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BIBLIOTECA TEMPO UNIVERSITARIO COLEÇÃO RECLAMADA PELAS NECESSIDADES ATUAIS DA UNIVERSIDADE BRASILEIRA MARTIN HEIDEGGER/Introduçío i Metafísic a MARTIN HEIDEGGER/Sobrc o Humanismo JEAN VIET/Métodos Estruturalistas nas Ciências Sociais CLAUDE LÉVI-STRAUSS/Antropologia Estrutural MAURICE MERLEAU-PONT Y/Humanismo e Terror MICHEL FOUCAULT/Doença Mental e Psicologia GASTON BACHELARD/Novo Espirito Cientifico ABRAHAM MOLES/Tcoria da Informação e PercepçSo Estética JOSÉ GUILHERME MERQUIOR/Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin EMIL STAIGER/Conceitos Fundamentais da Poética HANS-ALBERT STEGER/As Universidades no Desenvolvimento Social da América Latina HENRI EY (Direção de)/0 Inconsciente - Volume I (Colóquio de Bonneval) Colaborações de CL. BLANC, R. DIATKINE S FOLLIN, A. GREEN, G. C. LAIRY, G. LANTÉRI-LAURA, J. LAPLANCHE, S. RICOEUR, C. STEIN e A. DE WAELHENS e a participação de P. GIRAUD, JEAN HYPPOLITE, JACQUES LACAN, JvIAURIC E MERLEAU-PONTY, E. MINKOWSKI, entre outros. KOSTAS AXELOS/Introdução ao Pensamento Futuro LUIZ AMARALfTécnica de Jornal e Periódico JACQUES GUILLAUMAUD/Cibernética e Materialismo Dialético EDUARDO PORTELLA/Tcona da Comunicação Literária HELMAR FRANK/Cibcrnética e Filosofi a CLÁUDIO SOUTO/Introauçao ao Direito como Ciência Social CLAUDE LÉVI-STRAUSS/Áníropologia Estrutural Dois MUNIZ SODRÉ/Teoria da Literatura de Massa KARL POPPER/Lógica das Ciências Sociais ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA//A Sociologia do Brasil Indígena EDUARDO PORTELLA/Fundamento da Investigação Literária ERNEST BLOCH/Thomas Münzer teólogo da revolução ALEXANDER MITSCHERLICH/A Cidade do Futuro THEODOR W. ADORNO/Notas de Literatura EDWIN B. WILLIAMS/Do Latim ao Português DIETER SENGHAAS, WOLF-DIETER NARR e FRIEDER NASCHOLD/Análise de Sistemas, Tecnocracia e Democracia JOSÉ GUILHERME MERQUIOR/A Estética de Lévi-Strauss WALTER BENJAMIN/A Modernidade e os Moderno s EDUARDO PORTELLA, JOSÉ GUILHERME MERQUIOR, HELENA PARENTE CUNHA, ANAZILDO VASCONCELOS DA SILVA, MARIA DO CARMO PANDOLFO, MANUEL,ANTÔNIO DE CASTRO, MUNIZ SODRÉ/Teoria Literária HANS-PETER DREITZEL, GÜNTER ROPOHL, CLAUS OFFE. JTJRGEN FRANK, HANS LENK/Tecnocracia e Ideologia ANTÔNIO PAUvt/A Querela do Estatismo VOGT FRANK OFFE/Estado e Capitalismo JÜRGEN HABERMAS/A Crise de Legitimação do Capitalismo Tardio ANTÔNIO PAIM/A UDF e a Idéia de Universidade ABRAHAM A. MOLES/Teoria dos Objetos SÉRGIO PAULO ROUANET/Édipo e o Anjo ROLAND BARTHES/Sollers escritor SÉRGIO PAULO ROUANET/Teoria Critica e Psicanálise SCHAFER, SCHALLER/Ciência Educadora Crítica e Didática Comunicativa FÜRST, KLEMMER, ZIMERMANN/Política Econômica Regional ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA/Enigmas e Soluções KOSTAS AXELOS/Horizontes do Mundo, HANS-GEORG GADAMER/A Razão na Época da Ciência JÜRGEN HABERMAS/Mudança Estrutural da Esfera Pública ARNOLD GEHLEN/Moral e Hipermora l CLAUS OFFE/Problcmas Estruturais do Estado Capitalista SARTRE et alii/Marxismo e Existencialismo HELMUT REICHELT, EIKE HENNIG, GERT SCHAFER, JOACHIM HIRSCH/A Teoria do Estado - Materiais para a reconstrução da teoria marxista do Estad o CLAUS OFFE/Trabalho e Sociedade: problemas estruturais e perspectivas para o futuro da "Sociedade do Trabalho" - Volume I - A crise CLAUS OFFE/Trabalho e Sociedade: problemas estruturais e perspectivas para o futuro da "Sociedade do Trabalho" - volume II - Perspectivas HANS LENK/Razão Pragmática - A Filosofia entre a Ciência e a Praxi s SIEGFRIED I SCHMIDT, HEIDRUN KRIEGER OLINTO, PETER FINKE, REINHOLD VIEHOFF, NORBERT GROEBEN, REINHOLD WOLFF/Ciência da Literatura Empírica - Uma alternativ a JÜRGEN HABERMAS/Consciência Moral e Agir Comunicativo JÜRGEN HABERMAS/Pensamento Pós-Metaíísic o JÜRGEN HABERMAS/Passado como Futuro NIKLAS LUHMAN/A Sociologia do Direito I NIKLAS LUHMAN/A Sociologia do Direito II ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA/Sobre o Pensamento Antropológico I. KANT/Lógic a WERNER MARKERT (Org.)/Teorias de Educação do Iluminismo tampo lirmllnli o Biblioteca Tempo Universitário 5

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BIBLIOTECA TEMPO UNIVERSITARIO

COLEÇÃO RECLAMADA PELAS NECESSIDADES ATUAIS DA UNIVERSIDADE BRASILEIRA

MARTIN HEIDEGGER/Introduçío i Metafísica MARTIN HEIDEGGER/Sobrc o Humanismo JEAN VIET/Métodos Estruturalistas nas Ciências Sociais CLAUDE LÉVI-STRAUSS/Antropologia Estrutural MAURICE MERLEAU-PONT Y/Humanismo e Terror MICHEL FOUCAULT/Doença Mental e Psicologia GASTON BACHELARD/Novo Espirito Cientifico ABRAHAM MOLES/Tcoria da Informação e PercepçSo Estética JOSÉ GUILHERME MERQUIOR/Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin EMIL STAIGER/Conceitos Fundamentais da Poética HANS-ALBERT STEGER/As Universidades no Desenvolvimento Social da América Latina HENRI EY (Direção de) /0 Inconsciente - Volume I (Colóquio de Bonneval) Colaborações de CL. BLANC, R. DIATKINE S FOLLIN, A. GREEN, G. C. LAIRY, G. LANTÉRI-LAURA, J. LAPLANCHE, S. RICOEUR, C. STEIN e A. DE WAELHENS e a participação de P. GIRAUD, JEAN HYPPOLITE, JACQUES LACAN, JvIAURICE MERLEAU-PONTY, E. MINKOWSKI, entre outros. KOSTAS AXELOS/Introdução ao Pensamento Futuro LUIZ AMARALfTécnica de Jornal e Periódico JACQUES GUILLAUMAUD/Cibernética e Materialismo Dialético EDUARDO PORTELLA/Tcona da Comunicação Literária HELMAR FRANK/Cibcrnética e Filosofia CLÁUDIO SOUTO/Introauçao ao Direito como Ciência Social CLAUDE LÉVI-STRAUSS/Áníropologia Estrutural Dois MUNIZ SODRÉ/Teoria da Literatura de Massa KARL POPPER/Lógica das Ciências Sociais ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA//A Sociologia do Brasil Indígena EDUARDO PORTELLA/Fundamento da Investigação Literária ERNEST BLOCH/Thomas Münzer teólogo da revolução ALEXANDER MITSCHERLICH/A Cidade do Futuro THEODOR W. ADORNO/Notas de Literatura EDWIN B. WILLIAMS/Do Latim ao Português DIETER SENGHAAS, WOLF-DIETER NARR e FRIEDER NASCHOLD/Análise de Sistemas, Tecnocracia e Democracia JOSÉ GUILHERME MERQUIOR/A Estética de Lévi-Strauss WALTER BENJAMIN/A Modernidade e os Modernos EDUARDO PORTELLA, JOSÉ GUILHERME MERQUIOR, HELENA PARENTE CUNHA, ANAZILDO VASCONCELOS DA SILVA, MARIA DO CARMO PANDOLFO, MANUEL,ANTÔNIO DE CASTRO, MUNIZ SODRÉ/Teoria Literária HANS-PETER DREITZEL, GÜNTER ROPOHL, CLAUS OFFE. JTJRGEN FRANK, HANS LENK/Tecnocracia e Ideologia ANTÔNIO PAUvt/A Querela do Estatismo VOGT FRANK OFFE/Estado e Capitalismo JÜRGEN HABERMAS/A Crise de Legitimação do Capitalismo Tardio ANTÔNIO PAIM/A UDF e a Idéia de Universidade ABRAHAM A. MOLES/Teoria dos Objetos SÉRGIO PAULO ROUANET/Édipo e o Anjo ROLAND BARTHES/Sollers escritor SÉRGIO PAULO ROUANET/Teoria Critica e Psicanálise SCHAFER, SCHALLER/Ciência Educadora Crítica e Didática Comunicativa FÜRST, KLEMMER, ZIMERMANN/Política Econômica Regional ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA/Enigmas e Soluções KOSTAS AXELOS/Horizontes do Mundo, HANS-GEORG GADAMER/A Razão na Época da Ciência JÜRGEN HABERMAS/Mudança Estrutural da Esfera Pública ARNOLD GEHLEN/Moral e Hipermoral CLAUS OFFE/Problcmas Estruturais do Estado Capitalista SARTRE et alii/Marxismo e Existencialismo HELMUT REICHELT, EIKE HENNIG, GERT SCHAFER, JOACHIM HIRSCH/A Teoria do Estado - Materiais para a reconstrução da teoria marxista do Estado CLAUS OFFE/Trabalho e Sociedade: problemas estruturais e perspectivas para o futuro da "Sociedade do Trabalho" -Volume I - A crise CLAUS OFFE/Trabalho e Sociedade: problemas estruturais e perspectivas para o futuro da "Sociedade do Trabalho" -volume II - Perspectivas HANS LENK/Razão Pragmática - A Filosofia entre a Ciência e a Praxis SIEGFRIED I SCHMIDT, HEIDRUN KRIEGER OLINTO, PETER FINKE, REINHOLD VIEHOFF, NORBERT GROEBEN, REINHOLD WOLFF/Ciência da Literatura Empírica - Uma alternativa JÜRGEN HABERMAS/Consciência Moral e Agir Comunicativo JÜRGEN HABERMAS/Pensamento Pós-Metaíísico JÜRGEN HABERMAS/Passado como Futuro NIKLAS LUHMAN/A Sociologia do Direito I NIKLAS LUHMAN/A Sociologia do Direito II ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA/Sobre o Pensamento Antropológico I. KANT/Lógica WERNER MARKERT (Org.)/Teorias de Educação do Iluminismo

t a m p o l i r m l l n l i o

Biblioteca Tempo Universitário 5

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cura lazer a experiência do destino do ho­

mem sem pátria. Esse princípio de supera­

ção, no entanto, preparado na poesia dc Hoe-

derlin, se viu, logo, transformado numa for­

ma invertida de humanismo, pelos "marxis­

tas".

SOBRE O HUMANISMO

DE

MARTIN HEIDEGGER

Libertar a humanização do homem dos

limites d? humanismo é o que se propõe a

Analítica da Existência em Ser e Tempo. 0

texto da presente Carta se detém largamente

em evidenciar esse propósito. E' assim a cha­

ve para um entendimento do lugar ocupado

por HEIDEGGER na primeira fase de seu

itinerário filosófico.

Desse longo Caminho, Sobre o Humanismo

retira perspectivas que possibilitam redi­

mensionar problemas fundamentais da exis­

tência referentes ao pensamento dos valores,

à normatividade ética, à Historicidade da

história e ã permanência e mutabilidade do

ser humano no mundo. Quase todas as ques­

tões, que ocupam a última reflexão de 1119-

DHGOEU, são acenadas condensadamente nas

poucas paginas dessa Carla. A riqueza de

perspectivas reflexivas, que sua meditação

proporciona, nos dá uma consciência cada

vez mais aguda da problcinaticidade de nosso

tempo histórico.

As Edições Tempo Hrasilalro esperam

contribuir, com esta categorizada tradução

do Professor EMMANUEL CARNEIRO LEÃO,

para unia consciência mais viva c uma vida

mais consciente do desafio dessa problema-:

tJcidade. Decisões Históricas não se elaboram

do nada. Preparam-se por uma consciência

sempre mais aguda das situações que torna

as decisões inevitáveis.

t.b.

Sabir o Humanismo espelha um aprofun­

damento do Caminho que seguiu o autor de

Ser t Tempo desde 1916. Com a radicalidade

imposta pelo questionamento do Sentido do

Ser, HEIDEGGER empreende uma discussão

temática do Humanismo em suas possibil i­

dades de humaniz.açãc: cm suas múltiplas

vertentes, os valores do humanismo possibil i­

tam realmente uma libertação do homem

para sua própria humanidade? Uma pergunta

que invariavelmente os reporta « questão

sobre a humanidade do homem. Cada huma­

nismo se edifica numa interpretação d o | e t d o

homem. Dai a necessidade de se porem n u

questão as interpretações do homem ,1..-, > .i

rios humanismos. De uma formi OU A

tra todos eles são variações do projpl In

físico que, desde cedo, nr vel . . .M . l lu

no percurso [ilstortoo do OtildlHtll

0 priineh-o ItUItlUIlll Mplldll II

tio, é urna OOUNgUfMtiAo <'.' / " " ' ' < i>. h . l

cujas raljEOl se I m p l n n l n m mi m< I n I I« h <i pin

tónica. A Inversão . I r l ' l i i l n . . pela lu ii

mo existencialista continua m> campo do

cas da metafísica. I'.' que vlnii u m principio

nieiafísico permanece um movimento meia

físico.

O mesmo ocorre no humanismo crislão.

no fazer, do homem, filho de Deus, que, em

Cristo, ouve c aceita o apelo do Pal.

O primeiro movimento de uma superação

radical do humanismo principia com o pen­

samento de Marx, que, na alienação, pro-

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M A R T I N H E I D E G G E R

SOBRE 0 HUMANISMO

INTRODUÇÃO, TRADUÇÃO B NOTAS

DE

EMMANUEL CARNEIRO LEÃO

2. a edição

Tempo Brasileiro 1995

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BIBLIOTECA TEMPO UNIVERSITARIO — 5

Esta Coleção, dirigida por renomaãos professores universitários, destina-se à apresentação de textos rigorosamente científicos, visando às necessidades

da investigação universitária no Brasil.

CAPA DE

MAURICIO JOSÉ MARCHECSVFKY

TRADUZIDO DO ORIGINAL ALEMÄO

Über de Humanismus

DA FRANCKE A.C. , BERNA

Direitos reservado às EDIÇÕES TEMPO BRASILEIRO LTDA. Rua Gago Coutinho, 61 - Tel.: 205-5949 - Fax: 225-9382 Caixa Postal 16099 - CEP: 22221-070 Rio de Janeiro - RJ - Brasil

SUMÁRIO

I Introdução

EMMANUEL CARNEIRO LEÃO 7

II SÔbre o Humanismo

MARTIN HEIDEGGER . . 21

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INTRODUÇÃO

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Juntamente com uma interpretação da Ale­goria da Caverna de Platão, o opúsculo Sobre o Humanismo, ora traduzido para o português, foi publicado em 1947 na Suíça pela editora Francke. Apresenta o texto reelaborado de uma carta de 1946, em que Martin Heidegger responde a umas perguntas de Jean Beaiifret. Ainda em 1947, apa­receu na Alemanha uma outra edição de Vütorio Klostermann em que se troca o texto final do quarto último parágrafo.

Sobre o Humanismo é de uma composição muito bem estudada. Das questões propostas por Beaufret escolhe Heidegger, para tema de sua resposta, a mais fundamental, relativa ao huma­nismo: Comment redonner un sens au mot "Hu­manisme"?

A discussão de seus pressupostos abre tôda uma outra dimensão de pensamento: a dimensão do Pensamento Essencial, que, reconduzindo a vi­gência Histórica do humanismo às suas raízes na metafísica, redimensiona a própria questão. Impõe a necessidade de questioná-la em seus fundamen­tos. O humanismo deixa de ser um valor indis­cutível e, portanto, um trauma para o pensamento.

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Transforma-se na maior provocação para pensar na medida em que força o esforço pelo homem na direção das vicissitudes Históricas da Verdade do Ser. Redimensionar o humanismo significa então superar-lhe as raízes num pensamento que é Es­sencial por pensar a proveniência de sua própria Essência, i.é, por pensar a proveniência da Essên­cia do homem. Por não des-cobrir e sim, antes, en-cobrir essa proveniência, o humanismo, não só como designação, mas principalmente como visão e esforço, é um lucus a non lucendo.

No itinerário do pensamento heideggeria-no i1), Sobre o Humanismo serve ao segundo mo­mento de sua marcha dialética de pro-gresso e re-gresso para superar a metafísica. Nesse serviço desempenha uma função didática, esclarecendo o sentido do primeiro momento, exposto em Sein und Zeit e nas primeiras obras. Como introdução à leitura, vamos ressaltar aqui três pontos princi­pais dessa contribuição.

1. Sobre o Humanismo e a Essência do Ho­mem. Ao preparar o questionamento do problema sobre o Sentido do Ser, Sein und Zeit se propõe, por motivos inerentes à própria tarefa, re-pensar a Essência do homem a partir da "experiência fundamental do esquecimento do Ser". Para isso se serve dos termos e da gramática vigentes na

(1) Sobre as constantes do itinerário do pensamento de Heidegger e a dialética de re-gresso e pro-gresso da

sua marcha veja-se a apresentação feita para a nossa tradução de Martin Heidegger, Introdução à Metafísica, Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1966, pp. 7ss.

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filosofia, como essência, existência, substância, Dasein, ente, ser e tc , como sujeito, participio, ob­jeto, genitivo subjetivo e objetivo etc. Mas o emprego desses termos e dessa gramática tem uma função bem precisa. Visa acionar o supe-ramento da metafísica. Isso veio provocar uma situação fundamental e intencionalmente am­bígua. A desconsideração dessa ambigüidade le­vou a "erros" palmares de interpretação e enten­dimento. É que a compreensão dessa linguagem "intencionalmente ambígua" exige que, ao esforço de apreender-lhe o sentido habitual, corresponda um esforço de superá-la num pensamento que ponha em questão a própria Essência da lingua­gem. A ambigüidade da linguagem reflete em si mesma a dialética inerente ao movimento de su­peração. Por isso toda tentativa de se determinar o sentido dos termos e das funções gramaticais fora do contexto de pensamento, em que se arti­culam, tranca-se a qualquer possibilidade de en­tendimento.

