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BIOÉTICA E PESQUISAS EM SERES HUMANOS BIOETHICS AND RESERCH IN HUMAN BEINGS Paulo Henrique de Oliveira' Roberio Nunes dos Anjos Filho" Resumo: O presente trabalho inicialmente apresenta a Bioética, seu contexto histórico e contemporâneo. Posteriormente, aborda os princípios gerais bioéticos. Após, enfoca a experimentação em seres humanos e alguns aspectos das normas internacionais e nacionais sobre o tema. Num último momento, são colocadas questões acerca da teleologia e da legitimidade da pesquisa em seres humanos e apresentadas algumas conclusões na esperança de que sejam úteis à discussão sobre a adequação ética deste tipo de experimento. Palavras-chave: Ética. Bioética. Pesquisa. Seres Humanos. Abstract: The present work initially presents the Bioethics, its historical and contemporary context. Later, it approaches the general bioethics principies. After, it focuses the experimentation in human beings and some aspects of the international and national norms on the subject. At last, questions concerning the ai ms and the legitimacy of the research in human beings and some conclusions about this theme are presented in the hope that they are useful to the debate on the ethical adequacy of this type of experiment. Keywords: F.thics. Bioethics. Research. Human beings. 1. Introdução Por convergir racionalidade e curiosidade, características inatas ao ser humano, é que a pesquisa em sentido amplo existe desde as eras mais remotas. 1 De fato, já na História antiga encontramos notícia de incipientes formas de investigação, em Aluno da disciplina Bioética e Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e convidado da Professora Associada Rachel Sztajn. Bacharel pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Aluno dos cursos de Pós-Graduação cm Direito Econômico-Financeiro da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 1 "Desde tempos imemoriais experimentam-se tratamentos novos em pacientes que apresentam sintomas incomuns ou não respondem aos tratamentos convencionais. A mais antiga coleção de leis que se tem notícia - o Código de Hamurabi - já estabelecia prêmios para os cirurgiões que obtivessem êxito em suas experiências e castigos para aqueles que errassem" Cf. VIEIRA. Sônia, HOSSNE, William Saad. Experimentação em seres humanos. Revista Ciência e Ensino, n. 2, p. 7-9, junho 1997. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo v. 101 p. 1187- 1227 jan./dez. 2006

BIOÉTICA E PESQUISAS EM SERES HUMANOS

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Page 1: BIOÉTICA E PESQUISAS EM SERES HUMANOS

BIOEacuteTICA E PESQUISAS EM SERES HUMANOS

BIOETHICS AND RESERCH IN HUMAN BEINGS

Paulo Henrique de Oliveira Roberio Nunes dos Anjos Filho

Resumo O presente trabalho inicialmente apresenta a Bioeacutetica seu contexto histoacuterico e contemporacircneo Posteriormente aborda os princiacutepios gerais bioeacuteticos Apoacutes enfoca a experimentaccedilatildeo em seres humanos e alguns aspectos das normas internacionais e nacionais sobre o tema Num uacuteltimo momento satildeo colocadas questotildees acerca da teleologia e da legitimidade da pesquisa em seres humanos e apresentadas algumas conclusotildees na esperanccedila de que sejam uacuteteis agrave discussatildeo sobre a adequaccedilatildeo eacutetica deste tipo de experimento

Palavras-chave Eacutetica Bioeacutetica Pesquisa Seres Humanos

Abstract The present work initially presents the Bioethics its historical and contemporary context Later it approaches the general bioethics principies After it focuses the experimentation in human beings and some aspects of the international and national norms on the subject At last questions concerning the ai ms and the legitimacy of the research in human beings and some conclusions about this theme are presented in the hope that they are useful to the debate on the ethical adequacy of this type of experiment

Keywords Fthics Bioethics Research Human beings

1 Introduccedilatildeo

Por convergir racionalidade e curiosidade caracteriacutesticas inatas ao ser humano eacute que a pesquisa em sentido amplo existe desde as eras mais remotas1 De fato jaacute na Histoacuteria antiga encontramos notiacutecia de incipientes formas de investigaccedilatildeo em

Aluno da disciplina Bioeacutetica e Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo e convidado da Professora Associada Rachel Sztajn Bacharel pela Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo Aluno dos cursos de Poacutes-Graduaccedilatildeo cm Direito Econocircmico-Financeiro da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo

1 Desde tempos imemoriais experimentam-se tratamentos novos em pacientes que apresentam sintomas incomuns ou natildeo respondem aos tratamentos convencionais A mais antiga coleccedilatildeo de leis que se tem notiacutecia - o Coacutedigo de Hamurabi - jaacute estabelecia precircmios para os cirurgiotildees que obtivessem ecircxito em suas experiecircncias e castigos para aqueles que errassem Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

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especial no campo da agricultura e da astrologia A evoluccedilatildeo da humanidade de sua vez pressupotildee e estimula a necessidade de desvendar misteacuterios descobrir aprimorar e transmitir conhecimentos e teacutecnicas o que motivou o desenvolvimento da pesquisa

Paulatinamente o Homem foi instituindo novos meacutetodos no afatilde de aprofundar seus conhecimentos e comprovar teorias mateacuteria da qual se ocupa hoje a epistemologia Ao fazecirc-lo rompeu as barreiras do senso comum e criou a ciecircncia

Sem ceder agrave tentaccedilatildeo de nos aprofundarmos nas suas teorias seara onde se destacam claacutessicos pensadores como Descartes e Bacon vale anotar ao menos que atualmente eacute imprescindiacutevel rediscutir a ciecircncia2 em seus muacuteltiplos aspectos indagando natildeo-somente como fazecirc-la mas ainda para que(m) e a que custo

Eacute nesse contexto que se insere a questatildeo da experimentaccedilatildeo em seres humanos e a proteccedilatildeo aos sujeitos de pesquisa pois eacute notoacuterio que o conhecimento experimental jaacute natildeo mais se limita ao domiacutenio dos astros e misteacuterios da geografia da fiacutesica teoacuterica e da produccedilatildeo de substacircncias quiacutemicas amorfas e inanimadas O fasciacutenio pelo orgacircnico pelo humano ganhou lugar nas pipetas e pranchetas atraiu vultosos financiamentos e encheu os bancos universitaacuterios e laboratoacuterios de homens e mulheres que se dedicam a pesquisar a vida humana confirmando a necessidade de guarnecer as pessoas dos riscos das pesquisas atraveacutes do debate eacutetico percuciente missatildeo da qual tem se ocupado a Bioeacutetica

Diante disso entendemos ser oportuna a reflexatildeo sobre a eticidade em pesquisas envolvendo seres humanos

O presente trabalho inicialmente apresenta a Bioeacutetica seu contexto histoacuterico e contemporacircneo Posteriormente aborda os princiacutepios gerais bioeacuteticos Apoacutes enfoca a experimentaccedilatildeo em seres humanos e alguns aspectos das normas internacionais e nacionais sobre o tema Num uacuteltimo momento satildeo colocadas questotildees acerca da teleologia e da legitimidade da pesquisa em seres humanos e apresentadas algumas conclusotildees na esperanccedila de que sejam uacuteteis agrave discussatildeo sobre a adequaccedilatildeo eacutetica deste tipo de experimento

Boaventura de Souza Santos sustenta que a ciecircncia moderna se encontra mergulhada numa profunda crise c que estamos vivemos uma fase de transiccedilatildeo entre o paradigma da ciecircncia moderna e um novo paradigma ao qual denomina de poacutes moderna Nesse contexto faz criacuteticas agraves correntes dominantes da epistemologia e propotildee uma reflexatildeo hermenecircutica visando compreender a praacutetica cientiacutefica para aleacutem da consciecircncia ingecircnua ou oficial dos cientistas e das instituiccedilotildees da ciecircncia com vista a aprofundar o diaacutelogo dessa praacutetica com as demais praacuteticas de conhecimento de que se tecem a sociedade e o mundo SANTOS Boaventura de Souza Introduccedilatildeo a uma ciecircncia poacutes moderna 3 ed Rio de Janeiro Graal 1989 Discussotildees desse jaez satildeo enfrentadas pela sociologia da ciecircncia Vide a respeito vg MERTON Robert K La Sociologia de la ciecircncia Madrid Alianza Editorial 1985

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A nossa abordagem natildeo pretende ser original nem exaustiva Esperamos apenas contribuir para fomentar o importante debate sobre os valores que devem ser preservados na conduccedilatildeo das pesquisas em seres humanos

2 Bioeacutetica surgimento e conceito

O desenvolvimento da ciecircncia4 mormente em aacutereas afeitas agrave vida e a ocorrecircncia de pesquisas francamente contraacuterias agrave dignidade humana como ocorrido em vaacuterias passagens da Segunda Guerra ensejaram o surgimento da Bioeacutetica como um novo ramo do conhecimento5

A doutrina majoritaacuteria6 sustenta que o termo Bioeacutetica foi usado pela primeira vez em 1971 pelo americano Rensselaer Potter em sua obra intitulada Bioethics a Bridge to the Future embora a ideacuteia do autor acerca do vocaacutebulo agrave eacutepoca de sua ediccedilatildeo natildeo coincida com a concepccedilatildeo contemporacircnea atribuiacuteda ao termo7

Hodiernamente a doutrina apresenta inuacutemeras definiccedilotildees de Bioeacutetica com certas divergecircncias quanto a sua metodologia e amplitude ou objeto Alguns autores por exemplo tendem a vinculaacute-la a determinadas aacutereas e especialidades

Bem a propoacutesito as palavras de Ricardo Cunha A ordem cientiacutefica convolou-se em era tecnoloacutegica onde as representaccedilotildees abstratas da matemaacutetica usurpam o sentido do mundo real produzindo uma nova crenccedila Todavia o desconhecido agora natildeo desce dos ceacuteus agrave terra mas ao contraacuterio sobe da terra aos ceacuteus CUNHA Ricardo O Direito em trecircs espantos Fundamentos filosoacuteficos para a relaccedilatildeo entre Ciecircncia Direito e Justiccedila Revista da Faculdade de Direito Cacircndido Mendes Ano 4 n 4 p 39-56 1999 Considerando o nuacutemero de eventos publicaccedilotildees documentos internacionais e disciplinas acadecircmicas Sueli Gandolfi Dallari sustenta que a Bioeacutetica foi o ramo da eacutetica aplicada que mais se desenvolveu nos uacuteltimos anos DALLARI Sueli Gandolfi A Bioeacutetica e a sauacutede puacuteblica In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 209 Haacute posiccedilotildees divergentes Cita-se como exemplo que autores atribuem a palavra a Fritz Jahr que utilizou em 1927 a grafia Bio=Ethik criando o Imperativo Bioeacutetico Respeita cada ser vivo em princiacutepio como uma finalidade em si e trata-o como tal na medida do possiacutevel JAHR Fritz Bio-Ethik Eine Umschau uumlber die ethichen Beziehung des Menschen zu Tier und Pfianze Kosmos n 24 p 2 1927 Natildeo se desconhece entretanto a ecircnfase conferida por alguns autores a outros pesquisadores no que concerne a trabalhos que influenciaram a trajetoacuteria inicial da Bioeacutetica Por exemplo Andreacute Hellegers e Paul Ramsey Hellegers meacutedico holandecircs de formaccedilatildeo jesuiacutetica trabalhou a definiccedilatildeo de criteacuterios para as discussotildees Bioeacuteticas e junto com Fr Henley propocircs em 1970 agrave Fundaccedilatildeo Kennedy a criaccedilatildeo do Kennedy Center for the Study of Human Reproduction and Development Em 1971 o nome mudou para The Joseph and Rose Kennedy Center for the Study of Human Reproduction and Bioethics e finalmente para The Kennedy Institute of Ethics Cf Irving Dianne N What Is Bioethics (Quid Est Bioethics) Life and Learning Conference June 3 2000 disponiacutevel em lthttpwwwcatholiculturenetdocsdoc_viewcfm7recnuirrf320gt Acessado em 22 maio 2006 Jaacute Paul Ramsey publicou em 1970 portanto pouco antes de Potter o livro The Patient as Person Explorations in Medicai Ethics (Second Edition New Heaven Yale University Press 2002) que antecipou algumas das discussotildees da Bioeacutetica

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Todavia eacute possiacutevel vislumbrar um certo consenso nas conceituaccedilotildees em

pelo menos trecircs pontos fundamentais vida eacutetica e multidisciplinaridade Esta triparticcedilatildeo

elucida didaticamente o conceito vida (biolt) designa o objeto central eacutetica o

desiderato o objetivo a ser alcanccedilado e multidisciplinaridade a forma de proceder o

meacutetodo Trata-se assim de ciecircncia multidisciplinar preocupada em refletir sobre os

progressos cientiacuteficos e sua ingerecircncia na vida humana agrave luz da eacutetica8

Esmiuccedilando o conceito com relaccedilatildeo agrave multidisciplinaridade observa-se

que a extensatildeo dos temas enfrentados pela Bioeacutetica fatalmente lhe impotildee um proceder

multidisciplinar e dinacircmico o que justifica a existecircncia de conceitos divergentes sobre

determinados assuntos O que se pode almejar portanto eacute uma reflexatildeo pois a

uniformidade de pensamento eacute na maioria dos casos inatingiacutevel9

No que concerne aos objetos de estudo da Bioeacutetica percebe-se a

necessidade de contornos mais perceptiacuteveis o que natildeo parece estar na agenda de alguns

pesquisadores que refutam a adjetivaccedilatildeo de bioeticistas pois acreditam que tendo em

vista a complexidade das questotildees a serem enfrentadas a Bioeacutetica natildeo comportaria

limitaccedilotildees e meacutetodos tampouco seria possiacutevel determinar seus objetos de estudo

tamanha a insurgecircncia de conflitos relacionados agrave vida

Considerando a sua interdisciplinaridade a instituiccedilatildeo de um meacutetodo

uacutenico e a delimitaccedilatildeo dos objetos de reflexatildeo da Bioeacutetica satildeo parecem realmente estar

impossibilitadas neste momento Natildeo eacute agrave toa que foram modelados os conceitos de

macrobioeacutetica e microbioeacutetica 10 A primeira permite extensotildees que podem vir a ser

8 Cf OLIVEIRA Paulo Henrique de Bioeacutetica e sauacutede indiacutegena Monografia apresentada no curso de Especializaccedilatildeo em Bioeacutetica do Departamento de Eacutetica Meacutedica e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo (Satildeo Paulo mimeo 2005) A Declaraccedilatildeo de Bioeacutetica de Gijoacuten adotada no I Congresso Mundial de Bioeacutetica em Gijoacuten na Espanha nos dias 20 a 24 de Junho de 2000 afirma que Uma tarefa importante da Bioeacutetica que constitui uma atividade pluridisciplinar eacute harmonizar o uso das ciecircncias biomeacutedicas e as suas tecnologias com os direitos do homem Texto disponiacutevel em lthttpwwwsibiorgportdccbiohtmgt (acessado em 04062006) Um dos precursores da Bioeacutetica no Brasil Marco Segre preconiza Bioeacutetica eacute a parte da Eacutetica ramo da filosofia que enfoca as questotildees referentes agrave vida humana e portanto agrave sauacutede In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo 1999 p 23 Na concepccedilatildeo de Tereza Rodrigues Vieira a Bioeacutetica Indica um conjunto de reflexotildees pesquisas c praacuteticas pluridisciplinares objetivando elucidar e solucionar questotildees eacuteticas provocadas pelo avanccedilo das tecnociegravencias biomeacutedicas VIEIRA Tereza Rodrigues Bioeacutetica e direito 2 ed Satildeo Paulo Juriacutedica Brasileira 2003 p 15

9 Consoante Carlos Michel Hemaacutedez La Bioeacutetica no tiene formulas permanentes para todas Ias situaciones posibles dentro de su acircmbito aunque siacute oferece Ias liacuteneas generales y especiacuteficas de actuacioacuten a fin de que cada involucrado en una dccisioacuten de esta naturaleza pueda auxiliarse se hace eacutenfasis en no tomar decisiones individuales sobre todo en casos complejos y limite como el que nos ocupa Una de Ias caracteriacutesticas de la Bioeacutetica es el ser multidisciplinaria HERNAacuteDEZ Carlos Michel Bioeacutetica em pediatria In PORTER Joseacute Kuthy GONZAacuteLEZ Oacutescar Martiacutenez MICHEL Martha Tarasco (Orgs) Temas acluales de Bioeacutetica Meacutexico Poruacutea 1999 p 136

10 Cf SEGRE Marco Definiccedilatildeo de Bioeacutetica e sua relaccedilatildeo com a eacutetica deontologia e diceologia In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo 1999 p 27-33

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desmedidas e inadequadas ao incluir na esfera dos estudos bioeacuteticos mateacuterias por exemplo como a Ecologia que objetiva a preservaccedilatildeo da espeacutecie humana e do planeta terra e a Medicina Sanitaacuteria Ocorre que toda e qualquer interrogaccedilatildeo se levada aos extremos indubitavelmente em algum aspecto alcanccedilaraacute a vida humana e a interdisciplinaridade mas apenas isto natildeo a transformaraacute em uma questatildeo Bioeacutetica Jaacute a segunda preocupa-se com a relaccedilatildeo entre os profissionais da aacuterea de sauacutede e os pacientes ou entre instituiccedilotildees puacuteblicas ou privadas pacientes e profissionais de sauacutede Entretanto a Bioeacutetica transborda o interesse das pessoas ligadas diretamente agraves questotildees de sauacutede para atingir todos os Homens jaacute que interfere no conviacutevio social

Parece-nos mais acertado e necessaacuterio limitar a atuaccedilatildeo da Bioeacutetica aos casos em que realmente haacute algum conflito de valores quando numa mesma situaccedilatildeo dois princiacutepios eacutetica e moralmente admissiacuteveis natildeo podem coexistir E o caso por exemplo da eutanaacutesia onde duelam a dignidade do paciente terminal e continuidade da vida do aborto por anencefalia onde se confrontam a vida do feto versus a dignidade da gestante e tambeacutem do caso em epiacutegrafe a pesquisa em seres humanos quando satildeo discutidos entre outros a liberdade e os limites da pesquisa cientiacutefica em contraponto aos princiacutepios gerais da Bioeacutetica e agrave dignidade Por outro lado quando a conduta eacute reprovada ou aceita de forma uniacutessona pela sociedade natildeo haacute porque pensaacute-la no plano da Bioeacutetica como ocorre vg com as questotildees atinentes agrave necessidade de diminuiccedilatildeo da violecircncia ou agrave imperiosidade da conservaccedilatildeo do meio ambiente

3 Os princiacutepios da Bioeacutetica

O principialismo da Bioeacutetica eacute proveniente sobretudo do Belmont Report e de sua lapidaccedilatildeo pela doutrina especialmente por Beauchamp e Childress12

O Belmont Report de 1978 eacute resultado do trabalho da Comissatildeo Nacional para Proteccedilatildeo dos Seres Humanos da Pesquisa Biomeacutedica e Comportamental13 instituiacuteda pelo Governo norte-americano em 12 de julho de 1974 para identificar os princiacutepios eacuteticos baacutesicos aplicaacuteveis na pesquisa em seres humanos As conclusotildees finais do relatoacuterio acabaram transpondo os objetivos iniciais da comissatildeo e formatando princiacutepios que seriam utilizados natildeo-soacute na experimentaccedilatildeo em pessoas mas sim em todas as

The Belmont Report Ethical Guidelines for the Protection of Human Subjects Washington DHFW Publications (OS) 78-0012 1978 O texto original estaacute disponiacutevel em lthttpohrposophsdhhsgovhumansubjeetsguidaneebelmonthtmgt (acessado em 05062006) A denominaccedilatildeo tem origem no local onde o relatoacuterio foi discutido e redigido

12 BEAUCHAMP T L CHILDRESS J F Principies ofBiomedical Ethics 4 ed New York Oxford 1994 13 National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomeacutedica and Behavioral Research

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projeccedilotildees da Bioeacutetica14 De qualquer forma esse fato histoacuterico revela desde logo a iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica e as pesquisas em seres humanos

Os trecircs princiacutepios impressos pelo Relatoacuterio e referendados pela Bioeacutetica satildeo os da autonomials da beneficecircncia e da justiccedila Todavia a incidecircncia de um quarto princiacutepio o da natildeo-maleficecircncia eacute reconhecida por muitos pesquisadores

O principio da autonomia reporta-se agrave capacidade de auto-escolha ao auto-governo considerado como uma condiccedilatildeo para a efetiva dignidade do ser racional Autonomia eacute uma palavra que tem origem grega derivando de auto (proacuteprio) e nomos (lei regra norma) vinculando-se assim agrave possibilidade de algueacutem adotar suas proacuteprias decisotildees As pessoas devem ser reconhecidas como entes capazes de tomar suas proacuteprias decisotildees devendo ser preacutevia e devidamente informadas a respeito dos procedimentos seus riscos e consequumlecircncias A informaccedilatildeo adequada eacute portanto fundamental natildeo-soacute no que concerne ao indiviacuteduo diretamente envolvido16 mas tambeacutem a toda a sociedade17

Em termos praacuteticos a autonomia significa dizer por exemplo no caso dos meacutedicos e dos profissionais da Medicina que eles devem respeitar a escolha dos seus pacientes seus dogmas e sua cultura18 Nestes termos a relaccedilatildeo meacutedicopaciente eacute bastante modificada abandonando-se o paternalismo que ateacute entatildeo imperava19

14 Asseveram Leo Pessini e Christian de Paul Barchifontaine que O Relatoacuterio de Belmorit foi oficialmente divulgado em 1978 e causou grande impacto Tornou-se a declaraccedilatildeo principialista claacutessica natildeo somente para a eacutetica ligada agrave pesquisa com seres humanos jaacute que acabou sendo utilizada para a reflexatildeo Bioeacutetica em geral PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Bioeacutetica do principialismo agrave busca de uma perspectiva latino-americana In COSTA Seacutergio Ibiapina F OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 83

15 Tambeacutem denominado de principio do respeito agraves pessoas ou de principio do consentimento Este uacuteltimo foi proposto por H Tristram Engelhardt para indicar melhor que o que estaacute em jogo natildeo eacute algum valor possuiacutedo pela autonomia ou pela liberdade mas o reconhecimento de que a autoridade moral secular deriva do consentimento dos envolvidos em um empreendimento comum O principio do consentimento coloca em destaque a circunstacircncia de que quando Deus natildeo eacute ouvido por todos do mesmo modo (ou natildeo eacute de maneira alguma ouvido por ningueacutem) e quando nem todos Pertencem a uma comunidade perfeitamente integrada e definida e desde que a razatildeo natildeo descubra uma moralidade canocircnica concreta entatildeo a autorizaccedilatildeo ou autoridade moral secularmente justificaacutevel natildeo vem de Deus nem da visatildeo moral de uma comunidade particular nem da razatildeo mas do consentimento dos indiviacuteduos Nessa surdez a Deus e no fracasso da razatildeo os estranhos morais encontram-se como indiviacuteduos ENGELHARDT H Tristram Fundamentos de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1998 p 17

Segundo a jaacute citada Declaraccedilatildeo de Bioeacutetica de Gijoacuten Os participantes da pesquisa deveratildeo conceder seu consentimento livre e plenamente esclarecido

1 A mesma Declaraccedilatildeo de Bioeacutetica de Gijoacuten tambeacutem recomenda que Todos os membros da sociedade devem receber uma informaccedilatildeo geral adequada e acessiacutevel sobre a utilizaccedilatildeo dos avanccedilos cientiacuteficos as biotecnologias e seus produtos O principio da autonomia como pressuposto da auto-determinaccedilatildeo inclusive auto-governo representa o respeito agrave capacidade que tem a pessoa de se governar escolher dividir avaliar sem restriccedilotildees internas e externas Cf BASTOS Paulo Roberto H de Oliveira A Bioeacutetica nas praacuteticas de sauacutede Revista Juriacutedica da FIC-UNAES Campo Grande Ano 1 n 2 p 98 nov 1998 abr 1999

19 Sobre o tema consta da Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten que Cada um tem o direito aos melhores cuidados

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O postulado da autonomia tem forte base teoacuterica John Stuart Mill por exemplo jaacute tinha afirmado que sobre si mesmo sobre seu corpo e sua mente o indiviacuteduo eacute soberano20 Emile Durkheim entendia a autonomia como a interiorizaccedilatildeo das normas21 Por sua vez Jean Piaget estudou a autonomia como a capacidade de coordenaccedilatildeo de diferentes perspectivas sociais com o pressuposto do respeito reciacuteproco22

Poreacutem talvez a autonomia tenha tido na teoria kantiana o seu mais importante manancial A doutrina do filoacutesofo prussiano ultrapassou geraccedilotildees atingindo contornos cosmopolitas e atemporais Suas obras satildeo analisadas sob diferentes prismas idiomas e culturas sendo largamente estudado e recepcionado pela Bioeacutetica A autonomia em obra originalmente publicada em 1785 eacute para o filoacutesofo o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racionar23 E assim o pressuposto para a racionalidade da conduta bem como um princiacutepio supremo da moralidade vez que implica simultaneamente na vontade da norma universal (imperativo categoacuterico) e no respeito agrave dignidade da pessoa humana Registrou Kant na mesma obra que I autonomia da vontade eacute aquela sua propriedade graccedilas agrave qual ela eacute para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer) O princiacutepio da autonomia eacute portanto natildeo escolher senatildeo de modo a que as maacuteximas da escolha estejam incluiacutedas simultaneamente no querer mesmo como lei universal 24

Foi natural assim que a Bioeacutetica adotasse como fundamento o princiacutepio da autonomia2

O Relatoacuterio Belmont propocircs que a autonomia incorpora pelo menos duas convicccedilotildees eacuteticas a primeira que os indiviacuteduos devem ser tratados como agentes

meacutedicos possiacuteveis O doente e o meacutedico devem decidir juntos o domiacutenio do tratamento O doente deveraacute exprimir o seu consentimento livre apoacutes ter sido informado de maneira adequada Vale conferir a doutrina de COHEN Claacuteudio MARCOLINO Joseacute Aacutelvaro Marques Relaccedilatildeo Meacutedico-Paciente Autonomia amp Paternalismo In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo 1999 p 83-94

20 MILL John Stuart On Liberty Boston Collier 1909 p 5 21 Cf SEGRE Marco SILVA F L SCHRAMM F R O contexto histoacuterico semacircntico e filosoacutefico do

principio de autonomia Disponiacutevel em lthttpvwwvportaldomedicoorgbrrevistabiol v6conthistoricohtmgt Acessado em 04 maio 2006 Vide tambeacutem Joseacute Roberto Goldim Princiacutepio do respeito agrave pessoa ou da autonomia Disponiacutevel em lthttpwwwbioeticaufrgsbrautonomihtmgt Acessado cm 23 maio 2006

22 Cf KESSELRING T Jean Piaget Petroacutepolis Vozes 1993 p 173-189 23 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 1992 p 79 24 Id Ibid p 85 25 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO de 2005 agasalha o princiacutepio

da autonomia Seu art 5 por exemplo estatui que Deve ser respeitada a autonomia dos indiviacuteduos para tomar decisotildees quando possam ser responsaacuteveis por essas decisotildees e respeitem a autonomia dos demais Devem ser tomadas medidas especiais para proteger direitos e interesses dos indiviacuteduos natildeo capazes de exercer autonomia

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autocircnomos e a segunda que as pessoas com autonomia diminuiacuteda devem ser protegidas Desta forma divide-se em duas exigecircncias morais separadas a exigecircncia do reconhecimento da autonomia e a exigecircncia de proteger aqueles com autonomia reduzida Esta uacuteltima exigecircncia vincula-se agrave questatildeo da vulnerabilidade que pode ser observada em certas pessoas ou grupos e que seraacute mais adiante abordada

Por sua vez o principio da beneficecircncia de acordo com Clotet e Kipper deve ser entendido como uma dupla obrigaccedilatildeo primeiramente a de natildeo-causar danos e em segundo lugar a de maximizar o nuacutemero de possiacuteveis benefiacutecios e minimizar os prejuiacutezos26

Tambeacutem este postulado mereceu larga abordagem doutrinaacuteria muitas vezes em contraponto ao princiacutepio da natildeo-maleficecircncia que perfunctoriamente impotildee a obrigaccedilatildeo de natildeo-causar intencionalmente danos a outrem

Tal preceito deita raiacutezes no discurso hipocraacutetico na expressatildeo primum non nocere Mas tambeacutem eacute possiacutevel vinculaacute-lo aacute teoria kantiana jaacute que o imperativo categoacuterico conforme o qual Age segundo maacuteximas que possam simultaneamente ter-se a si mesmas por objecto como leis universais da natureza exige uma vontade absolutamente boa ou seja afasta qualquer possibilidade de agir que natildeo seja em benefiacutecio do outro27

Jaacute em 1930 Sir David Ross estabeleceu o conceito de dever prima facie propondo que no caso de eventual conflito entre beneficecircncia e natildeo-maleficecircncia prevaleccedila esta uacuteltima28

Frankena em 1963 escreveu que o princiacutepio da beneficecircncia natildeo nos ensina como fazer a distribuiccedilatildeo do bem e do mal apenas determina que promovamos o primeiro e evitemos o segundo2 Observa-se assim que a natildeo-maleficecircncia eacute entendida como parte da beneficecircncia

O Relatoacuterio Belmont foi influenciado pelo pensamento de Frankena jaacute que tratou a natildeo-maleficecircncia como um desdobramento natural da beneficecircncia ao estabelecer duas regras gerais que devem ser formuladas como complementares das

26 CLOTET amp KIPPER Princiacutepios da beneficecircncia e natildeo-maleficecircncia In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 45

27 Id Ibidp 80-81 28 ROSS W D The right and lhe Good Oxford Clarendon 1930 p 21-22 apud GOLDIM Joseacute Roberto

Principio da Beneficecircncia Disponiacutevel em lthttpwwwbioeticaufrgsbrbenefichtmgt Acessado em 23 maio de 2006

29 Quando se manifestam exigecircncias conflitantes o mais que ele pode fazer eacute aconselhar-nos a conseguir a maior porccedilatildeo possiacutevel de bem em relaccedilatildeo ao mal Cf FRANKENA W K Eacutetica Rio de Janeiro Zahar 1981 p 61-73 apud GOLDIM Joseacute Roberto op cit

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accedilotildees beneacuteficas a) natildeo-causar o mal e b) maximizar os benefiacutecios e minimizar os danos

A seu turno o princiacutepio da justiccedila pode ser resumido no dever de imparcialidade na distribuiccedilatildeo dos riscos e benefiacutecios inerentes agrave pesquisa bem como no tratamento igualitaacuterio aos iguais30 embora naturalmente haja dificuldades na determinaccedilatildeo de quem eacute ou-natildeo igual31 Implica ainda necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa

Segundo o Relatoacuterio Belmont haveraacute injusticcedila quando eacute imposto um dano ou encargo indevidamente ou quando um benefiacutecio eacute negado a algueacutem de maneira injustificada Aleacutem disso reconhece dificuldades na determinaccedilatildeo de um criteacuterio para a distribuiccedilatildeo dos benefiacutecios havendo vaacuterias possibilidades a cada um igualmente a cada um na medida da sua necessidade a cada um conforme seu esforccedilo individual a cada um de acordo com seu meacuterito2

Alguns autores defendem que a importacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica deve ser minorada postulando por uma reflexatildeo mais autocircnoma Nos parece que esse eacute

30 Eacute o princiacutepio da justiccedila que obriga a garantir a distribuiccedilatildeo justa equumlitativa e universal dos benefiacutecios dos serviccedilos de sauacutede Impotildee que todas as pessoas sejam tratadas de igual maneira natildeo obstante suas diferenccedilas Cf SANTOS Celeste Cordeiro dos O equiliacutebrio do pecircndulo a Bioeacutetica e a lei implicaccedilotildees meacutedico-legais Satildeo Paulo iacutecone 1998 p 45

31 O princiacutepio da igualdade tem suscitado importantes debates filosoacuteficos na Histoacuteria da humanidade dando ensejo a interpretaccedilotildees as mais variadas Aristoacuteteles vinculou a igualdade agrave justiccedila que pode ser comutativa ou distributiva (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos Satildeo Paulo Editora Nova Cultural 1996) Haacute ainda os autores nominalistas que entendem que a desigualdade eacute universal e portanto a igualdade natildeo passa de um nome Jaacute LOCKE John Ensaio sobre o governo civil Traduccedilatildeo Carmo Nunes Porto Seacuteculo XX 1986 e Montcsquieu Charles Secondat de O espirito das leis Satildeo Paulo Martins Fontes 1993 ao contraacuterio entendiam que a igualdade entre as pessoas era absoluta pertencendo assim ao grupo denominado de idealistas ROSSEAU Jean-Jacques Discurso sobre a origem das desigualdades entre os homens Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 de sua parte embora tambeacutem pertenccedila a essa uacuteltima vertente admitia a existecircncia de dois tipos de desigualdades a natural (ou fiacutesica) e a moral (ou poliacutetica) Vale entretanto trazer a lume as percucicntes anotaccedilotildees de Leila Pinheiro Bellintani sobre o tema Atraveacutes da anaacutelise histoacuterica do princiacutepio da igualdade [] percebe-se claramente que este preceito passou por intensa evoluccedilatildeo tendo sua conceituaccedilatildeo moldado-se atraveacutes dos tempos agraves novas necessidades sociais Apesar do constante aprimoramento do conceito dos ideais isonocircmicos natildeo se pode dizer que as concepccedilotildees anteriores foram ultrapassadas mas sim que houve uma agregaccedilatildeo de significados no decorrer da histoacuteria fazendo do principio da igualdade o preceito complexo que ora se apresenta Assim os estaacutegios evolutivos natildeo se deram de forma isolada ou independente Ao reveacutes se acumularam como telhas sobrepostas ampliando sempre o leque de acepccedilotildees a serem salvaguardadas ocorrendo o que se pode denominar de sobreposiccedilatildeo de significados Predomina portanto a ideacuteia de cumulaccedilatildeo e natildeo de alternacircncia entre eles Pode-se dizer portanto que hodiernamente o princiacutepio da igualdade possui diversas faces que se integram e que devem ser constantemente observadas pelos aplicadores das leis legisladores e pela proacutepria comunidade BELLINTANI Leila Pinheiro Accedilatildeo Afirmativa e os Princiacutepios do Direito Rio de Janeiro Lumen Juacuteris 2006 p 19-20

32 Impossiacutevel deixar de fazer menccedilatildeo aqui agrave noccedilatildeo de justiccedila distributiva de Aristoacuteteles que tem como base uma igualdade geomeacutetrica e consiste em dar a cada um o que lhe eacute devido mas considerando a excelecircncia que cada um possui o seu valor (areteacute) para a polis () porque aquilo que eacute distribuiacutedo agraves pessoas deve secirc-lo de acordo com o meacuterito de cada uma Op cit p 198

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um falso dilema jaacute que princiacutepios natildeo devem ser aplicados como regras e portanto natildeo representam uma camisa-de-forccedila para a Bioeacutetica Embora os objetivos deste trabalho natildeo nos permitam aprofundar a discussatildeo em torno da sua origem e aplicabilidade celeuma muito comum na ciecircncia juriacutedica natildeo seraacute despiciendo relembrar ao menos que haacute uma distinccedilatildeo juriacutedica entre princiacutepios e regras e que enquanto estas uacuteltimas satildeo aplicadas a partir da oacutetica do ali or nothing excluindo-se mutuamente os primeiros convivem entre si natildeo se excluem e representam motivos para decidir em determinado sentido

Portanto podemos afirmar que os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica pluralista aberta e receptiva Aleacutem disso pragmaticamente a aplicaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo dos princiacutepios em cada caso concreto eacute poderoso instrumento para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

Por tudo isso parece descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos debates bioeacuteticos Tanto assim eacute que a tendecircncia moderna eacute no sentido do reconhecimento de princiacutepios universais da Bioeacutetica Importante anotar por exemplo que o uacuteltimo documento internacional acerca do tema a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO datada de 2005 eacute fortemente principioloacutegica e dentre outros aspectos deliberou ser necessaacuterio e oportuno que a comunidade internacional declare princiacutepios universais que proporcionaratildeo uma base para a resposta da humanidade aos sempre crescentes dilemas e controveacutersias que a ciecircncia e a tecnologia apresentam agrave raccedila humana e ao meio ambiente

Deve-se lembrar finalmente que a abordagem dos princiacutepios da Bioeacutetica em separado tem uma justificativa puramente didaacutetica jaacute que eles natildeo podem ser cindidos na sua conceituaccedilatildeo e muito menos na sua aplicaccedilatildeo praacutetica34

4 Experimentaccedilatildeo em seres humanos aspectos da normatizaccedilatildeo nacional e internacional

Sobre princiacutepios a literatura juriacutedica eacute vasta Vide vg ALEXY Robert Teoria de tos Derechos Fundamentales Madrid Centro de Estuacutedios Constitucionales 1997 p 81-172 DWORKFN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1997 AacuteVILA Humberto Teoria dos Princiacutepios da definiccedilatildeo agrave aplicaccedilatildeo dos princiacutepios juriacutedicos 2 ed Satildeo Paulo Malheiros Editores 2003 ROTHEMBURG Waller Claudius Princiacutepios Constitucionais Porto Alegre Seacutergio Antonio Fabris 1999

4 Nesse sentido GUIMARAtildeES Maria Carolina S Eacutetica biomeacutedica e pesquisa em grupos humanos Revista Meacutedica de Minas Gerais v 3 n 1 p 52-53 janmar 1993 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO destina o seu art 26 agrave inter-relaccedilatildeo e complementaridade dos princiacutepios dispondo que A presente Declaraccedilatildeo deve ser considerada em sua totalidade e seus princiacutepios devem ser compreendidos como complementares e inter-relacionados Cada princiacutepio deve ser interpretado no contexto dos demais de forma pertinente e adequada a cada circunstacircncia

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No seacuteculo XVI Galileu passou a buscar a verdade atraveacutes da experimentaccedilatildeo e da observaccedilatildeo das coisas desvinculando-se da verdade dos escolaacutesticos ou da Igreja Esse eacute considerado o marco de referecircncia das origens da ciecircncia experimental a qual terminou por proporcionar a Revoluccedilatildeo Cientiacutefica nos seacuteculos seguintes35 Esta uacuteltima abriu as portas para uma nova era na humanidade multiplicando o conhecimento e as descobertas gerando tecnologia A tecnologia passou a imprimir uma velocidade cada vez maior nas transformaccedilotildees cientiacuteficas e sociais A velocidade com que as mudanccedilas ocorrem por sua vez municia o Homem com novas perspectivas e instrumentos sempre mais apurados de investigaccedilatildeo o que implica em mais tecnologia36 Investigaccedilatildeo pesquisa conhecimento mudanccedilas tecnologia velocidade formam uma espeacutecie de ciacuterculo virtuoso - natildeo-vicioso31 e satildeo palavras indissociaacuteveis da realidade nos uacuteltimos tempos a partir do seacuteculo XX no qual testemunhamos pelo menos duas espantosas revoluccedilotildees a atocircmica e a molecular38

Todo esse acervo mudou por completo as sociedades e o pensamento humano e natildeo se trata de um processo jaacute findo Pelo contraacuterio muito ainda estaacute por vir Natildeo se sabe aliaacutes se o Homem encontraraacute fronteiras tecnologicamente intransponiacuteveis Essa perspectiva de escassez de barreiras teacutecnicas conduz ao debate sobre a necessidade

35 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 edbdquo rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179

36 Por exemplo vale lembrar o ocorrido durante o desenrolar dos estudos do projeto genoma humano Segundo Jordan (1993) o verdadeiro objetivo inicial do PGH natildeo era o sequumlenciamento muito complexo caro e trabalhoso mas um mapeamento detalhado do genoma humano No decorrer do processo os progressos tecnoloacutegicos foram tatildeo grandes que propiciaram o sequumlenciamento mesmo antes do prazo previsto Cf GOLDIM Joseacute Roberto MATTE Uacutersulla Projeto Genoma Humano - HUGO Disponiacutevel em lthttpwwwufrgsbrbioeticagenomahtmgt Acessado em 28 maio de 2006

37 Natildeo se desconhece entretanto que o ser humano eacute capaz visando objetivos condenaacuteveis natildeo apenas de bloquear pesquisas mas tambeacutem de manipulaacute-las ou de realizaacute-las de forma direcionada propositadamente sem a observacircncia de criteacuterios cientiacuteficos Todavia antes de examinar a transmissatildeo de conhecimentos eacute necessaacuterio acenar para a sua fonte primaacuteria a pesquisa cientiacutefica Tambeacutem aiacute natildeo faltam aacutereas de conflito Foram sobretudo analisadas as frequumlentes ameaccedilas ao conhecimento e agrave informaccedilatildeo cientiacutefica provenientes de decisotildees poliacuteticas ou da proteccedilatildeo de interesses particulares Dentre as decisotildees poliacuteticas a diretora do Instituto Nacional da Seguranccedila e da Sauacutede Ocupacional (NIOSH) dos EUA Linda Rosenstock recordou aquelas assumidas pelo Congresso nos uacuteltimos anos dentro de um quadro de reduccedilatildeo de muitos programas para a proteccedilatildeo aos trabalhadores com a finalidade de bloquear a utilizaccedilatildeo de pesquisas no campo das artropatias do trabalho e de estudos sobre a relaccedilatildeo entre a motorizaccedilatildeo e os tumores e tambeacutem encobrir o fato de duas organizaccedilotildees internacionais designadas para a proteccedilatildeo agrave sauacutede a Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e a Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho estatildeo sob a acusaccedilatildeo de ter manipulado os relatoacuterios teacutecnicos relativos agrave induacutestria do asbesto Dentre os interesses particulares prcvalcccm aqueles das induacutestrias que encomendam pesquisas com a finalidade de demonstrar a inexistecircncia de efeitos nocivos (o exemplo mais macroscoacutepico concerne ao tabaco) ou entatildeo aumentar as incertezas para evitar fazer o que eacute necessaacuterio com base em conhecimentos jaacute comprovados ou mesmo sugerir procedimentos que alongam indefinidamente os periacuteodos de intervenccedilatildeo Cf BERLINGUER Giovanni Bioeacutetica Cotidiana Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2004 p 147-148

38 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia op cit p 159-179

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de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees tendo em conta que a teoria de haacute muito jaacute advertiu1 e a experiecircncia jaacute nos ensinou como adiante se veraacute que a ausecircncia de limites pode levar ao abuso

Embora isso possa ocorrer em vaacuterios campos como vg a economia e a poliacutetica sem duacutevida a aacuterea biomeacutedica eacute uma das que mais merecem nossa atenccedilatildeo natildeo soacute porque estaacute entre as mais influenciadas por essas transformaccedilotildees mas tambeacutem porque eacute uma das que mais tem potencial de desenvolvimento aleacutem do fato oacutebvio de estar diretamente ligada agrave vida humana Exatamente por isso cresce a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave vida especialmente a Medicina40

O acreacutescimo jaacute obtido na expectativa de vida do Homem que praticamente dobrou nos uacuteltimos dois seacuteculos decorrente de vaacuterios fatores dentre os quais uma verdadeira revoluccedilatildeo terapecircutica41 natildeo eacute suficiente As pessoas querem viver ainda mais e com melhor qualidade Por isso cobram mais avanccedilos tecnoloacutegicos nessa aacuterea despertando interesses diversos que vatildeo dos humanitaacuterios aos puramente comerciais e econocircmicos Chega-se a se falar ateacute mesmo em um direito agrave pesquisa que deve figurar entre as liberdades fundamentais unanimemente reconhecidas42

Para que esses desejos se tornem viaacuteveis eacute preciso conhecer cada vez mais profundamente a complexa maacutequina que eacute o corpo humano desenvolver novos faacutermacos medicamentos vacinas e terapias para combater doenccedilas descobrir a fonte da juventude atraveacutes de meacutetodos de desaceleraccedilatildeo - ou quiccedilaacute interrupccedilatildeo - da degeneraccedilatildeo celular dentre outras possibilidades e desafios

Por exemplo eacute conhecida nos meios juriacutedicos a passagem que adverte () mas trata-se de uma experiecircncia eterna que todo homem que possui poder eacute levado a dele abusar ele vai ateacute onde encontra limites Quem diria Ateacute a virtude precisa de limites MONTESQUIEU Charles de Secondat op cit p 170

40 Natildeo eacute agrave toa portanto que em interessante estudo sobre as exigecircncias referentes aos aspectos eacuteticos da pesquisa em revistas cientiacuteficas brasileiras se chegou agrave conclusatildeo de que As revistas de medicina e enfermagem apresentaram maior preocupaccedilatildeo com as orientaccedilotildees eacuteticas do que as revistas natildeo-meacutedicas classificadas nos grupos de miscelecircncia e odontologia sugerindo que o debate eacutetico da experimentaccedilatildeo em seres humanos estaacute mais difundido nas aacutereas meacutedica e de enfermagem do que em outras aacutereas da sauacutede Tal no entanto natildeo representa necessariamente um dado a ser festejado pois o resultado global comprovou que 791 das revistas cientiacuteficas estudadas natildeo fazem qualquer referecircncia aos aspectos eacuteticos Cf T SARDENBERG S S MUumlLLER H R PEREIRA R A DE OLIVEIRA W S HOSSNE Anaacutelise dos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos contidos nas Instruccedilotildees aos Autores de 139 rev istas cientiacuteficas brasileiras Revista da Associaccedilatildeo Meacutedica do Brasil v 45 n 4 p 295-302 1999

41 Sobre a chamada revoluccedilatildeo terapecircutica vide dentre outros BERNARD Jean La Bioeacutethique Paris Dominos Flammarion 1994 p 14-33

42 Conforme LAFON Claudc De la Biologie agrave Ia Bioeacutethique Paris Ellipses 2006 p 30

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A concretizaccedilatildeo desses objetivos depende de inuacutemeros fatores ligados agrave pesquisa cientiacutefica43 dentre os quais um que eacute o ponto central deste trabalho a experimentaccedilatildeo em seres humanos De fato o progresso do nosso conhecimento no passado e no futuro estaacute intimamente ligado agrave necessidade de observaccedilatildeo do funcionamento e da reaccedilatildeo do corpo e da mente humanas44

Em outras palavras eacute preciso tomar o ser humano como sujeito de pesquisa45

Esse fato bom que se diga natildeo eacute exatamente novo tem ocorrido no correr dos tempos suscitando questotildees eacuteticas de suma relevacircncia pois nem sempre as pessoas estudadas tiveram o trato adequado

A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda Guerra mormente as realizadas pelos japoneses e nazistas alematildees tais como a infestaccedilatildeo de prisioneiros com doenccedilas para testar vacinas e a esterilizaccedilatildeo e amputaccedilatildeo de membros46 trouxeram agrave tona a questatildeo da

43 A discussatildeo a respeito das pesquisas natildeo pode se limitar agravequelas de natureza meacutedica e farmacoloacutegica onde os impactos e riscos satildeo maiores e mais perceptiacuteveis E ampla a definiccedilatildeo de pesquisas em seres humanos adotada pela Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede conforme adiante se veraacute Leonard M Martin C Ss R preleciona O documento pretende regulamentar toda pesquisa em seres humanos e natildeo apenas pesquisas puramente biomeacutedicas Nesta perspectiva pesquisas socioloacutegicas e antropoloacutegicas tambeacutem devem passar pelo crivo de Comitecircs de Eacutetica independentes e ser alvo de discussatildeo sobre sua eticidade MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

44 O efeito de um tratamento sobre o homem soacute pode ser observado no proacuteprio homem Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

45 Esse fenocircmeno ocorre em todas as aacutereas do conhecimento e natildeo apenas nas ciecircncias biomeacutedicas Na realidade quando se fala em experimentaccedilatildeo com seres humanos pensa-se quase que exclusivamente na experimentaccedilatildeo no campo da Medicina Essa vinculaccedilatildeo eacute compreensiacutevel pois a experimentaccedilatildeo na aacuterea meacutedica eacute mais visiacutevel e de efeitos mais patentes em geral Contudo eacute bom assinalar que seres humanos satildeo utilizados em experimentaccedilatildeo por profissionais e cientistas de outras aacutereas odontoacutelogos nutricionistas farmacecircuticos fisioterapeutas psicoacutelogos profissionais da aacuterea de educaccedilatildeo fiacutesica e de esporte educadores e tambeacutem economistas Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179 Leonard M Martin C Ss R com base em McNeill e Jonsen destaca que [] as experiecircncias antieacuteticas dos nazistas incluiacuteram colocar prisioneiros em cacircmaras de pressatildeo modificar a pressatildeo atmosfeacuterica e observar suas mortes estudar o impacto sobre o corpo humano de imersatildeo em aacutegua gelada por periacuteodos prolongados infectar os internos com tifo malaacuteria e outras doenccedilas para testar drogas e vacinas esterilizaccedilatildeo e castraccedilatildeo procurando meacutetodos eficazes para esterilizaccedilatildeo em massa administrar venenos para estudar os efeitos letais e estudos com gecircmeos tipo infectando um matando os dois e comparando os corpos em autoacutepsia No atinente a experiecircncias japonesas MARTIN informa que no ala de desenvolver armas bioloacutegicas [] os japoneses atacaram pelo menos onze cidades com armas bioloacutegicas e infestaram uma cidade com pulgas portadores da peste bubocircnica A Unidade 731 tambeacutem era uma prisatildeo onde os prisioneiros foram submetidos a experiecircncias desumanas Houve cirurgia experimentais pessoas foram desidratadas ateacute a morrer alguns tiveram braccedilos congelados e depois degelados usando vaacuterios meacutetodos com a consequumlecircncia de que a carne apodreceu e caiu o fiacutegado de outras pessoas foi exposto por longos

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eacutetica na pesquisa evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana47 e de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa em seres humanos48

Como resposta agraves atrocidades praticadas na Segunda Guerra foi instituiacutedo em 1947 no acircmbito internacional pelo Tribunal de Nuremberg que julgou vinte e trecircs criminosos de guerra nazistas dos quais vinte meacutedicos ligados agrave experimentaccedilatildeo em pessoas49 o denominado Coacutedigo de Nuremberg o qual estabeleceu as diretrizes gerais para pesquisa em seres humanos A doutrina destaca como principais conquistas do coacutedigo o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa em retirar-se do experimento e de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias deste bem como a necessidade de estudos preacutevios sobre a importacircncia da pesquisa e os seus riscos aleacutem da comprovaccedilatildeo da capacidade dos pesquisadores50

Um ano depois a humanidade assiste agrave proclamaccedilatildeo agora pela Assembleacuteia Geral das Naccedilotildees Unidas de um outro documento de suma importacircncia a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos que embora de caraacuteter geral alberga

periacuteodos ao raio-X houve casos do sangue da pessoa ser substituiacutedo por sangue de cavalo e quando as cobaias humanas natildeo serviam mais para as experiecircncias foram executadas O autor ainda ressalta que diferentemente dos alematildees que foram condenados alguns inclusive enforcados os americanos resolveram poupar os japoneses permitindo que continuassem suas carreiras MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

4 Haacute quem afirme - sem razatildeo ao nosso ver - que a dignidade eacute um conceito inuacutetil um mero slogan e que natildeo significaria mais do que o respeito pelas pessoas e por sua autonomia Nesse sentido vide vg MACKLIN Ruth Dignity is a useless concept Brilish Medica Journal v 327 p 20-27 dez 2003 Disponiacutevel em lthttpbmjbmjjournalscomcgicontentfull3277429l419gt Aacessado em 27 maio de 2006 Em sentido inverso sobre as relaccedilotildees entre a Bioeacutetica e a dignidade vide dentre outros ADORNO Roberto La bioegravetique et la dignitegrave de Ia persone Paris Presses Universitaires de France 1997 Os documentos internacionais mencionam o elo entre Bioeacutetica e dignidade A jaacute mencionada Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten por exemplo afirma textualmente que A pesquisa e experiecircncia com seres humanos devem ser realizadas harmonizando a liberdade da ciecircncia e o respeito da dignidade humana

48 A experimentaccedilatildeo em seres humanos causa impacto porque as pessoas temem o abuso Os abusos jaacute ocorreram estatildeo ocorrendo c ainda ocorreratildeo mas proibir o uso natildeo eacute a melhor maneira de impedir o abuso Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

49 Estima-se que centenas de meacutedicos atuaram nos campos de concentraccedilatildeo dos quais pelo menos setenta teriam participado de experimentos com seres humanos A maioria dos meacutedicos de maior expressatildeo conseguiram escapar do julgamento como foi o caso de Josef Mengele principal meacutedico do campo de extermiacutenio de Auschwitz que fugiu e chegou a viver 14 anos no Brasil onde morreu afogado em Bertioga em 1979 O julgamento levou oito meses As sentenccedilas e o Coacutedigo de Nuremberg foram anunciados conjuntamente em 19 de agosto de 1947 Sete acusados foram condenados agrave morte Cf CREMESP Diretrizes e Declaraccedilotildees Disponiacutevel em lthttpvwvbiocticaorgbrlegislacaooutras_diretrizesintegraphpgt Acessado em 30 maio 2006 Discute-se hoje a validade cientiacutefica dos experimentos realizados bem como se eacute eacutetico utilizar os resultados obtidos Nesse sentido vide mateacuteria intitulada Doutores da agonia publicada na revista Superinteressante ed 225 abr2006 p 52-61

50 Cf FREITAS Corina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 195

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direitos que natildeo podem ser olvidados quando da experimentaccedilatildeo com seres humanos a exemplo da dignidade da igualdade e da liberdade Aleacutem disso haacute diversas ligaccedilotildees entre a Declaraccedilatildeo e os princiacutepios da Bioeacutetica51

Assim como a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos o Coacutedigo de Nuremberg proclama criteacuterios princiacutepios miacutenimos e irredutiacuteveis para eticidade da pesquisa em seres humanos Ambas as declaraccedilotildees embora de grande importacircncia para a Bioeacutetica satildeo normalmente entendidas como desprovidas de instrumentos adequados de obrigatoriedade52 e de mecanismos sancionatoacuterios de modo que sua infraccedilatildeo na maioria dos casos tem gerado apenas sanccedilotildees morais

Natildeo-obstante o estabelecido no Coacutedigo de Nuremberg - e na Declaraccedilatildeo Universal - as violaccedilotildees continuaram a ocorrer inclusive nos paiacuteses signataacuterios De fato por exemplo nos Estados Unidos teve continuidade como se nada houvesse acontecido a famosa pesquisa sobre siacutefilis em Tuskegee no condado de Macon Alabama financiada com recursos federais onde especialmente negros e pobres acreditavam que estavam se submetendo a um tratamento especial gratuito quando na verdade nada recebiam embora jaacute houvesse medicamentos disponiacuteveis servindo como verdadeiras cobaias entre 1932 e 1973 para que os pesquisadores pudessem acompanhar o desenvolvimento da doenccedila1 Ainda exemplificativamente foi iniciado em 1946 o chamado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm um dos mais famosos e importantes estudos de odontologia jaacute realizados no qual mais de 436 deficientes mentais crocircnicos internos da cidade de Lund no sul da Sueacutecia que natildeo tinham sequer a menor consciecircncia do que ocorria foram submetidos ateacute 1951 a uma dieta especial rica em accediluacutecar para provar que esta substacircncia provocava caacuteries sem que lhes fosse dado qualquer tratamento54

Por exemplo ao afirmar no seu art 1deg que todas pessoas satildeo dotadas de razatildeo e consciecircncia o documento da ONU reforccedila a ideacuteia de autonomia

52 Em relaccedilatildeo agrave Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Faacutebio Konder Comparato afirma que embora seja tecnicamente apenas uma recomendaccedilatildeo da ONU a seus membros os direitos ali definidos correspondem integralmente ao que o costume e os princiacutepios juriacutedicos internacionais reconhecem hoje como normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens) como a proacutepria Corte Internacional de Justiccedila tem entendido COMPARATO Faacutebio Konder A afirmaccedilatildeo histoacuterica dos Direitos Humanos 4 ed rev e atual Satildeo Paulo Saraiva 2005 p 223-224

53 Vide vg a respeito REVERBY S M More than Fact and Fiction Cultural Memory and the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 31 p 22-28 2001 BRANDT A M Racism and Research The Case of the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 8 p 21-29 1978 BEECHER H K Ethics and Clinicai Research New England Journal of Medicine n 274 p 1354-1360 1966

54 Cf SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas clinicas sobre seus direitos 2005 p 55-61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

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Os avanccedilos tecnoloacutegicos cada vez mais raacutepidos reverberaram nas questotildees eacuteticas forccedilando novas e perioacutedicas revisotildees Necessaacuterio se fez portanto a rediscussatildeo do tema e o aprimoramento do sistema normativo Assim sobreveio a Declaraccedilatildeo de Helsinque elaborada pela Associaccedilatildeo Meacutedica Mundial em 1964 texto que foi revisto e ampliado em 1975 (Toacutequio)55 1983 (Veneza) 1989 (Hong Kong) 1996 (Somerset) e 2000 (Edimburgo) com o que foram incorporadas vaacuterias inovaccedilotildees Por exemplo a disposiccedilatildeo no sentido de que No final do estudo todos os pacientes participantes devem ter assegurado o acesso aos melhores meacutetodos comprovados profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos identificados pelo estudo E no atinente ao uso de placebo que Os benefiacutecios riscos dificuldades e efetividade de um novo meacutetodo devem ser testados comparando-os com os melhores meacutetodos profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos atuais Isto natildeo exclui o uso de placebo ou nenhum tratamento em estudo onde existam meacutetodos provados de profiacutelaxia diagnoacutestico e tratamento 56 Foi tambeacutem reforccedilada a recomendaccedilatildeo do Coacutedigo de Nuremberg sobre a necessidade de submissatildeo do protocolo de pesquisa agrave anaacutelise por um Comitecirc de Eacutetica independente do pesquisador

Outros textos e documentos que tratam da pesquisa merecem referecircncia como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos de 196657 o intitulado Diretrizes Internacionais para a pesquisa biomeacutedica em seres humanos elaborado conjuntamente pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e pelo Council for International Organizations of Medicai Sciences (1993) a Declaraccedilatildeo de Manila (1981) a Declaraccedilatildeo de Princiacutepios Eacuteticos dos Meacutedicos do Mercosul (1996) a Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten (2000) e a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da Unesco (2005)

Em que pese o entendimento de que haacute carecircncia de instrumentos imperativos que garantam a exigibilidade dos referidos documentos sem duacutevida eles

A respeito Leo Pessini e Christian de Paul Barehifontaine ensinam que Tal modificaccedilatildeo fieou conhecida como Helsinque II Entre outros pontos importantes foram incluiacutedos nesta revisatildeo os seguintes aspectos I) Exigecircncia de que o protocolo experimental seja aprovado por uma comissatildeo independente para efeito de apreciaccedilatildeo comentaacuterios e orientaccedilatildeo (item I 2) 2) Que os seres humanos natildeo sejam utilizados em pesquisas a menos que o consentimento consciente do paciente dado livremente tenha sido obtido depois do mesmo ter sido adequadamente informado sobre os objetivos meacutetodos benefiacutecios esperados riscos potenciais e inconvenientes da experimentaccedilatildeo e que ele tenha liberdade de se abster e de cancelar sua participaccedilatildeo a qualquer momento (art I 9) 3) Que o protocolo contenha embasamento eacutetico da pesquisa e a referecircncia de que foram obedecidos os princiacutepios da Declaraccedilatildeo de Helsinque (item I 12) 4) Que os interesses da ciecircncia e da sociedade jamais tenham precedecircncia sobre o bem-estar do indiviacuteduo (item III 4) PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Problemas aluais de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1994 p 131

56 GRECO Dirceu B Poder e injusticcedila na pesquisa envolvendo seres humanos In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 264

57 De acordo com o seu art 7o Ningueacutem poderaacute ser submetido a tortura nem a penas ou tratamentos crueacuteis desumanos ou degradantes Seraacute proibido sobretudo submeter uma pessoa sem seu livre consentimento a experiecircncias meacutedicas ou cientiacuteficas

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contribuiacuteram e contribuem significativamente na proteccedilatildeo ao ser humano objeto de pesquisa pois influenciaram a elaboraccedilatildeo de diretrizes vinculantes no plano individual de cada Estado a exemplo do Brasil como a seguir veremos Por outro lado importante anotar que uma harmonia consensual e global no atinente agrave pesquisa parece impossiacutevel tendo em conta que a cultura os objetivos e as condiccedilotildees cientiacuteficas dos diversos paiacuteses satildeo naturalmente diversificados58 Aliaacutes haacute quem chegue a afirmar que o pluralismo eacutetico em vigor nos dias de hoje natildeo nos permite mais falar em moral universal59

No Brasil a normatizaccedilatildeo se daacute principalmente atraveacutes de resoluccedilotildees do Conselho Federal de Medicina60 e do Conselho Nacional de Sauacutede Aliaacutes a primeira resoluccedilatildeo deste uacuteltimo oacutergatildeo - Resoluccedilatildeo n 01 de 13 de junho de 1988 - tratou justamente de normas de pesquisa em sauacutede tendo dedicado o seu Capiacutetulo II arts 4o a 16 aos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos Esse diploma legal foi posteriormente revogado pela Resoluccedilatildeo n 196 de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Sauacutede que eacute atualmente a base regulamentar da pesquisa no Brasil tratando das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos Esta Resoluccedilatildeo eacute na verdade uma revisatildeo da anterior tendo sido precedida de diaacutelogo entre governo e sociedade civil61

A Resoluccedilatildeo atual afirma jaacute em seu preacircmbulo a sua fundamentaccedilatildeo nos principais documentos internacionais que emanaram declaraccedilotildees e diretrizes sobre

58 Nesse contexto por tanto deve ser considerada a questatildeo do multicuturalismo Como bem ensinam Joseacute A Mainetti Joseacute L Mainettil Existen dificultades en la aplicacioacuten de los principos elaborados por los paiacuteses centrales y es una evidencia por ejemplo que resulta inapropiada la visioacuten estrccha de la autonomia y la aplicacioacuten riacutegida dei requisito dei consentimento informado al modo norteamericano en determinadas circunstancias y comunidades Es preciso entoces reconocer Ias diferenccedilas culturales y en base a eacutestas aplicar los princiacutepios sin renunciar a cllos en formas maacutes adecuadas al ethos particular MAINETTI Joseacute A MAINETTI Joseacute L Bioeacutetica y la experimentacioacuten humana In SOROKIN Patriacutecia (Coord) Bioeacutelica entre utopias y desarraigos Buenos Aires Ad-Hoc Villela 2002 p 190

59 Cf ENGELHARDT JUacuteNIOR Tristam apuei BAUZON Steacutephane La personne biojuridique Paris Press Universitaires de France 2006 p 63

60 Vide como exemplo a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro o qual no seu Capiacutetulo XII trata especificamente da pesquisa meacutedica

61 Cf FREITAS Corina Bontempo Duca de Eacutetica na pesquisa com seres humanos A experiecircncia brasileira In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutelica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 307

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pesquisas que envolvem seres humanos62 e que visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito agrave comunidade cientiacutefica aos sujeitos da pesquisa e ao Estado

Aleacutem disso vinculou a experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da principiologia da Bioeacutetica seja no preacircmbulo onde afirma que incorpora sob a oacutetica do indiviacuteduo e das coletividades os quatro referenciais baacutesicos da Bioeacutetica autonomia natildeo-maleficecircncia beneficecircncia e justiccedila entre outros seja no seu item III 1 que versa sobre a eticidade na pesquisa63

Entre as suas disposiccedilotildees encontramos definiccedilotildees de diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica pesquisa64 pesquisa envolvendo seres humanos65

protocolo de pesquisa66 pesquisador responsaacutevel67 instituiccedilatildeo de pesquisa68 promotor69

patrocinador70 risco da pesquisa71 dano associado ou decorrente da pesquisa72 sujeito da

62 Cila a Resoluccedilatildeo os seguintes documentos o Coacutedigo de Nuremberg (1947) a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem (1948) a Declaraccedilatildeo de Helsinque (1964 e suas versotildees posteriores de 1975 1983 e 1989) o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Poliacuteticos (ONU 1966 aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1992) as Propostas de Diretrizes Eacuteticas Internacionais para Pesquisas Biomeacutedicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMSOMS 1982 e 1993) e as Diretrizes Internacionais para Revisatildeo Eacutetica de Estudos Epidemioloacutegicos (C10MS 1991) III1 - A eticidade da pesquisa implica em a) consentimento livre e esclarecido dos indiviacuteduos-alvo e a proteccedilatildeo a grupos vulneraacuteveis e aos legalmente incapazes (autonomia) Neste sentido a pesquisa envolvendo seres humanos deveraacute sempre trataacute-los em sua dignidade respeitaacute-los em sua autonomia e defendecirc-los em sua vulnerabilidade b) ponderaccedilatildeo entre riscos e benefiacutecios tanto atuais como potenciais individuais ou coletivos (beneficecircncia) comprometendo-se com o maacuteximo de benefiacutecios e o miacutenimo de danos e riscos c) garantia de que danos previsiacuteveis seratildeo evitados (natildeo maleficecircncia)- d) relevacircncia social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimizaccedilatildeo do ocircnus para os sujeitos vulneraacuteveis o que garante a igual consideraccedilatildeo dos interesses envolvidos natildeo perdendo o sentido de sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria (justiccedila e equumlidade) (negritos originais)

64 111 Pesquisa classe de atividades cujo objetivo eacute desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizaacutevel O conhecimento generalizaacutevel consiste em teorias relaccedilotildees ou princiacutepios ou no acuacutemulo de informaccedilotildees sobre as quais estatildeo baseados que possam ser corroborados por meacutetodos cientiacuteficos aceitos de observaccedilatildeo e infercncia

65 112 Pesquisa envolvendo seres humanos pesquisa que individual ou coletivamente envolva o ser humano de forma direta ou indireta em sua totalidade ou partes dele incluindo o manejo de informaccedilotildees ou materiais

66 II3 Protocolo de Pesquisa Documento contemplando a descriccedilatildeo da pesquisa em seus aspectos fundamentais informaccedilotildees relativas ao sujeito da pesquisa agrave qualificaccedilatildeo dos pesquisadores e a todas as instacircncias responsaacuteveis

67 II-4 Pesquisador responsaacutevel pessoa responsaacutevel pela coordenaccedilatildeo e realizaccedilatildeo da pesquisa e pela integridade e bem-estar dos sujeitos da pesquisa

68 II5 - Instituiccedilatildeo de pesquisa - organizaccedilatildeo puacuteblica ou privada legitimamente constituiacuteda e habilitada na qual satildeo realizadas investigaccedilotildees cientiacuteficas

69 116 - Promotor - indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo responsaacutevel pela promoccedilatildeo da pesquisa 70 II7 - Patrocinador - pessoa fiacutesica ou juriacutedica que apoia financeiramente a pesquisa 71 II8 Risco da pesquisa - possibilidade de danos agrave dimensatildeo fiacutesica psiacutequica moral intelectual social

cultural ou espiritual do ser humano em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente II9 Dano associado ou decorrente da pesquisa agravo imediato ou tardio ao indiviacuteduo ou agrave coletividade com nexo causai comprovado direto ou indireto decorrente do estudo cientiacutefico

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pesquisa73 consentimento livre e esclarecido74 indenizaccedilatildeo75 ressarcimento6 Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (CEP)77 vulnerabilidade78 e incapacidade79

A Resoluccedilatildeo regulamentou os Comitecircs de Eacutetica e Pesquisa - CEPs80 em cujas funccedilotildees81 destaca-se a apreciaccedilatildeo do protocolo da pesquisa em todas as suas especificidades o que foi um grande passo no sentido da construccedilatildeo de padrotildees eacuteticos82

Haacute requisitos para a instituiccedilatildeo dos Comitecircs principalmente no atinente agrave sua composiccedilatildeo83

1110 Sujeito da pesquisa eacute o(a) participante pesquisado(a) individual ou coletivamente de caraacuteter voluntaacuterio vedada qualquer forma de remuneraccedilatildeo IIII Consentimento livre e esclarecido anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal livre de viacutecios (simulaccedilatildeo fraude ou erro) dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar formulada em um termo de consentimento autorizando sua participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa 1112 - Indenizaccedilatildeo - cobertura material em reparaccedilatildeo a dano imediato ou tardio causado pela pesquisa ao ser humano a ela submetida 1113 Ressarcimento - cobertura em compensaccedilatildeo exclusiva de despesas decorrentes da participaccedilatildeo do sujeito na pesquisa 1114 - Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa-CEP - colegiados interdisciplinares e independentes com munus puacuteblico de caraacuteter consultivo deliberativo e educativo criados para defender os interesses dos sujeitos da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrotildees eacuteticos 1115 Vulnerabilidade refere-se a estado de pessoas ou grupos que por quaisquer razotildees ou motivos tenham a sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido 1116 - Incapacidade - Refere-se ao possiacutevel sujeito da pesquisa que natildeo tenha capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido devendo ser assistido ou representado de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira vigente O CEP pode ser entendido como um oacutergatildeo controlador da pesquisa por um lado mas por outro eacute tambeacutem um oacutergatildeo que ajuda a harmonizar diversos interesses que como vimos podem ser os mais diversos e agraves vezes ateacute conflitantes Cf PALAacuteCIOS Marisa Eacutetica na pesquisa - 1 Eacutetica em pesquisa em seres humanos In PALAacuteCIOS Marisa MARTINS Andreacute PEGORARO Olinto A (Orgs) Eacutetica ciecircncia e sauacutede humana Petroacutepolis Vozes 2001 p 74 Satildeo atribuiccedilotildees conferidas pela Resoluccedilatildeo aos CEPs a) revisar todos os protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos b) emitir parecer consubstanciado por escrito c) manter a guarda confidencial de todos os dados obtidos na execuccedilatildeo de sua tarefa e arquivamento do protocolo completo que ficaraacute agrave disposiccedilatildeo das autoridades sanitaacuterias d) acompanhar o desenvolvimento dos projetos atraveacutes de relatoacuterios anuais dos pesquisadores e) desempenhar papel consultivo e educativo 0 receber dos sujeitos da pesquisa ou de qualquer outra parte denuacutencias de abusos ou notificaccedilatildeo sobre fatos adversos que possam alterar o curso normal do estudo decidindo pela continuidade modificaccedilatildeo ou suspensatildeo da pesquisa devendo se necessaacuterio adequar o termo de consentimento considerando-se anti-eacutetica a pesquisa descontinuada sem justificativa aceita pelo CEP que a aprovou g) requerer instauraccedilatildeo de sindicacircncia agrave direccedilatildeo da instituiccedilatildeo em caso de denuacutencias de irregularidades de natureza eacutetica nas pesquisas e em havendo comprovaccedilatildeo comunicar agrave Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa CONEPMS e no que couber a outras instacircncias e h) manter comunicaccedilatildeo regular e permanente com a CONEPMS A existecircncia de oacutergatildeos com a funccedilatildeo de aprovar e acompanhar pesquisas jaacute era preconizada por exemplo pelo Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988) cujo art 127 veda ao

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Foi mais aleacutem a Resoluccedilatildeo que de modo inovador reforccedilou o controle eacutetico e a defesa da dignidade da pessoa humana com a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa - CONEP84 que atua na direccedilatildeo e orientaccedilatildeo dos comitecircs8S A comissatildeo de acordo com a Resoluccedilatildeo eacute uma instacircncia colegiada de natureza consultiva deliberativa normativa independente vinculada ao Conselho Nacional de Sauacutede86 Essa vinculaccedilatildeo eacute bastante positiva posto que a alternativa de submetecirc-la a outros oacutergatildeos poderia dar ensejo a uma indesejada politizaccedilatildeo dos seus membros o que seria capaz de terminar por afetar a sua autonomia

meacutedico Realizar pesquisa meacutedica em ser humano sem submeter o protocolo a aprovaccedilatildeo e acompanhamento de comissatildeo isenta de qualquer dependecircncia em relaccedilatildeo ao pesquisador O colegiado com nuacutemero natildeo inferior a 7 (sete) membros deve ser multidisciplinar abrangendo profissionais idocircneos e de distinta formaccedilatildeo da aacuterea de sauacutede e das ciecircncias exatas sociais e humanas incluindo por exemplo juristas teoacutelogos socioacutelogos filoacutesofos bioeticistas aleacutem de membros da sociedade e obrigatoriamente pelo menos um membro representando os usuaacuterios Se a pesquisa envolver grupos vulneraacuteveis comunidades e coletividades um dos seus representantes deveraacute ser convidado para participar como membro ad hoc do CEP da anaacutelise do projeto especiacutefico Assim o CEP ainda segundo a Resoluccedilatildeo teraacute sempre um caraacuteter multi e transdisciplinar sendo vedado que mais que metade de seus membros pertenccedilam a uma mesma categoria profissional devendo ainda participarem pessoas dos dois sexos Satildeo permitidos consultores ad hoc pessoas que pertencem ou natildeo aacute instituiccedilatildeo com o objetivo de fornecer subsiacutedios teacutecnicos Merece ainda atenccedilatildeo especial a autonomia do comitecirc cuja manifestaccedilatildeo deve ser totalmente autocircnoma e imaculada de coaccedilotildees ou pressotildees dos interessados A autonomia e a independecircncia satildeo condiccedilotildees sine qua non para a desejada eficaacutecia dos comitecircs que felizmente estatildeo se proliferando em nosso paiacutes Conforme informaccedilotildees do site da CONEP satildeo 446 CEPs aprovados no Brasil ateacute janeiro de 2006 Disponiacutevel em lthttpoonselhosaudegovbrcomissaoconep2006ceps20APROVADOSxlsgt Acessado em 04 jun 2006 A Comissatildeo tem 13 membros titulares e o mesmo nuacutemero de suplentes em uma composiccedilatildeo que tambeacutem deveraacute ser multi e transdisciplinar com pessoas de ambos os sexos Dentre os seus membros 05 (cinco) devem ser personalidades destacadas no campo da eacutetica na pesquisa e na sauacutede e 08 (oito) devem ser personalidades com destacada atuaccedilatildeo nos campos teoloacutegico juriacutedico e outros assegurando-se que pelo menos um seja da aacuterea de gestatildeo da sauacutede Embora natildeo desconheccedilamos a importacircncia das religiotildees na formaccedilatildeo do pensamento eacutetico humano e sem querer desmerecer as pessoas que nelas militam no mais das vezes com accedilotildees de destacada importacircncia pensamos que eacute inadequada em um Estado laico como o nosso a destinaccedilacirco de vaga ou de vagas especificamente a pessoas do campo teleoloacutegico Essa observaccedilatildeo imperioso demarcar natildeo eacute no sentido de entender que a contribuiccedilatildeo dessas pessoas eacute desnecessaacuteria ou inconveniente Pelo contraacuterio Poreacutem a desejada participaccedilatildeo jaacute poderia ser levada a efeito incluindo-as no grupo de personalidades com atuaccedilatildeo de destaque na esfera da eacutetica na pesquisa e na sauacutede sem necessidade de vinculaccedilatildeo necessaacuteria ao pensamento religioso Isso ateacute mesmo para preservar o pluralismo e a igualdade jaacute que obviamente natildeo seraacute possiacutevel oferecer a cada religiatildeo uma vaga Os membros da Comissatildeo satildeo recrutados a partir de indicaccedilotildees contidas em listas elaboradas pelas instituiccedilotildees que possuem CEP registrado na CONEP sendo que 07 (sete) satildeo escolhidos pelo Conselho Nacional de Sauacutede e 06 (seis) satildeo definidos por sorteio Tambeacutem pode contar com consultores e membros ad hoc sendo assegurada a representaccedilatildeo dos usuaacuterios O mandato eacute de quatro anos com renovaccedilatildeo alternada a cada dois anos de sete ou seis de seus membros A CONEP tem tambeacutem um papel coordenador da rede de Comitecircs institucionais aleacutem de se constituir em oacutergatildeo consultor na aacuterea eacutetica em pesquisa Num primeiro momento tem ainda a atribuiccedilatildeo de apreciar os projetos de pesquisas de aacutereas temaacuteticas especiais enviadas pelos CFPs ou seja projetos que contemplam aacutereas com maiores dilemas eacuteticos e grande repercussatildeo social ateacute que se acumulem experiecircncias para elaboraccedilatildeo de normas especiacuteficas complementares agraves existentes Cf FREITAS Carolina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA

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Outros aspectos da Resoluccedilatildeo que merecem especial destaque para o nosso estudo satildeo os relativos ao consentimento livre e esclarecido agrave vulnerabilidade e agrave incapacidade

Como jaacute dito um dos principais pontos da Declaraccedilatildeo de Nuremberg foi o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias A Resoluccedilatildeo tratou do tema exigindo a anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar87 A anuecircncia deve ser expressa atraveacutes de

Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 202

S6 Segundo a Resoluccedilatildeo compete agrave CONEP examinar os aspectos eacuteticos da pesquisa envolvendo seres humanos assim como a adequaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo das normas atinentes consultando a sociedade sempre que julgar necessaacuterio cabendo-lhe entre outras as seguintes atribuiccedilotildees a) estimular a criaccedilatildeo de CEPs institucionais e de outras instacircncias b) registrar os CEPs institucionais e de outras instacircncias c) aprovar no prazo de 60 dias e acompanhar os protocolos de pesquisa em aacutereas temaacuteticas especiais tais como geneacutetica humana reproduccedilatildeo humana faacutermacos medicamentos vacinas e testes diagnoacutesticos novos (fases I II e III) ou natildeo registrados no pais (ainda que fase IV) ou quando a pesquisa for referente a seu uso com modalidades indicaccedilotildees doses ou vias de administraccedilatildeo diferentes daquelas estabelecidas incluindo seu emprego em combinaccedilotildees equipamentos insumos e dispositivos para a sauacutede novos ou natildeo registrados no paiacutes novos procedimentos ainda natildeo consagrados na literatura populaccedilotildees indiacutegenas projetos que envolvam aspectos de biosseguranccedila pesquisas coordenadas do exterior ou com participaccedilatildeo estrangeira c pesquisas que envolvam remessa de material bioloacutegico para o exterior e projetos que a criteacuterio do CEP devidamente justificado sejam julgados merecedores de anaacutelise pela CONEP d) prover normas especiacuteficas no campo da eacutetica em pesquisa inclusive nas aacutereas temaacuteticas especiais bem como recomendaccedilotildees para aplicaccedilatildeo das mesmas e) funcionar como instacircncia final de recursos a partir de informaccedilotildees fornecidas sistematicamente em caraacuteter ex-ofiacutecio ou a partir de denuacutencias ou de solicitaccedilatildeo de partes interessadas devendo manifestar-se em um prazo natildeo superior a 60 (sessenta) dias 0 rever responsabilidades proibir ou interromper pesquisas definitiva ou temporariamente podendo requisitar protocolos para revisatildeo eacutetica inclusive os jaacute aprovados pelo CEP g) constituir um sistema de informaccedilatildeo e acompanhamento dos aspectos eacuteticos das pesquisas envolvendo seres humanos em todo o territoacuterio nacional mantendo atualizados os bancos de dados h) informar e assessorar o MS o CNS e outras instacircncias do SUS bem como do governo e da sociedade sobre questotildees eacuteticas relativas agrave pesquisa em seres humanos i) divulgar esta e outras normas relativas agrave eacutetica em pesquisa envolvendo seres humanos j) juntamente com outros setores do Ministeacuterio da Sauacutede estabelecer normas e criteacuterios para o credenciamento de Centros de Pesquisa e I) estabelecer suas proacuteprias normas de funcionamento

