoocenárioquandoelesedespediunaplataforma.

—Masvocêfezumaescolha!Elanãosabiaoquedeviaresponder.Quenãofaziadiferença,vistoque

tinhadevivercomasconsequênciasdeum jeitooudeoutro?Queelanaverdadenãosabiaoqueerafazerescolhas?DepoisdeHelmuttê-lalevadoparacasa,foinaturalqueelasecasassecomele,queosfilhosviessemeoscasos também. As obrigações para as quais tinha vivido estavam lá eprecisavamsercumpridas—queescolhahaviaaserfeita?

Irritada,disse:—Euteriadeescolherabandonarmeusfilhos?Nãocuidardelesquando

ficassemdoentes,nãoconversarcomelessobreosassuntosquelheseram

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importantes,nãooslevaraoteatroeaconcertos,nãoencontrarasescolascertas, não os ajudar nas lições de casa? E também com vocês, netos enetas,eutinhaminhasobrigações...

— Suas obrigações? Somos apenas obrigações para você? Seus filhosforamapenasobrigaçõesparavocê?

—Não,éclaroqueamovocês.Eu...— Está parecendo que o amor também é apenas uma obrigação para

você.Ela achou que Emilia a interrompia commuita frequência. Aomesmo

tempo, não sabia como continuar. Elas deixaram a via secundária e seencaixaram no trânsito intenso da estrada. Emilia dirigia rápido, maisrápidoquenavindaeàsvezesdemodoarriscadoedesrespeitoso.

—Vocêpodeporfavorandarmaisdevagar?Estoucommedo.Comumamanobraatemorizante,Emiliamudouparaafaixadadireita,

entredoiscaminhõeslentos.—Satisfeita?Ela estava cansada, não queria adormecer, mas acabou adormecendo.

Sonhou que era uma menininha e estava andando pela cidade de mãosdadascomamãe.Emboraconhecesseasruaseascasas,sentia-seestranhana cidade. Isso é porque ainda soumuito pequena, pensou ela no sonho.Porémnãoadiantou;quantomaisandavam,maisoprimidaeamedrontadaficava.Foientãoqueumcachorrogrande,preto,deolhospretosgrandes,assustou-aeeladespertoucomumsomdeespanto.

—Oquefoi,vovó?—Euestavasonhando.—Numaplaca,elaviuquejánãofaltavamuito

parachegaràcasa.Enquantodormia,Emiliahaviatrocadonovamenteparaafaixadaesquerda.

—Voulevarvocêparacasaedepoisvouembora.—Paraosseuspais?— Não. Não preciso ficar em casa esperando minha vaga na

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universidade. Tenho um pouco de dinheiro e vou visitar uma amiga naCostaRica.Semprequisaprenderespanhol.

—Mashojeànoite...—HojeànoitevouaFrankfurt,ficarcomoutraamiga,atéconseguirum

voo.Elateveasensaçãodequedeviadizeralgoparaencorajá-laoualertá-la.

Mas não conseguia pensar tão rápido. Emilia estava agindo certo ouerrado? Admirava a decisão da neta, mas não conseguia dizer issoenquantonãosoubessequeestavacorreta.

Depois de Emilia levá-la para casa e estacionar o carro, ela aacompanhouatéopontodeônibus.

—Obrigada.Semvocêeununcateriamerecuperado.Semvocêeunãoteriafeitoaviagem.

Emiliadeudeombros.—Tranquilo.— Eu decepcionei você, não foi? — Ela procurava por palavras que

pudessemdeixartudobem.Nãoasencontrou.—Vocêvaisesairmelhor.O ônibus chegou e ela abraçou Emilia, que retribuiu o abraço. A neta

entrou pela frente e demorou um tempo até conseguir chegar à partetraseira do ônibus. Antes de o ônibus desaparecer numa curva, ela seajoelhounoúltimobancoeacenou.

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Overãocontinuoubonito.Ànoite,comfrequênciaocorriamtempestades,eela se sentava na varanda coberta, observava as nuvens escurecerem, oventocurvarasárvoreseasgotascaírem,primeiroisoladasedepoisnumjorroforte.Quandoatemperaturacaía,elaseaqueciacomumcobertor.Àsvezesadormeciaeacordavaapenasquandojáeranoite.Nasmanhãsapós

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astempestades,oarestavaencantadoramentelimpo.Elaesticouospasseiosefezplanosparaumaviagem,masnãoconseguia

se decidir. Emiliamandou um cartão-postal da Costa Rica. Os pais não aperdoaramporelaterdeixadoEmiliaviajar.Podiaaomenosterpedidooendereçoda amiga emFrankfurt, para que eles a encontrassemantes dapartida e conseguissem conversar coma filha. Por fim, ela disse quenãoqueria ouvir falar daquilo e, se eles não conseguissem falar de outroassunto,quedeixassemdevisitá-la.

Depoisdealgumassemanas,chegouumpacotedeAdalbert.Elagostoudolivrofininho,encadernadocomumlinhopreto;vê-loetocá-loerabom.Gostoutambémdotítulo:Esperançaedecisão.Naverdade,porém,elanãoqueriasaberoqueAdalbertpensava.

Naverdade, elaqueria saber seeleaindadançavabem.Enãopoderiaserdiferente.Quandoovisitou,deviaterficadomaisumpouquinho,ligadoo rádio e dançado com ele, do quarto ao terraço, sendo conduzida poraqueleúnicobraçodemodotãoseguroelevecomoseestivesseflutuando.

FIM