Foi o que se deu com a maioria das interpre­tações de Sein und Zeit. Ao invés de re-pensarem os termos e a gramática pela coisa a ser pensada, muitos leitores procuraram entender a coisa a ser pensada pela lógica e pela gramática tradicionais. Ora, de vez que a lógica e a gramática da tradição são as formas em que o esquecimento da metafí­sica se apoderou da linguagem, a interpretação assim alcançada fica sempre à margem da questão e do propósito de Sein und Zeit

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Sobre o Humanismo vem remediar essa in­compreensão, esclarecendo em que direção Sein und Zeit procura pensar a Essência do homem.

Todo humanismo, em suas diversas modali­dades — desde o humanismo romano, passando pelo humanismo cristão e renascentista até o hu­manismo socialista e existencialista — se funda sempre na interpretação metafísica do homem. Articulado no binômio de essência e existência, determina o ser do homem como a realização (existência) das possibilidades (essência) de ani­malidade e racionalidade, quer confira o primado à essência, quer faça prevalecer a existência em suas várias dimensões. Uma determinação que não surgiu e se impôs por acaso. Vigora, ao con­trário, na força de uma de-cisão do Sentido do Ser, como tal.

Mas a metafísica não questiona a articulação desse vigor em que ela repousa. Sua determina­ção do ser do homem se funda numa interpretação do Sentido do Ser que não é posta em questão. Daí a tese de Sein und Zeit de que, edificando-se num esquecimento do Ser, a metafísica exige ser re-pensada no fundamento de sua possibilidade e assim superada em seu esquecimento. O primei­ro esforço nesse sentido é procurar arrancar o ser do homem à interpretação metafísica, re-pensan-do-o em relação ao Ser. Assim os lermos, Essência, Existência, Dasein, Substância, usados em Sein und Zeit não visam a pensar o homem por seus significados metafísicos e em conseqüência não se identificam com a essentia, a existentia, o Dasein e a substância da metafísica e do huma-

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nismo. Procuram antes pensar a essencialização do homem dentro da referência do Ser e o fazem, como o espaço de articulação (Da-) da Verdade do Ser (Sein) . Ora, uma vez que, de um lado, a gran­deza e a dignidade do homem se essencializam originariamente nessa re-ferência e, de outro, o humanismo, em sua virulência metafísica, não a questiona nem a pensa, a tarefa imposta a um Pensamento Essencial é abandonar o humanismo, para, pensando a Verdade do Ser, tornar-se Essen­cialmente humano. Na preparação dessa tarefa concentram-se as investigações de Sein und Zeit. Por tais esclarecimentos Sobre o Humanismo é o passaporte para a dimensão onde se move o pen­samento de Heidegger ao nível da Analítica Exis­tencial .

2. Sobre o Humanismo e a Essência da História: Dentro da originariedade de um Pensa­mento Essencial o homem não é um sujeito cuja "subjetidade" consiste em sujeitar às forças de suas pro-spectativas técnicas o ser dos entes, transformando-o na objetividade de simples ob­jetos. No vigor de sua essencialização o homem é a locanda, em cujo espaço se desdobra a verdade dos entes. É no homem, como locanda do Ser, que os entes encontram lugar para serem o que são. Pois tanto a abertura da locanda como o desdobramento das possibilidades dos entes são instalados pela dinâmica de estruturação do Ser. O Ser é como Ser, estruturando a verdade dos entes na essencialização do homem, enquanto re­ferência do Ser.

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A Essência da História é a dinâmica dessa estruturação. Heidegger a pensa como ges­chieh — destino. O que nos convida a pensar com e nessa palavra, apresenta-se na essenciali-zação de seus significados. Trata-se de uma pa­lavra derivada do verbo schicken, que possui um largo espetro significativo ao longo da evolução semântica do alemão. Seus três significados fundamentais são estruturar, dispor, enviar. (r) No substantivo, Ge-schick, esses três significados são reunidos num conjunto pelo prefixo Ge- (como em Ge-birge = "conjunto de montes"). É na unidade desses três significados que Ge-schick articula o sentido originário de geschehen, a saber: vonstatten gehen lassen = "fazer ter lugar" e por conseguinte, "dar-se", "acontecer". Ge­schichte, substantivo de geschehen é a História.

Agora se torna, talvez, mais claro o que é História, Geschichte, para um Pensamento Essen­cial: a essencialização da História é o Geschick, ("o destino") do Ser, enquanto envio dispositivo de estruturas, que se faz lugar no homem no con­junto das re-ferências de ser e ente. Se se pensa a palavra "destino", nesse sentido, então, em sua Essência, a História é o destinar-se do Ser no homem. Isso quer dizer: é no destinar-se do Ser que o homem se hominiza — isto é, que o homem se constitui como homem — ao articular o destino

(1) Desses três sentidos a palavra portuguesa, destino, só expressa de per si os dois últimos, dispor e enviar;

todavia, se lhe acrescentarmos o primeiro, tem-se boa tra­dução para Ge-schick.

do Ser, e isso significa: ao dar lugar ao conjunto das referências de ser e ente. Essencialmente, pensar não é, portanto, exercer uma faculdade da consciência, entendida como sujeito, nem falar é exprimir a atividade e o conteúdo desse exercício. Pensar e falar é articular o destino do Ser. Por isso só o homem pensa. Só o homem fala. Só o homem é histórico. E é histórico, enquanto faz e é feito pela História.

Por ser Essencialmente destino, o Ser, ao des­tinar-se no homem, se retém e esconde como des­tino. Essa retenção é o próprio vigor em que se destina. Heidegger pensa tal dialética de dar-se e retrair-se no termo epoché, oriundo da momen-clatura da Stoá. De epoché ele forma o adjetivo, epochal = "epocal", que diz o vigor dialético do destinar-se do Ser.

No destino se dispõem estruturas que arti­culam possibilidades de referência entre ser e ente. E é justamente para destinar-se em estru­turas de possibilidades que o Ser não se destina mas se retém como a totalidade de todas as possi­bilidades. A História se essencializa assim em vicissitudes de destinações e ao mesmo tempo de retenções do Ser como totalidade. O ritmo desse vigor é a Essência do tempo, como temporalidade do Ser. Nele repousa a continuidade e desconti­nuidade das épocas históricas. O futuro, o pas­sado e o presente, enquanto momentos do tempo, se fundem, sem se confundirem, no vigor do des­tino do Ser. A presença do passado no presente é a necessidade do futuro. É no destino "epocal" do Ser que se essencializa a história dos homens.

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3. Sobre o Humanismo e os Pensadores Essenciais: o homem é o lugar de que necessita e, por conseguinte, cria o Ser, destinando-se "epocalmente", isto é, sendo o Ser. A consolidação da necessidade, que assim se destina, é a lingua­gem onde mora o homem. A custodia desse ser da linguagem se dá originariamente na palavra do poeta e no pensamento dos pensadores, que articulam o destino "epocal" do Ser. Nesse sen­tido a linguagem "é a casa do Ser" e "os poetas e pensadores são os seus vigias".

Pensar é articular o destino do Ser, e esse se dá num vigor "epocal". O pensamento dos pen­sadores não é, em sua Essência, a estrutura em que eles pensam as referências de ser e ente. É o que eles procuram articular com essa estrutura. Em tudo que dizem, eles querem dizer a Essência do pensamento que se lhes destinou. Daí ser um desconhecimento da dialética "epocal" do destino todo e qualquer esforço de se refutar um pensa­mento bem como toda tentativa de entendê-lo fora de sua Essência, segundo qualquer jogo de interesses alheios à sua articulação destinada. E se trata de um desconhecimento que se ignora como desconhecimento, por ser já, em si mesmo, um destino "epocal" do esquecimento do Ser. É o tipo de desconhecimento que, predominante­mente, se impõe, como conhecimento, na época da Técnica e da Ciência.

A época da Técnica e da Ciência se essencia-liza numa "época" em que o Ser como Ser é nada, por se destinar tanto na objetividade do ente como

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na subjetividade do homem. O homem só é ho­mem, quando realiza sua humanidade como o "sujeito" da objetividade. A objetividade é tanto mais objetiva quanto mais fôr controlada e esta­belecida em sua objetividade, vale dizer, quanto mais o homem fôr "subjetividade". Correlativa­mente, o ente só é ente quando afirma sua enti­dade como objeto da subjetividade, isto é, no grau em que se presta ao controle exato da subjetivi­dade. A objetividade é o supremo valor. A arte, a poesia, a religião, a filosofia só possuem valor, se passarem no controle de objetividade. A vi­gência da correlação de subjetividade e objetivi­dade, que hoje vai atingindo seu paroxismo, é, pensada como "época", o destinar-se do Ser no esquecimento. Nesse esquecimento moderno, isto é, nas fases de progresso da técnica e da ciência, se derrama a escuridão da "Noite Histórica" na qual o homem, perdendo os fundamentos de sua huma­nidade, "erra", sem pátria, no turbilhão de uma objetividade sempre mais absorvente de subjetivi­dade. A "época" da técnica e da ciência é o im­pério do homem a- pátrida em sua Essência.

É essa a-patridade Essencial que opera no vigor de planetarização do mundo moderno. Heidegger vê nela as raízes Históricas da expe­riência da alienação feita no pensamento de Marx; O que Marx quis pensar na alienação era o des­tinar-se do Ser na a-patridade, acirrada na "épo­ca" da Primeira Revolução Industrial. Sabre o Humanismo o ressalta sem possibilidade de equí­vocos: "Porque, ao fazer a experiência da aliena­ção, Marx alcança uma dimensão Essencial da

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História, a visão marxista da História é superior às restantes interpretações da história (Historie)". O desenvolvimento dessa interpretação foi iniciado num seminário (fechado aliás pelo serviço de se­gurança do nazismo) ministrado para um pequeno círculo de professores universitários no inverno de 1939-1940 a propósito do livro de E. Jünger, Der Arbeiter (O Trabalhador) e completado logo de­pois num longo seminário sobre Marx. É nesse último que Heidegger* faz a distinção entre o marxismo e comunismo como partido e concepção de mundo e o marxismo e comunismo como pen­samento. A essa distinção alude Sobre o Huma­nismo quando diz: "Como quer que se tome posi­ção frente às doutrinas do comunismo e suas fun­damentações, no plano da História do Ser não há dúvida de que nele se exprime uma experiência elementar da História do mundo. Quem toma o comunismo apeinas como "partido" ou como "concepção de mundo", pensa tão curto como quem, com a etiqueta de "americanismo", entende apenas — e de modo pejorativo — um estilo de vida particular.

Para se atingir a dimensão onde se move o diálogo com o pensamento de Marx, não basta tomar notícia das alusões que alguns textos de Heidegger fazem; principalmente quando se en­tendem e interpretam tais alusões fora da arti­culação do Pensamento Essencial, segundo inte­resses que lhe passam, e sem o saberem, à mar­gem. Uma condição indispensável de todo diá­logo frutífero de pensamento é colocar-se lá onde

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êle se articula. Do contrário se tranforma biso­nhamente num esforço quixotesco de arremeter contra moinhos de vento.

Em abrir a dimensão originária, onde um Pensamento Essencial pode questionar a Essência do homem, a Essência da História e a Essência do Pensamento, está a principal contribuição des­sa Carta sobre o Humanismo. Mas se trata de uma con-tribuição que só se nos a-tribui, se aliarmos, à leitura do texto, o exercício do Pensamento.

Rio de Janeiro, março, 1967.

EMMANUEL CARNEIRO LEÃO

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De há muito que ainda não se pensa, com bastante decisão, a Essência 1 do agir. Só se co­nhece o agir como a produção de um efeito, cuja efetividade 2 se avalia por sua utilidade. A Es-

1) A Essência = das Wesen: o substantivo alemão, Wesen deriva-se do verbo, wesen, hoje usado ape­

nas em algumas formas, como gewesen (sido), áb-wesenâ (ausente), an-wesend (presente) e Wesen (es­sência, natureza, qüididade). Esse substantivo não de­signa no texto essência, natureza, qüidade, mas a es­trutura em que vigora, i . é . , desenvolve a força de seu vigor, o agir. Para exprimir esse sentido, escreve-se a palavra Essência sempre com maiúscula.

2) Efetividade = Wirklichkeit: nessa segunda frase Heidegger caracteriza o modo em que se tem in­

terpretado o agir, jogando com o radical, wirk, em seu tríplice emprego: como verbo, wirken ( = causar efeito, desenvolver a força de uma eficiência no sistema de causa e efeito), como substantivo concreto, Wirkung ( = o efeito, resultado da eficiência causal) e como subs­tantivo abstrato, Wirklichkeit ( = a realidade do efei­to) . Com isso se visa a exprimir que as três modalida­des pertencem à mesma interpretação. Pode-se tradu­zir essa sistemática da causalidade do seguinte modo: "só se conhece o agir como a efetuação de um efeito, cuja efetividade se avalia por sua utilidade".

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sência do agir, no entanto, está em con-sumar 3 . Con-sumar quer dizer: conduzir uma coisa ao sumo, à plenitude de sua Essência. Levá-la a essa plenitude, producere.*

Por isso, em sentido próprio, só pode ser con--sumado o que já é Ora, o que é, antes de tudo, é o Ser. O pensamento con-suma a referência 5

do Ser à Essência do homem. Não a produz nem a efetua. O pensamento apenas a restitui ao Ser, como algo que lhe foi entregue pelo próprio Ser. Essa restituição consiste em que, no pensamento, o Ser se torna linguagem. 6 A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação 7 mora o homem. Os

3) Con-sumar == Volí-bringen: Essa é uma palavra composta do verbo, bringen ( = levar, conduzir) e do

adjetivo, voll ( = completo, pleno, cheio). Na composi­ção exprime o processo de se levar uma coisa à sua ple­nitude. É o que se traduz com o verbo "con-sumar".

4) Pro-ducere: veja-se Martin Heidegger, Introdução à Metafísica, Rio, Edições Tempo Brasileiro, 1966, pg. 98, Nota 16.

5) Re-ferência = Bezug: veja-se Martin Heidegger, In­trodução à Metafísica, 1. c , pg. 99, Nota 21.

6) tornar-se linguagem — zur Sprache kommen: Essa expressão alemã (literalmente — vir, chegar à lin­

guagem), significa no uso corrente: pôr à discussão. Heidegger, porém, a emprega na sua acepção etimoló­gica de chegar, i.é., tornar-se linguagem-

7) Habitação = Behausung: Em alemão casa é das Haus. Daí se formou o verbo, hausen, que exprime

a função exercida pela casa, que é dar abrigo, prestar morada e habitação. O substantivo do texto é constituí­do por um verbo derivado de hausen, a saber be-hausen.

pensadores e poetas lhe servem de vigias. Sua vigília é con-sumar a manifestação 8 do Ser, por­quanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a conservam na linguagem.

O pensamento não se transforma em ação por dele emanar um efeito ou por vir a ser apli­cado. O pensamento age enquanto pensa. Seu agir é de certo o que há de mais simples e elevado, por afetar a re-ferência do Ser ao homem. Toda produção se funda no Ser e se dirige ao ente. O pensamento ao contrário se deixa requisitar pelo Ser a fim de proferir-lhe a Verdade. O pensa­mento con-suma esse deixar-se. Pensar é "l'enga­gement par l'Etre pour l'Etre". Não sei, se, linguisticamente, é possível dizerem-se ambas as coisas (par et pour) numa só expressão, a saber: "penser c'est l'engagement de l'Etre". A forma do genitivo, "de deve exprimir que o geni-

tivo é, ao mesmo tempo, "genitivus subjectivus" e "objectivus". Não obstante sejam "sujeito" e

"objeto" títulos insuficientes da metafísica, que, desde cedo, na forma da "lógica" e "gramática" ocidentais, se apoderou da interpretação da lin­guagem . O que se esconde nesse processo, só hoje podemos suspeitar. Libertar a linguagem da gramática, para um contexto Essencial mais

8) Manifestação — Offenbarkeit: compõe-se ds offen (aberto) e do sufixo bar, que diz a qualidade do

que está aberto, manifesto, patente. Do adjetivo offenbar (manifesto) se formou o substantivo, Offenbarkeit (ma­nifestação) .

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originário, está reservado ao pensar e poetizar. 9

O pensamento não é apenas "l'engagement dans l'action" para e pelo ente no sentido do real da situação presente. O pensamento é "l'engagement" pela e para a Verdade do Ser, cuja História 1 0

nunca passou e sim sempre está por vir. A Histó­ria do Ser carrega e determina tôda "condition et situation humaine".

Para aprendermos a experimentar em sua pureza — e isto significa também levar à pleni­tude — essa Essência do pensar, devemos liber­tar-nos da interpretação técnica do pensamento. Seus primórdios remontam até Platão e Aristó­teles. Para eles o pensamento é, em si mesmo, uma techne, o processo de calcular a serviço do fazer e operar. Nesse processo já se toma o cál-» culo em função e com vistas à praxis e à poesis. Por isso, quando considerado em si, o pensamento não é prático. A caracterização do pensamento como theoria, e a determinação do conhecimento como atitude "teórica" já se processam dentro da interpretação "técnica" do pensar. É um esforço reativo, visando preservar, também para o pensa­mento, autonomia face. ao fazer e a $ r . Desde então, a "filosofia" sente, constantemente, a ne­cessidade de justificar sua existência diante das "ciências". E crê fazê-lo, da forma mais segura,

9) Poetizar = Dichten: veja-se Introdução à Metafí­sica, l . c , pg. 282, Nota 2.

10) História Geschichte: veja-se Introdução à Meta­física, l . C , pg. 96, Nota 7.

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elevando-se à condição de ciência. Ora, esse esforço é o abandono da Essência do pensamento. A filosofia é perseguida pelo medo de perder em prestigio e importância, caso não seja ciência. O que se considera uma deficiência, idêntica à in-ciência (Unwissenschaftlichkeit). Na interpreta­ção técnica do pensamento, se abandona o Ser como o elemento do pensar. A partir da Sofística e de Platão, a "lógica" é a sanção dessa interpre­tação. Julga-se o pensar com uma medida que lhe é inadequada. Um tal julgamento equivale ao processo que procura avaliar a natureza e as possibilidades do peixe pela capacidade de viver no seco. De há muito, demasiado muito, o pen­samento vive no seco. Será que se pode chamar "irracionalismo" o esforço de repor o pensamento em seu elemento?