87 No que concerne agrave pesquisa meacutedica a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro estipula no seu art 123 que eacute vedado ao meacutedico Realizar pesquisa em ser humano sem que este tenha dado consentimento por escrito apoacutes devidamente esclarecido sobre a natureza e consequumlecircncia da pesquisa e que Caso o paciente natildeo tenha condiccedilotildees de dar seu livre consentimento a pesquisa somente poderaacute se realizada em seu proacuteprio beneficio apoacutes expressa autorizaccedilatildeo de seu responsaacutevel legal Jaacute a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO no seu art 6 aliacutenea b estabelece que A pesquisa cientiacutefica soacute deve ser realizada com o preacutevio livre expresso e esclarecido consentimento do indiviacuteduo envolvido A informaccedilatildeo deve ser adequada fornecida de uma forma compreensiacutevel e incluir os procedimentos para a retirada do consentimento O consentimento pode ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer hora e por qualquer razatildeo sem acarretar qualquer desvantagem ou preconceito Exceccedilotildees a este princiacutepio somente devem ocorrer quando em conformidade com os padrotildees eacuteticos e legais adotados pelos Estados consistentes com as provisotildees da presente Declaraccedilatildeo particularmente com o art 27 e com os direitos humanos

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em um termo de consentimento onde eacute autorizada a participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa Aleacutem disso natildeo pode estar viciada por simulaccedilatildeo fraude ou erro nem tampouco pode ser obtida por forccedila de uma situaccedilatildeo de dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo

Trata-se de disposiccedilatildeo decorrente da adoccedilatildeo do princiacutepio da autonomia jaacute abordado que se vincula agrave capacidade de autodeterminaccedilatildeo e auto-escolha e pressupotildee dentre outras premissas a capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos possiacuteveis18

Quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de estudo possuem a capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto ao consentimento livre e esclarecido por quaisquer motivos verifica-se uma situaccedilatildeo de vulnerabilidade que natildeo pode ser desconsiderada pelo pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais A preocupaccedilatildeo com a vulnerabilidade dos sujeitos encontra supedacircneo no Coacutedigo de Nuremberg na Declaraccedilatildeo de Helsinque nas Diretrizes Internacionais para Pesquisa Biomeacutedica envolvendo Seres Humanos89 e tambeacutem como jaacute dito na Resoluccedilatildeo 19696 A dificuldade central relacionada a indiviacuteduos e comunidades vulneraacuteveis eacute com a sua capacidade de compreensatildeo (autonomia plena) sobre o experimento e possibilidade de livremente consentir com a pesquisa e quando quiser dela desistir o que justifica todas as preocupaccedilotildees nesse sentido90

Cabe trazer a lume os ensinamentos do professor chileno Fernando Lolas O respeito pela autonomia das pessoas como agentes morais capazes de decisotildees informadas eacute central no diaacutelogo bioeacutetico Somente a permissatildeo outorgada por uma pessoa pode legitimar uma accedilatildeo que a envolva O valor das pessoas eacute incondicional o que obriga a consideraacute-las fins natildeo meios com a liberdade de viver e a de decidir livres de interferecircncias LOLAS Fernando Bioeacutetica o que eacute como se faz Traduccedilatildeo Milton Camargo Mota Satildeo Paulo Loyola 2001 p 63 A Diretriz Internacional para Pesquisa Biomeacutedica afirma Pesquisa envolvendo indiviacuteduos de comunidades sub-desenvolvidas Antes de iniciar a pesquisa em indiviacuteduos de comunidades subdesenvolvidas seja em paiacuteses desenvolvidos ou em desenvolvimento o pesquisador deve estar seguro que As pessoas da comunidade subdesenvolvida natildeo seratildeo ordinariamente envolvidas na pesquisa que possa ser realizada de forma adequada em comunidades desenvolvidas A pesquisa eacute uma resposta agraves necessidades de sauacutede e agraves prioridades da comunidade na qual seraacute realizada todos os esforccedilos seratildeo tomados no sentido de assegurar o imperativo eacutetico de que o consentimento individual dos sujeitos seraacute informado e Os projetos para a pesquisa foram revisados e aprovados por um comitecirc de eacutetica que tenha entre os seus membros ou consultores pessoas que tenham familiaridade com os costumes e tradiccedilotildees da comunidade Em comentaacuterio agraves diretrizes acima Leo Pessini e Christian Paul de Barchifontaine entendem que Quando a experimentaccedilatildeo visa ao estudo de determinadas condiccedilotildees moacuterbidas tais como doenccedilas endecircmicas em comunidades de baixo niacutevel socioeconocircmico eou cultural incapazes de terem uma consciecircncia clara e apropriada das implicaccedilotildees de sua participaccedilatildeo na experiecircncia eacute de bom alvitre que seja obtida a interveniecircncia de um liacuteder em que a coletividade confia Esse intermediaacuterio dever deixar claro que a participaccedilatildeo eacute voluntaacuteria e que qualquer participante tem a liberdade de natildeo aceitar ou abandonar a experiecircncia a qualquer momento op cit p 133

Conforme Marisa Palaacutecios Quando a autonomia dos sujeitos natildeo eacute plena ou seja quando a capacidade de entender as situaccedilotildees que se apresentam ao sujeito e de autodeterminar-se segundo este entendimento estaacute de alguma forma limitada eacute preciso tomar cuidado especial Eacute o caso dos grupos vulneraacuteveis os iacutendios que tecircm a capacidade de entendimento das situaccedilotildees diminuiacuteda uma vez que compotildeem sociedades

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A vulnerabilidade pode assumir as mais variadas vertentes bem como atingir uma determinada pessoa ou um grupo de seres humanos com peculiaridades comuns tais como crianccedilas idosos iacutendios pacientes terminais desempregados deficientes91 presidiaacuterios92 ou outras situaccedilotildees de dependecircncia93

Pode ocorrer que as pessoas que seratildeo estudadas na pesquisa natildeo tenham capacidade civil para dar o seu consentimento Nesse caso se encontram em situaccedilatildeo de incapacidade e a pesquisa soacute pode ser levada adiante com a intervenccedilatildeo de seus representantes legais que de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira deveratildeo assistir ou representar os incapazes Tambeacutem aqui deve o pesquisador cercar-se de cautelas eacuteticas redobradas

Finalmente deve-se louvar a Resoluccedilatildeo por ter explicitado no seu item III3 um rol de 23 (vinte e trecircs) exigecircncias eacuteticas para a pesquisa de qualquer aacuterea do conhecimento que envolva seres humanos94

culturalmente diversas[] Estas para citar algumas populaccedilotildees caracteriacutesticas Satildeo populaccedilotildees que precisam ser especialmente protegidas dada a proacutepria condiccedilatildeo de vulnerabilidade Maria Carolina S Guimaratildees e Sylvia Caiuby Novaes com alento em Hannah Arendt e Cardia definem o ser vulneraacutevel como Algueacutem que possui cidadania fraacutegil que ignora a relevacircncia do direito agrave integridade fiacutesica como condiccedilatildeo de acesso aos direitos sociais econocircmicos poliacuteticos e trabalhistas Dito assim o que parece a primeira condiccedilatildeo para que um ser vulneraacutevel perca tal situaccedilatildeo eacute o investimento do Estado naquilo que constroacutei e constitui a cidadania naqueles atributos que transformam o indiviacuteduo em cidadatildeo que transformam o animal laborans em homem poliacutetico Essa transformaccedilatildeo eacute no dizer de Hannah Arendt um pressuposto da democracia pois permite ao animal laborans ir do reino da necessidade para o reino da liberdade GUIMARAtildeES Maria Carolina S NOVAES Sylvia Caiuby Autonomia reduzida e vulnerabilidade liberdade de decisatildeo diferenccedila e desigualdade Revista Bioeacutetica Brasiacutelia v 7 n 1 p 23 1999

91 Sobre o tema vide COHEN Claacuteudio Bioeacutetica Pesquisa e Deficiecircncia In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 55-62 92 Nem todo ser humano eacute no entanto capaz de autodeterminaccedilatildeo A capacidade de autodeterminaccedilatildeo amadurece ao longo da vida mas pode ser perdida total ou parcialmente por doenccedila velhice ou situaccedilatildeo de restriccedilatildeo severa como a prisatildeo Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 93 O Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de janeiro de 1988) veda ao meacutedico no seu art 128 Realizar pesquisa meacutedica em voluntaacuterios sadios ou-natildeo que tenham direta ou indiretamente dependecircncia ou subordinaccedilatildeo relativamente ao pesquisador 94 I1I3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias a) ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder a incertezas b) estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou em outros fatos cientiacuteficos c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio d) prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis e) obedecer a metodologia adequada Se houver necessidade de distribuiccedilatildeo aleatoacuteria dos sujeitos da pesquisa em grupos experimentais e de controle assegurar que apriori natildeo seja possiacutevel estabelecer as vantagens de um procedimento sobre outro atraveacutes de revisatildeo de literatura meacutetodos observacionais ou meacutetodos que natildeo envolvam seres humanos 0 ter plenamente justificada quando for o caso a utilizaccedilatildeo de placebo em termos de natildeo maleficecircncia e de necessidade metodoloacutegica g) contar com o consentimento livre e esclarecido do sujeito da pesquisa eou seu representante legal h) contar com os recursos humanos e materiais necessaacuterios que garantam o bem-

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5 Teleologia e legitimidade da pesquisa em seres humanos

Toda experimentaccedilatildeo em seres humanos possui um determinado objetivo o qual pode ou-natildeo estar vinculado ao bem estar proacuteprio da pessoa ou grupo observado

Essa situaccedilatildeo natildeo foi esquecida pela Declaraccedilatildeo de Helsinque cujo preacircmbulo afirma Wo campo cia pesquisa biomeacutedica uma distinccedilatildeo fundamental deve ser feita entre a pesquisa meacutedica na qual o objetivo eacute essencialmente o diagnoacutestico ou a terapecircutica para um paciente e a pesquisa meacutedica cujo objeto essencial eacute puramente cientiacutefico e sem um valor direto diagnoacutestico ou terapecircutico para a pessoa sujeita agrave

estar do sujeito da pesquisa devendo ainda haver adequaccedilatildeo entre a competecircncia do pesquisador e o projeto proposto i) prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade a proteccedilatildeo da imagem e a natildeo estigmatizaccedilatildeo garantindo a natildeo utilizaccedilatildeo das informaccedilotildees em prejuiacutezo das pessoas eou das comunidades inclusive em termos de auto-estima de prestiacutegio eou econocircmico - financeiro j) ser desenvolvida preferencialmente cm indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida 1) respeitar sempre os valores culturais sociais morais religiosos e eacuteticos bem como os haacutebitos e costumes quando as pesquisas envolverem comunidades m) garantir que as pesquisas em comunidades sempre que possiacutevel traduzir-se-atildeo em benefiacutecios cujos efeitos continuem a se fazer sentir apoacutes sua conclusatildeo O projeto deve analisar as necessidades de cada um dos membros da comunidade e analisar as diferenccedilas presentes entre eles explicitando como seraacute assegurado o respeito agraves mesmas n) garantir o retomo dos benefiacutecios obtidos atraveacutes das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas Quando no interesse da comunidade houver benefiacutecio real em incentivar ou estimular mudanccedilas de costumes ou comportamentos o protocolo de pesquisa deve incluir sempre que possiacutevel disposiccedilotildees para comunicar tal benefiacutecio agraves pessoas eou comunidades o) comunicar agraves autoridades sanitaacuterias os resultados da pesquisa sempre que os mesmos puderem contribuir para a melhoria das condiccedilotildees de sauacutede da coletividade preservando poreacutem a imagem e assegurando que os sujeitos da pesquisa natildeo sejam estigmatizados ou percam a auto-estima p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefiacutecios resultantes do projeto seja em termos de retorno social acesso aos procedimentos produtos ou agentes da pesquisa q)assegurar aos sujeitos da pesquisa as condiccedilotildees de acompanhamento tratamento ou de orientaccedilatildeo conforme o caso nas pesquisas de rastreamento demonstrar a preponderacircncia de benefiacutecios sobre riscos e custos r) assegurar a inexistecircncia de conflito de interesses entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa ou patrocinador do projeto s) comprovar nas pesquisas conduzidas do exterior ou com cooperaccedilatildeo estrangeira os compromissos e as vantagens para os sujeitos das pesquisas e para o Brasil decorrentes de sua realizaccedilatildeo Nestes casos deve ser identificado o pesquisador e a instituiccedilatildeo nacionais co-responsaacuteveis pela pesquisa O protocolo deveraacute observar as exigecircncias da Declaraccedilatildeo de Helsinque e incluir documento de aprovaccedilatildeo no paiacutes de origem entre os apresentados para avaliaccedilatildeo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa da instituiccedilatildeo brasileira que exigiraacute o cumprimento de seus proacuteprios referenciais eacuteticos Os estudos patrocinados do exterior tambeacutem devem responder agraves necessidades de treinamento de pessoal no Brasil para que o paiacutes possa desenvolver projetos similares de forma independente t) utilizar o material bioloacutegico e os dados obtidos na pesquisa exclusivamente para a finalidade prevista no seu protocolo u) levar em conta nas pesquisas realizadas em mulheres em idade feacutertil ou em mulheres graacutevidas a avaliaccedilatildeo de riscos e benefiacutecios e as eventuais interferecircncias sobre a fertilidade a gravidez o embriatildeo ou o feto o trabalho de parto o puerpeacuterio a lactaccedilatildeo e o receacutem-nascido v) considerar que as pesquisas em mulheres graacutevidas devem ser precedidas de pesquisas em mulheres fora do periacuteodo gestacional exceto quando a gravidez for o objetivo fundamental da pesquisa x) propiciar nos estudos multicecircntricos a participaccedilatildeo dos pesquisadores que desenvolveratildeo a pesquisa na elaboraccedilatildeo do delineamento geral do projeto e z) descontinuar o estudo somente apoacutes anaacutelise das razotildees da descontinuidade pelo CEP que a aprovou

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pesquisa Em outras palavras haacute experimentos em benefiacutecio do paciente e experimentos em benefiacutecio da ciecircncia Ainda no preacircmbulo da Declaraccedilatildeo de Helsinque encontramos que A finalidade da pesquisa meacutedica envolvendo seres humanos deve ser o aperfeiccediloamento do diagnoacutestico procedimentos terapecircuticos e profilaacuteticos e a compreensatildeo da etiologia e da patologia da doenccedila Conjugando essa afirmaccedilatildeo com a anterior podemos extrair que uma determinada pessoa ou populaccedilatildeo pode ser objeto de pesquisa para desvendar doenccedilas que a afligem ou para desnudar as razotildees pelas quais eacute menos suscetiacutevel ou-natildeo eacute atingida por determinada moleacutestia que afeta aos demais seres humanos

A partir dessas observaccedilotildees podemos considerar para os fins do nosso estudo que as experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas teleologicamente em dois grupos a) aquelas cujos objetivos possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas as quais chamaremos de pesquisas com justificativa intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de terceiros as quais denominaremos pesquisas com justificativa extrinseca Temos como exemplo na primeira situaccedilatildeo os experimentos cientiacuteficos para desvendar o porquecirc de uma determinada coletividade ser atingida por taxas elevadas de uma certa doenccedila e na segunda uma pesquisa para revelar as razotildees pelas quais certas pessoas natildeo desenvolvem uma moleacutestia com o objetivo de descobrir uma vacina ou um medicamento para os demais

Entretanto em todo experimento seraacute necessaacuterio averiguar se a justificativa - seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima Isso porque o fato de uma pesquisa ter por objetivo um tratamento mais eficiente ou a cura de certas doenccedilas natildeo legitima por si soacute a utilizaccedilatildeo de pessoas como sujeito de pesquisa mesmo que elas sofram da moleacutestia e possam vir a ser beneficiadas Natildeo se deve perder de vista aliaacutes que se o conhecimento puder ser obtido por outro meio a utilizaccedilatildeo de seres humanos justamente por ser desnecessaacuteria seraacute ilegiacutetima95 Ademais soacute pelo fato de ser intriacutenseca a justificativa natildeo seraacute necessariamente legiacutetima Por outro lado a circunstacircncia isoladamente considerada do eventual resultado da experimentaccedilatildeo ser absolutamente indiferente ao sujeito de pesquisa natildeo torna a sua participaccedilatildeo ilegiacutetima Em outras palavras a justificativa soacute por ser extrinseca natildeo seraacute necessariamente ilegiacutetima

Vale relembrar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 - A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio

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A razatildeo disso reside na afirmaccedilatildeo de que como se sabe desde Kant o Homem deve ser tratado como um fim em si mesmo e natildeo como instrumento De fato eacute em Kant que o Homem ganha status de valor absoluto manifesto no imperativo praacutetico expresso na maacutexima segundo a qual Ages de tal maneira que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio 96

Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

Quando se trata de experimentaccedilatildeo com justificativa intriacutenseca a razatildeo legitimadora pode estar no objetivo de beneficiar os proacuteprios sujeitos da pesquisa algueacutem se submete a uma experimentaccedilatildeo na tentativa de auferir uma vantagem em seu bem-estar fiacutesico ou mental

Jaacute no caso da justificativa extriacutenseca poder-se-ia objetar a realizaccedilatildeo da experimentaccedilatildeo com suposto fundamento na Resoluccedilatildeo 19696 cujo item III 1 letra d vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila Ora se em uma determinada situaccedilatildeo algueacutem participa do experimento sem que haja qualquer possibilidade de benefiacutecio fiacutesico ou mental para si a partir do resultado da pesquisa e considerando que a mesma Resoluccedilatildeo veda qualquer forma de remuneraccedilatildeo do sujeito da pesquisa (item 1110) qual a vantagem significativa que poderaacute essa pessoa auferir para justificar a sua participaccedilatildeo

Ao nosso ver a interpretaccedilatildeo desse ponto da Resoluccedilatildeo natildeo deve ser literal nem assistemaacutetica97 devendo ser considerada a incidecircncia de um outro princiacutepio ainda

Op cit p 69 Em comento a este imperativo Francesca Puigpclat Marti apregoa que La concepcioacuten liberal asocia a esta expresioacuten una idea comuacuten en Ia reflexioacuten eacutetica de raigambre kantiana el hombre es un fin en si mismo un sujeto y no un objeto Seguacuten Kant en el sistema de Ia natureza el hombre (homo phaenomenon animal rationale) es un ser de escasa importancia y tiene con los demaacutes animales en tanto que productos de Ia tierra un precio comuacuten () Ahora bien el hombre considerado como persona es dccir como sujeto de una razoacuten praacutetico-moral estaacute situado por encima de todo precio porque como tal (homo noumenon) no puede valorarse soacutelo como meacutedio para fines ajenos incluso para sus proprios fines sino como fin en siacute mismo es decir posee una dignidad(un valor interno absoluto) gracias a la cual infunde respeto haciacutea eacutel a todos los demaacutes seres racionales dei mundo puede medirse con cualquier otro de esta clase y valorarse en pie de igualdad En la medida en que seguacuten Kant el hombre existe como fin en siacute mismo y no soacutelo como meacutedio para usos cualesquiera de una u otra voluntad se puede formular el siguiente principio praacutetico supremo obra de tal modo que uses la humanidad tanto en tu persona como en la persona de cualquier otro siempre como un fin al mismo tiempo y nunca solamente como un meacutedio MARTIacute Francesca Puigpelat Clonacioacuten dignidad humana y constitucioacuten Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo ano II n 42 janmar p37-64 2003

Natildeo se interpreta o direito em tiras aos pedaccedilos () Um texto de direito isolado destacado desprendido do sistema juriacutedico natildeo expressa significado normativo algum Cf GRAU Eros Roberto Ensaio e

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que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que eacute o da solidariedade Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita entendemos que a sua aplicaccedilatildeo eacute cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele dispositivo (item 1111 letra d da Resoluccedilatildeo 19696) afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria Aleacutem disso outros documentos de importacircncia para a Bioeacutetica fazem referecircncia agrave solidariedade98 De fato natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao respeito agrave dignidade da pessoa humana99

Logo no nosso pensar mesmo que natildeo haja nenhum benefiacutecio ou vantagem direta ao sujeito de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma justificativa eacutetica a qual pode ter como nuacutecleo a intenccedilatildeo solidaacuteria dessa pessoa e do pesquisador de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e consequumlentemente para todos os demais seres humanos

A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica100

Estas exigecircncias no acircmbito normativo brasileiro estatildeo listadas na Resoluccedilatildeo 19696 especialmente no item III3

Algumas delas satildeo puramente objetivas e uma vez desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca E o caso por exemplo da necessidade de consentimento preacutevio e informado

discurso sobre a interpretaccedilatildeoaplicaccedilatildeo do Direito Satildeo Paulo Malheiros Editores 2002 p 34 98

O art 1deg da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos proclama que todas pessoas devem agir em relaccedilatildeo umas agraves outras com espiacuterito de fraternidade Alem disso a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO em um dos seus considerandos observa que os seres humanos tecircm um papel importante na proteccedilatildeo um do outro tratando expressamente da solidariedade e cooperaccedilatildeo no seu art 13 segundo o qual A solidariedade entre os seres humanos e cooperaccedilatildeo internacional para este fim devem ser estimuladas 99 Ela [a solidariedade] eacute o fecho de aboacutebada do sistema de princiacutepios eacuteticos pois complementa e aperfeiccediloa a liberdade a igualdade e a seguranccedila () E um erro considerar que no mundo da natureza sobretudo no mundo animal natildeo exista solidariedade e que ela seja uma criaccedilatildeo poliacutetica Muito pelo contraacuterio pode-se dizer que a biosfera forma naturalmente um sistema solidaacuterio e que o rompimento desse sistema eacute sempre obra do homem O proacuteprio Darwin bem advertiu que a expressatildeo struggle for Existence fora por ele usada em sentido amplo e matafoacuterico incluindo a dependecircncia de um ser em relaccedilatildeo a outro bem como incluindo (o que eacute mais importante) natildeo apenas a vida do indiviacuteduo mas o ecircxito em deixar descendentes Os zooacutelogos jaacute observaram que o processo de seleccedilatildeo natural deu mais vantagens bioloacutegicas aos grupos que cuidavam de seus membros natildeo reprodutivos do que agravequeles que abandonavam ou matavam os anciatildeos pois a capacidade de reproduccedilatildeo global dos grupos altruiacutestas eacute assim singularmente reforccedilada Cf COMPARATO Faacutebio Konder Eacutetica direito moral e religiatildeo no mundo moderno Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 p 577578

100

Natildeo eacute agrave toa portanto que como jaacute visto a Resoluccedilatildeo 19696 vincula a eticidade na pesquisa aos princiacutepios da Bioeacutetica tanto no seu preacircmbulo como no seu item III 1

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dos participantes - ou dos seus representantes se incapazes - 101 cuja ausecircncia macula o princiacutepio da autonomia Tambeacutem eacute objetiva a exigecircncia da pesquisa estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou outros fatos cientiacuteficos102 cuja inobservacircncia implica em ofensa agrave natildeo-maleficecircncia Nessas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou-natildeo vir a ter um benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

Outras exigecircncias entretanto possuem um certo grau de subjetividade em maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as circunstacircncias faacuteticas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo de valor iacutensito a cada um Desse tipo vg eacute a exigecircncia segundo a qual a pesquisa deve ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e ter possibilidades concretas de responder a incertezas103 A avaliaccedilatildeo quanto ao cumprimento ou-natildeo da exigecircncia e portanto quanto agrave legitimidade ou ilegitimidade da utilizaccedilatildeo de seres humanos tem um niacutetido caraacuteter subjetivo podendo variar de pessoa para pessoa

Quando tratamos de exigecircncias subjetivas haacute ainda um outro aspecto a ser apontado deveraacute ser levado em conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca Em outras palavras a circunstacircncia do sujeito de pesquisa poder vir a ser beneficiado ou-natildeo pelo resultado do experimento deve ser considerada na verificaccedilatildeo da legitimidade eacutetica quando da ponderaccedilatildeo sobre o cumprimento das exigecircncias subjetivas

Tomemos como exemplo a exigecircncia de que devem prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis104 Ora essa exigecircncia eacute subjetiva pois envolve uma ponderaccedilatildeo cujo resultado estaacute vinculado a um juiacutezo de valor sobre a natureza e a importacircncia ou peso de cada benefiacutecio ou risco provaacutevel Ao nosso entender quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal no resultado do experimento tratando-se portanto de justificativa extriacutenseca eacute oacutebvio que os riscos a que se submete devem ser considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o benefiacutecio esperado tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa submetida ao experimento

101 Item III3 letra g da Resoluccedilatildeo 19696 102 Item III3 letra b da Resoluccedilatildeo 19696 103 Item III3 letra a da Resoluccedilatildeo 19696 104 Item III3 letra d da Resoluccedilatildeo 19696

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Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila105 Por outro lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

A proacutepria realizaccedilatildeo ou-natildeo da pesquisa pode depender dessa ponderaccedilatildeo jaacute que a Resoluccedilatildeo n 19696 prevecirc que havendo riscos potenciais as pesquisas envolvendo seres humanos poderatildeo ser admitidas quando oferecerem elevada possibilidade de gerar conhecimento para entender prevenir ou aliviar um problema que afete o bem-estar dos sujeitos da pesquisa e de outros indiviacuteduos 106

Aleacutem disso parece ser mais aceitaacutevel eticamente submeter o ser humano a riscos maiores quando a justificativa eacute intriacutenseca do que quando ela eacute extriacutenseca priorizando assim a sua preservaccedilatildeo Nesse sentido a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO estipula que uos interesses e o bem-estar do indiviacuteduo devem ter prioridade sobre o interesse exclusivo da ciecircncia ou da sociedade 107

Natildeo se pode esquecer ainda que por forccedila dos princiacutepios da beneficecircncia da natildeo-maleficecircncia e da justiccedila eacute preciso considerar na mediccedilatildeo da legitimidade as peculiaridades individuais ou coletivas dos sujeitos de pesquisa especialmente no que concerne agraves suas eventuais vulnerabilidades bem como cuidar para que natildeo lhes seja imposto um mal desnecessaacuterio ou desproporcional O princiacutepio da justiccedila como vimos implica necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa os quais sempre que possiacutevel devem ter garantido para si pelo pesquisador a fruiccedilatildeo dos benefiacutecios da experimentaccedilatildeo natildeo sendo equacircnime impor-Ihes ocircnus excessivos108 especialmente se vulneraacuteveis Natildeo eacute agrave toa portanto que pode

105 O princiacutepio da justiccedila implica atenccedilatildeo especial agraves regras de recrutamento de participantes de experimentos Natildeo se pode fazer experimentos apenas com determinados grupos - pacientes de enfermaria asilados prisioneiros - simplesmente porque eles estatildeo agrave disposiccedilatildeo e em situaccedilatildeo de dependecircncia Isso eacute injusto Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 Item Vl aliacutenea a

107 Art 3 aliacutenea b 108 bull

Consideramos que deva ser modificada a praacutetica muito comum em nosso paiacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de pesquisados provenientes das camadas mais desfavorecidas da sociedade ou de outros grupos vulneraacuteveis mas que posteriormente natildeo poderatildeo se beneficiar dos resultantes positivos das pesquisas em que tomaram parte mesmo tendo enfrentado riscos de danos psico-sociais As pesquisas realizadas nesses grupos devem poder lhes trazer benefiacutecios e os pesquisadores sempre que possiacutevel devem garantir retomo dos benefiacutecios resultados das pesquisas para os sujeitos individuais e coletivos que nelas participarem Cf FORTES Paulo Antonio de Carvalho As Pesquisas em Seres Humanos e o Principio Eacutetico da Justiccedila

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haver exigecircncias eacuteticas especiacuteficas para pesquisas com serem humanos em situaccedilatildeo de vulnerabilidade109

Assim sempre seraacute preciso dosar a equaccedilatildeo riscobeneficio ponderando em cada caso concreto se os eventuais benefiacutecios satildeo suficientes para motivar a exposiccedilatildeo das pessoas ao processo de experimentaccedilatildeo Pode ser que diante de certas peculiaridades ou vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima110 Aliaacutes como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis justamente porque como jaacute dito o ser humano natildeo pode ser tratado como mero instrumento1

E natildeo eacute soacute Aleacutem disso em princiacutepio a pesquisa com pessoas ou grupos vulneraacuteveis deve ter uma justificativa intriacutenseca2 Entretanto sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas em experimentos extriacutensecos agrave luz da solidariedade como no caso do grupo vulneraacutevel ser imune a determinada moleacutestia por razatildeo ainda desconhecida o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias objetivas agrave risca deve ser ainda mais

Cadernos de Eacutetica em Pesquisa Ano 1 n 2 p 22-23 nov 1998 109

A tiacutetulo de exemplo a Resoluccedilatildeo 19696 traz alguns requisitos especiacuteficos para o consentimento livre e esclarecido de pessoas ou populaccedilotildees vulneraacuteveis no item IV3

110 Um caso de niacutetida violaccedilatildeo aos princiacutepios bioeacuteticos em pesquisas envolvendo grupo vulneraacutevel foi o jaacute mencionado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm Conforme um dos colaboradores da pesquisa utilizar doentes mentais ainda que natildeo voluntaacuterios foi a melhor opccedilatildeo diante do fato de que o principal problema da sauacutede puacuteblica era justamente o das doenccedilas dentaacuterias razatildeo pela qual os fins justificariam os meios ainda mais considerando que o estudo foi utilizado em todo o mundo (Krasse B Sueacutecia usou deficiente mental como cobaia Folha de Satildeo Paulo 23 Set 1997 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas cliacutenicas sobre seus direitos 2005 p 61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo) sendo faacutecil criticar o fato depois de consumado (Krasse B The Vipeholm dental caries study recollections and reflections 50 years later J Dent Res 2001 80(9) 1785-8 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu op cit p 61) Mais uma vez cabiacutevel rememorar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () j) ser desenvolvida preferencialmente em indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida

112 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO eacute clara ao afirmar em seu art 7 aliacutenea b no que diz respeito a indiviacuteduos sem a capacidade para fornecer consentimento que a pesquisa soacute deve ser realizada para o beneficio direto agrave sauacutede do indiviacuteduo envolvido estando sujeita agrave autorizaccedilatildeo e agraves condiccedilotildees de proteccedilatildeo prescritas pela legislaccedilatildeo e caso natildeo haja nenhuma alternativa de pesquisa de eficaacutecia comparaacutevel que possa incluir sujeitos de pesquisa com capacidade para fornecer consentimento

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rigoroso na ponderaccedilatildeo do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da autonomia e justiccedila expondo tais pessoas a riscos miacutenimos menores ateacute do que aqueles normalmente empregados em pesquisas com justificativa intriacutenseca3

Se essas diretrizes natildeo forem observadas teremos uma pesquisa carente de justificativa eacutetica e de legitimidade

6 Conclusotildees

Em virtude dos limites inerentes agrave nossa abordagem nessas consideraccedilotildees finais natildeo apresentaremos verdades irrefutaacuteveis e definitivas sobre um tema que ainda carece de um importante debate acadecircmico e normativo Com efeito o que pretendemos modestamente foi evidenciar alguns paradigmas que possam ensejar a conciliaccedilatildeo da dignidade da pessoa humana com a continuidade dos processos de investigaccedilatildeo cientiacuteficos realizados em seres humanos Para tanto podemos sintetizar nosso pensamento nas seguintes conclusotildees

a) O desenvolvimento da ciecircncia mormente em aacutereas afeitas agrave vida e a ocorrecircncia de pesquisas francamente contraacuterias agrave dignidade humana como ocorrido em vaacuterias passagens da Segunda Guerra ensejaram o surgimento da Bioeacutetica como um novo ramo do conhecimento

b) Deve-se limitar a atuaccedilatildeo da Bioeacutetica aos casos em que haacute conflito de valores quando dois princiacutepios eacutetica e moralmente admissiacuteveis natildeo podem coexistir

c) Haacute iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica Autonomia Beneficecircncia e Justiccedila aleacutem da Natildeo-Maleficecircncia - e as pesquisas em seres humanos

113 Ainda conforme o art 7 aliacutenea b da Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO quando se trata de pessoas incapazes Pesquisas sem potencial beneficio direto agrave sauacutede soacute devem ser realizadas excepcionalmente com a maior restriccedilatildeo expondo o indiviacuteduo apenas a risco e desconforto miacutenimos e quando se espera que a pesquisa contribua com o benefiacutecio agrave sauacutede de outros indiviacuteduos na mesma categoria sendo sujeitas agraves condiccedilotildees prescritas por lei e compatiacuteveis com a proteccedilatildeo dos direitos humanos do indiviacuteduo A recusa de tais indiviacuteduos em participar de pesquisas deve ser respeitada

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1218 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

d) Os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica

pluralista aberta e receptiva e satildeo um poderoso instrumento

para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

razotildees pelas quais eacute descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos

debates bioeacuteticos

e) O avanccedilo tecnoloacutegico traz cada vez mais a diminuiccedilatildeo de

limites teacutecnicos ao ser humano o que conduz ao debate sobre a

necessidade de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees para

evitar eventuais abusos especialmente na aacuterea biomeacutedica

elevando a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que

demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave

vida

0 A concretizaccedilatildeo dos objetivos atuais da humanidade

especialmente em relaccedilatildeo agrave expectativa de vida depende

dentre outros fatores da pesquisa cientiacutefica e da

experimentaccedilatildeo em seres humanos Poreacutem eacute preciso tomar o

Homem como sujeito de pesquisa sem trataacute-lo como mero

instrumento mas como um fim em si mesmo

g) A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do

interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda

Guerra trouxeram agrave tona a questatildeo da eacutetica na pesquisa

evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana e

de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa

em seres humanos gerando uma seacuterie de normas internacionais

e nacionais a exemplo do Coacutedigo de Nuremberg da

Declaraccedilatildeo de Helsinque e no Brasil da Resoluccedilatildeo n 19696

do Conselho Nacional de Sauacutede

h) Dentre os principais aspectos da Resoluccedilatildeo n 19696 do

Conselho Nacional de Sauacutede encontramos a vinculaccedilatildeo da

experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da

principiologia da Bioeacutetica a explicitaccedilatildeo de um rol de

exigecircncias para a eticidade na pesquisa as definiccedilotildees de

diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica como o

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1219

consentimento livre e esclarecido a vulnerabilidade e a

incapacidade a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em

Pesquisa -CONEP e a regulamentaccedilatildeo dos Comitecircs de Eacutetica e

Pesquisa - CEPs

i) O consentimento livre e esclarecido decorre da adoccedilatildeo do

princiacutepio da autonomia e pressupotildee dentre outras premissas a

capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os

aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos

possiacuteveis

j) A vulnerabilidade natildeo pode ser desconsiderada pelo

pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais ocorrendo

quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de

estudo por quaisquer motivos possuem a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto agrave

compreensatildeo sobre o experimento e a possibilidade de

livremente consentir com a pesquisa e dela desistir

k) A incapacidade ocorre quando as pessoas que seratildeo estudadas

na pesquisa natildeo possuem capacidade civil para dar o seu

consentimento soacute podendo ser levada adiante a pesquisa com a

intervenccedilatildeo de seus representantes legais implicando tambeacutem

no dever do pesquisador de cercar-se de cautelas eacuteticas

redobradas

1) As experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas

teleologicamcnte em dois grupos a) aquelas cujos objetivos

possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas

observadas as quais chamamos de pesquisas com justificativa

intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo

direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de

terceiros as quais denominamos pesquisas com justificativa

extrinseca

m) Em todo experimento eacute necessaacuterio averiguar se a justificativa -

seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1220 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima jaacute que a

justificativa soacute pelo fato de ser intriacutenseca natildeo seraacute

necessariamente legiacutetima nem tampouco soacute por ser extriacutenseca

seraacute necessariamente ilegiacutetima

n) Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a

realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser

encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca

como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

o) A interpretaccedilatildeo do item III1 letra d da Resoluccedilatildeo n 19696

que vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens

significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de

infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila natildeo deve ser literal nem

assistemaacutetica devendo ser considerada a incidecircncia de um

outro principio ainda que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que

eacute o da solidariedade

p) Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita ao princiacutepio da

solidariedade na Resoluccedilatildeo n 19696 a sua aplicaccedilatildeo eacute

cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele

texto afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua

relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-

humanitaacuteria

q) Logo mesmo que natildeo haja nenhum beneficio direto ao sujeito

de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma

justificativa a qual pode ser a intenccedilatildeo sua e do pesquisador

de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e

consequumlentemente para todos os demais seres humanos Aleacutem

disso natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica

sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao

respeito agrave dignidade da pessoa humana

r) A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em

seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade

poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1221

diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica listadas na

Resoluccedilatildeo n 19696 especialmente no item III3

s) Algumas exigecircncias satildeo puramente objetivas e uma vez

desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da

justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca

t) Nas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa

ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou natildeo vir a ter um

benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

u) Outras exigecircncias possuem um certo grau de subjetividade em

maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da

pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo

exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as

circunstacircncias faacutetiacutecas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo

de valor iacutensito a cada um

v) Quando se tratar de exigecircncias subjetivas deveraacute ser levado em

conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma

justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca

w) Quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou

sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal

no resultado do experimento tratando-se portanto de

justificativa extriacutenseca os riscos a que se submete devem ser

considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a

justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o beneficio esperado

tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa

submetida ao experimento

x) Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do

sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero

instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila e por outro

lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute

menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa

consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1222 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a

algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

y) Pode ser que diante de certas peculiaridades ou

vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo

considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa

em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua

realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo

eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima

z) Como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras

pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis

mas sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas agrave luz da

solidariedade o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias

objetivas agrave risca deve ser ainda mais rigoroso na ponderaccedilatildeo

do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave

observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da

autonomia e justiccedila

Satildeo Paulo novembro de 2006

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Page 2: BIOÉTICA E PESQUISAS EM SERES HUMANOS

1188 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

especial no campo da agricultura e da astrologia A evoluccedilatildeo da humanidade de sua vez pressupotildee e estimula a necessidade de desvendar misteacuterios descobrir aprimorar e transmitir conhecimentos e teacutecnicas o que motivou o desenvolvimento da pesquisa

Paulatinamente o Homem foi instituindo novos meacutetodos no afatilde de aprofundar seus conhecimentos e comprovar teorias mateacuteria da qual se ocupa hoje a epistemologia Ao fazecirc-lo rompeu as barreiras do senso comum e criou a ciecircncia

Sem ceder agrave tentaccedilatildeo de nos aprofundarmos nas suas teorias seara onde se destacam claacutessicos pensadores como Descartes e Bacon vale anotar ao menos que atualmente eacute imprescindiacutevel rediscutir a ciecircncia2 em seus muacuteltiplos aspectos indagando natildeo-somente como fazecirc-la mas ainda para que(m) e a que custo

Eacute nesse contexto que se insere a questatildeo da experimentaccedilatildeo em seres humanos e a proteccedilatildeo aos sujeitos de pesquisa pois eacute notoacuterio que o conhecimento experimental jaacute natildeo mais se limita ao domiacutenio dos astros e misteacuterios da geografia da fiacutesica teoacuterica e da produccedilatildeo de substacircncias quiacutemicas amorfas e inanimadas O fasciacutenio pelo orgacircnico pelo humano ganhou lugar nas pipetas e pranchetas atraiu vultosos financiamentos e encheu os bancos universitaacuterios e laboratoacuterios de homens e mulheres que se dedicam a pesquisar a vida humana confirmando a necessidade de guarnecer as pessoas dos riscos das pesquisas atraveacutes do debate eacutetico percuciente missatildeo da qual tem se ocupado a Bioeacutetica

Diante disso entendemos ser oportuna a reflexatildeo sobre a eticidade em pesquisas envolvendo seres humanos

O presente trabalho inicialmente apresenta a Bioeacutetica seu contexto histoacuterico e contemporacircneo Posteriormente aborda os princiacutepios gerais bioeacuteticos Apoacutes enfoca a experimentaccedilatildeo em seres humanos e alguns aspectos das normas internacionais e nacionais sobre o tema Num uacuteltimo momento satildeo colocadas questotildees acerca da teleologia e da legitimidade da pesquisa em seres humanos e apresentadas algumas conclusotildees na esperanccedila de que sejam uacuteteis agrave discussatildeo sobre a adequaccedilatildeo eacutetica deste tipo de experimento

Boaventura de Souza Santos sustenta que a ciecircncia moderna se encontra mergulhada numa profunda crise c que estamos vivemos uma fase de transiccedilatildeo entre o paradigma da ciecircncia moderna e um novo paradigma ao qual denomina de poacutes moderna Nesse contexto faz criacuteticas agraves correntes dominantes da epistemologia e propotildee uma reflexatildeo hermenecircutica visando compreender a praacutetica cientiacutefica para aleacutem da consciecircncia ingecircnua ou oficial dos cientistas e das instituiccedilotildees da ciecircncia com vista a aprofundar o diaacutelogo dessa praacutetica com as demais praacuteticas de conhecimento de que se tecem a sociedade e o mundo SANTOS Boaventura de Souza Introduccedilatildeo a uma ciecircncia poacutes moderna 3 ed Rio de Janeiro Graal 1989 Discussotildees desse jaez satildeo enfrentadas pela sociologia da ciecircncia Vide a respeito vg MERTON Robert K La Sociologia de la ciecircncia Madrid Alianza Editorial 1985

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1189

A nossa abordagem natildeo pretende ser original nem exaustiva Esperamos apenas contribuir para fomentar o importante debate sobre os valores que devem ser preservados na conduccedilatildeo das pesquisas em seres humanos

2 Bioeacutetica surgimento e conceito

O desenvolvimento da ciecircncia4 mormente em aacutereas afeitas agrave vida e a ocorrecircncia de pesquisas francamente contraacuterias agrave dignidade humana como ocorrido em vaacuterias passagens da Segunda Guerra ensejaram o surgimento da Bioeacutetica como um novo ramo do conhecimento5

A doutrina majoritaacuteria6 sustenta que o termo Bioeacutetica foi usado pela primeira vez em 1971 pelo americano Rensselaer Potter em sua obra intitulada Bioethics a Bridge to the Future embora a ideacuteia do autor acerca do vocaacutebulo agrave eacutepoca de sua ediccedilatildeo natildeo coincida com a concepccedilatildeo contemporacircnea atribuiacuteda ao termo7

Hodiernamente a doutrina apresenta inuacutemeras definiccedilotildees de Bioeacutetica com certas divergecircncias quanto a sua metodologia e amplitude ou objeto Alguns autores por exemplo tendem a vinculaacute-la a determinadas aacutereas e especialidades

Bem a propoacutesito as palavras de Ricardo Cunha A ordem cientiacutefica convolou-se em era tecnoloacutegica onde as representaccedilotildees abstratas da matemaacutetica usurpam o sentido do mundo real produzindo uma nova crenccedila Todavia o desconhecido agora natildeo desce dos ceacuteus agrave terra mas ao contraacuterio sobe da terra aos ceacuteus CUNHA Ricardo O Direito em trecircs espantos Fundamentos filosoacuteficos para a relaccedilatildeo entre Ciecircncia Direito e Justiccedila Revista da Faculdade de Direito Cacircndido Mendes Ano 4 n 4 p 39-56 1999 Considerando o nuacutemero de eventos publicaccedilotildees documentos internacionais e disciplinas acadecircmicas Sueli Gandolfi Dallari sustenta que a Bioeacutetica foi o ramo da eacutetica aplicada que mais se desenvolveu nos uacuteltimos anos DALLARI Sueli Gandolfi A Bioeacutetica e a sauacutede puacuteblica In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 209 Haacute posiccedilotildees divergentes Cita-se como exemplo que autores atribuem a palavra a Fritz Jahr que utilizou em 1927 a grafia Bio=Ethik criando o Imperativo Bioeacutetico Respeita cada ser vivo em princiacutepio como uma finalidade em si e trata-o como tal na medida do possiacutevel JAHR Fritz Bio-Ethik Eine Umschau uumlber die ethichen Beziehung des Menschen zu Tier und Pfianze Kosmos n 24 p 2 1927 Natildeo se desconhece entretanto a ecircnfase conferida por alguns autores a outros pesquisadores no que concerne a trabalhos que influenciaram a trajetoacuteria inicial da Bioeacutetica Por exemplo Andreacute Hellegers e Paul Ramsey Hellegers meacutedico holandecircs de formaccedilatildeo jesuiacutetica trabalhou a definiccedilatildeo de criteacuterios para as discussotildees Bioeacuteticas e junto com Fr Henley propocircs em 1970 agrave Fundaccedilatildeo Kennedy a criaccedilatildeo do Kennedy Center for the Study of Human Reproduction and Development Em 1971 o nome mudou para The Joseph and Rose Kennedy Center for the Study of Human Reproduction and Bioethics e finalmente para The Kennedy Institute of Ethics Cf Irving Dianne N What Is Bioethics (Quid Est Bioethics) Life and Learning Conference June 3 2000 disponiacutevel em lthttpwwwcatholiculturenetdocsdoc_viewcfm7recnuirrf320gt Acessado em 22 maio 2006 Jaacute Paul Ramsey publicou em 1970 portanto pouco antes de Potter o livro The Patient as Person Explorations in Medicai Ethics (Second Edition New Heaven Yale University Press 2002) que antecipou algumas das discussotildees da Bioeacutetica

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Todavia eacute possiacutevel vislumbrar um certo consenso nas conceituaccedilotildees em

pelo menos trecircs pontos fundamentais vida eacutetica e multidisciplinaridade Esta triparticcedilatildeo

elucida didaticamente o conceito vida (biolt) designa o objeto central eacutetica o

desiderato o objetivo a ser alcanccedilado e multidisciplinaridade a forma de proceder o

meacutetodo Trata-se assim de ciecircncia multidisciplinar preocupada em refletir sobre os

progressos cientiacuteficos e sua ingerecircncia na vida humana agrave luz da eacutetica8

Esmiuccedilando o conceito com relaccedilatildeo agrave multidisciplinaridade observa-se

que a extensatildeo dos temas enfrentados pela Bioeacutetica fatalmente lhe impotildee um proceder

multidisciplinar e dinacircmico o que justifica a existecircncia de conceitos divergentes sobre

determinados assuntos O que se pode almejar portanto eacute uma reflexatildeo pois a

uniformidade de pensamento eacute na maioria dos casos inatingiacutevel9

No que concerne aos objetos de estudo da Bioeacutetica percebe-se a

necessidade de contornos mais perceptiacuteveis o que natildeo parece estar na agenda de alguns

pesquisadores que refutam a adjetivaccedilatildeo de bioeticistas pois acreditam que tendo em

vista a complexidade das questotildees a serem enfrentadas a Bioeacutetica natildeo comportaria

limitaccedilotildees e meacutetodos tampouco seria possiacutevel determinar seus objetos de estudo

tamanha a insurgecircncia de conflitos relacionados agrave vida

Considerando a sua interdisciplinaridade a instituiccedilatildeo de um meacutetodo

uacutenico e a delimitaccedilatildeo dos objetos de reflexatildeo da Bioeacutetica satildeo parecem realmente estar

impossibilitadas neste momento Natildeo eacute agrave toa que foram modelados os conceitos de

macrobioeacutetica e microbioeacutetica 10 A primeira permite extensotildees que podem vir a ser

8 Cf OLIVEIRA Paulo Henrique de Bioeacutetica e sauacutede indiacutegena Monografia apresentada no curso de Especializaccedilatildeo em Bioeacutetica do Departamento de Eacutetica Meacutedica e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo (Satildeo Paulo mimeo 2005) A Declaraccedilatildeo de Bioeacutetica de Gijoacuten adotada no I Congresso Mundial de Bioeacutetica em Gijoacuten na Espanha nos dias 20 a 24 de Junho de 2000 afirma que Uma tarefa importante da Bioeacutetica que constitui uma atividade pluridisciplinar eacute harmonizar o uso das ciecircncias biomeacutedicas e as suas tecnologias com os direitos do homem Texto disponiacutevel em lthttpwwwsibiorgportdccbiohtmgt (acessado em 04062006) Um dos precursores da Bioeacutetica no Brasil Marco Segre preconiza Bioeacutetica eacute a parte da Eacutetica ramo da filosofia que enfoca as questotildees referentes agrave vida humana e portanto agrave sauacutede In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo 1999 p 23 Na concepccedilatildeo de Tereza Rodrigues Vieira a Bioeacutetica Indica um conjunto de reflexotildees pesquisas c praacuteticas pluridisciplinares objetivando elucidar e solucionar questotildees eacuteticas provocadas pelo avanccedilo das tecnociegravencias biomeacutedicas VIEIRA Tereza Rodrigues Bioeacutetica e direito 2 ed Satildeo Paulo Juriacutedica Brasileira 2003 p 15

9 Consoante Carlos Michel Hemaacutedez La Bioeacutetica no tiene formulas permanentes para todas Ias situaciones posibles dentro de su acircmbito aunque siacute oferece Ias liacuteneas generales y especiacuteficas de actuacioacuten a fin de que cada involucrado en una dccisioacuten de esta naturaleza pueda auxiliarse se hace eacutenfasis en no tomar decisiones individuales sobre todo en casos complejos y limite como el que nos ocupa Una de Ias caracteriacutesticas de la Bioeacutetica es el ser multidisciplinaria HERNAacuteDEZ Carlos Michel Bioeacutetica em pediatria In PORTER Joseacute Kuthy GONZAacuteLEZ Oacutescar Martiacutenez MICHEL Martha Tarasco (Orgs) Temas acluales de Bioeacutetica Meacutexico Poruacutea 1999 p 136

10 Cf SEGRE Marco Definiccedilatildeo de Bioeacutetica e sua relaccedilatildeo com a eacutetica deontologia e diceologia In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo 1999 p 27-33

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desmedidas e inadequadas ao incluir na esfera dos estudos bioeacuteticos mateacuterias por exemplo como a Ecologia que objetiva a preservaccedilatildeo da espeacutecie humana e do planeta terra e a Medicina Sanitaacuteria Ocorre que toda e qualquer interrogaccedilatildeo se levada aos extremos indubitavelmente em algum aspecto alcanccedilaraacute a vida humana e a interdisciplinaridade mas apenas isto natildeo a transformaraacute em uma questatildeo Bioeacutetica Jaacute a segunda preocupa-se com a relaccedilatildeo entre os profissionais da aacuterea de sauacutede e os pacientes ou entre instituiccedilotildees puacuteblicas ou privadas pacientes e profissionais de sauacutede Entretanto a Bioeacutetica transborda o interesse das pessoas ligadas diretamente agraves questotildees de sauacutede para atingir todos os Homens jaacute que interfere no conviacutevio social

Parece-nos mais acertado e necessaacuterio limitar a atuaccedilatildeo da Bioeacutetica aos casos em que realmente haacute algum conflito de valores quando numa mesma situaccedilatildeo dois princiacutepios eacutetica e moralmente admissiacuteveis natildeo podem coexistir E o caso por exemplo da eutanaacutesia onde duelam a dignidade do paciente terminal e continuidade da vida do aborto por anencefalia onde se confrontam a vida do feto versus a dignidade da gestante e tambeacutem do caso em epiacutegrafe a pesquisa em seres humanos quando satildeo discutidos entre outros a liberdade e os limites da pesquisa cientiacutefica em contraponto aos princiacutepios gerais da Bioeacutetica e agrave dignidade Por outro lado quando a conduta eacute reprovada ou aceita de forma uniacutessona pela sociedade natildeo haacute porque pensaacute-la no plano da Bioeacutetica como ocorre vg com as questotildees atinentes agrave necessidade de diminuiccedilatildeo da violecircncia ou agrave imperiosidade da conservaccedilatildeo do meio ambiente

3 Os princiacutepios da Bioeacutetica

O principialismo da Bioeacutetica eacute proveniente sobretudo do Belmont Report e de sua lapidaccedilatildeo pela doutrina especialmente por Beauchamp e Childress12

O Belmont Report de 1978 eacute resultado do trabalho da Comissatildeo Nacional para Proteccedilatildeo dos Seres Humanos da Pesquisa Biomeacutedica e Comportamental13 instituiacuteda pelo Governo norte-americano em 12 de julho de 1974 para identificar os princiacutepios eacuteticos baacutesicos aplicaacuteveis na pesquisa em seres humanos As conclusotildees finais do relatoacuterio acabaram transpondo os objetivos iniciais da comissatildeo e formatando princiacutepios que seriam utilizados natildeo-soacute na experimentaccedilatildeo em pessoas mas sim em todas as

The Belmont Report Ethical Guidelines for the Protection of Human Subjects Washington DHFW Publications (OS) 78-0012 1978 O texto original estaacute disponiacutevel em lthttpohrposophsdhhsgovhumansubjeetsguidaneebelmonthtmgt (acessado em 05062006) A denominaccedilatildeo tem origem no local onde o relatoacuterio foi discutido e redigido

12 BEAUCHAMP T L CHILDRESS J F Principies ofBiomedical Ethics 4 ed New York Oxford 1994 13 National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomeacutedica and Behavioral Research

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projeccedilotildees da Bioeacutetica14 De qualquer forma esse fato histoacuterico revela desde logo a iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica e as pesquisas em seres humanos

Os trecircs princiacutepios impressos pelo Relatoacuterio e referendados pela Bioeacutetica satildeo os da autonomials da beneficecircncia e da justiccedila Todavia a incidecircncia de um quarto princiacutepio o da natildeo-maleficecircncia eacute reconhecida por muitos pesquisadores

O principio da autonomia reporta-se agrave capacidade de auto-escolha ao auto-governo considerado como uma condiccedilatildeo para a efetiva dignidade do ser racional Autonomia eacute uma palavra que tem origem grega derivando de auto (proacuteprio) e nomos (lei regra norma) vinculando-se assim agrave possibilidade de algueacutem adotar suas proacuteprias decisotildees As pessoas devem ser reconhecidas como entes capazes de tomar suas proacuteprias decisotildees devendo ser preacutevia e devidamente informadas a respeito dos procedimentos seus riscos e consequumlecircncias A informaccedilatildeo adequada eacute portanto fundamental natildeo-soacute no que concerne ao indiviacuteduo diretamente envolvido16 mas tambeacutem a toda a sociedade17

Em termos praacuteticos a autonomia significa dizer por exemplo no caso dos meacutedicos e dos profissionais da Medicina que eles devem respeitar a escolha dos seus pacientes seus dogmas e sua cultura18 Nestes termos a relaccedilatildeo meacutedicopaciente eacute bastante modificada abandonando-se o paternalismo que ateacute entatildeo imperava19

14 Asseveram Leo Pessini e Christian de Paul Barchifontaine que O Relatoacuterio de Belmorit foi oficialmente divulgado em 1978 e causou grande impacto Tornou-se a declaraccedilatildeo principialista claacutessica natildeo somente para a eacutetica ligada agrave pesquisa com seres humanos jaacute que acabou sendo utilizada para a reflexatildeo Bioeacutetica em geral PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Bioeacutetica do principialismo agrave busca de uma perspectiva latino-americana In COSTA Seacutergio Ibiapina F OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 83

15 Tambeacutem denominado de principio do respeito agraves pessoas ou de principio do consentimento Este uacuteltimo foi proposto por H Tristram Engelhardt para indicar melhor que o que estaacute em jogo natildeo eacute algum valor possuiacutedo pela autonomia ou pela liberdade mas o reconhecimento de que a autoridade moral secular deriva do consentimento dos envolvidos em um empreendimento comum O principio do consentimento coloca em destaque a circunstacircncia de que quando Deus natildeo eacute ouvido por todos do mesmo modo (ou natildeo eacute de maneira alguma ouvido por ningueacutem) e quando nem todos Pertencem a uma comunidade perfeitamente integrada e definida e desde que a razatildeo natildeo descubra uma moralidade canocircnica concreta entatildeo a autorizaccedilatildeo ou autoridade moral secularmente justificaacutevel natildeo vem de Deus nem da visatildeo moral de uma comunidade particular nem da razatildeo mas do consentimento dos indiviacuteduos Nessa surdez a Deus e no fracasso da razatildeo os estranhos morais encontram-se como indiviacuteduos ENGELHARDT H Tristram Fundamentos de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1998 p 17

Segundo a jaacute citada Declaraccedilatildeo de Bioeacutetica de Gijoacuten Os participantes da pesquisa deveratildeo conceder seu consentimento livre e plenamente esclarecido

1 A mesma Declaraccedilatildeo de Bioeacutetica de Gijoacuten tambeacutem recomenda que Todos os membros da sociedade devem receber uma informaccedilatildeo geral adequada e acessiacutevel sobre a utilizaccedilatildeo dos avanccedilos cientiacuteficos as biotecnologias e seus produtos O principio da autonomia como pressuposto da auto-determinaccedilatildeo inclusive auto-governo representa o respeito agrave capacidade que tem a pessoa de se governar escolher dividir avaliar sem restriccedilotildees internas e externas Cf BASTOS Paulo Roberto H de Oliveira A Bioeacutetica nas praacuteticas de sauacutede Revista Juriacutedica da FIC-UNAES Campo Grande Ano 1 n 2 p 98 nov 1998 abr 1999

19 Sobre o tema consta da Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten que Cada um tem o direito aos melhores cuidados

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O postulado da autonomia tem forte base teoacuterica John Stuart Mill por exemplo jaacute tinha afirmado que sobre si mesmo sobre seu corpo e sua mente o indiviacuteduo eacute soberano20 Emile Durkheim entendia a autonomia como a interiorizaccedilatildeo das normas21 Por sua vez Jean Piaget estudou a autonomia como a capacidade de coordenaccedilatildeo de diferentes perspectivas sociais com o pressuposto do respeito reciacuteproco22

Poreacutem talvez a autonomia tenha tido na teoria kantiana o seu mais importante manancial A doutrina do filoacutesofo prussiano ultrapassou geraccedilotildees atingindo contornos cosmopolitas e atemporais Suas obras satildeo analisadas sob diferentes prismas idiomas e culturas sendo largamente estudado e recepcionado pela Bioeacutetica A autonomia em obra originalmente publicada em 1785 eacute para o filoacutesofo o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racionar23 E assim o pressuposto para a racionalidade da conduta bem como um princiacutepio supremo da moralidade vez que implica simultaneamente na vontade da norma universal (imperativo categoacuterico) e no respeito agrave dignidade da pessoa humana Registrou Kant na mesma obra que I autonomia da vontade eacute aquela sua propriedade graccedilas agrave qual ela eacute para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer) O princiacutepio da autonomia eacute portanto natildeo escolher senatildeo de modo a que as maacuteximas da escolha estejam incluiacutedas simultaneamente no querer mesmo como lei universal 24

Foi natural assim que a Bioeacutetica adotasse como fundamento o princiacutepio da autonomia2

O Relatoacuterio Belmont propocircs que a autonomia incorpora pelo menos duas convicccedilotildees eacuteticas a primeira que os indiviacuteduos devem ser tratados como agentes

meacutedicos possiacuteveis O doente e o meacutedico devem decidir juntos o domiacutenio do tratamento O doente deveraacute exprimir o seu consentimento livre apoacutes ter sido informado de maneira adequada Vale conferir a doutrina de COHEN Claacuteudio MARCOLINO Joseacute Aacutelvaro Marques Relaccedilatildeo Meacutedico-Paciente Autonomia amp Paternalismo In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo 1999 p 83-94

20 MILL John Stuart On Liberty Boston Collier 1909 p 5 21 Cf SEGRE Marco SILVA F L SCHRAMM F R O contexto histoacuterico semacircntico e filosoacutefico do

principio de autonomia Disponiacutevel em lthttpvwwvportaldomedicoorgbrrevistabiol v6conthistoricohtmgt Acessado em 04 maio 2006 Vide tambeacutem Joseacute Roberto Goldim Princiacutepio do respeito agrave pessoa ou da autonomia Disponiacutevel em lthttpwwwbioeticaufrgsbrautonomihtmgt Acessado cm 23 maio 2006

22 Cf KESSELRING T Jean Piaget Petroacutepolis Vozes 1993 p 173-189 23 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 1992 p 79 24 Id Ibid p 85 25 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO de 2005 agasalha o princiacutepio

da autonomia Seu art 5 por exemplo estatui que Deve ser respeitada a autonomia dos indiviacuteduos para tomar decisotildees quando possam ser responsaacuteveis por essas decisotildees e respeitem a autonomia dos demais Devem ser tomadas medidas especiais para proteger direitos e interesses dos indiviacuteduos natildeo capazes de exercer autonomia

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autocircnomos e a segunda que as pessoas com autonomia diminuiacuteda devem ser protegidas Desta forma divide-se em duas exigecircncias morais separadas a exigecircncia do reconhecimento da autonomia e a exigecircncia de proteger aqueles com autonomia reduzida Esta uacuteltima exigecircncia vincula-se agrave questatildeo da vulnerabilidade que pode ser observada em certas pessoas ou grupos e que seraacute mais adiante abordada

Por sua vez o principio da beneficecircncia de acordo com Clotet e Kipper deve ser entendido como uma dupla obrigaccedilatildeo primeiramente a de natildeo-causar danos e em segundo lugar a de maximizar o nuacutemero de possiacuteveis benefiacutecios e minimizar os prejuiacutezos26

Tambeacutem este postulado mereceu larga abordagem doutrinaacuteria muitas vezes em contraponto ao princiacutepio da natildeo-maleficecircncia que perfunctoriamente impotildee a obrigaccedilatildeo de natildeo-causar intencionalmente danos a outrem

Tal preceito deita raiacutezes no discurso hipocraacutetico na expressatildeo primum non nocere Mas tambeacutem eacute possiacutevel vinculaacute-lo aacute teoria kantiana jaacute que o imperativo categoacuterico conforme o qual Age segundo maacuteximas que possam simultaneamente ter-se a si mesmas por objecto como leis universais da natureza exige uma vontade absolutamente boa ou seja afasta qualquer possibilidade de agir que natildeo seja em benefiacutecio do outro27

Jaacute em 1930 Sir David Ross estabeleceu o conceito de dever prima facie propondo que no caso de eventual conflito entre beneficecircncia e natildeo-maleficecircncia prevaleccedila esta uacuteltima28

Frankena em 1963 escreveu que o princiacutepio da beneficecircncia natildeo nos ensina como fazer a distribuiccedilatildeo do bem e do mal apenas determina que promovamos o primeiro e evitemos o segundo2 Observa-se assim que a natildeo-maleficecircncia eacute entendida como parte da beneficecircncia

O Relatoacuterio Belmont foi influenciado pelo pensamento de Frankena jaacute que tratou a natildeo-maleficecircncia como um desdobramento natural da beneficecircncia ao estabelecer duas regras gerais que devem ser formuladas como complementares das

26 CLOTET amp KIPPER Princiacutepios da beneficecircncia e natildeo-maleficecircncia In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 45

27 Id Ibidp 80-81 28 ROSS W D The right and lhe Good Oxford Clarendon 1930 p 21-22 apud GOLDIM Joseacute Roberto

Principio da Beneficecircncia Disponiacutevel em lthttpwwwbioeticaufrgsbrbenefichtmgt Acessado em 23 maio de 2006

29 Quando se manifestam exigecircncias conflitantes o mais que ele pode fazer eacute aconselhar-nos a conseguir a maior porccedilatildeo possiacutevel de bem em relaccedilatildeo ao mal Cf FRANKENA W K Eacutetica Rio de Janeiro Zahar 1981 p 61-73 apud GOLDIM Joseacute Roberto op cit

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accedilotildees beneacuteficas a) natildeo-causar o mal e b) maximizar os benefiacutecios e minimizar os danos

A seu turno o princiacutepio da justiccedila pode ser resumido no dever de imparcialidade na distribuiccedilatildeo dos riscos e benefiacutecios inerentes agrave pesquisa bem como no tratamento igualitaacuterio aos iguais30 embora naturalmente haja dificuldades na determinaccedilatildeo de quem eacute ou-natildeo igual31 Implica ainda necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa

Segundo o Relatoacuterio Belmont haveraacute injusticcedila quando eacute imposto um dano ou encargo indevidamente ou quando um benefiacutecio eacute negado a algueacutem de maneira injustificada Aleacutem disso reconhece dificuldades na determinaccedilatildeo de um criteacuterio para a distribuiccedilatildeo dos benefiacutecios havendo vaacuterias possibilidades a cada um igualmente a cada um na medida da sua necessidade a cada um conforme seu esforccedilo individual a cada um de acordo com seu meacuterito2

Alguns autores defendem que a importacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica deve ser minorada postulando por uma reflexatildeo mais autocircnoma Nos parece que esse eacute

30 Eacute o princiacutepio da justiccedila que obriga a garantir a distribuiccedilatildeo justa equumlitativa e universal dos benefiacutecios dos serviccedilos de sauacutede Impotildee que todas as pessoas sejam tratadas de igual maneira natildeo obstante suas diferenccedilas Cf SANTOS Celeste Cordeiro dos O equiliacutebrio do pecircndulo a Bioeacutetica e a lei implicaccedilotildees meacutedico-legais Satildeo Paulo iacutecone 1998 p 45

31 O princiacutepio da igualdade tem suscitado importantes debates filosoacuteficos na Histoacuteria da humanidade dando ensejo a interpretaccedilotildees as mais variadas Aristoacuteteles vinculou a igualdade agrave justiccedila que pode ser comutativa ou distributiva (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos Satildeo Paulo Editora Nova Cultural 1996) Haacute ainda os autores nominalistas que entendem que a desigualdade eacute universal e portanto a igualdade natildeo passa de um nome Jaacute LOCKE John Ensaio sobre o governo civil Traduccedilatildeo Carmo Nunes Porto Seacuteculo XX 1986 e Montcsquieu Charles Secondat de O espirito das leis Satildeo Paulo Martins Fontes 1993 ao contraacuterio entendiam que a igualdade entre as pessoas era absoluta pertencendo assim ao grupo denominado de idealistas ROSSEAU Jean-Jacques Discurso sobre a origem das desigualdades entre os homens Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 de sua parte embora tambeacutem pertenccedila a essa uacuteltima vertente admitia a existecircncia de dois tipos de desigualdades a natural (ou fiacutesica) e a moral (ou poliacutetica) Vale entretanto trazer a lume as percucicntes anotaccedilotildees de Leila Pinheiro Bellintani sobre o tema Atraveacutes da anaacutelise histoacuterica do princiacutepio da igualdade [] percebe-se claramente que este preceito passou por intensa evoluccedilatildeo tendo sua conceituaccedilatildeo moldado-se atraveacutes dos tempos agraves novas necessidades sociais Apesar do constante aprimoramento do conceito dos ideais isonocircmicos natildeo se pode dizer que as concepccedilotildees anteriores foram ultrapassadas mas sim que houve uma agregaccedilatildeo de significados no decorrer da histoacuteria fazendo do principio da igualdade o preceito complexo que ora se apresenta Assim os estaacutegios evolutivos natildeo se deram de forma isolada ou independente Ao reveacutes se acumularam como telhas sobrepostas ampliando sempre o leque de acepccedilotildees a serem salvaguardadas ocorrendo o que se pode denominar de sobreposiccedilatildeo de significados Predomina portanto a ideacuteia de cumulaccedilatildeo e natildeo de alternacircncia entre eles Pode-se dizer portanto que hodiernamente o princiacutepio da igualdade possui diversas faces que se integram e que devem ser constantemente observadas pelos aplicadores das leis legisladores e pela proacutepria comunidade BELLINTANI Leila Pinheiro Accedilatildeo Afirmativa e os Princiacutepios do Direito Rio de Janeiro Lumen Juacuteris 2006 p 19-20

32 Impossiacutevel deixar de fazer menccedilatildeo aqui agrave noccedilatildeo de justiccedila distributiva de Aristoacuteteles que tem como base uma igualdade geomeacutetrica e consiste em dar a cada um o que lhe eacute devido mas considerando a excelecircncia que cada um possui o seu valor (areteacute) para a polis () porque aquilo que eacute distribuiacutedo agraves pessoas deve secirc-lo de acordo com o meacuterito de cada uma Op cit p 198

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um falso dilema jaacute que princiacutepios natildeo devem ser aplicados como regras e portanto natildeo representam uma camisa-de-forccedila para a Bioeacutetica Embora os objetivos deste trabalho natildeo nos permitam aprofundar a discussatildeo em torno da sua origem e aplicabilidade celeuma muito comum na ciecircncia juriacutedica natildeo seraacute despiciendo relembrar ao menos que haacute uma distinccedilatildeo juriacutedica entre princiacutepios e regras e que enquanto estas uacuteltimas satildeo aplicadas a partir da oacutetica do ali or nothing excluindo-se mutuamente os primeiros convivem entre si natildeo se excluem e representam motivos para decidir em determinado sentido

Portanto podemos afirmar que os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica pluralista aberta e receptiva Aleacutem disso pragmaticamente a aplicaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo dos princiacutepios em cada caso concreto eacute poderoso instrumento para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

Por tudo isso parece descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos debates bioeacuteticos Tanto assim eacute que a tendecircncia moderna eacute no sentido do reconhecimento de princiacutepios universais da Bioeacutetica Importante anotar por exemplo que o uacuteltimo documento internacional acerca do tema a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO datada de 2005 eacute fortemente principioloacutegica e dentre outros aspectos deliberou ser necessaacuterio e oportuno que a comunidade internacional declare princiacutepios universais que proporcionaratildeo uma base para a resposta da humanidade aos sempre crescentes dilemas e controveacutersias que a ciecircncia e a tecnologia apresentam agrave raccedila humana e ao meio ambiente

Deve-se lembrar finalmente que a abordagem dos princiacutepios da Bioeacutetica em separado tem uma justificativa puramente didaacutetica jaacute que eles natildeo podem ser cindidos na sua conceituaccedilatildeo e muito menos na sua aplicaccedilatildeo praacutetica34

4 Experimentaccedilatildeo em seres humanos aspectos da normatizaccedilatildeo nacional e internacional

Sobre princiacutepios a literatura juriacutedica eacute vasta Vide vg ALEXY Robert Teoria de tos Derechos Fundamentales Madrid Centro de Estuacutedios Constitucionales 1997 p 81-172 DWORKFN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1997 AacuteVILA Humberto Teoria dos Princiacutepios da definiccedilatildeo agrave aplicaccedilatildeo dos princiacutepios juriacutedicos 2 ed Satildeo Paulo Malheiros Editores 2003 ROTHEMBURG Waller Claudius Princiacutepios Constitucionais Porto Alegre Seacutergio Antonio Fabris 1999

4 Nesse sentido GUIMARAtildeES Maria Carolina S Eacutetica biomeacutedica e pesquisa em grupos humanos Revista Meacutedica de Minas Gerais v 3 n 1 p 52-53 janmar 1993 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO destina o seu art 26 agrave inter-relaccedilatildeo e complementaridade dos princiacutepios dispondo que A presente Declaraccedilatildeo deve ser considerada em sua totalidade e seus princiacutepios devem ser compreendidos como complementares e inter-relacionados Cada princiacutepio deve ser interpretado no contexto dos demais de forma pertinente e adequada a cada circunstacircncia

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No seacuteculo XVI Galileu passou a buscar a verdade atraveacutes da experimentaccedilatildeo e da observaccedilatildeo das coisas desvinculando-se da verdade dos escolaacutesticos ou da Igreja Esse eacute considerado o marco de referecircncia das origens da ciecircncia experimental a qual terminou por proporcionar a Revoluccedilatildeo Cientiacutefica nos seacuteculos seguintes35 Esta uacuteltima abriu as portas para uma nova era na humanidade multiplicando o conhecimento e as descobertas gerando tecnologia A tecnologia passou a imprimir uma velocidade cada vez maior nas transformaccedilotildees cientiacuteficas e sociais A velocidade com que as mudanccedilas ocorrem por sua vez municia o Homem com novas perspectivas e instrumentos sempre mais apurados de investigaccedilatildeo o que implica em mais tecnologia36 Investigaccedilatildeo pesquisa conhecimento mudanccedilas tecnologia velocidade formam uma espeacutecie de ciacuterculo virtuoso - natildeo-vicioso31 e satildeo palavras indissociaacuteveis da realidade nos uacuteltimos tempos a partir do seacuteculo XX no qual testemunhamos pelo menos duas espantosas revoluccedilotildees a atocircmica e a molecular38

Todo esse acervo mudou por completo as sociedades e o pensamento humano e natildeo se trata de um processo jaacute findo Pelo contraacuterio muito ainda estaacute por vir Natildeo se sabe aliaacutes se o Homem encontraraacute fronteiras tecnologicamente intransponiacuteveis Essa perspectiva de escassez de barreiras teacutecnicas conduz ao debate sobre a necessidade

35 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 edbdquo rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179

36 Por exemplo vale lembrar o ocorrido durante o desenrolar dos estudos do projeto genoma humano Segundo Jordan (1993) o verdadeiro objetivo inicial do PGH natildeo era o sequumlenciamento muito complexo caro e trabalhoso mas um mapeamento detalhado do genoma humano No decorrer do processo os progressos tecnoloacutegicos foram tatildeo grandes que propiciaram o sequumlenciamento mesmo antes do prazo previsto Cf GOLDIM Joseacute Roberto MATTE Uacutersulla Projeto Genoma Humano - HUGO Disponiacutevel em lthttpwwwufrgsbrbioeticagenomahtmgt Acessado em 28 maio de 2006

37 Natildeo se desconhece entretanto que o ser humano eacute capaz visando objetivos condenaacuteveis natildeo apenas de bloquear pesquisas mas tambeacutem de manipulaacute-las ou de realizaacute-las de forma direcionada propositadamente sem a observacircncia de criteacuterios cientiacuteficos Todavia antes de examinar a transmissatildeo de conhecimentos eacute necessaacuterio acenar para a sua fonte primaacuteria a pesquisa cientiacutefica Tambeacutem aiacute natildeo faltam aacutereas de conflito Foram sobretudo analisadas as frequumlentes ameaccedilas ao conhecimento e agrave informaccedilatildeo cientiacutefica provenientes de decisotildees poliacuteticas ou da proteccedilatildeo de interesses particulares Dentre as decisotildees poliacuteticas a diretora do Instituto Nacional da Seguranccedila e da Sauacutede Ocupacional (NIOSH) dos EUA Linda Rosenstock recordou aquelas assumidas pelo Congresso nos uacuteltimos anos dentro de um quadro de reduccedilatildeo de muitos programas para a proteccedilatildeo aos trabalhadores com a finalidade de bloquear a utilizaccedilatildeo de pesquisas no campo das artropatias do trabalho e de estudos sobre a relaccedilatildeo entre a motorizaccedilatildeo e os tumores e tambeacutem encobrir o fato de duas organizaccedilotildees internacionais designadas para a proteccedilatildeo agrave sauacutede a Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e a Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho estatildeo sob a acusaccedilatildeo de ter manipulado os relatoacuterios teacutecnicos relativos agrave induacutestria do asbesto Dentre os interesses particulares prcvalcccm aqueles das induacutestrias que encomendam pesquisas com a finalidade de demonstrar a inexistecircncia de efeitos nocivos (o exemplo mais macroscoacutepico concerne ao tabaco) ou entatildeo aumentar as incertezas para evitar fazer o que eacute necessaacuterio com base em conhecimentos jaacute comprovados ou mesmo sugerir procedimentos que alongam indefinidamente os periacuteodos de intervenccedilatildeo Cf BERLINGUER Giovanni Bioeacutetica Cotidiana Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2004 p 147-148

38 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia op cit p 159-179

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de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees tendo em conta que a teoria de haacute muito jaacute advertiu1 e a experiecircncia jaacute nos ensinou como adiante se veraacute que a ausecircncia de limites pode levar ao abuso

Embora isso possa ocorrer em vaacuterios campos como vg a economia e a poliacutetica sem duacutevida a aacuterea biomeacutedica eacute uma das que mais merecem nossa atenccedilatildeo natildeo soacute porque estaacute entre as mais influenciadas por essas transformaccedilotildees mas tambeacutem porque eacute uma das que mais tem potencial de desenvolvimento aleacutem do fato oacutebvio de estar diretamente ligada agrave vida humana Exatamente por isso cresce a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave vida especialmente a Medicina40

O acreacutescimo jaacute obtido na expectativa de vida do Homem que praticamente dobrou nos uacuteltimos dois seacuteculos decorrente de vaacuterios fatores dentre os quais uma verdadeira revoluccedilatildeo terapecircutica41 natildeo eacute suficiente As pessoas querem viver ainda mais e com melhor qualidade Por isso cobram mais avanccedilos tecnoloacutegicos nessa aacuterea despertando interesses diversos que vatildeo dos humanitaacuterios aos puramente comerciais e econocircmicos Chega-se a se falar ateacute mesmo em um direito agrave pesquisa que deve figurar entre as liberdades fundamentais unanimemente reconhecidas42

Para que esses desejos se tornem viaacuteveis eacute preciso conhecer cada vez mais profundamente a complexa maacutequina que eacute o corpo humano desenvolver novos faacutermacos medicamentos vacinas e terapias para combater doenccedilas descobrir a fonte da juventude atraveacutes de meacutetodos de desaceleraccedilatildeo - ou quiccedilaacute interrupccedilatildeo - da degeneraccedilatildeo celular dentre outras possibilidades e desafios

Por exemplo eacute conhecida nos meios juriacutedicos a passagem que adverte () mas trata-se de uma experiecircncia eterna que todo homem que possui poder eacute levado a dele abusar ele vai ateacute onde encontra limites Quem diria Ateacute a virtude precisa de limites MONTESQUIEU Charles de Secondat op cit p 170

40 Natildeo eacute agrave toa portanto que em interessante estudo sobre as exigecircncias referentes aos aspectos eacuteticos da pesquisa em revistas cientiacuteficas brasileiras se chegou agrave conclusatildeo de que As revistas de medicina e enfermagem apresentaram maior preocupaccedilatildeo com as orientaccedilotildees eacuteticas do que as revistas natildeo-meacutedicas classificadas nos grupos de miscelecircncia e odontologia sugerindo que o debate eacutetico da experimentaccedilatildeo em seres humanos estaacute mais difundido nas aacutereas meacutedica e de enfermagem do que em outras aacutereas da sauacutede Tal no entanto natildeo representa necessariamente um dado a ser festejado pois o resultado global comprovou que 791 das revistas cientiacuteficas estudadas natildeo fazem qualquer referecircncia aos aspectos eacuteticos Cf T SARDENBERG S S MUumlLLER H R PEREIRA R A DE OLIVEIRA W S HOSSNE Anaacutelise dos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos contidos nas Instruccedilotildees aos Autores de 139 rev istas cientiacuteficas brasileiras Revista da Associaccedilatildeo Meacutedica do Brasil v 45 n 4 p 295-302 1999

41 Sobre a chamada revoluccedilatildeo terapecircutica vide dentre outros BERNARD Jean La Bioeacutethique Paris Dominos Flammarion 1994 p 14-33

42 Conforme LAFON Claudc De la Biologie agrave Ia Bioeacutethique Paris Ellipses 2006 p 30

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A concretizaccedilatildeo desses objetivos depende de inuacutemeros fatores ligados agrave pesquisa cientiacutefica43 dentre os quais um que eacute o ponto central deste trabalho a experimentaccedilatildeo em seres humanos De fato o progresso do nosso conhecimento no passado e no futuro estaacute intimamente ligado agrave necessidade de observaccedilatildeo do funcionamento e da reaccedilatildeo do corpo e da mente humanas44

Em outras palavras eacute preciso tomar o ser humano como sujeito de pesquisa45

Esse fato bom que se diga natildeo eacute exatamente novo tem ocorrido no correr dos tempos suscitando questotildees eacuteticas de suma relevacircncia pois nem sempre as pessoas estudadas tiveram o trato adequado

A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda Guerra mormente as realizadas pelos japoneses e nazistas alematildees tais como a infestaccedilatildeo de prisioneiros com doenccedilas para testar vacinas e a esterilizaccedilatildeo e amputaccedilatildeo de membros46 trouxeram agrave tona a questatildeo da

43 A discussatildeo a respeito das pesquisas natildeo pode se limitar agravequelas de natureza meacutedica e farmacoloacutegica onde os impactos e riscos satildeo maiores e mais perceptiacuteveis E ampla a definiccedilatildeo de pesquisas em seres humanos adotada pela Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede conforme adiante se veraacute Leonard M Martin C Ss R preleciona O documento pretende regulamentar toda pesquisa em seres humanos e natildeo apenas pesquisas puramente biomeacutedicas Nesta perspectiva pesquisas socioloacutegicas e antropoloacutegicas tambeacutem devem passar pelo crivo de Comitecircs de Eacutetica independentes e ser alvo de discussatildeo sobre sua eticidade MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

44 O efeito de um tratamento sobre o homem soacute pode ser observado no proacuteprio homem Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

45 Esse fenocircmeno ocorre em todas as aacutereas do conhecimento e natildeo apenas nas ciecircncias biomeacutedicas Na realidade quando se fala em experimentaccedilatildeo com seres humanos pensa-se quase que exclusivamente na experimentaccedilatildeo no campo da Medicina Essa vinculaccedilatildeo eacute compreensiacutevel pois a experimentaccedilatildeo na aacuterea meacutedica eacute mais visiacutevel e de efeitos mais patentes em geral Contudo eacute bom assinalar que seres humanos satildeo utilizados em experimentaccedilatildeo por profissionais e cientistas de outras aacutereas odontoacutelogos nutricionistas farmacecircuticos fisioterapeutas psicoacutelogos profissionais da aacuterea de educaccedilatildeo fiacutesica e de esporte educadores e tambeacutem economistas Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179 Leonard M Martin C Ss R com base em McNeill e Jonsen destaca que [] as experiecircncias antieacuteticas dos nazistas incluiacuteram colocar prisioneiros em cacircmaras de pressatildeo modificar a pressatildeo atmosfeacuterica e observar suas mortes estudar o impacto sobre o corpo humano de imersatildeo em aacutegua gelada por periacuteodos prolongados infectar os internos com tifo malaacuteria e outras doenccedilas para testar drogas e vacinas esterilizaccedilatildeo e castraccedilatildeo procurando meacutetodos eficazes para esterilizaccedilatildeo em massa administrar venenos para estudar os efeitos letais e estudos com gecircmeos tipo infectando um matando os dois e comparando os corpos em autoacutepsia No atinente a experiecircncias japonesas MARTIN informa que no ala de desenvolver armas bioloacutegicas [] os japoneses atacaram pelo menos onze cidades com armas bioloacutegicas e infestaram uma cidade com pulgas portadores da peste bubocircnica A Unidade 731 tambeacutem era uma prisatildeo onde os prisioneiros foram submetidos a experiecircncias desumanas Houve cirurgia experimentais pessoas foram desidratadas ateacute a morrer alguns tiveram braccedilos congelados e depois degelados usando vaacuterios meacutetodos com a consequumlecircncia de que a carne apodreceu e caiu o fiacutegado de outras pessoas foi exposto por longos

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eacutetica na pesquisa evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana47 e de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa em seres humanos48

Como resposta agraves atrocidades praticadas na Segunda Guerra foi instituiacutedo em 1947 no acircmbito internacional pelo Tribunal de Nuremberg que julgou vinte e trecircs criminosos de guerra nazistas dos quais vinte meacutedicos ligados agrave experimentaccedilatildeo em pessoas49 o denominado Coacutedigo de Nuremberg o qual estabeleceu as diretrizes gerais para pesquisa em seres humanos A doutrina destaca como principais conquistas do coacutedigo o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa em retirar-se do experimento e de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias deste bem como a necessidade de estudos preacutevios sobre a importacircncia da pesquisa e os seus riscos aleacutem da comprovaccedilatildeo da capacidade dos pesquisadores50

Um ano depois a humanidade assiste agrave proclamaccedilatildeo agora pela Assembleacuteia Geral das Naccedilotildees Unidas de um outro documento de suma importacircncia a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos que embora de caraacuteter geral alberga

periacuteodos ao raio-X houve casos do sangue da pessoa ser substituiacutedo por sangue de cavalo e quando as cobaias humanas natildeo serviam mais para as experiecircncias foram executadas O autor ainda ressalta que diferentemente dos alematildees que foram condenados alguns inclusive enforcados os americanos resolveram poupar os japoneses permitindo que continuassem suas carreiras MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

4 Haacute quem afirme - sem razatildeo ao nosso ver - que a dignidade eacute um conceito inuacutetil um mero slogan e que natildeo significaria mais do que o respeito pelas pessoas e por sua autonomia Nesse sentido vide vg MACKLIN Ruth Dignity is a useless concept Brilish Medica Journal v 327 p 20-27 dez 2003 Disponiacutevel em lthttpbmjbmjjournalscomcgicontentfull3277429l419gt Aacessado em 27 maio de 2006 Em sentido inverso sobre as relaccedilotildees entre a Bioeacutetica e a dignidade vide dentre outros ADORNO Roberto La bioegravetique et la dignitegrave de Ia persone Paris Presses Universitaires de France 1997 Os documentos internacionais mencionam o elo entre Bioeacutetica e dignidade A jaacute mencionada Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten por exemplo afirma textualmente que A pesquisa e experiecircncia com seres humanos devem ser realizadas harmonizando a liberdade da ciecircncia e o respeito da dignidade humana

48 A experimentaccedilatildeo em seres humanos causa impacto porque as pessoas temem o abuso Os abusos jaacute ocorreram estatildeo ocorrendo c ainda ocorreratildeo mas proibir o uso natildeo eacute a melhor maneira de impedir o abuso Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

49 Estima-se que centenas de meacutedicos atuaram nos campos de concentraccedilatildeo dos quais pelo menos setenta teriam participado de experimentos com seres humanos A maioria dos meacutedicos de maior expressatildeo conseguiram escapar do julgamento como foi o caso de Josef Mengele principal meacutedico do campo de extermiacutenio de Auschwitz que fugiu e chegou a viver 14 anos no Brasil onde morreu afogado em Bertioga em 1979 O julgamento levou oito meses As sentenccedilas e o Coacutedigo de Nuremberg foram anunciados conjuntamente em 19 de agosto de 1947 Sete acusados foram condenados agrave morte Cf CREMESP Diretrizes e Declaraccedilotildees Disponiacutevel em lthttpvwvbiocticaorgbrlegislacaooutras_diretrizesintegraphpgt Acessado em 30 maio 2006 Discute-se hoje a validade cientiacutefica dos experimentos realizados bem como se eacute eacutetico utilizar os resultados obtidos Nesse sentido vide mateacuteria intitulada Doutores da agonia publicada na revista Superinteressante ed 225 abr2006 p 52-61

50 Cf FREITAS Corina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 195

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direitos que natildeo podem ser olvidados quando da experimentaccedilatildeo com seres humanos a exemplo da dignidade da igualdade e da liberdade Aleacutem disso haacute diversas ligaccedilotildees entre a Declaraccedilatildeo e os princiacutepios da Bioeacutetica51

Assim como a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos o Coacutedigo de Nuremberg proclama criteacuterios princiacutepios miacutenimos e irredutiacuteveis para eticidade da pesquisa em seres humanos Ambas as declaraccedilotildees embora de grande importacircncia para a Bioeacutetica satildeo normalmente entendidas como desprovidas de instrumentos adequados de obrigatoriedade52 e de mecanismos sancionatoacuterios de modo que sua infraccedilatildeo na maioria dos casos tem gerado apenas sanccedilotildees morais

Natildeo-obstante o estabelecido no Coacutedigo de Nuremberg - e na Declaraccedilatildeo Universal - as violaccedilotildees continuaram a ocorrer inclusive nos paiacuteses signataacuterios De fato por exemplo nos Estados Unidos teve continuidade como se nada houvesse acontecido a famosa pesquisa sobre siacutefilis em Tuskegee no condado de Macon Alabama financiada com recursos federais onde especialmente negros e pobres acreditavam que estavam se submetendo a um tratamento especial gratuito quando na verdade nada recebiam embora jaacute houvesse medicamentos disponiacuteveis servindo como verdadeiras cobaias entre 1932 e 1973 para que os pesquisadores pudessem acompanhar o desenvolvimento da doenccedila1 Ainda exemplificativamente foi iniciado em 1946 o chamado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm um dos mais famosos e importantes estudos de odontologia jaacute realizados no qual mais de 436 deficientes mentais crocircnicos internos da cidade de Lund no sul da Sueacutecia que natildeo tinham sequer a menor consciecircncia do que ocorria foram submetidos ateacute 1951 a uma dieta especial rica em accediluacutecar para provar que esta substacircncia provocava caacuteries sem que lhes fosse dado qualquer tratamento54

Por exemplo ao afirmar no seu art 1deg que todas pessoas satildeo dotadas de razatildeo e consciecircncia o documento da ONU reforccedila a ideacuteia de autonomia

52 Em relaccedilatildeo agrave Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Faacutebio Konder Comparato afirma que embora seja tecnicamente apenas uma recomendaccedilatildeo da ONU a seus membros os direitos ali definidos correspondem integralmente ao que o costume e os princiacutepios juriacutedicos internacionais reconhecem hoje como normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens) como a proacutepria Corte Internacional de Justiccedila tem entendido COMPARATO Faacutebio Konder A afirmaccedilatildeo histoacuterica dos Direitos Humanos 4 ed rev e atual Satildeo Paulo Saraiva 2005 p 223-224

53 Vide vg a respeito REVERBY S M More than Fact and Fiction Cultural Memory and the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 31 p 22-28 2001 BRANDT A M Racism and Research The Case of the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 8 p 21-29 1978 BEECHER H K Ethics and Clinicai Research New England Journal of Medicine n 274 p 1354-1360 1966

54 Cf SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas clinicas sobre seus direitos 2005 p 55-61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

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Os avanccedilos tecnoloacutegicos cada vez mais raacutepidos reverberaram nas questotildees eacuteticas forccedilando novas e perioacutedicas revisotildees Necessaacuterio se fez portanto a rediscussatildeo do tema e o aprimoramento do sistema normativo Assim sobreveio a Declaraccedilatildeo de Helsinque elaborada pela Associaccedilatildeo Meacutedica Mundial em 1964 texto que foi revisto e ampliado em 1975 (Toacutequio)55 1983 (Veneza) 1989 (Hong Kong) 1996 (Somerset) e 2000 (Edimburgo) com o que foram incorporadas vaacuterias inovaccedilotildees Por exemplo a disposiccedilatildeo no sentido de que No final do estudo todos os pacientes participantes devem ter assegurado o acesso aos melhores meacutetodos comprovados profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos identificados pelo estudo E no atinente ao uso de placebo que Os benefiacutecios riscos dificuldades e efetividade de um novo meacutetodo devem ser testados comparando-os com os melhores meacutetodos profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos atuais Isto natildeo exclui o uso de placebo ou nenhum tratamento em estudo onde existam meacutetodos provados de profiacutelaxia diagnoacutestico e tratamento 56 Foi tambeacutem reforccedilada a recomendaccedilatildeo do Coacutedigo de Nuremberg sobre a necessidade de submissatildeo do protocolo de pesquisa agrave anaacutelise por um Comitecirc de Eacutetica independente do pesquisador

Outros textos e documentos que tratam da pesquisa merecem referecircncia como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos de 196657 o intitulado Diretrizes Internacionais para a pesquisa biomeacutedica em seres humanos elaborado conjuntamente pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e pelo Council for International Organizations of Medicai Sciences (1993) a Declaraccedilatildeo de Manila (1981) a Declaraccedilatildeo de Princiacutepios Eacuteticos dos Meacutedicos do Mercosul (1996) a Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten (2000) e a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da Unesco (2005)

Em que pese o entendimento de que haacute carecircncia de instrumentos imperativos que garantam a exigibilidade dos referidos documentos sem duacutevida eles

A respeito Leo Pessini e Christian de Paul Barehifontaine ensinam que Tal modificaccedilatildeo fieou conhecida como Helsinque II Entre outros pontos importantes foram incluiacutedos nesta revisatildeo os seguintes aspectos I) Exigecircncia de que o protocolo experimental seja aprovado por uma comissatildeo independente para efeito de apreciaccedilatildeo comentaacuterios e orientaccedilatildeo (item I 2) 2) Que os seres humanos natildeo sejam utilizados em pesquisas a menos que o consentimento consciente do paciente dado livremente tenha sido obtido depois do mesmo ter sido adequadamente informado sobre os objetivos meacutetodos benefiacutecios esperados riscos potenciais e inconvenientes da experimentaccedilatildeo e que ele tenha liberdade de se abster e de cancelar sua participaccedilatildeo a qualquer momento (art I 9) 3) Que o protocolo contenha embasamento eacutetico da pesquisa e a referecircncia de que foram obedecidos os princiacutepios da Declaraccedilatildeo de Helsinque (item I 12) 4) Que os interesses da ciecircncia e da sociedade jamais tenham precedecircncia sobre o bem-estar do indiviacuteduo (item III 4) PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Problemas aluais de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1994 p 131

56 GRECO Dirceu B Poder e injusticcedila na pesquisa envolvendo seres humanos In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 264

57 De acordo com o seu art 7o Ningueacutem poderaacute ser submetido a tortura nem a penas ou tratamentos crueacuteis desumanos ou degradantes Seraacute proibido sobretudo submeter uma pessoa sem seu livre consentimento a experiecircncias meacutedicas ou cientiacuteficas

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contribuiacuteram e contribuem significativamente na proteccedilatildeo ao ser humano objeto de pesquisa pois influenciaram a elaboraccedilatildeo de diretrizes vinculantes no plano individual de cada Estado a exemplo do Brasil como a seguir veremos Por outro lado importante anotar que uma harmonia consensual e global no atinente agrave pesquisa parece impossiacutevel tendo em conta que a cultura os objetivos e as condiccedilotildees cientiacuteficas dos diversos paiacuteses satildeo naturalmente diversificados58 Aliaacutes haacute quem chegue a afirmar que o pluralismo eacutetico em vigor nos dias de hoje natildeo nos permite mais falar em moral universal59

No Brasil a normatizaccedilatildeo se daacute principalmente atraveacutes de resoluccedilotildees do Conselho Federal de Medicina60 e do Conselho Nacional de Sauacutede Aliaacutes a primeira resoluccedilatildeo deste uacuteltimo oacutergatildeo - Resoluccedilatildeo n 01 de 13 de junho de 1988 - tratou justamente de normas de pesquisa em sauacutede tendo dedicado o seu Capiacutetulo II arts 4o a 16 aos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos Esse diploma legal foi posteriormente revogado pela Resoluccedilatildeo n 196 de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Sauacutede que eacute atualmente a base regulamentar da pesquisa no Brasil tratando das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos Esta Resoluccedilatildeo eacute na verdade uma revisatildeo da anterior tendo sido precedida de diaacutelogo entre governo e sociedade civil61

A Resoluccedilatildeo atual afirma jaacute em seu preacircmbulo a sua fundamentaccedilatildeo nos principais documentos internacionais que emanaram declaraccedilotildees e diretrizes sobre

58 Nesse contexto por tanto deve ser considerada a questatildeo do multicuturalismo Como bem ensinam Joseacute A Mainetti Joseacute L Mainettil Existen dificultades en la aplicacioacuten de los principos elaborados por los paiacuteses centrales y es una evidencia por ejemplo que resulta inapropiada la visioacuten estrccha de la autonomia y la aplicacioacuten riacutegida dei requisito dei consentimento informado al modo norteamericano en determinadas circunstancias y comunidades Es preciso entoces reconocer Ias diferenccedilas culturales y en base a eacutestas aplicar los princiacutepios sin renunciar a cllos en formas maacutes adecuadas al ethos particular MAINETTI Joseacute A MAINETTI Joseacute L Bioeacutetica y la experimentacioacuten humana In SOROKIN Patriacutecia (Coord) Bioeacutelica entre utopias y desarraigos Buenos Aires Ad-Hoc Villela 2002 p 190

59 Cf ENGELHARDT JUacuteNIOR Tristam apuei BAUZON Steacutephane La personne biojuridique Paris Press Universitaires de France 2006 p 63

60 Vide como exemplo a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro o qual no seu Capiacutetulo XII trata especificamente da pesquisa meacutedica

61 Cf FREITAS Corina Bontempo Duca de Eacutetica na pesquisa com seres humanos A experiecircncia brasileira In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutelica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 307

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pesquisas que envolvem seres humanos62 e que visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito agrave comunidade cientiacutefica aos sujeitos da pesquisa e ao Estado

Aleacutem disso vinculou a experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da principiologia da Bioeacutetica seja no preacircmbulo onde afirma que incorpora sob a oacutetica do indiviacuteduo e das coletividades os quatro referenciais baacutesicos da Bioeacutetica autonomia natildeo-maleficecircncia beneficecircncia e justiccedila entre outros seja no seu item III 1 que versa sobre a eticidade na pesquisa63

Entre as suas disposiccedilotildees encontramos definiccedilotildees de diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica pesquisa64 pesquisa envolvendo seres humanos65

protocolo de pesquisa66 pesquisador responsaacutevel67 instituiccedilatildeo de pesquisa68 promotor69

patrocinador70 risco da pesquisa71 dano associado ou decorrente da pesquisa72 sujeito da

62 Cila a Resoluccedilatildeo os seguintes documentos o Coacutedigo de Nuremberg (1947) a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem (1948) a Declaraccedilatildeo de Helsinque (1964 e suas versotildees posteriores de 1975 1983 e 1989) o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Poliacuteticos (ONU 1966 aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1992) as Propostas de Diretrizes Eacuteticas Internacionais para Pesquisas Biomeacutedicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMSOMS 1982 e 1993) e as Diretrizes Internacionais para Revisatildeo Eacutetica de Estudos Epidemioloacutegicos (C10MS 1991) III1 - A eticidade da pesquisa implica em a) consentimento livre e esclarecido dos indiviacuteduos-alvo e a proteccedilatildeo a grupos vulneraacuteveis e aos legalmente incapazes (autonomia) Neste sentido a pesquisa envolvendo seres humanos deveraacute sempre trataacute-los em sua dignidade respeitaacute-los em sua autonomia e defendecirc-los em sua vulnerabilidade b) ponderaccedilatildeo entre riscos e benefiacutecios tanto atuais como potenciais individuais ou coletivos (beneficecircncia) comprometendo-se com o maacuteximo de benefiacutecios e o miacutenimo de danos e riscos c) garantia de que danos previsiacuteveis seratildeo evitados (natildeo maleficecircncia)- d) relevacircncia social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimizaccedilatildeo do ocircnus para os sujeitos vulneraacuteveis o que garante a igual consideraccedilatildeo dos interesses envolvidos natildeo perdendo o sentido de sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria (justiccedila e equumlidade) (negritos originais)

64 111 Pesquisa classe de atividades cujo objetivo eacute desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizaacutevel O conhecimento generalizaacutevel consiste em teorias relaccedilotildees ou princiacutepios ou no acuacutemulo de informaccedilotildees sobre as quais estatildeo baseados que possam ser corroborados por meacutetodos cientiacuteficos aceitos de observaccedilatildeo e infercncia

65 112 Pesquisa envolvendo seres humanos pesquisa que individual ou coletivamente envolva o ser humano de forma direta ou indireta em sua totalidade ou partes dele incluindo o manejo de informaccedilotildees ou materiais

66 II3 Protocolo de Pesquisa Documento contemplando a descriccedilatildeo da pesquisa em seus aspectos fundamentais informaccedilotildees relativas ao sujeito da pesquisa agrave qualificaccedilatildeo dos pesquisadores e a todas as instacircncias responsaacuteveis

67 II-4 Pesquisador responsaacutevel pessoa responsaacutevel pela coordenaccedilatildeo e realizaccedilatildeo da pesquisa e pela integridade e bem-estar dos sujeitos da pesquisa

68 II5 - Instituiccedilatildeo de pesquisa - organizaccedilatildeo puacuteblica ou privada legitimamente constituiacuteda e habilitada na qual satildeo realizadas investigaccedilotildees cientiacuteficas

69 116 - Promotor - indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo responsaacutevel pela promoccedilatildeo da pesquisa 70 II7 - Patrocinador - pessoa fiacutesica ou juriacutedica que apoia financeiramente a pesquisa 71 II8 Risco da pesquisa - possibilidade de danos agrave dimensatildeo fiacutesica psiacutequica moral intelectual social

cultural ou espiritual do ser humano em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente II9 Dano associado ou decorrente da pesquisa agravo imediato ou tardio ao indiviacuteduo ou agrave coletividade com nexo causai comprovado direto ou indireto decorrente do estudo cientiacutefico

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pesquisa73 consentimento livre e esclarecido74 indenizaccedilatildeo75 ressarcimento6 Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (CEP)77 vulnerabilidade78 e incapacidade79

A Resoluccedilatildeo regulamentou os Comitecircs de Eacutetica e Pesquisa - CEPs80 em cujas funccedilotildees81 destaca-se a apreciaccedilatildeo do protocolo da pesquisa em todas as suas especificidades o que foi um grande passo no sentido da construccedilatildeo de padrotildees eacuteticos82

Haacute requisitos para a instituiccedilatildeo dos Comitecircs principalmente no atinente agrave sua composiccedilatildeo83

1110 Sujeito da pesquisa eacute o(a) participante pesquisado(a) individual ou coletivamente de caraacuteter voluntaacuterio vedada qualquer forma de remuneraccedilatildeo IIII Consentimento livre e esclarecido anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal livre de viacutecios (simulaccedilatildeo fraude ou erro) dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar formulada em um termo de consentimento autorizando sua participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa 1112 - Indenizaccedilatildeo - cobertura material em reparaccedilatildeo a dano imediato ou tardio causado pela pesquisa ao ser humano a ela submetida 1113 Ressarcimento - cobertura em compensaccedilatildeo exclusiva de despesas decorrentes da participaccedilatildeo do sujeito na pesquisa 1114 - Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa-CEP - colegiados interdisciplinares e independentes com munus puacuteblico de caraacuteter consultivo deliberativo e educativo criados para defender os interesses dos sujeitos da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrotildees eacuteticos 1115 Vulnerabilidade refere-se a estado de pessoas ou grupos que por quaisquer razotildees ou motivos tenham a sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido 1116 - Incapacidade - Refere-se ao possiacutevel sujeito da pesquisa que natildeo tenha capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido devendo ser assistido ou representado de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira vigente O CEP pode ser entendido como um oacutergatildeo controlador da pesquisa por um lado mas por outro eacute tambeacutem um oacutergatildeo que ajuda a harmonizar diversos interesses que como vimos podem ser os mais diversos e agraves vezes ateacute conflitantes Cf PALAacuteCIOS Marisa Eacutetica na pesquisa - 1 Eacutetica em pesquisa em seres humanos In PALAacuteCIOS Marisa MARTINS Andreacute PEGORARO Olinto A (Orgs) Eacutetica ciecircncia e sauacutede humana Petroacutepolis Vozes 2001 p 74 Satildeo atribuiccedilotildees conferidas pela Resoluccedilatildeo aos CEPs a) revisar todos os protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos b) emitir parecer consubstanciado por escrito c) manter a guarda confidencial de todos os dados obtidos na execuccedilatildeo de sua tarefa e arquivamento do protocolo completo que ficaraacute agrave disposiccedilatildeo das autoridades sanitaacuterias d) acompanhar o desenvolvimento dos projetos atraveacutes de relatoacuterios anuais dos pesquisadores e) desempenhar papel consultivo e educativo 0 receber dos sujeitos da pesquisa ou de qualquer outra parte denuacutencias de abusos ou notificaccedilatildeo sobre fatos adversos que possam alterar o curso normal do estudo decidindo pela continuidade modificaccedilatildeo ou suspensatildeo da pesquisa devendo se necessaacuterio adequar o termo de consentimento considerando-se anti-eacutetica a pesquisa descontinuada sem justificativa aceita pelo CEP que a aprovou g) requerer instauraccedilatildeo de sindicacircncia agrave direccedilatildeo da instituiccedilatildeo em caso de denuacutencias de irregularidades de natureza eacutetica nas pesquisas e em havendo comprovaccedilatildeo comunicar agrave Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa CONEPMS e no que couber a outras instacircncias e h) manter comunicaccedilatildeo regular e permanente com a CONEPMS A existecircncia de oacutergatildeos com a funccedilatildeo de aprovar e acompanhar pesquisas jaacute era preconizada por exemplo pelo Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988) cujo art 127 veda ao

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Foi mais aleacutem a Resoluccedilatildeo que de modo inovador reforccedilou o controle eacutetico e a defesa da dignidade da pessoa humana com a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa - CONEP84 que atua na direccedilatildeo e orientaccedilatildeo dos comitecircs8S A comissatildeo de acordo com a Resoluccedilatildeo eacute uma instacircncia colegiada de natureza consultiva deliberativa normativa independente vinculada ao Conselho Nacional de Sauacutede86 Essa vinculaccedilatildeo eacute bastante positiva posto que a alternativa de submetecirc-la a outros oacutergatildeos poderia dar ensejo a uma indesejada politizaccedilatildeo dos seus membros o que seria capaz de terminar por afetar a sua autonomia

meacutedico Realizar pesquisa meacutedica em ser humano sem submeter o protocolo a aprovaccedilatildeo e acompanhamento de comissatildeo isenta de qualquer dependecircncia em relaccedilatildeo ao pesquisador O colegiado com nuacutemero natildeo inferior a 7 (sete) membros deve ser multidisciplinar abrangendo profissionais idocircneos e de distinta formaccedilatildeo da aacuterea de sauacutede e das ciecircncias exatas sociais e humanas incluindo por exemplo juristas teoacutelogos socioacutelogos filoacutesofos bioeticistas aleacutem de membros da sociedade e obrigatoriamente pelo menos um membro representando os usuaacuterios Se a pesquisa envolver grupos vulneraacuteveis comunidades e coletividades um dos seus representantes deveraacute ser convidado para participar como membro ad hoc do CEP da anaacutelise do projeto especiacutefico Assim o CEP ainda segundo a Resoluccedilatildeo teraacute sempre um caraacuteter multi e transdisciplinar sendo vedado que mais que metade de seus membros pertenccedilam a uma mesma categoria profissional devendo ainda participarem pessoas dos dois sexos Satildeo permitidos consultores ad hoc pessoas que pertencem ou natildeo aacute instituiccedilatildeo com o objetivo de fornecer subsiacutedios teacutecnicos Merece ainda atenccedilatildeo especial a autonomia do comitecirc cuja manifestaccedilatildeo deve ser totalmente autocircnoma e imaculada de coaccedilotildees ou pressotildees dos interessados A autonomia e a independecircncia satildeo condiccedilotildees sine qua non para a desejada eficaacutecia dos comitecircs que felizmente estatildeo se proliferando em nosso paiacutes Conforme informaccedilotildees do site da CONEP satildeo 446 CEPs aprovados no Brasil ateacute janeiro de 2006 Disponiacutevel em lthttpoonselhosaudegovbrcomissaoconep2006ceps20APROVADOSxlsgt Acessado em 04 jun 2006 A Comissatildeo tem 13 membros titulares e o mesmo nuacutemero de suplentes em uma composiccedilatildeo que tambeacutem deveraacute ser multi e transdisciplinar com pessoas de ambos os sexos Dentre os seus membros 05 (cinco) devem ser personalidades destacadas no campo da eacutetica na pesquisa e na sauacutede e 08 (oito) devem ser personalidades com destacada atuaccedilatildeo nos campos teoloacutegico juriacutedico e outros assegurando-se que pelo menos um seja da aacuterea de gestatildeo da sauacutede Embora natildeo desconheccedilamos a importacircncia das religiotildees na formaccedilatildeo do pensamento eacutetico humano e sem querer desmerecer as pessoas que nelas militam no mais das vezes com accedilotildees de destacada importacircncia pensamos que eacute inadequada em um Estado laico como o nosso a destinaccedilacirco de vaga ou de vagas especificamente a pessoas do campo teleoloacutegico Essa observaccedilatildeo imperioso demarcar natildeo eacute no sentido de entender que a contribuiccedilatildeo dessas pessoas eacute desnecessaacuteria ou inconveniente Pelo contraacuterio Poreacutem a desejada participaccedilatildeo jaacute poderia ser levada a efeito incluindo-as no grupo de personalidades com atuaccedilatildeo de destaque na esfera da eacutetica na pesquisa e na sauacutede sem necessidade de vinculaccedilatildeo necessaacuteria ao pensamento religioso Isso ateacute mesmo para preservar o pluralismo e a igualdade jaacute que obviamente natildeo seraacute possiacutevel oferecer a cada religiatildeo uma vaga Os membros da Comissatildeo satildeo recrutados a partir de indicaccedilotildees contidas em listas elaboradas pelas instituiccedilotildees que possuem CEP registrado na CONEP sendo que 07 (sete) satildeo escolhidos pelo Conselho Nacional de Sauacutede e 06 (seis) satildeo definidos por sorteio Tambeacutem pode contar com consultores e membros ad hoc sendo assegurada a representaccedilatildeo dos usuaacuterios O mandato eacute de quatro anos com renovaccedilatildeo alternada a cada dois anos de sete ou seis de seus membros A CONEP tem tambeacutem um papel coordenador da rede de Comitecircs institucionais aleacutem de se constituir em oacutergatildeo consultor na aacuterea eacutetica em pesquisa Num primeiro momento tem ainda a atribuiccedilatildeo de apreciar os projetos de pesquisas de aacutereas temaacuteticas especiais enviadas pelos CFPs ou seja projetos que contemplam aacutereas com maiores dilemas eacuteticos e grande repercussatildeo social ateacute que se acumulem experiecircncias para elaboraccedilatildeo de normas especiacuteficas complementares agraves existentes Cf FREITAS Carolina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA

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Outros aspectos da Resoluccedilatildeo que merecem especial destaque para o nosso estudo satildeo os relativos ao consentimento livre e esclarecido agrave vulnerabilidade e agrave incapacidade

Como jaacute dito um dos principais pontos da Declaraccedilatildeo de Nuremberg foi o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias A Resoluccedilatildeo tratou do tema exigindo a anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar87 A anuecircncia deve ser expressa atraveacutes de

Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 202

S6 Segundo a Resoluccedilatildeo compete agrave CONEP examinar os aspectos eacuteticos da pesquisa envolvendo seres humanos assim como a adequaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo das normas atinentes consultando a sociedade sempre que julgar necessaacuterio cabendo-lhe entre outras as seguintes atribuiccedilotildees a) estimular a criaccedilatildeo de CEPs institucionais e de outras instacircncias b) registrar os CEPs institucionais e de outras instacircncias c) aprovar no prazo de 60 dias e acompanhar os protocolos de pesquisa em aacutereas temaacuteticas especiais tais como geneacutetica humana reproduccedilatildeo humana faacutermacos medicamentos vacinas e testes diagnoacutesticos novos (fases I II e III) ou natildeo registrados no pais (ainda que fase IV) ou quando a pesquisa for referente a seu uso com modalidades indicaccedilotildees doses ou vias de administraccedilatildeo diferentes daquelas estabelecidas incluindo seu emprego em combinaccedilotildees equipamentos insumos e dispositivos para a sauacutede novos ou natildeo registrados no paiacutes novos procedimentos ainda natildeo consagrados na literatura populaccedilotildees indiacutegenas projetos que envolvam aspectos de biosseguranccedila pesquisas coordenadas do exterior ou com participaccedilatildeo estrangeira c pesquisas que envolvam remessa de material bioloacutegico para o exterior e projetos que a criteacuterio do CEP devidamente justificado sejam julgados merecedores de anaacutelise pela CONEP d) prover normas especiacuteficas no campo da eacutetica em pesquisa inclusive nas aacutereas temaacuteticas especiais bem como recomendaccedilotildees para aplicaccedilatildeo das mesmas e) funcionar como instacircncia final de recursos a partir de informaccedilotildees fornecidas sistematicamente em caraacuteter ex-ofiacutecio ou a partir de denuacutencias ou de solicitaccedilatildeo de partes interessadas devendo manifestar-se em um prazo natildeo superior a 60 (sessenta) dias 0 rever responsabilidades proibir ou interromper pesquisas definitiva ou temporariamente podendo requisitar protocolos para revisatildeo eacutetica inclusive os jaacute aprovados pelo CEP g) constituir um sistema de informaccedilatildeo e acompanhamento dos aspectos eacuteticos das pesquisas envolvendo seres humanos em todo o territoacuterio nacional mantendo atualizados os bancos de dados h) informar e assessorar o MS o CNS e outras instacircncias do SUS bem como do governo e da sociedade sobre questotildees eacuteticas relativas agrave pesquisa em seres humanos i) divulgar esta e outras normas relativas agrave eacutetica em pesquisa envolvendo seres humanos j) juntamente com outros setores do Ministeacuterio da Sauacutede estabelecer normas e criteacuterios para o credenciamento de Centros de Pesquisa e I) estabelecer suas proacuteprias normas de funcionamento

87 No que concerne agrave pesquisa meacutedica a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro estipula no seu art 123 que eacute vedado ao meacutedico Realizar pesquisa em ser humano sem que este tenha dado consentimento por escrito apoacutes devidamente esclarecido sobre a natureza e consequumlecircncia da pesquisa e que Caso o paciente natildeo tenha condiccedilotildees de dar seu livre consentimento a pesquisa somente poderaacute se realizada em seu proacuteprio beneficio apoacutes expressa autorizaccedilatildeo de seu responsaacutevel legal Jaacute a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO no seu art 6 aliacutenea b estabelece que A pesquisa cientiacutefica soacute deve ser realizada com o preacutevio livre expresso e esclarecido consentimento do indiviacuteduo envolvido A informaccedilatildeo deve ser adequada fornecida de uma forma compreensiacutevel e incluir os procedimentos para a retirada do consentimento O consentimento pode ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer hora e por qualquer razatildeo sem acarretar qualquer desvantagem ou preconceito Exceccedilotildees a este princiacutepio somente devem ocorrer quando em conformidade com os padrotildees eacuteticos e legais adotados pelos Estados consistentes com as provisotildees da presente Declaraccedilatildeo particularmente com o art 27 e com os direitos humanos

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em um termo de consentimento onde eacute autorizada a participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa Aleacutem disso natildeo pode estar viciada por simulaccedilatildeo fraude ou erro nem tampouco pode ser obtida por forccedila de uma situaccedilatildeo de dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo

Trata-se de disposiccedilatildeo decorrente da adoccedilatildeo do princiacutepio da autonomia jaacute abordado que se vincula agrave capacidade de autodeterminaccedilatildeo e auto-escolha e pressupotildee dentre outras premissas a capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos possiacuteveis18

Quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de estudo possuem a capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto ao consentimento livre e esclarecido por quaisquer motivos verifica-se uma situaccedilatildeo de vulnerabilidade que natildeo pode ser desconsiderada pelo pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais A preocupaccedilatildeo com a vulnerabilidade dos sujeitos encontra supedacircneo no Coacutedigo de Nuremberg na Declaraccedilatildeo de Helsinque nas Diretrizes Internacionais para Pesquisa Biomeacutedica envolvendo Seres Humanos89 e tambeacutem como jaacute dito na Resoluccedilatildeo 19696 A dificuldade central relacionada a indiviacuteduos e comunidades vulneraacuteveis eacute com a sua capacidade de compreensatildeo (autonomia plena) sobre o experimento e possibilidade de livremente consentir com a pesquisa e quando quiser dela desistir o que justifica todas as preocupaccedilotildees nesse sentido90

Cabe trazer a lume os ensinamentos do professor chileno Fernando Lolas O respeito pela autonomia das pessoas como agentes morais capazes de decisotildees informadas eacute central no diaacutelogo bioeacutetico Somente a permissatildeo outorgada por uma pessoa pode legitimar uma accedilatildeo que a envolva O valor das pessoas eacute incondicional o que obriga a consideraacute-las fins natildeo meios com a liberdade de viver e a de decidir livres de interferecircncias LOLAS Fernando Bioeacutetica o que eacute como se faz Traduccedilatildeo Milton Camargo Mota Satildeo Paulo Loyola 2001 p 63 A Diretriz Internacional para Pesquisa Biomeacutedica afirma Pesquisa envolvendo indiviacuteduos de comunidades sub-desenvolvidas Antes de iniciar a pesquisa em indiviacuteduos de comunidades subdesenvolvidas seja em paiacuteses desenvolvidos ou em desenvolvimento o pesquisador deve estar seguro que As pessoas da comunidade subdesenvolvida natildeo seratildeo ordinariamente envolvidas na pesquisa que possa ser realizada de forma adequada em comunidades desenvolvidas A pesquisa eacute uma resposta agraves necessidades de sauacutede e agraves prioridades da comunidade na qual seraacute realizada todos os esforccedilos seratildeo tomados no sentido de assegurar o imperativo eacutetico de que o consentimento individual dos sujeitos seraacute informado e Os projetos para a pesquisa foram revisados e aprovados por um comitecirc de eacutetica que tenha entre os seus membros ou consultores pessoas que tenham familiaridade com os costumes e tradiccedilotildees da comunidade Em comentaacuterio agraves diretrizes acima Leo Pessini e Christian Paul de Barchifontaine entendem que Quando a experimentaccedilatildeo visa ao estudo de determinadas condiccedilotildees moacuterbidas tais como doenccedilas endecircmicas em comunidades de baixo niacutevel socioeconocircmico eou cultural incapazes de terem uma consciecircncia clara e apropriada das implicaccedilotildees de sua participaccedilatildeo na experiecircncia eacute de bom alvitre que seja obtida a interveniecircncia de um liacuteder em que a coletividade confia Esse intermediaacuterio dever deixar claro que a participaccedilatildeo eacute voluntaacuteria e que qualquer participante tem a liberdade de natildeo aceitar ou abandonar a experiecircncia a qualquer momento op cit p 133

Conforme Marisa Palaacutecios Quando a autonomia dos sujeitos natildeo eacute plena ou seja quando a capacidade de entender as situaccedilotildees que se apresentam ao sujeito e de autodeterminar-se segundo este entendimento estaacute de alguma forma limitada eacute preciso tomar cuidado especial Eacute o caso dos grupos vulneraacuteveis os iacutendios que tecircm a capacidade de entendimento das situaccedilotildees diminuiacuteda uma vez que compotildeem sociedades

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A vulnerabilidade pode assumir as mais variadas vertentes bem como atingir uma determinada pessoa ou um grupo de seres humanos com peculiaridades comuns tais como crianccedilas idosos iacutendios pacientes terminais desempregados deficientes91 presidiaacuterios92 ou outras situaccedilotildees de dependecircncia93

Pode ocorrer que as pessoas que seratildeo estudadas na pesquisa natildeo tenham capacidade civil para dar o seu consentimento Nesse caso se encontram em situaccedilatildeo de incapacidade e a pesquisa soacute pode ser levada adiante com a intervenccedilatildeo de seus representantes legais que de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira deveratildeo assistir ou representar os incapazes Tambeacutem aqui deve o pesquisador cercar-se de cautelas eacuteticas redobradas

Finalmente deve-se louvar a Resoluccedilatildeo por ter explicitado no seu item III3 um rol de 23 (vinte e trecircs) exigecircncias eacuteticas para a pesquisa de qualquer aacuterea do conhecimento que envolva seres humanos94

culturalmente diversas[] Estas para citar algumas populaccedilotildees caracteriacutesticas Satildeo populaccedilotildees que precisam ser especialmente protegidas dada a proacutepria condiccedilatildeo de vulnerabilidade Maria Carolina S Guimaratildees e Sylvia Caiuby Novaes com alento em Hannah Arendt e Cardia definem o ser vulneraacutevel como Algueacutem que possui cidadania fraacutegil que ignora a relevacircncia do direito agrave integridade fiacutesica como condiccedilatildeo de acesso aos direitos sociais econocircmicos poliacuteticos e trabalhistas Dito assim o que parece a primeira condiccedilatildeo para que um ser vulneraacutevel perca tal situaccedilatildeo eacute o investimento do Estado naquilo que constroacutei e constitui a cidadania naqueles atributos que transformam o indiviacuteduo em cidadatildeo que transformam o animal laborans em homem poliacutetico Essa transformaccedilatildeo eacute no dizer de Hannah Arendt um pressuposto da democracia pois permite ao animal laborans ir do reino da necessidade para o reino da liberdade GUIMARAtildeES Maria Carolina S NOVAES Sylvia Caiuby Autonomia reduzida e vulnerabilidade liberdade de decisatildeo diferenccedila e desigualdade Revista Bioeacutetica Brasiacutelia v 7 n 1 p 23 1999

91 Sobre o tema vide COHEN Claacuteudio Bioeacutetica Pesquisa e Deficiecircncia In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 55-62 92 Nem todo ser humano eacute no entanto capaz de autodeterminaccedilatildeo A capacidade de autodeterminaccedilatildeo amadurece ao longo da vida mas pode ser perdida total ou parcialmente por doenccedila velhice ou situaccedilatildeo de restriccedilatildeo severa como a prisatildeo Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 93 O Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de janeiro de 1988) veda ao meacutedico no seu art 128 Realizar pesquisa meacutedica em voluntaacuterios sadios ou-natildeo que tenham direta ou indiretamente dependecircncia ou subordinaccedilatildeo relativamente ao pesquisador 94 I1I3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias a) ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder a incertezas b) estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou em outros fatos cientiacuteficos c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio d) prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis e) obedecer a metodologia adequada Se houver necessidade de distribuiccedilatildeo aleatoacuteria dos sujeitos da pesquisa em grupos experimentais e de controle assegurar que apriori natildeo seja possiacutevel estabelecer as vantagens de um procedimento sobre outro atraveacutes de revisatildeo de literatura meacutetodos observacionais ou meacutetodos que natildeo envolvam seres humanos 0 ter plenamente justificada quando for o caso a utilizaccedilatildeo de placebo em termos de natildeo maleficecircncia e de necessidade metodoloacutegica g) contar com o consentimento livre e esclarecido do sujeito da pesquisa eou seu representante legal h) contar com os recursos humanos e materiais necessaacuterios que garantam o bem-

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5 Teleologia e legitimidade da pesquisa em seres humanos

Toda experimentaccedilatildeo em seres humanos possui um determinado objetivo o qual pode ou-natildeo estar vinculado ao bem estar proacuteprio da pessoa ou grupo observado

Essa situaccedilatildeo natildeo foi esquecida pela Declaraccedilatildeo de Helsinque cujo preacircmbulo afirma Wo campo cia pesquisa biomeacutedica uma distinccedilatildeo fundamental deve ser feita entre a pesquisa meacutedica na qual o objetivo eacute essencialmente o diagnoacutestico ou a terapecircutica para um paciente e a pesquisa meacutedica cujo objeto essencial eacute puramente cientiacutefico e sem um valor direto diagnoacutestico ou terapecircutico para a pessoa sujeita agrave

estar do sujeito da pesquisa devendo ainda haver adequaccedilatildeo entre a competecircncia do pesquisador e o projeto proposto i) prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade a proteccedilatildeo da imagem e a natildeo estigmatizaccedilatildeo garantindo a natildeo utilizaccedilatildeo das informaccedilotildees em prejuiacutezo das pessoas eou das comunidades inclusive em termos de auto-estima de prestiacutegio eou econocircmico - financeiro j) ser desenvolvida preferencialmente cm indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida 1) respeitar sempre os valores culturais sociais morais religiosos e eacuteticos bem como os haacutebitos e costumes quando as pesquisas envolverem comunidades m) garantir que as pesquisas em comunidades sempre que possiacutevel traduzir-se-atildeo em benefiacutecios cujos efeitos continuem a se fazer sentir apoacutes sua conclusatildeo O projeto deve analisar as necessidades de cada um dos membros da comunidade e analisar as diferenccedilas presentes entre eles explicitando como seraacute assegurado o respeito agraves mesmas n) garantir o retomo dos benefiacutecios obtidos atraveacutes das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas Quando no interesse da comunidade houver benefiacutecio real em incentivar ou estimular mudanccedilas de costumes ou comportamentos o protocolo de pesquisa deve incluir sempre que possiacutevel disposiccedilotildees para comunicar tal benefiacutecio agraves pessoas eou comunidades o) comunicar agraves autoridades sanitaacuterias os resultados da pesquisa sempre que os mesmos puderem contribuir para a melhoria das condiccedilotildees de sauacutede da coletividade preservando poreacutem a imagem e assegurando que os sujeitos da pesquisa natildeo sejam estigmatizados ou percam a auto-estima p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefiacutecios resultantes do projeto seja em termos de retorno social acesso aos procedimentos produtos ou agentes da pesquisa q)assegurar aos sujeitos da pesquisa as condiccedilotildees de acompanhamento tratamento ou de orientaccedilatildeo conforme o caso nas pesquisas de rastreamento demonstrar a preponderacircncia de benefiacutecios sobre riscos e custos r) assegurar a inexistecircncia de conflito de interesses entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa ou patrocinador do projeto s) comprovar nas pesquisas conduzidas do exterior ou com cooperaccedilatildeo estrangeira os compromissos e as vantagens para os sujeitos das pesquisas e para o Brasil decorrentes de sua realizaccedilatildeo Nestes casos deve ser identificado o pesquisador e a instituiccedilatildeo nacionais co-responsaacuteveis pela pesquisa O protocolo deveraacute observar as exigecircncias da Declaraccedilatildeo de Helsinque e incluir documento de aprovaccedilatildeo no paiacutes de origem entre os apresentados para avaliaccedilatildeo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa da instituiccedilatildeo brasileira que exigiraacute o cumprimento de seus proacuteprios referenciais eacuteticos Os estudos patrocinados do exterior tambeacutem devem responder agraves necessidades de treinamento de pessoal no Brasil para que o paiacutes possa desenvolver projetos similares de forma independente t) utilizar o material bioloacutegico e os dados obtidos na pesquisa exclusivamente para a finalidade prevista no seu protocolo u) levar em conta nas pesquisas realizadas em mulheres em idade feacutertil ou em mulheres graacutevidas a avaliaccedilatildeo de riscos e benefiacutecios e as eventuais interferecircncias sobre a fertilidade a gravidez o embriatildeo ou o feto o trabalho de parto o puerpeacuterio a lactaccedilatildeo e o receacutem-nascido v) considerar que as pesquisas em mulheres graacutevidas devem ser precedidas de pesquisas em mulheres fora do periacuteodo gestacional exceto quando a gravidez for o objetivo fundamental da pesquisa x) propiciar nos estudos multicecircntricos a participaccedilatildeo dos pesquisadores que desenvolveratildeo a pesquisa na elaboraccedilatildeo do delineamento geral do projeto e z) descontinuar o estudo somente apoacutes anaacutelise das razotildees da descontinuidade pelo CEP que a aprovou

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pesquisa Em outras palavras haacute experimentos em benefiacutecio do paciente e experimentos em benefiacutecio da ciecircncia Ainda no preacircmbulo da Declaraccedilatildeo de Helsinque encontramos que A finalidade da pesquisa meacutedica envolvendo seres humanos deve ser o aperfeiccediloamento do diagnoacutestico procedimentos terapecircuticos e profilaacuteticos e a compreensatildeo da etiologia e da patologia da doenccedila Conjugando essa afirmaccedilatildeo com a anterior podemos extrair que uma determinada pessoa ou populaccedilatildeo pode ser objeto de pesquisa para desvendar doenccedilas que a afligem ou para desnudar as razotildees pelas quais eacute menos suscetiacutevel ou-natildeo eacute atingida por determinada moleacutestia que afeta aos demais seres humanos

A partir dessas observaccedilotildees podemos considerar para os fins do nosso estudo que as experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas teleologicamente em dois grupos a) aquelas cujos objetivos possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas as quais chamaremos de pesquisas com justificativa intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de terceiros as quais denominaremos pesquisas com justificativa extrinseca Temos como exemplo na primeira situaccedilatildeo os experimentos cientiacuteficos para desvendar o porquecirc de uma determinada coletividade ser atingida por taxas elevadas de uma certa doenccedila e na segunda uma pesquisa para revelar as razotildees pelas quais certas pessoas natildeo desenvolvem uma moleacutestia com o objetivo de descobrir uma vacina ou um medicamento para os demais

Entretanto em todo experimento seraacute necessaacuterio averiguar se a justificativa - seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima Isso porque o fato de uma pesquisa ter por objetivo um tratamento mais eficiente ou a cura de certas doenccedilas natildeo legitima por si soacute a utilizaccedilatildeo de pessoas como sujeito de pesquisa mesmo que elas sofram da moleacutestia e possam vir a ser beneficiadas Natildeo se deve perder de vista aliaacutes que se o conhecimento puder ser obtido por outro meio a utilizaccedilatildeo de seres humanos justamente por ser desnecessaacuteria seraacute ilegiacutetima95 Ademais soacute pelo fato de ser intriacutenseca a justificativa natildeo seraacute necessariamente legiacutetima Por outro lado a circunstacircncia isoladamente considerada do eventual resultado da experimentaccedilatildeo ser absolutamente indiferente ao sujeito de pesquisa natildeo torna a sua participaccedilatildeo ilegiacutetima Em outras palavras a justificativa soacute por ser extrinseca natildeo seraacute necessariamente ilegiacutetima

Vale relembrar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 - A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio

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1212 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

A razatildeo disso reside na afirmaccedilatildeo de que como se sabe desde Kant o Homem deve ser tratado como um fim em si mesmo e natildeo como instrumento De fato eacute em Kant que o Homem ganha status de valor absoluto manifesto no imperativo praacutetico expresso na maacutexima segundo a qual Ages de tal maneira que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio 96

Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

Quando se trata de experimentaccedilatildeo com justificativa intriacutenseca a razatildeo legitimadora pode estar no objetivo de beneficiar os proacuteprios sujeitos da pesquisa algueacutem se submete a uma experimentaccedilatildeo na tentativa de auferir uma vantagem em seu bem-estar fiacutesico ou mental

Jaacute no caso da justificativa extriacutenseca poder-se-ia objetar a realizaccedilatildeo da experimentaccedilatildeo com suposto fundamento na Resoluccedilatildeo 19696 cujo item III 1 letra d vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila Ora se em uma determinada situaccedilatildeo algueacutem participa do experimento sem que haja qualquer possibilidade de benefiacutecio fiacutesico ou mental para si a partir do resultado da pesquisa e considerando que a mesma Resoluccedilatildeo veda qualquer forma de remuneraccedilatildeo do sujeito da pesquisa (item 1110) qual a vantagem significativa que poderaacute essa pessoa auferir para justificar a sua participaccedilatildeo

Ao nosso ver a interpretaccedilatildeo desse ponto da Resoluccedilatildeo natildeo deve ser literal nem assistemaacutetica97 devendo ser considerada a incidecircncia de um outro princiacutepio ainda

Op cit p 69 Em comento a este imperativo Francesca Puigpclat Marti apregoa que La concepcioacuten liberal asocia a esta expresioacuten una idea comuacuten en Ia reflexioacuten eacutetica de raigambre kantiana el hombre es un fin en si mismo un sujeto y no un objeto Seguacuten Kant en el sistema de Ia natureza el hombre (homo phaenomenon animal rationale) es un ser de escasa importancia y tiene con los demaacutes animales en tanto que productos de Ia tierra un precio comuacuten () Ahora bien el hombre considerado como persona es dccir como sujeto de una razoacuten praacutetico-moral estaacute situado por encima de todo precio porque como tal (homo noumenon) no puede valorarse soacutelo como meacutedio para fines ajenos incluso para sus proprios fines sino como fin en siacute mismo es decir posee una dignidad(un valor interno absoluto) gracias a la cual infunde respeto haciacutea eacutel a todos los demaacutes seres racionales dei mundo puede medirse con cualquier otro de esta clase y valorarse en pie de igualdad En la medida en que seguacuten Kant el hombre existe como fin en siacute mismo y no soacutelo como meacutedio para usos cualesquiera de una u otra voluntad se puede formular el siguiente principio praacutetico supremo obra de tal modo que uses la humanidad tanto en tu persona como en la persona de cualquier otro siempre como un fin al mismo tiempo y nunca solamente como un meacutedio MARTIacute Francesca Puigpelat Clonacioacuten dignidad humana y constitucioacuten Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo ano II n 42 janmar p37-64 2003

Natildeo se interpreta o direito em tiras aos pedaccedilos () Um texto de direito isolado destacado desprendido do sistema juriacutedico natildeo expressa significado normativo algum Cf GRAU Eros Roberto Ensaio e

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1213

que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que eacute o da solidariedade Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita entendemos que a sua aplicaccedilatildeo eacute cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele dispositivo (item 1111 letra d da Resoluccedilatildeo 19696) afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria Aleacutem disso outros documentos de importacircncia para a Bioeacutetica fazem referecircncia agrave solidariedade98 De fato natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao respeito agrave dignidade da pessoa humana99

Logo no nosso pensar mesmo que natildeo haja nenhum benefiacutecio ou vantagem direta ao sujeito de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma justificativa eacutetica a qual pode ter como nuacutecleo a intenccedilatildeo solidaacuteria dessa pessoa e do pesquisador de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e consequumlentemente para todos os demais seres humanos

A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica100

Estas exigecircncias no acircmbito normativo brasileiro estatildeo listadas na Resoluccedilatildeo 19696 especialmente no item III3

Algumas delas satildeo puramente objetivas e uma vez desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca E o caso por exemplo da necessidade de consentimento preacutevio e informado

discurso sobre a interpretaccedilatildeoaplicaccedilatildeo do Direito Satildeo Paulo Malheiros Editores 2002 p 34 98

O art 1deg da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos proclama que todas pessoas devem agir em relaccedilatildeo umas agraves outras com espiacuterito de fraternidade Alem disso a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO em um dos seus considerandos observa que os seres humanos tecircm um papel importante na proteccedilatildeo um do outro tratando expressamente da solidariedade e cooperaccedilatildeo no seu art 13 segundo o qual A solidariedade entre os seres humanos e cooperaccedilatildeo internacional para este fim devem ser estimuladas 99 Ela [a solidariedade] eacute o fecho de aboacutebada do sistema de princiacutepios eacuteticos pois complementa e aperfeiccediloa a liberdade a igualdade e a seguranccedila () E um erro considerar que no mundo da natureza sobretudo no mundo animal natildeo exista solidariedade e que ela seja uma criaccedilatildeo poliacutetica Muito pelo contraacuterio pode-se dizer que a biosfera forma naturalmente um sistema solidaacuterio e que o rompimento desse sistema eacute sempre obra do homem O proacuteprio Darwin bem advertiu que a expressatildeo struggle for Existence fora por ele usada em sentido amplo e matafoacuterico incluindo a dependecircncia de um ser em relaccedilatildeo a outro bem como incluindo (o que eacute mais importante) natildeo apenas a vida do indiviacuteduo mas o ecircxito em deixar descendentes Os zooacutelogos jaacute observaram que o processo de seleccedilatildeo natural deu mais vantagens bioloacutegicas aos grupos que cuidavam de seus membros natildeo reprodutivos do que agravequeles que abandonavam ou matavam os anciatildeos pois a capacidade de reproduccedilatildeo global dos grupos altruiacutestas eacute assim singularmente reforccedilada Cf COMPARATO Faacutebio Konder Eacutetica direito moral e religiatildeo no mundo moderno Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 p 577578

100

Natildeo eacute agrave toa portanto que como jaacute visto a Resoluccedilatildeo 19696 vincula a eticidade na pesquisa aos princiacutepios da Bioeacutetica tanto no seu preacircmbulo como no seu item III 1

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1214 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

dos participantes - ou dos seus representantes se incapazes - 101 cuja ausecircncia macula o princiacutepio da autonomia Tambeacutem eacute objetiva a exigecircncia da pesquisa estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou outros fatos cientiacuteficos102 cuja inobservacircncia implica em ofensa agrave natildeo-maleficecircncia Nessas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou-natildeo vir a ter um benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

Outras exigecircncias entretanto possuem um certo grau de subjetividade em maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as circunstacircncias faacuteticas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo de valor iacutensito a cada um Desse tipo vg eacute a exigecircncia segundo a qual a pesquisa deve ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e ter possibilidades concretas de responder a incertezas103 A avaliaccedilatildeo quanto ao cumprimento ou-natildeo da exigecircncia e portanto quanto agrave legitimidade ou ilegitimidade da utilizaccedilatildeo de seres humanos tem um niacutetido caraacuteter subjetivo podendo variar de pessoa para pessoa

Quando tratamos de exigecircncias subjetivas haacute ainda um outro aspecto a ser apontado deveraacute ser levado em conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca Em outras palavras a circunstacircncia do sujeito de pesquisa poder vir a ser beneficiado ou-natildeo pelo resultado do experimento deve ser considerada na verificaccedilatildeo da legitimidade eacutetica quando da ponderaccedilatildeo sobre o cumprimento das exigecircncias subjetivas

Tomemos como exemplo a exigecircncia de que devem prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis104 Ora essa exigecircncia eacute subjetiva pois envolve uma ponderaccedilatildeo cujo resultado estaacute vinculado a um juiacutezo de valor sobre a natureza e a importacircncia ou peso de cada benefiacutecio ou risco provaacutevel Ao nosso entender quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal no resultado do experimento tratando-se portanto de justificativa extriacutenseca eacute oacutebvio que os riscos a que se submete devem ser considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o benefiacutecio esperado tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa submetida ao experimento

101 Item III3 letra g da Resoluccedilatildeo 19696 102 Item III3 letra b da Resoluccedilatildeo 19696 103 Item III3 letra a da Resoluccedilatildeo 19696 104 Item III3 letra d da Resoluccedilatildeo 19696

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1215

Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila105 Por outro lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

A proacutepria realizaccedilatildeo ou-natildeo da pesquisa pode depender dessa ponderaccedilatildeo jaacute que a Resoluccedilatildeo n 19696 prevecirc que havendo riscos potenciais as pesquisas envolvendo seres humanos poderatildeo ser admitidas quando oferecerem elevada possibilidade de gerar conhecimento para entender prevenir ou aliviar um problema que afete o bem-estar dos sujeitos da pesquisa e de outros indiviacuteduos 106

Aleacutem disso parece ser mais aceitaacutevel eticamente submeter o ser humano a riscos maiores quando a justificativa eacute intriacutenseca do que quando ela eacute extriacutenseca priorizando assim a sua preservaccedilatildeo Nesse sentido a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO estipula que uos interesses e o bem-estar do indiviacuteduo devem ter prioridade sobre o interesse exclusivo da ciecircncia ou da sociedade 107

Natildeo se pode esquecer ainda que por forccedila dos princiacutepios da beneficecircncia da natildeo-maleficecircncia e da justiccedila eacute preciso considerar na mediccedilatildeo da legitimidade as peculiaridades individuais ou coletivas dos sujeitos de pesquisa especialmente no que concerne agraves suas eventuais vulnerabilidades bem como cuidar para que natildeo lhes seja imposto um mal desnecessaacuterio ou desproporcional O princiacutepio da justiccedila como vimos implica necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa os quais sempre que possiacutevel devem ter garantido para si pelo pesquisador a fruiccedilatildeo dos benefiacutecios da experimentaccedilatildeo natildeo sendo equacircnime impor-Ihes ocircnus excessivos108 especialmente se vulneraacuteveis Natildeo eacute agrave toa portanto que pode

105 O princiacutepio da justiccedila implica atenccedilatildeo especial agraves regras de recrutamento de participantes de experimentos Natildeo se pode fazer experimentos apenas com determinados grupos - pacientes de enfermaria asilados prisioneiros - simplesmente porque eles estatildeo agrave disposiccedilatildeo e em situaccedilatildeo de dependecircncia Isso eacute injusto Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 Item Vl aliacutenea a

107 Art 3 aliacutenea b 108 bull

Consideramos que deva ser modificada a praacutetica muito comum em nosso paiacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de pesquisados provenientes das camadas mais desfavorecidas da sociedade ou de outros grupos vulneraacuteveis mas que posteriormente natildeo poderatildeo se beneficiar dos resultantes positivos das pesquisas em que tomaram parte mesmo tendo enfrentado riscos de danos psico-sociais As pesquisas realizadas nesses grupos devem poder lhes trazer benefiacutecios e os pesquisadores sempre que possiacutevel devem garantir retomo dos benefiacutecios resultados das pesquisas para os sujeitos individuais e coletivos que nelas participarem Cf FORTES Paulo Antonio de Carvalho As Pesquisas em Seres Humanos e o Principio Eacutetico da Justiccedila

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1216 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

haver exigecircncias eacuteticas especiacuteficas para pesquisas com serem humanos em situaccedilatildeo de vulnerabilidade109

Assim sempre seraacute preciso dosar a equaccedilatildeo riscobeneficio ponderando em cada caso concreto se os eventuais benefiacutecios satildeo suficientes para motivar a exposiccedilatildeo das pessoas ao processo de experimentaccedilatildeo Pode ser que diante de certas peculiaridades ou vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima110 Aliaacutes como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis justamente porque como jaacute dito o ser humano natildeo pode ser tratado como mero instrumento1

E natildeo eacute soacute Aleacutem disso em princiacutepio a pesquisa com pessoas ou grupos vulneraacuteveis deve ter uma justificativa intriacutenseca2 Entretanto sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas em experimentos extriacutensecos agrave luz da solidariedade como no caso do grupo vulneraacutevel ser imune a determinada moleacutestia por razatildeo ainda desconhecida o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias objetivas agrave risca deve ser ainda mais

Cadernos de Eacutetica em Pesquisa Ano 1 n 2 p 22-23 nov 1998 109

A tiacutetulo de exemplo a Resoluccedilatildeo 19696 traz alguns requisitos especiacuteficos para o consentimento livre e esclarecido de pessoas ou populaccedilotildees vulneraacuteveis no item IV3

110 Um caso de niacutetida violaccedilatildeo aos princiacutepios bioeacuteticos em pesquisas envolvendo grupo vulneraacutevel foi o jaacute mencionado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm Conforme um dos colaboradores da pesquisa utilizar doentes mentais ainda que natildeo voluntaacuterios foi a melhor opccedilatildeo diante do fato de que o principal problema da sauacutede puacuteblica era justamente o das doenccedilas dentaacuterias razatildeo pela qual os fins justificariam os meios ainda mais considerando que o estudo foi utilizado em todo o mundo (Krasse B Sueacutecia usou deficiente mental como cobaia Folha de Satildeo Paulo 23 Set 1997 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas cliacutenicas sobre seus direitos 2005 p 61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo) sendo faacutecil criticar o fato depois de consumado (Krasse B The Vipeholm dental caries study recollections and reflections 50 years later J Dent Res 2001 80(9) 1785-8 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu op cit p 61) Mais uma vez cabiacutevel rememorar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () j) ser desenvolvida preferencialmente em indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida

112 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO eacute clara ao afirmar em seu art 7 aliacutenea b no que diz respeito a indiviacuteduos sem a capacidade para fornecer consentimento que a pesquisa soacute deve ser realizada para o beneficio direto agrave sauacutede do indiviacuteduo envolvido estando sujeita agrave autorizaccedilatildeo e agraves condiccedilotildees de proteccedilatildeo prescritas pela legislaccedilatildeo e caso natildeo haja nenhuma alternativa de pesquisa de eficaacutecia comparaacutevel que possa incluir sujeitos de pesquisa com capacidade para fornecer consentimento

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1217

rigoroso na ponderaccedilatildeo do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da autonomia e justiccedila expondo tais pessoas a riscos miacutenimos menores ateacute do que aqueles normalmente empregados em pesquisas com justificativa intriacutenseca3

Se essas diretrizes natildeo forem observadas teremos uma pesquisa carente de justificativa eacutetica e de legitimidade

6 Conclusotildees

Em virtude dos limites inerentes agrave nossa abordagem nessas consideraccedilotildees finais natildeo apresentaremos verdades irrefutaacuteveis e definitivas sobre um tema que ainda carece de um importante debate acadecircmico e normativo Com efeito o que pretendemos modestamente foi evidenciar alguns paradigmas que possam ensejar a conciliaccedilatildeo da dignidade da pessoa humana com a continuidade dos processos de investigaccedilatildeo cientiacuteficos realizados em seres humanos Para tanto podemos sintetizar nosso pensamento nas seguintes conclusotildees

a) O desenvolvimento da ciecircncia mormente em aacutereas afeitas agrave vida e a ocorrecircncia de pesquisas francamente contraacuterias agrave dignidade humana como ocorrido em vaacuterias passagens da Segunda Guerra ensejaram o surgimento da Bioeacutetica como um novo ramo do conhecimento

b) Deve-se limitar a atuaccedilatildeo da Bioeacutetica aos casos em que haacute conflito de valores quando dois princiacutepios eacutetica e moralmente admissiacuteveis natildeo podem coexistir

c) Haacute iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica Autonomia Beneficecircncia e Justiccedila aleacutem da Natildeo-Maleficecircncia - e as pesquisas em seres humanos

113 Ainda conforme o art 7 aliacutenea b da Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO quando se trata de pessoas incapazes Pesquisas sem potencial beneficio direto agrave sauacutede soacute devem ser realizadas excepcionalmente com a maior restriccedilatildeo expondo o indiviacuteduo apenas a risco e desconforto miacutenimos e quando se espera que a pesquisa contribua com o benefiacutecio agrave sauacutede de outros indiviacuteduos na mesma categoria sendo sujeitas agraves condiccedilotildees prescritas por lei e compatiacuteveis com a proteccedilatildeo dos direitos humanos do indiviacuteduo A recusa de tais indiviacuteduos em participar de pesquisas deve ser respeitada

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1218 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

d) Os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica

pluralista aberta e receptiva e satildeo um poderoso instrumento

para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

razotildees pelas quais eacute descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos

debates bioeacuteticos

e) O avanccedilo tecnoloacutegico traz cada vez mais a diminuiccedilatildeo de

limites teacutecnicos ao ser humano o que conduz ao debate sobre a

necessidade de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees para

evitar eventuais abusos especialmente na aacuterea biomeacutedica

elevando a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que

demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave

vida

0 A concretizaccedilatildeo dos objetivos atuais da humanidade

especialmente em relaccedilatildeo agrave expectativa de vida depende

dentre outros fatores da pesquisa cientiacutefica e da

experimentaccedilatildeo em seres humanos Poreacutem eacute preciso tomar o

Homem como sujeito de pesquisa sem trataacute-lo como mero

instrumento mas como um fim em si mesmo

g) A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do

interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda

Guerra trouxeram agrave tona a questatildeo da eacutetica na pesquisa

evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana e

de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa

em seres humanos gerando uma seacuterie de normas internacionais

e nacionais a exemplo do Coacutedigo de Nuremberg da

Declaraccedilatildeo de Helsinque e no Brasil da Resoluccedilatildeo n 19696

do Conselho Nacional de Sauacutede

h) Dentre os principais aspectos da Resoluccedilatildeo n 19696 do

Conselho Nacional de Sauacutede encontramos a vinculaccedilatildeo da

experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da

principiologia da Bioeacutetica a explicitaccedilatildeo de um rol de

exigecircncias para a eticidade na pesquisa as definiccedilotildees de

diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica como o

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1219

consentimento livre e esclarecido a vulnerabilidade e a

incapacidade a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em

Pesquisa -CONEP e a regulamentaccedilatildeo dos Comitecircs de Eacutetica e

Pesquisa - CEPs

i) O consentimento livre e esclarecido decorre da adoccedilatildeo do

princiacutepio da autonomia e pressupotildee dentre outras premissas a

capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os

aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos

possiacuteveis

j) A vulnerabilidade natildeo pode ser desconsiderada pelo

pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais ocorrendo

quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de

estudo por quaisquer motivos possuem a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto agrave

compreensatildeo sobre o experimento e a possibilidade de

livremente consentir com a pesquisa e dela desistir

k) A incapacidade ocorre quando as pessoas que seratildeo estudadas

na pesquisa natildeo possuem capacidade civil para dar o seu

consentimento soacute podendo ser levada adiante a pesquisa com a

intervenccedilatildeo de seus representantes legais implicando tambeacutem

no dever do pesquisador de cercar-se de cautelas eacuteticas

redobradas

1) As experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas

teleologicamcnte em dois grupos a) aquelas cujos objetivos

possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas

observadas as quais chamamos de pesquisas com justificativa

intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo

direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de

terceiros as quais denominamos pesquisas com justificativa

extrinseca

m) Em todo experimento eacute necessaacuterio averiguar se a justificativa -

seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1220 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima jaacute que a

justificativa soacute pelo fato de ser intriacutenseca natildeo seraacute

necessariamente legiacutetima nem tampouco soacute por ser extriacutenseca

seraacute necessariamente ilegiacutetima

n) Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a

realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser

encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca

como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

o) A interpretaccedilatildeo do item III1 letra d da Resoluccedilatildeo n 19696

que vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens

significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de

infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila natildeo deve ser literal nem

assistemaacutetica devendo ser considerada a incidecircncia de um

outro principio ainda que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que

eacute o da solidariedade

p) Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita ao princiacutepio da

solidariedade na Resoluccedilatildeo n 19696 a sua aplicaccedilatildeo eacute

cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele

texto afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua

relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-

humanitaacuteria

q) Logo mesmo que natildeo haja nenhum beneficio direto ao sujeito

de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma

justificativa a qual pode ser a intenccedilatildeo sua e do pesquisador

de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e

consequumlentemente para todos os demais seres humanos Aleacutem

disso natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica

sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao

respeito agrave dignidade da pessoa humana

r) A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em

seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade

poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1221

diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica listadas na

Resoluccedilatildeo n 19696 especialmente no item III3

s) Algumas exigecircncias satildeo puramente objetivas e uma vez

desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da

justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca

t) Nas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa

ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou natildeo vir a ter um

benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

u) Outras exigecircncias possuem um certo grau de subjetividade em

maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da

pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo

exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as

circunstacircncias faacutetiacutecas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo

de valor iacutensito a cada um

v) Quando se tratar de exigecircncias subjetivas deveraacute ser levado em

conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma

justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca

w) Quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou

sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal

no resultado do experimento tratando-se portanto de

justificativa extriacutenseca os riscos a que se submete devem ser

considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a

justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o beneficio esperado

tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa

submetida ao experimento

x) Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do

sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero

instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila e por outro

lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute

menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa

consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1222 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a

algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

y) Pode ser que diante de certas peculiaridades ou

vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo

considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa

em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua

realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo

eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima

z) Como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras

pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis

mas sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas agrave luz da

solidariedade o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias

objetivas agrave risca deve ser ainda mais rigoroso na ponderaccedilatildeo

do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave

observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da

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Page 3: BIOÉTICA E PESQUISAS EM SERES HUMANOS

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1189

A nossa abordagem natildeo pretende ser original nem exaustiva Esperamos apenas contribuir para fomentar o importante debate sobre os valores que devem ser preservados na conduccedilatildeo das pesquisas em seres humanos

2 Bioeacutetica surgimento e conceito

O desenvolvimento da ciecircncia4 mormente em aacutereas afeitas agrave vida e a ocorrecircncia de pesquisas francamente contraacuterias agrave dignidade humana como ocorrido em vaacuterias passagens da Segunda Guerra ensejaram o surgimento da Bioeacutetica como um novo ramo do conhecimento5

A doutrina majoritaacuteria6 sustenta que o termo Bioeacutetica foi usado pela primeira vez em 1971 pelo americano Rensselaer Potter em sua obra intitulada Bioethics a Bridge to the Future embora a ideacuteia do autor acerca do vocaacutebulo agrave eacutepoca de sua ediccedilatildeo natildeo coincida com a concepccedilatildeo contemporacircnea atribuiacuteda ao termo7

Hodiernamente a doutrina apresenta inuacutemeras definiccedilotildees de Bioeacutetica com certas divergecircncias quanto a sua metodologia e amplitude ou objeto Alguns autores por exemplo tendem a vinculaacute-la a determinadas aacutereas e especialidades

Bem a propoacutesito as palavras de Ricardo Cunha A ordem cientiacutefica convolou-se em era tecnoloacutegica onde as representaccedilotildees abstratas da matemaacutetica usurpam o sentido do mundo real produzindo uma nova crenccedila Todavia o desconhecido agora natildeo desce dos ceacuteus agrave terra mas ao contraacuterio sobe da terra aos ceacuteus CUNHA Ricardo O Direito em trecircs espantos Fundamentos filosoacuteficos para a relaccedilatildeo entre Ciecircncia Direito e Justiccedila Revista da Faculdade de Direito Cacircndido Mendes Ano 4 n 4 p 39-56 1999 Considerando o nuacutemero de eventos publicaccedilotildees documentos internacionais e disciplinas acadecircmicas Sueli Gandolfi Dallari sustenta que a Bioeacutetica foi o ramo da eacutetica aplicada que mais se desenvolveu nos uacuteltimos anos DALLARI Sueli Gandolfi A Bioeacutetica e a sauacutede puacuteblica In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 209 Haacute posiccedilotildees divergentes Cita-se como exemplo que autores atribuem a palavra a Fritz Jahr que utilizou em 1927 a grafia Bio=Ethik criando o Imperativo Bioeacutetico Respeita cada ser vivo em princiacutepio como uma finalidade em si e trata-o como tal na medida do possiacutevel JAHR Fritz Bio-Ethik Eine Umschau uumlber die ethichen Beziehung des Menschen zu Tier und Pfianze Kosmos n 24 p 2 1927 Natildeo se desconhece entretanto a ecircnfase conferida por alguns autores a outros pesquisadores no que concerne a trabalhos que influenciaram a trajetoacuteria inicial da Bioeacutetica Por exemplo Andreacute Hellegers e Paul Ramsey Hellegers meacutedico holandecircs de formaccedilatildeo jesuiacutetica trabalhou a definiccedilatildeo de criteacuterios para as discussotildees Bioeacuteticas e junto com Fr Henley propocircs em 1970 agrave Fundaccedilatildeo Kennedy a criaccedilatildeo do Kennedy Center for the Study of Human Reproduction and Development Em 1971 o nome mudou para The Joseph and Rose Kennedy Center for the Study of Human Reproduction and Bioethics e finalmente para The Kennedy Institute of Ethics Cf Irving Dianne N What Is Bioethics (Quid Est Bioethics) Life and Learning Conference June 3 2000 disponiacutevel em lthttpwwwcatholiculturenetdocsdoc_viewcfm7recnuirrf320gt Acessado em 22 maio 2006 Jaacute Paul Ramsey publicou em 1970 portanto pouco antes de Potter o livro The Patient as Person Explorations in Medicai Ethics (Second Edition New Heaven Yale University Press 2002) que antecipou algumas das discussotildees da Bioeacutetica

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1190 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

Todavia eacute possiacutevel vislumbrar um certo consenso nas conceituaccedilotildees em

pelo menos trecircs pontos fundamentais vida eacutetica e multidisciplinaridade Esta triparticcedilatildeo

elucida didaticamente o conceito vida (biolt) designa o objeto central eacutetica o

desiderato o objetivo a ser alcanccedilado e multidisciplinaridade a forma de proceder o

meacutetodo Trata-se assim de ciecircncia multidisciplinar preocupada em refletir sobre os

progressos cientiacuteficos e sua ingerecircncia na vida humana agrave luz da eacutetica8