As perguntas de sua carta poder-se-iam escla­recer melhor numa conversa direta. Por escrito, o pensamento perde facilmente a dinâmica de seu movimento. E sobretudo dificilmente poderá conservar a pluridimensionalidade própria de sua envergadura. Diferente das ciências, o rigor do pensamento não reside apenas a exatidão arti­ficial, isto é, técnico-teórica dos conceitos. O rigor do pensamento se edifica na medida em que seu dizer permanece, exclusivamente, no ele­mento do Ser e deixa vigorar a simplicidade de suas múltiplas dimensões. Mas, por outro lado, a forma escrita impõe a necessidade salutar de formulações pensadas. Por hoje, queria escolher apenas uma de suas perguntas, cuja colocação lançará uma luz, talvez, também sobre as outras.

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O senhor pergunta: Comment redonner un sens au mot Humanisme?". Essa pergunta pro­vém do propósito de conservar a palavra "huma­nismo". Pergunto-me, se é necessário. Será mes­mo que ainda não está bastante clara a desgra­ça que provocam todos os títulos dessa espécie? Sem duvida, há muito que se desconfia dos "ís-mos". Mas o mercado da opinião pública exige sempre novos. E sempre se está disposto a cobrir a demanda. Também os nomes, "Lógica", "Ética", "Física", só surgiram quando o pensamento origi­nário chegou ao fim. Em seus grandes tempos, os gregos pensaram sem esses títulos. Nem mes­mo de "filosofia" chamaram o pensamento. Este chega sempre ao fim, quando se afasta de seu elemento. 0 elemento é aquilo a partir do qual o pensamento pode ser pensamento. 0 elemen­to é o propriamente poderoso: o poder. Êle se apega ao pensamento e assim o conduz à sua Essência. Dito sem rodeios, o pensamento é o pensamento do Ser. O genitivo exprime duas coisas. O pensamento é do Ser, enquanto, pro-vo-cado pelo Ser em sua propriedade, 1 1 pertence ao Ser. O pensamento é ainda pensamento do Ser, enquanto, pertencendo ao Ser, ausculta o Ser.

11) Pro-vocar em sua propriedade = ereignen: trata-se de um verbo composto de eigen (próprio) que, em

seu uso corrente, significa acontecer, dar-se. No entan­to, Heidegger o empregado de acordo com o radical (pró­prio) no sentido de fazer com que uma coisa seja o que ela propriamente é.

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Enquanto, auscultando, pertence 1 2 ao Ser, o pen­samento é de acordo com a pro-veniência de sua Essência. O pensamento é, isso significa: o Ser se apegou, num destino Histórico, 1 3 à sua Essên­cia. Apegar-se a uma "coisa" ou "pessoa" em sua Essência, quer dizer: amá-la, querê-la. Pensando de modo mais originário, querer significa essen-cializar, dar Essência. Esse querer é que consti­tui a própria Essência do poder , 1 4 que não so­mente pode realizar isso ou aquilo mas também deixa uma coisa "vigorar" em sua pro-veniência, isto é, deixa que ela seja. O poder do querer é aquilo em cuja "força" uma coisa pode propria­mente ser. Esse poder é o "possível" em sentido próprio, a saber, aquilo cuja Essência se funda no querer. É por esse querer que o Ser pode pensar.

12) Auscultando... pertence = hoerend... gehoert: aqui se faz referência à interdependência dos dois

verbos, hoeren (ouvir, auscultar) gehoeren (pertencer), a um mesmo radical.

13) Destino Histórico = geschicklich: da palavra, Ge-schick (destino) formou Heidegger o adjetivo, ges-

chick-lich, que não existe no alemão corrente. Geshick (destino) deriva-se de schicken (enviar, destinar). Den­tro do pensamento Heideggeriano, Geschick (destino) é tomado em sentido ativo, como o que destina e assim dá origem ã História (.Geschichte). Por isso o adjetivo do texto é traduzido por: "num destino histórico".

14) Esse querer é que constitui a própria Essência do poder... = solches Moegen ist das eigentliche We-

sen des Vermoegens... : o verbo moegen, que significa querer e gostar, possui um derivado, ver-moegen, que diz poder. Heidegger determina a Essência propria de ver-moegen (poder) e de moeg-lich (possível), pelo sen­tido originário de moegen (querer). Querer é poder.

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O Ser possibilita o pensar. Querer poderoso, 1 5 o Ser c.o "possível". Como o elemento, o Ser é "a força silenciosa" do poder que quer, isto é, do possível.

Sem dúvida, sob o domínio da "lógica" e da "metafísica", só se pensam as palavras "possível" e "possibilidade" em oposição a "realidade" ,isto é, a partir de determinada interpretação do Ser, qual seja, da interpretação metafísica do Ser, como actus e potentia. Essa interpretação se iden­tifica com a distinção de existentia. e essentia. Quando falo da "força silenciosa do possível", não me refiro ao possibile de uma possibilitas mera­mente representada 1 8 nem a potentia como essen­tia de um actus de existentia. Refiro-me ao Ser mesmo que, querendo, tem poder sobre o pensa­mento e assim sobre a Essência do homem, o que significa, sobre a re-ferência do homem ao Ser. Poder alguma coisa significa: pre-servá-la em sua Essência, con-servá-la em seu elemento.

Quando o pensamento, saindo de seu elemen­to, chega ao fim, compensa essa perda, valorizan­do-se como techne, isto é, instrumento de formação, para se tornar, com isso, atividade acadêmica e, posteriormente, atividade cultural. A filosofia se vai transformando, aos poucos, numa técnica de

15) Querer poderoso = das Vermoegenã — Moegenãe: nessa locução se exprime que a Essência primária

do "possível" é a estrutura Instaurada pela dialética do vigor originário de querer (moegen) e poder (ver-moe-gen). 16) Representado — vorgestellt: esse verbo tem aqui o

sentido de: concebido como idéia.

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explicação pelas últimas causas. Já não se pensa,. Ocupa-se de "filosofia". Na porfia da concorrência, tais ocupações se apresentam publicamente como ísmos e procuram sobrepujar uma à outra. O domínio desses títulos não é um acaso. Baseia-se, principalmente nos tempos modernos, na ditadura toda particular da publicidade. Mas a chamada "existência privada" também não constitui o ser--homem Essencial, quero dizer, livre. Ela, sim­plesmente, se enrigece numa negação do que é pú­blico. É um despojo dependente que se nutre da simples fuga diante dele. Assim, contra a própria vontade, dá testemunho de sua escravidão ao que é público. Esse, por sua vez, não é outra coisa do que a instituição e a absorção, condicionadas metafisicamente, — de vez que proveniente do domínio da subjetividade ,— da abertura 1 7 Ido ente na objetivação incondicional de tudo. Por isso, a linguagem é posta a serviço da transmissão dos meios de troca. Aqui, desconhecendo qual­quer limite, a objetivação, como o acesso unifor­me de tudo para todos, se expande. A linguagem cai sob a ditadura da publicidade. É essa que, de antemão, decide o que é compreensível e o que deve ser rejeitado como incompreensível.

O que se diz em Ser e Tempo (1927), §§ 27 e 35 sobre o "impessoal" 1 8 não pretende ser, de

17) Abertura = Offenheit: um outro substantivo foi-mado de offen (aberto).

18) "o impessoal" = "das man": Heidegger substantiva aqui o pronome, man, que exprime o impessoal. E'

o on francês. Com essa substantlvação pretende expri­mir o domínio do impessoal.

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forma alguma, uma simples contribuição inciden­tal para a sociologia. Igualmente, o "impessoal" não significa apenas a oposição ético-existen-t i v a 1 9 ao ser próprio da pessoa. 2 0 O que aí se diz, contém, antes, uma indicação, pensada a par­tir da questão sobre a Verdade do Ser, de que, originariamente, a palavra pertence ao Ser. Essa re-ferência permanece oculta, onde domina a sub­jetividade, que se apresenta como publicidade. Tão logo que a Verdade do Ser se torna para o pensamento digna de ser pensada, a meditação sóbrc a Essência da linguagem tem que atingir um outro nível. Já não pode ser apenas uma sim­ples filosofia da linguagem. É só por isso que Ser e Tempo (§ 34) inclui uma indicação sobre a dimensão Essencial da linguagem e toca na ques­tão simples do modo de ser, em que a linguagem, cada vez, "se essencializa", como linguagem.

O esvaziamento da linguagem, que prolifera rápido por toda parte, não corrói apenas a respon­sabilidade estética e moral, vigente em todo em­prego da linguagem. Provém de uma ameaça à Essência do homem. Um estilo apurado, somente, ainda não demonstra termos evitado esse perigo

19) Existentivo = existenti&ll: já Ser e Tempo i n t r o ­duz na Anal í t i ca do Dasein a d is t inção entre das

existenziale e das existentielle. A primeira expressão se refere à estrutura onto lóg ica da ex is tênc ia enquanto a s e g u n d a diz respei to às suas formas ô n t i c a s . Para t r a ­duzir essa ú l t ima e m p r e g a - s e o neologismo existentivo.

20) O Ser-próprio = das Selbstsein: ve ja - se Introdu­ção à Metafísica l . c . p g . 285 Nota 23.

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Essencial. Ao contrário. Poderia, hoje, até, sig­nificar que não vemos o perigo ou mesmo que nem somos capazes de vê-lo, por ainda não nos havermos ex-posto à sua fisionomia. A decadên­cia da linguagem, ultimamente muito comentada — e com bastante atraso — não é a causa, mas já uma conseqüência do processo no qual a lin­guagem, sob o domínio da moderna metafísica da subjetividade, decai quase inevitavelmente de seu elemento. A linguagem continua a recusar-nos a sua Essência, a saber, que é a casa da Verdade do Ser. Ao invés, ela se entrega, simplesmente como um instrumento para o domínio do ente, a nosso querer e às nossas atividades.

O próprio enle se dá. como efetivo, no sistema de causa e efeito. 2 1 O ente, entendido assim

como o efetivo, é encontrado através de cálculos e manipulações, bem como, na ciência e na filo­sofia, através de explicações e fundamentações. A essas pertence também garantir que uma coisa é inexplicável. Com isso cremos estar diante do mistério. Como se já estivesse estabelecido que a Verdade do Ser se pudesse' edificar sobre causas e razões explicativas ou, o que dá no mesmo, sobre a impossibilidade de sua apreensão.

Caso o homem ainda deva encontrar o cami­nho da proximidade do Ser, terá de aprender pri-

21) Sistema de causa e efeito =. im Gewirk von Ursache und Wirkung: já v imos ac ima, Nota (2) que, na

reflexão metaf í s ica , a real idade é interpretada c o m o um s i s tema de ef ic iência entre causa e e fe i to . Esse s i s tema se exprime aqui com a palavra Geioirrc.

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meiro a existir no inefável. 2 2 Terá que conhecer o extravio 2 3 do público como também a impotên­cia do privado. Antes de falar, o homem terá que deixar-se apelar pelo Ser mesmo com o risco de, sob um tal apelo, ter pouco ou ter raramento algo a dizer. Somente assim, se restituirá à palavra a preciosidade de sua Essência e ao homem, a ha­bitação para morar na Verdade do Ser.

Não haverá nesse apelo ao homem, não ha­verá na tentativa de preparar o homem para tal apelo, um esforço pelo homem? Para onde ,se dirige "a Cura" 2 4 senão no sentido de reconduzir o homem de volta à sua Essência. O que isso sig­nifica senão tornar o homem (homo) humano (humanus) ? Destarte é a humanitas a preocupa­ção de um tal pensamento. Pois humanismus é curar e cuidar que o homem seja humano e não inumano, isto é, estranho à sua Essência. Todavia em que consiste a humanidade do homem? Ela repousa em sua Essência.

A partir de que e como se determina a Es­sência do homem? Marx exige que o "homem hu-

22) "o inefável =^ das Namenlose: propriamente das Namenlose significa o sem nome, o que não tem

nome.

23) Extravio = Verführung: Essa palavra designa a ação tendente a levar para fora do caminho devido.

Daí a tradução por extravio.

24) "a Cura" = "die Sorge": E' um termo característico da Analítica Existencial desenvolvida em Sein und

Zeit. Exprime a estrutura ontológica que unifica todos os momentos constitutivos do "Ser-no-mundo".

mano" seja conhecido e reeonhecido. Êle o en­contra na "sociedade": O homem "social" é para êle o "homem natural". Na "sociedade" se asse­gura equitativamente a "natureza" do homem, isto é, a totalidade de suas "necessidades naturais" (alimentação, vestuário, reprodução, subsistência econômica). O cristão vê a humanidade do ho­mem — a humanitas do homo — a partir de sua distinção da Deitas. Na história da salvação êle é homem como "filho de Deus", que, em Cristo, percebe e assume o apelo do Pai. O homem não é deste mundo, na medida em que o "mundo", pensado segundo a teoria de Platão, é apenas uma passagem transitória para o além.

É ao tempo da República Romana que, pela primeira vez, e expressamente com seu nome pró­prio, se pensa e aspira a humanitas. O homo humanus se opõe ao homo barbarus. O homo humanus é aqui o romano que exalta e enobrece a virtus romana, pela "incorporação" da paideia tomada dos gregos. Os gregos são os gregos do Helenismo, cuja formação se fizera nas escolas filosóficas. Ela se refere à eruditio et institutio in tonas artes. A paideia assim entendida se traduz por humanitas. A romanüas propria­mente dita do homo romanus consiste nessa humanitas. É em Roma que encontramos o primeiro humanismo. Em sua Essência, por­tanto, o humanismo permanece um fenômeno especificamente romano, que nasce do encontro da romanidade com a cultura do helenismo. A chamada Renascença dos séculos XIV e XV na

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Itália é uma renascentiu vomanitatis. Porque o que interessa é a romanitas, trata-se da humanitas e, por conseguinte, da paideia grega. Mas o grego aqui é sempre o grego em sua forma pos­terior e esta ainda assim, à romana. Também o homo romarias da Renascença está numa oposi­ção ao homo barbaras. Todavia, o in-umano é agora o pretenso barbarismo da escolástica gótica da Idade Média. Por isso, ao humanismo, enten­dido historicamente, sempre pertence um stadium humanitatis que, num certo e determinado modo, retoma a antigüidade e assim se torna cada vez um reviver da Grécia. É o que se mostra em nos­so humanismo do século XVIII, empreendido e sustentado por Winckelmann, Goethe e Schiller. Hoelderlin, porém, não pertence ao "humanismo". E não pertence, porque êle pensa o destino 2 S da Essência do homem mais originariamente do que é capaz de fazer esse "humanismo".

Se, no entanto, por humanismo em sentido geral, se entende o esforço tendente a tornar o homem livre para a sua humanidade e a levá-lo a encontrar nessa liberdade sua dignidade, então o humanismo se diferenciará segundo a concepção de "liberdade" e de "natureza" do homem. Do mesmo modo, serão diferentes as vias de sua rea­lização. 0 humanismo de Marx não necessita de uma volta à Antigüidade nem tampouco o huma­nismo, concebido, por Sartre, como existencialis-

25) O destino = das Geschick: veja-se Introdução à Metafísica, I . e . , pg. 98, Nota 14.

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mo. Nesse sentido amplo, também o Cristianismo é um humanismo de vez que, na doutrina cristã, tudo se dirige à salvação (sahis aeterna) do ho­mem, e a história da humanidade aparece dentro da história da salvação. Por mais diversas que sejam, segundo suas finalidades e seus fundamen­tos, quanto aos modos e meios de suas realizações específicas ou consoante a forma de suas doutri­nas, essas espécies de humanismo, na realidade, coincidem no fato de todas elas determinarem a humanitas do homo humanus a partir de uma interpretação já assente da natureza, da história, do mundo, do fundamento do mundo, isto é, a partir de uma interpretação já assente do ente em sua totalidade.

Todo humanismo ou se funda numa metafí­sica ou se converte a si mesmo em fundamento de uma metafísica. Toda determinação da Es­sência do homem, que já pressupõe, em si mesma, uma interpretação do ente sem investigar — quer o saiba quer não — a questão sobre a Verdade do Ser, é metafísica. Por isso a característica pró­pria de toda metafísica — e precisamente no to­cante ao modo em que se determina a Essência do homem — é ser "humanista". Em conseqüência, todo humanismo permanecerá sempre metafísico. Ao determinar a humanidade do homem, o hu­manismo não só não questiona a re-ferência do Ser à Essência do homem. Êle até impede tal questionamento uma vez que, devido à sua pro-ve-niência da metafísica, nem o conhece nem o en­tende. Mas, por outro lado, a necessidade e a

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índole própria da questão sobre a Verdade do Ser, esquecida na e pela metafísica, só poderá vir à luz, se, no meio do império da metafísica, se co­locar a questão: "O que é metafísica?". Até ini­cialmente, todo questionamento do "Ser", inclusive a questão sobre a Verdade do Ser, só se pode in­troduzir "metaf isicamente".

O primeiro humanismo, o romano, e todo hu­manismo, que, desde então, tem surgido, pressu­põem evidente a "essência" universal do homem. O homem é considerado como animal raíionale. Tal determinação não é apenas a tradução latina do Zoon logon exon grego mas também uma inter­pretação metafísica. Essa determinação da Es­sência do homem não é falsa. Todavia, é condi­cionada pela metafísica. A proveniência de sua Essência e não somente suas limitações torna­ram-se dignas-de-serem-questionadas 2 8 em Ser e Tempo. 0 digno-de-ser-questionado é o que, an­tes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado 2 7 , e de forma alguma, como o que submerge na voracidade de uma mania de dúvida.

26) "dignas de serem questionadas = frag-würãig: Esse é um adjetivo composto de fragen (questionar) e

würdig (digno, merecedor). A composição de ambos in­dica o que, por si mesmo, se impõe como digno de ser questionado. 27) o que há de ser pensado — das Zu-Denkende. Em

alemão uma das maneiras de se exprimir a idéia de tarefa e dever é uma locução composta do auxiliar ser (sein) ou ter (haben) e da preposição, para (zu) com o infinito. Heidegger substantiva essa locução, das Zu-Denkende — o a pensar.

Ê certo que a metafísica representa 2 8 o ente em seu ser e pensa assim o ser do ente. Todavia, ela não pensa a diferença entre eles (Cfr. Vom Wesen des Grundes — Da Essencialização do Fundamento —- 1929, p. 8, além de Kant und das Problem der Metaphysik — Kant e o Problema da Metafísica, 1929, p. 225, e ainda, Sein und Zeit — Ser e Tempo —, p. 230). A metafísica não ques­tiona o Verdade do Ser era si mesmo. Daí tam­bém nunca colocar a questão, de que modo a Es­sência do homem pertence à Verdade do Ser. Essa questão, a metafísica não apenas ainda não colocou. Ela é inaccessível à metafísica, enquanto metafísica. O Ser continua a esperar, que Êle mesmo se torne, para o homem, digno de ser pensado.

Como quer que se determine, com respeito à determinação da Essência do homem, a ratio do animal e a razão do ser vivo, seja como "faculdade dos princípios", ou como "faculdade das catego­rias" ou de outro modo qualquer, sempre a Essên­cia da razão se funda em que o Ser em si mesmo já se iluminou e aconteceu em sua Verdade em toda percepção 2 0 do ente em seu ser. Igual­mente, no animal, Z.oon, já se põe uma interpre-

28) representa = vorstellen: Veja-se, acima, a Nota 16.

29) percepção = Vernehmen: Trata-se de um compos­to de nehmen (tomar). O prefixo, ver — ajunta

ao radical o sentido de intensidade, penetração e profun­didade. Daí vernehmen significa: entender, perceber e auscultar. E' desse verbo que se deriva a palavra alemã para dizer razão, die Vernunft.

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tação da "vida", que, necessariamente, se baseia numa interpretação do ente como Zoe e Physis, na qual o ser vivo aparece. Além disso — e antes de tudo — resta perguntar, por fim, se origina­riamente e antecedendo, decisivamente, a tudo, a Essência do homem repousa na dimensão da ani-malitas. Estaremos num bom caminho para a Essência do homem, quando e enquanto dis-tin-guirmos o homem, como um ser vivo entre outros, da planta, do animal e de Deus? Sem dúvida, assim também se poderá proceder; dessa maneira será possível situar o homem dentro do ente, co­mo um ente entre outros. E, ao fazê-lo, sempre se há de conseguir afirmar algo correto do homem. Todavia, também dever-se-ia ter sempre em mente, que, assim, o homem permanecerá definitivamente relegado ao âmbito de vigor da animatitas, mesmo no caso de não vir a ser identificado com o animal mas de se lhe atribuir uma diferença específica Em princípio, se pensa sempre o homo animalis ainda quando se põe anima 8 0 , como animus uive meus e essa, como sujeito, como pessoa, como es­pírito. Esse pôr é o modo próprio da metafísica. Desse modo, a Essência do homem é apoucada e nunca pensada em sua pro-veniência. . A prove­niência da Essência do homem permanecerá sem­pre para a humanidade Histórica seu por-vir Es­sencial. A metafísica pensa o homem a partir da animalitas. Ela não o pensa na direção de sua humanitas.

30) Anima: Heidegger alude aqui à conexão da p a l a ­vra, animal, c o m a palavra, anima.

A metafísica se tranca ao dado Essencial simples, de que o homem só vige em sua Essência, enquanto é interpelado pelo Ser. Unicamente a partir dessa interpelação êle "encontrou" onde mora sua Essência. Somente a partir desse mo­rar, "tem" êle "linguagem", como a morada, que pre-serva o ec-stático para sua Essência. Chamo ec-sistência do homem o estar na clareira do Ser. Esse modo de ser só é próprio do homem. Assim entendida, a ec-sistência não é apenas o funda­mento de possibilidade da razão, ratio. É tam­bém onde a Essência do homem con-serva a pro--veniência de sua determinação.

Só se pode dizer ec-sistência da Essência do homem, isto é, do modo humano de "ser", pois somente o homem, até onde alcança nossa expe­riência, foi introduzido no destino da ec-sistência. Por isso também a ec-sistência nunca pode ser pensada como uma espécie particular entre outras espécies de seres vivos, suposto, naturalmente, que foi destinado ao homem pensar a Essência de seu ser e não, apenas, fazer relatórios sobre a natureza e a história de sua constituição e de suas ativi­dades. Assim, na Essência da ec-sistência, se funda também o que, em comparação com o "animal", se atribui ao homem, como animalitas. O corpo dü homem é algo Essencialmente diferente de um organismo animal. Não se supera o e r r o 3 1 do biologismo, ajuntando-se ao corpo do homem a alma e à alma, o espírito e ao espírito, o existen-

31) Erro = Irre: v e j a - s e Introdução à Metafísica, l . c . p g . 99, Nota 26.

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l ivo 3 2 , nem por se proclamar mais alto do que antes, o apreço pelo espírito, para, logo a se­guir, reduzir tudo à vivência da vida, garantindo-se numa advertência, que, com seus conceitos rígidos, o pensamento destrói o fluxo da vida e o pensa­mento do Ser deturpa a existência. Que a fisio­logia e a química fisiológica possam investigar o homem, como organismo, à maneira das ciências naturais, ainda não prova que a Essência do ho­mem esteja nesse "orgânico", isto é, no corpo ex­plicado cientificamente. Isso é tão pouco exato, como julgar-se que na energia atômica reside a Essência da natureza. Pois pode muito bem ser que a natureza esconda sua Essência precisamente no lado em que se presta ao controle técnico do homem. Assim como a Essência do homem não consiste em ter êle um organismo animal, assim também não se pode eliminar ou compensar essa determinação insuficiente da Essência do homem, dotando-o de uma alma imortal ou da força da razão ou do caráter de pessoa. Sempre, em todos esses casos, se passa à margem — e em razão do mesmo projeto metafísico — da Essência do homem.

O que o homem é, — isso significa, ha lin­guagem tradicional da metafísica, a "essência" do homem — repousa na ec-sistência. Mas a ec-sistência aqui pensada não se identifica com o conceito tradicional de existentia que, distinguin-do-se de essentia, concebida como possibilidade.

32) o existentivo = das existentielle: veja-se, acima, Nota 19.

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significa realidade. Em Ser e Tempo (p. 42) acha-se grifada a frase: "A essência do Dasein33

está na existência." Pois não se trata de uma con­traposição de existentia e essentia de vez que não estão em questão essas duas determinações metafí-ticas do Ser e muito menos, suas relações. Ainda menos contém a frase uma afirmação geral sobre o Dasein no sentido em que esse termo, cunhado no século XVIII para designar objeto (Gegenstand), pretendia exprimir o conceito metafísico da rea­lidade do real. Ao invés, a frase quer dizer: o homem se essencializa, de tal sorte que êle é o "lu­gar" (Da), isto é, a clareira do Ser. Esse "ser" do lugar (Da), e só êle, possui o caráter funda­mental (Grundzug) de ec-sistência, isto é, da in­sistência ec-stática na Verdade do Ser. A Es­sência ec-stática do homem repousa na ec-sistên­cia, que é e permanece diferente da existentia pensada metafisicamente. Essa última é enten­dida pela filosofia medieval como actualitas. Kant apresenta a existentia como sendo realidade, no sentido de objetividade da experiência. Hegel

33) Dasein: Trata-se de um vocábulo em que Heidegger procura dizer a Essência do homem pensada origi­

nariamente. E' formado de sein (ser) e de da (aqui, lá, como advérbio, e o aqui, o lugar, como substantivo). Assim Dasein diz o aqui, o lugar, do Ser, i . é . , a dimen­são instituída pelo Ser onde o Ser se manifesta. Do ponto de vista etimológico, a melhor tradução portuguesa seria presença, de vez que o prefixo, pre-, do latim prae-, dá também a idéia de lugar e localização, en­quanto o radical, sença, do latim' sentia, implica o verbc esse, ser.

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determina a existentia, como a idéia da subjetivi­dade absoluta, que se sabe a si mesma. Nietzsche concebe a existentia, como o eterno retorno do mesmo. Sem dúvida, ainda fica aberta a questão, se, por meio da existentia, entendida como reali­dade, em suas diversas interrpetações — só à pri­meira vista, distintas entre si — já se pensa sufi­cientemente o ser da pedra ou mesmo a vida, como o ser do vegetal e do animal. Em todo caso, os seres vivos são, assim como são, sem que, a partir de seu ser, como tal, estejam na Verdade do Ser e nesse estar pre-servem a essencialização (das Wesende) de seu ser. Pode-se presumir que, de todos os entes, que são, o ser vivo, é para nós, o mais difícil de ser pensado. Pois, se de um lado, êle nos é o mais próximo, de outro lado, está se­parado de nossa Essência ec-sistente por um abis­mo. Quer-nos parecer até que a Essência do Di­vino nos seja mais próxima do que o estranho ser vivo; mais próxima, a saber, numa distância de Essência, que, como distância, é mais familiar a nossa Essência ec-sistente do que o parentesco abismal de nosso corpo com o animal, que mal po­deremos pensar completamente. Essas reflexões lançam uma luz estranha sobre a maneira cor­rente, e, por isso mesmo, sempre apressada de ca­racterizar o homem, como animal rationale. Por­que os vegetais e os animais, embora se achem numa tensão com seu ambiente, nunca estão pos­tos livremente na clareira do Ser — e só essa é "mundo" —, por isso lhes falta a linguagem. E não, ao contrário, por lhes ser negada a linguagem,

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encontram-se suspensos sem mundo no seu am­biente. É realmente nessa palavra, "ambiente", que se concentra todo o enigma do ser vivo. Em sua Essência, a linguagem não é nem a exteriori­zação de um organismo, nem a expressão de um ser vivo. Por isso também ela nunca pode ser pensada, de acordo com sua Essência, a partir de seu caráter semasiológico, nem talvez mesmo a partir de seu caráter significativo. A linguagem é o advento do próprio Ser que se clareia e se esconde.

Pensada de maneira ec-stática, a ec-sistência não coincide com existentia nem quanto ao con­teúdo nem quanto à forma. Em seu conteúdo, ec-sistência significa exportar 3 4 a Verdade do Ser. Existentia (existence) diz, ao contrário, actualitas, realidade, distinguindo-se da simples possibilidade concebida como idéia. Ec-sistência evoca a. deter­minação do que o homem é no destino do Verdade do Ser. Existência permanece o nome para a rea­lização do que uma coisa é, enquanto aparece em sua idéia. A frase "o homem ec-siste" não res­ponde à pergunta, se o homem é ou não real. Ela responde à pergunta pela "Essência" do ho-

34) ex-portar = hinaus-stehen: E' uma locução com­posta do verbo, stehen (estar, encontrar-se) e da

preposição, hinaus (para fora de, fora). A preposição como a regência empregada (acusativo) dão à idéia de estar fora uma conotação de dinamismo e movimento. Por isso se traduziu pelo verbo, ex-portar, ressaltando-se a idéia de movimento para fora pela separação do pre­fixo, ex-.

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mem. Essa pergunta costumamos fazê-la de modo igualmente indevido, tanto perguntando, o que é o homem, como perguntando, quem é o ho­mem. Pois no "quem?" ou no "O queV jã bus­camos uma pessoa ou um objeto. Ora, o pessoal não erra nem, ao mesmo tempo, obstrui menos a essencialização (das Wessende) da ec-sistência na História do Ser (seinsgeschichtlich) do que o obje­tivo. Por isso na frase citada de Ser e Tempo (p. 52), se escreveu, de propósito, a palavra "Essência" entre aspas. Com isso se quer indicar que não se determina a "Essência" nem a partir do esse es-sentiae nem a partir do esse existentiae mas a partir do ec-stático do Dasein. Enquanto ec-sis-tente, o homem suporta o Da-sein, assumindo na "Cura" o lugar (Da), como a clareira do Ser. O Da-Éein mesmo, porém, se essencializa num "lan­çamento". Êle se essencializa no lance do Ser, que, destinando-se, instaura o destino.

0 cúmulo do extravio seria pretender-se ex­plicar a frase sobre a Essência ec-sistente do ho­mem, como uma transposição secularizada, para o homem, de uma idéia sobre Deus da teologia cristã (Deus est suum esse). Pois a ec-sistência nem é a realização de uma essência nem produz e põe por si mesma o essencial 3 5. Entendido como ato "positivo" de representação, o "projeto" mencio­nado em Ser e Tempo é considerado como uma

35) o Essencial = das Essentielle: Deve-se tomar Es­sencial aqui no sentido do que pertence à Essên­

cia.

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atividade da subjetividade. Nesse caso, porém, não é pensado da única maneira em que a "com­preensão do Ser" pode ser pensada no âmbito da "Analítica existencial" do "Ser-no-mundo", a saber, como a re-ferência ec-stática à clareira do Ser. A tarefa de se repetir e acompanhar de modo sa­tisfatório esse outro modo de pensar, que abandona a subjetividade, foi, na verdade, dificultada pelo fato de se haver retido, na publicação de Ser e Tempo, a terceira secção da primeira parte, inti­tulada Tempo e Ser (Cf. Ser e Tempo, p. 39). Aqui tudo se inverte. Essa secção foi retida, por­que o pensamento não chegou a exprimir de modo suficiente essa inversão e com a ajuda da lingua­gem da metafísica não conseguiu executá-la. A conferência, Da Essência da Verdade, que, embora pensada e pronunciada em 1930, só foi impressa em 1943, deixa entrever, de certo modo, o pensa­mento da inversão de Ser e Tempo para Tempo r Ser. Essa inversão não constitui uma mudança na posição de Ser e Tempo mas é nela que o pensa­mento aí tentado alcança o lugar da dimensão, a partir da qual se fêz a experiência de Ser e Tempo, e se fêz a partir da experiência fundamental do esquecimento do Ser.

Sartre, ao contrário, expressa o princípio fun­damental do Existencialismo do seguinte modo: a existência precede a essência. Êle toma aqui existentia e essentia no sentido da metafísica, que desde Platão diz: a essentia antecede a existentia. Sartre inverte os termos dessa frase. Ora, a inversão de uma frase metafísica continua sendo

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uma frase metafísica. Assim como sua frase, continua êle, com a metafísica, no esquecimento da Verdade do Ser. Pois como quer que a filo­sofia determine as relações de essentia e existentia, seja no sentido das controvérsias da Idade Média, seja no sentido de Leibniz ou de outra maneira qualquer, ela deve primeiro perguntar antes de mais nada: a partir de que destino do Ser se chega a pensar no Ser essa distinção de esse essentiae e de esse existeníiae. Resta a pensar, por que a questão sobre esse destino do Ser nunca foi ques­tionada e por que ela jamais pôde ser pensada. Ou o fato de assim achar-se o distinção de essentia e existentia não será um sinal de esquecimento do Ser? Podemos supor, que esse destino não se funda numa simples negligência do pensamento humano, menos ainda numa menor capacidade do pensamento ocidental do passado. A distinção — escondida quanto à proveniência de sua Es­sência — de essentia (quididade) e existentia (rea­lidade) domina o destino da História ocidental e de toda a História determinada pela Europa.

A frase capital de Sartre sobre a precedência da existentia frente à essentia justifica, sem em­bargo, o nome de "Existencialismo" como um título adequado a essa filosofia. A frase do "Existencialismo", no entanto, não tem nada de comum com a frase de Ser e Tempo; mesmo pres­cindindo de que, em Ser e Tempo, ainda não se poderia pronunciar uma frase sobre a relação de essentia e existentia. Pois se trata de preparar algo ainda prévio, o que se faz — como se vê pelo

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que ficou dito — de um modo bastante acanhado. Talvez o que ainda hoje está por se dizer, poderia converter-se num estímulo tendente a levar a Es­sência do homem a considerar, pensando, a di­mensão da Verdade do Ser, que a penetra e do­mina com seu vigor. Todavia, também isso só poderá dar-se em prol da dignidade do Ser e em benefício do Da-sein, que o homem, ec-sistindo, suporta, não, porém, em função do homem, para que através de suas criações se façam valer civili­zação e cultura.

A fim de alcançarmos a dimensão da Verdade do Ser, para podermos pensá-la, temos primeiro que esclarecer, como o Ser atinge o homem e o requisita. Essa experiência Essencial, nós a fa­zemos quando nos ocorre que o homem é, en­quanto ec-siste. Dito inicialmente na linguagem da tradição, isso se exprime nas palavras: a ec-sistência do homem é a sua substância. Por isso, em Ser e Tempo, sempre de novo retorna a frase: "A "substância" do homem é a existência" (pp. 117, 212, 314). Mas "substância", pensada dentro da História do Ser, já é uma tradução, que encobre o sentido, de ousia, palavra que evoca a essencialidade do que se essencializa 3 6, mas que, por uma misteriosa equivocidade, significa, na maioria das vezes, o que se essencializa. Se pen­sarmos o termo metafísico "substância" nesse sentido — que Ser e Tempo, de acordo com a

36) se essencializa = west: veja-se Introdução à Me­tafísica, l . c , pg. 283, Nota 9.

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"destruição fenomenológica" realizada, já tem em mente (cf. p . 25) — então a frase, "a substância" do homem é a existência" não diz outra coisa se­não: o modo em que o homem, em sua própria Essência, se essencializa, com referência ao Ser, é in-sistir ec-stàticamente na Verdade do Ser. Com essa determinação da Essência do homem não se declaram falsas nem se rejeitam as interpretações humanistas do homem, como animal rationale, como "pessoa", como ser dotado de alma, espírito e corpo. Ao contrário, o único pensamento a se exprimir é que as determinações humanistas da Essência do homem, ainda mesmo as mais elevadas, não chegam a fazer a experiência do que é propria­mente a dignidade do homem. Nesse sentido o pensamento de Ser e Tempo é contra o humanis­mo. Essa oposição, todavia, não significa que um tal pensamento bandeie para o lado oposto do humano e preconize o inumano, defenda a des­umanidade e degrade a dignidade do homem. Ao contrário. Pensa-se contra o humanismo porque o humanismo não coloca bastante alto a humani-tas do homem. De fato, a grandeza da Essência do homem não consiste em ser êle, como "sujeito", a substância do ente, para, na qualidade de dés­pota do Ser, fazer com que a entidade (Seiendsein) do ente se reduza à tão celebrada "objetividade".

Ao invés, o homem foi "lançado" pelo próprio Ser na Verdade do Ser, a fim de que, ec-sistindo nesse lançamento, guarde a Verdade do Ser; a fim de que, na luz do Ser, o ente apareça como o ente que é. Se e como o ente aparece, se e como Deus

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c os deuses, a História e a natureza ingressam, se apresentam e se ausentam da clareira do Ser, isso não c o homem quem decide. O advento do ente repousa no destino do Ser. Para o homem, a questão é, se êle encontra o que é "destinado" 3 7

à sua Essência, correspondente ao destino do Ser. Pois é de acordo com esse destino, que, como ec--sistente, êle tem de guardar a Verdade do Ser. 0 homem é o pastor do Ser. É somente nessa direção que pensa Ser e Tempo, ao fazer, "na Cura", a experiência da ec-sistência ec-stática. (Cf. § 44a, pp. 226 ss).