Esmiuccedilando o conceito com relaccedilatildeo agrave multidisciplinaridade observa-se

que a extensatildeo dos temas enfrentados pela Bioeacutetica fatalmente lhe impotildee um proceder

multidisciplinar e dinacircmico o que justifica a existecircncia de conceitos divergentes sobre

determinados assuntos O que se pode almejar portanto eacute uma reflexatildeo pois a

uniformidade de pensamento eacute na maioria dos casos inatingiacutevel9

No que concerne aos objetos de estudo da Bioeacutetica percebe-se a

necessidade de contornos mais perceptiacuteveis o que natildeo parece estar na agenda de alguns

pesquisadores que refutam a adjetivaccedilatildeo de bioeticistas pois acreditam que tendo em

vista a complexidade das questotildees a serem enfrentadas a Bioeacutetica natildeo comportaria

limitaccedilotildees e meacutetodos tampouco seria possiacutevel determinar seus objetos de estudo

tamanha a insurgecircncia de conflitos relacionados agrave vida

Considerando a sua interdisciplinaridade a instituiccedilatildeo de um meacutetodo

uacutenico e a delimitaccedilatildeo dos objetos de reflexatildeo da Bioeacutetica satildeo parecem realmente estar

impossibilitadas neste momento Natildeo eacute agrave toa que foram modelados os conceitos de

macrobioeacutetica e microbioeacutetica 10 A primeira permite extensotildees que podem vir a ser

8 Cf OLIVEIRA Paulo Henrique de Bioeacutetica e sauacutede indiacutegena Monografia apresentada no curso de Especializaccedilatildeo em Bioeacutetica do Departamento de Eacutetica Meacutedica e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo (Satildeo Paulo mimeo 2005) A Declaraccedilatildeo de Bioeacutetica de Gijoacuten adotada no I Congresso Mundial de Bioeacutetica em Gijoacuten na Espanha nos dias 20 a 24 de Junho de 2000 afirma que Uma tarefa importante da Bioeacutetica que constitui uma atividade pluridisciplinar eacute harmonizar o uso das ciecircncias biomeacutedicas e as suas tecnologias com os direitos do homem Texto disponiacutevel em lthttpwwwsibiorgportdccbiohtmgt (acessado em 04062006) Um dos precursores da Bioeacutetica no Brasil Marco Segre preconiza Bioeacutetica eacute a parte da Eacutetica ramo da filosofia que enfoca as questotildees referentes agrave vida humana e portanto agrave sauacutede In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo 1999 p 23 Na concepccedilatildeo de Tereza Rodrigues Vieira a Bioeacutetica Indica um conjunto de reflexotildees pesquisas c praacuteticas pluridisciplinares objetivando elucidar e solucionar questotildees eacuteticas provocadas pelo avanccedilo das tecnociegravencias biomeacutedicas VIEIRA Tereza Rodrigues Bioeacutetica e direito 2 ed Satildeo Paulo Juriacutedica Brasileira 2003 p 15

9 Consoante Carlos Michel Hemaacutedez La Bioeacutetica no tiene formulas permanentes para todas Ias situaciones posibles dentro de su acircmbito aunque siacute oferece Ias liacuteneas generales y especiacuteficas de actuacioacuten a fin de que cada involucrado en una dccisioacuten de esta naturaleza pueda auxiliarse se hace eacutenfasis en no tomar decisiones individuales sobre todo en casos complejos y limite como el que nos ocupa Una de Ias caracteriacutesticas de la Bioeacutetica es el ser multidisciplinaria HERNAacuteDEZ Carlos Michel Bioeacutetica em pediatria In PORTER Joseacute Kuthy GONZAacuteLEZ Oacutescar Martiacutenez MICHEL Martha Tarasco (Orgs) Temas acluales de Bioeacutetica Meacutexico Poruacutea 1999 p 136

10 Cf SEGRE Marco Definiccedilatildeo de Bioeacutetica e sua relaccedilatildeo com a eacutetica deontologia e diceologia In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo 1999 p 27-33

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1191

desmedidas e inadequadas ao incluir na esfera dos estudos bioeacuteticos mateacuterias por exemplo como a Ecologia que objetiva a preservaccedilatildeo da espeacutecie humana e do planeta terra e a Medicina Sanitaacuteria Ocorre que toda e qualquer interrogaccedilatildeo se levada aos extremos indubitavelmente em algum aspecto alcanccedilaraacute a vida humana e a interdisciplinaridade mas apenas isto natildeo a transformaraacute em uma questatildeo Bioeacutetica Jaacute a segunda preocupa-se com a relaccedilatildeo entre os profissionais da aacuterea de sauacutede e os pacientes ou entre instituiccedilotildees puacuteblicas ou privadas pacientes e profissionais de sauacutede Entretanto a Bioeacutetica transborda o interesse das pessoas ligadas diretamente agraves questotildees de sauacutede para atingir todos os Homens jaacute que interfere no conviacutevio social

Parece-nos mais acertado e necessaacuterio limitar a atuaccedilatildeo da Bioeacutetica aos casos em que realmente haacute algum conflito de valores quando numa mesma situaccedilatildeo dois princiacutepios eacutetica e moralmente admissiacuteveis natildeo podem coexistir E o caso por exemplo da eutanaacutesia onde duelam a dignidade do paciente terminal e continuidade da vida do aborto por anencefalia onde se confrontam a vida do feto versus a dignidade da gestante e tambeacutem do caso em epiacutegrafe a pesquisa em seres humanos quando satildeo discutidos entre outros a liberdade e os limites da pesquisa cientiacutefica em contraponto aos princiacutepios gerais da Bioeacutetica e agrave dignidade Por outro lado quando a conduta eacute reprovada ou aceita de forma uniacutessona pela sociedade natildeo haacute porque pensaacute-la no plano da Bioeacutetica como ocorre vg com as questotildees atinentes agrave necessidade de diminuiccedilatildeo da violecircncia ou agrave imperiosidade da conservaccedilatildeo do meio ambiente

3 Os princiacutepios da Bioeacutetica

O principialismo da Bioeacutetica eacute proveniente sobretudo do Belmont Report e de sua lapidaccedilatildeo pela doutrina especialmente por Beauchamp e Childress12

O Belmont Report de 1978 eacute resultado do trabalho da Comissatildeo Nacional para Proteccedilatildeo dos Seres Humanos da Pesquisa Biomeacutedica e Comportamental13 instituiacuteda pelo Governo norte-americano em 12 de julho de 1974 para identificar os princiacutepios eacuteticos baacutesicos aplicaacuteveis na pesquisa em seres humanos As conclusotildees finais do relatoacuterio acabaram transpondo os objetivos iniciais da comissatildeo e formatando princiacutepios que seriam utilizados natildeo-soacute na experimentaccedilatildeo em pessoas mas sim em todas as

The Belmont Report Ethical Guidelines for the Protection of Human Subjects Washington DHFW Publications (OS) 78-0012 1978 O texto original estaacute disponiacutevel em lthttpohrposophsdhhsgovhumansubjeetsguidaneebelmonthtmgt (acessado em 05062006) A denominaccedilatildeo tem origem no local onde o relatoacuterio foi discutido e redigido

12 BEAUCHAMP T L CHILDRESS J F Principies ofBiomedical Ethics 4 ed New York Oxford 1994 13 National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomeacutedica and Behavioral Research

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1192 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

projeccedilotildees da Bioeacutetica14 De qualquer forma esse fato histoacuterico revela desde logo a iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica e as pesquisas em seres humanos

Os trecircs princiacutepios impressos pelo Relatoacuterio e referendados pela Bioeacutetica satildeo os da autonomials da beneficecircncia e da justiccedila Todavia a incidecircncia de um quarto princiacutepio o da natildeo-maleficecircncia eacute reconhecida por muitos pesquisadores

O principio da autonomia reporta-se agrave capacidade de auto-escolha ao auto-governo considerado como uma condiccedilatildeo para a efetiva dignidade do ser racional Autonomia eacute uma palavra que tem origem grega derivando de auto (proacuteprio) e nomos (lei regra norma) vinculando-se assim agrave possibilidade de algueacutem adotar suas proacuteprias decisotildees As pessoas devem ser reconhecidas como entes capazes de tomar suas proacuteprias decisotildees devendo ser preacutevia e devidamente informadas a respeito dos procedimentos seus riscos e consequumlecircncias A informaccedilatildeo adequada eacute portanto fundamental natildeo-soacute no que concerne ao indiviacuteduo diretamente envolvido16 mas tambeacutem a toda a sociedade17

Em termos praacuteticos a autonomia significa dizer por exemplo no caso dos meacutedicos e dos profissionais da Medicina que eles devem respeitar a escolha dos seus pacientes seus dogmas e sua cultura18 Nestes termos a relaccedilatildeo meacutedicopaciente eacute bastante modificada abandonando-se o paternalismo que ateacute entatildeo imperava19

14 Asseveram Leo Pessini e Christian de Paul Barchifontaine que O Relatoacuterio de Belmorit foi oficialmente divulgado em 1978 e causou grande impacto Tornou-se a declaraccedilatildeo principialista claacutessica natildeo somente para a eacutetica ligada agrave pesquisa com seres humanos jaacute que acabou sendo utilizada para a reflexatildeo Bioeacutetica em geral PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Bioeacutetica do principialismo agrave busca de uma perspectiva latino-americana In COSTA Seacutergio Ibiapina F OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 83

15 Tambeacutem denominado de principio do respeito agraves pessoas ou de principio do consentimento Este uacuteltimo foi proposto por H Tristram Engelhardt para indicar melhor que o que estaacute em jogo natildeo eacute algum valor possuiacutedo pela autonomia ou pela liberdade mas o reconhecimento de que a autoridade moral secular deriva do consentimento dos envolvidos em um empreendimento comum O principio do consentimento coloca em destaque a circunstacircncia de que quando Deus natildeo eacute ouvido por todos do mesmo modo (ou natildeo eacute de maneira alguma ouvido por ningueacutem) e quando nem todos Pertencem a uma comunidade perfeitamente integrada e definida e desde que a razatildeo natildeo descubra uma moralidade canocircnica concreta entatildeo a autorizaccedilatildeo ou autoridade moral secularmente justificaacutevel natildeo vem de Deus nem da visatildeo moral de uma comunidade particular nem da razatildeo mas do consentimento dos indiviacuteduos Nessa surdez a Deus e no fracasso da razatildeo os estranhos morais encontram-se como indiviacuteduos ENGELHARDT H Tristram Fundamentos de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1998 p 17

Segundo a jaacute citada Declaraccedilatildeo de Bioeacutetica de Gijoacuten Os participantes da pesquisa deveratildeo conceder seu consentimento livre e plenamente esclarecido

1 A mesma Declaraccedilatildeo de Bioeacutetica de Gijoacuten tambeacutem recomenda que Todos os membros da sociedade devem receber uma informaccedilatildeo geral adequada e acessiacutevel sobre a utilizaccedilatildeo dos avanccedilos cientiacuteficos as biotecnologias e seus produtos O principio da autonomia como pressuposto da auto-determinaccedilatildeo inclusive auto-governo representa o respeito agrave capacidade que tem a pessoa de se governar escolher dividir avaliar sem restriccedilotildees internas e externas Cf BASTOS Paulo Roberto H de Oliveira A Bioeacutetica nas praacuteticas de sauacutede Revista Juriacutedica da FIC-UNAES Campo Grande Ano 1 n 2 p 98 nov 1998 abr 1999

19 Sobre o tema consta da Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten que Cada um tem o direito aos melhores cuidados

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O postulado da autonomia tem forte base teoacuterica John Stuart Mill por exemplo jaacute tinha afirmado que sobre si mesmo sobre seu corpo e sua mente o indiviacuteduo eacute soberano20 Emile Durkheim entendia a autonomia como a interiorizaccedilatildeo das normas21 Por sua vez Jean Piaget estudou a autonomia como a capacidade de coordenaccedilatildeo de diferentes perspectivas sociais com o pressuposto do respeito reciacuteproco22

Poreacutem talvez a autonomia tenha tido na teoria kantiana o seu mais importante manancial A doutrina do filoacutesofo prussiano ultrapassou geraccedilotildees atingindo contornos cosmopolitas e atemporais Suas obras satildeo analisadas sob diferentes prismas idiomas e culturas sendo largamente estudado e recepcionado pela Bioeacutetica A autonomia em obra originalmente publicada em 1785 eacute para o filoacutesofo o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racionar23 E assim o pressuposto para a racionalidade da conduta bem como um princiacutepio supremo da moralidade vez que implica simultaneamente na vontade da norma universal (imperativo categoacuterico) e no respeito agrave dignidade da pessoa humana Registrou Kant na mesma obra que I autonomia da vontade eacute aquela sua propriedade graccedilas agrave qual ela eacute para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer) O princiacutepio da autonomia eacute portanto natildeo escolher senatildeo de modo a que as maacuteximas da escolha estejam incluiacutedas simultaneamente no querer mesmo como lei universal 24

Foi natural assim que a Bioeacutetica adotasse como fundamento o princiacutepio da autonomia2

O Relatoacuterio Belmont propocircs que a autonomia incorpora pelo menos duas convicccedilotildees eacuteticas a primeira que os indiviacuteduos devem ser tratados como agentes

meacutedicos possiacuteveis O doente e o meacutedico devem decidir juntos o domiacutenio do tratamento O doente deveraacute exprimir o seu consentimento livre apoacutes ter sido informado de maneira adequada Vale conferir a doutrina de COHEN Claacuteudio MARCOLINO Joseacute Aacutelvaro Marques Relaccedilatildeo Meacutedico-Paciente Autonomia amp Paternalismo In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo 1999 p 83-94

20 MILL John Stuart On Liberty Boston Collier 1909 p 5 21 Cf SEGRE Marco SILVA F L SCHRAMM F R O contexto histoacuterico semacircntico e filosoacutefico do

principio de autonomia Disponiacutevel em lthttpvwwvportaldomedicoorgbrrevistabiol v6conthistoricohtmgt Acessado em 04 maio 2006 Vide tambeacutem Joseacute Roberto Goldim Princiacutepio do respeito agrave pessoa ou da autonomia Disponiacutevel em lthttpwwwbioeticaufrgsbrautonomihtmgt Acessado cm 23 maio 2006

22 Cf KESSELRING T Jean Piaget Petroacutepolis Vozes 1993 p 173-189 23 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 1992 p 79 24 Id Ibid p 85 25 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO de 2005 agasalha o princiacutepio

da autonomia Seu art 5 por exemplo estatui que Deve ser respeitada a autonomia dos indiviacuteduos para tomar decisotildees quando possam ser responsaacuteveis por essas decisotildees e respeitem a autonomia dos demais Devem ser tomadas medidas especiais para proteger direitos e interesses dos indiviacuteduos natildeo capazes de exercer autonomia

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autocircnomos e a segunda que as pessoas com autonomia diminuiacuteda devem ser protegidas Desta forma divide-se em duas exigecircncias morais separadas a exigecircncia do reconhecimento da autonomia e a exigecircncia de proteger aqueles com autonomia reduzida Esta uacuteltima exigecircncia vincula-se agrave questatildeo da vulnerabilidade que pode ser observada em certas pessoas ou grupos e que seraacute mais adiante abordada

Por sua vez o principio da beneficecircncia de acordo com Clotet e Kipper deve ser entendido como uma dupla obrigaccedilatildeo primeiramente a de natildeo-causar danos e em segundo lugar a de maximizar o nuacutemero de possiacuteveis benefiacutecios e minimizar os prejuiacutezos26

Tambeacutem este postulado mereceu larga abordagem doutrinaacuteria muitas vezes em contraponto ao princiacutepio da natildeo-maleficecircncia que perfunctoriamente impotildee a obrigaccedilatildeo de natildeo-causar intencionalmente danos a outrem

Tal preceito deita raiacutezes no discurso hipocraacutetico na expressatildeo primum non nocere Mas tambeacutem eacute possiacutevel vinculaacute-lo aacute teoria kantiana jaacute que o imperativo categoacuterico conforme o qual Age segundo maacuteximas que possam simultaneamente ter-se a si mesmas por objecto como leis universais da natureza exige uma vontade absolutamente boa ou seja afasta qualquer possibilidade de agir que natildeo seja em benefiacutecio do outro27

Jaacute em 1930 Sir David Ross estabeleceu o conceito de dever prima facie propondo que no caso de eventual conflito entre beneficecircncia e natildeo-maleficecircncia prevaleccedila esta uacuteltima28

Frankena em 1963 escreveu que o princiacutepio da beneficecircncia natildeo nos ensina como fazer a distribuiccedilatildeo do bem e do mal apenas determina que promovamos o primeiro e evitemos o segundo2 Observa-se assim que a natildeo-maleficecircncia eacute entendida como parte da beneficecircncia

O Relatoacuterio Belmont foi influenciado pelo pensamento de Frankena jaacute que tratou a natildeo-maleficecircncia como um desdobramento natural da beneficecircncia ao estabelecer duas regras gerais que devem ser formuladas como complementares das

26 CLOTET amp KIPPER Princiacutepios da beneficecircncia e natildeo-maleficecircncia In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 45

27 Id Ibidp 80-81 28 ROSS W D The right and lhe Good Oxford Clarendon 1930 p 21-22 apud GOLDIM Joseacute Roberto

Principio da Beneficecircncia Disponiacutevel em lthttpwwwbioeticaufrgsbrbenefichtmgt Acessado em 23 maio de 2006

29 Quando se manifestam exigecircncias conflitantes o mais que ele pode fazer eacute aconselhar-nos a conseguir a maior porccedilatildeo possiacutevel de bem em relaccedilatildeo ao mal Cf FRANKENA W K Eacutetica Rio de Janeiro Zahar 1981 p 61-73 apud GOLDIM Joseacute Roberto op cit

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accedilotildees beneacuteficas a) natildeo-causar o mal e b) maximizar os benefiacutecios e minimizar os danos

A seu turno o princiacutepio da justiccedila pode ser resumido no dever de imparcialidade na distribuiccedilatildeo dos riscos e benefiacutecios inerentes agrave pesquisa bem como no tratamento igualitaacuterio aos iguais30 embora naturalmente haja dificuldades na determinaccedilatildeo de quem eacute ou-natildeo igual31 Implica ainda necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa

Segundo o Relatoacuterio Belmont haveraacute injusticcedila quando eacute imposto um dano ou encargo indevidamente ou quando um benefiacutecio eacute negado a algueacutem de maneira injustificada Aleacutem disso reconhece dificuldades na determinaccedilatildeo de um criteacuterio para a distribuiccedilatildeo dos benefiacutecios havendo vaacuterias possibilidades a cada um igualmente a cada um na medida da sua necessidade a cada um conforme seu esforccedilo individual a cada um de acordo com seu meacuterito2

Alguns autores defendem que a importacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica deve ser minorada postulando por uma reflexatildeo mais autocircnoma Nos parece que esse eacute

30 Eacute o princiacutepio da justiccedila que obriga a garantir a distribuiccedilatildeo justa equumlitativa e universal dos benefiacutecios dos serviccedilos de sauacutede Impotildee que todas as pessoas sejam tratadas de igual maneira natildeo obstante suas diferenccedilas Cf SANTOS Celeste Cordeiro dos O equiliacutebrio do pecircndulo a Bioeacutetica e a lei implicaccedilotildees meacutedico-legais Satildeo Paulo iacutecone 1998 p 45

31 O princiacutepio da igualdade tem suscitado importantes debates filosoacuteficos na Histoacuteria da humanidade dando ensejo a interpretaccedilotildees as mais variadas Aristoacuteteles vinculou a igualdade agrave justiccedila que pode ser comutativa ou distributiva (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos Satildeo Paulo Editora Nova Cultural 1996) Haacute ainda os autores nominalistas que entendem que a desigualdade eacute universal e portanto a igualdade natildeo passa de um nome Jaacute LOCKE John Ensaio sobre o governo civil Traduccedilatildeo Carmo Nunes Porto Seacuteculo XX 1986 e Montcsquieu Charles Secondat de O espirito das leis Satildeo Paulo Martins Fontes 1993 ao contraacuterio entendiam que a igualdade entre as pessoas era absoluta pertencendo assim ao grupo denominado de idealistas ROSSEAU Jean-Jacques Discurso sobre a origem das desigualdades entre os homens Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 de sua parte embora tambeacutem pertenccedila a essa uacuteltima vertente admitia a existecircncia de dois tipos de desigualdades a natural (ou fiacutesica) e a moral (ou poliacutetica) Vale entretanto trazer a lume as percucicntes anotaccedilotildees de Leila Pinheiro Bellintani sobre o tema Atraveacutes da anaacutelise histoacuterica do princiacutepio da igualdade [] percebe-se claramente que este preceito passou por intensa evoluccedilatildeo tendo sua conceituaccedilatildeo moldado-se atraveacutes dos tempos agraves novas necessidades sociais Apesar do constante aprimoramento do conceito dos ideais isonocircmicos natildeo se pode dizer que as concepccedilotildees anteriores foram ultrapassadas mas sim que houve uma agregaccedilatildeo de significados no decorrer da histoacuteria fazendo do principio da igualdade o preceito complexo que ora se apresenta Assim os estaacutegios evolutivos natildeo se deram de forma isolada ou independente Ao reveacutes se acumularam como telhas sobrepostas ampliando sempre o leque de acepccedilotildees a serem salvaguardadas ocorrendo o que se pode denominar de sobreposiccedilatildeo de significados Predomina portanto a ideacuteia de cumulaccedilatildeo e natildeo de alternacircncia entre eles Pode-se dizer portanto que hodiernamente o princiacutepio da igualdade possui diversas faces que se integram e que devem ser constantemente observadas pelos aplicadores das leis legisladores e pela proacutepria comunidade BELLINTANI Leila Pinheiro Accedilatildeo Afirmativa e os Princiacutepios do Direito Rio de Janeiro Lumen Juacuteris 2006 p 19-20

32 Impossiacutevel deixar de fazer menccedilatildeo aqui agrave noccedilatildeo de justiccedila distributiva de Aristoacuteteles que tem como base uma igualdade geomeacutetrica e consiste em dar a cada um o que lhe eacute devido mas considerando a excelecircncia que cada um possui o seu valor (areteacute) para a polis () porque aquilo que eacute distribuiacutedo agraves pessoas deve secirc-lo de acordo com o meacuterito de cada uma Op cit p 198

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um falso dilema jaacute que princiacutepios natildeo devem ser aplicados como regras e portanto natildeo representam uma camisa-de-forccedila para a Bioeacutetica Embora os objetivos deste trabalho natildeo nos permitam aprofundar a discussatildeo em torno da sua origem e aplicabilidade celeuma muito comum na ciecircncia juriacutedica natildeo seraacute despiciendo relembrar ao menos que haacute uma distinccedilatildeo juriacutedica entre princiacutepios e regras e que enquanto estas uacuteltimas satildeo aplicadas a partir da oacutetica do ali or nothing excluindo-se mutuamente os primeiros convivem entre si natildeo se excluem e representam motivos para decidir em determinado sentido

Portanto podemos afirmar que os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica pluralista aberta e receptiva Aleacutem disso pragmaticamente a aplicaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo dos princiacutepios em cada caso concreto eacute poderoso instrumento para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

Por tudo isso parece descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos debates bioeacuteticos Tanto assim eacute que a tendecircncia moderna eacute no sentido do reconhecimento de princiacutepios universais da Bioeacutetica Importante anotar por exemplo que o uacuteltimo documento internacional acerca do tema a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO datada de 2005 eacute fortemente principioloacutegica e dentre outros aspectos deliberou ser necessaacuterio e oportuno que a comunidade internacional declare princiacutepios universais que proporcionaratildeo uma base para a resposta da humanidade aos sempre crescentes dilemas e controveacutersias que a ciecircncia e a tecnologia apresentam agrave raccedila humana e ao meio ambiente

Deve-se lembrar finalmente que a abordagem dos princiacutepios da Bioeacutetica em separado tem uma justificativa puramente didaacutetica jaacute que eles natildeo podem ser cindidos na sua conceituaccedilatildeo e muito menos na sua aplicaccedilatildeo praacutetica34

4 Experimentaccedilatildeo em seres humanos aspectos da normatizaccedilatildeo nacional e internacional

Sobre princiacutepios a literatura juriacutedica eacute vasta Vide vg ALEXY Robert Teoria de tos Derechos Fundamentales Madrid Centro de Estuacutedios Constitucionales 1997 p 81-172 DWORKFN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1997 AacuteVILA Humberto Teoria dos Princiacutepios da definiccedilatildeo agrave aplicaccedilatildeo dos princiacutepios juriacutedicos 2 ed Satildeo Paulo Malheiros Editores 2003 ROTHEMBURG Waller Claudius Princiacutepios Constitucionais Porto Alegre Seacutergio Antonio Fabris 1999

4 Nesse sentido GUIMARAtildeES Maria Carolina S Eacutetica biomeacutedica e pesquisa em grupos humanos Revista Meacutedica de Minas Gerais v 3 n 1 p 52-53 janmar 1993 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO destina o seu art 26 agrave inter-relaccedilatildeo e complementaridade dos princiacutepios dispondo que A presente Declaraccedilatildeo deve ser considerada em sua totalidade e seus princiacutepios devem ser compreendidos como complementares e inter-relacionados Cada princiacutepio deve ser interpretado no contexto dos demais de forma pertinente e adequada a cada circunstacircncia

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No seacuteculo XVI Galileu passou a buscar a verdade atraveacutes da experimentaccedilatildeo e da observaccedilatildeo das coisas desvinculando-se da verdade dos escolaacutesticos ou da Igreja Esse eacute considerado o marco de referecircncia das origens da ciecircncia experimental a qual terminou por proporcionar a Revoluccedilatildeo Cientiacutefica nos seacuteculos seguintes35 Esta uacuteltima abriu as portas para uma nova era na humanidade multiplicando o conhecimento e as descobertas gerando tecnologia A tecnologia passou a imprimir uma velocidade cada vez maior nas transformaccedilotildees cientiacuteficas e sociais A velocidade com que as mudanccedilas ocorrem por sua vez municia o Homem com novas perspectivas e instrumentos sempre mais apurados de investigaccedilatildeo o que implica em mais tecnologia36 Investigaccedilatildeo pesquisa conhecimento mudanccedilas tecnologia velocidade formam uma espeacutecie de ciacuterculo virtuoso - natildeo-vicioso31 e satildeo palavras indissociaacuteveis da realidade nos uacuteltimos tempos a partir do seacuteculo XX no qual testemunhamos pelo menos duas espantosas revoluccedilotildees a atocircmica e a molecular38

Todo esse acervo mudou por completo as sociedades e o pensamento humano e natildeo se trata de um processo jaacute findo Pelo contraacuterio muito ainda estaacute por vir Natildeo se sabe aliaacutes se o Homem encontraraacute fronteiras tecnologicamente intransponiacuteveis Essa perspectiva de escassez de barreiras teacutecnicas conduz ao debate sobre a necessidade

35 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 edbdquo rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179

36 Por exemplo vale lembrar o ocorrido durante o desenrolar dos estudos do projeto genoma humano Segundo Jordan (1993) o verdadeiro objetivo inicial do PGH natildeo era o sequumlenciamento muito complexo caro e trabalhoso mas um mapeamento detalhado do genoma humano No decorrer do processo os progressos tecnoloacutegicos foram tatildeo grandes que propiciaram o sequumlenciamento mesmo antes do prazo previsto Cf GOLDIM Joseacute Roberto MATTE Uacutersulla Projeto Genoma Humano - HUGO Disponiacutevel em lthttpwwwufrgsbrbioeticagenomahtmgt Acessado em 28 maio de 2006

37 Natildeo se desconhece entretanto que o ser humano eacute capaz visando objetivos condenaacuteveis natildeo apenas de bloquear pesquisas mas tambeacutem de manipulaacute-las ou de realizaacute-las de forma direcionada propositadamente sem a observacircncia de criteacuterios cientiacuteficos Todavia antes de examinar a transmissatildeo de conhecimentos eacute necessaacuterio acenar para a sua fonte primaacuteria a pesquisa cientiacutefica Tambeacutem aiacute natildeo faltam aacutereas de conflito Foram sobretudo analisadas as frequumlentes ameaccedilas ao conhecimento e agrave informaccedilatildeo cientiacutefica provenientes de decisotildees poliacuteticas ou da proteccedilatildeo de interesses particulares Dentre as decisotildees poliacuteticas a diretora do Instituto Nacional da Seguranccedila e da Sauacutede Ocupacional (NIOSH) dos EUA Linda Rosenstock recordou aquelas assumidas pelo Congresso nos uacuteltimos anos dentro de um quadro de reduccedilatildeo de muitos programas para a proteccedilatildeo aos trabalhadores com a finalidade de bloquear a utilizaccedilatildeo de pesquisas no campo das artropatias do trabalho e de estudos sobre a relaccedilatildeo entre a motorizaccedilatildeo e os tumores e tambeacutem encobrir o fato de duas organizaccedilotildees internacionais designadas para a proteccedilatildeo agrave sauacutede a Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e a Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho estatildeo sob a acusaccedilatildeo de ter manipulado os relatoacuterios teacutecnicos relativos agrave induacutestria do asbesto Dentre os interesses particulares prcvalcccm aqueles das induacutestrias que encomendam pesquisas com a finalidade de demonstrar a inexistecircncia de efeitos nocivos (o exemplo mais macroscoacutepico concerne ao tabaco) ou entatildeo aumentar as incertezas para evitar fazer o que eacute necessaacuterio com base em conhecimentos jaacute comprovados ou mesmo sugerir procedimentos que alongam indefinidamente os periacuteodos de intervenccedilatildeo Cf BERLINGUER Giovanni Bioeacutetica Cotidiana Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2004 p 147-148

38 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia op cit p 159-179

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de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees tendo em conta que a teoria de haacute muito jaacute advertiu1 e a experiecircncia jaacute nos ensinou como adiante se veraacute que a ausecircncia de limites pode levar ao abuso

Embora isso possa ocorrer em vaacuterios campos como vg a economia e a poliacutetica sem duacutevida a aacuterea biomeacutedica eacute uma das que mais merecem nossa atenccedilatildeo natildeo soacute porque estaacute entre as mais influenciadas por essas transformaccedilotildees mas tambeacutem porque eacute uma das que mais tem potencial de desenvolvimento aleacutem do fato oacutebvio de estar diretamente ligada agrave vida humana Exatamente por isso cresce a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave vida especialmente a Medicina40

O acreacutescimo jaacute obtido na expectativa de vida do Homem que praticamente dobrou nos uacuteltimos dois seacuteculos decorrente de vaacuterios fatores dentre os quais uma verdadeira revoluccedilatildeo terapecircutica41 natildeo eacute suficiente As pessoas querem viver ainda mais e com melhor qualidade Por isso cobram mais avanccedilos tecnoloacutegicos nessa aacuterea despertando interesses diversos que vatildeo dos humanitaacuterios aos puramente comerciais e econocircmicos Chega-se a se falar ateacute mesmo em um direito agrave pesquisa que deve figurar entre as liberdades fundamentais unanimemente reconhecidas42

Para que esses desejos se tornem viaacuteveis eacute preciso conhecer cada vez mais profundamente a complexa maacutequina que eacute o corpo humano desenvolver novos faacutermacos medicamentos vacinas e terapias para combater doenccedilas descobrir a fonte da juventude atraveacutes de meacutetodos de desaceleraccedilatildeo - ou quiccedilaacute interrupccedilatildeo - da degeneraccedilatildeo celular dentre outras possibilidades e desafios

Por exemplo eacute conhecida nos meios juriacutedicos a passagem que adverte () mas trata-se de uma experiecircncia eterna que todo homem que possui poder eacute levado a dele abusar ele vai ateacute onde encontra limites Quem diria Ateacute a virtude precisa de limites MONTESQUIEU Charles de Secondat op cit p 170

40 Natildeo eacute agrave toa portanto que em interessante estudo sobre as exigecircncias referentes aos aspectos eacuteticos da pesquisa em revistas cientiacuteficas brasileiras se chegou agrave conclusatildeo de que As revistas de medicina e enfermagem apresentaram maior preocupaccedilatildeo com as orientaccedilotildees eacuteticas do que as revistas natildeo-meacutedicas classificadas nos grupos de miscelecircncia e odontologia sugerindo que o debate eacutetico da experimentaccedilatildeo em seres humanos estaacute mais difundido nas aacutereas meacutedica e de enfermagem do que em outras aacutereas da sauacutede Tal no entanto natildeo representa necessariamente um dado a ser festejado pois o resultado global comprovou que 791 das revistas cientiacuteficas estudadas natildeo fazem qualquer referecircncia aos aspectos eacuteticos Cf T SARDENBERG S S MUumlLLER H R PEREIRA R A DE OLIVEIRA W S HOSSNE Anaacutelise dos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos contidos nas Instruccedilotildees aos Autores de 139 rev istas cientiacuteficas brasileiras Revista da Associaccedilatildeo Meacutedica do Brasil v 45 n 4 p 295-302 1999

41 Sobre a chamada revoluccedilatildeo terapecircutica vide dentre outros BERNARD Jean La Bioeacutethique Paris Dominos Flammarion 1994 p 14-33

42 Conforme LAFON Claudc De la Biologie agrave Ia Bioeacutethique Paris Ellipses 2006 p 30

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A concretizaccedilatildeo desses objetivos depende de inuacutemeros fatores ligados agrave pesquisa cientiacutefica43 dentre os quais um que eacute o ponto central deste trabalho a experimentaccedilatildeo em seres humanos De fato o progresso do nosso conhecimento no passado e no futuro estaacute intimamente ligado agrave necessidade de observaccedilatildeo do funcionamento e da reaccedilatildeo do corpo e da mente humanas44

Em outras palavras eacute preciso tomar o ser humano como sujeito de pesquisa45

Esse fato bom que se diga natildeo eacute exatamente novo tem ocorrido no correr dos tempos suscitando questotildees eacuteticas de suma relevacircncia pois nem sempre as pessoas estudadas tiveram o trato adequado

A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda Guerra mormente as realizadas pelos japoneses e nazistas alematildees tais como a infestaccedilatildeo de prisioneiros com doenccedilas para testar vacinas e a esterilizaccedilatildeo e amputaccedilatildeo de membros46 trouxeram agrave tona a questatildeo da

43 A discussatildeo a respeito das pesquisas natildeo pode se limitar agravequelas de natureza meacutedica e farmacoloacutegica onde os impactos e riscos satildeo maiores e mais perceptiacuteveis E ampla a definiccedilatildeo de pesquisas em seres humanos adotada pela Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede conforme adiante se veraacute Leonard M Martin C Ss R preleciona O documento pretende regulamentar toda pesquisa em seres humanos e natildeo apenas pesquisas puramente biomeacutedicas Nesta perspectiva pesquisas socioloacutegicas e antropoloacutegicas tambeacutem devem passar pelo crivo de Comitecircs de Eacutetica independentes e ser alvo de discussatildeo sobre sua eticidade MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

44 O efeito de um tratamento sobre o homem soacute pode ser observado no proacuteprio homem Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

45 Esse fenocircmeno ocorre em todas as aacutereas do conhecimento e natildeo apenas nas ciecircncias biomeacutedicas Na realidade quando se fala em experimentaccedilatildeo com seres humanos pensa-se quase que exclusivamente na experimentaccedilatildeo no campo da Medicina Essa vinculaccedilatildeo eacute compreensiacutevel pois a experimentaccedilatildeo na aacuterea meacutedica eacute mais visiacutevel e de efeitos mais patentes em geral Contudo eacute bom assinalar que seres humanos satildeo utilizados em experimentaccedilatildeo por profissionais e cientistas de outras aacutereas odontoacutelogos nutricionistas farmacecircuticos fisioterapeutas psicoacutelogos profissionais da aacuterea de educaccedilatildeo fiacutesica e de esporte educadores e tambeacutem economistas Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179 Leonard M Martin C Ss R com base em McNeill e Jonsen destaca que [] as experiecircncias antieacuteticas dos nazistas incluiacuteram colocar prisioneiros em cacircmaras de pressatildeo modificar a pressatildeo atmosfeacuterica e observar suas mortes estudar o impacto sobre o corpo humano de imersatildeo em aacutegua gelada por periacuteodos prolongados infectar os internos com tifo malaacuteria e outras doenccedilas para testar drogas e vacinas esterilizaccedilatildeo e castraccedilatildeo procurando meacutetodos eficazes para esterilizaccedilatildeo em massa administrar venenos para estudar os efeitos letais e estudos com gecircmeos tipo infectando um matando os dois e comparando os corpos em autoacutepsia No atinente a experiecircncias japonesas MARTIN informa que no ala de desenvolver armas bioloacutegicas [] os japoneses atacaram pelo menos onze cidades com armas bioloacutegicas e infestaram uma cidade com pulgas portadores da peste bubocircnica A Unidade 731 tambeacutem era uma prisatildeo onde os prisioneiros foram submetidos a experiecircncias desumanas Houve cirurgia experimentais pessoas foram desidratadas ateacute a morrer alguns tiveram braccedilos congelados e depois degelados usando vaacuterios meacutetodos com a consequumlecircncia de que a carne apodreceu e caiu o fiacutegado de outras pessoas foi exposto por longos

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eacutetica na pesquisa evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana47 e de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa em seres humanos48

Como resposta agraves atrocidades praticadas na Segunda Guerra foi instituiacutedo em 1947 no acircmbito internacional pelo Tribunal de Nuremberg que julgou vinte e trecircs criminosos de guerra nazistas dos quais vinte meacutedicos ligados agrave experimentaccedilatildeo em pessoas49 o denominado Coacutedigo de Nuremberg o qual estabeleceu as diretrizes gerais para pesquisa em seres humanos A doutrina destaca como principais conquistas do coacutedigo o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa em retirar-se do experimento e de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias deste bem como a necessidade de estudos preacutevios sobre a importacircncia da pesquisa e os seus riscos aleacutem da comprovaccedilatildeo da capacidade dos pesquisadores50

Um ano depois a humanidade assiste agrave proclamaccedilatildeo agora pela Assembleacuteia Geral das Naccedilotildees Unidas de um outro documento de suma importacircncia a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos que embora de caraacuteter geral alberga

periacuteodos ao raio-X houve casos do sangue da pessoa ser substituiacutedo por sangue de cavalo e quando as cobaias humanas natildeo serviam mais para as experiecircncias foram executadas O autor ainda ressalta que diferentemente dos alematildees que foram condenados alguns inclusive enforcados os americanos resolveram poupar os japoneses permitindo que continuassem suas carreiras MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

4 Haacute quem afirme - sem razatildeo ao nosso ver - que a dignidade eacute um conceito inuacutetil um mero slogan e que natildeo significaria mais do que o respeito pelas pessoas e por sua autonomia Nesse sentido vide vg MACKLIN Ruth Dignity is a useless concept Brilish Medica Journal v 327 p 20-27 dez 2003 Disponiacutevel em lthttpbmjbmjjournalscomcgicontentfull3277429l419gt Aacessado em 27 maio de 2006 Em sentido inverso sobre as relaccedilotildees entre a Bioeacutetica e a dignidade vide dentre outros ADORNO Roberto La bioegravetique et la dignitegrave de Ia persone Paris Presses Universitaires de France 1997 Os documentos internacionais mencionam o elo entre Bioeacutetica e dignidade A jaacute mencionada Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten por exemplo afirma textualmente que A pesquisa e experiecircncia com seres humanos devem ser realizadas harmonizando a liberdade da ciecircncia e o respeito da dignidade humana

48 A experimentaccedilatildeo em seres humanos causa impacto porque as pessoas temem o abuso Os abusos jaacute ocorreram estatildeo ocorrendo c ainda ocorreratildeo mas proibir o uso natildeo eacute a melhor maneira de impedir o abuso Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

49 Estima-se que centenas de meacutedicos atuaram nos campos de concentraccedilatildeo dos quais pelo menos setenta teriam participado de experimentos com seres humanos A maioria dos meacutedicos de maior expressatildeo conseguiram escapar do julgamento como foi o caso de Josef Mengele principal meacutedico do campo de extermiacutenio de Auschwitz que fugiu e chegou a viver 14 anos no Brasil onde morreu afogado em Bertioga em 1979 O julgamento levou oito meses As sentenccedilas e o Coacutedigo de Nuremberg foram anunciados conjuntamente em 19 de agosto de 1947 Sete acusados foram condenados agrave morte Cf CREMESP Diretrizes e Declaraccedilotildees Disponiacutevel em lthttpvwvbiocticaorgbrlegislacaooutras_diretrizesintegraphpgt Acessado em 30 maio 2006 Discute-se hoje a validade cientiacutefica dos experimentos realizados bem como se eacute eacutetico utilizar os resultados obtidos Nesse sentido vide mateacuteria intitulada Doutores da agonia publicada na revista Superinteressante ed 225 abr2006 p 52-61

50 Cf FREITAS Corina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 195

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direitos que natildeo podem ser olvidados quando da experimentaccedilatildeo com seres humanos a exemplo da dignidade da igualdade e da liberdade Aleacutem disso haacute diversas ligaccedilotildees entre a Declaraccedilatildeo e os princiacutepios da Bioeacutetica51

Assim como a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos o Coacutedigo de Nuremberg proclama criteacuterios princiacutepios miacutenimos e irredutiacuteveis para eticidade da pesquisa em seres humanos Ambas as declaraccedilotildees embora de grande importacircncia para a Bioeacutetica satildeo normalmente entendidas como desprovidas de instrumentos adequados de obrigatoriedade52 e de mecanismos sancionatoacuterios de modo que sua infraccedilatildeo na maioria dos casos tem gerado apenas sanccedilotildees morais

Natildeo-obstante o estabelecido no Coacutedigo de Nuremberg - e na Declaraccedilatildeo Universal - as violaccedilotildees continuaram a ocorrer inclusive nos paiacuteses signataacuterios De fato por exemplo nos Estados Unidos teve continuidade como se nada houvesse acontecido a famosa pesquisa sobre siacutefilis em Tuskegee no condado de Macon Alabama financiada com recursos federais onde especialmente negros e pobres acreditavam que estavam se submetendo a um tratamento especial gratuito quando na verdade nada recebiam embora jaacute houvesse medicamentos disponiacuteveis servindo como verdadeiras cobaias entre 1932 e 1973 para que os pesquisadores pudessem acompanhar o desenvolvimento da doenccedila1 Ainda exemplificativamente foi iniciado em 1946 o chamado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm um dos mais famosos e importantes estudos de odontologia jaacute realizados no qual mais de 436 deficientes mentais crocircnicos internos da cidade de Lund no sul da Sueacutecia que natildeo tinham sequer a menor consciecircncia do que ocorria foram submetidos ateacute 1951 a uma dieta especial rica em accediluacutecar para provar que esta substacircncia provocava caacuteries sem que lhes fosse dado qualquer tratamento54

Por exemplo ao afirmar no seu art 1deg que todas pessoas satildeo dotadas de razatildeo e consciecircncia o documento da ONU reforccedila a ideacuteia de autonomia

52 Em relaccedilatildeo agrave Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Faacutebio Konder Comparato afirma que embora seja tecnicamente apenas uma recomendaccedilatildeo da ONU a seus membros os direitos ali definidos correspondem integralmente ao que o costume e os princiacutepios juriacutedicos internacionais reconhecem hoje como normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens) como a proacutepria Corte Internacional de Justiccedila tem entendido COMPARATO Faacutebio Konder A afirmaccedilatildeo histoacuterica dos Direitos Humanos 4 ed rev e atual Satildeo Paulo Saraiva 2005 p 223-224

53 Vide vg a respeito REVERBY S M More than Fact and Fiction Cultural Memory and the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 31 p 22-28 2001 BRANDT A M Racism and Research The Case of the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 8 p 21-29 1978 BEECHER H K Ethics and Clinicai Research New England Journal of Medicine n 274 p 1354-1360 1966

54 Cf SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas clinicas sobre seus direitos 2005 p 55-61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

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Os avanccedilos tecnoloacutegicos cada vez mais raacutepidos reverberaram nas questotildees eacuteticas forccedilando novas e perioacutedicas revisotildees Necessaacuterio se fez portanto a rediscussatildeo do tema e o aprimoramento do sistema normativo Assim sobreveio a Declaraccedilatildeo de Helsinque elaborada pela Associaccedilatildeo Meacutedica Mundial em 1964 texto que foi revisto e ampliado em 1975 (Toacutequio)55 1983 (Veneza) 1989 (Hong Kong) 1996 (Somerset) e 2000 (Edimburgo) com o que foram incorporadas vaacuterias inovaccedilotildees Por exemplo a disposiccedilatildeo no sentido de que No final do estudo todos os pacientes participantes devem ter assegurado o acesso aos melhores meacutetodos comprovados profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos identificados pelo estudo E no atinente ao uso de placebo que Os benefiacutecios riscos dificuldades e efetividade de um novo meacutetodo devem ser testados comparando-os com os melhores meacutetodos profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos atuais Isto natildeo exclui o uso de placebo ou nenhum tratamento em estudo onde existam meacutetodos provados de profiacutelaxia diagnoacutestico e tratamento 56 Foi tambeacutem reforccedilada a recomendaccedilatildeo do Coacutedigo de Nuremberg sobre a necessidade de submissatildeo do protocolo de pesquisa agrave anaacutelise por um Comitecirc de Eacutetica independente do pesquisador

Outros textos e documentos que tratam da pesquisa merecem referecircncia como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos de 196657 o intitulado Diretrizes Internacionais para a pesquisa biomeacutedica em seres humanos elaborado conjuntamente pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e pelo Council for International Organizations of Medicai Sciences (1993) a Declaraccedilatildeo de Manila (1981) a Declaraccedilatildeo de Princiacutepios Eacuteticos dos Meacutedicos do Mercosul (1996) a Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten (2000) e a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da Unesco (2005)

Em que pese o entendimento de que haacute carecircncia de instrumentos imperativos que garantam a exigibilidade dos referidos documentos sem duacutevida eles

A respeito Leo Pessini e Christian de Paul Barehifontaine ensinam que Tal modificaccedilatildeo fieou conhecida como Helsinque II Entre outros pontos importantes foram incluiacutedos nesta revisatildeo os seguintes aspectos I) Exigecircncia de que o protocolo experimental seja aprovado por uma comissatildeo independente para efeito de apreciaccedilatildeo comentaacuterios e orientaccedilatildeo (item I 2) 2) Que os seres humanos natildeo sejam utilizados em pesquisas a menos que o consentimento consciente do paciente dado livremente tenha sido obtido depois do mesmo ter sido adequadamente informado sobre os objetivos meacutetodos benefiacutecios esperados riscos potenciais e inconvenientes da experimentaccedilatildeo e que ele tenha liberdade de se abster e de cancelar sua participaccedilatildeo a qualquer momento (art I 9) 3) Que o protocolo contenha embasamento eacutetico da pesquisa e a referecircncia de que foram obedecidos os princiacutepios da Declaraccedilatildeo de Helsinque (item I 12) 4) Que os interesses da ciecircncia e da sociedade jamais tenham precedecircncia sobre o bem-estar do indiviacuteduo (item III 4) PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Problemas aluais de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1994 p 131

56 GRECO Dirceu B Poder e injusticcedila na pesquisa envolvendo seres humanos In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 264

57 De acordo com o seu art 7o Ningueacutem poderaacute ser submetido a tortura nem a penas ou tratamentos crueacuteis desumanos ou degradantes Seraacute proibido sobretudo submeter uma pessoa sem seu livre consentimento a experiecircncias meacutedicas ou cientiacuteficas

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contribuiacuteram e contribuem significativamente na proteccedilatildeo ao ser humano objeto de pesquisa pois influenciaram a elaboraccedilatildeo de diretrizes vinculantes no plano individual de cada Estado a exemplo do Brasil como a seguir veremos Por outro lado importante anotar que uma harmonia consensual e global no atinente agrave pesquisa parece impossiacutevel tendo em conta que a cultura os objetivos e as condiccedilotildees cientiacuteficas dos diversos paiacuteses satildeo naturalmente diversificados58 Aliaacutes haacute quem chegue a afirmar que o pluralismo eacutetico em vigor nos dias de hoje natildeo nos permite mais falar em moral universal59

No Brasil a normatizaccedilatildeo se daacute principalmente atraveacutes de resoluccedilotildees do Conselho Federal de Medicina60 e do Conselho Nacional de Sauacutede Aliaacutes a primeira resoluccedilatildeo deste uacuteltimo oacutergatildeo - Resoluccedilatildeo n 01 de 13 de junho de 1988 - tratou justamente de normas de pesquisa em sauacutede tendo dedicado o seu Capiacutetulo II arts 4o a 16 aos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos Esse diploma legal foi posteriormente revogado pela Resoluccedilatildeo n 196 de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Sauacutede que eacute atualmente a base regulamentar da pesquisa no Brasil tratando das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos Esta Resoluccedilatildeo eacute na verdade uma revisatildeo da anterior tendo sido precedida de diaacutelogo entre governo e sociedade civil61

A Resoluccedilatildeo atual afirma jaacute em seu preacircmbulo a sua fundamentaccedilatildeo nos principais documentos internacionais que emanaram declaraccedilotildees e diretrizes sobre

58 Nesse contexto por tanto deve ser considerada a questatildeo do multicuturalismo Como bem ensinam Joseacute A Mainetti Joseacute L Mainettil Existen dificultades en la aplicacioacuten de los principos elaborados por los paiacuteses centrales y es una evidencia por ejemplo que resulta inapropiada la visioacuten estrccha de la autonomia y la aplicacioacuten riacutegida dei requisito dei consentimento informado al modo norteamericano en determinadas circunstancias y comunidades Es preciso entoces reconocer Ias diferenccedilas culturales y en base a eacutestas aplicar los princiacutepios sin renunciar a cllos en formas maacutes adecuadas al ethos particular MAINETTI Joseacute A MAINETTI Joseacute L Bioeacutetica y la experimentacioacuten humana In SOROKIN Patriacutecia (Coord) Bioeacutelica entre utopias y desarraigos Buenos Aires Ad-Hoc Villela 2002 p 190

59 Cf ENGELHARDT JUacuteNIOR Tristam apuei BAUZON Steacutephane La personne biojuridique Paris Press Universitaires de France 2006 p 63

60 Vide como exemplo a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro o qual no seu Capiacutetulo XII trata especificamente da pesquisa meacutedica

61 Cf FREITAS Corina Bontempo Duca de Eacutetica na pesquisa com seres humanos A experiecircncia brasileira In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutelica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 307

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pesquisas que envolvem seres humanos62 e que visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito agrave comunidade cientiacutefica aos sujeitos da pesquisa e ao Estado

Aleacutem disso vinculou a experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da principiologia da Bioeacutetica seja no preacircmbulo onde afirma que incorpora sob a oacutetica do indiviacuteduo e das coletividades os quatro referenciais baacutesicos da Bioeacutetica autonomia natildeo-maleficecircncia beneficecircncia e justiccedila entre outros seja no seu item III 1 que versa sobre a eticidade na pesquisa63

Entre as suas disposiccedilotildees encontramos definiccedilotildees de diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica pesquisa64 pesquisa envolvendo seres humanos65

protocolo de pesquisa66 pesquisador responsaacutevel67 instituiccedilatildeo de pesquisa68 promotor69

patrocinador70 risco da pesquisa71 dano associado ou decorrente da pesquisa72 sujeito da

62 Cila a Resoluccedilatildeo os seguintes documentos o Coacutedigo de Nuremberg (1947) a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem (1948) a Declaraccedilatildeo de Helsinque (1964 e suas versotildees posteriores de 1975 1983 e 1989) o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Poliacuteticos (ONU 1966 aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1992) as Propostas de Diretrizes Eacuteticas Internacionais para Pesquisas Biomeacutedicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMSOMS 1982 e 1993) e as Diretrizes Internacionais para Revisatildeo Eacutetica de Estudos Epidemioloacutegicos (C10MS 1991) III1 - A eticidade da pesquisa implica em a) consentimento livre e esclarecido dos indiviacuteduos-alvo e a proteccedilatildeo a grupos vulneraacuteveis e aos legalmente incapazes (autonomia) Neste sentido a pesquisa envolvendo seres humanos deveraacute sempre trataacute-los em sua dignidade respeitaacute-los em sua autonomia e defendecirc-los em sua vulnerabilidade b) ponderaccedilatildeo entre riscos e benefiacutecios tanto atuais como potenciais individuais ou coletivos (beneficecircncia) comprometendo-se com o maacuteximo de benefiacutecios e o miacutenimo de danos e riscos c) garantia de que danos previsiacuteveis seratildeo evitados (natildeo maleficecircncia)- d) relevacircncia social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimizaccedilatildeo do ocircnus para os sujeitos vulneraacuteveis o que garante a igual consideraccedilatildeo dos interesses envolvidos natildeo perdendo o sentido de sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria (justiccedila e equumlidade) (negritos originais)

64 111 Pesquisa classe de atividades cujo objetivo eacute desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizaacutevel O conhecimento generalizaacutevel consiste em teorias relaccedilotildees ou princiacutepios ou no acuacutemulo de informaccedilotildees sobre as quais estatildeo baseados que possam ser corroborados por meacutetodos cientiacuteficos aceitos de observaccedilatildeo e infercncia

65 112 Pesquisa envolvendo seres humanos pesquisa que individual ou coletivamente envolva o ser humano de forma direta ou indireta em sua totalidade ou partes dele incluindo o manejo de informaccedilotildees ou materiais

66 II3 Protocolo de Pesquisa Documento contemplando a descriccedilatildeo da pesquisa em seus aspectos fundamentais informaccedilotildees relativas ao sujeito da pesquisa agrave qualificaccedilatildeo dos pesquisadores e a todas as instacircncias responsaacuteveis

67 II-4 Pesquisador responsaacutevel pessoa responsaacutevel pela coordenaccedilatildeo e realizaccedilatildeo da pesquisa e pela integridade e bem-estar dos sujeitos da pesquisa

68 II5 - Instituiccedilatildeo de pesquisa - organizaccedilatildeo puacuteblica ou privada legitimamente constituiacuteda e habilitada na qual satildeo realizadas investigaccedilotildees cientiacuteficas

69 116 - Promotor - indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo responsaacutevel pela promoccedilatildeo da pesquisa 70 II7 - Patrocinador - pessoa fiacutesica ou juriacutedica que apoia financeiramente a pesquisa 71 II8 Risco da pesquisa - possibilidade de danos agrave dimensatildeo fiacutesica psiacutequica moral intelectual social

cultural ou espiritual do ser humano em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente II9 Dano associado ou decorrente da pesquisa agravo imediato ou tardio ao indiviacuteduo ou agrave coletividade com nexo causai comprovado direto ou indireto decorrente do estudo cientiacutefico

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pesquisa73 consentimento livre e esclarecido74 indenizaccedilatildeo75 ressarcimento6 Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (CEP)77 vulnerabilidade78 e incapacidade79

A Resoluccedilatildeo regulamentou os Comitecircs de Eacutetica e Pesquisa - CEPs80 em cujas funccedilotildees81 destaca-se a apreciaccedilatildeo do protocolo da pesquisa em todas as suas especificidades o que foi um grande passo no sentido da construccedilatildeo de padrotildees eacuteticos82

Haacute requisitos para a instituiccedilatildeo dos Comitecircs principalmente no atinente agrave sua composiccedilatildeo83

1110 Sujeito da pesquisa eacute o(a) participante pesquisado(a) individual ou coletivamente de caraacuteter voluntaacuterio vedada qualquer forma de remuneraccedilatildeo IIII Consentimento livre e esclarecido anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal livre de viacutecios (simulaccedilatildeo fraude ou erro) dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar formulada em um termo de consentimento autorizando sua participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa 1112 - Indenizaccedilatildeo - cobertura material em reparaccedilatildeo a dano imediato ou tardio causado pela pesquisa ao ser humano a ela submetida 1113 Ressarcimento - cobertura em compensaccedilatildeo exclusiva de despesas decorrentes da participaccedilatildeo do sujeito na pesquisa 1114 - Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa-CEP - colegiados interdisciplinares e independentes com munus puacuteblico de caraacuteter consultivo deliberativo e educativo criados para defender os interesses dos sujeitos da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrotildees eacuteticos 1115 Vulnerabilidade refere-se a estado de pessoas ou grupos que por quaisquer razotildees ou motivos tenham a sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido 1116 - Incapacidade - Refere-se ao possiacutevel sujeito da pesquisa que natildeo tenha capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido devendo ser assistido ou representado de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira vigente O CEP pode ser entendido como um oacutergatildeo controlador da pesquisa por um lado mas por outro eacute tambeacutem um oacutergatildeo que ajuda a harmonizar diversos interesses que como vimos podem ser os mais diversos e agraves vezes ateacute conflitantes Cf PALAacuteCIOS Marisa Eacutetica na pesquisa - 1 Eacutetica em pesquisa em seres humanos In PALAacuteCIOS Marisa MARTINS Andreacute PEGORARO Olinto A (Orgs) Eacutetica ciecircncia e sauacutede humana Petroacutepolis Vozes 2001 p 74 Satildeo atribuiccedilotildees conferidas pela Resoluccedilatildeo aos CEPs a) revisar todos os protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos b) emitir parecer consubstanciado por escrito c) manter a guarda confidencial de todos os dados obtidos na execuccedilatildeo de sua tarefa e arquivamento do protocolo completo que ficaraacute agrave disposiccedilatildeo das autoridades sanitaacuterias d) acompanhar o desenvolvimento dos projetos atraveacutes de relatoacuterios anuais dos pesquisadores e) desempenhar papel consultivo e educativo 0 receber dos sujeitos da pesquisa ou de qualquer outra parte denuacutencias de abusos ou notificaccedilatildeo sobre fatos adversos que possam alterar o curso normal do estudo decidindo pela continuidade modificaccedilatildeo ou suspensatildeo da pesquisa devendo se necessaacuterio adequar o termo de consentimento considerando-se anti-eacutetica a pesquisa descontinuada sem justificativa aceita pelo CEP que a aprovou g) requerer instauraccedilatildeo de sindicacircncia agrave direccedilatildeo da instituiccedilatildeo em caso de denuacutencias de irregularidades de natureza eacutetica nas pesquisas e em havendo comprovaccedilatildeo comunicar agrave Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa CONEPMS e no que couber a outras instacircncias e h) manter comunicaccedilatildeo regular e permanente com a CONEPMS A existecircncia de oacutergatildeos com a funccedilatildeo de aprovar e acompanhar pesquisas jaacute era preconizada por exemplo pelo Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988) cujo art 127 veda ao

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Foi mais aleacutem a Resoluccedilatildeo que de modo inovador reforccedilou o controle eacutetico e a defesa da dignidade da pessoa humana com a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa - CONEP84 que atua na direccedilatildeo e orientaccedilatildeo dos comitecircs8S A comissatildeo de acordo com a Resoluccedilatildeo eacute uma instacircncia colegiada de natureza consultiva deliberativa normativa independente vinculada ao Conselho Nacional de Sauacutede86 Essa vinculaccedilatildeo eacute bastante positiva posto que a alternativa de submetecirc-la a outros oacutergatildeos poderia dar ensejo a uma indesejada politizaccedilatildeo dos seus membros o que seria capaz de terminar por afetar a sua autonomia

meacutedico Realizar pesquisa meacutedica em ser humano sem submeter o protocolo a aprovaccedilatildeo e acompanhamento de comissatildeo isenta de qualquer dependecircncia em relaccedilatildeo ao pesquisador O colegiado com nuacutemero natildeo inferior a 7 (sete) membros deve ser multidisciplinar abrangendo profissionais idocircneos e de distinta formaccedilatildeo da aacuterea de sauacutede e das ciecircncias exatas sociais e humanas incluindo por exemplo juristas teoacutelogos socioacutelogos filoacutesofos bioeticistas aleacutem de membros da sociedade e obrigatoriamente pelo menos um membro representando os usuaacuterios Se a pesquisa envolver grupos vulneraacuteveis comunidades e coletividades um dos seus representantes deveraacute ser convidado para participar como membro ad hoc do CEP da anaacutelise do projeto especiacutefico Assim o CEP ainda segundo a Resoluccedilatildeo teraacute sempre um caraacuteter multi e transdisciplinar sendo vedado que mais que metade de seus membros pertenccedilam a uma mesma categoria profissional devendo ainda participarem pessoas dos dois sexos Satildeo permitidos consultores ad hoc pessoas que pertencem ou natildeo aacute instituiccedilatildeo com o objetivo de fornecer subsiacutedios teacutecnicos Merece ainda atenccedilatildeo especial a autonomia do comitecirc cuja manifestaccedilatildeo deve ser totalmente autocircnoma e imaculada de coaccedilotildees ou pressotildees dos interessados A autonomia e a independecircncia satildeo condiccedilotildees sine qua non para a desejada eficaacutecia dos comitecircs que felizmente estatildeo se proliferando em nosso paiacutes Conforme informaccedilotildees do site da CONEP satildeo 446 CEPs aprovados no Brasil ateacute janeiro de 2006 Disponiacutevel em lthttpoonselhosaudegovbrcomissaoconep2006ceps20APROVADOSxlsgt Acessado em 04 jun 2006 A Comissatildeo tem 13 membros titulares e o mesmo nuacutemero de suplentes em uma composiccedilatildeo que tambeacutem deveraacute ser multi e transdisciplinar com pessoas de ambos os sexos Dentre os seus membros 05 (cinco) devem ser personalidades destacadas no campo da eacutetica na pesquisa e na sauacutede e 08 (oito) devem ser personalidades com destacada atuaccedilatildeo nos campos teoloacutegico juriacutedico e outros assegurando-se que pelo menos um seja da aacuterea de gestatildeo da sauacutede Embora natildeo desconheccedilamos a importacircncia das religiotildees na formaccedilatildeo do pensamento eacutetico humano e sem querer desmerecer as pessoas que nelas militam no mais das vezes com accedilotildees de destacada importacircncia pensamos que eacute inadequada em um Estado laico como o nosso a destinaccedilacirco de vaga ou de vagas especificamente a pessoas do campo teleoloacutegico Essa observaccedilatildeo imperioso demarcar natildeo eacute no sentido de entender que a contribuiccedilatildeo dessas pessoas eacute desnecessaacuteria ou inconveniente Pelo contraacuterio Poreacutem a desejada participaccedilatildeo jaacute poderia ser levada a efeito incluindo-as no grupo de personalidades com atuaccedilatildeo de destaque na esfera da eacutetica na pesquisa e na sauacutede sem necessidade de vinculaccedilatildeo necessaacuteria ao pensamento religioso Isso ateacute mesmo para preservar o pluralismo e a igualdade jaacute que obviamente natildeo seraacute possiacutevel oferecer a cada religiatildeo uma vaga Os membros da Comissatildeo satildeo recrutados a partir de indicaccedilotildees contidas em listas elaboradas pelas instituiccedilotildees que possuem CEP registrado na CONEP sendo que 07 (sete) satildeo escolhidos pelo Conselho Nacional de Sauacutede e 06 (seis) satildeo definidos por sorteio Tambeacutem pode contar com consultores e membros ad hoc sendo assegurada a representaccedilatildeo dos usuaacuterios O mandato eacute de quatro anos com renovaccedilatildeo alternada a cada dois anos de sete ou seis de seus membros A CONEP tem tambeacutem um papel coordenador da rede de Comitecircs institucionais aleacutem de se constituir em oacutergatildeo consultor na aacuterea eacutetica em pesquisa Num primeiro momento tem ainda a atribuiccedilatildeo de apreciar os projetos de pesquisas de aacutereas temaacuteticas especiais enviadas pelos CFPs ou seja projetos que contemplam aacutereas com maiores dilemas eacuteticos e grande repercussatildeo social ateacute que se acumulem experiecircncias para elaboraccedilatildeo de normas especiacuteficas complementares agraves existentes Cf FREITAS Carolina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA

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Outros aspectos da Resoluccedilatildeo que merecem especial destaque para o nosso estudo satildeo os relativos ao consentimento livre e esclarecido agrave vulnerabilidade e agrave incapacidade

Como jaacute dito um dos principais pontos da Declaraccedilatildeo de Nuremberg foi o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias A Resoluccedilatildeo tratou do tema exigindo a anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar87 A anuecircncia deve ser expressa atraveacutes de

Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 202

S6 Segundo a Resoluccedilatildeo compete agrave CONEP examinar os aspectos eacuteticos da pesquisa envolvendo seres humanos assim como a adequaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo das normas atinentes consultando a sociedade sempre que julgar necessaacuterio cabendo-lhe entre outras as seguintes atribuiccedilotildees a) estimular a criaccedilatildeo de CEPs institucionais e de outras instacircncias b) registrar os CEPs institucionais e de outras instacircncias c) aprovar no prazo de 60 dias e acompanhar os protocolos de pesquisa em aacutereas temaacuteticas especiais tais como geneacutetica humana reproduccedilatildeo humana faacutermacos medicamentos vacinas e testes diagnoacutesticos novos (fases I II e III) ou natildeo registrados no pais (ainda que fase IV) ou quando a pesquisa for referente a seu uso com modalidades indicaccedilotildees doses ou vias de administraccedilatildeo diferentes daquelas estabelecidas incluindo seu emprego em combinaccedilotildees equipamentos insumos e dispositivos para a sauacutede novos ou natildeo registrados no paiacutes novos procedimentos ainda natildeo consagrados na literatura populaccedilotildees indiacutegenas projetos que envolvam aspectos de biosseguranccedila pesquisas coordenadas do exterior ou com participaccedilatildeo estrangeira c pesquisas que envolvam remessa de material bioloacutegico para o exterior e projetos que a criteacuterio do CEP devidamente justificado sejam julgados merecedores de anaacutelise pela CONEP d) prover normas especiacuteficas no campo da eacutetica em pesquisa inclusive nas aacutereas temaacuteticas especiais bem como recomendaccedilotildees para aplicaccedilatildeo das mesmas e) funcionar como instacircncia final de recursos a partir de informaccedilotildees fornecidas sistematicamente em caraacuteter ex-ofiacutecio ou a partir de denuacutencias ou de solicitaccedilatildeo de partes interessadas devendo manifestar-se em um prazo natildeo superior a 60 (sessenta) dias 0 rever responsabilidades proibir ou interromper pesquisas definitiva ou temporariamente podendo requisitar protocolos para revisatildeo eacutetica inclusive os jaacute aprovados pelo CEP g) constituir um sistema de informaccedilatildeo e acompanhamento dos aspectos eacuteticos das pesquisas envolvendo seres humanos em todo o territoacuterio nacional mantendo atualizados os bancos de dados h) informar e assessorar o MS o CNS e outras instacircncias do SUS bem como do governo e da sociedade sobre questotildees eacuteticas relativas agrave pesquisa em seres humanos i) divulgar esta e outras normas relativas agrave eacutetica em pesquisa envolvendo seres humanos j) juntamente com outros setores do Ministeacuterio da Sauacutede estabelecer normas e criteacuterios para o credenciamento de Centros de Pesquisa e I) estabelecer suas proacuteprias normas de funcionamento

87 No que concerne agrave pesquisa meacutedica a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro estipula no seu art 123 que eacute vedado ao meacutedico Realizar pesquisa em ser humano sem que este tenha dado consentimento por escrito apoacutes devidamente esclarecido sobre a natureza e consequumlecircncia da pesquisa e que Caso o paciente natildeo tenha condiccedilotildees de dar seu livre consentimento a pesquisa somente poderaacute se realizada em seu proacuteprio beneficio apoacutes expressa autorizaccedilatildeo de seu responsaacutevel legal Jaacute a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO no seu art 6 aliacutenea b estabelece que A pesquisa cientiacutefica soacute deve ser realizada com o preacutevio livre expresso e esclarecido consentimento do indiviacuteduo envolvido A informaccedilatildeo deve ser adequada fornecida de uma forma compreensiacutevel e incluir os procedimentos para a retirada do consentimento O consentimento pode ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer hora e por qualquer razatildeo sem acarretar qualquer desvantagem ou preconceito Exceccedilotildees a este princiacutepio somente devem ocorrer quando em conformidade com os padrotildees eacuteticos e legais adotados pelos Estados consistentes com as provisotildees da presente Declaraccedilatildeo particularmente com o art 27 e com os direitos humanos

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em um termo de consentimento onde eacute autorizada a participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa Aleacutem disso natildeo pode estar viciada por simulaccedilatildeo fraude ou erro nem tampouco pode ser obtida por forccedila de uma situaccedilatildeo de dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo

Trata-se de disposiccedilatildeo decorrente da adoccedilatildeo do princiacutepio da autonomia jaacute abordado que se vincula agrave capacidade de autodeterminaccedilatildeo e auto-escolha e pressupotildee dentre outras premissas a capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos possiacuteveis18

Quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de estudo possuem a capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto ao consentimento livre e esclarecido por quaisquer motivos verifica-se uma situaccedilatildeo de vulnerabilidade que natildeo pode ser desconsiderada pelo pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais A preocupaccedilatildeo com a vulnerabilidade dos sujeitos encontra supedacircneo no Coacutedigo de Nuremberg na Declaraccedilatildeo de Helsinque nas Diretrizes Internacionais para Pesquisa Biomeacutedica envolvendo Seres Humanos89 e tambeacutem como jaacute dito na Resoluccedilatildeo 19696 A dificuldade central relacionada a indiviacuteduos e comunidades vulneraacuteveis eacute com a sua capacidade de compreensatildeo (autonomia plena) sobre o experimento e possibilidade de livremente consentir com a pesquisa e quando quiser dela desistir o que justifica todas as preocupaccedilotildees nesse sentido90

Cabe trazer a lume os ensinamentos do professor chileno Fernando Lolas O respeito pela autonomia das pessoas como agentes morais capazes de decisotildees informadas eacute central no diaacutelogo bioeacutetico Somente a permissatildeo outorgada por uma pessoa pode legitimar uma accedilatildeo que a envolva O valor das pessoas eacute incondicional o que obriga a consideraacute-las fins natildeo meios com a liberdade de viver e a de decidir livres de interferecircncias LOLAS Fernando Bioeacutetica o que eacute como se faz Traduccedilatildeo Milton Camargo Mota Satildeo Paulo Loyola 2001 p 63 A Diretriz Internacional para Pesquisa Biomeacutedica afirma Pesquisa envolvendo indiviacuteduos de comunidades sub-desenvolvidas Antes de iniciar a pesquisa em indiviacuteduos de comunidades subdesenvolvidas seja em paiacuteses desenvolvidos ou em desenvolvimento o pesquisador deve estar seguro que As pessoas da comunidade subdesenvolvida natildeo seratildeo ordinariamente envolvidas na pesquisa que possa ser realizada de forma adequada em comunidades desenvolvidas A pesquisa eacute uma resposta agraves necessidades de sauacutede e agraves prioridades da comunidade na qual seraacute realizada todos os esforccedilos seratildeo tomados no sentido de assegurar o imperativo eacutetico de que o consentimento individual dos sujeitos seraacute informado e Os projetos para a pesquisa foram revisados e aprovados por um comitecirc de eacutetica que tenha entre os seus membros ou consultores pessoas que tenham familiaridade com os costumes e tradiccedilotildees da comunidade Em comentaacuterio agraves diretrizes acima Leo Pessini e Christian Paul de Barchifontaine entendem que Quando a experimentaccedilatildeo visa ao estudo de determinadas condiccedilotildees moacuterbidas tais como doenccedilas endecircmicas em comunidades de baixo niacutevel socioeconocircmico eou cultural incapazes de terem uma consciecircncia clara e apropriada das implicaccedilotildees de sua participaccedilatildeo na experiecircncia eacute de bom alvitre que seja obtida a interveniecircncia de um liacuteder em que a coletividade confia Esse intermediaacuterio dever deixar claro que a participaccedilatildeo eacute voluntaacuteria e que qualquer participante tem a liberdade de natildeo aceitar ou abandonar a experiecircncia a qualquer momento op cit p 133

Conforme Marisa Palaacutecios Quando a autonomia dos sujeitos natildeo eacute plena ou seja quando a capacidade de entender as situaccedilotildees que se apresentam ao sujeito e de autodeterminar-se segundo este entendimento estaacute de alguma forma limitada eacute preciso tomar cuidado especial Eacute o caso dos grupos vulneraacuteveis os iacutendios que tecircm a capacidade de entendimento das situaccedilotildees diminuiacuteda uma vez que compotildeem sociedades

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A vulnerabilidade pode assumir as mais variadas vertentes bem como atingir uma determinada pessoa ou um grupo de seres humanos com peculiaridades comuns tais como crianccedilas idosos iacutendios pacientes terminais desempregados deficientes91 presidiaacuterios92 ou outras situaccedilotildees de dependecircncia93

Pode ocorrer que as pessoas que seratildeo estudadas na pesquisa natildeo tenham capacidade civil para dar o seu consentimento Nesse caso se encontram em situaccedilatildeo de incapacidade e a pesquisa soacute pode ser levada adiante com a intervenccedilatildeo de seus representantes legais que de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira deveratildeo assistir ou representar os incapazes Tambeacutem aqui deve o pesquisador cercar-se de cautelas eacuteticas redobradas

Finalmente deve-se louvar a Resoluccedilatildeo por ter explicitado no seu item III3 um rol de 23 (vinte e trecircs) exigecircncias eacuteticas para a pesquisa de qualquer aacuterea do conhecimento que envolva seres humanos94

culturalmente diversas[] Estas para citar algumas populaccedilotildees caracteriacutesticas Satildeo populaccedilotildees que precisam ser especialmente protegidas dada a proacutepria condiccedilatildeo de vulnerabilidade Maria Carolina S Guimaratildees e Sylvia Caiuby Novaes com alento em Hannah Arendt e Cardia definem o ser vulneraacutevel como Algueacutem que possui cidadania fraacutegil que ignora a relevacircncia do direito agrave integridade fiacutesica como condiccedilatildeo de acesso aos direitos sociais econocircmicos poliacuteticos e trabalhistas Dito assim o que parece a primeira condiccedilatildeo para que um ser vulneraacutevel perca tal situaccedilatildeo eacute o investimento do Estado naquilo que constroacutei e constitui a cidadania naqueles atributos que transformam o indiviacuteduo em cidadatildeo que transformam o animal laborans em homem poliacutetico Essa transformaccedilatildeo eacute no dizer de Hannah Arendt um pressuposto da democracia pois permite ao animal laborans ir do reino da necessidade para o reino da liberdade GUIMARAtildeES Maria Carolina S NOVAES Sylvia Caiuby Autonomia reduzida e vulnerabilidade liberdade de decisatildeo diferenccedila e desigualdade Revista Bioeacutetica Brasiacutelia v 7 n 1 p 23 1999

91 Sobre o tema vide COHEN Claacuteudio Bioeacutetica Pesquisa e Deficiecircncia In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 55-62 92 Nem todo ser humano eacute no entanto capaz de autodeterminaccedilatildeo A capacidade de autodeterminaccedilatildeo amadurece ao longo da vida mas pode ser perdida total ou parcialmente por doenccedila velhice ou situaccedilatildeo de restriccedilatildeo severa como a prisatildeo Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 93 O Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de janeiro de 1988) veda ao meacutedico no seu art 128 Realizar pesquisa meacutedica em voluntaacuterios sadios ou-natildeo que tenham direta ou indiretamente dependecircncia ou subordinaccedilatildeo relativamente ao pesquisador 94 I1I3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias a) ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder a incertezas b) estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou em outros fatos cientiacuteficos c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio d) prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis e) obedecer a metodologia adequada Se houver necessidade de distribuiccedilatildeo aleatoacuteria dos sujeitos da pesquisa em grupos experimentais e de controle assegurar que apriori natildeo seja possiacutevel estabelecer as vantagens de um procedimento sobre outro atraveacutes de revisatildeo de literatura meacutetodos observacionais ou meacutetodos que natildeo envolvam seres humanos 0 ter plenamente justificada quando for o caso a utilizaccedilatildeo de placebo em termos de natildeo maleficecircncia e de necessidade metodoloacutegica g) contar com o consentimento livre e esclarecido do sujeito da pesquisa eou seu representante legal h) contar com os recursos humanos e materiais necessaacuterios que garantam o bem-

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5 Teleologia e legitimidade da pesquisa em seres humanos

Toda experimentaccedilatildeo em seres humanos possui um determinado objetivo o qual pode ou-natildeo estar vinculado ao bem estar proacuteprio da pessoa ou grupo observado