Mas o Ser — o que é o Ser? É Êle mesmo. O pensamento vindouro terá de aprender a fazer essa experiência e a dizê-la. O "Ser" não é nem Deus nem um fundamento do mundo. O Ser está mais distante do que todo ente e, não obstante, está mais próximo do homem do que qualquer ente, seja um rochedo, um animal, uma obra d'arte, uma máquina, seja um anjo ou Deus. O Ser é o mais próximo. E, todavia, para o homem é a proximidade o que lhe está mais distante. Em primeira aproximação, o homem se atém sempre, e somente, ao ente. Sem dúvida, sempre que o pensamento se representa o ente como ente, refe­re-se ao Ser. No entanto, não pensa, na verdade, senão o ente como tal e nunca o Ser como tal. A "questão do Ser" continua sendo a questão sobre o ente. A questão do Ser não é, de forma alguma, o que designa esse título capcioso: a questão sobre

37) destinado = schicklich: veja-se, acima, a Nota 13.

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o Ser. A filosofia, mesmo quando se faz "crítica" como em Descartes e Kant, segue sempre a esteira da representação metafísica. Ela pensa a partir do ente e na direção do ente através de uma visão sobre o Ser. Pois já é na luz do Ser que sempre se processa todo movimento a partir do ente, como todo retorno para o ente.

A metafísica só conhece a clareira do Ser ou simplesmente como o v i so 3 8 que oferece, em seu "aspecto" (idea), o presente (das Auwesende) ou criticamente como o visado na pro-spectiva 3 9 da representação categorial por parte da subjetivi­dade. Isso quer dizer: a Verdade do Ser, como a própria clareira, permanente oculta à metafísica. Esse estar-oculto, porém, não é uma deficiência da metafísica mas o tesouro de sua riqueza, que lhe é recusado e sem embargo lhe é oferecido. A pró­pria clareira é o Ser. É ela que, dentro do destino do Ser, outorga à metafísica a perspectiva (An-blick), a partir da qual o pre-sente afeta o homem que se lhe apresenta, de sorte que, na percepção (noein), o próprio homem pode atingir o Ser (thigein, Aristóteles, Met. VIII, 10). É a pers­pectiva (Anblick) que suscita pro-specção (Hin--sichl) . Aquela se entrega a essa, quando a per-

38) o viso = der Her-blick: Subs tant ivo composto de blicken (o lhar) e her (para c á ) , que indica ass im a

f i s ionomia que u m a coisa apresenta e oferece em sua p r e ­

sença .

39) pro-spectiva = Hinsicht: E' o ângulo de visão sob o qual a concepção metaf í s i ca do en te se coloca

para representá - lo s egundo o e squema das ca tegor ias .

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• •

cepção se tornou um propor-diante-de-se (Vor-sich--Herstellen) na perceptio da res cogitans, como subiectum da certitudo.

Supondo que nos seja permitido pergun­tar dessa maneira, como se conduz o Ser fren­te à ec-sistência? O próprio Ser é a conduta (Verhältnis), porquanto êle conduz e reúne em si a ec-sistência, em sua Essência ec-sistencial, isto é, ec-stática, como o lugar da Verdade do Ser no meio do ente. Porque, enquanto ec-sistente, o homem chega a estar nessa conduta (Verhältnis), em que o próprio Ser se destina, na medida em que o homem o suporta ec-stàticamente, isto é, na medida em que o homem o assume na Cura, por isso, em primeira aproximação, êle desconhece o mais próximo e se atém ao menos próximo (das Vebernächste). Pensa até que o menos próximo é o mais próximo. E, no entanto, mais próximo do que o mais próximo, e, ao mesmo tempo, mais distante, para o pensamento comum, do que o que para esse pensamento é o mais distante, é a própria proximidade: a Verdade do Ser.

O esquecimento da Verdade do Ser em favor da avalanche do ente, não pensado em sua Es­sência, é o sentido da "decadência", mencionada em Ser e Tempo. A palavra, "decadência", não significa uma queda no pecado do homem, enten­dida segundo a "filosofia moral" mas ao mesmo tempo, num sentido secularizado. Ela designa uma referência Essencial do homem com o Ser dentro da referência do Ser à Essência do homem. Em conseqüência, os titulos, "propriedade" e "im-

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propriedade", que preludiam a decadência, não significam uma distinção moral-existentiva 4 0 nem "antropológica" mas a referência "ec-stática" da Essência do homem à Verdade do Ser, referência essa, que, antes de tudo, resta ainda a pensar, porque, até agora, permaneceu oculta à filosofia. Mas não é em razão da ec-sistência que essa refe­rência é assim como ela é. É, ao contrário, a Es­sência da ec-sistência que provém ec-stàtica-ec--sistencialmente da Essência da Verdade do Ser.

O que o pensamento, que, pela primeira vez, procurou expressar-se em Ser e Tempo, pretende alcançar, é algo de muito simples. Por ser sim­ples, o Ser permanece misterioso, a proximidade calma de um vigor (Walten), que não se impõe à força. Essa proximidade se essencializa como a linguagem. Mas a linguagem não é meramente linguagem, no sentido em que a concebemos, quando muito, como a unidade de fonema (gra­fema), melodia e ritmo e significação (sentido) . E pensamos no fonema e no grafema o corpo, na melodia e no ritmo a alma e na significação (das Bedeutungsmüssige) o espírito da linguagem Assim, de ordinário, pensamos a linguagem numa correspondência à Essência do homem, no sentido em que essa última é representada como animal rationale, isto é, como a unidade de corpo-alma--espírito. No entanto, assim como na humanitas do homo animalis fica oculta a ec-sistência e com a ec-sistência a referência da Verdade do Ser ao

40) existentiva = existentiell: veja-se, acima, a Nota 19.

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\

homem, assim também a interpretação metafísico--animal da linguagem encobre-lhe a Essência; na História do Ser. De acordo com essa Essência, a linguagem é a casa do Ser, edificada em sua propriedade 4 1 pelo Ser e disposta a partir do Ser. Por isso urge pensar a Essência da linguagem numa correspondência ao Ser e como uma tal cor­respondência, isto é, como a morada da Essência do homem.

O homem não é apenas um ser vivo, que, en­tre outras faculdades, possui também a lingua­gem . Muito mais do que isso. A linguagem é a casa do Ser. Nela morando, o homem ec-siste na me­dida em que pertence à Verdade do Ser, prote-gendo-a e guardando-a.

Destarte, na determinação da humanidade do homem, como ec-sistência, o que importa é que não é o homem o Essencial mas o Ser, como a dimensão do ec-stático da ec-sistência. Todavia não se deve entender aqui dimensão no sentido conhecido de espaço. Ao contrário, tudo que é espacial e todo espaço-tempo se essencializa no dimensional, no qual o Ser mesmo é.

O pensamento se concentra na consideração dessas simples referências. Para elas procura a palavra devida dentro da linguagem de há muito tradicional da metafísica e de sua gramática. Suposto que um título tivesse alguma importân­cia, será que esse pensamento ainda poderia ser designado como humanismo? De certo que não,

41) edi)içada em sua propriedade = ereignet: veja-se acima Nota 11.

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enquanto o humanismo pensa metafisieamente. Certamente não, se fôr existencialismo e defender a frase, que Sartre assim exprime: "précisément nous sommes sur un plan où il y a seulement des hommes". (L'Existencialisme est un humanisme, p . 36). Em vez disso, dever-se-ia dizer, pensan-do-se segundo Ser e Tempo: "précisément nous sommes sur un plan où il y a principalement l'Etre". Mas, donde provém, e o que é le plan? "L'Etre et le plan" são o mesmo. É de propósito e com cautela que se diz em "Sem e Tempo" (p. 212): il y a l'Etre: "es gibt" o Ser. 0 "il y a" traduz inexatamente o es gibt". Pois o "es" que aqui "gibt" (dá), é o próprio Ser. O "gibt" (dá) evoca a Essência do Ser, que se doa, con­cedendo a sua Verdade. O dar-se a si mesmo com a abertura à abertura é o próprio Ser.

Ao mesmo tempo, emprega-se o "es gibt" (se dá), para evitar, por enquanto, a locução: "o Ser é"; pois o é se diz comumente daquilo que é. E isso chamamos de ente. Ora, o Ser não é o ente. Por isso, se se diz o é, sem ulteriores explicações, do Ser, então facilmente se entende o Ser como um ente, à maneira dos entes conhecidos, que como causa produzem efeito ou como efeito são produzidos. Sem embargo, já nos primórdios do pensamento, diz Parmênides : estin gar einai, "é, pois, o Ser". Nessa palavra se esconde para todo pensamento o mistério originário. Talvez o é só possa ser dito de maneira adequada do Ser, de sorte que, em sentido próprio, nenhum ente é. Todavia, porque o pensamento ainda deve chegar

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a dizer o Ser em sua Verdade, ao invés de expli­cá-lo como um ente, tem que ficar aberta, para o desvelo cuidadoso do pensamento, a questão, se e como o Ser é.

Até hoje ainda não foi pensado o est in gar ei­nai de Parmênides. Por aí se pode medir, como se dá o progresso da filosofia. Ela — se levar em consideração sua Essência — não pro-gride de forma alguma. Ela pisa sempre no mesmo lugar para pensar sempre o mesmo. Pro-gredir, no sentido de abandonar seu lugar, é um erro, que acompanha o pensamento como a sombra que êle mesmo projeta. Porque o Ser ainda não foi pen­sado, por isso também, em Ser e Tempo, se diz do Ser: "es gibt" (se dá) . Mas sobre esse "il y a" não se poderá especular diretamente e sem am­paro. Esse "es gibt" vige e vigora como o destino do Ser, cuja História chega a ser linguagem na palavra dos pensadores Essenciais. Daí, o pensa­mento que pensa a Verdade do Ser, é, como pen­samento, Histórico. Não há um pensamento "sis temático" e a seu lado para ilustração, uma histo­riografia das opiniões passadas. Mas também não há apenas, como pensa Hegel, uma sistemáti­ca, que pudesse fazer da lei de seu pensamento a lei da História, absorvendo-a no sistema. 4 2

42) absorvendo no sistema = in das System aufgeho­ben: Aufheben é um verbo c o m três s ignif icações

principais : suprimir, elevar, conservar . E' na dialét ica dessas três s ignif icações que se tornou termo técnico da fi losofia de Hege l . Heidegger o emprega aqui nessa a c e p ­ção t écn ica . Absorver const i tu i a me lhor correspondên­cia portuguesa, expressa n u m a pa lavra .

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Dá-se — se se pensa mais originariamente — a História do Ser, à qual pertence o pensamento, como a memór ia 4 3 dessa História, por cujo pro­cesso o pensamento se edifica em sua proprie­dade. 4 4 A memória se distingue essencialmente do presentificar posterior da história no sentido do que transcorreu no passado. A História não se processa primordialmente como acontecimento. E esse não é transcorrer. O processar-se da His­tória se essencializa como o destino da Verdade do Ser a partir desse próprio destino (Cf. a Con­ferência sobre o hino de Hoelderlin, "Wie wenn am Feiertage..." , (Como quando em dia de fes ta . . . ) , 1941, p. 31). Destino de-vém o Ser, quando Êle, o Ser, se dá. Isso, porém, pensado consoante o destino, quer dizer: Êle se dá e se recusa simultaneamente. Não obstante, não é não-verdadeira a determinação da História de Hegel, como o des-envolvimento do "Espírito". Mas também ela não é em parte correta, em parte falsa. É tão verdadeira, como a metafísica é ver­dadeira, cuja Essência, pensada absolutamente, se fêz linguagem no sistema pela primeira vez em Hegel. Incluindo suas inversões em Marx e en Nietzsche, a metafísica absoluta pertence à His-

43) memória — Andenken: essa palavra se compõe do verbo, denken (pensar) e da preposição, an (em, ao

lado de, junto a ) , daí seu sentido corrente de recordação, lembrança. Heidegger o toma em sua acepção originá­ria de pensar em. E' também esse o significado origi­nário de memória.

44) por cujo processo... edifica em sua propriedade... = von ihr selbst ereignet: veja-se, acima, Nota 11.

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tória da Verdade do Ser. O que dela provém, não se pode atingir ou eliminar por meio de refuta­ções. Só se pode a-colhêr na medida em que sua verdade é protegida mais originariamente, retor­nando ao próprio Ser, e desvinculada do domínio de uma opinião simplesmente humana. No âm­bito do pensamento Essencial toda refutação é uma nesciedade. A disputa entre pensadores é a "disputa diligente" 4 5 da causa em si mesma. É ela que lhes facilita alternadamente pertencerem à mesma causa, a partir da qual eles encontram o que lhes é destinado, no destino do Ser.

Suposto que, no porvir, o homem possa pensar a Verdade do Ser, então êle pensará a partir da ec-sistência. Pois ó ec-sistindo que êle está no destino do Ser. A ec-sistência do homem é, como ec-sistência, Histórica e não somente ou até mes­mo exclusivamente, porque, no curso do tempo, acontece com o homem e com as coisas humanas toda sorte de ocorrências. Porque se trata de pen­sar a ec-sistência do Da-sein, por isso importa tan­to ao pensamento de Ser e Tempo, que a Histori­cidade do Dasein seja experimentada.

Mas não se diz em Ser e Tempo (p. 212) pre­cisamente lá onde se fala do "es gibt" (se dá ) : "só enquanto é o Dasein, dá-se Ser"? Realmente.

45) "disputa diligente" = "der liebende Streit": liebend, o qualificativo dessa disputa, é o particípio presente

do verbo lieben (amar), mas Heidegger o toma no sen­tido explicado no início do texto. Emprega-se na tradu­ção o adjetivo, diligente, para se evitarem as conotações do adjetivo "amorosa".

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E isso significa: só enquanto se a-propria 4 6 a cla­reira do Ser, é que o Ser se entrega, no que êle é propriamente, ao homem. Que, porém, o Da (lugar), a clareira, como Verdade do próprio Ser. se a-proprie, é destinação do próprio Ser. É o destino da clareira. A frase não significa: O Dasein do homem, no sentido tradicional de exis-tentia, e pensado modernamente, como a realida­de do ego cogito, é aquele ente por meio do qual o Ser é criado. A frase não diz, que o Ser é um produto do homem. Na introdução de Ser e Tempo (p. 38) está clara e simplesmente, e até grifado: "0 Ser é o ab-solutamente (schlechthin) transcendem". Assim como a abertura da pro­ximidade espacial transcende, vista da perspectiva das coisas que lhe são próximas e distantes, essas mesmas coisas, assim também o Ser está essencial­mente mais distante do que qualquer ente, poi­sei- Êle a própria clareira. Todavia, de acordo com o ponto de partida (Ansatz), inicialmente, inevitável situado dentro do domínio da metafí­sica, o Ser é pensando a partir do ente. Somente desta perspectiva é que o Ser se apresenta numa transcendência e como transcendência.

A determinação introdutória, "o Ser" é o ab--solutamente transcendem", reúne numa simples frase o modo em que, até agora, a Essência do Ser se tem clareado ao homem. Essa determina­ção retrospectiva da Essência do Ser, a partir da

46) se a-propria = ereignet: tem aqui o significado ex­plicado, acima, na Nota 11, de chegar à sua pro­

priedade.

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clareira do ente, como tal, é, e permanece, inevi­tável para o exórdio de um pensamento que pre­para a questão sobre a Verdade do Ser. Dessa maneira, o pensamento testemunha sua Essência destinada (geschicklich). A presunção de querer começar tudo de início e declarar falsa toda filo­sofia anterior, lhe é estranha. Quanto, porém, a saber, se a determinação do Ser, como o ab-soluta­mente transcendem, já evoca a Essência simples da Verdade do Ser, isso e só isso constitui a pri­meira questão para um pensamento, que procura pensar a Verdade do Ser. É por isso que, à pá­gina 230 de Ser e Tempo, se diz que somente a partir do "Sentido", isto é, da Verdade do Ser se pode compreender, como o Ser é. O Ser se clareia para o homem no projeto ec-stático. Todavia, esse projeto não cria o Ser.

Ademais, o projeto é Essencialmente um projeto lançado. O que lança no projeto, não é o homem mas o próprio Ser. Esse des­tina o homem na ec-sistência do Da-sein, como sua Essência. O destino se a-propria, 4 7

como a clareira do Ser, que é, enquanto clareia. É a clareira que outorga a proximidade do Ser. Nessa proximidade, na clareira do "Da" (lugar), mora o homem, como ec-sistente, sem que êle já hoje possa experimentar e assumir esse morar. A proximidade do Ser, que é o "Dá" (lugar) do Dasein, o discurso sobre a elegia de Hoelderlin, Heimkunft (Regresso) (1943) a

47) se a-propria = ereignet: veja-se a Nota anterior

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pensa segundo Ser e Tempo; a percebe mais ex­plicitamente pela poesia do Poeta e a chama, de acordo com a experiência do esquecimento do Ser, de Pátria (Heimat). Pensa-se aqui essa palavra num sentido Essencial, a saber, não no sentido patriótico nem nacionalista, mas no sentido da História do Ser.

Ao mesmo tempo, a Essência da Pátria é evo­cada com o propósito de pensar a A-patridade (Heimatlosigkeit) do homem moderno pela Es­sência da História do Ser. Nietzsche foi o último que fêz a experiência dessa A-patridade, mas, den­tro da metafísica, êle não pôde encontrar-lhe ou­tra saída do que a inversão da metafísica. Ora com isso êle trancou toda possibilidade de sair dela (Ausweglosigkeit) . Hoelderlin, ao contrário, ao poetizar a Heimkunft (Regresso) se preocupa que seus "conterrâneos" encontrem o caminho de sua Essência. E essa, êle não a procura num egoísmo de seu povo. Êle a vê, antes, na perti­nência ao destino do Ocidente. Mas Ocidente não é pesado regionalmente em oposição ao Oriente. Não é pensado simplesmente como Europa e sim, dentro da História do mundo, pela proximidade à origem. Mal começamos a pensar as referências misteriosas com o Oeste, que se tornaram palavra na poesia (Dichtung) de Hoelderlin (Cf. Der Ister e também Die Wanderung, 3. a estrofe e seg.) . O "Alemão" não é dito ao mundo, para o mundo se restabelecer no modo de ser alemão. É dito aos alemães para que eles, em virtude do destino, que os faz pertencer aos outros povos, integrem, jun-

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tamente com eles, a História do mundo (Vide sobre a poesia de Hoelderlin, Andenken, a Tübinger Gedenkschrift, 1943, p. 322). A Pátria dessa morada Histórica é a proximidade ao Ser.

Nessa proximidade se consuma, caso chegue um dia a consumar-se, a decisão acerca de, se e como Deus e os deuses se negam e continua a noite, se e como amanhece o dia da salvação 4 8 , se e como na aurora da salvação podem novamente aparecer Deus e os deuses. Ora, a salvação, que é o espaço de essencialização da divindade, a qual, por sua vez, instaura a dimensão para os deuses e para Deus, só chega a resplandecer, se, antes e numa longa preparação, o Ser em si mesmo se clareou e foi experimentado em sua Verdade. Somente assim, a partir do Ser, se começa a su­perar a A-patridade na qual erram extraviados não apenas os homens mas a Essência do homem.

A A-patridade, a ser pensada nessa perspec­tiva, repousa no abandono do Ser (Seinsverlas-scnheit) em que se encontra o ente. Ela é o sinal do esquecimento do Ser. Em conseqüência,

48) salvação == Heilen: A palavra, heilen, significa sa­nar, curar, sarar, salvar, mas também preservar a

integridade, garantir a totalidade. Esse último é um dos sentidos mais antigos do radical adjetivo, presente hoje ainda em algumas formas, como heilfroh (totalmente, inteiramente alegre). E' com essa conotação que Heideg-gsr o emprega no texto, pensando a salvação como a in­tegração da totalidade, que é também um dos momento? da experiência de pensamento do sagrado.

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a Verdade do Ser continua não sendo pensada. É o que se mostra, indiretamente, no fato de que o homem só considera e só trabalha o ente. Ora, como, nesse afã pelo ente, o homem não pode deixar de conceber, de alguma maneira, o Ser, por isso se declara o Ser o conceito "mais geral" e, em conseqüência, o que engloba o ente, ou en­tão uma criação do ente supremo ou, ainda, o produto (das Gemaechte) de um sujeito finito. Ao mesmo tempo, e isso de há muito, "o Ser" é tomado pelo "ente" e vice-versa o ente pelo Ser, ambos como que empurrados no redemoinho de uma confusão estranha e ainda não pensada.

O Ser, como o destino que destina a Verdade, continua oculto. Mas o destino do mundo se anuncia na poesia sem, no entanto, manifestar-se como História do Ser. O pensamento de Hoel-derlin, que se eleva à dimensão da História do mundo e se faz palavra na poesia Andenken (Memória), é, por esse motivo, Essencialmente mais originário e, como tal, mais porvindouro do que o mero cosmopolitismo de Goethe,. Por essa mesma razão a referência de Hoelderlin para com os gregos (GriechentUm) é algo Essen­cialmente diferente do humanismo. É esse tam­bém o motivo porque os jovens alemães, que sa­biam de Hoelderlin, pensaram e viveram, em face da morte, coisa muito diferente do que o que a opinião pública apresentava como sendo a posição alemã.

A A-patridade se torna um destino do mundo todo. Daí se fazer necessário pensar esse destino pela História do Sor. As raízes do que Marx,

partindo de Hegel, reconheceu, num sentido Es­sencial e significativo, como sendo a alienação (Entfremdung) do homem, atingem a A-patridade do homem moderno. Essa é provocada — e isso pelo destino do Ser — nà forma da metafí­sica, que a consolida ao mesmo tempo que a dis­simula, como A-patridade. Porque ao fazer a experiência da alienação, Marx alcança uma di­mensão Essencial da História, a visão marxista da História é superior às restantes interpretações da história (Historie). Ao contrário, uma vez que nem Husserl nem, quanto saiba até agora, Sartre chegam a reconhecer que o histórico tem sua Es­sencialidade no Ser, tanto a fenomenologia quan­to o existencialismo não alcançam a dimensão em que é possível um diálogo fecundo com o mar­xismo .

Mas, para isso, é necessário, naturalmente, libertar-se de idéias ingênuas sobre o materialismo e das refutações baratas que pretendem atingi-lo. A Essência do materialismo não está na afirmação de que tudo é apenas e somente matéria e sim numa determinação metafísica, segundo a qual todo ente aparece como material de trabalho. A Essência metafísico-moderna do trabalho já foi pensada na Phaenomenologie des Geistes (Feno­menologia do Espirito) de Hegel, como o processo que se instaura a si mesmo, da produção incon­dicionada, isto é, da objetivação do real pelo ho­mem, experimentado como subjetividade. A Es­sência do materialismo se esconde na Essência da técnica sobre a qual muito se escreve mas pouco

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se pensa. Em sua Essência, a técnica é um des­tino — instaurado na História do Ser — da Ver­dade do Ser relegada ao esquecimento. Pois a técnica não remonta apenas, quanto ao nome, à techne dos gregos. Na história de sua Essência ela provém da techne, como um modo de ale-theuein, isto é, de re-velação do ente. Uma figura da Verdade, a técnica se funda na História da me­tafísica. Essa é, em si mesma, uma fase marcante da História do Ser e, até agora, a única da qual podemos ter uma visão de conjunto (übersehbar).

Como quer que se tome posição frente às dou­trinas do comunismo e suas fundamentações, no plano da História do Ser não há dúvida que, nele, se exprime uma experiência elementar da História do mundo. Quem toma o comunismo apenas como "partido" ou como "concepção de mundo", pensa tão curto como quem, com a etiqueta de "americanismo" entende apenas — e de modo pejorativo — um estilo de vida particular. Po­de-se presumir que o perigo para onde é empur­rado, de modo sempre mais claro, o que tem sido a Europa, consiste em que, principalmente, seu pensamento — outrora sua grandeza — não acompanha a marcha de essencialização do novo (anbrechcnd) destino do mundo, o qual, no en­tanto, nos traços fundamentais de sua proveniên­cia Essencial, continua determinado pela Europa. Nenhuma metafísica — seja ela idealista, mate­rialista ou cristã — pode alcançar, em razão de sua própria Essência e, de forma alguma, apenas em razão dos esforços tendentes a desenvolvê-la,

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o destino, e isso significa: pode atingir e reunir no pensamento o que agora é num pleno sentido de Ser.

Diante da A-patridade que lhe afeta a Essên­cia, o destino vindouro do homem se apresenta ao pensamento da História do Ser no fato de o ho­mem ter de encontrar a Verdade do Ser e pôr-se a caminho para esse encontro. Todo nacionalis­mo é metafisicamente um antropologismo e, como tal, subjetivismo. Pelo simples internacionalismo não se supera o nacionalismo, mas apenas se es­tende e erige em sistema. Pelo internacionalismo o nacionalismo é tão pouco superado (aufgehoben) e conduzido à humanitas como o individualismo, pelo coletivismo sem História (geschichtslos). Esse e a subjetividade do homem na totalidade. Êle realiza a auto-afirmação incondicionada da subjetividade. Essa afirmação não pode ser res­cindida. Nem sequer se pode experimentá-la, de modo suficiente, por um pensamento que não lhe transmita senão um lado. Por toda a parte, o homem, expelido da Verdade do Sei-, gira em torno de si mesmo como o anímale rationale.

A Essência do homem, no entanto, consiste em ser êle mais do que homem só, no sentido em que se concebe o homem, a saber, como ser vivo racional, ftsse "mais" não se deve entender adi­tivamente, como se a definição tradicional do ho­mem devesse ficar a determinação fundamental, para, a seguir, ser completada pela adição do exis-tentivo. "Mais" significa: mais originário e, por isso, em sua Essência, mais Essencial. E é aqui

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que se mostra o enigma: o homem é no ser-lançado (Geworfenheit). Como a réplica (Gegenwurf) ec-sistente do Ser, o homem é mais do que o animal rationale na medida em que êle é menos do que o homem que se apreende e concebe pela subjetividade. O homem não é o amo e senhor do ente. O homem é o pastor do Ser. Nesse "me­nos" o homem não perde nada. Êle ganha por chegar à Verdade do Ser. Ganha a pobreza Essencial do pastor, cuja dignidade consiste em ser convocado pelo próprio Ser para a guarda e proteção de sua Verdade. Essa convocação advém no lançamento (Wurf), donde provém o ser-lan­çado (die Geworfenheit) do Da-sein. Em sua Essência no plano da História do Ser, o homem é o ente, cujo ser consiste, como ec-sistência, em morar na vizinhança do Ser. O homem é o vi­zinho do Ser.

Mas — e isso o Senhor já há muito terá que­rido objetar-me — um tal pensamento não pensa precisamente a Humanistas do homo humanus? E não pensa essa humanitas num sentido tão de­cisivo como nenhuma metafísica jamais pensou nem poderá, algum dia, pensar? Não é isso "Hu­manismo" no sentido mais elevado? Certamente. É o humanismo que pensa a humanidade do ho­mem pela proximidade do Ser. Todavia é tam­bém o humanismo em que não está em jogo e homem mas a Essência Histórica do homem em sua proveniência da Verdade do Ser. Mas então nesse jogo não cai e fica de pé também a ec-sis­tência do homem? Sem dúvida alguma.

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Em Ser e Tempo se diz (p. 38) que toda questão da filosofia "repercute na existência". Mas a existência, de que se fala, não é a realidade do ego cogito. Como também não é apenas a realidade dos sujeitos, que, atuando em conjunto uns para os outros, chegam a si mesmos. Dife­rente de toda existentia e existence, a ec-sistência é o morar ec-stático na proximidade do Ser. É a vigília, isto é, o cuidado com (Sorge für) o Ser. De vez que, nesse pensamento, se trata de pensar algo muito simples, por isso êle é difícil para a filosofia tradicional, para quem pensar é repre­sentar. E toda dificuldade não está em ter que emaranhar-se em considerações profundas nem formar conceitos intrincados. Ela se esconde no regresso (Schrittzuriiclc) que faz o pensamento ingressar num questionamento que provoca expe­riências e o leva a abandonar as opiniões habituais da filosofia.

Por toda parte se opina que a tentativa de Ser e Tempo entrou num beco sem saída. Dei­xemos essa opinião entregue a si mesma. O pen­samento, que, no livro assim intitulado, tentou al­guns passos, ainda hoje não foi além de Ser e Tempo. Mas entrementes, talvez, haja penetrado mais em sua causa 4 9 . Enquanto a filosofia só se ocupar em obstruir constantemente a possibili­dade de empenhar-se na causa (Sache) do pen-

49) causa = Sache: a palavra portuguesa, causa, só traduz Sache, se tomada em seu sentido primitivo

de assunto, tarefa, ainda hoje vigente em expressões como "ganho de causa".

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samento, qual seja a Verdade do Ser, ela estará assegurada, fora do perigo de, um dia, rebentar-se na dureza de sua causa. Por isso um abismo separa o "filosofar" sobre o fracasso de um pensa­mento que fracassa. Se a graça de um tal pen­samento fosse, algum dia, concedida a um homem, não lhe teria acontecido então nenhuma desgraça. Ao contrário, seria dele a única dádiva, que do Ser pode ad-vir ao pensamento.

Todavia, também isso é importante, não se alcança a causa do pensamento pelo fato de se pôr em curso uma "arenga" (Gerede) sobre a "Verdade do Ser" e sobre a "História do Ser". Tudo depende unicamente de a própria Verdade do Ser se fazer linguagem e de o pensamento con­seguir chegar a essa linguagem. Talvez a lin­guagem exija muito menos pronunciamentos pre­cipitados do que, muito mais, o devido silêncio. Mas qual de nós, homens de hoje, poderia preten­der que seus esforços para pensar já estariam familiarizados e em casa, (heimisch) no caminho do silêncio? Quando muito, nosso pensamento poderia talvez indicar (hinweisen auf) a Verdade do Ser, como o que deve ser pensado (das Zu-den-kende). Mais do que de outra maneira, a Ver­dade do Ser ficaria, assim, subtraída à simples adivinhação e ao simples opinar, e entregue à ta­refa (Hand-werk) n o que se faz rara, da escrita.

50) tarefa = Hand-werk: tarefa não é uma boa tradu­ção de Hand-werk, se fôr entendida em sua acepção

corrente. Pois Hand-werk não só é tomado aqui no sen­tido de sua composição 'de Hanã (mão) e Werk (obra),

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As causas promissoras, ainda que não se destinem à eternidade, chegam a tempo mesmo com o má­ximo de atraso.

Só depois de haver procurado percorrer por si mesmo o caminho indicado ou, o que seria me­lhor ainda, depois de haver procurado abrir um caminho melhor, isto é, mais correspondente à questão, cada um julgue se o domínio da Verdade do Ser é um beco sem saída ou o espaço livre, onde a liberdade reserva a sua Essência. Na pe­núltima página de Ser e Tempo (p. 437) encon­tram-se as frases: "A disputa relativa à interpre­tação do Ser (e isso não significa nem do ente, nem também do ser do homem) não pode ser di­rimida, porque ainda não foi nem mesmo des--envolvida. E, por fim, ela não se deixa improvisar (vom Zaun brechen) e sim necessita de uma pre­paração prévia. Só para isso, está a caminho a presente investigação". Essas palavras valem ainda hoje, dois decênios depois. Continuemos, também nos dias vindouros, viandantes a caminho da vizinhança do Ser. A pergunta, que o Senhor levanta, ajuda a iluminar o caminho.

O Senhor pergunta: "Comment redonner un sens au mot 'Humanisme'?" "De que maneira se pode restituir um sentido à palavra, "humanis­mo'?" Sua pergunta não pressupõe somente que

mas alude à Essência originária da obra da mão, que-não reside na materialidade e no efeito de sua produção e sim na con-sumação de uma re-ferência à Verdade do Ser E' o que Heidegger desenvolve no livro, Was heisst Ben-ken? às págs. 50s e 53s.

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o Senhor pretende conservar a palavra "huma­nismo". Ela implica também o reconhecimento que essa palavra perdeu o seu sentido.

E o perdeu por se haver percebido que a Es­sência do humanismo é metafísica, e isso significa agora, por se haver percebido que a metafísica não só não coloca a questão sobre a Verdade do Ser mas a obstrui, enquanto persiste no esqueci­mento do Ser. Ora, o próprio pensamento, que leva a perceber a Essência questionável ( = digna de ser posta em questão) do humanismo, também nos conduziu a pensar, mais originariamente, a Essência do homem. Com essa Humanitas mais Essencial do homo humamis se dá a possibilidade de restituir à palavra "humanismo" um sentido Histórico mais antigo do que aquele que lhe possam atribuir os cálculos historiográficos. Essa restitui­ção de sentido, no entanto, não é para se entender como se a palavra "humanismo" fosse, simplesmen­te destituida de sentido, um mero flatus voeis. Pois na palavra "humanismo" o hiimanus indica a hu­manitas, a Essência do homem. O ismo indica que a Essência do homem é para ser concebida Essen­cialmente. Esse é o sentido da palavrá "huma­nismo", como palavra. Por isso, restituir-lhe um sentido só pode significar: redimensionar o sen­tido da palavra. Ora, isso requer duas coisas: tanto que se experimente a Essência do homem de modo mais originário, quanto que se mostre a medida em que essa Essência é, a seu modo, des­tinada Historicamente (geschicklich). Ora, re­pousando a Essência do homem na ec-sistência, é

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dessa que depende Essencialmente, isto é, de acordo com o próprio Ser, a medida em que o Ser a-propria 5 1 o homem a ec-sistir na Verdade do Ser para a vigília de Sua própria Verdade. No caso de decidirmos manter a palavra, humanis­mo" significa, então. - a Essência do homem é Essencial para a Verdade do Ser, mas de tal sorte que o mais importante não seja o homem simples­mente como tal. Nesse sentido pensamos um humanismo todo especial (seltsamer Art). A palavra indica um título que é um "locus a non lucendo".

Será que ainda se pode chamar de "humanis­mo" esse "humanismo", que se pronuncia contra todo humanismo vigente, mas sem advogar, de ma­neira alguma, o inumano? E somente para, tal­vez participando no uso do título, nadar nas cor­rentes em voga, que se afogam no subjetivismo metafísico e submergem no esquecimento do Ser? Ou não será que o pensamento, por meio de uma oposição aberta ao humanismo, não deve antes suscitar um escândalo, capaz de despertar, pri­meiro, a atenção sobre a humanitas do homo hu-manus e sua fundamentação? Desse modo — mesmo que o momento atual da História do mundo já não provocasse por si mesmo — poder--se-ia promover uma meditação, que pensasse não somente sobre o homem mas sobre a "natureza" do homem, e não só sobre a natureza e sim, de modo mais originário ainda, sobre a dimensão,

51) se a-propria — ereignet: veja-se, acima, a Nota 11.

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onde, determinada pelo próprio Ser, mora (hei-misch) a Essência do homem! Será que não de­veríamos suportar, ainda por algum tempo, os mal-entendidos, a que vem sendo exposto o cami­nho de pensamento no elemento de Ser e Tempo, e deixar que se gastem lentamente? Esses mal-en­tendidos são, naturalmente, interpretações do que se lê ou mesmo do que se pretende ter lido, segun­do o que se crê já saber antes da leitura. Todos eles apresentam a mesma estrutura e o mesmo fundamento.

Porque se fala contra o "humanismo", teme-se que se defenda o inumano e se glorifique a bru­talidade e barbaridade. Pois, o que é "mais lógico" do que isto: quem nega o humanismo, não lhe resta senão afirmar a desumanidade?

Porque se fala contra a "lógica", crê-se que se pretenda renunciar ao rigor do pensamento, para entronizar em seu lugar a arbitrariedade dos impulsos e sentimentos, e, assim, proclamar, como o verdadeiro, o "irracionalismo". Pois o que é "mais lógico" do que isto: quem fala contra o lógico, defende o ilógico?

Porque se fala contra os "valores" surge uma indignação em face de uma filosofia que — assim se pretende — se atreve a desprezar os bens mais elevados da humanidade. Pois, o que é "mais lógico" do que isto: um pensamento que nega os valores, terá necessariamente que declarar tudo sem valor?

Porque se diz que o ser do homem consiste em "ser-no-mundo", acha-se que o homem foi de­gradado, reduzido a um ser meramente mundano (diesseitig), com o que a filosofia cai no positivis­mo. Pois, o que é "mais lógico" do que isto: quem afirma a mundaneidade do ser do homem, só dá valor ao mundano, nega o Além (das Jenseitige) e renuncia a toda "transcendência"?

Porque se faz alusão à palavra de Nietzsche sobre a "morte de Deus", proclama-se tal atitude ateísmo. Pois, o que é "mais lógico" do que isto: quem fêz a experiência da "morte de Deus", é um sem Deus (Gott-los) ?

Porque, em tudo isso, sempre se fala contra o que é (glit) sagrado e elevado para a humani­dade, tal filosofia ensina um niilismo irresponsável e destruidor. Pois, o que é "mais lógico" do que isto: quem, assim, sempre nega o ente verdadeiro (das wahrhaft Seiende), coloca-se do lado do não--ente e prega, com isso, que o simples Nada é o sentido da realidade?

O que acontece aqui? Ouve-se falar de "hu­manismo", de "lógica", de "valores", de mundo", de "Deus". Ouve-se falar de uma oposição. To­ma-se e se admite o que se menciona, como sendo o positivo. Tudo que falar contra, mesmo de um modo, que, pelo ouvir dizer, não pode ser pensado com rigor, toma-se logo como uma negação e essa, como "negativa", no sentido de destrutiva. Em algum lugar de Ser e Tempo fala-se até de uma "destruição fenomenológica". Então, com a ajuda

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da lógica e da Ratio, tão invocadas, julga-se que o que não é positivo, é negativo e, como tal, de­prava a razão, merecendo, por isso, ser queimado como depravação. Está-se tão cheio de "lógica", que se contabiliza (verrechnen) logo como oposi­ção condenável, o que se opuser à indolência da simples opinião. Tudo que não se enquadrar na bitola do positivo que se quer e se conhece, é lan­çado na vala já adrede preparada da simples ne­gação, que, negando tudo, termina no Nada e as­sim completa o "niilismo". Por esse caminho ló­gico, tudo sucumbe ao niilismo, mas num niilismo que se inventou com a ajuda da própria lógica.