Essa situaccedilatildeo natildeo foi esquecida pela Declaraccedilatildeo de Helsinque cujo preacircmbulo afirma Wo campo cia pesquisa biomeacutedica uma distinccedilatildeo fundamental deve ser feita entre a pesquisa meacutedica na qual o objetivo eacute essencialmente o diagnoacutestico ou a terapecircutica para um paciente e a pesquisa meacutedica cujo objeto essencial eacute puramente cientiacutefico e sem um valor direto diagnoacutestico ou terapecircutico para a pessoa sujeita agrave

estar do sujeito da pesquisa devendo ainda haver adequaccedilatildeo entre a competecircncia do pesquisador e o projeto proposto i) prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade a proteccedilatildeo da imagem e a natildeo estigmatizaccedilatildeo garantindo a natildeo utilizaccedilatildeo das informaccedilotildees em prejuiacutezo das pessoas eou das comunidades inclusive em termos de auto-estima de prestiacutegio eou econocircmico - financeiro j) ser desenvolvida preferencialmente cm indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida 1) respeitar sempre os valores culturais sociais morais religiosos e eacuteticos bem como os haacutebitos e costumes quando as pesquisas envolverem comunidades m) garantir que as pesquisas em comunidades sempre que possiacutevel traduzir-se-atildeo em benefiacutecios cujos efeitos continuem a se fazer sentir apoacutes sua conclusatildeo O projeto deve analisar as necessidades de cada um dos membros da comunidade e analisar as diferenccedilas presentes entre eles explicitando como seraacute assegurado o respeito agraves mesmas n) garantir o retomo dos benefiacutecios obtidos atraveacutes das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas Quando no interesse da comunidade houver benefiacutecio real em incentivar ou estimular mudanccedilas de costumes ou comportamentos o protocolo de pesquisa deve incluir sempre que possiacutevel disposiccedilotildees para comunicar tal benefiacutecio agraves pessoas eou comunidades o) comunicar agraves autoridades sanitaacuterias os resultados da pesquisa sempre que os mesmos puderem contribuir para a melhoria das condiccedilotildees de sauacutede da coletividade preservando poreacutem a imagem e assegurando que os sujeitos da pesquisa natildeo sejam estigmatizados ou percam a auto-estima p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefiacutecios resultantes do projeto seja em termos de retorno social acesso aos procedimentos produtos ou agentes da pesquisa q)assegurar aos sujeitos da pesquisa as condiccedilotildees de acompanhamento tratamento ou de orientaccedilatildeo conforme o caso nas pesquisas de rastreamento demonstrar a preponderacircncia de benefiacutecios sobre riscos e custos r) assegurar a inexistecircncia de conflito de interesses entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa ou patrocinador do projeto s) comprovar nas pesquisas conduzidas do exterior ou com cooperaccedilatildeo estrangeira os compromissos e as vantagens para os sujeitos das pesquisas e para o Brasil decorrentes de sua realizaccedilatildeo Nestes casos deve ser identificado o pesquisador e a instituiccedilatildeo nacionais co-responsaacuteveis pela pesquisa O protocolo deveraacute observar as exigecircncias da Declaraccedilatildeo de Helsinque e incluir documento de aprovaccedilatildeo no paiacutes de origem entre os apresentados para avaliaccedilatildeo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa da instituiccedilatildeo brasileira que exigiraacute o cumprimento de seus proacuteprios referenciais eacuteticos Os estudos patrocinados do exterior tambeacutem devem responder agraves necessidades de treinamento de pessoal no Brasil para que o paiacutes possa desenvolver projetos similares de forma independente t) utilizar o material bioloacutegico e os dados obtidos na pesquisa exclusivamente para a finalidade prevista no seu protocolo u) levar em conta nas pesquisas realizadas em mulheres em idade feacutertil ou em mulheres graacutevidas a avaliaccedilatildeo de riscos e benefiacutecios e as eventuais interferecircncias sobre a fertilidade a gravidez o embriatildeo ou o feto o trabalho de parto o puerpeacuterio a lactaccedilatildeo e o receacutem-nascido v) considerar que as pesquisas em mulheres graacutevidas devem ser precedidas de pesquisas em mulheres fora do periacuteodo gestacional exceto quando a gravidez for o objetivo fundamental da pesquisa x) propiciar nos estudos multicecircntricos a participaccedilatildeo dos pesquisadores que desenvolveratildeo a pesquisa na elaboraccedilatildeo do delineamento geral do projeto e z) descontinuar o estudo somente apoacutes anaacutelise das razotildees da descontinuidade pelo CEP que a aprovou

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pesquisa Em outras palavras haacute experimentos em benefiacutecio do paciente e experimentos em benefiacutecio da ciecircncia Ainda no preacircmbulo da Declaraccedilatildeo de Helsinque encontramos que A finalidade da pesquisa meacutedica envolvendo seres humanos deve ser o aperfeiccediloamento do diagnoacutestico procedimentos terapecircuticos e profilaacuteticos e a compreensatildeo da etiologia e da patologia da doenccedila Conjugando essa afirmaccedilatildeo com a anterior podemos extrair que uma determinada pessoa ou populaccedilatildeo pode ser objeto de pesquisa para desvendar doenccedilas que a afligem ou para desnudar as razotildees pelas quais eacute menos suscetiacutevel ou-natildeo eacute atingida por determinada moleacutestia que afeta aos demais seres humanos

A partir dessas observaccedilotildees podemos considerar para os fins do nosso estudo que as experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas teleologicamente em dois grupos a) aquelas cujos objetivos possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas as quais chamaremos de pesquisas com justificativa intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de terceiros as quais denominaremos pesquisas com justificativa extrinseca Temos como exemplo na primeira situaccedilatildeo os experimentos cientiacuteficos para desvendar o porquecirc de uma determinada coletividade ser atingida por taxas elevadas de uma certa doenccedila e na segunda uma pesquisa para revelar as razotildees pelas quais certas pessoas natildeo desenvolvem uma moleacutestia com o objetivo de descobrir uma vacina ou um medicamento para os demais

Entretanto em todo experimento seraacute necessaacuterio averiguar se a justificativa - seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima Isso porque o fato de uma pesquisa ter por objetivo um tratamento mais eficiente ou a cura de certas doenccedilas natildeo legitima por si soacute a utilizaccedilatildeo de pessoas como sujeito de pesquisa mesmo que elas sofram da moleacutestia e possam vir a ser beneficiadas Natildeo se deve perder de vista aliaacutes que se o conhecimento puder ser obtido por outro meio a utilizaccedilatildeo de seres humanos justamente por ser desnecessaacuteria seraacute ilegiacutetima95 Ademais soacute pelo fato de ser intriacutenseca a justificativa natildeo seraacute necessariamente legiacutetima Por outro lado a circunstacircncia isoladamente considerada do eventual resultado da experimentaccedilatildeo ser absolutamente indiferente ao sujeito de pesquisa natildeo torna a sua participaccedilatildeo ilegiacutetima Em outras palavras a justificativa soacute por ser extrinseca natildeo seraacute necessariamente ilegiacutetima

Vale relembrar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 - A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio

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A razatildeo disso reside na afirmaccedilatildeo de que como se sabe desde Kant o Homem deve ser tratado como um fim em si mesmo e natildeo como instrumento De fato eacute em Kant que o Homem ganha status de valor absoluto manifesto no imperativo praacutetico expresso na maacutexima segundo a qual Ages de tal maneira que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio 96

Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

Quando se trata de experimentaccedilatildeo com justificativa intriacutenseca a razatildeo legitimadora pode estar no objetivo de beneficiar os proacuteprios sujeitos da pesquisa algueacutem se submete a uma experimentaccedilatildeo na tentativa de auferir uma vantagem em seu bem-estar fiacutesico ou mental

Jaacute no caso da justificativa extriacutenseca poder-se-ia objetar a realizaccedilatildeo da experimentaccedilatildeo com suposto fundamento na Resoluccedilatildeo 19696 cujo item III 1 letra d vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila Ora se em uma determinada situaccedilatildeo algueacutem participa do experimento sem que haja qualquer possibilidade de benefiacutecio fiacutesico ou mental para si a partir do resultado da pesquisa e considerando que a mesma Resoluccedilatildeo veda qualquer forma de remuneraccedilatildeo do sujeito da pesquisa (item 1110) qual a vantagem significativa que poderaacute essa pessoa auferir para justificar a sua participaccedilatildeo

Ao nosso ver a interpretaccedilatildeo desse ponto da Resoluccedilatildeo natildeo deve ser literal nem assistemaacutetica97 devendo ser considerada a incidecircncia de um outro princiacutepio ainda

Op cit p 69 Em comento a este imperativo Francesca Puigpclat Marti apregoa que La concepcioacuten liberal asocia a esta expresioacuten una idea comuacuten en Ia reflexioacuten eacutetica de raigambre kantiana el hombre es un fin en si mismo un sujeto y no un objeto Seguacuten Kant en el sistema de Ia natureza el hombre (homo phaenomenon animal rationale) es un ser de escasa importancia y tiene con los demaacutes animales en tanto que productos de Ia tierra un precio comuacuten () Ahora bien el hombre considerado como persona es dccir como sujeto de una razoacuten praacutetico-moral estaacute situado por encima de todo precio porque como tal (homo noumenon) no puede valorarse soacutelo como meacutedio para fines ajenos incluso para sus proprios fines sino como fin en siacute mismo es decir posee una dignidad(un valor interno absoluto) gracias a la cual infunde respeto haciacutea eacutel a todos los demaacutes seres racionales dei mundo puede medirse con cualquier otro de esta clase y valorarse en pie de igualdad En la medida en que seguacuten Kant el hombre existe como fin en siacute mismo y no soacutelo como meacutedio para usos cualesquiera de una u otra voluntad se puede formular el siguiente principio praacutetico supremo obra de tal modo que uses la humanidad tanto en tu persona como en la persona de cualquier otro siempre como un fin al mismo tiempo y nunca solamente como un meacutedio MARTIacute Francesca Puigpelat Clonacioacuten dignidad humana y constitucioacuten Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo ano II n 42 janmar p37-64 2003

Natildeo se interpreta o direito em tiras aos pedaccedilos () Um texto de direito isolado destacado desprendido do sistema juriacutedico natildeo expressa significado normativo algum Cf GRAU Eros Roberto Ensaio e

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que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que eacute o da solidariedade Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita entendemos que a sua aplicaccedilatildeo eacute cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele dispositivo (item 1111 letra d da Resoluccedilatildeo 19696) afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria Aleacutem disso outros documentos de importacircncia para a Bioeacutetica fazem referecircncia agrave solidariedade98 De fato natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao respeito agrave dignidade da pessoa humana99

Logo no nosso pensar mesmo que natildeo haja nenhum benefiacutecio ou vantagem direta ao sujeito de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma justificativa eacutetica a qual pode ter como nuacutecleo a intenccedilatildeo solidaacuteria dessa pessoa e do pesquisador de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e consequumlentemente para todos os demais seres humanos

A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica100

Estas exigecircncias no acircmbito normativo brasileiro estatildeo listadas na Resoluccedilatildeo 19696 especialmente no item III3

Algumas delas satildeo puramente objetivas e uma vez desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca E o caso por exemplo da necessidade de consentimento preacutevio e informado

discurso sobre a interpretaccedilatildeoaplicaccedilatildeo do Direito Satildeo Paulo Malheiros Editores 2002 p 34 98

O art 1deg da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos proclama que todas pessoas devem agir em relaccedilatildeo umas agraves outras com espiacuterito de fraternidade Alem disso a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO em um dos seus considerandos observa que os seres humanos tecircm um papel importante na proteccedilatildeo um do outro tratando expressamente da solidariedade e cooperaccedilatildeo no seu art 13 segundo o qual A solidariedade entre os seres humanos e cooperaccedilatildeo internacional para este fim devem ser estimuladas 99 Ela [a solidariedade] eacute o fecho de aboacutebada do sistema de princiacutepios eacuteticos pois complementa e aperfeiccediloa a liberdade a igualdade e a seguranccedila () E um erro considerar que no mundo da natureza sobretudo no mundo animal natildeo exista solidariedade e que ela seja uma criaccedilatildeo poliacutetica Muito pelo contraacuterio pode-se dizer que a biosfera forma naturalmente um sistema solidaacuterio e que o rompimento desse sistema eacute sempre obra do homem O proacuteprio Darwin bem advertiu que a expressatildeo struggle for Existence fora por ele usada em sentido amplo e matafoacuterico incluindo a dependecircncia de um ser em relaccedilatildeo a outro bem como incluindo (o que eacute mais importante) natildeo apenas a vida do indiviacuteduo mas o ecircxito em deixar descendentes Os zooacutelogos jaacute observaram que o processo de seleccedilatildeo natural deu mais vantagens bioloacutegicas aos grupos que cuidavam de seus membros natildeo reprodutivos do que agravequeles que abandonavam ou matavam os anciatildeos pois a capacidade de reproduccedilatildeo global dos grupos altruiacutestas eacute assim singularmente reforccedilada Cf COMPARATO Faacutebio Konder Eacutetica direito moral e religiatildeo no mundo moderno Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 p 577578

100

Natildeo eacute agrave toa portanto que como jaacute visto a Resoluccedilatildeo 19696 vincula a eticidade na pesquisa aos princiacutepios da Bioeacutetica tanto no seu preacircmbulo como no seu item III 1

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dos participantes - ou dos seus representantes se incapazes - 101 cuja ausecircncia macula o princiacutepio da autonomia Tambeacutem eacute objetiva a exigecircncia da pesquisa estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou outros fatos cientiacuteficos102 cuja inobservacircncia implica em ofensa agrave natildeo-maleficecircncia Nessas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou-natildeo vir a ter um benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

Outras exigecircncias entretanto possuem um certo grau de subjetividade em maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as circunstacircncias faacuteticas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo de valor iacutensito a cada um Desse tipo vg eacute a exigecircncia segundo a qual a pesquisa deve ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e ter possibilidades concretas de responder a incertezas103 A avaliaccedilatildeo quanto ao cumprimento ou-natildeo da exigecircncia e portanto quanto agrave legitimidade ou ilegitimidade da utilizaccedilatildeo de seres humanos tem um niacutetido caraacuteter subjetivo podendo variar de pessoa para pessoa

Quando tratamos de exigecircncias subjetivas haacute ainda um outro aspecto a ser apontado deveraacute ser levado em conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca Em outras palavras a circunstacircncia do sujeito de pesquisa poder vir a ser beneficiado ou-natildeo pelo resultado do experimento deve ser considerada na verificaccedilatildeo da legitimidade eacutetica quando da ponderaccedilatildeo sobre o cumprimento das exigecircncias subjetivas

Tomemos como exemplo a exigecircncia de que devem prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis104 Ora essa exigecircncia eacute subjetiva pois envolve uma ponderaccedilatildeo cujo resultado estaacute vinculado a um juiacutezo de valor sobre a natureza e a importacircncia ou peso de cada benefiacutecio ou risco provaacutevel Ao nosso entender quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal no resultado do experimento tratando-se portanto de justificativa extriacutenseca eacute oacutebvio que os riscos a que se submete devem ser considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o benefiacutecio esperado tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa submetida ao experimento

101 Item III3 letra g da Resoluccedilatildeo 19696 102 Item III3 letra b da Resoluccedilatildeo 19696 103 Item III3 letra a da Resoluccedilatildeo 19696 104 Item III3 letra d da Resoluccedilatildeo 19696

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1215

Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila105 Por outro lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

A proacutepria realizaccedilatildeo ou-natildeo da pesquisa pode depender dessa ponderaccedilatildeo jaacute que a Resoluccedilatildeo n 19696 prevecirc que havendo riscos potenciais as pesquisas envolvendo seres humanos poderatildeo ser admitidas quando oferecerem elevada possibilidade de gerar conhecimento para entender prevenir ou aliviar um problema que afete o bem-estar dos sujeitos da pesquisa e de outros indiviacuteduos 106

Aleacutem disso parece ser mais aceitaacutevel eticamente submeter o ser humano a riscos maiores quando a justificativa eacute intriacutenseca do que quando ela eacute extriacutenseca priorizando assim a sua preservaccedilatildeo Nesse sentido a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO estipula que uos interesses e o bem-estar do indiviacuteduo devem ter prioridade sobre o interesse exclusivo da ciecircncia ou da sociedade 107

Natildeo se pode esquecer ainda que por forccedila dos princiacutepios da beneficecircncia da natildeo-maleficecircncia e da justiccedila eacute preciso considerar na mediccedilatildeo da legitimidade as peculiaridades individuais ou coletivas dos sujeitos de pesquisa especialmente no que concerne agraves suas eventuais vulnerabilidades bem como cuidar para que natildeo lhes seja imposto um mal desnecessaacuterio ou desproporcional O princiacutepio da justiccedila como vimos implica necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa os quais sempre que possiacutevel devem ter garantido para si pelo pesquisador a fruiccedilatildeo dos benefiacutecios da experimentaccedilatildeo natildeo sendo equacircnime impor-Ihes ocircnus excessivos108 especialmente se vulneraacuteveis Natildeo eacute agrave toa portanto que pode

105 O princiacutepio da justiccedila implica atenccedilatildeo especial agraves regras de recrutamento de participantes de experimentos Natildeo se pode fazer experimentos apenas com determinados grupos - pacientes de enfermaria asilados prisioneiros - simplesmente porque eles estatildeo agrave disposiccedilatildeo e em situaccedilatildeo de dependecircncia Isso eacute injusto Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 Item Vl aliacutenea a

107 Art 3 aliacutenea b 108 bull

Consideramos que deva ser modificada a praacutetica muito comum em nosso paiacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de pesquisados provenientes das camadas mais desfavorecidas da sociedade ou de outros grupos vulneraacuteveis mas que posteriormente natildeo poderatildeo se beneficiar dos resultantes positivos das pesquisas em que tomaram parte mesmo tendo enfrentado riscos de danos psico-sociais As pesquisas realizadas nesses grupos devem poder lhes trazer benefiacutecios e os pesquisadores sempre que possiacutevel devem garantir retomo dos benefiacutecios resultados das pesquisas para os sujeitos individuais e coletivos que nelas participarem Cf FORTES Paulo Antonio de Carvalho As Pesquisas em Seres Humanos e o Principio Eacutetico da Justiccedila

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1216 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

haver exigecircncias eacuteticas especiacuteficas para pesquisas com serem humanos em situaccedilatildeo de vulnerabilidade109

Assim sempre seraacute preciso dosar a equaccedilatildeo riscobeneficio ponderando em cada caso concreto se os eventuais benefiacutecios satildeo suficientes para motivar a exposiccedilatildeo das pessoas ao processo de experimentaccedilatildeo Pode ser que diante de certas peculiaridades ou vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima110 Aliaacutes como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis justamente porque como jaacute dito o ser humano natildeo pode ser tratado como mero instrumento1

E natildeo eacute soacute Aleacutem disso em princiacutepio a pesquisa com pessoas ou grupos vulneraacuteveis deve ter uma justificativa intriacutenseca2 Entretanto sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas em experimentos extriacutensecos agrave luz da solidariedade como no caso do grupo vulneraacutevel ser imune a determinada moleacutestia por razatildeo ainda desconhecida o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias objetivas agrave risca deve ser ainda mais

Cadernos de Eacutetica em Pesquisa Ano 1 n 2 p 22-23 nov 1998 109

A tiacutetulo de exemplo a Resoluccedilatildeo 19696 traz alguns requisitos especiacuteficos para o consentimento livre e esclarecido de pessoas ou populaccedilotildees vulneraacuteveis no item IV3

110 Um caso de niacutetida violaccedilatildeo aos princiacutepios bioeacuteticos em pesquisas envolvendo grupo vulneraacutevel foi o jaacute mencionado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm Conforme um dos colaboradores da pesquisa utilizar doentes mentais ainda que natildeo voluntaacuterios foi a melhor opccedilatildeo diante do fato de que o principal problema da sauacutede puacuteblica era justamente o das doenccedilas dentaacuterias razatildeo pela qual os fins justificariam os meios ainda mais considerando que o estudo foi utilizado em todo o mundo (Krasse B Sueacutecia usou deficiente mental como cobaia Folha de Satildeo Paulo 23 Set 1997 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas cliacutenicas sobre seus direitos 2005 p 61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo) sendo faacutecil criticar o fato depois de consumado (Krasse B The Vipeholm dental caries study recollections and reflections 50 years later J Dent Res 2001 80(9) 1785-8 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu op cit p 61) Mais uma vez cabiacutevel rememorar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () j) ser desenvolvida preferencialmente em indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida

112 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO eacute clara ao afirmar em seu art 7 aliacutenea b no que diz respeito a indiviacuteduos sem a capacidade para fornecer consentimento que a pesquisa soacute deve ser realizada para o beneficio direto agrave sauacutede do indiviacuteduo envolvido estando sujeita agrave autorizaccedilatildeo e agraves condiccedilotildees de proteccedilatildeo prescritas pela legislaccedilatildeo e caso natildeo haja nenhuma alternativa de pesquisa de eficaacutecia comparaacutevel que possa incluir sujeitos de pesquisa com capacidade para fornecer consentimento

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1217

rigoroso na ponderaccedilatildeo do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da autonomia e justiccedila expondo tais pessoas a riscos miacutenimos menores ateacute do que aqueles normalmente empregados em pesquisas com justificativa intriacutenseca3

Se essas diretrizes natildeo forem observadas teremos uma pesquisa carente de justificativa eacutetica e de legitimidade

6 Conclusotildees

Em virtude dos limites inerentes agrave nossa abordagem nessas consideraccedilotildees finais natildeo apresentaremos verdades irrefutaacuteveis e definitivas sobre um tema que ainda carece de um importante debate acadecircmico e normativo Com efeito o que pretendemos modestamente foi evidenciar alguns paradigmas que possam ensejar a conciliaccedilatildeo da dignidade da pessoa humana com a continuidade dos processos de investigaccedilatildeo cientiacuteficos realizados em seres humanos Para tanto podemos sintetizar nosso pensamento nas seguintes conclusotildees

a) O desenvolvimento da ciecircncia mormente em aacutereas afeitas agrave vida e a ocorrecircncia de pesquisas francamente contraacuterias agrave dignidade humana como ocorrido em vaacuterias passagens da Segunda Guerra ensejaram o surgimento da Bioeacutetica como um novo ramo do conhecimento

b) Deve-se limitar a atuaccedilatildeo da Bioeacutetica aos casos em que haacute conflito de valores quando dois princiacutepios eacutetica e moralmente admissiacuteveis natildeo podem coexistir

c) Haacute iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica Autonomia Beneficecircncia e Justiccedila aleacutem da Natildeo-Maleficecircncia - e as pesquisas em seres humanos

113 Ainda conforme o art 7 aliacutenea b da Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO quando se trata de pessoas incapazes Pesquisas sem potencial beneficio direto agrave sauacutede soacute devem ser realizadas excepcionalmente com a maior restriccedilatildeo expondo o indiviacuteduo apenas a risco e desconforto miacutenimos e quando se espera que a pesquisa contribua com o benefiacutecio agrave sauacutede de outros indiviacuteduos na mesma categoria sendo sujeitas agraves condiccedilotildees prescritas por lei e compatiacuteveis com a proteccedilatildeo dos direitos humanos do indiviacuteduo A recusa de tais indiviacuteduos em participar de pesquisas deve ser respeitada

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1218 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

d) Os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica

pluralista aberta e receptiva e satildeo um poderoso instrumento

para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

razotildees pelas quais eacute descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos

debates bioeacuteticos

e) O avanccedilo tecnoloacutegico traz cada vez mais a diminuiccedilatildeo de

limites teacutecnicos ao ser humano o que conduz ao debate sobre a

necessidade de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees para

evitar eventuais abusos especialmente na aacuterea biomeacutedica

elevando a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que

demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave

vida

0 A concretizaccedilatildeo dos objetivos atuais da humanidade

especialmente em relaccedilatildeo agrave expectativa de vida depende

dentre outros fatores da pesquisa cientiacutefica e da

experimentaccedilatildeo em seres humanos Poreacutem eacute preciso tomar o

Homem como sujeito de pesquisa sem trataacute-lo como mero

instrumento mas como um fim em si mesmo

g) A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do

interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda

Guerra trouxeram agrave tona a questatildeo da eacutetica na pesquisa

evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana e

de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa

em seres humanos gerando uma seacuterie de normas internacionais

e nacionais a exemplo do Coacutedigo de Nuremberg da

Declaraccedilatildeo de Helsinque e no Brasil da Resoluccedilatildeo n 19696

do Conselho Nacional de Sauacutede

h) Dentre os principais aspectos da Resoluccedilatildeo n 19696 do

Conselho Nacional de Sauacutede encontramos a vinculaccedilatildeo da

experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da

principiologia da Bioeacutetica a explicitaccedilatildeo de um rol de

exigecircncias para a eticidade na pesquisa as definiccedilotildees de

diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica como o

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1219

consentimento livre e esclarecido a vulnerabilidade e a

incapacidade a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em

Pesquisa -CONEP e a regulamentaccedilatildeo dos Comitecircs de Eacutetica e

Pesquisa - CEPs

i) O consentimento livre e esclarecido decorre da adoccedilatildeo do

princiacutepio da autonomia e pressupotildee dentre outras premissas a

capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os

aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos

possiacuteveis

j) A vulnerabilidade natildeo pode ser desconsiderada pelo

pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais ocorrendo

quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de

estudo por quaisquer motivos possuem a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto agrave

compreensatildeo sobre o experimento e a possibilidade de

livremente consentir com a pesquisa e dela desistir

k) A incapacidade ocorre quando as pessoas que seratildeo estudadas

na pesquisa natildeo possuem capacidade civil para dar o seu

consentimento soacute podendo ser levada adiante a pesquisa com a

intervenccedilatildeo de seus representantes legais implicando tambeacutem

no dever do pesquisador de cercar-se de cautelas eacuteticas

redobradas

1) As experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas

teleologicamcnte em dois grupos a) aquelas cujos objetivos

possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas

observadas as quais chamamos de pesquisas com justificativa

intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo

direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de

terceiros as quais denominamos pesquisas com justificativa

extrinseca

m) Em todo experimento eacute necessaacuterio averiguar se a justificativa -

seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1220 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima jaacute que a

justificativa soacute pelo fato de ser intriacutenseca natildeo seraacute

necessariamente legiacutetima nem tampouco soacute por ser extriacutenseca

seraacute necessariamente ilegiacutetima

n) Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a

realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser

encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca

como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

o) A interpretaccedilatildeo do item III1 letra d da Resoluccedilatildeo n 19696

que vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens

significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de

infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila natildeo deve ser literal nem

assistemaacutetica devendo ser considerada a incidecircncia de um

outro principio ainda que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que

eacute o da solidariedade

p) Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita ao princiacutepio da

solidariedade na Resoluccedilatildeo n 19696 a sua aplicaccedilatildeo eacute

cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele

texto afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua

relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-

humanitaacuteria

q) Logo mesmo que natildeo haja nenhum beneficio direto ao sujeito

de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma

justificativa a qual pode ser a intenccedilatildeo sua e do pesquisador

de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e

consequumlentemente para todos os demais seres humanos Aleacutem

disso natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica

sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao

respeito agrave dignidade da pessoa humana

r) A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em

seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade

poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1221

diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica listadas na

Resoluccedilatildeo n 19696 especialmente no item III3

s) Algumas exigecircncias satildeo puramente objetivas e uma vez

desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da

justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca

t) Nas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa

ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou natildeo vir a ter um

benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

u) Outras exigecircncias possuem um certo grau de subjetividade em

maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da

pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo

exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as

circunstacircncias faacutetiacutecas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo

de valor iacutensito a cada um

v) Quando se tratar de exigecircncias subjetivas deveraacute ser levado em

conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma

justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca

w) Quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou

sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal

no resultado do experimento tratando-se portanto de

justificativa extriacutenseca os riscos a que se submete devem ser

considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a

justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o beneficio esperado

tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa

submetida ao experimento

x) Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do

sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero

instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila e por outro

lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute

menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa

consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1222 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a

algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

y) Pode ser que diante de certas peculiaridades ou

vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo

considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa

em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua

realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo

eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima

z) Como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras

pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis

mas sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas agrave luz da

solidariedade o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias

objetivas agrave risca deve ser ainda mais rigoroso na ponderaccedilatildeo

do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave

observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da

autonomia e justiccedila

Satildeo Paulo novembro de 2006

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1190 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

Todavia eacute possiacutevel vislumbrar um certo consenso nas conceituaccedilotildees em

pelo menos trecircs pontos fundamentais vida eacutetica e multidisciplinaridade Esta triparticcedilatildeo

elucida didaticamente o conceito vida (biolt) designa o objeto central eacutetica o

desiderato o objetivo a ser alcanccedilado e multidisciplinaridade a forma de proceder o

meacutetodo Trata-se assim de ciecircncia multidisciplinar preocupada em refletir sobre os

progressos cientiacuteficos e sua ingerecircncia na vida humana agrave luz da eacutetica8

Esmiuccedilando o conceito com relaccedilatildeo agrave multidisciplinaridade observa-se

que a extensatildeo dos temas enfrentados pela Bioeacutetica fatalmente lhe impotildee um proceder

multidisciplinar e dinacircmico o que justifica a existecircncia de conceitos divergentes sobre

determinados assuntos O que se pode almejar portanto eacute uma reflexatildeo pois a

uniformidade de pensamento eacute na maioria dos casos inatingiacutevel9

No que concerne aos objetos de estudo da Bioeacutetica percebe-se a

necessidade de contornos mais perceptiacuteveis o que natildeo parece estar na agenda de alguns

pesquisadores que refutam a adjetivaccedilatildeo de bioeticistas pois acreditam que tendo em

vista a complexidade das questotildees a serem enfrentadas a Bioeacutetica natildeo comportaria

limitaccedilotildees e meacutetodos tampouco seria possiacutevel determinar seus objetos de estudo

tamanha a insurgecircncia de conflitos relacionados agrave vida

Considerando a sua interdisciplinaridade a instituiccedilatildeo de um meacutetodo

uacutenico e a delimitaccedilatildeo dos objetos de reflexatildeo da Bioeacutetica satildeo parecem realmente estar

impossibilitadas neste momento Natildeo eacute agrave toa que foram modelados os conceitos de

macrobioeacutetica e microbioeacutetica 10 A primeira permite extensotildees que podem vir a ser

8 Cf OLIVEIRA Paulo Henrique de Bioeacutetica e sauacutede indiacutegena Monografia apresentada no curso de Especializaccedilatildeo em Bioeacutetica do Departamento de Eacutetica Meacutedica e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo (Satildeo Paulo mimeo 2005) A Declaraccedilatildeo de Bioeacutetica de Gijoacuten adotada no I Congresso Mundial de Bioeacutetica em Gijoacuten na Espanha nos dias 20 a 24 de Junho de 2000 afirma que Uma tarefa importante da Bioeacutetica que constitui uma atividade pluridisciplinar eacute harmonizar o uso das ciecircncias biomeacutedicas e as suas tecnologias com os direitos do homem Texto disponiacutevel em lthttpwwwsibiorgportdccbiohtmgt (acessado em 04062006) Um dos precursores da Bioeacutetica no Brasil Marco Segre preconiza Bioeacutetica eacute a parte da Eacutetica ramo da filosofia que enfoca as questotildees referentes agrave vida humana e portanto agrave sauacutede In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo 1999 p 23 Na concepccedilatildeo de Tereza Rodrigues Vieira a Bioeacutetica Indica um conjunto de reflexotildees pesquisas c praacuteticas pluridisciplinares objetivando elucidar e solucionar questotildees eacuteticas provocadas pelo avanccedilo das tecnociegravencias biomeacutedicas VIEIRA Tereza Rodrigues Bioeacutetica e direito 2 ed Satildeo Paulo Juriacutedica Brasileira 2003 p 15

9 Consoante Carlos Michel Hemaacutedez La Bioeacutetica no tiene formulas permanentes para todas Ias situaciones posibles dentro de su acircmbito aunque siacute oferece Ias liacuteneas generales y especiacuteficas de actuacioacuten a fin de que cada involucrado en una dccisioacuten de esta naturaleza pueda auxiliarse se hace eacutenfasis en no tomar decisiones individuales sobre todo en casos complejos y limite como el que nos ocupa Una de Ias caracteriacutesticas de la Bioeacutetica es el ser multidisciplinaria HERNAacuteDEZ Carlos Michel Bioeacutetica em pediatria In PORTER Joseacute Kuthy GONZAacuteLEZ Oacutescar Martiacutenez MICHEL Martha Tarasco (Orgs) Temas acluales de Bioeacutetica Meacutexico Poruacutea 1999 p 136

10 Cf SEGRE Marco Definiccedilatildeo de Bioeacutetica e sua relaccedilatildeo com a eacutetica deontologia e diceologia In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo 1999 p 27-33

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desmedidas e inadequadas ao incluir na esfera dos estudos bioeacuteticos mateacuterias por exemplo como a Ecologia que objetiva a preservaccedilatildeo da espeacutecie humana e do planeta terra e a Medicina Sanitaacuteria Ocorre que toda e qualquer interrogaccedilatildeo se levada aos extremos indubitavelmente em algum aspecto alcanccedilaraacute a vida humana e a interdisciplinaridade mas apenas isto natildeo a transformaraacute em uma questatildeo Bioeacutetica Jaacute a segunda preocupa-se com a relaccedilatildeo entre os profissionais da aacuterea de sauacutede e os pacientes ou entre instituiccedilotildees puacuteblicas ou privadas pacientes e profissionais de sauacutede Entretanto a Bioeacutetica transborda o interesse das pessoas ligadas diretamente agraves questotildees de sauacutede para atingir todos os Homens jaacute que interfere no conviacutevio social

Parece-nos mais acertado e necessaacuterio limitar a atuaccedilatildeo da Bioeacutetica aos casos em que realmente haacute algum conflito de valores quando numa mesma situaccedilatildeo dois princiacutepios eacutetica e moralmente admissiacuteveis natildeo podem coexistir E o caso por exemplo da eutanaacutesia onde duelam a dignidade do paciente terminal e continuidade da vida do aborto por anencefalia onde se confrontam a vida do feto versus a dignidade da gestante e tambeacutem do caso em epiacutegrafe a pesquisa em seres humanos quando satildeo discutidos entre outros a liberdade e os limites da pesquisa cientiacutefica em contraponto aos princiacutepios gerais da Bioeacutetica e agrave dignidade Por outro lado quando a conduta eacute reprovada ou aceita de forma uniacutessona pela sociedade natildeo haacute porque pensaacute-la no plano da Bioeacutetica como ocorre vg com as questotildees atinentes agrave necessidade de diminuiccedilatildeo da violecircncia ou agrave imperiosidade da conservaccedilatildeo do meio ambiente

3 Os princiacutepios da Bioeacutetica

O principialismo da Bioeacutetica eacute proveniente sobretudo do Belmont Report e de sua lapidaccedilatildeo pela doutrina especialmente por Beauchamp e Childress12

O Belmont Report de 1978 eacute resultado do trabalho da Comissatildeo Nacional para Proteccedilatildeo dos Seres Humanos da Pesquisa Biomeacutedica e Comportamental13 instituiacuteda pelo Governo norte-americano em 12 de julho de 1974 para identificar os princiacutepios eacuteticos baacutesicos aplicaacuteveis na pesquisa em seres humanos As conclusotildees finais do relatoacuterio acabaram transpondo os objetivos iniciais da comissatildeo e formatando princiacutepios que seriam utilizados natildeo-soacute na experimentaccedilatildeo em pessoas mas sim em todas as

The Belmont Report Ethical Guidelines for the Protection of Human Subjects Washington DHFW Publications (OS) 78-0012 1978 O texto original estaacute disponiacutevel em lthttpohrposophsdhhsgovhumansubjeetsguidaneebelmonthtmgt (acessado em 05062006) A denominaccedilatildeo tem origem no local onde o relatoacuterio foi discutido e redigido

12 BEAUCHAMP T L CHILDRESS J F Principies ofBiomedical Ethics 4 ed New York Oxford 1994 13 National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomeacutedica and Behavioral Research

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projeccedilotildees da Bioeacutetica14 De qualquer forma esse fato histoacuterico revela desde logo a iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica e as pesquisas em seres humanos

Os trecircs princiacutepios impressos pelo Relatoacuterio e referendados pela Bioeacutetica satildeo os da autonomials da beneficecircncia e da justiccedila Todavia a incidecircncia de um quarto princiacutepio o da natildeo-maleficecircncia eacute reconhecida por muitos pesquisadores

O principio da autonomia reporta-se agrave capacidade de auto-escolha ao auto-governo considerado como uma condiccedilatildeo para a efetiva dignidade do ser racional Autonomia eacute uma palavra que tem origem grega derivando de auto (proacuteprio) e nomos (lei regra norma) vinculando-se assim agrave possibilidade de algueacutem adotar suas proacuteprias decisotildees As pessoas devem ser reconhecidas como entes capazes de tomar suas proacuteprias decisotildees devendo ser preacutevia e devidamente informadas a respeito dos procedimentos seus riscos e consequumlecircncias A informaccedilatildeo adequada eacute portanto fundamental natildeo-soacute no que concerne ao indiviacuteduo diretamente envolvido16 mas tambeacutem a toda a sociedade17

Em termos praacuteticos a autonomia significa dizer por exemplo no caso dos meacutedicos e dos profissionais da Medicina que eles devem respeitar a escolha dos seus pacientes seus dogmas e sua cultura18 Nestes termos a relaccedilatildeo meacutedicopaciente eacute bastante modificada abandonando-se o paternalismo que ateacute entatildeo imperava19

14 Asseveram Leo Pessini e Christian de Paul Barchifontaine que O Relatoacuterio de Belmorit foi oficialmente divulgado em 1978 e causou grande impacto Tornou-se a declaraccedilatildeo principialista claacutessica natildeo somente para a eacutetica ligada agrave pesquisa com seres humanos jaacute que acabou sendo utilizada para a reflexatildeo Bioeacutetica em geral PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Bioeacutetica do principialismo agrave busca de uma perspectiva latino-americana In COSTA Seacutergio Ibiapina F OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 83

15 Tambeacutem denominado de principio do respeito agraves pessoas ou de principio do consentimento Este uacuteltimo foi proposto por H Tristram Engelhardt para indicar melhor que o que estaacute em jogo natildeo eacute algum valor possuiacutedo pela autonomia ou pela liberdade mas o reconhecimento de que a autoridade moral secular deriva do consentimento dos envolvidos em um empreendimento comum O principio do consentimento coloca em destaque a circunstacircncia de que quando Deus natildeo eacute ouvido por todos do mesmo modo (ou natildeo eacute de maneira alguma ouvido por ningueacutem) e quando nem todos Pertencem a uma comunidade perfeitamente integrada e definida e desde que a razatildeo natildeo descubra uma moralidade canocircnica concreta entatildeo a autorizaccedilatildeo ou autoridade moral secularmente justificaacutevel natildeo vem de Deus nem da visatildeo moral de uma comunidade particular nem da razatildeo mas do consentimento dos indiviacuteduos Nessa surdez a Deus e no fracasso da razatildeo os estranhos morais encontram-se como indiviacuteduos ENGELHARDT H Tristram Fundamentos de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1998 p 17

Segundo a jaacute citada Declaraccedilatildeo de Bioeacutetica de Gijoacuten Os participantes da pesquisa deveratildeo conceder seu consentimento livre e plenamente esclarecido

1 A mesma Declaraccedilatildeo de Bioeacutetica de Gijoacuten tambeacutem recomenda que Todos os membros da sociedade devem receber uma informaccedilatildeo geral adequada e acessiacutevel sobre a utilizaccedilatildeo dos avanccedilos cientiacuteficos as biotecnologias e seus produtos O principio da autonomia como pressuposto da auto-determinaccedilatildeo inclusive auto-governo representa o respeito agrave capacidade que tem a pessoa de se governar escolher dividir avaliar sem restriccedilotildees internas e externas Cf BASTOS Paulo Roberto H de Oliveira A Bioeacutetica nas praacuteticas de sauacutede Revista Juriacutedica da FIC-UNAES Campo Grande Ano 1 n 2 p 98 nov 1998 abr 1999

19 Sobre o tema consta da Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten que Cada um tem o direito aos melhores cuidados

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1193

O postulado da autonomia tem forte base teoacuterica John Stuart Mill por exemplo jaacute tinha afirmado que sobre si mesmo sobre seu corpo e sua mente o indiviacuteduo eacute soberano20 Emile Durkheim entendia a autonomia como a interiorizaccedilatildeo das normas21 Por sua vez Jean Piaget estudou a autonomia como a capacidade de coordenaccedilatildeo de diferentes perspectivas sociais com o pressuposto do respeito reciacuteproco22

Poreacutem talvez a autonomia tenha tido na teoria kantiana o seu mais importante manancial A doutrina do filoacutesofo prussiano ultrapassou geraccedilotildees atingindo contornos cosmopolitas e atemporais Suas obras satildeo analisadas sob diferentes prismas idiomas e culturas sendo largamente estudado e recepcionado pela Bioeacutetica A autonomia em obra originalmente publicada em 1785 eacute para o filoacutesofo o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racionar23 E assim o pressuposto para a racionalidade da conduta bem como um princiacutepio supremo da moralidade vez que implica simultaneamente na vontade da norma universal (imperativo categoacuterico) e no respeito agrave dignidade da pessoa humana Registrou Kant na mesma obra que I autonomia da vontade eacute aquela sua propriedade graccedilas agrave qual ela eacute para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer) O princiacutepio da autonomia eacute portanto natildeo escolher senatildeo de modo a que as maacuteximas da escolha estejam incluiacutedas simultaneamente no querer mesmo como lei universal 24

Foi natural assim que a Bioeacutetica adotasse como fundamento o princiacutepio da autonomia2

O Relatoacuterio Belmont propocircs que a autonomia incorpora pelo menos duas convicccedilotildees eacuteticas a primeira que os indiviacuteduos devem ser tratados como agentes

meacutedicos possiacuteveis O doente e o meacutedico devem decidir juntos o domiacutenio do tratamento O doente deveraacute exprimir o seu consentimento livre apoacutes ter sido informado de maneira adequada Vale conferir a doutrina de COHEN Claacuteudio MARCOLINO Joseacute Aacutelvaro Marques Relaccedilatildeo Meacutedico-Paciente Autonomia amp Paternalismo In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo 1999 p 83-94

20 MILL John Stuart On Liberty Boston Collier 1909 p 5 21 Cf SEGRE Marco SILVA F L SCHRAMM F R O contexto histoacuterico semacircntico e filosoacutefico do

principio de autonomia Disponiacutevel em lthttpvwwvportaldomedicoorgbrrevistabiol v6conthistoricohtmgt Acessado em 04 maio 2006 Vide tambeacutem Joseacute Roberto Goldim Princiacutepio do respeito agrave pessoa ou da autonomia Disponiacutevel em lthttpwwwbioeticaufrgsbrautonomihtmgt Acessado cm 23 maio 2006

22 Cf KESSELRING T Jean Piaget Petroacutepolis Vozes 1993 p 173-189 23 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 1992 p 79 24 Id Ibid p 85 25 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO de 2005 agasalha o princiacutepio

da autonomia Seu art 5 por exemplo estatui que Deve ser respeitada a autonomia dos indiviacuteduos para tomar decisotildees quando possam ser responsaacuteveis por essas decisotildees e respeitem a autonomia dos demais Devem ser tomadas medidas especiais para proteger direitos e interesses dos indiviacuteduos natildeo capazes de exercer autonomia

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autocircnomos e a segunda que as pessoas com autonomia diminuiacuteda devem ser protegidas Desta forma divide-se em duas exigecircncias morais separadas a exigecircncia do reconhecimento da autonomia e a exigecircncia de proteger aqueles com autonomia reduzida Esta uacuteltima exigecircncia vincula-se agrave questatildeo da vulnerabilidade que pode ser observada em certas pessoas ou grupos e que seraacute mais adiante abordada

Por sua vez o principio da beneficecircncia de acordo com Clotet e Kipper deve ser entendido como uma dupla obrigaccedilatildeo primeiramente a de natildeo-causar danos e em segundo lugar a de maximizar o nuacutemero de possiacuteveis benefiacutecios e minimizar os prejuiacutezos26

Tambeacutem este postulado mereceu larga abordagem doutrinaacuteria muitas vezes em contraponto ao princiacutepio da natildeo-maleficecircncia que perfunctoriamente impotildee a obrigaccedilatildeo de natildeo-causar intencionalmente danos a outrem

Tal preceito deita raiacutezes no discurso hipocraacutetico na expressatildeo primum non nocere Mas tambeacutem eacute possiacutevel vinculaacute-lo aacute teoria kantiana jaacute que o imperativo categoacuterico conforme o qual Age segundo maacuteximas que possam simultaneamente ter-se a si mesmas por objecto como leis universais da natureza exige uma vontade absolutamente boa ou seja afasta qualquer possibilidade de agir que natildeo seja em benefiacutecio do outro27

Jaacute em 1930 Sir David Ross estabeleceu o conceito de dever prima facie propondo que no caso de eventual conflito entre beneficecircncia e natildeo-maleficecircncia prevaleccedila esta uacuteltima28

Frankena em 1963 escreveu que o princiacutepio da beneficecircncia natildeo nos ensina como fazer a distribuiccedilatildeo do bem e do mal apenas determina que promovamos o primeiro e evitemos o segundo2 Observa-se assim que a natildeo-maleficecircncia eacute entendida como parte da beneficecircncia

O Relatoacuterio Belmont foi influenciado pelo pensamento de Frankena jaacute que tratou a natildeo-maleficecircncia como um desdobramento natural da beneficecircncia ao estabelecer duas regras gerais que devem ser formuladas como complementares das

26 CLOTET amp KIPPER Princiacutepios da beneficecircncia e natildeo-maleficecircncia In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 45

27 Id Ibidp 80-81 28 ROSS W D The right and lhe Good Oxford Clarendon 1930 p 21-22 apud GOLDIM Joseacute Roberto

Principio da Beneficecircncia Disponiacutevel em lthttpwwwbioeticaufrgsbrbenefichtmgt Acessado em 23 maio de 2006

29 Quando se manifestam exigecircncias conflitantes o mais que ele pode fazer eacute aconselhar-nos a conseguir a maior porccedilatildeo possiacutevel de bem em relaccedilatildeo ao mal Cf FRANKENA W K Eacutetica Rio de Janeiro Zahar 1981 p 61-73 apud GOLDIM Joseacute Roberto op cit

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1195

accedilotildees beneacuteficas a) natildeo-causar o mal e b) maximizar os benefiacutecios e minimizar os danos

A seu turno o princiacutepio da justiccedila pode ser resumido no dever de imparcialidade na distribuiccedilatildeo dos riscos e benefiacutecios inerentes agrave pesquisa bem como no tratamento igualitaacuterio aos iguais30 embora naturalmente haja dificuldades na determinaccedilatildeo de quem eacute ou-natildeo igual31 Implica ainda necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa

Segundo o Relatoacuterio Belmont haveraacute injusticcedila quando eacute imposto um dano ou encargo indevidamente ou quando um benefiacutecio eacute negado a algueacutem de maneira injustificada Aleacutem disso reconhece dificuldades na determinaccedilatildeo de um criteacuterio para a distribuiccedilatildeo dos benefiacutecios havendo vaacuterias possibilidades a cada um igualmente a cada um na medida da sua necessidade a cada um conforme seu esforccedilo individual a cada um de acordo com seu meacuterito2

Alguns autores defendem que a importacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica deve ser minorada postulando por uma reflexatildeo mais autocircnoma Nos parece que esse eacute

30 Eacute o princiacutepio da justiccedila que obriga a garantir a distribuiccedilatildeo justa equumlitativa e universal dos benefiacutecios dos serviccedilos de sauacutede Impotildee que todas as pessoas sejam tratadas de igual maneira natildeo obstante suas diferenccedilas Cf SANTOS Celeste Cordeiro dos O equiliacutebrio do pecircndulo a Bioeacutetica e a lei implicaccedilotildees meacutedico-legais Satildeo Paulo iacutecone 1998 p 45

31 O princiacutepio da igualdade tem suscitado importantes debates filosoacuteficos na Histoacuteria da humanidade dando ensejo a interpretaccedilotildees as mais variadas Aristoacuteteles vinculou a igualdade agrave justiccedila que pode ser comutativa ou distributiva (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos Satildeo Paulo Editora Nova Cultural 1996) Haacute ainda os autores nominalistas que entendem que a desigualdade eacute universal e portanto a igualdade natildeo passa de um nome Jaacute LOCKE John Ensaio sobre o governo civil Traduccedilatildeo Carmo Nunes Porto Seacuteculo XX 1986 e Montcsquieu Charles Secondat de O espirito das leis Satildeo Paulo Martins Fontes 1993 ao contraacuterio entendiam que a igualdade entre as pessoas era absoluta pertencendo assim ao grupo denominado de idealistas ROSSEAU Jean-Jacques Discurso sobre a origem das desigualdades entre os homens Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 de sua parte embora tambeacutem pertenccedila a essa uacuteltima vertente admitia a existecircncia de dois tipos de desigualdades a natural (ou fiacutesica) e a moral (ou poliacutetica) Vale entretanto trazer a lume as percucicntes anotaccedilotildees de Leila Pinheiro Bellintani sobre o tema Atraveacutes da anaacutelise histoacuterica do princiacutepio da igualdade [] percebe-se claramente que este preceito passou por intensa evoluccedilatildeo tendo sua conceituaccedilatildeo moldado-se atraveacutes dos tempos agraves novas necessidades sociais Apesar do constante aprimoramento do conceito dos ideais isonocircmicos natildeo se pode dizer que as concepccedilotildees anteriores foram ultrapassadas mas sim que houve uma agregaccedilatildeo de significados no decorrer da histoacuteria fazendo do principio da igualdade o preceito complexo que ora se apresenta Assim os estaacutegios evolutivos natildeo se deram de forma isolada ou independente Ao reveacutes se acumularam como telhas sobrepostas ampliando sempre o leque de acepccedilotildees a serem salvaguardadas ocorrendo o que se pode denominar de sobreposiccedilatildeo de significados Predomina portanto a ideacuteia de cumulaccedilatildeo e natildeo de alternacircncia entre eles Pode-se dizer portanto que hodiernamente o princiacutepio da igualdade possui diversas faces que se integram e que devem ser constantemente observadas pelos aplicadores das leis legisladores e pela proacutepria comunidade BELLINTANI Leila Pinheiro Accedilatildeo Afirmativa e os Princiacutepios do Direito Rio de Janeiro Lumen Juacuteris 2006 p 19-20

32 Impossiacutevel deixar de fazer menccedilatildeo aqui agrave noccedilatildeo de justiccedila distributiva de Aristoacuteteles que tem como base uma igualdade geomeacutetrica e consiste em dar a cada um o que lhe eacute devido mas considerando a excelecircncia que cada um possui o seu valor (areteacute) para a polis () porque aquilo que eacute distribuiacutedo agraves pessoas deve secirc-lo de acordo com o meacuterito de cada uma Op cit p 198

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um falso dilema jaacute que princiacutepios natildeo devem ser aplicados como regras e portanto natildeo representam uma camisa-de-forccedila para a Bioeacutetica Embora os objetivos deste trabalho natildeo nos permitam aprofundar a discussatildeo em torno da sua origem e aplicabilidade celeuma muito comum na ciecircncia juriacutedica natildeo seraacute despiciendo relembrar ao menos que haacute uma distinccedilatildeo juriacutedica entre princiacutepios e regras e que enquanto estas uacuteltimas satildeo aplicadas a partir da oacutetica do ali or nothing excluindo-se mutuamente os primeiros convivem entre si natildeo se excluem e representam motivos para decidir em determinado sentido

Portanto podemos afirmar que os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica pluralista aberta e receptiva Aleacutem disso pragmaticamente a aplicaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo dos princiacutepios em cada caso concreto eacute poderoso instrumento para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

Por tudo isso parece descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos debates bioeacuteticos Tanto assim eacute que a tendecircncia moderna eacute no sentido do reconhecimento de princiacutepios universais da Bioeacutetica Importante anotar por exemplo que o uacuteltimo documento internacional acerca do tema a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO datada de 2005 eacute fortemente principioloacutegica e dentre outros aspectos deliberou ser necessaacuterio e oportuno que a comunidade internacional declare princiacutepios universais que proporcionaratildeo uma base para a resposta da humanidade aos sempre crescentes dilemas e controveacutersias que a ciecircncia e a tecnologia apresentam agrave raccedila humana e ao meio ambiente

Deve-se lembrar finalmente que a abordagem dos princiacutepios da Bioeacutetica em separado tem uma justificativa puramente didaacutetica jaacute que eles natildeo podem ser cindidos na sua conceituaccedilatildeo e muito menos na sua aplicaccedilatildeo praacutetica34

4 Experimentaccedilatildeo em seres humanos aspectos da normatizaccedilatildeo nacional e internacional

Sobre princiacutepios a literatura juriacutedica eacute vasta Vide vg ALEXY Robert Teoria de tos Derechos Fundamentales Madrid Centro de Estuacutedios Constitucionales 1997 p 81-172 DWORKFN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1997 AacuteVILA Humberto Teoria dos Princiacutepios da definiccedilatildeo agrave aplicaccedilatildeo dos princiacutepios juriacutedicos 2 ed Satildeo Paulo Malheiros Editores 2003 ROTHEMBURG Waller Claudius Princiacutepios Constitucionais Porto Alegre Seacutergio Antonio Fabris 1999

4 Nesse sentido GUIMARAtildeES Maria Carolina S Eacutetica biomeacutedica e pesquisa em grupos humanos Revista Meacutedica de Minas Gerais v 3 n 1 p 52-53 janmar 1993 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO destina o seu art 26 agrave inter-relaccedilatildeo e complementaridade dos princiacutepios dispondo que A presente Declaraccedilatildeo deve ser considerada em sua totalidade e seus princiacutepios devem ser compreendidos como complementares e inter-relacionados Cada princiacutepio deve ser interpretado no contexto dos demais de forma pertinente e adequada a cada circunstacircncia

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No seacuteculo XVI Galileu passou a buscar a verdade atraveacutes da experimentaccedilatildeo e da observaccedilatildeo das coisas desvinculando-se da verdade dos escolaacutesticos ou da Igreja Esse eacute considerado o marco de referecircncia das origens da ciecircncia experimental a qual terminou por proporcionar a Revoluccedilatildeo Cientiacutefica nos seacuteculos seguintes35 Esta uacuteltima abriu as portas para uma nova era na humanidade multiplicando o conhecimento e as descobertas gerando tecnologia A tecnologia passou a imprimir uma velocidade cada vez maior nas transformaccedilotildees cientiacuteficas e sociais A velocidade com que as mudanccedilas ocorrem por sua vez municia o Homem com novas perspectivas e instrumentos sempre mais apurados de investigaccedilatildeo o que implica em mais tecnologia36 Investigaccedilatildeo pesquisa conhecimento mudanccedilas tecnologia velocidade formam uma espeacutecie de ciacuterculo virtuoso - natildeo-vicioso31 e satildeo palavras indissociaacuteveis da realidade nos uacuteltimos tempos a partir do seacuteculo XX no qual testemunhamos pelo menos duas espantosas revoluccedilotildees a atocircmica e a molecular38

Todo esse acervo mudou por completo as sociedades e o pensamento humano e natildeo se trata de um processo jaacute findo Pelo contraacuterio muito ainda estaacute por vir Natildeo se sabe aliaacutes se o Homem encontraraacute fronteiras tecnologicamente intransponiacuteveis Essa perspectiva de escassez de barreiras teacutecnicas conduz ao debate sobre a necessidade

35 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 edbdquo rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179

36 Por exemplo vale lembrar o ocorrido durante o desenrolar dos estudos do projeto genoma humano Segundo Jordan (1993) o verdadeiro objetivo inicial do PGH natildeo era o sequumlenciamento muito complexo caro e trabalhoso mas um mapeamento detalhado do genoma humano No decorrer do processo os progressos tecnoloacutegicos foram tatildeo grandes que propiciaram o sequumlenciamento mesmo antes do prazo previsto Cf GOLDIM Joseacute Roberto MATTE Uacutersulla Projeto Genoma Humano - HUGO Disponiacutevel em lthttpwwwufrgsbrbioeticagenomahtmgt Acessado em 28 maio de 2006

37 Natildeo se desconhece entretanto que o ser humano eacute capaz visando objetivos condenaacuteveis natildeo apenas de bloquear pesquisas mas tambeacutem de manipulaacute-las ou de realizaacute-las de forma direcionada propositadamente sem a observacircncia de criteacuterios cientiacuteficos Todavia antes de examinar a transmissatildeo de conhecimentos eacute necessaacuterio acenar para a sua fonte primaacuteria a pesquisa cientiacutefica Tambeacutem aiacute natildeo faltam aacutereas de conflito Foram sobretudo analisadas as frequumlentes ameaccedilas ao conhecimento e agrave informaccedilatildeo cientiacutefica provenientes de decisotildees poliacuteticas ou da proteccedilatildeo de interesses particulares Dentre as decisotildees poliacuteticas a diretora do Instituto Nacional da Seguranccedila e da Sauacutede Ocupacional (NIOSH) dos EUA Linda Rosenstock recordou aquelas assumidas pelo Congresso nos uacuteltimos anos dentro de um quadro de reduccedilatildeo de muitos programas para a proteccedilatildeo aos trabalhadores com a finalidade de bloquear a utilizaccedilatildeo de pesquisas no campo das artropatias do trabalho e de estudos sobre a relaccedilatildeo entre a motorizaccedilatildeo e os tumores e tambeacutem encobrir o fato de duas organizaccedilotildees internacionais designadas para a proteccedilatildeo agrave sauacutede a Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e a Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho estatildeo sob a acusaccedilatildeo de ter manipulado os relatoacuterios teacutecnicos relativos agrave induacutestria do asbesto Dentre os interesses particulares prcvalcccm aqueles das induacutestrias que encomendam pesquisas com a finalidade de demonstrar a inexistecircncia de efeitos nocivos (o exemplo mais macroscoacutepico concerne ao tabaco) ou entatildeo aumentar as incertezas para evitar fazer o que eacute necessaacuterio com base em conhecimentos jaacute comprovados ou mesmo sugerir procedimentos que alongam indefinidamente os periacuteodos de intervenccedilatildeo Cf BERLINGUER Giovanni Bioeacutetica Cotidiana Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2004 p 147-148

38 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia op cit p 159-179

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de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees tendo em conta que a teoria de haacute muito jaacute advertiu1 e a experiecircncia jaacute nos ensinou como adiante se veraacute que a ausecircncia de limites pode levar ao abuso

Embora isso possa ocorrer em vaacuterios campos como vg a economia e a poliacutetica sem duacutevida a aacuterea biomeacutedica eacute uma das que mais merecem nossa atenccedilatildeo natildeo soacute porque estaacute entre as mais influenciadas por essas transformaccedilotildees mas tambeacutem porque eacute uma das que mais tem potencial de desenvolvimento aleacutem do fato oacutebvio de estar diretamente ligada agrave vida humana Exatamente por isso cresce a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave vida especialmente a Medicina40

O acreacutescimo jaacute obtido na expectativa de vida do Homem que praticamente dobrou nos uacuteltimos dois seacuteculos decorrente de vaacuterios fatores dentre os quais uma verdadeira revoluccedilatildeo terapecircutica41 natildeo eacute suficiente As pessoas querem viver ainda mais e com melhor qualidade Por isso cobram mais avanccedilos tecnoloacutegicos nessa aacuterea despertando interesses diversos que vatildeo dos humanitaacuterios aos puramente comerciais e econocircmicos Chega-se a se falar ateacute mesmo em um direito agrave pesquisa que deve figurar entre as liberdades fundamentais unanimemente reconhecidas42

Para que esses desejos se tornem viaacuteveis eacute preciso conhecer cada vez mais profundamente a complexa maacutequina que eacute o corpo humano desenvolver novos faacutermacos medicamentos vacinas e terapias para combater doenccedilas descobrir a fonte da juventude atraveacutes de meacutetodos de desaceleraccedilatildeo - ou quiccedilaacute interrupccedilatildeo - da degeneraccedilatildeo celular dentre outras possibilidades e desafios

Por exemplo eacute conhecida nos meios juriacutedicos a passagem que adverte () mas trata-se de uma experiecircncia eterna que todo homem que possui poder eacute levado a dele abusar ele vai ateacute onde encontra limites Quem diria Ateacute a virtude precisa de limites MONTESQUIEU Charles de Secondat op cit p 170

40 Natildeo eacute agrave toa portanto que em interessante estudo sobre as exigecircncias referentes aos aspectos eacuteticos da pesquisa em revistas cientiacuteficas brasileiras se chegou agrave conclusatildeo de que As revistas de medicina e enfermagem apresentaram maior preocupaccedilatildeo com as orientaccedilotildees eacuteticas do que as revistas natildeo-meacutedicas classificadas nos grupos de miscelecircncia e odontologia sugerindo que o debate eacutetico da experimentaccedilatildeo em seres humanos estaacute mais difundido nas aacutereas meacutedica e de enfermagem do que em outras aacutereas da sauacutede Tal no entanto natildeo representa necessariamente um dado a ser festejado pois o resultado global comprovou que 791 das revistas cientiacuteficas estudadas natildeo fazem qualquer referecircncia aos aspectos eacuteticos Cf T SARDENBERG S S MUumlLLER H R PEREIRA R A DE OLIVEIRA W S HOSSNE Anaacutelise dos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos contidos nas Instruccedilotildees aos Autores de 139 rev istas cientiacuteficas brasileiras Revista da Associaccedilatildeo Meacutedica do Brasil v 45 n 4 p 295-302 1999

41 Sobre a chamada revoluccedilatildeo terapecircutica vide dentre outros BERNARD Jean La Bioeacutethique Paris Dominos Flammarion 1994 p 14-33

42 Conforme LAFON Claudc De la Biologie agrave Ia Bioeacutethique Paris Ellipses 2006 p 30

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A concretizaccedilatildeo desses objetivos depende de inuacutemeros fatores ligados agrave pesquisa cientiacutefica43 dentre os quais um que eacute o ponto central deste trabalho a experimentaccedilatildeo em seres humanos De fato o progresso do nosso conhecimento no passado e no futuro estaacute intimamente ligado agrave necessidade de observaccedilatildeo do funcionamento e da reaccedilatildeo do corpo e da mente humanas44

Em outras palavras eacute preciso tomar o ser humano como sujeito de pesquisa45

Esse fato bom que se diga natildeo eacute exatamente novo tem ocorrido no correr dos tempos suscitando questotildees eacuteticas de suma relevacircncia pois nem sempre as pessoas estudadas tiveram o trato adequado

A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda Guerra mormente as realizadas pelos japoneses e nazistas alematildees tais como a infestaccedilatildeo de prisioneiros com doenccedilas para testar vacinas e a esterilizaccedilatildeo e amputaccedilatildeo de membros46 trouxeram agrave tona a questatildeo da

43 A discussatildeo a respeito das pesquisas natildeo pode se limitar agravequelas de natureza meacutedica e farmacoloacutegica onde os impactos e riscos satildeo maiores e mais perceptiacuteveis E ampla a definiccedilatildeo de pesquisas em seres humanos adotada pela Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede conforme adiante se veraacute Leonard M Martin C Ss R preleciona O documento pretende regulamentar toda pesquisa em seres humanos e natildeo apenas pesquisas puramente biomeacutedicas Nesta perspectiva pesquisas socioloacutegicas e antropoloacutegicas tambeacutem devem passar pelo crivo de Comitecircs de Eacutetica independentes e ser alvo de discussatildeo sobre sua eticidade MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

44 O efeito de um tratamento sobre o homem soacute pode ser observado no proacuteprio homem Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

45 Esse fenocircmeno ocorre em todas as aacutereas do conhecimento e natildeo apenas nas ciecircncias biomeacutedicas Na realidade quando se fala em experimentaccedilatildeo com seres humanos pensa-se quase que exclusivamente na experimentaccedilatildeo no campo da Medicina Essa vinculaccedilatildeo eacute compreensiacutevel pois a experimentaccedilatildeo na aacuterea meacutedica eacute mais visiacutevel e de efeitos mais patentes em geral Contudo eacute bom assinalar que seres humanos satildeo utilizados em experimentaccedilatildeo por profissionais e cientistas de outras aacutereas odontoacutelogos nutricionistas farmacecircuticos fisioterapeutas psicoacutelogos profissionais da aacuterea de educaccedilatildeo fiacutesica e de esporte educadores e tambeacutem economistas Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179 Leonard M Martin C Ss R com base em McNeill e Jonsen destaca que [] as experiecircncias antieacuteticas dos nazistas incluiacuteram colocar prisioneiros em cacircmaras de pressatildeo modificar a pressatildeo atmosfeacuterica e observar suas mortes estudar o impacto sobre o corpo humano de imersatildeo em aacutegua gelada por periacuteodos prolongados infectar os internos com tifo malaacuteria e outras doenccedilas para testar drogas e vacinas esterilizaccedilatildeo e castraccedilatildeo procurando meacutetodos eficazes para esterilizaccedilatildeo em massa administrar venenos para estudar os efeitos letais e estudos com gecircmeos tipo infectando um matando os dois e comparando os corpos em autoacutepsia No atinente a experiecircncias japonesas MARTIN informa que no ala de desenvolver armas bioloacutegicas [] os japoneses atacaram pelo menos onze cidades com armas bioloacutegicas e infestaram uma cidade com pulgas portadores da peste bubocircnica A Unidade 731 tambeacutem era uma prisatildeo onde os prisioneiros foram submetidos a experiecircncias desumanas Houve cirurgia experimentais pessoas foram desidratadas ateacute a morrer alguns tiveram braccedilos congelados e depois degelados usando vaacuterios meacutetodos com a consequumlecircncia de que a carne apodreceu e caiu o fiacutegado de outras pessoas foi exposto por longos

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eacutetica na pesquisa evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana47 e de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa em seres humanos48

Como resposta agraves atrocidades praticadas na Segunda Guerra foi instituiacutedo em 1947 no acircmbito internacional pelo Tribunal de Nuremberg que julgou vinte e trecircs criminosos de guerra nazistas dos quais vinte meacutedicos ligados agrave experimentaccedilatildeo em pessoas49 o denominado Coacutedigo de Nuremberg o qual estabeleceu as diretrizes gerais para pesquisa em seres humanos A doutrina destaca como principais conquistas do coacutedigo o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa em retirar-se do experimento e de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias deste bem como a necessidade de estudos preacutevios sobre a importacircncia da pesquisa e os seus riscos aleacutem da comprovaccedilatildeo da capacidade dos pesquisadores50

Um ano depois a humanidade assiste agrave proclamaccedilatildeo agora pela Assembleacuteia Geral das Naccedilotildees Unidas de um outro documento de suma importacircncia a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos que embora de caraacuteter geral alberga

periacuteodos ao raio-X houve casos do sangue da pessoa ser substituiacutedo por sangue de cavalo e quando as cobaias humanas natildeo serviam mais para as experiecircncias foram executadas O autor ainda ressalta que diferentemente dos alematildees que foram condenados alguns inclusive enforcados os americanos resolveram poupar os japoneses permitindo que continuassem suas carreiras MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

4 Haacute quem afirme - sem razatildeo ao nosso ver - que a dignidade eacute um conceito inuacutetil um mero slogan e que natildeo significaria mais do que o respeito pelas pessoas e por sua autonomia Nesse sentido vide vg MACKLIN Ruth Dignity is a useless concept Brilish Medica Journal v 327 p 20-27 dez 2003 Disponiacutevel em lthttpbmjbmjjournalscomcgicontentfull3277429l419gt Aacessado em 27 maio de 2006 Em sentido inverso sobre as relaccedilotildees entre a Bioeacutetica e a dignidade vide dentre outros ADORNO Roberto La bioegravetique et la dignitegrave de Ia persone Paris Presses Universitaires de France 1997 Os documentos internacionais mencionam o elo entre Bioeacutetica e dignidade A jaacute mencionada Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten por exemplo afirma textualmente que A pesquisa e experiecircncia com seres humanos devem ser realizadas harmonizando a liberdade da ciecircncia e o respeito da dignidade humana

48 A experimentaccedilatildeo em seres humanos causa impacto porque as pessoas temem o abuso Os abusos jaacute ocorreram estatildeo ocorrendo c ainda ocorreratildeo mas proibir o uso natildeo eacute a melhor maneira de impedir o abuso Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

49 Estima-se que centenas de meacutedicos atuaram nos campos de concentraccedilatildeo dos quais pelo menos setenta teriam participado de experimentos com seres humanos A maioria dos meacutedicos de maior expressatildeo conseguiram escapar do julgamento como foi o caso de Josef Mengele principal meacutedico do campo de extermiacutenio de Auschwitz que fugiu e chegou a viver 14 anos no Brasil onde morreu afogado em Bertioga em 1979 O julgamento levou oito meses As sentenccedilas e o Coacutedigo de Nuremberg foram anunciados conjuntamente em 19 de agosto de 1947 Sete acusados foram condenados agrave morte Cf CREMESP Diretrizes e Declaraccedilotildees Disponiacutevel em lthttpvwvbiocticaorgbrlegislacaooutras_diretrizesintegraphpgt Acessado em 30 maio 2006 Discute-se hoje a validade cientiacutefica dos experimentos realizados bem como se eacute eacutetico utilizar os resultados obtidos Nesse sentido vide mateacuteria intitulada Doutores da agonia publicada na revista Superinteressante ed 225 abr2006 p 52-61

50 Cf FREITAS Corina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 195

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direitos que natildeo podem ser olvidados quando da experimentaccedilatildeo com seres humanos a exemplo da dignidade da igualdade e da liberdade Aleacutem disso haacute diversas ligaccedilotildees entre a Declaraccedilatildeo e os princiacutepios da Bioeacutetica51

Assim como a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos o Coacutedigo de Nuremberg proclama criteacuterios princiacutepios miacutenimos e irredutiacuteveis para eticidade da pesquisa em seres humanos Ambas as declaraccedilotildees embora de grande importacircncia para a Bioeacutetica satildeo normalmente entendidas como desprovidas de instrumentos adequados de obrigatoriedade52 e de mecanismos sancionatoacuterios de modo que sua infraccedilatildeo na maioria dos casos tem gerado apenas sanccedilotildees morais

Natildeo-obstante o estabelecido no Coacutedigo de Nuremberg - e na Declaraccedilatildeo Universal - as violaccedilotildees continuaram a ocorrer inclusive nos paiacuteses signataacuterios De fato por exemplo nos Estados Unidos teve continuidade como se nada houvesse acontecido a famosa pesquisa sobre siacutefilis em Tuskegee no condado de Macon Alabama financiada com recursos federais onde especialmente negros e pobres acreditavam que estavam se submetendo a um tratamento especial gratuito quando na verdade nada recebiam embora jaacute houvesse medicamentos disponiacuteveis servindo como verdadeiras cobaias entre 1932 e 1973 para que os pesquisadores pudessem acompanhar o desenvolvimento da doenccedila1 Ainda exemplificativamente foi iniciado em 1946 o chamado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm um dos mais famosos e importantes estudos de odontologia jaacute realizados no qual mais de 436 deficientes mentais crocircnicos internos da cidade de Lund no sul da Sueacutecia que natildeo tinham sequer a menor consciecircncia do que ocorria foram submetidos ateacute 1951 a uma dieta especial rica em accediluacutecar para provar que esta substacircncia provocava caacuteries sem que lhes fosse dado qualquer tratamento54

Por exemplo ao afirmar no seu art 1deg que todas pessoas satildeo dotadas de razatildeo e consciecircncia o documento da ONU reforccedila a ideacuteia de autonomia

52 Em relaccedilatildeo agrave Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Faacutebio Konder Comparato afirma que embora seja tecnicamente apenas uma recomendaccedilatildeo da ONU a seus membros os direitos ali definidos correspondem integralmente ao que o costume e os princiacutepios juriacutedicos internacionais reconhecem hoje como normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens) como a proacutepria Corte Internacional de Justiccedila tem entendido COMPARATO Faacutebio Konder A afirmaccedilatildeo histoacuterica dos Direitos Humanos 4 ed rev e atual Satildeo Paulo Saraiva 2005 p 223-224

53 Vide vg a respeito REVERBY S M More than Fact and Fiction Cultural Memory and the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 31 p 22-28 2001 BRANDT A M Racism and Research The Case of the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 8 p 21-29 1978 BEECHER H K Ethics and Clinicai Research New England Journal of Medicine n 274 p 1354-1360 1966

54 Cf SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas clinicas sobre seus direitos 2005 p 55-61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

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Os avanccedilos tecnoloacutegicos cada vez mais raacutepidos reverberaram nas questotildees eacuteticas forccedilando novas e perioacutedicas revisotildees Necessaacuterio se fez portanto a rediscussatildeo do tema e o aprimoramento do sistema normativo Assim sobreveio a Declaraccedilatildeo de Helsinque elaborada pela Associaccedilatildeo Meacutedica Mundial em 1964 texto que foi revisto e ampliado em 1975 (Toacutequio)55 1983 (Veneza) 1989 (Hong Kong) 1996 (Somerset) e 2000 (Edimburgo) com o que foram incorporadas vaacuterias inovaccedilotildees Por exemplo a disposiccedilatildeo no sentido de que No final do estudo todos os pacientes participantes devem ter assegurado o acesso aos melhores meacutetodos comprovados profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos identificados pelo estudo E no atinente ao uso de placebo que Os benefiacutecios riscos dificuldades e efetividade de um novo meacutetodo devem ser testados comparando-os com os melhores meacutetodos profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos atuais Isto natildeo exclui o uso de placebo ou nenhum tratamento em estudo onde existam meacutetodos provados de profiacutelaxia diagnoacutestico e tratamento 56 Foi tambeacutem reforccedilada a recomendaccedilatildeo do Coacutedigo de Nuremberg sobre a necessidade de submissatildeo do protocolo de pesquisa agrave anaacutelise por um Comitecirc de Eacutetica independente do pesquisador

Outros textos e documentos que tratam da pesquisa merecem referecircncia como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos de 196657 o intitulado Diretrizes Internacionais para a pesquisa biomeacutedica em seres humanos elaborado conjuntamente pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e pelo Council for International Organizations of Medicai Sciences (1993) a Declaraccedilatildeo de Manila (1981) a Declaraccedilatildeo de Princiacutepios Eacuteticos dos Meacutedicos do Mercosul (1996) a Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten (2000) e a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da Unesco (2005)

Em que pese o entendimento de que haacute carecircncia de instrumentos imperativos que garantam a exigibilidade dos referidos documentos sem duacutevida eles

A respeito Leo Pessini e Christian de Paul Barehifontaine ensinam que Tal modificaccedilatildeo fieou conhecida como Helsinque II Entre outros pontos importantes foram incluiacutedos nesta revisatildeo os seguintes aspectos I) Exigecircncia de que o protocolo experimental seja aprovado por uma comissatildeo independente para efeito de apreciaccedilatildeo comentaacuterios e orientaccedilatildeo (item I 2) 2) Que os seres humanos natildeo sejam utilizados em pesquisas a menos que o consentimento consciente do paciente dado livremente tenha sido obtido depois do mesmo ter sido adequadamente informado sobre os objetivos meacutetodos benefiacutecios esperados riscos potenciais e inconvenientes da experimentaccedilatildeo e que ele tenha liberdade de se abster e de cancelar sua participaccedilatildeo a qualquer momento (art I 9) 3) Que o protocolo contenha embasamento eacutetico da pesquisa e a referecircncia de que foram obedecidos os princiacutepios da Declaraccedilatildeo de Helsinque (item I 12) 4) Que os interesses da ciecircncia e da sociedade jamais tenham precedecircncia sobre o bem-estar do indiviacuteduo (item III 4) PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Problemas aluais de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1994 p 131

56 GRECO Dirceu B Poder e injusticcedila na pesquisa envolvendo seres humanos In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 264

57 De acordo com o seu art 7o Ningueacutem poderaacute ser submetido a tortura nem a penas ou tratamentos crueacuteis desumanos ou degradantes Seraacute proibido sobretudo submeter uma pessoa sem seu livre consentimento a experiecircncias meacutedicas ou cientiacuteficas

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contribuiacuteram e contribuem significativamente na proteccedilatildeo ao ser humano objeto de pesquisa pois influenciaram a elaboraccedilatildeo de diretrizes vinculantes no plano individual de cada Estado a exemplo do Brasil como a seguir veremos Por outro lado importante anotar que uma harmonia consensual e global no atinente agrave pesquisa parece impossiacutevel tendo em conta que a cultura os objetivos e as condiccedilotildees cientiacuteficas dos diversos paiacuteses satildeo naturalmente diversificados58 Aliaacutes haacute quem chegue a afirmar que o pluralismo eacutetico em vigor nos dias de hoje natildeo nos permite mais falar em moral universal59

No Brasil a normatizaccedilatildeo se daacute principalmente atraveacutes de resoluccedilotildees do Conselho Federal de Medicina60 e do Conselho Nacional de Sauacutede Aliaacutes a primeira resoluccedilatildeo deste uacuteltimo oacutergatildeo - Resoluccedilatildeo n 01 de 13 de junho de 1988 - tratou justamente de normas de pesquisa em sauacutede tendo dedicado o seu Capiacutetulo II arts 4o a 16 aos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos Esse diploma legal foi posteriormente revogado pela Resoluccedilatildeo n 196 de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Sauacutede que eacute atualmente a base regulamentar da pesquisa no Brasil tratando das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos Esta Resoluccedilatildeo eacute na verdade uma revisatildeo da anterior tendo sido precedida de diaacutelogo entre governo e sociedade civil61

A Resoluccedilatildeo atual afirma jaacute em seu preacircmbulo a sua fundamentaccedilatildeo nos principais documentos internacionais que emanaram declaraccedilotildees e diretrizes sobre

58 Nesse contexto por tanto deve ser considerada a questatildeo do multicuturalismo Como bem ensinam Joseacute A Mainetti Joseacute L Mainettil Existen dificultades en la aplicacioacuten de los principos elaborados por los paiacuteses centrales y es una evidencia por ejemplo que resulta inapropiada la visioacuten estrccha de la autonomia y la aplicacioacuten riacutegida dei requisito dei consentimento informado al modo norteamericano en determinadas circunstancias y comunidades Es preciso entoces reconocer Ias diferenccedilas culturales y en base a eacutestas aplicar los princiacutepios sin renunciar a cllos en formas maacutes adecuadas al ethos particular MAINETTI Joseacute A MAINETTI Joseacute L Bioeacutetica y la experimentacioacuten humana In SOROKIN Patriacutecia (Coord) Bioeacutelica entre utopias y desarraigos Buenos Aires Ad-Hoc Villela 2002 p 190

59 Cf ENGELHARDT JUacuteNIOR Tristam apuei BAUZON Steacutephane La personne biojuridique Paris Press Universitaires de France 2006 p 63

60 Vide como exemplo a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro o qual no seu Capiacutetulo XII trata especificamente da pesquisa meacutedica

61 Cf FREITAS Corina Bontempo Duca de Eacutetica na pesquisa com seres humanos A experiecircncia brasileira In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutelica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 307

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pesquisas que envolvem seres humanos62 e que visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito agrave comunidade cientiacutefica aos sujeitos da pesquisa e ao Estado

Aleacutem disso vinculou a experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da principiologia da Bioeacutetica seja no preacircmbulo onde afirma que incorpora sob a oacutetica do indiviacuteduo e das coletividades os quatro referenciais baacutesicos da Bioeacutetica autonomia natildeo-maleficecircncia beneficecircncia e justiccedila entre outros seja no seu item III 1 que versa sobre a eticidade na pesquisa63

Entre as suas disposiccedilotildees encontramos definiccedilotildees de diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica pesquisa64 pesquisa envolvendo seres humanos65

protocolo de pesquisa66 pesquisador responsaacutevel67 instituiccedilatildeo de pesquisa68 promotor69

patrocinador70 risco da pesquisa71 dano associado ou decorrente da pesquisa72 sujeito da

62 Cila a Resoluccedilatildeo os seguintes documentos o Coacutedigo de Nuremberg (1947) a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem (1948) a Declaraccedilatildeo de Helsinque (1964 e suas versotildees posteriores de 1975 1983 e 1989) o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Poliacuteticos (ONU 1966 aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1992) as Propostas de Diretrizes Eacuteticas Internacionais para Pesquisas Biomeacutedicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMSOMS 1982 e 1993) e as Diretrizes Internacionais para Revisatildeo Eacutetica de Estudos Epidemioloacutegicos (C10MS 1991) III1 - A eticidade da pesquisa implica em a) consentimento livre e esclarecido dos indiviacuteduos-alvo e a proteccedilatildeo a grupos vulneraacuteveis e aos legalmente incapazes (autonomia) Neste sentido a pesquisa envolvendo seres humanos deveraacute sempre trataacute-los em sua dignidade respeitaacute-los em sua autonomia e defendecirc-los em sua vulnerabilidade b) ponderaccedilatildeo entre riscos e benefiacutecios tanto atuais como potenciais individuais ou coletivos (beneficecircncia) comprometendo-se com o maacuteximo de benefiacutecios e o miacutenimo de danos e riscos c) garantia de que danos previsiacuteveis seratildeo evitados (natildeo maleficecircncia)- d) relevacircncia social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimizaccedilatildeo do ocircnus para os sujeitos vulneraacuteveis o que garante a igual consideraccedilatildeo dos interesses envolvidos natildeo perdendo o sentido de sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria (justiccedila e equumlidade) (negritos originais)

64 111 Pesquisa classe de atividades cujo objetivo eacute desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizaacutevel O conhecimento generalizaacutevel consiste em teorias relaccedilotildees ou princiacutepios ou no acuacutemulo de informaccedilotildees sobre as quais estatildeo baseados que possam ser corroborados por meacutetodos cientiacuteficos aceitos de observaccedilatildeo e infercncia

65 112 Pesquisa envolvendo seres humanos pesquisa que individual ou coletivamente envolva o ser humano de forma direta ou indireta em sua totalidade ou partes dele incluindo o manejo de informaccedilotildees ou materiais

66 II3 Protocolo de Pesquisa Documento contemplando a descriccedilatildeo da pesquisa em seus aspectos fundamentais informaccedilotildees relativas ao sujeito da pesquisa agrave qualificaccedilatildeo dos pesquisadores e a todas as instacircncias responsaacuteveis

67 II-4 Pesquisador responsaacutevel pessoa responsaacutevel pela coordenaccedilatildeo e realizaccedilatildeo da pesquisa e pela integridade e bem-estar dos sujeitos da pesquisa

68 II5 - Instituiccedilatildeo de pesquisa - organizaccedilatildeo puacuteblica ou privada legitimamente constituiacuteda e habilitada na qual satildeo realizadas investigaccedilotildees cientiacuteficas

69 116 - Promotor - indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo responsaacutevel pela promoccedilatildeo da pesquisa 70 II7 - Patrocinador - pessoa fiacutesica ou juriacutedica que apoia financeiramente a pesquisa 71 II8 Risco da pesquisa - possibilidade de danos agrave dimensatildeo fiacutesica psiacutequica moral intelectual social

cultural ou espiritual do ser humano em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente II9 Dano associado ou decorrente da pesquisa agravo imediato ou tardio ao indiviacuteduo ou agrave coletividade com nexo causai comprovado direto ou indireto decorrente do estudo cientiacutefico

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pesquisa73 consentimento livre e esclarecido74 indenizaccedilatildeo75 ressarcimento6 Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (CEP)77 vulnerabilidade78 e incapacidade79

A Resoluccedilatildeo regulamentou os Comitecircs de Eacutetica e Pesquisa - CEPs80 em cujas funccedilotildees81 destaca-se a apreciaccedilatildeo do protocolo da pesquisa em todas as suas especificidades o que foi um grande passo no sentido da construccedilatildeo de padrotildees eacuteticos82

Haacute requisitos para a instituiccedilatildeo dos Comitecircs principalmente no atinente agrave sua composiccedilatildeo83

1110 Sujeito da pesquisa eacute o(a) participante pesquisado(a) individual ou coletivamente de caraacuteter voluntaacuterio vedada qualquer forma de remuneraccedilatildeo IIII Consentimento livre e esclarecido anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal livre de viacutecios (simulaccedilatildeo fraude ou erro) dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar formulada em um termo de consentimento autorizando sua participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa 1112 - Indenizaccedilatildeo - cobertura material em reparaccedilatildeo a dano imediato ou tardio causado pela pesquisa ao ser humano a ela submetida 1113 Ressarcimento - cobertura em compensaccedilatildeo exclusiva de despesas decorrentes da participaccedilatildeo do sujeito na pesquisa 1114 - Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa-CEP - colegiados interdisciplinares e independentes com munus puacuteblico de caraacuteter consultivo deliberativo e educativo criados para defender os interesses dos sujeitos da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrotildees eacuteticos 1115 Vulnerabilidade refere-se a estado de pessoas ou grupos que por quaisquer razotildees ou motivos tenham a sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido 1116 - Incapacidade - Refere-se ao possiacutevel sujeito da pesquisa que natildeo tenha capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido devendo ser assistido ou representado de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira vigente O CEP pode ser entendido como um oacutergatildeo controlador da pesquisa por um lado mas por outro eacute tambeacutem um oacutergatildeo que ajuda a harmonizar diversos interesses que como vimos podem ser os mais diversos e agraves vezes ateacute conflitantes Cf PALAacuteCIOS Marisa Eacutetica na pesquisa - 1 Eacutetica em pesquisa em seres humanos In PALAacuteCIOS Marisa MARTINS Andreacute PEGORARO Olinto A (Orgs) Eacutetica ciecircncia e sauacutede humana Petroacutepolis Vozes 2001 p 74 Satildeo atribuiccedilotildees conferidas pela Resoluccedilatildeo aos CEPs a) revisar todos os protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos b) emitir parecer consubstanciado por escrito c) manter a guarda confidencial de todos os dados obtidos na execuccedilatildeo de sua tarefa e arquivamento do protocolo completo que ficaraacute agrave disposiccedilatildeo das autoridades sanitaacuterias d) acompanhar o desenvolvimento dos projetos atraveacutes de relatoacuterios anuais dos pesquisadores e) desempenhar papel consultivo e educativo 0 receber dos sujeitos da pesquisa ou de qualquer outra parte denuacutencias de abusos ou notificaccedilatildeo sobre fatos adversos que possam alterar o curso normal do estudo decidindo pela continuidade modificaccedilatildeo ou suspensatildeo da pesquisa devendo se necessaacuterio adequar o termo de consentimento considerando-se anti-eacutetica a pesquisa descontinuada sem justificativa aceita pelo CEP que a aprovou g) requerer instauraccedilatildeo de sindicacircncia agrave direccedilatildeo da instituiccedilatildeo em caso de denuacutencias de irregularidades de natureza eacutetica nas pesquisas e em havendo comprovaccedilatildeo comunicar agrave Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa CONEPMS e no que couber a outras instacircncias e h) manter comunicaccedilatildeo regular e permanente com a CONEPMS A existecircncia de oacutergatildeos com a funccedilatildeo de aprovar e acompanhar pesquisas jaacute era preconizada por exemplo pelo Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988) cujo art 127 veda ao

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Foi mais aleacutem a Resoluccedilatildeo que de modo inovador reforccedilou o controle eacutetico e a defesa da dignidade da pessoa humana com a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa - CONEP84 que atua na direccedilatildeo e orientaccedilatildeo dos comitecircs8S A comissatildeo de acordo com a Resoluccedilatildeo eacute uma instacircncia colegiada de natureza consultiva deliberativa normativa independente vinculada ao Conselho Nacional de Sauacutede86 Essa vinculaccedilatildeo eacute bastante positiva posto que a alternativa de submetecirc-la a outros oacutergatildeos poderia dar ensejo a uma indesejada politizaccedilatildeo dos seus membros o que seria capaz de terminar por afetar a sua autonomia

meacutedico Realizar pesquisa meacutedica em ser humano sem submeter o protocolo a aprovaccedilatildeo e acompanhamento de comissatildeo isenta de qualquer dependecircncia em relaccedilatildeo ao pesquisador O colegiado com nuacutemero natildeo inferior a 7 (sete) membros deve ser multidisciplinar abrangendo profissionais idocircneos e de distinta formaccedilatildeo da aacuterea de sauacutede e das ciecircncias exatas sociais e humanas incluindo por exemplo juristas teoacutelogos socioacutelogos filoacutesofos bioeticistas aleacutem de membros da sociedade e obrigatoriamente pelo menos um membro representando os usuaacuterios Se a pesquisa envolver grupos vulneraacuteveis comunidades e coletividades um dos seus representantes deveraacute ser convidado para participar como membro ad hoc do CEP da anaacutelise do projeto especiacutefico Assim o CEP ainda segundo a Resoluccedilatildeo teraacute sempre um caraacuteter multi e transdisciplinar sendo vedado que mais que metade de seus membros pertenccedilam a uma mesma categoria profissional devendo ainda participarem pessoas dos dois sexos Satildeo permitidos consultores ad hoc pessoas que pertencem ou natildeo aacute instituiccedilatildeo com o objetivo de fornecer subsiacutedios teacutecnicos Merece ainda atenccedilatildeo especial a autonomia do comitecirc cuja manifestaccedilatildeo deve ser totalmente autocircnoma e imaculada de coaccedilotildees ou pressotildees dos interessados A autonomia e a independecircncia satildeo condiccedilotildees sine qua non para a desejada eficaacutecia dos comitecircs que felizmente estatildeo se proliferando em nosso paiacutes Conforme informaccedilotildees do site da CONEP satildeo 446 CEPs aprovados no Brasil ateacute janeiro de 2006 Disponiacutevel em lthttpoonselhosaudegovbrcomissaoconep2006ceps20APROVADOSxlsgt Acessado em 04 jun 2006 A Comissatildeo tem 13 membros titulares e o mesmo nuacutemero de suplentes em uma composiccedilatildeo que tambeacutem deveraacute ser multi e transdisciplinar com pessoas de ambos os sexos Dentre os seus membros 05 (cinco) devem ser personalidades destacadas no campo da eacutetica na pesquisa e na sauacutede e 08 (oito) devem ser personalidades com destacada atuaccedilatildeo nos campos teoloacutegico juriacutedico e outros assegurando-se que pelo menos um seja da aacuterea de gestatildeo da sauacutede Embora natildeo desconheccedilamos a importacircncia das religiotildees na formaccedilatildeo do pensamento eacutetico humano e sem querer desmerecer as pessoas que nelas militam no mais das vezes com accedilotildees de destacada importacircncia pensamos que eacute inadequada em um Estado laico como o nosso a destinaccedilacirco de vaga ou de vagas especificamente a pessoas do campo teleoloacutegico Essa observaccedilatildeo imperioso demarcar natildeo eacute no sentido de entender que a contribuiccedilatildeo dessas pessoas eacute desnecessaacuteria ou inconveniente Pelo contraacuterio Poreacutem a desejada participaccedilatildeo jaacute poderia ser levada a efeito incluindo-as no grupo de personalidades com atuaccedilatildeo de destaque na esfera da eacutetica na pesquisa e na sauacutede sem necessidade de vinculaccedilatildeo necessaacuteria ao pensamento religioso Isso ateacute mesmo para preservar o pluralismo e a igualdade jaacute que obviamente natildeo seraacute possiacutevel oferecer a cada religiatildeo uma vaga Os membros da Comissatildeo satildeo recrutados a partir de indicaccedilotildees contidas em listas elaboradas pelas instituiccedilotildees que possuem CEP registrado na CONEP sendo que 07 (sete) satildeo escolhidos pelo Conselho Nacional de Sauacutede e 06 (seis) satildeo definidos por sorteio Tambeacutem pode contar com consultores e membros ad hoc sendo assegurada a representaccedilatildeo dos usuaacuterios O mandato eacute de quatro anos com renovaccedilatildeo alternada a cada dois anos de sete ou seis de seus membros A CONEP tem tambeacutem um papel coordenador da rede de Comitecircs institucionais aleacutem de se constituir em oacutergatildeo consultor na aacuterea eacutetica em pesquisa Num primeiro momento tem ainda a atribuiccedilatildeo de apreciar os projetos de pesquisas de aacutereas temaacuteticas especiais enviadas pelos CFPs ou seja projetos que contemplam aacutereas com maiores dilemas eacuteticos e grande repercussatildeo social ateacute que se acumulem experiecircncias para elaboraccedilatildeo de normas especiacuteficas complementares agraves existentes Cf FREITAS Carolina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA

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Outros aspectos da Resoluccedilatildeo que merecem especial destaque para o nosso estudo satildeo os relativos ao consentimento livre e esclarecido agrave vulnerabilidade e agrave incapacidade

Como jaacute dito um dos principais pontos da Declaraccedilatildeo de Nuremberg foi o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias A Resoluccedilatildeo tratou do tema exigindo a anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar87 A anuecircncia deve ser expressa atraveacutes de

Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 202

S6 Segundo a Resoluccedilatildeo compete agrave CONEP examinar os aspectos eacuteticos da pesquisa envolvendo seres humanos assim como a adequaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo das normas atinentes consultando a sociedade sempre que julgar necessaacuterio cabendo-lhe entre outras as seguintes atribuiccedilotildees a) estimular a criaccedilatildeo de CEPs institucionais e de outras instacircncias b) registrar os CEPs institucionais e de outras instacircncias c) aprovar no prazo de 60 dias e acompanhar os protocolos de pesquisa em aacutereas temaacuteticas especiais tais como geneacutetica humana reproduccedilatildeo humana faacutermacos medicamentos vacinas e testes diagnoacutesticos novos (fases I II e III) ou natildeo registrados no pais (ainda que fase IV) ou quando a pesquisa for referente a seu uso com modalidades indicaccedilotildees doses ou vias de administraccedilatildeo diferentes daquelas estabelecidas incluindo seu emprego em combinaccedilotildees equipamentos insumos e dispositivos para a sauacutede novos ou natildeo registrados no paiacutes novos procedimentos ainda natildeo consagrados na literatura populaccedilotildees indiacutegenas projetos que envolvam aspectos de biosseguranccedila pesquisas coordenadas do exterior ou com participaccedilatildeo estrangeira c pesquisas que envolvam remessa de material bioloacutegico para o exterior e projetos que a criteacuterio do CEP devidamente justificado sejam julgados merecedores de anaacutelise pela CONEP d) prover normas especiacuteficas no campo da eacutetica em pesquisa inclusive nas aacutereas temaacuteticas especiais bem como recomendaccedilotildees para aplicaccedilatildeo das mesmas e) funcionar como instacircncia final de recursos a partir de informaccedilotildees fornecidas sistematicamente em caraacuteter ex-ofiacutecio ou a partir de denuacutencias ou de solicitaccedilatildeo de partes interessadas devendo manifestar-se em um prazo natildeo superior a 60 (sessenta) dias 0 rever responsabilidades proibir ou interromper pesquisas definitiva ou temporariamente podendo requisitar protocolos para revisatildeo eacutetica inclusive os jaacute aprovados pelo CEP g) constituir um sistema de informaccedilatildeo e acompanhamento dos aspectos eacuteticos das pesquisas envolvendo seres humanos em todo o territoacuterio nacional mantendo atualizados os bancos de dados h) informar e assessorar o MS o CNS e outras instacircncias do SUS bem como do governo e da sociedade sobre questotildees eacuteticas relativas agrave pesquisa em seres humanos i) divulgar esta e outras normas relativas agrave eacutetica em pesquisa envolvendo seres humanos j) juntamente com outros setores do Ministeacuterio da Sauacutede estabelecer normas e criteacuterios para o credenciamento de Centros de Pesquisa e I) estabelecer suas proacuteprias normas de funcionamento

87 No que concerne agrave pesquisa meacutedica a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro estipula no seu art 123 que eacute vedado ao meacutedico Realizar pesquisa em ser humano sem que este tenha dado consentimento por escrito apoacutes devidamente esclarecido sobre a natureza e consequumlecircncia da pesquisa e que Caso o paciente natildeo tenha condiccedilotildees de dar seu livre consentimento a pesquisa somente poderaacute se realizada em seu proacuteprio beneficio apoacutes expressa autorizaccedilatildeo de seu responsaacutevel legal Jaacute a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO no seu art 6 aliacutenea b estabelece que A pesquisa cientiacutefica soacute deve ser realizada com o preacutevio livre expresso e esclarecido consentimento do indiviacuteduo envolvido A informaccedilatildeo deve ser adequada fornecida de uma forma compreensiacutevel e incluir os procedimentos para a retirada do consentimento O consentimento pode ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer hora e por qualquer razatildeo sem acarretar qualquer desvantagem ou preconceito Exceccedilotildees a este princiacutepio somente devem ocorrer quando em conformidade com os padrotildees eacuteticos e legais adotados pelos Estados consistentes com as provisotildees da presente Declaraccedilatildeo particularmente com o art 27 e com os direitos humanos

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em um termo de consentimento onde eacute autorizada a participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa Aleacutem disso natildeo pode estar viciada por simulaccedilatildeo fraude ou erro nem tampouco pode ser obtida por forccedila de uma situaccedilatildeo de dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo

Trata-se de disposiccedilatildeo decorrente da adoccedilatildeo do princiacutepio da autonomia jaacute abordado que se vincula agrave capacidade de autodeterminaccedilatildeo e auto-escolha e pressupotildee dentre outras premissas a capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos possiacuteveis18

Quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de estudo possuem a capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto ao consentimento livre e esclarecido por quaisquer motivos verifica-se uma situaccedilatildeo de vulnerabilidade que natildeo pode ser desconsiderada pelo pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais A preocupaccedilatildeo com a vulnerabilidade dos sujeitos encontra supedacircneo no Coacutedigo de Nuremberg na Declaraccedilatildeo de Helsinque nas Diretrizes Internacionais para Pesquisa Biomeacutedica envolvendo Seres Humanos89 e tambeacutem como jaacute dito na Resoluccedilatildeo 19696 A dificuldade central relacionada a indiviacuteduos e comunidades vulneraacuteveis eacute com a sua capacidade de compreensatildeo (autonomia plena) sobre o experimento e possibilidade de livremente consentir com a pesquisa e quando quiser dela desistir o que justifica todas as preocupaccedilotildees nesse sentido90

Cabe trazer a lume os ensinamentos do professor chileno Fernando Lolas O respeito pela autonomia das pessoas como agentes morais capazes de decisotildees informadas eacute central no diaacutelogo bioeacutetico Somente a permissatildeo outorgada por uma pessoa pode legitimar uma accedilatildeo que a envolva O valor das pessoas eacute incondicional o que obriga a consideraacute-las fins natildeo meios com a liberdade de viver e a de decidir livres de interferecircncias LOLAS Fernando Bioeacutetica o que eacute como se faz Traduccedilatildeo Milton Camargo Mota Satildeo Paulo Loyola 2001 p 63 A Diretriz Internacional para Pesquisa Biomeacutedica afirma Pesquisa envolvendo indiviacuteduos de comunidades sub-desenvolvidas Antes de iniciar a pesquisa em indiviacuteduos de comunidades subdesenvolvidas seja em paiacuteses desenvolvidos ou em desenvolvimento o pesquisador deve estar seguro que As pessoas da comunidade subdesenvolvida natildeo seratildeo ordinariamente envolvidas na pesquisa que possa ser realizada de forma adequada em comunidades desenvolvidas A pesquisa eacute uma resposta agraves necessidades de sauacutede e agraves prioridades da comunidade na qual seraacute realizada todos os esforccedilos seratildeo tomados no sentido de assegurar o imperativo eacutetico de que o consentimento individual dos sujeitos seraacute informado e Os projetos para a pesquisa foram revisados e aprovados por um comitecirc de eacutetica que tenha entre os seus membros ou consultores pessoas que tenham familiaridade com os costumes e tradiccedilotildees da comunidade Em comentaacuterio agraves diretrizes acima Leo Pessini e Christian Paul de Barchifontaine entendem que Quando a experimentaccedilatildeo visa ao estudo de determinadas condiccedilotildees moacuterbidas tais como doenccedilas endecircmicas em comunidades de baixo niacutevel socioeconocircmico eou cultural incapazes de terem uma consciecircncia clara e apropriada das implicaccedilotildees de sua participaccedilatildeo na experiecircncia eacute de bom alvitre que seja obtida a interveniecircncia de um liacuteder em que a coletividade confia Esse intermediaacuterio dever deixar claro que a participaccedilatildeo eacute voluntaacuteria e que qualquer participante tem a liberdade de natildeo aceitar ou abandonar a experiecircncia a qualquer momento op cit p 133

Conforme Marisa Palaacutecios Quando a autonomia dos sujeitos natildeo eacute plena ou seja quando a capacidade de entender as situaccedilotildees que se apresentam ao sujeito e de autodeterminar-se segundo este entendimento estaacute de alguma forma limitada eacute preciso tomar cuidado especial Eacute o caso dos grupos vulneraacuteveis os iacutendios que tecircm a capacidade de entendimento das situaccedilotildees diminuiacuteda uma vez que compotildeem sociedades

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A vulnerabilidade pode assumir as mais variadas vertentes bem como atingir uma determinada pessoa ou um grupo de seres humanos com peculiaridades comuns tais como crianccedilas idosos iacutendios pacientes terminais desempregados deficientes91 presidiaacuterios92 ou outras situaccedilotildees de dependecircncia93

Pode ocorrer que as pessoas que seratildeo estudadas na pesquisa natildeo tenham capacidade civil para dar o seu consentimento Nesse caso se encontram em situaccedilatildeo de incapacidade e a pesquisa soacute pode ser levada adiante com a intervenccedilatildeo de seus representantes legais que de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira deveratildeo assistir ou representar os incapazes Tambeacutem aqui deve o pesquisador cercar-se de cautelas eacuteticas redobradas

Finalmente deve-se louvar a Resoluccedilatildeo por ter explicitado no seu item III3 um rol de 23 (vinte e trecircs) exigecircncias eacuteticas para a pesquisa de qualquer aacuterea do conhecimento que envolva seres humanos94

culturalmente diversas[] Estas para citar algumas populaccedilotildees caracteriacutesticas Satildeo populaccedilotildees que precisam ser especialmente protegidas dada a proacutepria condiccedilatildeo de vulnerabilidade Maria Carolina S Guimaratildees e Sylvia Caiuby Novaes com alento em Hannah Arendt e Cardia definem o ser vulneraacutevel como Algueacutem que possui cidadania fraacutegil que ignora a relevacircncia do direito agrave integridade fiacutesica como condiccedilatildeo de acesso aos direitos sociais econocircmicos poliacuteticos e trabalhistas Dito assim o que parece a primeira condiccedilatildeo para que um ser vulneraacutevel perca tal situaccedilatildeo eacute o investimento do Estado naquilo que constroacutei e constitui a cidadania naqueles atributos que transformam o indiviacuteduo em cidadatildeo que transformam o animal laborans em homem poliacutetico Essa transformaccedilatildeo eacute no dizer de Hannah Arendt um pressuposto da democracia pois permite ao animal laborans ir do reino da necessidade para o reino da liberdade GUIMARAtildeES Maria Carolina S NOVAES Sylvia Caiuby Autonomia reduzida e vulnerabilidade liberdade de decisatildeo diferenccedila e desigualdade Revista Bioeacutetica Brasiacutelia v 7 n 1 p 23 1999

91 Sobre o tema vide COHEN Claacuteudio Bioeacutetica Pesquisa e Deficiecircncia In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 55-62 92 Nem todo ser humano eacute no entanto capaz de autodeterminaccedilatildeo A capacidade de autodeterminaccedilatildeo amadurece ao longo da vida mas pode ser perdida total ou parcialmente por doenccedila velhice ou situaccedilatildeo de restriccedilatildeo severa como a prisatildeo Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 93 O Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de janeiro de 1988) veda ao meacutedico no seu art 128 Realizar pesquisa meacutedica em voluntaacuterios sadios ou-natildeo que tenham direta ou indiretamente dependecircncia ou subordinaccedilatildeo relativamente ao pesquisador 94 I1I3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias a) ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder a incertezas b) estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou em outros fatos cientiacuteficos c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio d) prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis e) obedecer a metodologia adequada Se houver necessidade de distribuiccedilatildeo aleatoacuteria dos sujeitos da pesquisa em grupos experimentais e de controle assegurar que apriori natildeo seja possiacutevel estabelecer as vantagens de um procedimento sobre outro atraveacutes de revisatildeo de literatura meacutetodos observacionais ou meacutetodos que natildeo envolvam seres humanos 0 ter plenamente justificada quando for o caso a utilizaccedilatildeo de placebo em termos de natildeo maleficecircncia e de necessidade metodoloacutegica g) contar com o consentimento livre e esclarecido do sujeito da pesquisa eou seu representante legal h) contar com os recursos humanos e materiais necessaacuterios que garantam o bem-

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5 Teleologia e legitimidade da pesquisa em seres humanos

Toda experimentaccedilatildeo em seres humanos possui um determinado objetivo o qual pode ou-natildeo estar vinculado ao bem estar proacuteprio da pessoa ou grupo observado

Essa situaccedilatildeo natildeo foi esquecida pela Declaraccedilatildeo de Helsinque cujo preacircmbulo afirma Wo campo cia pesquisa biomeacutedica uma distinccedilatildeo fundamental deve ser feita entre a pesquisa meacutedica na qual o objetivo eacute essencialmente o diagnoacutestico ou a terapecircutica para um paciente e a pesquisa meacutedica cujo objeto essencial eacute puramente cientiacutefico e sem um valor direto diagnoacutestico ou terapecircutico para a pessoa sujeita agrave

estar do sujeito da pesquisa devendo ainda haver adequaccedilatildeo entre a competecircncia do pesquisador e o projeto proposto i) prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade a proteccedilatildeo da imagem e a natildeo estigmatizaccedilatildeo garantindo a natildeo utilizaccedilatildeo das informaccedilotildees em prejuiacutezo das pessoas eou das comunidades inclusive em termos de auto-estima de prestiacutegio eou econocircmico - financeiro j) ser desenvolvida preferencialmente cm indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida 1) respeitar sempre os valores culturais sociais morais religiosos e eacuteticos bem como os haacutebitos e costumes quando as pesquisas envolverem comunidades m) garantir que as pesquisas em comunidades sempre que possiacutevel traduzir-se-atildeo em benefiacutecios cujos efeitos continuem a se fazer sentir apoacutes sua conclusatildeo O projeto deve analisar as necessidades de cada um dos membros da comunidade e analisar as diferenccedilas presentes entre eles explicitando como seraacute assegurado o respeito agraves mesmas n) garantir o retomo dos benefiacutecios obtidos atraveacutes das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas Quando no interesse da comunidade houver benefiacutecio real em incentivar ou estimular mudanccedilas de costumes ou comportamentos o protocolo de pesquisa deve incluir sempre que possiacutevel disposiccedilotildees para comunicar tal benefiacutecio agraves pessoas eou comunidades o) comunicar agraves autoridades sanitaacuterias os resultados da pesquisa sempre que os mesmos puderem contribuir para a melhoria das condiccedilotildees de sauacutede da coletividade preservando poreacutem a imagem e assegurando que os sujeitos da pesquisa natildeo sejam estigmatizados ou percam a auto-estima p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefiacutecios resultantes do projeto seja em termos de retorno social acesso aos procedimentos produtos ou agentes da pesquisa q)assegurar aos sujeitos da pesquisa as condiccedilotildees de acompanhamento tratamento ou de orientaccedilatildeo conforme o caso nas pesquisas de rastreamento demonstrar a preponderacircncia de benefiacutecios sobre riscos e custos r) assegurar a inexistecircncia de conflito de interesses entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa ou patrocinador do projeto s) comprovar nas pesquisas conduzidas do exterior ou com cooperaccedilatildeo estrangeira os compromissos e as vantagens para os sujeitos das pesquisas e para o Brasil decorrentes de sua realizaccedilatildeo Nestes casos deve ser identificado o pesquisador e a instituiccedilatildeo nacionais co-responsaacuteveis pela pesquisa O protocolo deveraacute observar as exigecircncias da Declaraccedilatildeo de Helsinque e incluir documento de aprovaccedilatildeo no paiacutes de origem entre os apresentados para avaliaccedilatildeo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa da instituiccedilatildeo brasileira que exigiraacute o cumprimento de seus proacuteprios referenciais eacuteticos Os estudos patrocinados do exterior tambeacutem devem responder agraves necessidades de treinamento de pessoal no Brasil para que o paiacutes possa desenvolver projetos similares de forma independente t) utilizar o material bioloacutegico e os dados obtidos na pesquisa exclusivamente para a finalidade prevista no seu protocolo u) levar em conta nas pesquisas realizadas em mulheres em idade feacutertil ou em mulheres graacutevidas a avaliaccedilatildeo de riscos e benefiacutecios e as eventuais interferecircncias sobre a fertilidade a gravidez o embriatildeo ou o feto o trabalho de parto o puerpeacuterio a lactaccedilatildeo e o receacutem-nascido v) considerar que as pesquisas em mulheres graacutevidas devem ser precedidas de pesquisas em mulheres fora do periacuteodo gestacional exceto quando a gravidez for o objetivo fundamental da pesquisa x) propiciar nos estudos multicecircntricos a participaccedilatildeo dos pesquisadores que desenvolveratildeo a pesquisa na elaboraccedilatildeo do delineamento geral do projeto e z) descontinuar o estudo somente apoacutes anaacutelise das razotildees da descontinuidade pelo CEP que a aprovou

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1211

pesquisa Em outras palavras haacute experimentos em benefiacutecio do paciente e experimentos em benefiacutecio da ciecircncia Ainda no preacircmbulo da Declaraccedilatildeo de Helsinque encontramos que A finalidade da pesquisa meacutedica envolvendo seres humanos deve ser o aperfeiccediloamento do diagnoacutestico procedimentos terapecircuticos e profilaacuteticos e a compreensatildeo da etiologia e da patologia da doenccedila Conjugando essa afirmaccedilatildeo com a anterior podemos extrair que uma determinada pessoa ou populaccedilatildeo pode ser objeto de pesquisa para desvendar doenccedilas que a afligem ou para desnudar as razotildees pelas quais eacute menos suscetiacutevel ou-natildeo eacute atingida por determinada moleacutestia que afeta aos demais seres humanos

A partir dessas observaccedilotildees podemos considerar para os fins do nosso estudo que as experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas teleologicamente em dois grupos a) aquelas cujos objetivos possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas as quais chamaremos de pesquisas com justificativa intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de terceiros as quais denominaremos pesquisas com justificativa extrinseca Temos como exemplo na primeira situaccedilatildeo os experimentos cientiacuteficos para desvendar o porquecirc de uma determinada coletividade ser atingida por taxas elevadas de uma certa doenccedila e na segunda uma pesquisa para revelar as razotildees pelas quais certas pessoas natildeo desenvolvem uma moleacutestia com o objetivo de descobrir uma vacina ou um medicamento para os demais

Entretanto em todo experimento seraacute necessaacuterio averiguar se a justificativa - seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima Isso porque o fato de uma pesquisa ter por objetivo um tratamento mais eficiente ou a cura de certas doenccedilas natildeo legitima por si soacute a utilizaccedilatildeo de pessoas como sujeito de pesquisa mesmo que elas sofram da moleacutestia e possam vir a ser beneficiadas Natildeo se deve perder de vista aliaacutes que se o conhecimento puder ser obtido por outro meio a utilizaccedilatildeo de seres humanos justamente por ser desnecessaacuteria seraacute ilegiacutetima95 Ademais soacute pelo fato de ser intriacutenseca a justificativa natildeo seraacute necessariamente legiacutetima Por outro lado a circunstacircncia isoladamente considerada do eventual resultado da experimentaccedilatildeo ser absolutamente indiferente ao sujeito de pesquisa natildeo torna a sua participaccedilatildeo ilegiacutetima Em outras palavras a justificativa soacute por ser extrinseca natildeo seraacute necessariamente ilegiacutetima

Vale relembrar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 - A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio

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A razatildeo disso reside na afirmaccedilatildeo de que como se sabe desde Kant o Homem deve ser tratado como um fim em si mesmo e natildeo como instrumento De fato eacute em Kant que o Homem ganha status de valor absoluto manifesto no imperativo praacutetico expresso na maacutexima segundo a qual Ages de tal maneira que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio 96

Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

Quando se trata de experimentaccedilatildeo com justificativa intriacutenseca a razatildeo legitimadora pode estar no objetivo de beneficiar os proacuteprios sujeitos da pesquisa algueacutem se submete a uma experimentaccedilatildeo na tentativa de auferir uma vantagem em seu bem-estar fiacutesico ou mental

Jaacute no caso da justificativa extriacutenseca poder-se-ia objetar a realizaccedilatildeo da experimentaccedilatildeo com suposto fundamento na Resoluccedilatildeo 19696 cujo item III 1 letra d vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila Ora se em uma determinada situaccedilatildeo algueacutem participa do experimento sem que haja qualquer possibilidade de benefiacutecio fiacutesico ou mental para si a partir do resultado da pesquisa e considerando que a mesma Resoluccedilatildeo veda qualquer forma de remuneraccedilatildeo do sujeito da pesquisa (item 1110) qual a vantagem significativa que poderaacute essa pessoa auferir para justificar a sua participaccedilatildeo

Ao nosso ver a interpretaccedilatildeo desse ponto da Resoluccedilatildeo natildeo deve ser literal nem assistemaacutetica97 devendo ser considerada a incidecircncia de um outro princiacutepio ainda

Op cit p 69 Em comento a este imperativo Francesca Puigpclat Marti apregoa que La concepcioacuten liberal asocia a esta expresioacuten una idea comuacuten en Ia reflexioacuten eacutetica de raigambre kantiana el hombre es un fin en si mismo un sujeto y no un objeto Seguacuten Kant en el sistema de Ia natureza el hombre (homo phaenomenon animal rationale) es un ser de escasa importancia y tiene con los demaacutes animales en tanto que productos de Ia tierra un precio comuacuten () Ahora bien el hombre considerado como persona es dccir como sujeto de una razoacuten praacutetico-moral estaacute situado por encima de todo precio porque como tal (homo noumenon) no puede valorarse soacutelo como meacutedio para fines ajenos incluso para sus proprios fines sino como fin en siacute mismo es decir posee una dignidad(un valor interno absoluto) gracias a la cual infunde respeto haciacutea eacutel a todos los demaacutes seres racionales dei mundo puede medirse con cualquier otro de esta clase y valorarse en pie de igualdad En la medida en que seguacuten Kant el hombre existe como fin en siacute mismo y no soacutelo como meacutedio para usos cualesquiera de una u otra voluntad se puede formular el siguiente principio praacutetico supremo obra de tal modo que uses la humanidad tanto en tu persona como en la persona de cualquier otro siempre como un fin al mismo tiempo y nunca solamente como un meacutedio MARTIacute Francesca Puigpelat Clonacioacuten dignidad humana y constitucioacuten Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo ano II n 42 janmar p37-64 2003

Natildeo se interpreta o direito em tiras aos pedaccedilos () Um texto de direito isolado destacado desprendido do sistema juriacutedico natildeo expressa significado normativo algum Cf GRAU Eros Roberto Ensaio e

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1213

que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que eacute o da solidariedade Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita entendemos que a sua aplicaccedilatildeo eacute cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele dispositivo (item 1111 letra d da Resoluccedilatildeo 19696) afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria Aleacutem disso outros documentos de importacircncia para a Bioeacutetica fazem referecircncia agrave solidariedade98 De fato natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao respeito agrave dignidade da pessoa humana99

Logo no nosso pensar mesmo que natildeo haja nenhum benefiacutecio ou vantagem direta ao sujeito de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma justificativa eacutetica a qual pode ter como nuacutecleo a intenccedilatildeo solidaacuteria dessa pessoa e do pesquisador de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e consequumlentemente para todos os demais seres humanos

A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica100

Estas exigecircncias no acircmbito normativo brasileiro estatildeo listadas na Resoluccedilatildeo 19696 especialmente no item III3

Algumas delas satildeo puramente objetivas e uma vez desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca E o caso por exemplo da necessidade de consentimento preacutevio e informado

discurso sobre a interpretaccedilatildeoaplicaccedilatildeo do Direito Satildeo Paulo Malheiros Editores 2002 p 34 98

O art 1deg da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos proclama que todas pessoas devem agir em relaccedilatildeo umas agraves outras com espiacuterito de fraternidade Alem disso a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO em um dos seus considerandos observa que os seres humanos tecircm um papel importante na proteccedilatildeo um do outro tratando expressamente da solidariedade e cooperaccedilatildeo no seu art 13 segundo o qual A solidariedade entre os seres humanos e cooperaccedilatildeo internacional para este fim devem ser estimuladas 99 Ela [a solidariedade] eacute o fecho de aboacutebada do sistema de princiacutepios eacuteticos pois complementa e aperfeiccediloa a liberdade a igualdade e a seguranccedila () E um erro considerar que no mundo da natureza sobretudo no mundo animal natildeo exista solidariedade e que ela seja uma criaccedilatildeo poliacutetica Muito pelo contraacuterio pode-se dizer que a biosfera forma naturalmente um sistema solidaacuterio e que o rompimento desse sistema eacute sempre obra do homem O proacuteprio Darwin bem advertiu que a expressatildeo struggle for Existence fora por ele usada em sentido amplo e matafoacuterico incluindo a dependecircncia de um ser em relaccedilatildeo a outro bem como incluindo (o que eacute mais importante) natildeo apenas a vida do indiviacuteduo mas o ecircxito em deixar descendentes Os zooacutelogos jaacute observaram que o processo de seleccedilatildeo natural deu mais vantagens bioloacutegicas aos grupos que cuidavam de seus membros natildeo reprodutivos do que agravequeles que abandonavam ou matavam os anciatildeos pois a capacidade de reproduccedilatildeo global dos grupos altruiacutestas eacute assim singularmente reforccedilada Cf COMPARATO Faacutebio Konder Eacutetica direito moral e religiatildeo no mundo moderno Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 p 577578

100

Natildeo eacute agrave toa portanto que como jaacute visto a Resoluccedilatildeo 19696 vincula a eticidade na pesquisa aos princiacutepios da Bioeacutetica tanto no seu preacircmbulo como no seu item III 1

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dos participantes - ou dos seus representantes se incapazes - 101 cuja ausecircncia macula o princiacutepio da autonomia Tambeacutem eacute objetiva a exigecircncia da pesquisa estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou outros fatos cientiacuteficos102 cuja inobservacircncia implica em ofensa agrave natildeo-maleficecircncia Nessas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou-natildeo vir a ter um benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

Outras exigecircncias entretanto possuem um certo grau de subjetividade em maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as circunstacircncias faacuteticas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo de valor iacutensito a cada um Desse tipo vg eacute a exigecircncia segundo a qual a pesquisa deve ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e ter possibilidades concretas de responder a incertezas103 A avaliaccedilatildeo quanto ao cumprimento ou-natildeo da exigecircncia e portanto quanto agrave legitimidade ou ilegitimidade da utilizaccedilatildeo de seres humanos tem um niacutetido caraacuteter subjetivo podendo variar de pessoa para pessoa

Quando tratamos de exigecircncias subjetivas haacute ainda um outro aspecto a ser apontado deveraacute ser levado em conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca Em outras palavras a circunstacircncia do sujeito de pesquisa poder vir a ser beneficiado ou-natildeo pelo resultado do experimento deve ser considerada na verificaccedilatildeo da legitimidade eacutetica quando da ponderaccedilatildeo sobre o cumprimento das exigecircncias subjetivas

Tomemos como exemplo a exigecircncia de que devem prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis104 Ora essa exigecircncia eacute subjetiva pois envolve uma ponderaccedilatildeo cujo resultado estaacute vinculado a um juiacutezo de valor sobre a natureza e a importacircncia ou peso de cada benefiacutecio ou risco provaacutevel Ao nosso entender quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal no resultado do experimento tratando-se portanto de justificativa extriacutenseca eacute oacutebvio que os riscos a que se submete devem ser considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o benefiacutecio esperado tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa submetida ao experimento

101 Item III3 letra g da Resoluccedilatildeo 19696 102 Item III3 letra b da Resoluccedilatildeo 19696 103 Item III3 letra a da Resoluccedilatildeo 19696 104 Item III3 letra d da Resoluccedilatildeo 19696

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Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila105 Por outro lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

A proacutepria realizaccedilatildeo ou-natildeo da pesquisa pode depender dessa ponderaccedilatildeo jaacute que a Resoluccedilatildeo n 19696 prevecirc que havendo riscos potenciais as pesquisas envolvendo seres humanos poderatildeo ser admitidas quando oferecerem elevada possibilidade de gerar conhecimento para entender prevenir ou aliviar um problema que afete o bem-estar dos sujeitos da pesquisa e de outros indiviacuteduos 106

Aleacutem disso parece ser mais aceitaacutevel eticamente submeter o ser humano a riscos maiores quando a justificativa eacute intriacutenseca do que quando ela eacute extriacutenseca priorizando assim a sua preservaccedilatildeo Nesse sentido a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO estipula que uos interesses e o bem-estar do indiviacuteduo devem ter prioridade sobre o interesse exclusivo da ciecircncia ou da sociedade 107

Natildeo se pode esquecer ainda que por forccedila dos princiacutepios da beneficecircncia da natildeo-maleficecircncia e da justiccedila eacute preciso considerar na mediccedilatildeo da legitimidade as peculiaridades individuais ou coletivas dos sujeitos de pesquisa especialmente no que concerne agraves suas eventuais vulnerabilidades bem como cuidar para que natildeo lhes seja imposto um mal desnecessaacuterio ou desproporcional O princiacutepio da justiccedila como vimos implica necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa os quais sempre que possiacutevel devem ter garantido para si pelo pesquisador a fruiccedilatildeo dos benefiacutecios da experimentaccedilatildeo natildeo sendo equacircnime impor-Ihes ocircnus excessivos108 especialmente se vulneraacuteveis Natildeo eacute agrave toa portanto que pode

105 O princiacutepio da justiccedila implica atenccedilatildeo especial agraves regras de recrutamento de participantes de experimentos Natildeo se pode fazer experimentos apenas com determinados grupos - pacientes de enfermaria asilados prisioneiros - simplesmente porque eles estatildeo agrave disposiccedilatildeo e em situaccedilatildeo de dependecircncia Isso eacute injusto Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 Item Vl aliacutenea a

107 Art 3 aliacutenea b 108 bull

Consideramos que deva ser modificada a praacutetica muito comum em nosso paiacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de pesquisados provenientes das camadas mais desfavorecidas da sociedade ou de outros grupos vulneraacuteveis mas que posteriormente natildeo poderatildeo se beneficiar dos resultantes positivos das pesquisas em que tomaram parte mesmo tendo enfrentado riscos de danos psico-sociais As pesquisas realizadas nesses grupos devem poder lhes trazer benefiacutecios e os pesquisadores sempre que possiacutevel devem garantir retomo dos benefiacutecios resultados das pesquisas para os sujeitos individuais e coletivos que nelas participarem Cf FORTES Paulo Antonio de Carvalho As Pesquisas em Seres Humanos e o Principio Eacutetico da Justiccedila

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haver exigecircncias eacuteticas especiacuteficas para pesquisas com serem humanos em situaccedilatildeo de vulnerabilidade109

Assim sempre seraacute preciso dosar a equaccedilatildeo riscobeneficio ponderando em cada caso concreto se os eventuais benefiacutecios satildeo suficientes para motivar a exposiccedilatildeo das pessoas ao processo de experimentaccedilatildeo Pode ser que diante de certas peculiaridades ou vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima110 Aliaacutes como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis justamente porque como jaacute dito o ser humano natildeo pode ser tratado como mero instrumento1

E natildeo eacute soacute Aleacutem disso em princiacutepio a pesquisa com pessoas ou grupos vulneraacuteveis deve ter uma justificativa intriacutenseca2 Entretanto sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas em experimentos extriacutensecos agrave luz da solidariedade como no caso do grupo vulneraacutevel ser imune a determinada moleacutestia por razatildeo ainda desconhecida o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias objetivas agrave risca deve ser ainda mais

Cadernos de Eacutetica em Pesquisa Ano 1 n 2 p 22-23 nov 1998 109

A tiacutetulo de exemplo a Resoluccedilatildeo 19696 traz alguns requisitos especiacuteficos para o consentimento livre e esclarecido de pessoas ou populaccedilotildees vulneraacuteveis no item IV3

110 Um caso de niacutetida violaccedilatildeo aos princiacutepios bioeacuteticos em pesquisas envolvendo grupo vulneraacutevel foi o jaacute mencionado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm Conforme um dos colaboradores da pesquisa utilizar doentes mentais ainda que natildeo voluntaacuterios foi a melhor opccedilatildeo diante do fato de que o principal problema da sauacutede puacuteblica era justamente o das doenccedilas dentaacuterias razatildeo pela qual os fins justificariam os meios ainda mais considerando que o estudo foi utilizado em todo o mundo (Krasse B Sueacutecia usou deficiente mental como cobaia Folha de Satildeo Paulo 23 Set 1997 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas cliacutenicas sobre seus direitos 2005 p 61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo) sendo faacutecil criticar o fato depois de consumado (Krasse B The Vipeholm dental caries study recollections and reflections 50 years later J Dent Res 2001 80(9) 1785-8 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu op cit p 61) Mais uma vez cabiacutevel rememorar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () j) ser desenvolvida preferencialmente em indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida

112 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO eacute clara ao afirmar em seu art 7 aliacutenea b no que diz respeito a indiviacuteduos sem a capacidade para fornecer consentimento que a pesquisa soacute deve ser realizada para o beneficio direto agrave sauacutede do indiviacuteduo envolvido estando sujeita agrave autorizaccedilatildeo e agraves condiccedilotildees de proteccedilatildeo prescritas pela legislaccedilatildeo e caso natildeo haja nenhuma alternativa de pesquisa de eficaacutecia comparaacutevel que possa incluir sujeitos de pesquisa com capacidade para fornecer consentimento

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1217

rigoroso na ponderaccedilatildeo do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da autonomia e justiccedila expondo tais pessoas a riscos miacutenimos menores ateacute do que aqueles normalmente empregados em pesquisas com justificativa intriacutenseca3

Se essas diretrizes natildeo forem observadas teremos uma pesquisa carente de justificativa eacutetica e de legitimidade

6 Conclusotildees

Em virtude dos limites inerentes agrave nossa abordagem nessas consideraccedilotildees finais natildeo apresentaremos verdades irrefutaacuteveis e definitivas sobre um tema que ainda carece de um importante debate acadecircmico e normativo Com efeito o que pretendemos modestamente foi evidenciar alguns paradigmas que possam ensejar a conciliaccedilatildeo da dignidade da pessoa humana com a continuidade dos processos de investigaccedilatildeo cientiacuteficos realizados em seres humanos Para tanto podemos sintetizar nosso pensamento nas seguintes conclusotildees

a) O desenvolvimento da ciecircncia mormente em aacutereas afeitas agrave vida e a ocorrecircncia de pesquisas francamente contraacuterias agrave dignidade humana como ocorrido em vaacuterias passagens da Segunda Guerra ensejaram o surgimento da Bioeacutetica como um novo ramo do conhecimento

b) Deve-se limitar a atuaccedilatildeo da Bioeacutetica aos casos em que haacute conflito de valores quando dois princiacutepios eacutetica e moralmente admissiacuteveis natildeo podem coexistir

c) Haacute iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica Autonomia Beneficecircncia e Justiccedila aleacutem da Natildeo-Maleficecircncia - e as pesquisas em seres humanos

113 Ainda conforme o art 7 aliacutenea b da Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO quando se trata de pessoas incapazes Pesquisas sem potencial beneficio direto agrave sauacutede soacute devem ser realizadas excepcionalmente com a maior restriccedilatildeo expondo o indiviacuteduo apenas a risco e desconforto miacutenimos e quando se espera que a pesquisa contribua com o benefiacutecio agrave sauacutede de outros indiviacuteduos na mesma categoria sendo sujeitas agraves condiccedilotildees prescritas por lei e compatiacuteveis com a proteccedilatildeo dos direitos humanos do indiviacuteduo A recusa de tais indiviacuteduos em participar de pesquisas deve ser respeitada

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1218 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

d) Os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica

pluralista aberta e receptiva e satildeo um poderoso instrumento

para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

razotildees pelas quais eacute descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos

debates bioeacuteticos

e) O avanccedilo tecnoloacutegico traz cada vez mais a diminuiccedilatildeo de

limites teacutecnicos ao ser humano o que conduz ao debate sobre a

necessidade de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees para

evitar eventuais abusos especialmente na aacuterea biomeacutedica

elevando a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que

demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave

vida

0 A concretizaccedilatildeo dos objetivos atuais da humanidade

especialmente em relaccedilatildeo agrave expectativa de vida depende

dentre outros fatores da pesquisa cientiacutefica e da

experimentaccedilatildeo em seres humanos Poreacutem eacute preciso tomar o

Homem como sujeito de pesquisa sem trataacute-lo como mero

instrumento mas como um fim em si mesmo

g) A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do

interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda

Guerra trouxeram agrave tona a questatildeo da eacutetica na pesquisa

evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana e

de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa

em seres humanos gerando uma seacuterie de normas internacionais

e nacionais a exemplo do Coacutedigo de Nuremberg da

Declaraccedilatildeo de Helsinque e no Brasil da Resoluccedilatildeo n 19696

do Conselho Nacional de Sauacutede

h) Dentre os principais aspectos da Resoluccedilatildeo n 19696 do

Conselho Nacional de Sauacutede encontramos a vinculaccedilatildeo da

experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da

principiologia da Bioeacutetica a explicitaccedilatildeo de um rol de

exigecircncias para a eticidade na pesquisa as definiccedilotildees de

diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica como o

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1219

consentimento livre e esclarecido a vulnerabilidade e a

incapacidade a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em

Pesquisa -CONEP e a regulamentaccedilatildeo dos Comitecircs de Eacutetica e

Pesquisa - CEPs

i) O consentimento livre e esclarecido decorre da adoccedilatildeo do

princiacutepio da autonomia e pressupotildee dentre outras premissas a

capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os

aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos

possiacuteveis

j) A vulnerabilidade natildeo pode ser desconsiderada pelo

pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais ocorrendo

quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de

estudo por quaisquer motivos possuem a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto agrave

compreensatildeo sobre o experimento e a possibilidade de

livremente consentir com a pesquisa e dela desistir

k) A incapacidade ocorre quando as pessoas que seratildeo estudadas

na pesquisa natildeo possuem capacidade civil para dar o seu

consentimento soacute podendo ser levada adiante a pesquisa com a

intervenccedilatildeo de seus representantes legais implicando tambeacutem

no dever do pesquisador de cercar-se de cautelas eacuteticas

redobradas

1) As experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas

teleologicamcnte em dois grupos a) aquelas cujos objetivos

possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas

observadas as quais chamamos de pesquisas com justificativa

intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo

direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de

terceiros as quais denominamos pesquisas com justificativa

extrinseca

m) Em todo experimento eacute necessaacuterio averiguar se a justificativa -

seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1220 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima jaacute que a

justificativa soacute pelo fato de ser intriacutenseca natildeo seraacute

necessariamente legiacutetima nem tampouco soacute por ser extriacutenseca

seraacute necessariamente ilegiacutetima

n) Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a

realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser

encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca

como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

o) A interpretaccedilatildeo do item III1 letra d da Resoluccedilatildeo n 19696

que vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens

significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de

infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila natildeo deve ser literal nem

assistemaacutetica devendo ser considerada a incidecircncia de um

outro principio ainda que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que

eacute o da solidariedade

p) Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita ao princiacutepio da

solidariedade na Resoluccedilatildeo n 19696 a sua aplicaccedilatildeo eacute

cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele

texto afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua

relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-

humanitaacuteria

q) Logo mesmo que natildeo haja nenhum beneficio direto ao sujeito

de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma

justificativa a qual pode ser a intenccedilatildeo sua e do pesquisador

de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e

consequumlentemente para todos os demais seres humanos Aleacutem

disso natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica

sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao

respeito agrave dignidade da pessoa humana

r) A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em

seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade

poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1221

diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica listadas na

Resoluccedilatildeo n 19696 especialmente no item III3

s) Algumas exigecircncias satildeo puramente objetivas e uma vez

desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da

justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca

t) Nas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa

ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou natildeo vir a ter um

benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

u) Outras exigecircncias possuem um certo grau de subjetividade em

maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da

pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo

exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as

circunstacircncias faacutetiacutecas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo

de valor iacutensito a cada um

v) Quando se tratar de exigecircncias subjetivas deveraacute ser levado em

conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma

justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca

w) Quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou

sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal

no resultado do experimento tratando-se portanto de

justificativa extriacutenseca os riscos a que se submete devem ser

considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a

justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o beneficio esperado

tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa

submetida ao experimento

x) Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do

sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero

instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila e por outro

lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute

menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa

consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1222 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a

algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

y) Pode ser que diante de certas peculiaridades ou

vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo

considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa

em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua

realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo

eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima

z) Como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras

pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis

mas sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas agrave luz da

solidariedade o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias

objetivas agrave risca deve ser ainda mais rigoroso na ponderaccedilatildeo

do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave

observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da

autonomia e justiccedila

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Page 5: BIOÉTICA E PESQUISAS EM SERES HUMANOS

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1191

desmedidas e inadequadas ao incluir na esfera dos estudos bioeacuteticos mateacuterias por exemplo como a Ecologia que objetiva a preservaccedilatildeo da espeacutecie humana e do planeta terra e a Medicina Sanitaacuteria Ocorre que toda e qualquer interrogaccedilatildeo se levada aos extremos indubitavelmente em algum aspecto alcanccedilaraacute a vida humana e a interdisciplinaridade mas apenas isto natildeo a transformaraacute em uma questatildeo Bioeacutetica Jaacute a segunda preocupa-se com a relaccedilatildeo entre os profissionais da aacuterea de sauacutede e os pacientes ou entre instituiccedilotildees puacuteblicas ou privadas pacientes e profissionais de sauacutede Entretanto a Bioeacutetica transborda o interesse das pessoas ligadas diretamente agraves questotildees de sauacutede para atingir todos os Homens jaacute que interfere no conviacutevio social

Parece-nos mais acertado e necessaacuterio limitar a atuaccedilatildeo da Bioeacutetica aos casos em que realmente haacute algum conflito de valores quando numa mesma situaccedilatildeo dois princiacutepios eacutetica e moralmente admissiacuteveis natildeo podem coexistir E o caso por exemplo da eutanaacutesia onde duelam a dignidade do paciente terminal e continuidade da vida do aborto por anencefalia onde se confrontam a vida do feto versus a dignidade da gestante e tambeacutem do caso em epiacutegrafe a pesquisa em seres humanos quando satildeo discutidos entre outros a liberdade e os limites da pesquisa cientiacutefica em contraponto aos princiacutepios gerais da Bioeacutetica e agrave dignidade Por outro lado quando a conduta eacute reprovada ou aceita de forma uniacutessona pela sociedade natildeo haacute porque pensaacute-la no plano da Bioeacutetica como ocorre vg com as questotildees atinentes agrave necessidade de diminuiccedilatildeo da violecircncia ou agrave imperiosidade da conservaccedilatildeo do meio ambiente

3 Os princiacutepios da Bioeacutetica

O principialismo da Bioeacutetica eacute proveniente sobretudo do Belmont Report e de sua lapidaccedilatildeo pela doutrina especialmente por Beauchamp e Childress12

O Belmont Report de 1978 eacute resultado do trabalho da Comissatildeo Nacional para Proteccedilatildeo dos Seres Humanos da Pesquisa Biomeacutedica e Comportamental13 instituiacuteda pelo Governo norte-americano em 12 de julho de 1974 para identificar os princiacutepios eacuteticos baacutesicos aplicaacuteveis na pesquisa em seres humanos As conclusotildees finais do relatoacuterio acabaram transpondo os objetivos iniciais da comissatildeo e formatando princiacutepios que seriam utilizados natildeo-soacute na experimentaccedilatildeo em pessoas mas sim em todas as

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12 BEAUCHAMP T L CHILDRESS J F Principies ofBiomedical Ethics 4 ed New York Oxford 1994 13 National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomeacutedica and Behavioral Research

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1192 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

projeccedilotildees da Bioeacutetica14 De qualquer forma esse fato histoacuterico revela desde logo a iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica e as pesquisas em seres humanos

Os trecircs princiacutepios impressos pelo Relatoacuterio e referendados pela Bioeacutetica satildeo os da autonomials da beneficecircncia e da justiccedila Todavia a incidecircncia de um quarto princiacutepio o da natildeo-maleficecircncia eacute reconhecida por muitos pesquisadores

O principio da autonomia reporta-se agrave capacidade de auto-escolha ao auto-governo considerado como uma condiccedilatildeo para a efetiva dignidade do ser racional Autonomia eacute uma palavra que tem origem grega derivando de auto (proacuteprio) e nomos (lei regra norma) vinculando-se assim agrave possibilidade de algueacutem adotar suas proacuteprias decisotildees As pessoas devem ser reconhecidas como entes capazes de tomar suas proacuteprias decisotildees devendo ser preacutevia e devidamente informadas a respeito dos procedimentos seus riscos e consequumlecircncias A informaccedilatildeo adequada eacute portanto fundamental natildeo-soacute no que concerne ao indiviacuteduo diretamente envolvido16 mas tambeacutem a toda a sociedade17

Em termos praacuteticos a autonomia significa dizer por exemplo no caso dos meacutedicos e dos profissionais da Medicina que eles devem respeitar a escolha dos seus pacientes seus dogmas e sua cultura18 Nestes termos a relaccedilatildeo meacutedicopaciente eacute bastante modificada abandonando-se o paternalismo que ateacute entatildeo imperava19

14 Asseveram Leo Pessini e Christian de Paul Barchifontaine que O Relatoacuterio de Belmorit foi oficialmente divulgado em 1978 e causou grande impacto Tornou-se a declaraccedilatildeo principialista claacutessica natildeo somente para a eacutetica ligada agrave pesquisa com seres humanos jaacute que acabou sendo utilizada para a reflexatildeo Bioeacutetica em geral PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Bioeacutetica do principialismo agrave busca de uma perspectiva latino-americana In COSTA Seacutergio Ibiapina F OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 83

15 Tambeacutem denominado de principio do respeito agraves pessoas ou de principio do consentimento Este uacuteltimo foi proposto por H Tristram Engelhardt para indicar melhor que o que estaacute em jogo natildeo eacute algum valor possuiacutedo pela autonomia ou pela liberdade mas o reconhecimento de que a autoridade moral secular deriva do consentimento dos envolvidos em um empreendimento comum O principio do consentimento coloca em destaque a circunstacircncia de que quando Deus natildeo eacute ouvido por todos do mesmo modo (ou natildeo eacute de maneira alguma ouvido por ningueacutem) e quando nem todos Pertencem a uma comunidade perfeitamente integrada e definida e desde que a razatildeo natildeo descubra uma moralidade canocircnica concreta entatildeo a autorizaccedilatildeo ou autoridade moral secularmente justificaacutevel natildeo vem de Deus nem da visatildeo moral de uma comunidade particular nem da razatildeo mas do consentimento dos indiviacuteduos Nessa surdez a Deus e no fracasso da razatildeo os estranhos morais encontram-se como indiviacuteduos ENGELHARDT H Tristram Fundamentos de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1998 p 17

Segundo a jaacute citada Declaraccedilatildeo de Bioeacutetica de Gijoacuten Os participantes da pesquisa deveratildeo conceder seu consentimento livre e plenamente esclarecido

1 A mesma Declaraccedilatildeo de Bioeacutetica de Gijoacuten tambeacutem recomenda que Todos os membros da sociedade devem receber uma informaccedilatildeo geral adequada e acessiacutevel sobre a utilizaccedilatildeo dos avanccedilos cientiacuteficos as biotecnologias e seus produtos O principio da autonomia como pressuposto da auto-determinaccedilatildeo inclusive auto-governo representa o respeito agrave capacidade que tem a pessoa de se governar escolher dividir avaliar sem restriccedilotildees internas e externas Cf BASTOS Paulo Roberto H de Oliveira A Bioeacutetica nas praacuteticas de sauacutede Revista Juriacutedica da FIC-UNAES Campo Grande Ano 1 n 2 p 98 nov 1998 abr 1999

19 Sobre o tema consta da Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten que Cada um tem o direito aos melhores cuidados

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1193

O postulado da autonomia tem forte base teoacuterica John Stuart Mill por exemplo jaacute tinha afirmado que sobre si mesmo sobre seu corpo e sua mente o indiviacuteduo eacute soberano20 Emile Durkheim entendia a autonomia como a interiorizaccedilatildeo das normas21 Por sua vez Jean Piaget estudou a autonomia como a capacidade de coordenaccedilatildeo de diferentes perspectivas sociais com o pressuposto do respeito reciacuteproco22

Poreacutem talvez a autonomia tenha tido na teoria kantiana o seu mais importante manancial A doutrina do filoacutesofo prussiano ultrapassou geraccedilotildees atingindo contornos cosmopolitas e atemporais Suas obras satildeo analisadas sob diferentes prismas idiomas e culturas sendo largamente estudado e recepcionado pela Bioeacutetica A autonomia em obra originalmente publicada em 1785 eacute para o filoacutesofo o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racionar23 E assim o pressuposto para a racionalidade da conduta bem como um princiacutepio supremo da moralidade vez que implica simultaneamente na vontade da norma universal (imperativo categoacuterico) e no respeito agrave dignidade da pessoa humana Registrou Kant na mesma obra que I autonomia da vontade eacute aquela sua propriedade graccedilas agrave qual ela eacute para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer) O princiacutepio da autonomia eacute portanto natildeo escolher senatildeo de modo a que as maacuteximas da escolha estejam incluiacutedas simultaneamente no querer mesmo como lei universal 24

Foi natural assim que a Bioeacutetica adotasse como fundamento o princiacutepio da autonomia2

O Relatoacuterio Belmont propocircs que a autonomia incorpora pelo menos duas convicccedilotildees eacuteticas a primeira que os indiviacuteduos devem ser tratados como agentes

meacutedicos possiacuteveis O doente e o meacutedico devem decidir juntos o domiacutenio do tratamento O doente deveraacute exprimir o seu consentimento livre apoacutes ter sido informado de maneira adequada Vale conferir a doutrina de COHEN Claacuteudio MARCOLINO Joseacute Aacutelvaro Marques Relaccedilatildeo Meacutedico-Paciente Autonomia amp Paternalismo In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo 1999 p 83-94

20 MILL John Stuart On Liberty Boston Collier 1909 p 5 21 Cf SEGRE Marco SILVA F L SCHRAMM F R O contexto histoacuterico semacircntico e filosoacutefico do

principio de autonomia Disponiacutevel em lthttpvwwvportaldomedicoorgbrrevistabiol v6conthistoricohtmgt Acessado em 04 maio 2006 Vide tambeacutem Joseacute Roberto Goldim Princiacutepio do respeito agrave pessoa ou da autonomia Disponiacutevel em lthttpwwwbioeticaufrgsbrautonomihtmgt Acessado cm 23 maio 2006

22 Cf KESSELRING T Jean Piaget Petroacutepolis Vozes 1993 p 173-189 23 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 1992 p 79 24 Id Ibid p 85 25 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO de 2005 agasalha o princiacutepio

da autonomia Seu art 5 por exemplo estatui que Deve ser respeitada a autonomia dos indiviacuteduos para tomar decisotildees quando possam ser responsaacuteveis por essas decisotildees e respeitem a autonomia dos demais Devem ser tomadas medidas especiais para proteger direitos e interesses dos indiviacuteduos natildeo capazes de exercer autonomia

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autocircnomos e a segunda que as pessoas com autonomia diminuiacuteda devem ser protegidas Desta forma divide-se em duas exigecircncias morais separadas a exigecircncia do reconhecimento da autonomia e a exigecircncia de proteger aqueles com autonomia reduzida Esta uacuteltima exigecircncia vincula-se agrave questatildeo da vulnerabilidade que pode ser observada em certas pessoas ou grupos e que seraacute mais adiante abordada

Por sua vez o principio da beneficecircncia de acordo com Clotet e Kipper deve ser entendido como uma dupla obrigaccedilatildeo primeiramente a de natildeo-causar danos e em segundo lugar a de maximizar o nuacutemero de possiacuteveis benefiacutecios e minimizar os prejuiacutezos26

Tambeacutem este postulado mereceu larga abordagem doutrinaacuteria muitas vezes em contraponto ao princiacutepio da natildeo-maleficecircncia que perfunctoriamente impotildee a obrigaccedilatildeo de natildeo-causar intencionalmente danos a outrem

Tal preceito deita raiacutezes no discurso hipocraacutetico na expressatildeo primum non nocere Mas tambeacutem eacute possiacutevel vinculaacute-lo aacute teoria kantiana jaacute que o imperativo categoacuterico conforme o qual Age segundo maacuteximas que possam simultaneamente ter-se a si mesmas por objecto como leis universais da natureza exige uma vontade absolutamente boa ou seja afasta qualquer possibilidade de agir que natildeo seja em benefiacutecio do outro27

Jaacute em 1930 Sir David Ross estabeleceu o conceito de dever prima facie propondo que no caso de eventual conflito entre beneficecircncia e natildeo-maleficecircncia prevaleccedila esta uacuteltima28

Frankena em 1963 escreveu que o princiacutepio da beneficecircncia natildeo nos ensina como fazer a distribuiccedilatildeo do bem e do mal apenas determina que promovamos o primeiro e evitemos o segundo2 Observa-se assim que a natildeo-maleficecircncia eacute entendida como parte da beneficecircncia

O Relatoacuterio Belmont foi influenciado pelo pensamento de Frankena jaacute que tratou a natildeo-maleficecircncia como um desdobramento natural da beneficecircncia ao estabelecer duas regras gerais que devem ser formuladas como complementares das

26 CLOTET amp KIPPER Princiacutepios da beneficecircncia e natildeo-maleficecircncia In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 45

27 Id Ibidp 80-81 28 ROSS W D The right and lhe Good Oxford Clarendon 1930 p 21-22 apud GOLDIM Joseacute Roberto

Principio da Beneficecircncia Disponiacutevel em lthttpwwwbioeticaufrgsbrbenefichtmgt Acessado em 23 maio de 2006

29 Quando se manifestam exigecircncias conflitantes o mais que ele pode fazer eacute aconselhar-nos a conseguir a maior porccedilatildeo possiacutevel de bem em relaccedilatildeo ao mal Cf FRANKENA W K Eacutetica Rio de Janeiro Zahar 1981 p 61-73 apud GOLDIM Joseacute Roberto op cit

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accedilotildees beneacuteficas a) natildeo-causar o mal e b) maximizar os benefiacutecios e minimizar os danos

A seu turno o princiacutepio da justiccedila pode ser resumido no dever de imparcialidade na distribuiccedilatildeo dos riscos e benefiacutecios inerentes agrave pesquisa bem como no tratamento igualitaacuterio aos iguais30 embora naturalmente haja dificuldades na determinaccedilatildeo de quem eacute ou-natildeo igual31 Implica ainda necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa

Segundo o Relatoacuterio Belmont haveraacute injusticcedila quando eacute imposto um dano ou encargo indevidamente ou quando um benefiacutecio eacute negado a algueacutem de maneira injustificada Aleacutem disso reconhece dificuldades na determinaccedilatildeo de um criteacuterio para a distribuiccedilatildeo dos benefiacutecios havendo vaacuterias possibilidades a cada um igualmente a cada um na medida da sua necessidade a cada um conforme seu esforccedilo individual a cada um de acordo com seu meacuterito2

Alguns autores defendem que a importacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica deve ser minorada postulando por uma reflexatildeo mais autocircnoma Nos parece que esse eacute

30 Eacute o princiacutepio da justiccedila que obriga a garantir a distribuiccedilatildeo justa equumlitativa e universal dos benefiacutecios dos serviccedilos de sauacutede Impotildee que todas as pessoas sejam tratadas de igual maneira natildeo obstante suas diferenccedilas Cf SANTOS Celeste Cordeiro dos O equiliacutebrio do pecircndulo a Bioeacutetica e a lei implicaccedilotildees meacutedico-legais Satildeo Paulo iacutecone 1998 p 45

31 O princiacutepio da igualdade tem suscitado importantes debates filosoacuteficos na Histoacuteria da humanidade dando ensejo a interpretaccedilotildees as mais variadas Aristoacuteteles vinculou a igualdade agrave justiccedila que pode ser comutativa ou distributiva (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos Satildeo Paulo Editora Nova Cultural 1996) Haacute ainda os autores nominalistas que entendem que a desigualdade eacute universal e portanto a igualdade natildeo passa de um nome Jaacute LOCKE John Ensaio sobre o governo civil Traduccedilatildeo Carmo Nunes Porto Seacuteculo XX 1986 e Montcsquieu Charles Secondat de O espirito das leis Satildeo Paulo Martins Fontes 1993 ao contraacuterio entendiam que a igualdade entre as pessoas era absoluta pertencendo assim ao grupo denominado de idealistas ROSSEAU Jean-Jacques Discurso sobre a origem das desigualdades entre os homens Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 de sua parte embora tambeacutem pertenccedila a essa uacuteltima vertente admitia a existecircncia de dois tipos de desigualdades a natural (ou fiacutesica) e a moral (ou poliacutetica) Vale entretanto trazer a lume as percucicntes anotaccedilotildees de Leila Pinheiro Bellintani sobre o tema Atraveacutes da anaacutelise histoacuterica do princiacutepio da igualdade [] percebe-se claramente que este preceito passou por intensa evoluccedilatildeo tendo sua conceituaccedilatildeo moldado-se atraveacutes dos tempos agraves novas necessidades sociais Apesar do constante aprimoramento do conceito dos ideais isonocircmicos natildeo se pode dizer que as concepccedilotildees anteriores foram ultrapassadas mas sim que houve uma agregaccedilatildeo de significados no decorrer da histoacuteria fazendo do principio da igualdade o preceito complexo que ora se apresenta Assim os estaacutegios evolutivos natildeo se deram de forma isolada ou independente Ao reveacutes se acumularam como telhas sobrepostas ampliando sempre o leque de acepccedilotildees a serem salvaguardadas ocorrendo o que se pode denominar de sobreposiccedilatildeo de significados Predomina portanto a ideacuteia de cumulaccedilatildeo e natildeo de alternacircncia entre eles Pode-se dizer portanto que hodiernamente o princiacutepio da igualdade possui diversas faces que se integram e que devem ser constantemente observadas pelos aplicadores das leis legisladores e pela proacutepria comunidade BELLINTANI Leila Pinheiro Accedilatildeo Afirmativa e os Princiacutepios do Direito Rio de Janeiro Lumen Juacuteris 2006 p 19-20

32 Impossiacutevel deixar de fazer menccedilatildeo aqui agrave noccedilatildeo de justiccedila distributiva de Aristoacuteteles que tem como base uma igualdade geomeacutetrica e consiste em dar a cada um o que lhe eacute devido mas considerando a excelecircncia que cada um possui o seu valor (areteacute) para a polis () porque aquilo que eacute distribuiacutedo agraves pessoas deve secirc-lo de acordo com o meacuterito de cada uma Op cit p 198

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um falso dilema jaacute que princiacutepios natildeo devem ser aplicados como regras e portanto natildeo representam uma camisa-de-forccedila para a Bioeacutetica Embora os objetivos deste trabalho natildeo nos permitam aprofundar a discussatildeo em torno da sua origem e aplicabilidade celeuma muito comum na ciecircncia juriacutedica natildeo seraacute despiciendo relembrar ao menos que haacute uma distinccedilatildeo juriacutedica entre princiacutepios e regras e que enquanto estas uacuteltimas satildeo aplicadas a partir da oacutetica do ali or nothing excluindo-se mutuamente os primeiros convivem entre si natildeo se excluem e representam motivos para decidir em determinado sentido

Portanto podemos afirmar que os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica pluralista aberta e receptiva Aleacutem disso pragmaticamente a aplicaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo dos princiacutepios em cada caso concreto eacute poderoso instrumento para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

Por tudo isso parece descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos debates bioeacuteticos Tanto assim eacute que a tendecircncia moderna eacute no sentido do reconhecimento de princiacutepios universais da Bioeacutetica Importante anotar por exemplo que o uacuteltimo documento internacional acerca do tema a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO datada de 2005 eacute fortemente principioloacutegica e dentre outros aspectos deliberou ser necessaacuterio e oportuno que a comunidade internacional declare princiacutepios universais que proporcionaratildeo uma base para a resposta da humanidade aos sempre crescentes dilemas e controveacutersias que a ciecircncia e a tecnologia apresentam agrave raccedila humana e ao meio ambiente

Deve-se lembrar finalmente que a abordagem dos princiacutepios da Bioeacutetica em separado tem uma justificativa puramente didaacutetica jaacute que eles natildeo podem ser cindidos na sua conceituaccedilatildeo e muito menos na sua aplicaccedilatildeo praacutetica34

4 Experimentaccedilatildeo em seres humanos aspectos da normatizaccedilatildeo nacional e internacional

Sobre princiacutepios a literatura juriacutedica eacute vasta Vide vg ALEXY Robert Teoria de tos Derechos Fundamentales Madrid Centro de Estuacutedios Constitucionales 1997 p 81-172 DWORKFN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1997 AacuteVILA Humberto Teoria dos Princiacutepios da definiccedilatildeo agrave aplicaccedilatildeo dos princiacutepios juriacutedicos 2 ed Satildeo Paulo Malheiros Editores 2003 ROTHEMBURG Waller Claudius Princiacutepios Constitucionais Porto Alegre Seacutergio Antonio Fabris 1999

4 Nesse sentido GUIMARAtildeES Maria Carolina S Eacutetica biomeacutedica e pesquisa em grupos humanos Revista Meacutedica de Minas Gerais v 3 n 1 p 52-53 janmar 1993 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO destina o seu art 26 agrave inter-relaccedilatildeo e complementaridade dos princiacutepios dispondo que A presente Declaraccedilatildeo deve ser considerada em sua totalidade e seus princiacutepios devem ser compreendidos como complementares e inter-relacionados Cada princiacutepio deve ser interpretado no contexto dos demais de forma pertinente e adequada a cada circunstacircncia

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No seacuteculo XVI Galileu passou a buscar a verdade atraveacutes da experimentaccedilatildeo e da observaccedilatildeo das coisas desvinculando-se da verdade dos escolaacutesticos ou da Igreja Esse eacute considerado o marco de referecircncia das origens da ciecircncia experimental a qual terminou por proporcionar a Revoluccedilatildeo Cientiacutefica nos seacuteculos seguintes35 Esta uacuteltima abriu as portas para uma nova era na humanidade multiplicando o conhecimento e as descobertas gerando tecnologia A tecnologia passou a imprimir uma velocidade cada vez maior nas transformaccedilotildees cientiacuteficas e sociais A velocidade com que as mudanccedilas ocorrem por sua vez municia o Homem com novas perspectivas e instrumentos sempre mais apurados de investigaccedilatildeo o que implica em mais tecnologia36 Investigaccedilatildeo pesquisa conhecimento mudanccedilas tecnologia velocidade formam uma espeacutecie de ciacuterculo virtuoso - natildeo-vicioso31 e satildeo palavras indissociaacuteveis da realidade nos uacuteltimos tempos a partir do seacuteculo XX no qual testemunhamos pelo menos duas espantosas revoluccedilotildees a atocircmica e a molecular38

Todo esse acervo mudou por completo as sociedades e o pensamento humano e natildeo se trata de um processo jaacute findo Pelo contraacuterio muito ainda estaacute por vir Natildeo se sabe aliaacutes se o Homem encontraraacute fronteiras tecnologicamente intransponiacuteveis Essa perspectiva de escassez de barreiras teacutecnicas conduz ao debate sobre a necessidade

35 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 edbdquo rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179

36 Por exemplo vale lembrar o ocorrido durante o desenrolar dos estudos do projeto genoma humano Segundo Jordan (1993) o verdadeiro objetivo inicial do PGH natildeo era o sequumlenciamento muito complexo caro e trabalhoso mas um mapeamento detalhado do genoma humano No decorrer do processo os progressos tecnoloacutegicos foram tatildeo grandes que propiciaram o sequumlenciamento mesmo antes do prazo previsto Cf GOLDIM Joseacute Roberto MATTE Uacutersulla Projeto Genoma Humano - HUGO Disponiacutevel em lthttpwwwufrgsbrbioeticagenomahtmgt Acessado em 28 maio de 2006

37 Natildeo se desconhece entretanto que o ser humano eacute capaz visando objetivos condenaacuteveis natildeo apenas de bloquear pesquisas mas tambeacutem de manipulaacute-las ou de realizaacute-las de forma direcionada propositadamente sem a observacircncia de criteacuterios cientiacuteficos Todavia antes de examinar a transmissatildeo de conhecimentos eacute necessaacuterio acenar para a sua fonte primaacuteria a pesquisa cientiacutefica Tambeacutem aiacute natildeo faltam aacutereas de conflito Foram sobretudo analisadas as frequumlentes ameaccedilas ao conhecimento e agrave informaccedilatildeo cientiacutefica provenientes de decisotildees poliacuteticas ou da proteccedilatildeo de interesses particulares Dentre as decisotildees poliacuteticas a diretora do Instituto Nacional da Seguranccedila e da Sauacutede Ocupacional (NIOSH) dos EUA Linda Rosenstock recordou aquelas assumidas pelo Congresso nos uacuteltimos anos dentro de um quadro de reduccedilatildeo de muitos programas para a proteccedilatildeo aos trabalhadores com a finalidade de bloquear a utilizaccedilatildeo de pesquisas no campo das artropatias do trabalho e de estudos sobre a relaccedilatildeo entre a motorizaccedilatildeo e os tumores e tambeacutem encobrir o fato de duas organizaccedilotildees internacionais designadas para a proteccedilatildeo agrave sauacutede a Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e a Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho estatildeo sob a acusaccedilatildeo de ter manipulado os relatoacuterios teacutecnicos relativos agrave induacutestria do asbesto Dentre os interesses particulares prcvalcccm aqueles das induacutestrias que encomendam pesquisas com a finalidade de demonstrar a inexistecircncia de efeitos nocivos (o exemplo mais macroscoacutepico concerne ao tabaco) ou entatildeo aumentar as incertezas para evitar fazer o que eacute necessaacuterio com base em conhecimentos jaacute comprovados ou mesmo sugerir procedimentos que alongam indefinidamente os periacuteodos de intervenccedilatildeo Cf BERLINGUER Giovanni Bioeacutetica Cotidiana Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2004 p 147-148