Será mesmo que a "oposição" (das Gegen), que um pensamento promove diante das opiniões habituais, conduz necessariamente à simples ne­gação e ao negativo? Isso só acontece — mas então, realmente, de modo inevitável e definitivo, isto é, sem nenhuma outra perspectiva libertadora — quando já de antemão se põe o que se opina, como "o positivo" e, com êle, se decide, absoluta e negativamente, sobre o âmbito de toda e qualquer oposição. Por trás de tal modo de proceder es­conde-se a recusa de se expor a uma reflexão o que já se pretende "positivo", juntamente com a posição e oposição nas quais se crê poder salvar-se. Com o constante recurso ao lógico dá-se a impres­são de que se empenha em pensar, quando, na verdade, se abjurou o pensamento.

Com o que ficou dito, já se terá tornado, de­certo modo, mais claro que a oposição ao "huma-

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nismo", longe de incluir uma defesa do inumano, abre, ao contrário, outras perspectivas.

A "lógica" entende o pensamento como a re­presentação do ente em seu ser, enquanto a re­presentação se apresenta (sich zustellt) o ser do ente na "universalidade" do conceito. Mas o que acontece com a reflexão sobre o Ser em si mesmo, e isso significa com o pensamento, que pensa a Verdade do Ser? É esse pensamento que atinge a Essência originária do logos, a qual, em Platão e Aristóteles — o fundador da "lógica" — já se entulhara e perdera. Pensar contra "a lógica", não significa quebrar lança em favor do ilógico. Significa apenas repensar (nachdenken) o logos e sua Essência, que se manifestou nas origens (Friihzeit) do pensamento. Significa empenhar-s e e esforçar-se na preparação desse re-pen-samento. De que nos servem todos os sistemas de lógica, mesmo os mais extensos, se eles, sem saberem o que fazem, se subtraem à tarefa prévia de questionarem a Essência do logos? Se se qui­sesse retribuir objeções — o que, sem dúvida, é estéril —, com maior razão poder-se-ia dizer que o irracionalismo, no sentido de renúncia à ratio, reina, desconhecido e incontrastado, na defesa da "lógica", que crê poder esquivar-se a uma reflexão sobre o logos e sobre a Essência da razão, nele fundada.

O pensamento contra "os valores" não afirma ser sem valor tudo que se considera como "va­lores", a saber, a "cultura", a arte", a "ciência", a "dignidade humana", o mundo" e "Deus". Ao

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contrário. Trata-se de se compreender de uma vez por todas, que, ao caracterizar algo como um "valor", se lhe rouba a dignidade. O que quer dizer: ao se avaliar uma coisa como valor, só se admite o que assim se valoriza, como objeto de uma avaliação do homem. Ora, o que uma coisa é, em seu ser, não se esgota em sua ob-jetividade e principalmente quando a ob-jetividade possui o caráter de valor. Toda valorização, mesmo quan­do valoriza positivamente, é uma subjetivação. Pois ela não deixa o ente ser mas deixa apenas que o ente valha, como objeto de sua atividade (Turí). O esforço extravagante, de se provar a objetividade dos valores, não sabe o que faz. Dizer-se que "Deus" é "o valor supremo", é uma degradação da Essência de Deus. Pensar em termos de valor é aqui — como alhures — a maior blasfêmia, que jamais se possa pensar com relação ao Ser. Pen­sar contra os valores não significa, por conseguin­te, tocar os tambores da desvalorização (Wertlo-sigkeit) e da nulidade (Nichtigkeit) do ente mas significa: pro-pôr ao pensamento, contra a subje­tivação do ente, como simples ob-jeto, a clareira da Verdade do Ser.

A indicação do "Ser-no-mundo", como sendo o traço fundamental da humanitas do homo hu-manus não afirma que o homem é, meramente, um ser "mundano" no sentido cristão do termo, qual seja, apartado de Deus e desligado da "trans­cendência". Procura-se exprimir com a palavra "transcendência" o que, com maior clareza, deveria ser chamado de transcendente. Pois o trans-

cendente é o ente supra-sensível, considerado o ente supremo no sentido da causa primeira de todo ente. Pensa-se Deus como essa causa primeira. Ora, "mundo", na expressão, "Ser-no-mundo", não significa, de forma alguma, ente terreno em opo­sição ao celeste nem "mundano" em oposição ao "espiritual". "Mundo" não significa nenhum ente ou domínio de entes mas a abertura do Ser. O homem é — e é homem — na medida em que é o ec-sistente. O homem está ex-posto à aber­tura do Ser, que é como abertura. Sendo o lance, (Wurf), o Ser lançou para si a Essência do ho­mem na "Cura". Lançado desse modo, o homem está "na" abertura do Ser. "Mundo" é a clareira do Ser, à qual o homem se ex-põe por sua Essência lançada. O "Ser-no-mundo" evoca a Essência da ec-sistência no tocante (í/ri Hinblick auf) à di­mensão clareada, a partir da qual se essencializa o "ec-" da ec-sistência. Pensado a partir da ec--sistência, o "mundo" é, de certo modo, o além (das Jenseitige) dentro e para a ec-sistência. O homem nunca é homem, aquém do mundo, como um "sujeito", quer se entenda sujeito como "eu" ou como "nós". Nem tampouco o homem é pri­meiro e somente sujeito enquanto se refere sempre a objetos, de sorte que sua Essência esteja na re­lação sujeito-objeto. Ao contrário, o homem é, em sua Essência, primeiro ec-sistente na abertura do Ser. E é o que se abre na abertura (das Offene), que clareia o meio" (das "Zwischen") no qual pode "ser" uma "relação" do sujeito para o objeto.

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A frase: a Essência do homem repousa no Ser-no-mundo, também não contém nenhuma de­cisão, se, tomando o termo em sentido teológico--metafísico, o homem é apenas um ser desse mundo (diesseitig) ou um ser do outro mundo (jenseitig).

Por isso, com a determinação existencial da Essência do homem, ainda não se decidiu nada so­bre a existência de Deus ou sobre o seu "não--ser", nem tampouco sobre a possibilidade ou im­possibilidade de deuses. Assim, não é somente apressado mas até mesmo extraviado sustentar que a interpretação da Essência do homem por sua re-ferência à Verdade do Ser é .ateísmo. Ade­mais, essa classificação arbitrária ainda peca por falta de atenção na leitura. Pois não faz caso de que, desde 1929, se pode ler no escrito Vom Wesen des Grundes (p. 28, nota 1), o seguinte: "Com a interpretação ontológica do Dasein, como Ser-no-mundo, não se decidiu nada nem positiva nem negativamente sobre um possível ser para Deus. E sim é com o esclarecimento da transcen­dência, que se ganha um conceito suficiente do Dasein, com respeito ao qual se poderá então ques­tionar, como se encontra ontologicamente a re­lação com Deus do Dasein". Ora, pensada parva­mente, como de costume, tal observação será as­sim explicada: essa filosofia não se decide nem contra nem a favor da existência de Deus. Con­serva-se numa indiferença. E, por conseguinte, não lhe importa a questão religiosa. Um tal indi­ferentismo decai, de fato, no niilismo.

Mas será que a observação citada ensina mes­mo o indiferentismo? Por que então nela se im­primiram grifadas determinadas palavras e não outras quaisquer? Sem dúvida somente para indicar que o pensamento, que pensa a partir da questão sobre a Verdade do Ser, questiona de modo mais originário do que a metafísica pode ques­tionar. Somente a partir da Verdade do Ser pode-se pensar a Essência do sagrado. Somente a partir da Essência do sagrado pode-se pensar a Essência da divindade. Somente na luz da Es­sência da divindade pode-se pensar e dizer o que a palavra "Deus" pretende significar. Ou ,será que não devemos, primeiro, saber ouvir e compre­ender cuidadosamente todas essas palavras, para podermos, como homens, isto é, como seres ec-sistentes, fazer a experiência da re-ferência de Deus com o homem? Como o homem da História atual do mundo poderia simplesmente questionar de modo sério e rigoroso, se Deus se aproxima ou se afasta, se se omite pensar primeiro dentro da dimensão na qual somente aquela questão pode ser questionada? Ora, essa é a dimensão do sa­grado, que, até já como dimensão, permanece inacessível, se a abertura (das Offene) do Ser não se tiver clareado e em sua clareira não estiver próxima do homem. Talvez o que distingue nos­sa época (dieses Weltalter) é ser-lhe inacessível a dimensão da graça (des Heilen). Talvez seja isso a única desgraça (Unheil).

Todavia, com essa indicação, o pensamento, que aponta à Verdade do Ser como sendo o que

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deve ser pensado, não deseja, de forma alguma, decidir-se pelo teísmo. Pois êle não pode ser nem teísta nem ateísta. Não, porém, em razão de uma atitude de indiferentismo, e sim por respeitar os limites impostos ao pensamento, como pensa­mento, e impostos pelo que se lhe dá como sendo o que deve ser pensado, a saber, pela Verdade do Ser. Na medida em que o pensamento se con­tenta com sua tarefa, êle dá, no instante do des­tino atual do mundo, ao homem a dimensão ori­ginária de sua estadia (Aufenthalt) Histórica. Dizendo, dessa forma, a Verdade do Ser, o pensa­mento se entregou e confiou ao que é mais Essen­cial do que todos os valores e qualquer ente. O pensamento não supera a metafísica, enquanto, alçando-se mais alto, a transcende e, em algum lugar, (irgendwohin) a suprime, a conserva e a eleva (aufhebt). O pensamento supera a metafí­sica, enquanto, re-gressando, desce à proximidade do próximo. Descer, principalmente, quando o homem se perdeu nas alturas 5 2 da subjetividade, é mais difícil e perigoso do que alçar-se. A des­cida leva à pobreza da ec-sistência do homo hu-manus. Na ec-sistência abandona-se o âmbito do homo animalis da metafísica. 0 império e predo­mínio desse âmbito é o fundamento mediato e profundo (weitziiriickreichend) da obliteração e da arbitrariedade do que se designa como biolo-gismo, mas também do que se conhece pelo título

52) ...se perdeu nas alturas... = sieh vertiegen hat: o verbo, sich versteigen diz perder-se subindo, dal

a tradução circunlocutiva.

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pragmatismo. Pensar a Verdade do Ser significa igualmente: pensar a humanitas do homo hu-manus. Trata-se de pôr a humanitas a serviço da Verdade do Ser, mas sem. o humanismo em sentido metafísico.

Se, porém, a humanitas está tão Essencial­mente no campo de visão do pensamento do Ser, não terá então a "ontologia" de ser completada pela "é/tica"? Não será, então, inteiramente Es­sencial o esforço que o Senhor exprime na frase: "Ce que je cherche à faire, depuis longtemps déjà, c'est préciser le rapport de l'ontologie avec une éthique possible"?

Logo após a publicação de Ser e Tempo, per-guntou-me um jovem amigo: "Quando é que o Senhor vai escrever uma ética?". É que, quando se pensa a Essência do homem de modo tão Essen­cial — a saber, unicamente a partir da questão so­bre a Verdade do Ser —, sem se fazer dele, no entanto, o centro do ente, sente-se também a ne­cessidade de se indicarem preceitos e regras, que digam, como o homem, experimentado a partir da ec-sistência para o Ser, há de viver Historica­mente. A exigência de uma ética tanto mais se impõe quanto mais cresce desmedidamente a de­sorientação (Ratlosigkeit) do homem tanto a oculta como a manifesta. Uma vez que só se pode confiar numa estabilidade do homem da técnica, entregue à massificação (Massenwesen), plane­jando e organizando em conjunto seus planos e suas atividades, por isso se devem dedicar todos os cuidados e esforços à obrigatoriedade ética.

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Quem teria o direito de desconhecer a indi­gência dessa situação (Notlage) ? Não deveríamos, então, manter (schonen) e garantir as obrigações vigentes, mesmo que elas só conservem reunida em si a essencialização do homem de modo precá­rio e apenas limitado às condições atuais? Sem dúvida! Mas, por outro lado, será que essa indi­gência dispensa o pensamento de pensar (gedenkt) o que constitui, antes de mais nada (zumal), o que deve ser pensado e, como o Ser, permanece sendo, antes de todo e qualquer ente, o Penhor e a Verdade? Será que o pensamento pode conti­nuar esquivando-se a pensar o Ser, que, depois de se haver retido, encoberto num longo esqueci­mento, se anuncia agora, no momento atual do mundo, pela comoção geral de todos os entes?

Antes de se tentar determinar, com maior exatidão, as relações entre "a ontologia" e "a ética", faz-se necessário pensar, se o que ambos os títulos evocam, ainda permanece na medida e na proximidade do que se impôs ao pensamento, que, como pensamento, tem de pensar, antes de tudo, a Verdade do Ser! Pois, se, juntamente com todo pensamento segundo disciplinas, "a ontologia" e "a ética" já tivessem caducado e, com isso, nosso pensamento já se houvesse tornado mais discipli­nado, o que então, sucederia à questão sobre as relações entre essas duas disciplinas da filosofia?

Com a "lógica" e a "física", a "ética" aparece, pela primeira vez, na Escola de Platão. Surgiram no tempo, em que o pensamento se tornou "filo­sofia", a filosofia se fêz episteme (ciência) e a

própria ciência se transformou numa tarefa (Sache) de Escolas e de atividades "escolásticas" (Schulbetrieb). Através da filosofia, assim en­tendida, nasceu a ciência e pereceu o pensamento. Antes desse tempo, os pensadores não conheciam nem "lógica" nem ética" nem "física". Todavia, seu pensamento não era nem ilógico nem imoral. E a physis, eles a pensaram numa profundidade e envergadura que toda "física" posterior nunca mais conseguiu atingir. Caso seja permitida se­melhante comparação, o dizer das tragédias de Sófocles con-serva e encerra o ethos mais origi­nariamente do que as preleções de Aristóteles so­bre a "ética". Uma sentença de Heráclito, que se compõe de três palavras apenas, evoca um vigor tão simples que faz resplandecer diretamente a Essência do Ethos.

Diz a sentença de Heráclinto (Fragmento 119): ethos anthrópo daimon. Geralmente se costuma traduzir: "a individualidade é o demônio do ho­mem". Essa tradução pensa de maneira moder­na, não de maneira grega. Pois Zthos significa estada (Aufenthalt), lugar de morada. Evoca o espaço aberto onde mora o homem. É a aber­tura da estada que faz aparecer o que ad-vém, con-venientemente, à Essência do homem e, assim ad-vindo, se mantém em sua proximidade. A estada do homem retém o ad-vento daquilo, ao qual o homem, em sua Essência, pertence. Isso é o Heráclito chama de daimon, o Deus. A sen­tença diz pois: o homem mora, enquanto homem, na proximidade do Deus.

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Com essa sentença concorda uma história, re­latada por Aristóteles (De part, anim., A 5, 645 a 17): Herakleitos légetai prós toüs xênous eipein toüs bouloménous entychein auto, oi, epeide pro-sióntes eidon autòn therómenon prós tõ ipnõ, èstesan, ekélene gàr autoàs eisienai tharroiintas: einai gàr kai entaütha theoús.

"De Heráclito se contam umas palavras, ditas por êie a um grupo de estranhos que desejavam visitá-lo. Ao aproximarem-se, viram-no aquecen­do-se junto ao forno. Destiveram-se surpresos, sobretudo porque Heráclito ainda os encorajou — a eles que hesitavam —, fazendo-os entrar com as palavras: "pois também aqui deuses estão pre­sentes".

Essa história fala por si mesma. No entanto,

convém destacar alguns momentos.

Com o que vê logo à chegada, o grupo de visi­tantes desconhecidos fica frustrado e desconcer­tado na curiosidade que os levara ao pensador. Acredita ter de encontrá-lo em circunstâncias, que, ao contrário do modo de viver comum dos homens, fossem excepcionais, raras e, por isso mesmo, emo­cionantes. Trazem a esperança de descobrir coi­sas que, ao menos por um certo tempo, sirvam de assunto para uma conversa animada. Esperam surpreender, talvez, o pensador justamente no momento em que, mergulhado em profundas re­flexões, êle pensa. Querem "viver" esse momento, mas não, de certo, para serem atingidos pelo pen­samento e sim, apenas, para poderem dizer que

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já viram e ouviram alguém de quem sempre de novo se diz ser um pensador.

Ao contrário, os visitantes curiosos encontram Heráclito junto ao forno. Um lugar banal e muito comum. Todavia, é nele que se assa o pão. Mas Heráclito não está ocupado em assar pão. Êle se está aquecendo. Com o que êle demonstra — e ademais num lugar banal — toda a indigên­cia de sua vida. A visão de um pensador com frio oferece muito pouca coisa de interessante. Os curiosos perdem logo a vontade de entrar. Para quê? Pois esse fato corriqueiro e nada excitante de alguém estar com frio e achegar-se a um forno, qualquer um pode presenciar, quando quiser, em casa. Para isso, não é necessário visitar um pen­sador. Os visitantes se aprestam a retirar-se. Heráclito lê em suas fisionomias a curiosidade frustrada. Sabe que, como em toda massa, a simples ausência de uma sensação esperada é su­ficiente para fazer voltar os que acabam de che­gar. Por isso infunde-lhes coragem, convidando-os a entrar com as palavras: "Também aqui os deu­ses estão presentes".

Essas palavras põem num outra luz a mo­rada e comportamento do pensador. A história não diz se os visitantes logo o entenderam ou mesmo se o entenderam um dia, e assim passaram a ver tudo nessa outra luz. O fato, porém, de a história ter sido contada e haver chegado até nós, testemunha que o seu conteúdo provém e carac­teriza a atmosfera em que vivia o pensador. "Tam­bém aqui" no forno, nesse lugar banal onde todas

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as coisas e circunstâncias, todo agir e pensar são familiares e corriqueiros, isto c, ordinários, "tam­bém aqui, portanto, no âmbito do ordinário, estão presentes os deuses".

Ethos anthrópo daímon diz o próprio Hará-clito: "a morada (ordinária) constitui para o ho­mem a dimensão onde se essencializa o Deus (o extra-ordinário)."