38 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia op cit p 159-179

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de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees tendo em conta que a teoria de haacute muito jaacute advertiu1 e a experiecircncia jaacute nos ensinou como adiante se veraacute que a ausecircncia de limites pode levar ao abuso

Embora isso possa ocorrer em vaacuterios campos como vg a economia e a poliacutetica sem duacutevida a aacuterea biomeacutedica eacute uma das que mais merecem nossa atenccedilatildeo natildeo soacute porque estaacute entre as mais influenciadas por essas transformaccedilotildees mas tambeacutem porque eacute uma das que mais tem potencial de desenvolvimento aleacutem do fato oacutebvio de estar diretamente ligada agrave vida humana Exatamente por isso cresce a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave vida especialmente a Medicina40

O acreacutescimo jaacute obtido na expectativa de vida do Homem que praticamente dobrou nos uacuteltimos dois seacuteculos decorrente de vaacuterios fatores dentre os quais uma verdadeira revoluccedilatildeo terapecircutica41 natildeo eacute suficiente As pessoas querem viver ainda mais e com melhor qualidade Por isso cobram mais avanccedilos tecnoloacutegicos nessa aacuterea despertando interesses diversos que vatildeo dos humanitaacuterios aos puramente comerciais e econocircmicos Chega-se a se falar ateacute mesmo em um direito agrave pesquisa que deve figurar entre as liberdades fundamentais unanimemente reconhecidas42

Para que esses desejos se tornem viaacuteveis eacute preciso conhecer cada vez mais profundamente a complexa maacutequina que eacute o corpo humano desenvolver novos faacutermacos medicamentos vacinas e terapias para combater doenccedilas descobrir a fonte da juventude atraveacutes de meacutetodos de desaceleraccedilatildeo - ou quiccedilaacute interrupccedilatildeo - da degeneraccedilatildeo celular dentre outras possibilidades e desafios

Por exemplo eacute conhecida nos meios juriacutedicos a passagem que adverte () mas trata-se de uma experiecircncia eterna que todo homem que possui poder eacute levado a dele abusar ele vai ateacute onde encontra limites Quem diria Ateacute a virtude precisa de limites MONTESQUIEU Charles de Secondat op cit p 170

40 Natildeo eacute agrave toa portanto que em interessante estudo sobre as exigecircncias referentes aos aspectos eacuteticos da pesquisa em revistas cientiacuteficas brasileiras se chegou agrave conclusatildeo de que As revistas de medicina e enfermagem apresentaram maior preocupaccedilatildeo com as orientaccedilotildees eacuteticas do que as revistas natildeo-meacutedicas classificadas nos grupos de miscelecircncia e odontologia sugerindo que o debate eacutetico da experimentaccedilatildeo em seres humanos estaacute mais difundido nas aacutereas meacutedica e de enfermagem do que em outras aacutereas da sauacutede Tal no entanto natildeo representa necessariamente um dado a ser festejado pois o resultado global comprovou que 791 das revistas cientiacuteficas estudadas natildeo fazem qualquer referecircncia aos aspectos eacuteticos Cf T SARDENBERG S S MUumlLLER H R PEREIRA R A DE OLIVEIRA W S HOSSNE Anaacutelise dos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos contidos nas Instruccedilotildees aos Autores de 139 rev istas cientiacuteficas brasileiras Revista da Associaccedilatildeo Meacutedica do Brasil v 45 n 4 p 295-302 1999

41 Sobre a chamada revoluccedilatildeo terapecircutica vide dentre outros BERNARD Jean La Bioeacutethique Paris Dominos Flammarion 1994 p 14-33

42 Conforme LAFON Claudc De la Biologie agrave Ia Bioeacutethique Paris Ellipses 2006 p 30

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A concretizaccedilatildeo desses objetivos depende de inuacutemeros fatores ligados agrave pesquisa cientiacutefica43 dentre os quais um que eacute o ponto central deste trabalho a experimentaccedilatildeo em seres humanos De fato o progresso do nosso conhecimento no passado e no futuro estaacute intimamente ligado agrave necessidade de observaccedilatildeo do funcionamento e da reaccedilatildeo do corpo e da mente humanas44

Em outras palavras eacute preciso tomar o ser humano como sujeito de pesquisa45

Esse fato bom que se diga natildeo eacute exatamente novo tem ocorrido no correr dos tempos suscitando questotildees eacuteticas de suma relevacircncia pois nem sempre as pessoas estudadas tiveram o trato adequado

A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda Guerra mormente as realizadas pelos japoneses e nazistas alematildees tais como a infestaccedilatildeo de prisioneiros com doenccedilas para testar vacinas e a esterilizaccedilatildeo e amputaccedilatildeo de membros46 trouxeram agrave tona a questatildeo da

43 A discussatildeo a respeito das pesquisas natildeo pode se limitar agravequelas de natureza meacutedica e farmacoloacutegica onde os impactos e riscos satildeo maiores e mais perceptiacuteveis E ampla a definiccedilatildeo de pesquisas em seres humanos adotada pela Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede conforme adiante se veraacute Leonard M Martin C Ss R preleciona O documento pretende regulamentar toda pesquisa em seres humanos e natildeo apenas pesquisas puramente biomeacutedicas Nesta perspectiva pesquisas socioloacutegicas e antropoloacutegicas tambeacutem devem passar pelo crivo de Comitecircs de Eacutetica independentes e ser alvo de discussatildeo sobre sua eticidade MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

44 O efeito de um tratamento sobre o homem soacute pode ser observado no proacuteprio homem Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

45 Esse fenocircmeno ocorre em todas as aacutereas do conhecimento e natildeo apenas nas ciecircncias biomeacutedicas Na realidade quando se fala em experimentaccedilatildeo com seres humanos pensa-se quase que exclusivamente na experimentaccedilatildeo no campo da Medicina Essa vinculaccedilatildeo eacute compreensiacutevel pois a experimentaccedilatildeo na aacuterea meacutedica eacute mais visiacutevel e de efeitos mais patentes em geral Contudo eacute bom assinalar que seres humanos satildeo utilizados em experimentaccedilatildeo por profissionais e cientistas de outras aacutereas odontoacutelogos nutricionistas farmacecircuticos fisioterapeutas psicoacutelogos profissionais da aacuterea de educaccedilatildeo fiacutesica e de esporte educadores e tambeacutem economistas Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179 Leonard M Martin C Ss R com base em McNeill e Jonsen destaca que [] as experiecircncias antieacuteticas dos nazistas incluiacuteram colocar prisioneiros em cacircmaras de pressatildeo modificar a pressatildeo atmosfeacuterica e observar suas mortes estudar o impacto sobre o corpo humano de imersatildeo em aacutegua gelada por periacuteodos prolongados infectar os internos com tifo malaacuteria e outras doenccedilas para testar drogas e vacinas esterilizaccedilatildeo e castraccedilatildeo procurando meacutetodos eficazes para esterilizaccedilatildeo em massa administrar venenos para estudar os efeitos letais e estudos com gecircmeos tipo infectando um matando os dois e comparando os corpos em autoacutepsia No atinente a experiecircncias japonesas MARTIN informa que no ala de desenvolver armas bioloacutegicas [] os japoneses atacaram pelo menos onze cidades com armas bioloacutegicas e infestaram uma cidade com pulgas portadores da peste bubocircnica A Unidade 731 tambeacutem era uma prisatildeo onde os prisioneiros foram submetidos a experiecircncias desumanas Houve cirurgia experimentais pessoas foram desidratadas ateacute a morrer alguns tiveram braccedilos congelados e depois degelados usando vaacuterios meacutetodos com a consequumlecircncia de que a carne apodreceu e caiu o fiacutegado de outras pessoas foi exposto por longos

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eacutetica na pesquisa evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana47 e de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa em seres humanos48

Como resposta agraves atrocidades praticadas na Segunda Guerra foi instituiacutedo em 1947 no acircmbito internacional pelo Tribunal de Nuremberg que julgou vinte e trecircs criminosos de guerra nazistas dos quais vinte meacutedicos ligados agrave experimentaccedilatildeo em pessoas49 o denominado Coacutedigo de Nuremberg o qual estabeleceu as diretrizes gerais para pesquisa em seres humanos A doutrina destaca como principais conquistas do coacutedigo o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa em retirar-se do experimento e de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias deste bem como a necessidade de estudos preacutevios sobre a importacircncia da pesquisa e os seus riscos aleacutem da comprovaccedilatildeo da capacidade dos pesquisadores50

Um ano depois a humanidade assiste agrave proclamaccedilatildeo agora pela Assembleacuteia Geral das Naccedilotildees Unidas de um outro documento de suma importacircncia a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos que embora de caraacuteter geral alberga

periacuteodos ao raio-X houve casos do sangue da pessoa ser substituiacutedo por sangue de cavalo e quando as cobaias humanas natildeo serviam mais para as experiecircncias foram executadas O autor ainda ressalta que diferentemente dos alematildees que foram condenados alguns inclusive enforcados os americanos resolveram poupar os japoneses permitindo que continuassem suas carreiras MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

4 Haacute quem afirme - sem razatildeo ao nosso ver - que a dignidade eacute um conceito inuacutetil um mero slogan e que natildeo significaria mais do que o respeito pelas pessoas e por sua autonomia Nesse sentido vide vg MACKLIN Ruth Dignity is a useless concept Brilish Medica Journal v 327 p 20-27 dez 2003 Disponiacutevel em lthttpbmjbmjjournalscomcgicontentfull3277429l419gt Aacessado em 27 maio de 2006 Em sentido inverso sobre as relaccedilotildees entre a Bioeacutetica e a dignidade vide dentre outros ADORNO Roberto La bioegravetique et la dignitegrave de Ia persone Paris Presses Universitaires de France 1997 Os documentos internacionais mencionam o elo entre Bioeacutetica e dignidade A jaacute mencionada Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten por exemplo afirma textualmente que A pesquisa e experiecircncia com seres humanos devem ser realizadas harmonizando a liberdade da ciecircncia e o respeito da dignidade humana

48 A experimentaccedilatildeo em seres humanos causa impacto porque as pessoas temem o abuso Os abusos jaacute ocorreram estatildeo ocorrendo c ainda ocorreratildeo mas proibir o uso natildeo eacute a melhor maneira de impedir o abuso Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

49 Estima-se que centenas de meacutedicos atuaram nos campos de concentraccedilatildeo dos quais pelo menos setenta teriam participado de experimentos com seres humanos A maioria dos meacutedicos de maior expressatildeo conseguiram escapar do julgamento como foi o caso de Josef Mengele principal meacutedico do campo de extermiacutenio de Auschwitz que fugiu e chegou a viver 14 anos no Brasil onde morreu afogado em Bertioga em 1979 O julgamento levou oito meses As sentenccedilas e o Coacutedigo de Nuremberg foram anunciados conjuntamente em 19 de agosto de 1947 Sete acusados foram condenados agrave morte Cf CREMESP Diretrizes e Declaraccedilotildees Disponiacutevel em lthttpvwvbiocticaorgbrlegislacaooutras_diretrizesintegraphpgt Acessado em 30 maio 2006 Discute-se hoje a validade cientiacutefica dos experimentos realizados bem como se eacute eacutetico utilizar os resultados obtidos Nesse sentido vide mateacuteria intitulada Doutores da agonia publicada na revista Superinteressante ed 225 abr2006 p 52-61

50 Cf FREITAS Corina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 195

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direitos que natildeo podem ser olvidados quando da experimentaccedilatildeo com seres humanos a exemplo da dignidade da igualdade e da liberdade Aleacutem disso haacute diversas ligaccedilotildees entre a Declaraccedilatildeo e os princiacutepios da Bioeacutetica51

Assim como a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos o Coacutedigo de Nuremberg proclama criteacuterios princiacutepios miacutenimos e irredutiacuteveis para eticidade da pesquisa em seres humanos Ambas as declaraccedilotildees embora de grande importacircncia para a Bioeacutetica satildeo normalmente entendidas como desprovidas de instrumentos adequados de obrigatoriedade52 e de mecanismos sancionatoacuterios de modo que sua infraccedilatildeo na maioria dos casos tem gerado apenas sanccedilotildees morais

Natildeo-obstante o estabelecido no Coacutedigo de Nuremberg - e na Declaraccedilatildeo Universal - as violaccedilotildees continuaram a ocorrer inclusive nos paiacuteses signataacuterios De fato por exemplo nos Estados Unidos teve continuidade como se nada houvesse acontecido a famosa pesquisa sobre siacutefilis em Tuskegee no condado de Macon Alabama financiada com recursos federais onde especialmente negros e pobres acreditavam que estavam se submetendo a um tratamento especial gratuito quando na verdade nada recebiam embora jaacute houvesse medicamentos disponiacuteveis servindo como verdadeiras cobaias entre 1932 e 1973 para que os pesquisadores pudessem acompanhar o desenvolvimento da doenccedila1 Ainda exemplificativamente foi iniciado em 1946 o chamado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm um dos mais famosos e importantes estudos de odontologia jaacute realizados no qual mais de 436 deficientes mentais crocircnicos internos da cidade de Lund no sul da Sueacutecia que natildeo tinham sequer a menor consciecircncia do que ocorria foram submetidos ateacute 1951 a uma dieta especial rica em accediluacutecar para provar que esta substacircncia provocava caacuteries sem que lhes fosse dado qualquer tratamento54

Por exemplo ao afirmar no seu art 1deg que todas pessoas satildeo dotadas de razatildeo e consciecircncia o documento da ONU reforccedila a ideacuteia de autonomia

52 Em relaccedilatildeo agrave Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Faacutebio Konder Comparato afirma que embora seja tecnicamente apenas uma recomendaccedilatildeo da ONU a seus membros os direitos ali definidos correspondem integralmente ao que o costume e os princiacutepios juriacutedicos internacionais reconhecem hoje como normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens) como a proacutepria Corte Internacional de Justiccedila tem entendido COMPARATO Faacutebio Konder A afirmaccedilatildeo histoacuterica dos Direitos Humanos 4 ed rev e atual Satildeo Paulo Saraiva 2005 p 223-224

53 Vide vg a respeito REVERBY S M More than Fact and Fiction Cultural Memory and the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 31 p 22-28 2001 BRANDT A M Racism and Research The Case of the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 8 p 21-29 1978 BEECHER H K Ethics and Clinicai Research New England Journal of Medicine n 274 p 1354-1360 1966

54 Cf SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas clinicas sobre seus direitos 2005 p 55-61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

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Os avanccedilos tecnoloacutegicos cada vez mais raacutepidos reverberaram nas questotildees eacuteticas forccedilando novas e perioacutedicas revisotildees Necessaacuterio se fez portanto a rediscussatildeo do tema e o aprimoramento do sistema normativo Assim sobreveio a Declaraccedilatildeo de Helsinque elaborada pela Associaccedilatildeo Meacutedica Mundial em 1964 texto que foi revisto e ampliado em 1975 (Toacutequio)55 1983 (Veneza) 1989 (Hong Kong) 1996 (Somerset) e 2000 (Edimburgo) com o que foram incorporadas vaacuterias inovaccedilotildees Por exemplo a disposiccedilatildeo no sentido de que No final do estudo todos os pacientes participantes devem ter assegurado o acesso aos melhores meacutetodos comprovados profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos identificados pelo estudo E no atinente ao uso de placebo que Os benefiacutecios riscos dificuldades e efetividade de um novo meacutetodo devem ser testados comparando-os com os melhores meacutetodos profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos atuais Isto natildeo exclui o uso de placebo ou nenhum tratamento em estudo onde existam meacutetodos provados de profiacutelaxia diagnoacutestico e tratamento 56 Foi tambeacutem reforccedilada a recomendaccedilatildeo do Coacutedigo de Nuremberg sobre a necessidade de submissatildeo do protocolo de pesquisa agrave anaacutelise por um Comitecirc de Eacutetica independente do pesquisador

Outros textos e documentos que tratam da pesquisa merecem referecircncia como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos de 196657 o intitulado Diretrizes Internacionais para a pesquisa biomeacutedica em seres humanos elaborado conjuntamente pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e pelo Council for International Organizations of Medicai Sciences (1993) a Declaraccedilatildeo de Manila (1981) a Declaraccedilatildeo de Princiacutepios Eacuteticos dos Meacutedicos do Mercosul (1996) a Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten (2000) e a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da Unesco (2005)

Em que pese o entendimento de que haacute carecircncia de instrumentos imperativos que garantam a exigibilidade dos referidos documentos sem duacutevida eles

A respeito Leo Pessini e Christian de Paul Barehifontaine ensinam que Tal modificaccedilatildeo fieou conhecida como Helsinque II Entre outros pontos importantes foram incluiacutedos nesta revisatildeo os seguintes aspectos I) Exigecircncia de que o protocolo experimental seja aprovado por uma comissatildeo independente para efeito de apreciaccedilatildeo comentaacuterios e orientaccedilatildeo (item I 2) 2) Que os seres humanos natildeo sejam utilizados em pesquisas a menos que o consentimento consciente do paciente dado livremente tenha sido obtido depois do mesmo ter sido adequadamente informado sobre os objetivos meacutetodos benefiacutecios esperados riscos potenciais e inconvenientes da experimentaccedilatildeo e que ele tenha liberdade de se abster e de cancelar sua participaccedilatildeo a qualquer momento (art I 9) 3) Que o protocolo contenha embasamento eacutetico da pesquisa e a referecircncia de que foram obedecidos os princiacutepios da Declaraccedilatildeo de Helsinque (item I 12) 4) Que os interesses da ciecircncia e da sociedade jamais tenham precedecircncia sobre o bem-estar do indiviacuteduo (item III 4) PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Problemas aluais de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1994 p 131

56 GRECO Dirceu B Poder e injusticcedila na pesquisa envolvendo seres humanos In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 264

57 De acordo com o seu art 7o Ningueacutem poderaacute ser submetido a tortura nem a penas ou tratamentos crueacuteis desumanos ou degradantes Seraacute proibido sobretudo submeter uma pessoa sem seu livre consentimento a experiecircncias meacutedicas ou cientiacuteficas

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contribuiacuteram e contribuem significativamente na proteccedilatildeo ao ser humano objeto de pesquisa pois influenciaram a elaboraccedilatildeo de diretrizes vinculantes no plano individual de cada Estado a exemplo do Brasil como a seguir veremos Por outro lado importante anotar que uma harmonia consensual e global no atinente agrave pesquisa parece impossiacutevel tendo em conta que a cultura os objetivos e as condiccedilotildees cientiacuteficas dos diversos paiacuteses satildeo naturalmente diversificados58 Aliaacutes haacute quem chegue a afirmar que o pluralismo eacutetico em vigor nos dias de hoje natildeo nos permite mais falar em moral universal59

No Brasil a normatizaccedilatildeo se daacute principalmente atraveacutes de resoluccedilotildees do Conselho Federal de Medicina60 e do Conselho Nacional de Sauacutede Aliaacutes a primeira resoluccedilatildeo deste uacuteltimo oacutergatildeo - Resoluccedilatildeo n 01 de 13 de junho de 1988 - tratou justamente de normas de pesquisa em sauacutede tendo dedicado o seu Capiacutetulo II arts 4o a 16 aos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos Esse diploma legal foi posteriormente revogado pela Resoluccedilatildeo n 196 de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Sauacutede que eacute atualmente a base regulamentar da pesquisa no Brasil tratando das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos Esta Resoluccedilatildeo eacute na verdade uma revisatildeo da anterior tendo sido precedida de diaacutelogo entre governo e sociedade civil61

A Resoluccedilatildeo atual afirma jaacute em seu preacircmbulo a sua fundamentaccedilatildeo nos principais documentos internacionais que emanaram declaraccedilotildees e diretrizes sobre

58 Nesse contexto por tanto deve ser considerada a questatildeo do multicuturalismo Como bem ensinam Joseacute A Mainetti Joseacute L Mainettil Existen dificultades en la aplicacioacuten de los principos elaborados por los paiacuteses centrales y es una evidencia por ejemplo que resulta inapropiada la visioacuten estrccha de la autonomia y la aplicacioacuten riacutegida dei requisito dei consentimento informado al modo norteamericano en determinadas circunstancias y comunidades Es preciso entoces reconocer Ias diferenccedilas culturales y en base a eacutestas aplicar los princiacutepios sin renunciar a cllos en formas maacutes adecuadas al ethos particular MAINETTI Joseacute A MAINETTI Joseacute L Bioeacutetica y la experimentacioacuten humana In SOROKIN Patriacutecia (Coord) Bioeacutelica entre utopias y desarraigos Buenos Aires Ad-Hoc Villela 2002 p 190

59 Cf ENGELHARDT JUacuteNIOR Tristam apuei BAUZON Steacutephane La personne biojuridique Paris Press Universitaires de France 2006 p 63

60 Vide como exemplo a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro o qual no seu Capiacutetulo XII trata especificamente da pesquisa meacutedica

61 Cf FREITAS Corina Bontempo Duca de Eacutetica na pesquisa com seres humanos A experiecircncia brasileira In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutelica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 307

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pesquisas que envolvem seres humanos62 e que visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito agrave comunidade cientiacutefica aos sujeitos da pesquisa e ao Estado

Aleacutem disso vinculou a experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da principiologia da Bioeacutetica seja no preacircmbulo onde afirma que incorpora sob a oacutetica do indiviacuteduo e das coletividades os quatro referenciais baacutesicos da Bioeacutetica autonomia natildeo-maleficecircncia beneficecircncia e justiccedila entre outros seja no seu item III 1 que versa sobre a eticidade na pesquisa63

Entre as suas disposiccedilotildees encontramos definiccedilotildees de diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica pesquisa64 pesquisa envolvendo seres humanos65

protocolo de pesquisa66 pesquisador responsaacutevel67 instituiccedilatildeo de pesquisa68 promotor69

patrocinador70 risco da pesquisa71 dano associado ou decorrente da pesquisa72 sujeito da

62 Cila a Resoluccedilatildeo os seguintes documentos o Coacutedigo de Nuremberg (1947) a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem (1948) a Declaraccedilatildeo de Helsinque (1964 e suas versotildees posteriores de 1975 1983 e 1989) o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Poliacuteticos (ONU 1966 aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1992) as Propostas de Diretrizes Eacuteticas Internacionais para Pesquisas Biomeacutedicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMSOMS 1982 e 1993) e as Diretrizes Internacionais para Revisatildeo Eacutetica de Estudos Epidemioloacutegicos (C10MS 1991) III1 - A eticidade da pesquisa implica em a) consentimento livre e esclarecido dos indiviacuteduos-alvo e a proteccedilatildeo a grupos vulneraacuteveis e aos legalmente incapazes (autonomia) Neste sentido a pesquisa envolvendo seres humanos deveraacute sempre trataacute-los em sua dignidade respeitaacute-los em sua autonomia e defendecirc-los em sua vulnerabilidade b) ponderaccedilatildeo entre riscos e benefiacutecios tanto atuais como potenciais individuais ou coletivos (beneficecircncia) comprometendo-se com o maacuteximo de benefiacutecios e o miacutenimo de danos e riscos c) garantia de que danos previsiacuteveis seratildeo evitados (natildeo maleficecircncia)- d) relevacircncia social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimizaccedilatildeo do ocircnus para os sujeitos vulneraacuteveis o que garante a igual consideraccedilatildeo dos interesses envolvidos natildeo perdendo o sentido de sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria (justiccedila e equumlidade) (negritos originais)

64 111 Pesquisa classe de atividades cujo objetivo eacute desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizaacutevel O conhecimento generalizaacutevel consiste em teorias relaccedilotildees ou princiacutepios ou no acuacutemulo de informaccedilotildees sobre as quais estatildeo baseados que possam ser corroborados por meacutetodos cientiacuteficos aceitos de observaccedilatildeo e infercncia

65 112 Pesquisa envolvendo seres humanos pesquisa que individual ou coletivamente envolva o ser humano de forma direta ou indireta em sua totalidade ou partes dele incluindo o manejo de informaccedilotildees ou materiais

66 II3 Protocolo de Pesquisa Documento contemplando a descriccedilatildeo da pesquisa em seus aspectos fundamentais informaccedilotildees relativas ao sujeito da pesquisa agrave qualificaccedilatildeo dos pesquisadores e a todas as instacircncias responsaacuteveis

67 II-4 Pesquisador responsaacutevel pessoa responsaacutevel pela coordenaccedilatildeo e realizaccedilatildeo da pesquisa e pela integridade e bem-estar dos sujeitos da pesquisa

68 II5 - Instituiccedilatildeo de pesquisa - organizaccedilatildeo puacuteblica ou privada legitimamente constituiacuteda e habilitada na qual satildeo realizadas investigaccedilotildees cientiacuteficas

69 116 - Promotor - indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo responsaacutevel pela promoccedilatildeo da pesquisa 70 II7 - Patrocinador - pessoa fiacutesica ou juriacutedica que apoia financeiramente a pesquisa 71 II8 Risco da pesquisa - possibilidade de danos agrave dimensatildeo fiacutesica psiacutequica moral intelectual social

cultural ou espiritual do ser humano em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente II9 Dano associado ou decorrente da pesquisa agravo imediato ou tardio ao indiviacuteduo ou agrave coletividade com nexo causai comprovado direto ou indireto decorrente do estudo cientiacutefico

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pesquisa73 consentimento livre e esclarecido74 indenizaccedilatildeo75 ressarcimento6 Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (CEP)77 vulnerabilidade78 e incapacidade79

A Resoluccedilatildeo regulamentou os Comitecircs de Eacutetica e Pesquisa - CEPs80 em cujas funccedilotildees81 destaca-se a apreciaccedilatildeo do protocolo da pesquisa em todas as suas especificidades o que foi um grande passo no sentido da construccedilatildeo de padrotildees eacuteticos82

Haacute requisitos para a instituiccedilatildeo dos Comitecircs principalmente no atinente agrave sua composiccedilatildeo83

1110 Sujeito da pesquisa eacute o(a) participante pesquisado(a) individual ou coletivamente de caraacuteter voluntaacuterio vedada qualquer forma de remuneraccedilatildeo IIII Consentimento livre e esclarecido anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal livre de viacutecios (simulaccedilatildeo fraude ou erro) dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar formulada em um termo de consentimento autorizando sua participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa 1112 - Indenizaccedilatildeo - cobertura material em reparaccedilatildeo a dano imediato ou tardio causado pela pesquisa ao ser humano a ela submetida 1113 Ressarcimento - cobertura em compensaccedilatildeo exclusiva de despesas decorrentes da participaccedilatildeo do sujeito na pesquisa 1114 - Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa-CEP - colegiados interdisciplinares e independentes com munus puacuteblico de caraacuteter consultivo deliberativo e educativo criados para defender os interesses dos sujeitos da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrotildees eacuteticos 1115 Vulnerabilidade refere-se a estado de pessoas ou grupos que por quaisquer razotildees ou motivos tenham a sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido 1116 - Incapacidade - Refere-se ao possiacutevel sujeito da pesquisa que natildeo tenha capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido devendo ser assistido ou representado de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira vigente O CEP pode ser entendido como um oacutergatildeo controlador da pesquisa por um lado mas por outro eacute tambeacutem um oacutergatildeo que ajuda a harmonizar diversos interesses que como vimos podem ser os mais diversos e agraves vezes ateacute conflitantes Cf PALAacuteCIOS Marisa Eacutetica na pesquisa - 1 Eacutetica em pesquisa em seres humanos In PALAacuteCIOS Marisa MARTINS Andreacute PEGORARO Olinto A (Orgs) Eacutetica ciecircncia e sauacutede humana Petroacutepolis Vozes 2001 p 74 Satildeo atribuiccedilotildees conferidas pela Resoluccedilatildeo aos CEPs a) revisar todos os protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos b) emitir parecer consubstanciado por escrito c) manter a guarda confidencial de todos os dados obtidos na execuccedilatildeo de sua tarefa e arquivamento do protocolo completo que ficaraacute agrave disposiccedilatildeo das autoridades sanitaacuterias d) acompanhar o desenvolvimento dos projetos atraveacutes de relatoacuterios anuais dos pesquisadores e) desempenhar papel consultivo e educativo 0 receber dos sujeitos da pesquisa ou de qualquer outra parte denuacutencias de abusos ou notificaccedilatildeo sobre fatos adversos que possam alterar o curso normal do estudo decidindo pela continuidade modificaccedilatildeo ou suspensatildeo da pesquisa devendo se necessaacuterio adequar o termo de consentimento considerando-se anti-eacutetica a pesquisa descontinuada sem justificativa aceita pelo CEP que a aprovou g) requerer instauraccedilatildeo de sindicacircncia agrave direccedilatildeo da instituiccedilatildeo em caso de denuacutencias de irregularidades de natureza eacutetica nas pesquisas e em havendo comprovaccedilatildeo comunicar agrave Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa CONEPMS e no que couber a outras instacircncias e h) manter comunicaccedilatildeo regular e permanente com a CONEPMS A existecircncia de oacutergatildeos com a funccedilatildeo de aprovar e acompanhar pesquisas jaacute era preconizada por exemplo pelo Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988) cujo art 127 veda ao

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Foi mais aleacutem a Resoluccedilatildeo que de modo inovador reforccedilou o controle eacutetico e a defesa da dignidade da pessoa humana com a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa - CONEP84 que atua na direccedilatildeo e orientaccedilatildeo dos comitecircs8S A comissatildeo de acordo com a Resoluccedilatildeo eacute uma instacircncia colegiada de natureza consultiva deliberativa normativa independente vinculada ao Conselho Nacional de Sauacutede86 Essa vinculaccedilatildeo eacute bastante positiva posto que a alternativa de submetecirc-la a outros oacutergatildeos poderia dar ensejo a uma indesejada politizaccedilatildeo dos seus membros o que seria capaz de terminar por afetar a sua autonomia

meacutedico Realizar pesquisa meacutedica em ser humano sem submeter o protocolo a aprovaccedilatildeo e acompanhamento de comissatildeo isenta de qualquer dependecircncia em relaccedilatildeo ao pesquisador O colegiado com nuacutemero natildeo inferior a 7 (sete) membros deve ser multidisciplinar abrangendo profissionais idocircneos e de distinta formaccedilatildeo da aacuterea de sauacutede e das ciecircncias exatas sociais e humanas incluindo por exemplo juristas teoacutelogos socioacutelogos filoacutesofos bioeticistas aleacutem de membros da sociedade e obrigatoriamente pelo menos um membro representando os usuaacuterios Se a pesquisa envolver grupos vulneraacuteveis comunidades e coletividades um dos seus representantes deveraacute ser convidado para participar como membro ad hoc do CEP da anaacutelise do projeto especiacutefico Assim o CEP ainda segundo a Resoluccedilatildeo teraacute sempre um caraacuteter multi e transdisciplinar sendo vedado que mais que metade de seus membros pertenccedilam a uma mesma categoria profissional devendo ainda participarem pessoas dos dois sexos Satildeo permitidos consultores ad hoc pessoas que pertencem ou natildeo aacute instituiccedilatildeo com o objetivo de fornecer subsiacutedios teacutecnicos Merece ainda atenccedilatildeo especial a autonomia do comitecirc cuja manifestaccedilatildeo deve ser totalmente autocircnoma e imaculada de coaccedilotildees ou pressotildees dos interessados A autonomia e a independecircncia satildeo condiccedilotildees sine qua non para a desejada eficaacutecia dos comitecircs que felizmente estatildeo se proliferando em nosso paiacutes Conforme informaccedilotildees do site da CONEP satildeo 446 CEPs aprovados no Brasil ateacute janeiro de 2006 Disponiacutevel em lthttpoonselhosaudegovbrcomissaoconep2006ceps20APROVADOSxlsgt Acessado em 04 jun 2006 A Comissatildeo tem 13 membros titulares e o mesmo nuacutemero de suplentes em uma composiccedilatildeo que tambeacutem deveraacute ser multi e transdisciplinar com pessoas de ambos os sexos Dentre os seus membros 05 (cinco) devem ser personalidades destacadas no campo da eacutetica na pesquisa e na sauacutede e 08 (oito) devem ser personalidades com destacada atuaccedilatildeo nos campos teoloacutegico juriacutedico e outros assegurando-se que pelo menos um seja da aacuterea de gestatildeo da sauacutede Embora natildeo desconheccedilamos a importacircncia das religiotildees na formaccedilatildeo do pensamento eacutetico humano e sem querer desmerecer as pessoas que nelas militam no mais das vezes com accedilotildees de destacada importacircncia pensamos que eacute inadequada em um Estado laico como o nosso a destinaccedilacirco de vaga ou de vagas especificamente a pessoas do campo teleoloacutegico Essa observaccedilatildeo imperioso demarcar natildeo eacute no sentido de entender que a contribuiccedilatildeo dessas pessoas eacute desnecessaacuteria ou inconveniente Pelo contraacuterio Poreacutem a desejada participaccedilatildeo jaacute poderia ser levada a efeito incluindo-as no grupo de personalidades com atuaccedilatildeo de destaque na esfera da eacutetica na pesquisa e na sauacutede sem necessidade de vinculaccedilatildeo necessaacuteria ao pensamento religioso Isso ateacute mesmo para preservar o pluralismo e a igualdade jaacute que obviamente natildeo seraacute possiacutevel oferecer a cada religiatildeo uma vaga Os membros da Comissatildeo satildeo recrutados a partir de indicaccedilotildees contidas em listas elaboradas pelas instituiccedilotildees que possuem CEP registrado na CONEP sendo que 07 (sete) satildeo escolhidos pelo Conselho Nacional de Sauacutede e 06 (seis) satildeo definidos por sorteio Tambeacutem pode contar com consultores e membros ad hoc sendo assegurada a representaccedilatildeo dos usuaacuterios O mandato eacute de quatro anos com renovaccedilatildeo alternada a cada dois anos de sete ou seis de seus membros A CONEP tem tambeacutem um papel coordenador da rede de Comitecircs institucionais aleacutem de se constituir em oacutergatildeo consultor na aacuterea eacutetica em pesquisa Num primeiro momento tem ainda a atribuiccedilatildeo de apreciar os projetos de pesquisas de aacutereas temaacuteticas especiais enviadas pelos CFPs ou seja projetos que contemplam aacutereas com maiores dilemas eacuteticos e grande repercussatildeo social ateacute que se acumulem experiecircncias para elaboraccedilatildeo de normas especiacuteficas complementares agraves existentes Cf FREITAS Carolina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA

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Outros aspectos da Resoluccedilatildeo que merecem especial destaque para o nosso estudo satildeo os relativos ao consentimento livre e esclarecido agrave vulnerabilidade e agrave incapacidade

Como jaacute dito um dos principais pontos da Declaraccedilatildeo de Nuremberg foi o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias A Resoluccedilatildeo tratou do tema exigindo a anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar87 A anuecircncia deve ser expressa atraveacutes de

Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 202

S6 Segundo a Resoluccedilatildeo compete agrave CONEP examinar os aspectos eacuteticos da pesquisa envolvendo seres humanos assim como a adequaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo das normas atinentes consultando a sociedade sempre que julgar necessaacuterio cabendo-lhe entre outras as seguintes atribuiccedilotildees a) estimular a criaccedilatildeo de CEPs institucionais e de outras instacircncias b) registrar os CEPs institucionais e de outras instacircncias c) aprovar no prazo de 60 dias e acompanhar os protocolos de pesquisa em aacutereas temaacuteticas especiais tais como geneacutetica humana reproduccedilatildeo humana faacutermacos medicamentos vacinas e testes diagnoacutesticos novos (fases I II e III) ou natildeo registrados no pais (ainda que fase IV) ou quando a pesquisa for referente a seu uso com modalidades indicaccedilotildees doses ou vias de administraccedilatildeo diferentes daquelas estabelecidas incluindo seu emprego em combinaccedilotildees equipamentos insumos e dispositivos para a sauacutede novos ou natildeo registrados no paiacutes novos procedimentos ainda natildeo consagrados na literatura populaccedilotildees indiacutegenas projetos que envolvam aspectos de biosseguranccedila pesquisas coordenadas do exterior ou com participaccedilatildeo estrangeira c pesquisas que envolvam remessa de material bioloacutegico para o exterior e projetos que a criteacuterio do CEP devidamente justificado sejam julgados merecedores de anaacutelise pela CONEP d) prover normas especiacuteficas no campo da eacutetica em pesquisa inclusive nas aacutereas temaacuteticas especiais bem como recomendaccedilotildees para aplicaccedilatildeo das mesmas e) funcionar como instacircncia final de recursos a partir de informaccedilotildees fornecidas sistematicamente em caraacuteter ex-ofiacutecio ou a partir de denuacutencias ou de solicitaccedilatildeo de partes interessadas devendo manifestar-se em um prazo natildeo superior a 60 (sessenta) dias 0 rever responsabilidades proibir ou interromper pesquisas definitiva ou temporariamente podendo requisitar protocolos para revisatildeo eacutetica inclusive os jaacute aprovados pelo CEP g) constituir um sistema de informaccedilatildeo e acompanhamento dos aspectos eacuteticos das pesquisas envolvendo seres humanos em todo o territoacuterio nacional mantendo atualizados os bancos de dados h) informar e assessorar o MS o CNS e outras instacircncias do SUS bem como do governo e da sociedade sobre questotildees eacuteticas relativas agrave pesquisa em seres humanos i) divulgar esta e outras normas relativas agrave eacutetica em pesquisa envolvendo seres humanos j) juntamente com outros setores do Ministeacuterio da Sauacutede estabelecer normas e criteacuterios para o credenciamento de Centros de Pesquisa e I) estabelecer suas proacuteprias normas de funcionamento

87 No que concerne agrave pesquisa meacutedica a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro estipula no seu art 123 que eacute vedado ao meacutedico Realizar pesquisa em ser humano sem que este tenha dado consentimento por escrito apoacutes devidamente esclarecido sobre a natureza e consequumlecircncia da pesquisa e que Caso o paciente natildeo tenha condiccedilotildees de dar seu livre consentimento a pesquisa somente poderaacute se realizada em seu proacuteprio beneficio apoacutes expressa autorizaccedilatildeo de seu responsaacutevel legal Jaacute a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO no seu art 6 aliacutenea b estabelece que A pesquisa cientiacutefica soacute deve ser realizada com o preacutevio livre expresso e esclarecido consentimento do indiviacuteduo envolvido A informaccedilatildeo deve ser adequada fornecida de uma forma compreensiacutevel e incluir os procedimentos para a retirada do consentimento O consentimento pode ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer hora e por qualquer razatildeo sem acarretar qualquer desvantagem ou preconceito Exceccedilotildees a este princiacutepio somente devem ocorrer quando em conformidade com os padrotildees eacuteticos e legais adotados pelos Estados consistentes com as provisotildees da presente Declaraccedilatildeo particularmente com o art 27 e com os direitos humanos

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em um termo de consentimento onde eacute autorizada a participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa Aleacutem disso natildeo pode estar viciada por simulaccedilatildeo fraude ou erro nem tampouco pode ser obtida por forccedila de uma situaccedilatildeo de dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo

Trata-se de disposiccedilatildeo decorrente da adoccedilatildeo do princiacutepio da autonomia jaacute abordado que se vincula agrave capacidade de autodeterminaccedilatildeo e auto-escolha e pressupotildee dentre outras premissas a capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos possiacuteveis18

Quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de estudo possuem a capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto ao consentimento livre e esclarecido por quaisquer motivos verifica-se uma situaccedilatildeo de vulnerabilidade que natildeo pode ser desconsiderada pelo pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais A preocupaccedilatildeo com a vulnerabilidade dos sujeitos encontra supedacircneo no Coacutedigo de Nuremberg na Declaraccedilatildeo de Helsinque nas Diretrizes Internacionais para Pesquisa Biomeacutedica envolvendo Seres Humanos89 e tambeacutem como jaacute dito na Resoluccedilatildeo 19696 A dificuldade central relacionada a indiviacuteduos e comunidades vulneraacuteveis eacute com a sua capacidade de compreensatildeo (autonomia plena) sobre o experimento e possibilidade de livremente consentir com a pesquisa e quando quiser dela desistir o que justifica todas as preocupaccedilotildees nesse sentido90

Cabe trazer a lume os ensinamentos do professor chileno Fernando Lolas O respeito pela autonomia das pessoas como agentes morais capazes de decisotildees informadas eacute central no diaacutelogo bioeacutetico Somente a permissatildeo outorgada por uma pessoa pode legitimar uma accedilatildeo que a envolva O valor das pessoas eacute incondicional o que obriga a consideraacute-las fins natildeo meios com a liberdade de viver e a de decidir livres de interferecircncias LOLAS Fernando Bioeacutetica o que eacute como se faz Traduccedilatildeo Milton Camargo Mota Satildeo Paulo Loyola 2001 p 63 A Diretriz Internacional para Pesquisa Biomeacutedica afirma Pesquisa envolvendo indiviacuteduos de comunidades sub-desenvolvidas Antes de iniciar a pesquisa em indiviacuteduos de comunidades subdesenvolvidas seja em paiacuteses desenvolvidos ou em desenvolvimento o pesquisador deve estar seguro que As pessoas da comunidade subdesenvolvida natildeo seratildeo ordinariamente envolvidas na pesquisa que possa ser realizada de forma adequada em comunidades desenvolvidas A pesquisa eacute uma resposta agraves necessidades de sauacutede e agraves prioridades da comunidade na qual seraacute realizada todos os esforccedilos seratildeo tomados no sentido de assegurar o imperativo eacutetico de que o consentimento individual dos sujeitos seraacute informado e Os projetos para a pesquisa foram revisados e aprovados por um comitecirc de eacutetica que tenha entre os seus membros ou consultores pessoas que tenham familiaridade com os costumes e tradiccedilotildees da comunidade Em comentaacuterio agraves diretrizes acima Leo Pessini e Christian Paul de Barchifontaine entendem que Quando a experimentaccedilatildeo visa ao estudo de determinadas condiccedilotildees moacuterbidas tais como doenccedilas endecircmicas em comunidades de baixo niacutevel socioeconocircmico eou cultural incapazes de terem uma consciecircncia clara e apropriada das implicaccedilotildees de sua participaccedilatildeo na experiecircncia eacute de bom alvitre que seja obtida a interveniecircncia de um liacuteder em que a coletividade confia Esse intermediaacuterio dever deixar claro que a participaccedilatildeo eacute voluntaacuteria e que qualquer participante tem a liberdade de natildeo aceitar ou abandonar a experiecircncia a qualquer momento op cit p 133

Conforme Marisa Palaacutecios Quando a autonomia dos sujeitos natildeo eacute plena ou seja quando a capacidade de entender as situaccedilotildees que se apresentam ao sujeito e de autodeterminar-se segundo este entendimento estaacute de alguma forma limitada eacute preciso tomar cuidado especial Eacute o caso dos grupos vulneraacuteveis os iacutendios que tecircm a capacidade de entendimento das situaccedilotildees diminuiacuteda uma vez que compotildeem sociedades

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A vulnerabilidade pode assumir as mais variadas vertentes bem como atingir uma determinada pessoa ou um grupo de seres humanos com peculiaridades comuns tais como crianccedilas idosos iacutendios pacientes terminais desempregados deficientes91 presidiaacuterios92 ou outras situaccedilotildees de dependecircncia93

Pode ocorrer que as pessoas que seratildeo estudadas na pesquisa natildeo tenham capacidade civil para dar o seu consentimento Nesse caso se encontram em situaccedilatildeo de incapacidade e a pesquisa soacute pode ser levada adiante com a intervenccedilatildeo de seus representantes legais que de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira deveratildeo assistir ou representar os incapazes Tambeacutem aqui deve o pesquisador cercar-se de cautelas eacuteticas redobradas

Finalmente deve-se louvar a Resoluccedilatildeo por ter explicitado no seu item III3 um rol de 23 (vinte e trecircs) exigecircncias eacuteticas para a pesquisa de qualquer aacuterea do conhecimento que envolva seres humanos94

culturalmente diversas[] Estas para citar algumas populaccedilotildees caracteriacutesticas Satildeo populaccedilotildees que precisam ser especialmente protegidas dada a proacutepria condiccedilatildeo de vulnerabilidade Maria Carolina S Guimaratildees e Sylvia Caiuby Novaes com alento em Hannah Arendt e Cardia definem o ser vulneraacutevel como Algueacutem que possui cidadania fraacutegil que ignora a relevacircncia do direito agrave integridade fiacutesica como condiccedilatildeo de acesso aos direitos sociais econocircmicos poliacuteticos e trabalhistas Dito assim o que parece a primeira condiccedilatildeo para que um ser vulneraacutevel perca tal situaccedilatildeo eacute o investimento do Estado naquilo que constroacutei e constitui a cidadania naqueles atributos que transformam o indiviacuteduo em cidadatildeo que transformam o animal laborans em homem poliacutetico Essa transformaccedilatildeo eacute no dizer de Hannah Arendt um pressuposto da democracia pois permite ao animal laborans ir do reino da necessidade para o reino da liberdade GUIMARAtildeES Maria Carolina S NOVAES Sylvia Caiuby Autonomia reduzida e vulnerabilidade liberdade de decisatildeo diferenccedila e desigualdade Revista Bioeacutetica Brasiacutelia v 7 n 1 p 23 1999

91 Sobre o tema vide COHEN Claacuteudio Bioeacutetica Pesquisa e Deficiecircncia In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 55-62 92 Nem todo ser humano eacute no entanto capaz de autodeterminaccedilatildeo A capacidade de autodeterminaccedilatildeo amadurece ao longo da vida mas pode ser perdida total ou parcialmente por doenccedila velhice ou situaccedilatildeo de restriccedilatildeo severa como a prisatildeo Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 93 O Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de janeiro de 1988) veda ao meacutedico no seu art 128 Realizar pesquisa meacutedica em voluntaacuterios sadios ou-natildeo que tenham direta ou indiretamente dependecircncia ou subordinaccedilatildeo relativamente ao pesquisador 94 I1I3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias a) ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder a incertezas b) estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou em outros fatos cientiacuteficos c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio d) prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis e) obedecer a metodologia adequada Se houver necessidade de distribuiccedilatildeo aleatoacuteria dos sujeitos da pesquisa em grupos experimentais e de controle assegurar que apriori natildeo seja possiacutevel estabelecer as vantagens de um procedimento sobre outro atraveacutes de revisatildeo de literatura meacutetodos observacionais ou meacutetodos que natildeo envolvam seres humanos 0 ter plenamente justificada quando for o caso a utilizaccedilatildeo de placebo em termos de natildeo maleficecircncia e de necessidade metodoloacutegica g) contar com o consentimento livre e esclarecido do sujeito da pesquisa eou seu representante legal h) contar com os recursos humanos e materiais necessaacuterios que garantam o bem-

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5 Teleologia e legitimidade da pesquisa em seres humanos

Toda experimentaccedilatildeo em seres humanos possui um determinado objetivo o qual pode ou-natildeo estar vinculado ao bem estar proacuteprio da pessoa ou grupo observado

Essa situaccedilatildeo natildeo foi esquecida pela Declaraccedilatildeo de Helsinque cujo preacircmbulo afirma Wo campo cia pesquisa biomeacutedica uma distinccedilatildeo fundamental deve ser feita entre a pesquisa meacutedica na qual o objetivo eacute essencialmente o diagnoacutestico ou a terapecircutica para um paciente e a pesquisa meacutedica cujo objeto essencial eacute puramente cientiacutefico e sem um valor direto diagnoacutestico ou terapecircutico para a pessoa sujeita agrave

estar do sujeito da pesquisa devendo ainda haver adequaccedilatildeo entre a competecircncia do pesquisador e o projeto proposto i) prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade a proteccedilatildeo da imagem e a natildeo estigmatizaccedilatildeo garantindo a natildeo utilizaccedilatildeo das informaccedilotildees em prejuiacutezo das pessoas eou das comunidades inclusive em termos de auto-estima de prestiacutegio eou econocircmico - financeiro j) ser desenvolvida preferencialmente cm indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida 1) respeitar sempre os valores culturais sociais morais religiosos e eacuteticos bem como os haacutebitos e costumes quando as pesquisas envolverem comunidades m) garantir que as pesquisas em comunidades sempre que possiacutevel traduzir-se-atildeo em benefiacutecios cujos efeitos continuem a se fazer sentir apoacutes sua conclusatildeo O projeto deve analisar as necessidades de cada um dos membros da comunidade e analisar as diferenccedilas presentes entre eles explicitando como seraacute assegurado o respeito agraves mesmas n) garantir o retomo dos benefiacutecios obtidos atraveacutes das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas Quando no interesse da comunidade houver benefiacutecio real em incentivar ou estimular mudanccedilas de costumes ou comportamentos o protocolo de pesquisa deve incluir sempre que possiacutevel disposiccedilotildees para comunicar tal benefiacutecio agraves pessoas eou comunidades o) comunicar agraves autoridades sanitaacuterias os resultados da pesquisa sempre que os mesmos puderem contribuir para a melhoria das condiccedilotildees de sauacutede da coletividade preservando poreacutem a imagem e assegurando que os sujeitos da pesquisa natildeo sejam estigmatizados ou percam a auto-estima p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefiacutecios resultantes do projeto seja em termos de retorno social acesso aos procedimentos produtos ou agentes da pesquisa q)assegurar aos sujeitos da pesquisa as condiccedilotildees de acompanhamento tratamento ou de orientaccedilatildeo conforme o caso nas pesquisas de rastreamento demonstrar a preponderacircncia de benefiacutecios sobre riscos e custos r) assegurar a inexistecircncia de conflito de interesses entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa ou patrocinador do projeto s) comprovar nas pesquisas conduzidas do exterior ou com cooperaccedilatildeo estrangeira os compromissos e as vantagens para os sujeitos das pesquisas e para o Brasil decorrentes de sua realizaccedilatildeo Nestes casos deve ser identificado o pesquisador e a instituiccedilatildeo nacionais co-responsaacuteveis pela pesquisa O protocolo deveraacute observar as exigecircncias da Declaraccedilatildeo de Helsinque e incluir documento de aprovaccedilatildeo no paiacutes de origem entre os apresentados para avaliaccedilatildeo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa da instituiccedilatildeo brasileira que exigiraacute o cumprimento de seus proacuteprios referenciais eacuteticos Os estudos patrocinados do exterior tambeacutem devem responder agraves necessidades de treinamento de pessoal no Brasil para que o paiacutes possa desenvolver projetos similares de forma independente t) utilizar o material bioloacutegico e os dados obtidos na pesquisa exclusivamente para a finalidade prevista no seu protocolo u) levar em conta nas pesquisas realizadas em mulheres em idade feacutertil ou em mulheres graacutevidas a avaliaccedilatildeo de riscos e benefiacutecios e as eventuais interferecircncias sobre a fertilidade a gravidez o embriatildeo ou o feto o trabalho de parto o puerpeacuterio a lactaccedilatildeo e o receacutem-nascido v) considerar que as pesquisas em mulheres graacutevidas devem ser precedidas de pesquisas em mulheres fora do periacuteodo gestacional exceto quando a gravidez for o objetivo fundamental da pesquisa x) propiciar nos estudos multicecircntricos a participaccedilatildeo dos pesquisadores que desenvolveratildeo a pesquisa na elaboraccedilatildeo do delineamento geral do projeto e z) descontinuar o estudo somente apoacutes anaacutelise das razotildees da descontinuidade pelo CEP que a aprovou

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pesquisa Em outras palavras haacute experimentos em benefiacutecio do paciente e experimentos em benefiacutecio da ciecircncia Ainda no preacircmbulo da Declaraccedilatildeo de Helsinque encontramos que A finalidade da pesquisa meacutedica envolvendo seres humanos deve ser o aperfeiccediloamento do diagnoacutestico procedimentos terapecircuticos e profilaacuteticos e a compreensatildeo da etiologia e da patologia da doenccedila Conjugando essa afirmaccedilatildeo com a anterior podemos extrair que uma determinada pessoa ou populaccedilatildeo pode ser objeto de pesquisa para desvendar doenccedilas que a afligem ou para desnudar as razotildees pelas quais eacute menos suscetiacutevel ou-natildeo eacute atingida por determinada moleacutestia que afeta aos demais seres humanos

A partir dessas observaccedilotildees podemos considerar para os fins do nosso estudo que as experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas teleologicamente em dois grupos a) aquelas cujos objetivos possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas as quais chamaremos de pesquisas com justificativa intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de terceiros as quais denominaremos pesquisas com justificativa extrinseca Temos como exemplo na primeira situaccedilatildeo os experimentos cientiacuteficos para desvendar o porquecirc de uma determinada coletividade ser atingida por taxas elevadas de uma certa doenccedila e na segunda uma pesquisa para revelar as razotildees pelas quais certas pessoas natildeo desenvolvem uma moleacutestia com o objetivo de descobrir uma vacina ou um medicamento para os demais

Entretanto em todo experimento seraacute necessaacuterio averiguar se a justificativa - seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima Isso porque o fato de uma pesquisa ter por objetivo um tratamento mais eficiente ou a cura de certas doenccedilas natildeo legitima por si soacute a utilizaccedilatildeo de pessoas como sujeito de pesquisa mesmo que elas sofram da moleacutestia e possam vir a ser beneficiadas Natildeo se deve perder de vista aliaacutes que se o conhecimento puder ser obtido por outro meio a utilizaccedilatildeo de seres humanos justamente por ser desnecessaacuteria seraacute ilegiacutetima95 Ademais soacute pelo fato de ser intriacutenseca a justificativa natildeo seraacute necessariamente legiacutetima Por outro lado a circunstacircncia isoladamente considerada do eventual resultado da experimentaccedilatildeo ser absolutamente indiferente ao sujeito de pesquisa natildeo torna a sua participaccedilatildeo ilegiacutetima Em outras palavras a justificativa soacute por ser extrinseca natildeo seraacute necessariamente ilegiacutetima

Vale relembrar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 - A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio

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A razatildeo disso reside na afirmaccedilatildeo de que como se sabe desde Kant o Homem deve ser tratado como um fim em si mesmo e natildeo como instrumento De fato eacute em Kant que o Homem ganha status de valor absoluto manifesto no imperativo praacutetico expresso na maacutexima segundo a qual Ages de tal maneira que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio 96

Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

Quando se trata de experimentaccedilatildeo com justificativa intriacutenseca a razatildeo legitimadora pode estar no objetivo de beneficiar os proacuteprios sujeitos da pesquisa algueacutem se submete a uma experimentaccedilatildeo na tentativa de auferir uma vantagem em seu bem-estar fiacutesico ou mental

Jaacute no caso da justificativa extriacutenseca poder-se-ia objetar a realizaccedilatildeo da experimentaccedilatildeo com suposto fundamento na Resoluccedilatildeo 19696 cujo item III 1 letra d vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila Ora se em uma determinada situaccedilatildeo algueacutem participa do experimento sem que haja qualquer possibilidade de benefiacutecio fiacutesico ou mental para si a partir do resultado da pesquisa e considerando que a mesma Resoluccedilatildeo veda qualquer forma de remuneraccedilatildeo do sujeito da pesquisa (item 1110) qual a vantagem significativa que poderaacute essa pessoa auferir para justificar a sua participaccedilatildeo

Ao nosso ver a interpretaccedilatildeo desse ponto da Resoluccedilatildeo natildeo deve ser literal nem assistemaacutetica97 devendo ser considerada a incidecircncia de um outro princiacutepio ainda

Op cit p 69 Em comento a este imperativo Francesca Puigpclat Marti apregoa que La concepcioacuten liberal asocia a esta expresioacuten una idea comuacuten en Ia reflexioacuten eacutetica de raigambre kantiana el hombre es un fin en si mismo un sujeto y no un objeto Seguacuten Kant en el sistema de Ia natureza el hombre (homo phaenomenon animal rationale) es un ser de escasa importancia y tiene con los demaacutes animales en tanto que productos de Ia tierra un precio comuacuten () Ahora bien el hombre considerado como persona es dccir como sujeto de una razoacuten praacutetico-moral estaacute situado por encima de todo precio porque como tal (homo noumenon) no puede valorarse soacutelo como meacutedio para fines ajenos incluso para sus proprios fines sino como fin en siacute mismo es decir posee una dignidad(un valor interno absoluto) gracias a la cual infunde respeto haciacutea eacutel a todos los demaacutes seres racionales dei mundo puede medirse con cualquier otro de esta clase y valorarse en pie de igualdad En la medida en que seguacuten Kant el hombre existe como fin en siacute mismo y no soacutelo como meacutedio para usos cualesquiera de una u otra voluntad se puede formular el siguiente principio praacutetico supremo obra de tal modo que uses la humanidad tanto en tu persona como en la persona de cualquier otro siempre como un fin al mismo tiempo y nunca solamente como un meacutedio MARTIacute Francesca Puigpelat Clonacioacuten dignidad humana y constitucioacuten Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo ano II n 42 janmar p37-64 2003

Natildeo se interpreta o direito em tiras aos pedaccedilos () Um texto de direito isolado destacado desprendido do sistema juriacutedico natildeo expressa significado normativo algum Cf GRAU Eros Roberto Ensaio e

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que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que eacute o da solidariedade Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita entendemos que a sua aplicaccedilatildeo eacute cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele dispositivo (item 1111 letra d da Resoluccedilatildeo 19696) afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria Aleacutem disso outros documentos de importacircncia para a Bioeacutetica fazem referecircncia agrave solidariedade98 De fato natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao respeito agrave dignidade da pessoa humana99

Logo no nosso pensar mesmo que natildeo haja nenhum benefiacutecio ou vantagem direta ao sujeito de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma justificativa eacutetica a qual pode ter como nuacutecleo a intenccedilatildeo solidaacuteria dessa pessoa e do pesquisador de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e consequumlentemente para todos os demais seres humanos

A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica100

Estas exigecircncias no acircmbito normativo brasileiro estatildeo listadas na Resoluccedilatildeo 19696 especialmente no item III3

Algumas delas satildeo puramente objetivas e uma vez desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca E o caso por exemplo da necessidade de consentimento preacutevio e informado

discurso sobre a interpretaccedilatildeoaplicaccedilatildeo do Direito Satildeo Paulo Malheiros Editores 2002 p 34 98

O art 1deg da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos proclama que todas pessoas devem agir em relaccedilatildeo umas agraves outras com espiacuterito de fraternidade Alem disso a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO em um dos seus considerandos observa que os seres humanos tecircm um papel importante na proteccedilatildeo um do outro tratando expressamente da solidariedade e cooperaccedilatildeo no seu art 13 segundo o qual A solidariedade entre os seres humanos e cooperaccedilatildeo internacional para este fim devem ser estimuladas 99 Ela [a solidariedade] eacute o fecho de aboacutebada do sistema de princiacutepios eacuteticos pois complementa e aperfeiccediloa a liberdade a igualdade e a seguranccedila () E um erro considerar que no mundo da natureza sobretudo no mundo animal natildeo exista solidariedade e que ela seja uma criaccedilatildeo poliacutetica Muito pelo contraacuterio pode-se dizer que a biosfera forma naturalmente um sistema solidaacuterio e que o rompimento desse sistema eacute sempre obra do homem O proacuteprio Darwin bem advertiu que a expressatildeo struggle for Existence fora por ele usada em sentido amplo e matafoacuterico incluindo a dependecircncia de um ser em relaccedilatildeo a outro bem como incluindo (o que eacute mais importante) natildeo apenas a vida do indiviacuteduo mas o ecircxito em deixar descendentes Os zooacutelogos jaacute observaram que o processo de seleccedilatildeo natural deu mais vantagens bioloacutegicas aos grupos que cuidavam de seus membros natildeo reprodutivos do que agravequeles que abandonavam ou matavam os anciatildeos pois a capacidade de reproduccedilatildeo global dos grupos altruiacutestas eacute assim singularmente reforccedilada Cf COMPARATO Faacutebio Konder Eacutetica direito moral e religiatildeo no mundo moderno Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 p 577578

100

Natildeo eacute agrave toa portanto que como jaacute visto a Resoluccedilatildeo 19696 vincula a eticidade na pesquisa aos princiacutepios da Bioeacutetica tanto no seu preacircmbulo como no seu item III 1

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dos participantes - ou dos seus representantes se incapazes - 101 cuja ausecircncia macula o princiacutepio da autonomia Tambeacutem eacute objetiva a exigecircncia da pesquisa estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou outros fatos cientiacuteficos102 cuja inobservacircncia implica em ofensa agrave natildeo-maleficecircncia Nessas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou-natildeo vir a ter um benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

Outras exigecircncias entretanto possuem um certo grau de subjetividade em maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as circunstacircncias faacuteticas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo de valor iacutensito a cada um Desse tipo vg eacute a exigecircncia segundo a qual a pesquisa deve ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e ter possibilidades concretas de responder a incertezas103 A avaliaccedilatildeo quanto ao cumprimento ou-natildeo da exigecircncia e portanto quanto agrave legitimidade ou ilegitimidade da utilizaccedilatildeo de seres humanos tem um niacutetido caraacuteter subjetivo podendo variar de pessoa para pessoa

Quando tratamos de exigecircncias subjetivas haacute ainda um outro aspecto a ser apontado deveraacute ser levado em conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca Em outras palavras a circunstacircncia do sujeito de pesquisa poder vir a ser beneficiado ou-natildeo pelo resultado do experimento deve ser considerada na verificaccedilatildeo da legitimidade eacutetica quando da ponderaccedilatildeo sobre o cumprimento das exigecircncias subjetivas

Tomemos como exemplo a exigecircncia de que devem prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis104 Ora essa exigecircncia eacute subjetiva pois envolve uma ponderaccedilatildeo cujo resultado estaacute vinculado a um juiacutezo de valor sobre a natureza e a importacircncia ou peso de cada benefiacutecio ou risco provaacutevel Ao nosso entender quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal no resultado do experimento tratando-se portanto de justificativa extriacutenseca eacute oacutebvio que os riscos a que se submete devem ser considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o benefiacutecio esperado tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa submetida ao experimento

101 Item III3 letra g da Resoluccedilatildeo 19696 102 Item III3 letra b da Resoluccedilatildeo 19696 103 Item III3 letra a da Resoluccedilatildeo 19696 104 Item III3 letra d da Resoluccedilatildeo 19696

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Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila105 Por outro lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

A proacutepria realizaccedilatildeo ou-natildeo da pesquisa pode depender dessa ponderaccedilatildeo jaacute que a Resoluccedilatildeo n 19696 prevecirc que havendo riscos potenciais as pesquisas envolvendo seres humanos poderatildeo ser admitidas quando oferecerem elevada possibilidade de gerar conhecimento para entender prevenir ou aliviar um problema que afete o bem-estar dos sujeitos da pesquisa e de outros indiviacuteduos 106

Aleacutem disso parece ser mais aceitaacutevel eticamente submeter o ser humano a riscos maiores quando a justificativa eacute intriacutenseca do que quando ela eacute extriacutenseca priorizando assim a sua preservaccedilatildeo Nesse sentido a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO estipula que uos interesses e o bem-estar do indiviacuteduo devem ter prioridade sobre o interesse exclusivo da ciecircncia ou da sociedade 107

Natildeo se pode esquecer ainda que por forccedila dos princiacutepios da beneficecircncia da natildeo-maleficecircncia e da justiccedila eacute preciso considerar na mediccedilatildeo da legitimidade as peculiaridades individuais ou coletivas dos sujeitos de pesquisa especialmente no que concerne agraves suas eventuais vulnerabilidades bem como cuidar para que natildeo lhes seja imposto um mal desnecessaacuterio ou desproporcional O princiacutepio da justiccedila como vimos implica necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa os quais sempre que possiacutevel devem ter garantido para si pelo pesquisador a fruiccedilatildeo dos benefiacutecios da experimentaccedilatildeo natildeo sendo equacircnime impor-Ihes ocircnus excessivos108 especialmente se vulneraacuteveis Natildeo eacute agrave toa portanto que pode

105 O princiacutepio da justiccedila implica atenccedilatildeo especial agraves regras de recrutamento de participantes de experimentos Natildeo se pode fazer experimentos apenas com determinados grupos - pacientes de enfermaria asilados prisioneiros - simplesmente porque eles estatildeo agrave disposiccedilatildeo e em situaccedilatildeo de dependecircncia Isso eacute injusto Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 Item Vl aliacutenea a

107 Art 3 aliacutenea b 108 bull

Consideramos que deva ser modificada a praacutetica muito comum em nosso paiacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de pesquisados provenientes das camadas mais desfavorecidas da sociedade ou de outros grupos vulneraacuteveis mas que posteriormente natildeo poderatildeo se beneficiar dos resultantes positivos das pesquisas em que tomaram parte mesmo tendo enfrentado riscos de danos psico-sociais As pesquisas realizadas nesses grupos devem poder lhes trazer benefiacutecios e os pesquisadores sempre que possiacutevel devem garantir retomo dos benefiacutecios resultados das pesquisas para os sujeitos individuais e coletivos que nelas participarem Cf FORTES Paulo Antonio de Carvalho As Pesquisas em Seres Humanos e o Principio Eacutetico da Justiccedila

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haver exigecircncias eacuteticas especiacuteficas para pesquisas com serem humanos em situaccedilatildeo de vulnerabilidade109

Assim sempre seraacute preciso dosar a equaccedilatildeo riscobeneficio ponderando em cada caso concreto se os eventuais benefiacutecios satildeo suficientes para motivar a exposiccedilatildeo das pessoas ao processo de experimentaccedilatildeo Pode ser que diante de certas peculiaridades ou vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima110 Aliaacutes como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis justamente porque como jaacute dito o ser humano natildeo pode ser tratado como mero instrumento1

E natildeo eacute soacute Aleacutem disso em princiacutepio a pesquisa com pessoas ou grupos vulneraacuteveis deve ter uma justificativa intriacutenseca2 Entretanto sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas em experimentos extriacutensecos agrave luz da solidariedade como no caso do grupo vulneraacutevel ser imune a determinada moleacutestia por razatildeo ainda desconhecida o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias objetivas agrave risca deve ser ainda mais

Cadernos de Eacutetica em Pesquisa Ano 1 n 2 p 22-23 nov 1998 109

A tiacutetulo de exemplo a Resoluccedilatildeo 19696 traz alguns requisitos especiacuteficos para o consentimento livre e esclarecido de pessoas ou populaccedilotildees vulneraacuteveis no item IV3

110 Um caso de niacutetida violaccedilatildeo aos princiacutepios bioeacuteticos em pesquisas envolvendo grupo vulneraacutevel foi o jaacute mencionado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm Conforme um dos colaboradores da pesquisa utilizar doentes mentais ainda que natildeo voluntaacuterios foi a melhor opccedilatildeo diante do fato de que o principal problema da sauacutede puacuteblica era justamente o das doenccedilas dentaacuterias razatildeo pela qual os fins justificariam os meios ainda mais considerando que o estudo foi utilizado em todo o mundo (Krasse B Sueacutecia usou deficiente mental como cobaia Folha de Satildeo Paulo 23 Set 1997 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas cliacutenicas sobre seus direitos 2005 p 61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo) sendo faacutecil criticar o fato depois de consumado (Krasse B The Vipeholm dental caries study recollections and reflections 50 years later J Dent Res 2001 80(9) 1785-8 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu op cit p 61) Mais uma vez cabiacutevel rememorar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () j) ser desenvolvida preferencialmente em indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida

112 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO eacute clara ao afirmar em seu art 7 aliacutenea b no que diz respeito a indiviacuteduos sem a capacidade para fornecer consentimento que a pesquisa soacute deve ser realizada para o beneficio direto agrave sauacutede do indiviacuteduo envolvido estando sujeita agrave autorizaccedilatildeo e agraves condiccedilotildees de proteccedilatildeo prescritas pela legislaccedilatildeo e caso natildeo haja nenhuma alternativa de pesquisa de eficaacutecia comparaacutevel que possa incluir sujeitos de pesquisa com capacidade para fornecer consentimento

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1217

rigoroso na ponderaccedilatildeo do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da autonomia e justiccedila expondo tais pessoas a riscos miacutenimos menores ateacute do que aqueles normalmente empregados em pesquisas com justificativa intriacutenseca3

Se essas diretrizes natildeo forem observadas teremos uma pesquisa carente de justificativa eacutetica e de legitimidade

6 Conclusotildees

Em virtude dos limites inerentes agrave nossa abordagem nessas consideraccedilotildees finais natildeo apresentaremos verdades irrefutaacuteveis e definitivas sobre um tema que ainda carece de um importante debate acadecircmico e normativo Com efeito o que pretendemos modestamente foi evidenciar alguns paradigmas que possam ensejar a conciliaccedilatildeo da dignidade da pessoa humana com a continuidade dos processos de investigaccedilatildeo cientiacuteficos realizados em seres humanos Para tanto podemos sintetizar nosso pensamento nas seguintes conclusotildees

a) O desenvolvimento da ciecircncia mormente em aacutereas afeitas agrave vida e a ocorrecircncia de pesquisas francamente contraacuterias agrave dignidade humana como ocorrido em vaacuterias passagens da Segunda Guerra ensejaram o surgimento da Bioeacutetica como um novo ramo do conhecimento

b) Deve-se limitar a atuaccedilatildeo da Bioeacutetica aos casos em que haacute conflito de valores quando dois princiacutepios eacutetica e moralmente admissiacuteveis natildeo podem coexistir

c) Haacute iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica Autonomia Beneficecircncia e Justiccedila aleacutem da Natildeo-Maleficecircncia - e as pesquisas em seres humanos

113 Ainda conforme o art 7 aliacutenea b da Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO quando se trata de pessoas incapazes Pesquisas sem potencial beneficio direto agrave sauacutede soacute devem ser realizadas excepcionalmente com a maior restriccedilatildeo expondo o indiviacuteduo apenas a risco e desconforto miacutenimos e quando se espera que a pesquisa contribua com o benefiacutecio agrave sauacutede de outros indiviacuteduos na mesma categoria sendo sujeitas agraves condiccedilotildees prescritas por lei e compatiacuteveis com a proteccedilatildeo dos direitos humanos do indiviacuteduo A recusa de tais indiviacuteduos em participar de pesquisas deve ser respeitada

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1218 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

d) Os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica

pluralista aberta e receptiva e satildeo um poderoso instrumento

para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

razotildees pelas quais eacute descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos

debates bioeacuteticos

e) O avanccedilo tecnoloacutegico traz cada vez mais a diminuiccedilatildeo de

limites teacutecnicos ao ser humano o que conduz ao debate sobre a

necessidade de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees para

evitar eventuais abusos especialmente na aacuterea biomeacutedica

elevando a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que

demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave

vida

0 A concretizaccedilatildeo dos objetivos atuais da humanidade

especialmente em relaccedilatildeo agrave expectativa de vida depende

dentre outros fatores da pesquisa cientiacutefica e da

experimentaccedilatildeo em seres humanos Poreacutem eacute preciso tomar o

Homem como sujeito de pesquisa sem trataacute-lo como mero

instrumento mas como um fim em si mesmo

g) A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do

interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda

Guerra trouxeram agrave tona a questatildeo da eacutetica na pesquisa

evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana e

de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa

em seres humanos gerando uma seacuterie de normas internacionais

e nacionais a exemplo do Coacutedigo de Nuremberg da

Declaraccedilatildeo de Helsinque e no Brasil da Resoluccedilatildeo n 19696

do Conselho Nacional de Sauacutede

h) Dentre os principais aspectos da Resoluccedilatildeo n 19696 do

Conselho Nacional de Sauacutede encontramos a vinculaccedilatildeo da

experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da

principiologia da Bioeacutetica a explicitaccedilatildeo de um rol de

exigecircncias para a eticidade na pesquisa as definiccedilotildees de

diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica como o

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1219

consentimento livre e esclarecido a vulnerabilidade e a

incapacidade a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em

Pesquisa -CONEP e a regulamentaccedilatildeo dos Comitecircs de Eacutetica e

Pesquisa - CEPs

i) O consentimento livre e esclarecido decorre da adoccedilatildeo do

princiacutepio da autonomia e pressupotildee dentre outras premissas a

capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os

aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos

possiacuteveis

j) A vulnerabilidade natildeo pode ser desconsiderada pelo

pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais ocorrendo

quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de

estudo por quaisquer motivos possuem a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto agrave

compreensatildeo sobre o experimento e a possibilidade de

livremente consentir com a pesquisa e dela desistir

k) A incapacidade ocorre quando as pessoas que seratildeo estudadas

na pesquisa natildeo possuem capacidade civil para dar o seu

consentimento soacute podendo ser levada adiante a pesquisa com a

intervenccedilatildeo de seus representantes legais implicando tambeacutem

no dever do pesquisador de cercar-se de cautelas eacuteticas

redobradas

1) As experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas

teleologicamcnte em dois grupos a) aquelas cujos objetivos

possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas

observadas as quais chamamos de pesquisas com justificativa

intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo

direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de

terceiros as quais denominamos pesquisas com justificativa

extrinseca

m) Em todo experimento eacute necessaacuterio averiguar se a justificativa -

seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1220 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima jaacute que a

justificativa soacute pelo fato de ser intriacutenseca natildeo seraacute

necessariamente legiacutetima nem tampouco soacute por ser extriacutenseca

seraacute necessariamente ilegiacutetima

n) Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a

realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser

encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca

como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

o) A interpretaccedilatildeo do item III1 letra d da Resoluccedilatildeo n 19696

que vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens

significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de

infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila natildeo deve ser literal nem

assistemaacutetica devendo ser considerada a incidecircncia de um

outro principio ainda que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que

eacute o da solidariedade

p) Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita ao princiacutepio da

solidariedade na Resoluccedilatildeo n 19696 a sua aplicaccedilatildeo eacute

cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele

texto afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua

relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-

humanitaacuteria

q) Logo mesmo que natildeo haja nenhum beneficio direto ao sujeito

de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma

justificativa a qual pode ser a intenccedilatildeo sua e do pesquisador

de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e

consequumlentemente para todos os demais seres humanos Aleacutem

disso natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica

sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao

respeito agrave dignidade da pessoa humana

r) A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em

seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade

poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1221

diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica listadas na

Resoluccedilatildeo n 19696 especialmente no item III3

s) Algumas exigecircncias satildeo puramente objetivas e uma vez

desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da

justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca

t) Nas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa

ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou natildeo vir a ter um

benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

u) Outras exigecircncias possuem um certo grau de subjetividade em

maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da

pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo

exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as

circunstacircncias faacutetiacutecas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo

de valor iacutensito a cada um

v) Quando se tratar de exigecircncias subjetivas deveraacute ser levado em

conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma

justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca

w) Quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou

sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal

no resultado do experimento tratando-se portanto de

justificativa extriacutenseca os riscos a que se submete devem ser

considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a

justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o beneficio esperado

tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa

submetida ao experimento

x) Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do

sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero

instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila e por outro

lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute

menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa

consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1222 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a

algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

y) Pode ser que diante de certas peculiaridades ou

vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo

considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa

em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua

realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo

eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima

z) Como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras

pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis

mas sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas agrave luz da

solidariedade o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias

objetivas agrave risca deve ser ainda mais rigoroso na ponderaccedilatildeo

do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave

observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da

autonomia e justiccedila

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Ensino n 2 junho 1997

VIEIRA Tereza Rodrigues Bioeacutetica e Direito 2 ed Satildeo Paulo Juriacutedica Brasileira 2003

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

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projeccedilotildees da Bioeacutetica14 De qualquer forma esse fato histoacuterico revela desde logo a iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica e as pesquisas em seres humanos

Os trecircs princiacutepios impressos pelo Relatoacuterio e referendados pela Bioeacutetica satildeo os da autonomials da beneficecircncia e da justiccedila Todavia a incidecircncia de um quarto princiacutepio o da natildeo-maleficecircncia eacute reconhecida por muitos pesquisadores

O principio da autonomia reporta-se agrave capacidade de auto-escolha ao auto-governo considerado como uma condiccedilatildeo para a efetiva dignidade do ser racional Autonomia eacute uma palavra que tem origem grega derivando de auto (proacuteprio) e nomos (lei regra norma) vinculando-se assim agrave possibilidade de algueacutem adotar suas proacuteprias decisotildees As pessoas devem ser reconhecidas como entes capazes de tomar suas proacuteprias decisotildees devendo ser preacutevia e devidamente informadas a respeito dos procedimentos seus riscos e consequumlecircncias A informaccedilatildeo adequada eacute portanto fundamental natildeo-soacute no que concerne ao indiviacuteduo diretamente envolvido16 mas tambeacutem a toda a sociedade17

Em termos praacuteticos a autonomia significa dizer por exemplo no caso dos meacutedicos e dos profissionais da Medicina que eles devem respeitar a escolha dos seus pacientes seus dogmas e sua cultura18 Nestes termos a relaccedilatildeo meacutedicopaciente eacute bastante modificada abandonando-se o paternalismo que ateacute entatildeo imperava19

14 Asseveram Leo Pessini e Christian de Paul Barchifontaine que O Relatoacuterio de Belmorit foi oficialmente divulgado em 1978 e causou grande impacto Tornou-se a declaraccedilatildeo principialista claacutessica natildeo somente para a eacutetica ligada agrave pesquisa com seres humanos jaacute que acabou sendo utilizada para a reflexatildeo Bioeacutetica em geral PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Bioeacutetica do principialismo agrave busca de uma perspectiva latino-americana In COSTA Seacutergio Ibiapina F OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 83

15 Tambeacutem denominado de principio do respeito agraves pessoas ou de principio do consentimento Este uacuteltimo foi proposto por H Tristram Engelhardt para indicar melhor que o que estaacute em jogo natildeo eacute algum valor possuiacutedo pela autonomia ou pela liberdade mas o reconhecimento de que a autoridade moral secular deriva do consentimento dos envolvidos em um empreendimento comum O principio do consentimento coloca em destaque a circunstacircncia de que quando Deus natildeo eacute ouvido por todos do mesmo modo (ou natildeo eacute de maneira alguma ouvido por ningueacutem) e quando nem todos Pertencem a uma comunidade perfeitamente integrada e definida e desde que a razatildeo natildeo descubra uma moralidade canocircnica concreta entatildeo a autorizaccedilatildeo ou autoridade moral secularmente justificaacutevel natildeo vem de Deus nem da visatildeo moral de uma comunidade particular nem da razatildeo mas do consentimento dos indiviacuteduos Nessa surdez a Deus e no fracasso da razatildeo os estranhos morais encontram-se como indiviacuteduos ENGELHARDT H Tristram Fundamentos de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1998 p 17