Se, pois, de acordo com o sentido fundamental da palavra, Gthos, o nome, ética, quiser exprimir que a ética pensa a morada do homem, então o pensamento que pensa a Verdade do Ser, como o elemento fundamental, onde o homem ec-siste, já é a ética originária. Mas então, tal pensa­mento não é apenas ética por ser ontologia, de vez que a ontologia só pensa o ente (on) em seu ser. Ora, enquanto não fôr pensada a Verdade do Ser, toda ontologia fica sem fundamento. Por isso o pensamento que, em Ser e Tempo, tentou prepa­rar-se para pensar (vordenken) a Verdade do Ser, foi intinulado Ontologia Fundamental. Essa pro­cura retornar ao fundamento Essencial donde pro­vém o pensamento da Verdade do Ser. Já no ponto de partida desse outro modo de questionar, afasta-se êle da "ontologia" metafísica (mesmo da de Kant). Pois "a ontologia", seja transcen­dental seja pre-critica, está sujeita, à crítica não por pensar o ser do ente e, assim, forçar o Ser no conceito, mas por não pensar a Verdade do Ser e assim desconhecer que há um pensamento mais ri­goroso do que o conceituai. O pensamento, que procura preparar-se a pensar (vordenken) a Ver­dade do Ser, na indigência de seu primeiro esforço,

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só consegue transformar em linguagem um pouco da outra dimensão totalmente diferente. Essa ain­da se falsifica a si mesma na medida em que não consegue conservar a ajuda Essencial da visão fenomenológica e ao mesmo tempo abandonar, por ser descabida, toda preocupação de "Ciência" e de "Pesquisa". Ora, para fazer conhecida essa tenta­tiva do pensamento e torná-la compreensível den­tro dos quadros da filosofia vigente, só se podia falar, de início, a partir do horizonte dado e usan­do dos títulos neles correntes.

Entrementes, porém, cheguei a compreender que precisamente esses títulos induziam inevitável e diretamente em erro (Irre) . Pois tanto eles quanto a sua linguagem conceituai não eram re--pensados pelos leitores de acordo com a causa (Sache) a ser pensada mas essa é que era con­cebida de acordo com o sentido habitual dos títu­los estabelecidos. O pensamento, que questiona a Verdade do Ser e com isso determina a morada da Essência do homem a partir e na direção do Ser, não é nem ética nem ontologia. Daí não haver lugar nele para a questão sobre as relações de ambas as disciplinas. Todavia, pensada origina­riamente, a pergunta do Senhor conserva um sen­tido e uma importância Essencial.

Pois se tem de perguntar: Se o pensamento, pensando a Verdade do Ser, determina a Essência da humanitas, como ec-sistência, a partir da de­pendência (Zugehörigkeit) dessa para com o Ser, será que um tal pensamento permanece apenas uma representação teórica do Ser e do homem?

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Ou será que, desse conhecimento, se pode reti­rar e prescrever indicações para a vida prática?

A resposta é uma só: um tal pensamento não é nem teórico nem prático. É antes dessa distin­ção do teórico e prático que êle se a-propr ia . 5 3

Na medida em que êle é êle mesmo, um tal pen­samento não é senão a memória 5 4 do Ser e nada mais. Pertencendo ao Ser, por ter sido lançado pelo Ser na guarda e proteção de sua Verdade e assim para ela requisitado, pensa êle o Ser. Um tal pensar não dá resultado. Não tem efeito. Êle se basta à sua Essência, sendo. Ora, êle é, di­zendo a sua causa (Sache). À causa do pensa­mento pertence, e sempre Historicamente, um sc dizer, o dizer de acordo com a Essência de sua c a u s a . 0 5 Cuja constringência, por se ater à sua causa, 6 6 é Essencialmente superior à validade das ciências, por ser mais livre. Pois êle deixa o Ser — ser.

O pensamento constrói na casa do Ser. Nessa, e como tal, as junturas (die Fuge) do Ser dis-põem numa con-juntura, sempre de acordo com o destino Histórico, a Essência do homem a morar na Verdade do Ser. Esse morar constitui a Essência do Ser-no-mundo" (Cf. Ser e Tempo.

53) se a-propria = ereignet: veja-se, acima, a Nota 11.

54) a memória = das Andenken: veja-se, acima, a Nota 43.

55) Causa — Sache: veja-se, acima, a Nota 49.

56) Causa = Sache: veja-se, acima, a Nota 49.

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p . 54) . A indicação que aí se faz do "Ser-no--mundo" como sendo "morar" não é um simples jogo etimológico. A referência, feita na Confe­rência de 1936, à palavra de Hoelderlin, "cheio de méritos, todavia, é poeticamente que mora o ho­mem sobre essa terra'\ não é enfeite para um pen­samento, que se salva, fugindo da ciência para a poesia. Falar-se da casa do Ser não é uma trans­posição da imagem da "casa" para o Ser mas é a partir da Essência do Ser, pensada devidamente (sachgemaes) que, um dia, poderemos então pen­sar o que é "casa" e "morar".

Sem embargo, o pensamento nunca cria a casa do Ser. Êle apenas acompanha a ec-sis-tência Histórica, isto é, a humanitas do homo humanus, para o domínio onde surge o salvo (das Heile).

Com o salvo, principalmente, aparece na cla­reira do Ser, o mal, cuja Essência não está na simples ruindade da ação humana mas repousa na maldade da grima (Grimm). Ambos, o salvo e a grima, contudo, só se podem essencializar no Ser, enquanto o próprio Ser é a disputa (das Strittige). É aqui que se esconde a proveniência Essencial do vigor do não (Nichten) . 7 6 O que vi-

57) do vigor do não = des Nichtens: Em alemão não existe o verbo nichten. Existe um seu composto,

ver-nichten (aniquilar, reduzir a nada) . Heidegger o introduz para expressar nele o vigor nulificante que per­tence Essencialmente à ec-sistência. Esse T'igor se con­suma no pensamento e na linguagem do não. Ora, em

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gora como o não, se clareia como o que é deter­minado pelo não. 6 8 Essa determinação se pode exprimir no dizer "Não". O vigor do não (das Nicht) não surge, de forma alguma, do dizer-Não da negação. Todo dizer "Não", que não se de­turpar, interpretando-se como uma imposição de si mesma da força de constituição da subjetividade, mas continuar um deixar-ser da ec-sistência, cor­responde ao apelo do vigor do não (Nichten) que se clareou. Todo dizer-Não é apenas a afirmação do não (Nicht) que vigora. Toda afirmação re­pousa num reconhecimento, que deixa aquilo, a que se refere, chegar a ser êle mesmo. Crê-se que não se pode encontrar em parte alguma, no ente, o vigor do não (das Nichten). É exato, quan­do se quer procurá-lo como um ente, como uma, propriedade entitativa do ente. É que, procurando assim, não se procura o vigor do não (das Nichten). Também o Ser não é uma propriedade entitativa que se pudesse estabelecer e constatar no ente. E, no entanto, o Ser é mais do que qualquer ente.

alemão se exprime o não por duas palavras: nicht e nein, correspondentes às suas congêneres francesas e inglesas: ne... pas e non, not e no. Nicht se emprega junto a verbos, adjetivos, advérbios, e t c , enquanto nein se usa como resposta negativa, no dizer não. Na tradução se usa vigor do não ou vigorar como o não para se designar o Nichten, Nicht e nichten (verbo) do original, reservando a locução, dizer não, para Nein.

58) determinado pelo não — das Nichthafte: Da palavra nicht forma Heidegger o adjetivo substantivado das

Nichthafte, que diz o que se refere, participa e assim é determinado pelo não.

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Porque o vigor do não (das Nichten) se essencia-liza no Ser, por isso nós não o poderemos perceber como algo de ente no ente. A indicação dessa impossibilidade não prova nunca, que o vigor do não procede e provém do dizer-Não. Isso só seria uma aparência de prova, se, de saída, se pusesse o ente como o objetivo da subjetividade. Pois então se concluiria da alternativa, ou objetivo ou subjetivo, que todo vigor do não, por nunca apa­recer como algo objetivo, deveria ser inelutàvel-mente produto de um ato do sujeito. Se, porém, é o dizer-Não que põe o vigor do não (dás Nicht) como algo simplesmente pensado ou se é o vigor do não (das Nichten) que requisita e usa o dizer--Não, como o que é para ser dito (das zu Sagende) no deixar-ser do ente, isso naturalmente não pode ser decidido a partir de uma reflexão subjetiva so­bre o pensamento, tomado de antemão como subje­tividade. Com uma tal reflexão nem se alcança a dimensão em que se pode colocar a questão na forma devida. Resta a perguntar, se todo dizer -Sim e todo dizer-Não, suposto que o pensamento pertença à ec-sistência, não é já ec-sistente na Verdade do Ser. Nesse caso, então, o dizer-Sim e o dizer-Não já auscultam, para serem o que são, o Ser. E como tal, nunca poderão estabelecer aquilo ao qual eles pertencem em si mesmos.

0 vigor do não (cias Nichten) se essencaliza no próprio Ser e, de maneira alguma, no pensa­mento do homem, pensado como a subjetividade do ego cogito. O Dasein não instaura o vigor do não (nichtet), enquanto o homem realiza, como

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sujeito, uma negação (Nichtung) no sentido de uma recusa. O Da-sein instaura o vigor do não (nichtet), na medida em que êle, como a Essência, onde o homem ec-siste, pertence em si mesmo à Essência do Ser. 0 Ser instaura o nada — como Ser. Por isso é que, no Idealismo Absoluto, em Hegel e Schelling, o "Não" aparece na Essência do Ser como a negatividade da negação. A Essência do Ser é pensada aqui como a vontade incondicio­nada no sentido de realidade absoluta. Essa von­tade se quer a si mesma e se quer a si mesma como a vontade do saber e do amor. É nessa vontade que se oculta o Ser, como a vontade de potência (Wille zur Macht) . Por que, no entanto, a ne­gatividade da subjetividade absoluta é "dialética" e por que na dialética o vigor do não (das Niehten), embora aparecendo, se oculta, ao mesmo tempo, em sua Essência, isso não pode ser discutido aqui.

O que, no Ser, vige e vigora como o não, é a Essência do que chamo o Nada. Por isso, por pensar o Ser, o pensamento pensa o Nada. É o Ser que concede ao salvo (das Heile) vigorar na proteção do favor (Huid) e à grima o impulso para a desgraça (Unheil) . Somente na medida em que o homem, ec-sistindo na Verdade do Ser, pertence ao Ser, é que pode provir do próprio Ser a recomendação das prescrições que tornar-se-ão para o homem lei e regra. Em grego, recomen­dar é némein. O nomos não é apenas a lei, po­rém, mais originariamente, a recomendação pro­tegida pelo destinar-se do Ser. Só essa recomen­dação pode dispor o homem para o Ser. E sò-

mente essa disposição pode trazer e instaurar obri gações. Do contrário, toda lei permanecerá e continuará apenas um produto (das Gemâchte) da razão humana. Mais Essencial para o homem do que todo e qualquer estabelecimento de regras é encontrar um caminho para a morada na Ver­dade do Ser. Pois é essa morada que assegura a experiência do que propicia amparo e sustento. O apoio para toda atitude concede a Verdade do Ser. "Apoio" (Halt) significa, em alemão, o "amparo", "a guarda". O Ser é a guarda que resguarda o homem, em sua Essência ec-sistente, para a Verdade do Ser a ponto de fazer a ec-sis-tência habitar (behausen) na linguagem. Por isso a linguagem é conjuntamente (zumal) a casa do Ser e a habitação da Essência do homem. E só por ser a linguagem a habitação da Essência do homem é que as comunidades Históricas dos ho­mens e os homens Históricos podem não habitar na sua linguagem, a ponto de a linguagem se tor­nar para eles um recipiente (Gehaeuse) de seus afazeres.

Em que relação, porém, se acha o pensamento do Ser com o comportamento teórico e prático? Êle ultrapassa qualquer consideração, por se ocupar da luz na qual se pode mover e manter a visão da teoria. O pensamento se atém à clareira do Ser, inserindo seu dizer do Ser na linguagem, como a habitação da ec-sistência. Assim o pen­samento é um atuar. Mas um atuar que, ao mesmo tempo, ultrapassa toda prática. O pen­samento não supera o operar e produzir pela mag-

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nitude de sua eficiência nem pelas conseqüências de sua eficácia (Wirken) mas pela pouca monta (das Geringe) de seu con-sumar, desprovido de efeito e sucesso.

Em seu dizer, o pensamento eleva apenas à linguagem a palavra impronunciada do Ser. A expressão, "elevar à linguagem", deve ser tomada aqui em seu sentido rigorosamente literal. Cla-reando-se, o Ser chega à linguagem. Êle está sem-pe o caminho da linguagem. Assim a lingua­gem é elevada à clareira do Ser. Somente assim a linguagem é naquele modo misterioso, que nos atravessa sempre com seu vigor. É na medida em que a linguagem, levada, destarte, à pleni­tude de sua Essência, fôr Histórica, que o Ser se conserva na memória (Andenken). É pensando, que a ec-sistência habita a casa do Ser. E tudo isso se dá, como se nada houvesse acontecido com o dizer do pensamento.

Há pouco se nos mostrou um exemplo dessa atuação invisível (unscheinbar) do pensamento. Pois, ao pensarmos, propriamente, a expressão, "elevar à linguagem", — só isso e nada mais — que foi destinada para a linguagem, ao retermos o que aí se pensa, sob a guarda do dizer como o que no por-vir há de se pensar sempre, elevamos à linguagem algo da Essência do próprio Ser.

O estranho no pensamento do Ser é a simpli­cidade. É precisamente essa que nos afasta dele. Pois estamos acostumados a procurar o pensa­mento, que, com o nome de "Filosofia", alcançou

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prestígio na História do mundo, na forma de algo tão incomum que só é accessível a iniciados. Ao mesmo tempo concebemos o pensamento segundo o conhecimento científico e seus esforços de pes­quisas. Medimos a atuação pela eficiência im­pressionante e bem sucedida na prática. Ora, a atuação do pensamento não é nem teórica nem prática, nem tampouco a conjugação de ambas as atitudes.

Devido à sua Essência simples, o pensamento se torna para nós irreconhecível. Todavia, se nos familiarizarmos com o que é simples, a que não somos habituados, logo nos assalta uma outra di­ficuldade (Bedraengnis). Cresce a suspeita de que o pensamento do Ser sucumbe à arbitrariedade uma vez que êle não se pode ater ao ente. Donde então retira o pensamento sua medida e seu cri­tério? Qual é a lei de sua atuação?

aqui que se deve auscultar a terceira per­gunta de sua carta: "comment saiwer Vélément d'aventure que comporte toute. recherche sons faire de Ia philosophie une simples aventurière?" Só de passagem, evoquemos a poesia. Ela se aclra diante da mesma questão do mesmo modo que o pensamento. Ainda são sempre válidas as pala­vras tão pouco pensadas da Poética de. Aristóteles. segundo as quais poetizar é mais verdadeiro do que investigar o ente.

Todavia, não é só por procurar e perguntar pelo não-pensado que o pensamento é une aven­ture. Em sua Essência como pensamento do Ser,

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o pensamento é requisitado pelo próprio Ser. O pensamento se acha referido e dependente do Ser como o que está ad-vindo (l'avenant) . () pensa­mento está preso ao ad-vento do Ser, ao Ser como ad-vento. O Ser já se destinou sempre ao pensa­mento. O Ser é como o destino do pensamento. O destino, porém, é em si mesmo Histórico. Sua Historia já chegou, no dizer dos pensadores, à linguagem.

Transformar em linguagem cada vez êssc ad-vento permanente do Ser que, em sua perma­nência, espera pelo homem, é a única causa (Sache) do pensamento. É por isso que os pensa­dores Essenciais dizem sempre o mesmo (das Selbe); isso, no entanto, não significa que digam sempre coisas iguais (das Gleiche). Sem dúvida, eles só o dizem a quem se empenha em re-pensá--los. Enquanto o pensamento, re-memorando His­toricamente, preza o destino do Ser, êle já se pren­deu ao destinado (das Schickliche), que se acorda com o destino. Todavia, o elemento de aventura (das Abenteuerliche) continua sendo o perigo

constante do pensamento. 5 9 Por que então o sim-

59) As frases que se s e g u e m até o f im do parágrafo, apareceram modif icadas na ed ição fe i ta por Vittorio

K l o s t e r m a n n em 1947 (Frankfurt am Main, A l e m a n h a ) . Esse novo t e x t o é o s egu in te : In das Gleiche flüchten ist unge)'aehrlich. Sich in die Zwietracht wagen, um das Selbe zu sagen, ist die Gefahr. Ziceideutigkeit droht und der blosse Zwist". Em português: "Refugiar-se no igual n ã o é perigoso. O perigo é arriscar-se na d i s -puta para dizer o m e s m o (das Selbe) . Pois se está sob a a m e a ç a da equivocação e da s imples discórdia".

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pies — a que se referiu acima — não haveria de permanecer, não em si mesmo mas para o ho­mem, o mais perigoso? Pensemos sempre nas pa­lavras de Hoelderlin sobre a linguagem, no frag­mento, "Aber in Hütten wohnet der Mensch" ("Mas é em choças que habita o homem). O Poeta chama a linguagem "o mais perigoso dos bens".

A primeira lei do pensamento não são as re­gras da lógica. A primeira lei do pensamento é destinar o dizer do Ser, como o destino da Ver­dade. Pois é pela lei do Ser que as regras da lógica chegam a ser regras. Prezar o que está destinado no dizer do pensamento, não inclui apenas, que reflitamos cada vez sobre como e o que é para se dizer do Ser. Igualmente Essencial é pensar-se, se e até que ponto o qüe há para pensar deve ser dito; em que instante da História do Ser; em que diálogo com essa e a partir de qual apelo êle deve ser dito. Aquelas três coisas, que uma carta an­terior mencionava, se determinam em sua mútua conexão a partir da lei da destinação (Schicklich-keit) do pensamento, inscrito na História do Ser: o rigor da reflexão, o cuidado (Sorgfalt) do dizer, a poupança da palavra.

Já é tempo de se perder o costume de sobre­estimar a filosofia e, com isso, sobrecarregá-la. Na atual indigência do mundo o que se faz neces­sário é menos filosofia e mais cuidado em pensar; menos literatura e mais cultivo das letras.

O pensamento por vir já não é filosofia, por­que êle pensará mais originariamente do que a

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metafísica, que é a mesma coisa (de filosofia). Mas também o pensamento vindouro já não po­derá, como queria Hegel, depor o nome de "amor à sabedoria" e se tornar a própria sabedoria na forma do saber absoluto. O pensamento se encon­tra na descida para a pobreza de sua Essência prévia. O pensamento recolhe e concentra a lin­guagem no dizer simples. E assim a linguagem é a linguagem do Ser, como as nuvens são as nu­vens do céu. Com seu dizer o pensamento abre sulcos invisíveis na linguagem. Eles são mais in­visíveis do que os sulcos que rasga, no campo, o camponês de andar vagaroso.

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