Segundo a jaacute citada Declaraccedilatildeo de Bioeacutetica de Gijoacuten Os participantes da pesquisa deveratildeo conceder seu consentimento livre e plenamente esclarecido

1 A mesma Declaraccedilatildeo de Bioeacutetica de Gijoacuten tambeacutem recomenda que Todos os membros da sociedade devem receber uma informaccedilatildeo geral adequada e acessiacutevel sobre a utilizaccedilatildeo dos avanccedilos cientiacuteficos as biotecnologias e seus produtos O principio da autonomia como pressuposto da auto-determinaccedilatildeo inclusive auto-governo representa o respeito agrave capacidade que tem a pessoa de se governar escolher dividir avaliar sem restriccedilotildees internas e externas Cf BASTOS Paulo Roberto H de Oliveira A Bioeacutetica nas praacuteticas de sauacutede Revista Juriacutedica da FIC-UNAES Campo Grande Ano 1 n 2 p 98 nov 1998 abr 1999

19 Sobre o tema consta da Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten que Cada um tem o direito aos melhores cuidados

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O postulado da autonomia tem forte base teoacuterica John Stuart Mill por exemplo jaacute tinha afirmado que sobre si mesmo sobre seu corpo e sua mente o indiviacuteduo eacute soberano20 Emile Durkheim entendia a autonomia como a interiorizaccedilatildeo das normas21 Por sua vez Jean Piaget estudou a autonomia como a capacidade de coordenaccedilatildeo de diferentes perspectivas sociais com o pressuposto do respeito reciacuteproco22

Poreacutem talvez a autonomia tenha tido na teoria kantiana o seu mais importante manancial A doutrina do filoacutesofo prussiano ultrapassou geraccedilotildees atingindo contornos cosmopolitas e atemporais Suas obras satildeo analisadas sob diferentes prismas idiomas e culturas sendo largamente estudado e recepcionado pela Bioeacutetica A autonomia em obra originalmente publicada em 1785 eacute para o filoacutesofo o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racionar23 E assim o pressuposto para a racionalidade da conduta bem como um princiacutepio supremo da moralidade vez que implica simultaneamente na vontade da norma universal (imperativo categoacuterico) e no respeito agrave dignidade da pessoa humana Registrou Kant na mesma obra que I autonomia da vontade eacute aquela sua propriedade graccedilas agrave qual ela eacute para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer) O princiacutepio da autonomia eacute portanto natildeo escolher senatildeo de modo a que as maacuteximas da escolha estejam incluiacutedas simultaneamente no querer mesmo como lei universal 24

Foi natural assim que a Bioeacutetica adotasse como fundamento o princiacutepio da autonomia2

O Relatoacuterio Belmont propocircs que a autonomia incorpora pelo menos duas convicccedilotildees eacuteticas a primeira que os indiviacuteduos devem ser tratados como agentes

meacutedicos possiacuteveis O doente e o meacutedico devem decidir juntos o domiacutenio do tratamento O doente deveraacute exprimir o seu consentimento livre apoacutes ter sido informado de maneira adequada Vale conferir a doutrina de COHEN Claacuteudio MARCOLINO Joseacute Aacutelvaro Marques Relaccedilatildeo Meacutedico-Paciente Autonomia amp Paternalismo In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo 1999 p 83-94

20 MILL John Stuart On Liberty Boston Collier 1909 p 5 21 Cf SEGRE Marco SILVA F L SCHRAMM F R O contexto histoacuterico semacircntico e filosoacutefico do

principio de autonomia Disponiacutevel em lthttpvwwvportaldomedicoorgbrrevistabiol v6conthistoricohtmgt Acessado em 04 maio 2006 Vide tambeacutem Joseacute Roberto Goldim Princiacutepio do respeito agrave pessoa ou da autonomia Disponiacutevel em lthttpwwwbioeticaufrgsbrautonomihtmgt Acessado cm 23 maio 2006

22 Cf KESSELRING T Jean Piaget Petroacutepolis Vozes 1993 p 173-189 23 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 1992 p 79 24 Id Ibid p 85 25 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO de 2005 agasalha o princiacutepio

da autonomia Seu art 5 por exemplo estatui que Deve ser respeitada a autonomia dos indiviacuteduos para tomar decisotildees quando possam ser responsaacuteveis por essas decisotildees e respeitem a autonomia dos demais Devem ser tomadas medidas especiais para proteger direitos e interesses dos indiviacuteduos natildeo capazes de exercer autonomia

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autocircnomos e a segunda que as pessoas com autonomia diminuiacuteda devem ser protegidas Desta forma divide-se em duas exigecircncias morais separadas a exigecircncia do reconhecimento da autonomia e a exigecircncia de proteger aqueles com autonomia reduzida Esta uacuteltima exigecircncia vincula-se agrave questatildeo da vulnerabilidade que pode ser observada em certas pessoas ou grupos e que seraacute mais adiante abordada

Por sua vez o principio da beneficecircncia de acordo com Clotet e Kipper deve ser entendido como uma dupla obrigaccedilatildeo primeiramente a de natildeo-causar danos e em segundo lugar a de maximizar o nuacutemero de possiacuteveis benefiacutecios e minimizar os prejuiacutezos26

Tambeacutem este postulado mereceu larga abordagem doutrinaacuteria muitas vezes em contraponto ao princiacutepio da natildeo-maleficecircncia que perfunctoriamente impotildee a obrigaccedilatildeo de natildeo-causar intencionalmente danos a outrem

Tal preceito deita raiacutezes no discurso hipocraacutetico na expressatildeo primum non nocere Mas tambeacutem eacute possiacutevel vinculaacute-lo aacute teoria kantiana jaacute que o imperativo categoacuterico conforme o qual Age segundo maacuteximas que possam simultaneamente ter-se a si mesmas por objecto como leis universais da natureza exige uma vontade absolutamente boa ou seja afasta qualquer possibilidade de agir que natildeo seja em benefiacutecio do outro27

Jaacute em 1930 Sir David Ross estabeleceu o conceito de dever prima facie propondo que no caso de eventual conflito entre beneficecircncia e natildeo-maleficecircncia prevaleccedila esta uacuteltima28

Frankena em 1963 escreveu que o princiacutepio da beneficecircncia natildeo nos ensina como fazer a distribuiccedilatildeo do bem e do mal apenas determina que promovamos o primeiro e evitemos o segundo2 Observa-se assim que a natildeo-maleficecircncia eacute entendida como parte da beneficecircncia

O Relatoacuterio Belmont foi influenciado pelo pensamento de Frankena jaacute que tratou a natildeo-maleficecircncia como um desdobramento natural da beneficecircncia ao estabelecer duas regras gerais que devem ser formuladas como complementares das

26 CLOTET amp KIPPER Princiacutepios da beneficecircncia e natildeo-maleficecircncia In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 45

27 Id Ibidp 80-81 28 ROSS W D The right and lhe Good Oxford Clarendon 1930 p 21-22 apud GOLDIM Joseacute Roberto

Principio da Beneficecircncia Disponiacutevel em lthttpwwwbioeticaufrgsbrbenefichtmgt Acessado em 23 maio de 2006

29 Quando se manifestam exigecircncias conflitantes o mais que ele pode fazer eacute aconselhar-nos a conseguir a maior porccedilatildeo possiacutevel de bem em relaccedilatildeo ao mal Cf FRANKENA W K Eacutetica Rio de Janeiro Zahar 1981 p 61-73 apud GOLDIM Joseacute Roberto op cit

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accedilotildees beneacuteficas a) natildeo-causar o mal e b) maximizar os benefiacutecios e minimizar os danos

A seu turno o princiacutepio da justiccedila pode ser resumido no dever de imparcialidade na distribuiccedilatildeo dos riscos e benefiacutecios inerentes agrave pesquisa bem como no tratamento igualitaacuterio aos iguais30 embora naturalmente haja dificuldades na determinaccedilatildeo de quem eacute ou-natildeo igual31 Implica ainda necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa

Segundo o Relatoacuterio Belmont haveraacute injusticcedila quando eacute imposto um dano ou encargo indevidamente ou quando um benefiacutecio eacute negado a algueacutem de maneira injustificada Aleacutem disso reconhece dificuldades na determinaccedilatildeo de um criteacuterio para a distribuiccedilatildeo dos benefiacutecios havendo vaacuterias possibilidades a cada um igualmente a cada um na medida da sua necessidade a cada um conforme seu esforccedilo individual a cada um de acordo com seu meacuterito2

Alguns autores defendem que a importacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica deve ser minorada postulando por uma reflexatildeo mais autocircnoma Nos parece que esse eacute

30 Eacute o princiacutepio da justiccedila que obriga a garantir a distribuiccedilatildeo justa equumlitativa e universal dos benefiacutecios dos serviccedilos de sauacutede Impotildee que todas as pessoas sejam tratadas de igual maneira natildeo obstante suas diferenccedilas Cf SANTOS Celeste Cordeiro dos O equiliacutebrio do pecircndulo a Bioeacutetica e a lei implicaccedilotildees meacutedico-legais Satildeo Paulo iacutecone 1998 p 45

31 O princiacutepio da igualdade tem suscitado importantes debates filosoacuteficos na Histoacuteria da humanidade dando ensejo a interpretaccedilotildees as mais variadas Aristoacuteteles vinculou a igualdade agrave justiccedila que pode ser comutativa ou distributiva (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos Satildeo Paulo Editora Nova Cultural 1996) Haacute ainda os autores nominalistas que entendem que a desigualdade eacute universal e portanto a igualdade natildeo passa de um nome Jaacute LOCKE John Ensaio sobre o governo civil Traduccedilatildeo Carmo Nunes Porto Seacuteculo XX 1986 e Montcsquieu Charles Secondat de O espirito das leis Satildeo Paulo Martins Fontes 1993 ao contraacuterio entendiam que a igualdade entre as pessoas era absoluta pertencendo assim ao grupo denominado de idealistas ROSSEAU Jean-Jacques Discurso sobre a origem das desigualdades entre os homens Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 de sua parte embora tambeacutem pertenccedila a essa uacuteltima vertente admitia a existecircncia de dois tipos de desigualdades a natural (ou fiacutesica) e a moral (ou poliacutetica) Vale entretanto trazer a lume as percucicntes anotaccedilotildees de Leila Pinheiro Bellintani sobre o tema Atraveacutes da anaacutelise histoacuterica do princiacutepio da igualdade [] percebe-se claramente que este preceito passou por intensa evoluccedilatildeo tendo sua conceituaccedilatildeo moldado-se atraveacutes dos tempos agraves novas necessidades sociais Apesar do constante aprimoramento do conceito dos ideais isonocircmicos natildeo se pode dizer que as concepccedilotildees anteriores foram ultrapassadas mas sim que houve uma agregaccedilatildeo de significados no decorrer da histoacuteria fazendo do principio da igualdade o preceito complexo que ora se apresenta Assim os estaacutegios evolutivos natildeo se deram de forma isolada ou independente Ao reveacutes se acumularam como telhas sobrepostas ampliando sempre o leque de acepccedilotildees a serem salvaguardadas ocorrendo o que se pode denominar de sobreposiccedilatildeo de significados Predomina portanto a ideacuteia de cumulaccedilatildeo e natildeo de alternacircncia entre eles Pode-se dizer portanto que hodiernamente o princiacutepio da igualdade possui diversas faces que se integram e que devem ser constantemente observadas pelos aplicadores das leis legisladores e pela proacutepria comunidade BELLINTANI Leila Pinheiro Accedilatildeo Afirmativa e os Princiacutepios do Direito Rio de Janeiro Lumen Juacuteris 2006 p 19-20

32 Impossiacutevel deixar de fazer menccedilatildeo aqui agrave noccedilatildeo de justiccedila distributiva de Aristoacuteteles que tem como base uma igualdade geomeacutetrica e consiste em dar a cada um o que lhe eacute devido mas considerando a excelecircncia que cada um possui o seu valor (areteacute) para a polis () porque aquilo que eacute distribuiacutedo agraves pessoas deve secirc-lo de acordo com o meacuterito de cada uma Op cit p 198

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um falso dilema jaacute que princiacutepios natildeo devem ser aplicados como regras e portanto natildeo representam uma camisa-de-forccedila para a Bioeacutetica Embora os objetivos deste trabalho natildeo nos permitam aprofundar a discussatildeo em torno da sua origem e aplicabilidade celeuma muito comum na ciecircncia juriacutedica natildeo seraacute despiciendo relembrar ao menos que haacute uma distinccedilatildeo juriacutedica entre princiacutepios e regras e que enquanto estas uacuteltimas satildeo aplicadas a partir da oacutetica do ali or nothing excluindo-se mutuamente os primeiros convivem entre si natildeo se excluem e representam motivos para decidir em determinado sentido

Portanto podemos afirmar que os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica pluralista aberta e receptiva Aleacutem disso pragmaticamente a aplicaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo dos princiacutepios em cada caso concreto eacute poderoso instrumento para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

Por tudo isso parece descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos debates bioeacuteticos Tanto assim eacute que a tendecircncia moderna eacute no sentido do reconhecimento de princiacutepios universais da Bioeacutetica Importante anotar por exemplo que o uacuteltimo documento internacional acerca do tema a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO datada de 2005 eacute fortemente principioloacutegica e dentre outros aspectos deliberou ser necessaacuterio e oportuno que a comunidade internacional declare princiacutepios universais que proporcionaratildeo uma base para a resposta da humanidade aos sempre crescentes dilemas e controveacutersias que a ciecircncia e a tecnologia apresentam agrave raccedila humana e ao meio ambiente

Deve-se lembrar finalmente que a abordagem dos princiacutepios da Bioeacutetica em separado tem uma justificativa puramente didaacutetica jaacute que eles natildeo podem ser cindidos na sua conceituaccedilatildeo e muito menos na sua aplicaccedilatildeo praacutetica34

4 Experimentaccedilatildeo em seres humanos aspectos da normatizaccedilatildeo nacional e internacional

Sobre princiacutepios a literatura juriacutedica eacute vasta Vide vg ALEXY Robert Teoria de tos Derechos Fundamentales Madrid Centro de Estuacutedios Constitucionales 1997 p 81-172 DWORKFN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1997 AacuteVILA Humberto Teoria dos Princiacutepios da definiccedilatildeo agrave aplicaccedilatildeo dos princiacutepios juriacutedicos 2 ed Satildeo Paulo Malheiros Editores 2003 ROTHEMBURG Waller Claudius Princiacutepios Constitucionais Porto Alegre Seacutergio Antonio Fabris 1999

4 Nesse sentido GUIMARAtildeES Maria Carolina S Eacutetica biomeacutedica e pesquisa em grupos humanos Revista Meacutedica de Minas Gerais v 3 n 1 p 52-53 janmar 1993 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO destina o seu art 26 agrave inter-relaccedilatildeo e complementaridade dos princiacutepios dispondo que A presente Declaraccedilatildeo deve ser considerada em sua totalidade e seus princiacutepios devem ser compreendidos como complementares e inter-relacionados Cada princiacutepio deve ser interpretado no contexto dos demais de forma pertinente e adequada a cada circunstacircncia

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No seacuteculo XVI Galileu passou a buscar a verdade atraveacutes da experimentaccedilatildeo e da observaccedilatildeo das coisas desvinculando-se da verdade dos escolaacutesticos ou da Igreja Esse eacute considerado o marco de referecircncia das origens da ciecircncia experimental a qual terminou por proporcionar a Revoluccedilatildeo Cientiacutefica nos seacuteculos seguintes35 Esta uacuteltima abriu as portas para uma nova era na humanidade multiplicando o conhecimento e as descobertas gerando tecnologia A tecnologia passou a imprimir uma velocidade cada vez maior nas transformaccedilotildees cientiacuteficas e sociais A velocidade com que as mudanccedilas ocorrem por sua vez municia o Homem com novas perspectivas e instrumentos sempre mais apurados de investigaccedilatildeo o que implica em mais tecnologia36 Investigaccedilatildeo pesquisa conhecimento mudanccedilas tecnologia velocidade formam uma espeacutecie de ciacuterculo virtuoso - natildeo-vicioso31 e satildeo palavras indissociaacuteveis da realidade nos uacuteltimos tempos a partir do seacuteculo XX no qual testemunhamos pelo menos duas espantosas revoluccedilotildees a atocircmica e a molecular38

Todo esse acervo mudou por completo as sociedades e o pensamento humano e natildeo se trata de um processo jaacute findo Pelo contraacuterio muito ainda estaacute por vir Natildeo se sabe aliaacutes se o Homem encontraraacute fronteiras tecnologicamente intransponiacuteveis Essa perspectiva de escassez de barreiras teacutecnicas conduz ao debate sobre a necessidade

35 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 edbdquo rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179

36 Por exemplo vale lembrar o ocorrido durante o desenrolar dos estudos do projeto genoma humano Segundo Jordan (1993) o verdadeiro objetivo inicial do PGH natildeo era o sequumlenciamento muito complexo caro e trabalhoso mas um mapeamento detalhado do genoma humano No decorrer do processo os progressos tecnoloacutegicos foram tatildeo grandes que propiciaram o sequumlenciamento mesmo antes do prazo previsto Cf GOLDIM Joseacute Roberto MATTE Uacutersulla Projeto Genoma Humano - HUGO Disponiacutevel em lthttpwwwufrgsbrbioeticagenomahtmgt Acessado em 28 maio de 2006

37 Natildeo se desconhece entretanto que o ser humano eacute capaz visando objetivos condenaacuteveis natildeo apenas de bloquear pesquisas mas tambeacutem de manipulaacute-las ou de realizaacute-las de forma direcionada propositadamente sem a observacircncia de criteacuterios cientiacuteficos Todavia antes de examinar a transmissatildeo de conhecimentos eacute necessaacuterio acenar para a sua fonte primaacuteria a pesquisa cientiacutefica Tambeacutem aiacute natildeo faltam aacutereas de conflito Foram sobretudo analisadas as frequumlentes ameaccedilas ao conhecimento e agrave informaccedilatildeo cientiacutefica provenientes de decisotildees poliacuteticas ou da proteccedilatildeo de interesses particulares Dentre as decisotildees poliacuteticas a diretora do Instituto Nacional da Seguranccedila e da Sauacutede Ocupacional (NIOSH) dos EUA Linda Rosenstock recordou aquelas assumidas pelo Congresso nos uacuteltimos anos dentro de um quadro de reduccedilatildeo de muitos programas para a proteccedilatildeo aos trabalhadores com a finalidade de bloquear a utilizaccedilatildeo de pesquisas no campo das artropatias do trabalho e de estudos sobre a relaccedilatildeo entre a motorizaccedilatildeo e os tumores e tambeacutem encobrir o fato de duas organizaccedilotildees internacionais designadas para a proteccedilatildeo agrave sauacutede a Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e a Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho estatildeo sob a acusaccedilatildeo de ter manipulado os relatoacuterios teacutecnicos relativos agrave induacutestria do asbesto Dentre os interesses particulares prcvalcccm aqueles das induacutestrias que encomendam pesquisas com a finalidade de demonstrar a inexistecircncia de efeitos nocivos (o exemplo mais macroscoacutepico concerne ao tabaco) ou entatildeo aumentar as incertezas para evitar fazer o que eacute necessaacuterio com base em conhecimentos jaacute comprovados ou mesmo sugerir procedimentos que alongam indefinidamente os periacuteodos de intervenccedilatildeo Cf BERLINGUER Giovanni Bioeacutetica Cotidiana Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2004 p 147-148

38 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia op cit p 159-179

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de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees tendo em conta que a teoria de haacute muito jaacute advertiu1 e a experiecircncia jaacute nos ensinou como adiante se veraacute que a ausecircncia de limites pode levar ao abuso

Embora isso possa ocorrer em vaacuterios campos como vg a economia e a poliacutetica sem duacutevida a aacuterea biomeacutedica eacute uma das que mais merecem nossa atenccedilatildeo natildeo soacute porque estaacute entre as mais influenciadas por essas transformaccedilotildees mas tambeacutem porque eacute uma das que mais tem potencial de desenvolvimento aleacutem do fato oacutebvio de estar diretamente ligada agrave vida humana Exatamente por isso cresce a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave vida especialmente a Medicina40

O acreacutescimo jaacute obtido na expectativa de vida do Homem que praticamente dobrou nos uacuteltimos dois seacuteculos decorrente de vaacuterios fatores dentre os quais uma verdadeira revoluccedilatildeo terapecircutica41 natildeo eacute suficiente As pessoas querem viver ainda mais e com melhor qualidade Por isso cobram mais avanccedilos tecnoloacutegicos nessa aacuterea despertando interesses diversos que vatildeo dos humanitaacuterios aos puramente comerciais e econocircmicos Chega-se a se falar ateacute mesmo em um direito agrave pesquisa que deve figurar entre as liberdades fundamentais unanimemente reconhecidas42

Para que esses desejos se tornem viaacuteveis eacute preciso conhecer cada vez mais profundamente a complexa maacutequina que eacute o corpo humano desenvolver novos faacutermacos medicamentos vacinas e terapias para combater doenccedilas descobrir a fonte da juventude atraveacutes de meacutetodos de desaceleraccedilatildeo - ou quiccedilaacute interrupccedilatildeo - da degeneraccedilatildeo celular dentre outras possibilidades e desafios

Por exemplo eacute conhecida nos meios juriacutedicos a passagem que adverte () mas trata-se de uma experiecircncia eterna que todo homem que possui poder eacute levado a dele abusar ele vai ateacute onde encontra limites Quem diria Ateacute a virtude precisa de limites MONTESQUIEU Charles de Secondat op cit p 170

40 Natildeo eacute agrave toa portanto que em interessante estudo sobre as exigecircncias referentes aos aspectos eacuteticos da pesquisa em revistas cientiacuteficas brasileiras se chegou agrave conclusatildeo de que As revistas de medicina e enfermagem apresentaram maior preocupaccedilatildeo com as orientaccedilotildees eacuteticas do que as revistas natildeo-meacutedicas classificadas nos grupos de miscelecircncia e odontologia sugerindo que o debate eacutetico da experimentaccedilatildeo em seres humanos estaacute mais difundido nas aacutereas meacutedica e de enfermagem do que em outras aacutereas da sauacutede Tal no entanto natildeo representa necessariamente um dado a ser festejado pois o resultado global comprovou que 791 das revistas cientiacuteficas estudadas natildeo fazem qualquer referecircncia aos aspectos eacuteticos Cf T SARDENBERG S S MUumlLLER H R PEREIRA R A DE OLIVEIRA W S HOSSNE Anaacutelise dos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos contidos nas Instruccedilotildees aos Autores de 139 rev istas cientiacuteficas brasileiras Revista da Associaccedilatildeo Meacutedica do Brasil v 45 n 4 p 295-302 1999

41 Sobre a chamada revoluccedilatildeo terapecircutica vide dentre outros BERNARD Jean La Bioeacutethique Paris Dominos Flammarion 1994 p 14-33

42 Conforme LAFON Claudc De la Biologie agrave Ia Bioeacutethique Paris Ellipses 2006 p 30

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A concretizaccedilatildeo desses objetivos depende de inuacutemeros fatores ligados agrave pesquisa cientiacutefica43 dentre os quais um que eacute o ponto central deste trabalho a experimentaccedilatildeo em seres humanos De fato o progresso do nosso conhecimento no passado e no futuro estaacute intimamente ligado agrave necessidade de observaccedilatildeo do funcionamento e da reaccedilatildeo do corpo e da mente humanas44

Em outras palavras eacute preciso tomar o ser humano como sujeito de pesquisa45

Esse fato bom que se diga natildeo eacute exatamente novo tem ocorrido no correr dos tempos suscitando questotildees eacuteticas de suma relevacircncia pois nem sempre as pessoas estudadas tiveram o trato adequado

A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda Guerra mormente as realizadas pelos japoneses e nazistas alematildees tais como a infestaccedilatildeo de prisioneiros com doenccedilas para testar vacinas e a esterilizaccedilatildeo e amputaccedilatildeo de membros46 trouxeram agrave tona a questatildeo da

43 A discussatildeo a respeito das pesquisas natildeo pode se limitar agravequelas de natureza meacutedica e farmacoloacutegica onde os impactos e riscos satildeo maiores e mais perceptiacuteveis E ampla a definiccedilatildeo de pesquisas em seres humanos adotada pela Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede conforme adiante se veraacute Leonard M Martin C Ss R preleciona O documento pretende regulamentar toda pesquisa em seres humanos e natildeo apenas pesquisas puramente biomeacutedicas Nesta perspectiva pesquisas socioloacutegicas e antropoloacutegicas tambeacutem devem passar pelo crivo de Comitecircs de Eacutetica independentes e ser alvo de discussatildeo sobre sua eticidade MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

44 O efeito de um tratamento sobre o homem soacute pode ser observado no proacuteprio homem Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

45 Esse fenocircmeno ocorre em todas as aacutereas do conhecimento e natildeo apenas nas ciecircncias biomeacutedicas Na realidade quando se fala em experimentaccedilatildeo com seres humanos pensa-se quase que exclusivamente na experimentaccedilatildeo no campo da Medicina Essa vinculaccedilatildeo eacute compreensiacutevel pois a experimentaccedilatildeo na aacuterea meacutedica eacute mais visiacutevel e de efeitos mais patentes em geral Contudo eacute bom assinalar que seres humanos satildeo utilizados em experimentaccedilatildeo por profissionais e cientistas de outras aacutereas odontoacutelogos nutricionistas farmacecircuticos fisioterapeutas psicoacutelogos profissionais da aacuterea de educaccedilatildeo fiacutesica e de esporte educadores e tambeacutem economistas Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179 Leonard M Martin C Ss R com base em McNeill e Jonsen destaca que [] as experiecircncias antieacuteticas dos nazistas incluiacuteram colocar prisioneiros em cacircmaras de pressatildeo modificar a pressatildeo atmosfeacuterica e observar suas mortes estudar o impacto sobre o corpo humano de imersatildeo em aacutegua gelada por periacuteodos prolongados infectar os internos com tifo malaacuteria e outras doenccedilas para testar drogas e vacinas esterilizaccedilatildeo e castraccedilatildeo procurando meacutetodos eficazes para esterilizaccedilatildeo em massa administrar venenos para estudar os efeitos letais e estudos com gecircmeos tipo infectando um matando os dois e comparando os corpos em autoacutepsia No atinente a experiecircncias japonesas MARTIN informa que no ala de desenvolver armas bioloacutegicas [] os japoneses atacaram pelo menos onze cidades com armas bioloacutegicas e infestaram uma cidade com pulgas portadores da peste bubocircnica A Unidade 731 tambeacutem era uma prisatildeo onde os prisioneiros foram submetidos a experiecircncias desumanas Houve cirurgia experimentais pessoas foram desidratadas ateacute a morrer alguns tiveram braccedilos congelados e depois degelados usando vaacuterios meacutetodos com a consequumlecircncia de que a carne apodreceu e caiu o fiacutegado de outras pessoas foi exposto por longos

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eacutetica na pesquisa evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana47 e de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa em seres humanos48

Como resposta agraves atrocidades praticadas na Segunda Guerra foi instituiacutedo em 1947 no acircmbito internacional pelo Tribunal de Nuremberg que julgou vinte e trecircs criminosos de guerra nazistas dos quais vinte meacutedicos ligados agrave experimentaccedilatildeo em pessoas49 o denominado Coacutedigo de Nuremberg o qual estabeleceu as diretrizes gerais para pesquisa em seres humanos A doutrina destaca como principais conquistas do coacutedigo o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa em retirar-se do experimento e de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias deste bem como a necessidade de estudos preacutevios sobre a importacircncia da pesquisa e os seus riscos aleacutem da comprovaccedilatildeo da capacidade dos pesquisadores50

Um ano depois a humanidade assiste agrave proclamaccedilatildeo agora pela Assembleacuteia Geral das Naccedilotildees Unidas de um outro documento de suma importacircncia a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos que embora de caraacuteter geral alberga

periacuteodos ao raio-X houve casos do sangue da pessoa ser substituiacutedo por sangue de cavalo e quando as cobaias humanas natildeo serviam mais para as experiecircncias foram executadas O autor ainda ressalta que diferentemente dos alematildees que foram condenados alguns inclusive enforcados os americanos resolveram poupar os japoneses permitindo que continuassem suas carreiras MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

4 Haacute quem afirme - sem razatildeo ao nosso ver - que a dignidade eacute um conceito inuacutetil um mero slogan e que natildeo significaria mais do que o respeito pelas pessoas e por sua autonomia Nesse sentido vide vg MACKLIN Ruth Dignity is a useless concept Brilish Medica Journal v 327 p 20-27 dez 2003 Disponiacutevel em lthttpbmjbmjjournalscomcgicontentfull3277429l419gt Aacessado em 27 maio de 2006 Em sentido inverso sobre as relaccedilotildees entre a Bioeacutetica e a dignidade vide dentre outros ADORNO Roberto La bioegravetique et la dignitegrave de Ia persone Paris Presses Universitaires de France 1997 Os documentos internacionais mencionam o elo entre Bioeacutetica e dignidade A jaacute mencionada Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten por exemplo afirma textualmente que A pesquisa e experiecircncia com seres humanos devem ser realizadas harmonizando a liberdade da ciecircncia e o respeito da dignidade humana

48 A experimentaccedilatildeo em seres humanos causa impacto porque as pessoas temem o abuso Os abusos jaacute ocorreram estatildeo ocorrendo c ainda ocorreratildeo mas proibir o uso natildeo eacute a melhor maneira de impedir o abuso Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

49 Estima-se que centenas de meacutedicos atuaram nos campos de concentraccedilatildeo dos quais pelo menos setenta teriam participado de experimentos com seres humanos A maioria dos meacutedicos de maior expressatildeo conseguiram escapar do julgamento como foi o caso de Josef Mengele principal meacutedico do campo de extermiacutenio de Auschwitz que fugiu e chegou a viver 14 anos no Brasil onde morreu afogado em Bertioga em 1979 O julgamento levou oito meses As sentenccedilas e o Coacutedigo de Nuremberg foram anunciados conjuntamente em 19 de agosto de 1947 Sete acusados foram condenados agrave morte Cf CREMESP Diretrizes e Declaraccedilotildees Disponiacutevel em lthttpvwvbiocticaorgbrlegislacaooutras_diretrizesintegraphpgt Acessado em 30 maio 2006 Discute-se hoje a validade cientiacutefica dos experimentos realizados bem como se eacute eacutetico utilizar os resultados obtidos Nesse sentido vide mateacuteria intitulada Doutores da agonia publicada na revista Superinteressante ed 225 abr2006 p 52-61

50 Cf FREITAS Corina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 195

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direitos que natildeo podem ser olvidados quando da experimentaccedilatildeo com seres humanos a exemplo da dignidade da igualdade e da liberdade Aleacutem disso haacute diversas ligaccedilotildees entre a Declaraccedilatildeo e os princiacutepios da Bioeacutetica51

Assim como a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos o Coacutedigo de Nuremberg proclama criteacuterios princiacutepios miacutenimos e irredutiacuteveis para eticidade da pesquisa em seres humanos Ambas as declaraccedilotildees embora de grande importacircncia para a Bioeacutetica satildeo normalmente entendidas como desprovidas de instrumentos adequados de obrigatoriedade52 e de mecanismos sancionatoacuterios de modo que sua infraccedilatildeo na maioria dos casos tem gerado apenas sanccedilotildees morais

Natildeo-obstante o estabelecido no Coacutedigo de Nuremberg - e na Declaraccedilatildeo Universal - as violaccedilotildees continuaram a ocorrer inclusive nos paiacuteses signataacuterios De fato por exemplo nos Estados Unidos teve continuidade como se nada houvesse acontecido a famosa pesquisa sobre siacutefilis em Tuskegee no condado de Macon Alabama financiada com recursos federais onde especialmente negros e pobres acreditavam que estavam se submetendo a um tratamento especial gratuito quando na verdade nada recebiam embora jaacute houvesse medicamentos disponiacuteveis servindo como verdadeiras cobaias entre 1932 e 1973 para que os pesquisadores pudessem acompanhar o desenvolvimento da doenccedila1 Ainda exemplificativamente foi iniciado em 1946 o chamado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm um dos mais famosos e importantes estudos de odontologia jaacute realizados no qual mais de 436 deficientes mentais crocircnicos internos da cidade de Lund no sul da Sueacutecia que natildeo tinham sequer a menor consciecircncia do que ocorria foram submetidos ateacute 1951 a uma dieta especial rica em accediluacutecar para provar que esta substacircncia provocava caacuteries sem que lhes fosse dado qualquer tratamento54

Por exemplo ao afirmar no seu art 1deg que todas pessoas satildeo dotadas de razatildeo e consciecircncia o documento da ONU reforccedila a ideacuteia de autonomia

52 Em relaccedilatildeo agrave Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Faacutebio Konder Comparato afirma que embora seja tecnicamente apenas uma recomendaccedilatildeo da ONU a seus membros os direitos ali definidos correspondem integralmente ao que o costume e os princiacutepios juriacutedicos internacionais reconhecem hoje como normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens) como a proacutepria Corte Internacional de Justiccedila tem entendido COMPARATO Faacutebio Konder A afirmaccedilatildeo histoacuterica dos Direitos Humanos 4 ed rev e atual Satildeo Paulo Saraiva 2005 p 223-224

53 Vide vg a respeito REVERBY S M More than Fact and Fiction Cultural Memory and the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 31 p 22-28 2001 BRANDT A M Racism and Research The Case of the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 8 p 21-29 1978 BEECHER H K Ethics and Clinicai Research New England Journal of Medicine n 274 p 1354-1360 1966

54 Cf SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas clinicas sobre seus direitos 2005 p 55-61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

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Os avanccedilos tecnoloacutegicos cada vez mais raacutepidos reverberaram nas questotildees eacuteticas forccedilando novas e perioacutedicas revisotildees Necessaacuterio se fez portanto a rediscussatildeo do tema e o aprimoramento do sistema normativo Assim sobreveio a Declaraccedilatildeo de Helsinque elaborada pela Associaccedilatildeo Meacutedica Mundial em 1964 texto que foi revisto e ampliado em 1975 (Toacutequio)55 1983 (Veneza) 1989 (Hong Kong) 1996 (Somerset) e 2000 (Edimburgo) com o que foram incorporadas vaacuterias inovaccedilotildees Por exemplo a disposiccedilatildeo no sentido de que No final do estudo todos os pacientes participantes devem ter assegurado o acesso aos melhores meacutetodos comprovados profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos identificados pelo estudo E no atinente ao uso de placebo que Os benefiacutecios riscos dificuldades e efetividade de um novo meacutetodo devem ser testados comparando-os com os melhores meacutetodos profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos atuais Isto natildeo exclui o uso de placebo ou nenhum tratamento em estudo onde existam meacutetodos provados de profiacutelaxia diagnoacutestico e tratamento 56 Foi tambeacutem reforccedilada a recomendaccedilatildeo do Coacutedigo de Nuremberg sobre a necessidade de submissatildeo do protocolo de pesquisa agrave anaacutelise por um Comitecirc de Eacutetica independente do pesquisador

Outros textos e documentos que tratam da pesquisa merecem referecircncia como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos de 196657 o intitulado Diretrizes Internacionais para a pesquisa biomeacutedica em seres humanos elaborado conjuntamente pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e pelo Council for International Organizations of Medicai Sciences (1993) a Declaraccedilatildeo de Manila (1981) a Declaraccedilatildeo de Princiacutepios Eacuteticos dos Meacutedicos do Mercosul (1996) a Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten (2000) e a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da Unesco (2005)

Em que pese o entendimento de que haacute carecircncia de instrumentos imperativos que garantam a exigibilidade dos referidos documentos sem duacutevida eles

A respeito Leo Pessini e Christian de Paul Barehifontaine ensinam que Tal modificaccedilatildeo fieou conhecida como Helsinque II Entre outros pontos importantes foram incluiacutedos nesta revisatildeo os seguintes aspectos I) Exigecircncia de que o protocolo experimental seja aprovado por uma comissatildeo independente para efeito de apreciaccedilatildeo comentaacuterios e orientaccedilatildeo (item I 2) 2) Que os seres humanos natildeo sejam utilizados em pesquisas a menos que o consentimento consciente do paciente dado livremente tenha sido obtido depois do mesmo ter sido adequadamente informado sobre os objetivos meacutetodos benefiacutecios esperados riscos potenciais e inconvenientes da experimentaccedilatildeo e que ele tenha liberdade de se abster e de cancelar sua participaccedilatildeo a qualquer momento (art I 9) 3) Que o protocolo contenha embasamento eacutetico da pesquisa e a referecircncia de que foram obedecidos os princiacutepios da Declaraccedilatildeo de Helsinque (item I 12) 4) Que os interesses da ciecircncia e da sociedade jamais tenham precedecircncia sobre o bem-estar do indiviacuteduo (item III 4) PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Problemas aluais de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1994 p 131

56 GRECO Dirceu B Poder e injusticcedila na pesquisa envolvendo seres humanos In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 264

57 De acordo com o seu art 7o Ningueacutem poderaacute ser submetido a tortura nem a penas ou tratamentos crueacuteis desumanos ou degradantes Seraacute proibido sobretudo submeter uma pessoa sem seu livre consentimento a experiecircncias meacutedicas ou cientiacuteficas

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contribuiacuteram e contribuem significativamente na proteccedilatildeo ao ser humano objeto de pesquisa pois influenciaram a elaboraccedilatildeo de diretrizes vinculantes no plano individual de cada Estado a exemplo do Brasil como a seguir veremos Por outro lado importante anotar que uma harmonia consensual e global no atinente agrave pesquisa parece impossiacutevel tendo em conta que a cultura os objetivos e as condiccedilotildees cientiacuteficas dos diversos paiacuteses satildeo naturalmente diversificados58 Aliaacutes haacute quem chegue a afirmar que o pluralismo eacutetico em vigor nos dias de hoje natildeo nos permite mais falar em moral universal59

No Brasil a normatizaccedilatildeo se daacute principalmente atraveacutes de resoluccedilotildees do Conselho Federal de Medicina60 e do Conselho Nacional de Sauacutede Aliaacutes a primeira resoluccedilatildeo deste uacuteltimo oacutergatildeo - Resoluccedilatildeo n 01 de 13 de junho de 1988 - tratou justamente de normas de pesquisa em sauacutede tendo dedicado o seu Capiacutetulo II arts 4o a 16 aos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos Esse diploma legal foi posteriormente revogado pela Resoluccedilatildeo n 196 de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Sauacutede que eacute atualmente a base regulamentar da pesquisa no Brasil tratando das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos Esta Resoluccedilatildeo eacute na verdade uma revisatildeo da anterior tendo sido precedida de diaacutelogo entre governo e sociedade civil61

A Resoluccedilatildeo atual afirma jaacute em seu preacircmbulo a sua fundamentaccedilatildeo nos principais documentos internacionais que emanaram declaraccedilotildees e diretrizes sobre

58 Nesse contexto por tanto deve ser considerada a questatildeo do multicuturalismo Como bem ensinam Joseacute A Mainetti Joseacute L Mainettil Existen dificultades en la aplicacioacuten de los principos elaborados por los paiacuteses centrales y es una evidencia por ejemplo que resulta inapropiada la visioacuten estrccha de la autonomia y la aplicacioacuten riacutegida dei requisito dei consentimento informado al modo norteamericano en determinadas circunstancias y comunidades Es preciso entoces reconocer Ias diferenccedilas culturales y en base a eacutestas aplicar los princiacutepios sin renunciar a cllos en formas maacutes adecuadas al ethos particular MAINETTI Joseacute A MAINETTI Joseacute L Bioeacutetica y la experimentacioacuten humana In SOROKIN Patriacutecia (Coord) Bioeacutelica entre utopias y desarraigos Buenos Aires Ad-Hoc Villela 2002 p 190

59 Cf ENGELHARDT JUacuteNIOR Tristam apuei BAUZON Steacutephane La personne biojuridique Paris Press Universitaires de France 2006 p 63

60 Vide como exemplo a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro o qual no seu Capiacutetulo XII trata especificamente da pesquisa meacutedica

61 Cf FREITAS Corina Bontempo Duca de Eacutetica na pesquisa com seres humanos A experiecircncia brasileira In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutelica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 307

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pesquisas que envolvem seres humanos62 e que visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito agrave comunidade cientiacutefica aos sujeitos da pesquisa e ao Estado

Aleacutem disso vinculou a experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da principiologia da Bioeacutetica seja no preacircmbulo onde afirma que incorpora sob a oacutetica do indiviacuteduo e das coletividades os quatro referenciais baacutesicos da Bioeacutetica autonomia natildeo-maleficecircncia beneficecircncia e justiccedila entre outros seja no seu item III 1 que versa sobre a eticidade na pesquisa63

Entre as suas disposiccedilotildees encontramos definiccedilotildees de diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica pesquisa64 pesquisa envolvendo seres humanos65

protocolo de pesquisa66 pesquisador responsaacutevel67 instituiccedilatildeo de pesquisa68 promotor69

patrocinador70 risco da pesquisa71 dano associado ou decorrente da pesquisa72 sujeito da

62 Cila a Resoluccedilatildeo os seguintes documentos o Coacutedigo de Nuremberg (1947) a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem (1948) a Declaraccedilatildeo de Helsinque (1964 e suas versotildees posteriores de 1975 1983 e 1989) o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Poliacuteticos (ONU 1966 aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1992) as Propostas de Diretrizes Eacuteticas Internacionais para Pesquisas Biomeacutedicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMSOMS 1982 e 1993) e as Diretrizes Internacionais para Revisatildeo Eacutetica de Estudos Epidemioloacutegicos (C10MS 1991) III1 - A eticidade da pesquisa implica em a) consentimento livre e esclarecido dos indiviacuteduos-alvo e a proteccedilatildeo a grupos vulneraacuteveis e aos legalmente incapazes (autonomia) Neste sentido a pesquisa envolvendo seres humanos deveraacute sempre trataacute-los em sua dignidade respeitaacute-los em sua autonomia e defendecirc-los em sua vulnerabilidade b) ponderaccedilatildeo entre riscos e benefiacutecios tanto atuais como potenciais individuais ou coletivos (beneficecircncia) comprometendo-se com o maacuteximo de benefiacutecios e o miacutenimo de danos e riscos c) garantia de que danos previsiacuteveis seratildeo evitados (natildeo maleficecircncia)- d) relevacircncia social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimizaccedilatildeo do ocircnus para os sujeitos vulneraacuteveis o que garante a igual consideraccedilatildeo dos interesses envolvidos natildeo perdendo o sentido de sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria (justiccedila e equumlidade) (negritos originais)

64 111 Pesquisa classe de atividades cujo objetivo eacute desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizaacutevel O conhecimento generalizaacutevel consiste em teorias relaccedilotildees ou princiacutepios ou no acuacutemulo de informaccedilotildees sobre as quais estatildeo baseados que possam ser corroborados por meacutetodos cientiacuteficos aceitos de observaccedilatildeo e infercncia

65 112 Pesquisa envolvendo seres humanos pesquisa que individual ou coletivamente envolva o ser humano de forma direta ou indireta em sua totalidade ou partes dele incluindo o manejo de informaccedilotildees ou materiais

66 II3 Protocolo de Pesquisa Documento contemplando a descriccedilatildeo da pesquisa em seus aspectos fundamentais informaccedilotildees relativas ao sujeito da pesquisa agrave qualificaccedilatildeo dos pesquisadores e a todas as instacircncias responsaacuteveis

67 II-4 Pesquisador responsaacutevel pessoa responsaacutevel pela coordenaccedilatildeo e realizaccedilatildeo da pesquisa e pela integridade e bem-estar dos sujeitos da pesquisa

68 II5 - Instituiccedilatildeo de pesquisa - organizaccedilatildeo puacuteblica ou privada legitimamente constituiacuteda e habilitada na qual satildeo realizadas investigaccedilotildees cientiacuteficas

69 116 - Promotor - indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo responsaacutevel pela promoccedilatildeo da pesquisa 70 II7 - Patrocinador - pessoa fiacutesica ou juriacutedica que apoia financeiramente a pesquisa 71 II8 Risco da pesquisa - possibilidade de danos agrave dimensatildeo fiacutesica psiacutequica moral intelectual social

cultural ou espiritual do ser humano em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente II9 Dano associado ou decorrente da pesquisa agravo imediato ou tardio ao indiviacuteduo ou agrave coletividade com nexo causai comprovado direto ou indireto decorrente do estudo cientiacutefico

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pesquisa73 consentimento livre e esclarecido74 indenizaccedilatildeo75 ressarcimento6 Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (CEP)77 vulnerabilidade78 e incapacidade79

A Resoluccedilatildeo regulamentou os Comitecircs de Eacutetica e Pesquisa - CEPs80 em cujas funccedilotildees81 destaca-se a apreciaccedilatildeo do protocolo da pesquisa em todas as suas especificidades o que foi um grande passo no sentido da construccedilatildeo de padrotildees eacuteticos82

Haacute requisitos para a instituiccedilatildeo dos Comitecircs principalmente no atinente agrave sua composiccedilatildeo83

1110 Sujeito da pesquisa eacute o(a) participante pesquisado(a) individual ou coletivamente de caraacuteter voluntaacuterio vedada qualquer forma de remuneraccedilatildeo IIII Consentimento livre e esclarecido anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal livre de viacutecios (simulaccedilatildeo fraude ou erro) dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar formulada em um termo de consentimento autorizando sua participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa 1112 - Indenizaccedilatildeo - cobertura material em reparaccedilatildeo a dano imediato ou tardio causado pela pesquisa ao ser humano a ela submetida 1113 Ressarcimento - cobertura em compensaccedilatildeo exclusiva de despesas decorrentes da participaccedilatildeo do sujeito na pesquisa 1114 - Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa-CEP - colegiados interdisciplinares e independentes com munus puacuteblico de caraacuteter consultivo deliberativo e educativo criados para defender os interesses dos sujeitos da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrotildees eacuteticos 1115 Vulnerabilidade refere-se a estado de pessoas ou grupos que por quaisquer razotildees ou motivos tenham a sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido 1116 - Incapacidade - Refere-se ao possiacutevel sujeito da pesquisa que natildeo tenha capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido devendo ser assistido ou representado de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira vigente O CEP pode ser entendido como um oacutergatildeo controlador da pesquisa por um lado mas por outro eacute tambeacutem um oacutergatildeo que ajuda a harmonizar diversos interesses que como vimos podem ser os mais diversos e agraves vezes ateacute conflitantes Cf PALAacuteCIOS Marisa Eacutetica na pesquisa - 1 Eacutetica em pesquisa em seres humanos In PALAacuteCIOS Marisa MARTINS Andreacute PEGORARO Olinto A (Orgs) Eacutetica ciecircncia e sauacutede humana Petroacutepolis Vozes 2001 p 74 Satildeo atribuiccedilotildees conferidas pela Resoluccedilatildeo aos CEPs a) revisar todos os protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos b) emitir parecer consubstanciado por escrito c) manter a guarda confidencial de todos os dados obtidos na execuccedilatildeo de sua tarefa e arquivamento do protocolo completo que ficaraacute agrave disposiccedilatildeo das autoridades sanitaacuterias d) acompanhar o desenvolvimento dos projetos atraveacutes de relatoacuterios anuais dos pesquisadores e) desempenhar papel consultivo e educativo 0 receber dos sujeitos da pesquisa ou de qualquer outra parte denuacutencias de abusos ou notificaccedilatildeo sobre fatos adversos que possam alterar o curso normal do estudo decidindo pela continuidade modificaccedilatildeo ou suspensatildeo da pesquisa devendo se necessaacuterio adequar o termo de consentimento considerando-se anti-eacutetica a pesquisa descontinuada sem justificativa aceita pelo CEP que a aprovou g) requerer instauraccedilatildeo de sindicacircncia agrave direccedilatildeo da instituiccedilatildeo em caso de denuacutencias de irregularidades de natureza eacutetica nas pesquisas e em havendo comprovaccedilatildeo comunicar agrave Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa CONEPMS e no que couber a outras instacircncias e h) manter comunicaccedilatildeo regular e permanente com a CONEPMS A existecircncia de oacutergatildeos com a funccedilatildeo de aprovar e acompanhar pesquisas jaacute era preconizada por exemplo pelo Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988) cujo art 127 veda ao

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Foi mais aleacutem a Resoluccedilatildeo que de modo inovador reforccedilou o controle eacutetico e a defesa da dignidade da pessoa humana com a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa - CONEP84 que atua na direccedilatildeo e orientaccedilatildeo dos comitecircs8S A comissatildeo de acordo com a Resoluccedilatildeo eacute uma instacircncia colegiada de natureza consultiva deliberativa normativa independente vinculada ao Conselho Nacional de Sauacutede86 Essa vinculaccedilatildeo eacute bastante positiva posto que a alternativa de submetecirc-la a outros oacutergatildeos poderia dar ensejo a uma indesejada politizaccedilatildeo dos seus membros o que seria capaz de terminar por afetar a sua autonomia

meacutedico Realizar pesquisa meacutedica em ser humano sem submeter o protocolo a aprovaccedilatildeo e acompanhamento de comissatildeo isenta de qualquer dependecircncia em relaccedilatildeo ao pesquisador O colegiado com nuacutemero natildeo inferior a 7 (sete) membros deve ser multidisciplinar abrangendo profissionais idocircneos e de distinta formaccedilatildeo da aacuterea de sauacutede e das ciecircncias exatas sociais e humanas incluindo por exemplo juristas teoacutelogos socioacutelogos filoacutesofos bioeticistas aleacutem de membros da sociedade e obrigatoriamente pelo menos um membro representando os usuaacuterios Se a pesquisa envolver grupos vulneraacuteveis comunidades e coletividades um dos seus representantes deveraacute ser convidado para participar como membro ad hoc do CEP da anaacutelise do projeto especiacutefico Assim o CEP ainda segundo a Resoluccedilatildeo teraacute sempre um caraacuteter multi e transdisciplinar sendo vedado que mais que metade de seus membros pertenccedilam a uma mesma categoria profissional devendo ainda participarem pessoas dos dois sexos Satildeo permitidos consultores ad hoc pessoas que pertencem ou natildeo aacute instituiccedilatildeo com o objetivo de fornecer subsiacutedios teacutecnicos Merece ainda atenccedilatildeo especial a autonomia do comitecirc cuja manifestaccedilatildeo deve ser totalmente autocircnoma e imaculada de coaccedilotildees ou pressotildees dos interessados A autonomia e a independecircncia satildeo condiccedilotildees sine qua non para a desejada eficaacutecia dos comitecircs que felizmente estatildeo se proliferando em nosso paiacutes Conforme informaccedilotildees do site da CONEP satildeo 446 CEPs aprovados no Brasil ateacute janeiro de 2006 Disponiacutevel em lthttpoonselhosaudegovbrcomissaoconep2006ceps20APROVADOSxlsgt Acessado em 04 jun 2006 A Comissatildeo tem 13 membros titulares e o mesmo nuacutemero de suplentes em uma composiccedilatildeo que tambeacutem deveraacute ser multi e transdisciplinar com pessoas de ambos os sexos Dentre os seus membros 05 (cinco) devem ser personalidades destacadas no campo da eacutetica na pesquisa e na sauacutede e 08 (oito) devem ser personalidades com destacada atuaccedilatildeo nos campos teoloacutegico juriacutedico e outros assegurando-se que pelo menos um seja da aacuterea de gestatildeo da sauacutede Embora natildeo desconheccedilamos a importacircncia das religiotildees na formaccedilatildeo do pensamento eacutetico humano e sem querer desmerecer as pessoas que nelas militam no mais das vezes com accedilotildees de destacada importacircncia pensamos que eacute inadequada em um Estado laico como o nosso a destinaccedilacirco de vaga ou de vagas especificamente a pessoas do campo teleoloacutegico Essa observaccedilatildeo imperioso demarcar natildeo eacute no sentido de entender que a contribuiccedilatildeo dessas pessoas eacute desnecessaacuteria ou inconveniente Pelo contraacuterio Poreacutem a desejada participaccedilatildeo jaacute poderia ser levada a efeito incluindo-as no grupo de personalidades com atuaccedilatildeo de destaque na esfera da eacutetica na pesquisa e na sauacutede sem necessidade de vinculaccedilatildeo necessaacuteria ao pensamento religioso Isso ateacute mesmo para preservar o pluralismo e a igualdade jaacute que obviamente natildeo seraacute possiacutevel oferecer a cada religiatildeo uma vaga Os membros da Comissatildeo satildeo recrutados a partir de indicaccedilotildees contidas em listas elaboradas pelas instituiccedilotildees que possuem CEP registrado na CONEP sendo que 07 (sete) satildeo escolhidos pelo Conselho Nacional de Sauacutede e 06 (seis) satildeo definidos por sorteio Tambeacutem pode contar com consultores e membros ad hoc sendo assegurada a representaccedilatildeo dos usuaacuterios O mandato eacute de quatro anos com renovaccedilatildeo alternada a cada dois anos de sete ou seis de seus membros A CONEP tem tambeacutem um papel coordenador da rede de Comitecircs institucionais aleacutem de se constituir em oacutergatildeo consultor na aacuterea eacutetica em pesquisa Num primeiro momento tem ainda a atribuiccedilatildeo de apreciar os projetos de pesquisas de aacutereas temaacuteticas especiais enviadas pelos CFPs ou seja projetos que contemplam aacutereas com maiores dilemas eacuteticos e grande repercussatildeo social ateacute que se acumulem experiecircncias para elaboraccedilatildeo de normas especiacuteficas complementares agraves existentes Cf FREITAS Carolina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA

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Outros aspectos da Resoluccedilatildeo que merecem especial destaque para o nosso estudo satildeo os relativos ao consentimento livre e esclarecido agrave vulnerabilidade e agrave incapacidade

Como jaacute dito um dos principais pontos da Declaraccedilatildeo de Nuremberg foi o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias A Resoluccedilatildeo tratou do tema exigindo a anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar87 A anuecircncia deve ser expressa atraveacutes de

Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 202

S6 Segundo a Resoluccedilatildeo compete agrave CONEP examinar os aspectos eacuteticos da pesquisa envolvendo seres humanos assim como a adequaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo das normas atinentes consultando a sociedade sempre que julgar necessaacuterio cabendo-lhe entre outras as seguintes atribuiccedilotildees a) estimular a criaccedilatildeo de CEPs institucionais e de outras instacircncias b) registrar os CEPs institucionais e de outras instacircncias c) aprovar no prazo de 60 dias e acompanhar os protocolos de pesquisa em aacutereas temaacuteticas especiais tais como geneacutetica humana reproduccedilatildeo humana faacutermacos medicamentos vacinas e testes diagnoacutesticos novos (fases I II e III) ou natildeo registrados no pais (ainda que fase IV) ou quando a pesquisa for referente a seu uso com modalidades indicaccedilotildees doses ou vias de administraccedilatildeo diferentes daquelas estabelecidas incluindo seu emprego em combinaccedilotildees equipamentos insumos e dispositivos para a sauacutede novos ou natildeo registrados no paiacutes novos procedimentos ainda natildeo consagrados na literatura populaccedilotildees indiacutegenas projetos que envolvam aspectos de biosseguranccedila pesquisas coordenadas do exterior ou com participaccedilatildeo estrangeira c pesquisas que envolvam remessa de material bioloacutegico para o exterior e projetos que a criteacuterio do CEP devidamente justificado sejam julgados merecedores de anaacutelise pela CONEP d) prover normas especiacuteficas no campo da eacutetica em pesquisa inclusive nas aacutereas temaacuteticas especiais bem como recomendaccedilotildees para aplicaccedilatildeo das mesmas e) funcionar como instacircncia final de recursos a partir de informaccedilotildees fornecidas sistematicamente em caraacuteter ex-ofiacutecio ou a partir de denuacutencias ou de solicitaccedilatildeo de partes interessadas devendo manifestar-se em um prazo natildeo superior a 60 (sessenta) dias 0 rever responsabilidades proibir ou interromper pesquisas definitiva ou temporariamente podendo requisitar protocolos para revisatildeo eacutetica inclusive os jaacute aprovados pelo CEP g) constituir um sistema de informaccedilatildeo e acompanhamento dos aspectos eacuteticos das pesquisas envolvendo seres humanos em todo o territoacuterio nacional mantendo atualizados os bancos de dados h) informar e assessorar o MS o CNS e outras instacircncias do SUS bem como do governo e da sociedade sobre questotildees eacuteticas relativas agrave pesquisa em seres humanos i) divulgar esta e outras normas relativas agrave eacutetica em pesquisa envolvendo seres humanos j) juntamente com outros setores do Ministeacuterio da Sauacutede estabelecer normas e criteacuterios para o credenciamento de Centros de Pesquisa e I) estabelecer suas proacuteprias normas de funcionamento

87 No que concerne agrave pesquisa meacutedica a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro estipula no seu art 123 que eacute vedado ao meacutedico Realizar pesquisa em ser humano sem que este tenha dado consentimento por escrito apoacutes devidamente esclarecido sobre a natureza e consequumlecircncia da pesquisa e que Caso o paciente natildeo tenha condiccedilotildees de dar seu livre consentimento a pesquisa somente poderaacute se realizada em seu proacuteprio beneficio apoacutes expressa autorizaccedilatildeo de seu responsaacutevel legal Jaacute a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO no seu art 6 aliacutenea b estabelece que A pesquisa cientiacutefica soacute deve ser realizada com o preacutevio livre expresso e esclarecido consentimento do indiviacuteduo envolvido A informaccedilatildeo deve ser adequada fornecida de uma forma compreensiacutevel e incluir os procedimentos para a retirada do consentimento O consentimento pode ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer hora e por qualquer razatildeo sem acarretar qualquer desvantagem ou preconceito Exceccedilotildees a este princiacutepio somente devem ocorrer quando em conformidade com os padrotildees eacuteticos e legais adotados pelos Estados consistentes com as provisotildees da presente Declaraccedilatildeo particularmente com o art 27 e com os direitos humanos

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em um termo de consentimento onde eacute autorizada a participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa Aleacutem disso natildeo pode estar viciada por simulaccedilatildeo fraude ou erro nem tampouco pode ser obtida por forccedila de uma situaccedilatildeo de dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo

Trata-se de disposiccedilatildeo decorrente da adoccedilatildeo do princiacutepio da autonomia jaacute abordado que se vincula agrave capacidade de autodeterminaccedilatildeo e auto-escolha e pressupotildee dentre outras premissas a capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos possiacuteveis18

Quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de estudo possuem a capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto ao consentimento livre e esclarecido por quaisquer motivos verifica-se uma situaccedilatildeo de vulnerabilidade que natildeo pode ser desconsiderada pelo pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais A preocupaccedilatildeo com a vulnerabilidade dos sujeitos encontra supedacircneo no Coacutedigo de Nuremberg na Declaraccedilatildeo de Helsinque nas Diretrizes Internacionais para Pesquisa Biomeacutedica envolvendo Seres Humanos89 e tambeacutem como jaacute dito na Resoluccedilatildeo 19696 A dificuldade central relacionada a indiviacuteduos e comunidades vulneraacuteveis eacute com a sua capacidade de compreensatildeo (autonomia plena) sobre o experimento e possibilidade de livremente consentir com a pesquisa e quando quiser dela desistir o que justifica todas as preocupaccedilotildees nesse sentido90

Cabe trazer a lume os ensinamentos do professor chileno Fernando Lolas O respeito pela autonomia das pessoas como agentes morais capazes de decisotildees informadas eacute central no diaacutelogo bioeacutetico Somente a permissatildeo outorgada por uma pessoa pode legitimar uma accedilatildeo que a envolva O valor das pessoas eacute incondicional o que obriga a consideraacute-las fins natildeo meios com a liberdade de viver e a de decidir livres de interferecircncias LOLAS Fernando Bioeacutetica o que eacute como se faz Traduccedilatildeo Milton Camargo Mota Satildeo Paulo Loyola 2001 p 63 A Diretriz Internacional para Pesquisa Biomeacutedica afirma Pesquisa envolvendo indiviacuteduos de comunidades sub-desenvolvidas Antes de iniciar a pesquisa em indiviacuteduos de comunidades subdesenvolvidas seja em paiacuteses desenvolvidos ou em desenvolvimento o pesquisador deve estar seguro que As pessoas da comunidade subdesenvolvida natildeo seratildeo ordinariamente envolvidas na pesquisa que possa ser realizada de forma adequada em comunidades desenvolvidas A pesquisa eacute uma resposta agraves necessidades de sauacutede e agraves prioridades da comunidade na qual seraacute realizada todos os esforccedilos seratildeo tomados no sentido de assegurar o imperativo eacutetico de que o consentimento individual dos sujeitos seraacute informado e Os projetos para a pesquisa foram revisados e aprovados por um comitecirc de eacutetica que tenha entre os seus membros ou consultores pessoas que tenham familiaridade com os costumes e tradiccedilotildees da comunidade Em comentaacuterio agraves diretrizes acima Leo Pessini e Christian Paul de Barchifontaine entendem que Quando a experimentaccedilatildeo visa ao estudo de determinadas condiccedilotildees moacuterbidas tais como doenccedilas endecircmicas em comunidades de baixo niacutevel socioeconocircmico eou cultural incapazes de terem uma consciecircncia clara e apropriada das implicaccedilotildees de sua participaccedilatildeo na experiecircncia eacute de bom alvitre que seja obtida a interveniecircncia de um liacuteder em que a coletividade confia Esse intermediaacuterio dever deixar claro que a participaccedilatildeo eacute voluntaacuteria e que qualquer participante tem a liberdade de natildeo aceitar ou abandonar a experiecircncia a qualquer momento op cit p 133

Conforme Marisa Palaacutecios Quando a autonomia dos sujeitos natildeo eacute plena ou seja quando a capacidade de entender as situaccedilotildees que se apresentam ao sujeito e de autodeterminar-se segundo este entendimento estaacute de alguma forma limitada eacute preciso tomar cuidado especial Eacute o caso dos grupos vulneraacuteveis os iacutendios que tecircm a capacidade de entendimento das situaccedilotildees diminuiacuteda uma vez que compotildeem sociedades

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A vulnerabilidade pode assumir as mais variadas vertentes bem como atingir uma determinada pessoa ou um grupo de seres humanos com peculiaridades comuns tais como crianccedilas idosos iacutendios pacientes terminais desempregados deficientes91 presidiaacuterios92 ou outras situaccedilotildees de dependecircncia93

Pode ocorrer que as pessoas que seratildeo estudadas na pesquisa natildeo tenham capacidade civil para dar o seu consentimento Nesse caso se encontram em situaccedilatildeo de incapacidade e a pesquisa soacute pode ser levada adiante com a intervenccedilatildeo de seus representantes legais que de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira deveratildeo assistir ou representar os incapazes Tambeacutem aqui deve o pesquisador cercar-se de cautelas eacuteticas redobradas

Finalmente deve-se louvar a Resoluccedilatildeo por ter explicitado no seu item III3 um rol de 23 (vinte e trecircs) exigecircncias eacuteticas para a pesquisa de qualquer aacuterea do conhecimento que envolva seres humanos94

culturalmente diversas[] Estas para citar algumas populaccedilotildees caracteriacutesticas Satildeo populaccedilotildees que precisam ser especialmente protegidas dada a proacutepria condiccedilatildeo de vulnerabilidade Maria Carolina S Guimaratildees e Sylvia Caiuby Novaes com alento em Hannah Arendt e Cardia definem o ser vulneraacutevel como Algueacutem que possui cidadania fraacutegil que ignora a relevacircncia do direito agrave integridade fiacutesica como condiccedilatildeo de acesso aos direitos sociais econocircmicos poliacuteticos e trabalhistas Dito assim o que parece a primeira condiccedilatildeo para que um ser vulneraacutevel perca tal situaccedilatildeo eacute o investimento do Estado naquilo que constroacutei e constitui a cidadania naqueles atributos que transformam o indiviacuteduo em cidadatildeo que transformam o animal laborans em homem poliacutetico Essa transformaccedilatildeo eacute no dizer de Hannah Arendt um pressuposto da democracia pois permite ao animal laborans ir do reino da necessidade para o reino da liberdade GUIMARAtildeES Maria Carolina S NOVAES Sylvia Caiuby Autonomia reduzida e vulnerabilidade liberdade de decisatildeo diferenccedila e desigualdade Revista Bioeacutetica Brasiacutelia v 7 n 1 p 23 1999

91 Sobre o tema vide COHEN Claacuteudio Bioeacutetica Pesquisa e Deficiecircncia In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 55-62 92 Nem todo ser humano eacute no entanto capaz de autodeterminaccedilatildeo A capacidade de autodeterminaccedilatildeo amadurece ao longo da vida mas pode ser perdida total ou parcialmente por doenccedila velhice ou situaccedilatildeo de restriccedilatildeo severa como a prisatildeo Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 93 O Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de janeiro de 1988) veda ao meacutedico no seu art 128 Realizar pesquisa meacutedica em voluntaacuterios sadios ou-natildeo que tenham direta ou indiretamente dependecircncia ou subordinaccedilatildeo relativamente ao pesquisador 94 I1I3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias a) ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder a incertezas b) estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou em outros fatos cientiacuteficos c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio d) prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis e) obedecer a metodologia adequada Se houver necessidade de distribuiccedilatildeo aleatoacuteria dos sujeitos da pesquisa em grupos experimentais e de controle assegurar que apriori natildeo seja possiacutevel estabelecer as vantagens de um procedimento sobre outro atraveacutes de revisatildeo de literatura meacutetodos observacionais ou meacutetodos que natildeo envolvam seres humanos 0 ter plenamente justificada quando for o caso a utilizaccedilatildeo de placebo em termos de natildeo maleficecircncia e de necessidade metodoloacutegica g) contar com o consentimento livre e esclarecido do sujeito da pesquisa eou seu representante legal h) contar com os recursos humanos e materiais necessaacuterios que garantam o bem-

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5 Teleologia e legitimidade da pesquisa em seres humanos

Toda experimentaccedilatildeo em seres humanos possui um determinado objetivo o qual pode ou-natildeo estar vinculado ao bem estar proacuteprio da pessoa ou grupo observado

Essa situaccedilatildeo natildeo foi esquecida pela Declaraccedilatildeo de Helsinque cujo preacircmbulo afirma Wo campo cia pesquisa biomeacutedica uma distinccedilatildeo fundamental deve ser feita entre a pesquisa meacutedica na qual o objetivo eacute essencialmente o diagnoacutestico ou a terapecircutica para um paciente e a pesquisa meacutedica cujo objeto essencial eacute puramente cientiacutefico e sem um valor direto diagnoacutestico ou terapecircutico para a pessoa sujeita agrave

estar do sujeito da pesquisa devendo ainda haver adequaccedilatildeo entre a competecircncia do pesquisador e o projeto proposto i) prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade a proteccedilatildeo da imagem e a natildeo estigmatizaccedilatildeo garantindo a natildeo utilizaccedilatildeo das informaccedilotildees em prejuiacutezo das pessoas eou das comunidades inclusive em termos de auto-estima de prestiacutegio eou econocircmico - financeiro j) ser desenvolvida preferencialmente cm indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida 1) respeitar sempre os valores culturais sociais morais religiosos e eacuteticos bem como os haacutebitos e costumes quando as pesquisas envolverem comunidades m) garantir que as pesquisas em comunidades sempre que possiacutevel traduzir-se-atildeo em benefiacutecios cujos efeitos continuem a se fazer sentir apoacutes sua conclusatildeo O projeto deve analisar as necessidades de cada um dos membros da comunidade e analisar as diferenccedilas presentes entre eles explicitando como seraacute assegurado o respeito agraves mesmas n) garantir o retomo dos benefiacutecios obtidos atraveacutes das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas Quando no interesse da comunidade houver benefiacutecio real em incentivar ou estimular mudanccedilas de costumes ou comportamentos o protocolo de pesquisa deve incluir sempre que possiacutevel disposiccedilotildees para comunicar tal benefiacutecio agraves pessoas eou comunidades o) comunicar agraves autoridades sanitaacuterias os resultados da pesquisa sempre que os mesmos puderem contribuir para a melhoria das condiccedilotildees de sauacutede da coletividade preservando poreacutem a imagem e assegurando que os sujeitos da pesquisa natildeo sejam estigmatizados ou percam a auto-estima p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefiacutecios resultantes do projeto seja em termos de retorno social acesso aos procedimentos produtos ou agentes da pesquisa q)assegurar aos sujeitos da pesquisa as condiccedilotildees de acompanhamento tratamento ou de orientaccedilatildeo conforme o caso nas pesquisas de rastreamento demonstrar a preponderacircncia de benefiacutecios sobre riscos e custos r) assegurar a inexistecircncia de conflito de interesses entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa ou patrocinador do projeto s) comprovar nas pesquisas conduzidas do exterior ou com cooperaccedilatildeo estrangeira os compromissos e as vantagens para os sujeitos das pesquisas e para o Brasil decorrentes de sua realizaccedilatildeo Nestes casos deve ser identificado o pesquisador e a instituiccedilatildeo nacionais co-responsaacuteveis pela pesquisa O protocolo deveraacute observar as exigecircncias da Declaraccedilatildeo de Helsinque e incluir documento de aprovaccedilatildeo no paiacutes de origem entre os apresentados para avaliaccedilatildeo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa da instituiccedilatildeo brasileira que exigiraacute o cumprimento de seus proacuteprios referenciais eacuteticos Os estudos patrocinados do exterior tambeacutem devem responder agraves necessidades de treinamento de pessoal no Brasil para que o paiacutes possa desenvolver projetos similares de forma independente t) utilizar o material bioloacutegico e os dados obtidos na pesquisa exclusivamente para a finalidade prevista no seu protocolo u) levar em conta nas pesquisas realizadas em mulheres em idade feacutertil ou em mulheres graacutevidas a avaliaccedilatildeo de riscos e benefiacutecios e as eventuais interferecircncias sobre a fertilidade a gravidez o embriatildeo ou o feto o trabalho de parto o puerpeacuterio a lactaccedilatildeo e o receacutem-nascido v) considerar que as pesquisas em mulheres graacutevidas devem ser precedidas de pesquisas em mulheres fora do periacuteodo gestacional exceto quando a gravidez for o objetivo fundamental da pesquisa x) propiciar nos estudos multicecircntricos a participaccedilatildeo dos pesquisadores que desenvolveratildeo a pesquisa na elaboraccedilatildeo do delineamento geral do projeto e z) descontinuar o estudo somente apoacutes anaacutelise das razotildees da descontinuidade pelo CEP que a aprovou

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pesquisa Em outras palavras haacute experimentos em benefiacutecio do paciente e experimentos em benefiacutecio da ciecircncia Ainda no preacircmbulo da Declaraccedilatildeo de Helsinque encontramos que A finalidade da pesquisa meacutedica envolvendo seres humanos deve ser o aperfeiccediloamento do diagnoacutestico procedimentos terapecircuticos e profilaacuteticos e a compreensatildeo da etiologia e da patologia da doenccedila Conjugando essa afirmaccedilatildeo com a anterior podemos extrair que uma determinada pessoa ou populaccedilatildeo pode ser objeto de pesquisa para desvendar doenccedilas que a afligem ou para desnudar as razotildees pelas quais eacute menos suscetiacutevel ou-natildeo eacute atingida por determinada moleacutestia que afeta aos demais seres humanos

A partir dessas observaccedilotildees podemos considerar para os fins do nosso estudo que as experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas teleologicamente em dois grupos a) aquelas cujos objetivos possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas as quais chamaremos de pesquisas com justificativa intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de terceiros as quais denominaremos pesquisas com justificativa extrinseca Temos como exemplo na primeira situaccedilatildeo os experimentos cientiacuteficos para desvendar o porquecirc de uma determinada coletividade ser atingida por taxas elevadas de uma certa doenccedila e na segunda uma pesquisa para revelar as razotildees pelas quais certas pessoas natildeo desenvolvem uma moleacutestia com o objetivo de descobrir uma vacina ou um medicamento para os demais

Entretanto em todo experimento seraacute necessaacuterio averiguar se a justificativa - seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima Isso porque o fato de uma pesquisa ter por objetivo um tratamento mais eficiente ou a cura de certas doenccedilas natildeo legitima por si soacute a utilizaccedilatildeo de pessoas como sujeito de pesquisa mesmo que elas sofram da moleacutestia e possam vir a ser beneficiadas Natildeo se deve perder de vista aliaacutes que se o conhecimento puder ser obtido por outro meio a utilizaccedilatildeo de seres humanos justamente por ser desnecessaacuteria seraacute ilegiacutetima95 Ademais soacute pelo fato de ser intriacutenseca a justificativa natildeo seraacute necessariamente legiacutetima Por outro lado a circunstacircncia isoladamente considerada do eventual resultado da experimentaccedilatildeo ser absolutamente indiferente ao sujeito de pesquisa natildeo torna a sua participaccedilatildeo ilegiacutetima Em outras palavras a justificativa soacute por ser extrinseca natildeo seraacute necessariamente ilegiacutetima

Vale relembrar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 - A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio

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A razatildeo disso reside na afirmaccedilatildeo de que como se sabe desde Kant o Homem deve ser tratado como um fim em si mesmo e natildeo como instrumento De fato eacute em Kant que o Homem ganha status de valor absoluto manifesto no imperativo praacutetico expresso na maacutexima segundo a qual Ages de tal maneira que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio 96

Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

Quando se trata de experimentaccedilatildeo com justificativa intriacutenseca a razatildeo legitimadora pode estar no objetivo de beneficiar os proacuteprios sujeitos da pesquisa algueacutem se submete a uma experimentaccedilatildeo na tentativa de auferir uma vantagem em seu bem-estar fiacutesico ou mental

Jaacute no caso da justificativa extriacutenseca poder-se-ia objetar a realizaccedilatildeo da experimentaccedilatildeo com suposto fundamento na Resoluccedilatildeo 19696 cujo item III 1 letra d vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila Ora se em uma determinada situaccedilatildeo algueacutem participa do experimento sem que haja qualquer possibilidade de benefiacutecio fiacutesico ou mental para si a partir do resultado da pesquisa e considerando que a mesma Resoluccedilatildeo veda qualquer forma de remuneraccedilatildeo do sujeito da pesquisa (item 1110) qual a vantagem significativa que poderaacute essa pessoa auferir para justificar a sua participaccedilatildeo

Ao nosso ver a interpretaccedilatildeo desse ponto da Resoluccedilatildeo natildeo deve ser literal nem assistemaacutetica97 devendo ser considerada a incidecircncia de um outro princiacutepio ainda

Op cit p 69 Em comento a este imperativo Francesca Puigpclat Marti apregoa que La concepcioacuten liberal asocia a esta expresioacuten una idea comuacuten en Ia reflexioacuten eacutetica de raigambre kantiana el hombre es un fin en si mismo un sujeto y no un objeto Seguacuten Kant en el sistema de Ia natureza el hombre (homo phaenomenon animal rationale) es un ser de escasa importancia y tiene con los demaacutes animales en tanto que productos de Ia tierra un precio comuacuten () Ahora bien el hombre considerado como persona es dccir como sujeto de una razoacuten praacutetico-moral estaacute situado por encima de todo precio porque como tal (homo noumenon) no puede valorarse soacutelo como meacutedio para fines ajenos incluso para sus proprios fines sino como fin en siacute mismo es decir posee una dignidad(un valor interno absoluto) gracias a la cual infunde respeto haciacutea eacutel a todos los demaacutes seres racionales dei mundo puede medirse con cualquier otro de esta clase y valorarse en pie de igualdad En la medida en que seguacuten Kant el hombre existe como fin en siacute mismo y no soacutelo como meacutedio para usos cualesquiera de una u otra voluntad se puede formular el siguiente principio praacutetico supremo obra de tal modo que uses la humanidad tanto en tu persona como en la persona de cualquier otro siempre como un fin al mismo tiempo y nunca solamente como un meacutedio MARTIacute Francesca Puigpelat Clonacioacuten dignidad humana y constitucioacuten Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo ano II n 42 janmar p37-64 2003

Natildeo se interpreta o direito em tiras aos pedaccedilos () Um texto de direito isolado destacado desprendido do sistema juriacutedico natildeo expressa significado normativo algum Cf GRAU Eros Roberto Ensaio e

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que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que eacute o da solidariedade Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita entendemos que a sua aplicaccedilatildeo eacute cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele dispositivo (item 1111 letra d da Resoluccedilatildeo 19696) afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria Aleacutem disso outros documentos de importacircncia para a Bioeacutetica fazem referecircncia agrave solidariedade98 De fato natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao respeito agrave dignidade da pessoa humana99

Logo no nosso pensar mesmo que natildeo haja nenhum benefiacutecio ou vantagem direta ao sujeito de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma justificativa eacutetica a qual pode ter como nuacutecleo a intenccedilatildeo solidaacuteria dessa pessoa e do pesquisador de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e consequumlentemente para todos os demais seres humanos

A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica100

Estas exigecircncias no acircmbito normativo brasileiro estatildeo listadas na Resoluccedilatildeo 19696 especialmente no item III3

Algumas delas satildeo puramente objetivas e uma vez desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca E o caso por exemplo da necessidade de consentimento preacutevio e informado

discurso sobre a interpretaccedilatildeoaplicaccedilatildeo do Direito Satildeo Paulo Malheiros Editores 2002 p 34 98

O art 1deg da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos proclama que todas pessoas devem agir em relaccedilatildeo umas agraves outras com espiacuterito de fraternidade Alem disso a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO em um dos seus considerandos observa que os seres humanos tecircm um papel importante na proteccedilatildeo um do outro tratando expressamente da solidariedade e cooperaccedilatildeo no seu art 13 segundo o qual A solidariedade entre os seres humanos e cooperaccedilatildeo internacional para este fim devem ser estimuladas 99 Ela [a solidariedade] eacute o fecho de aboacutebada do sistema de princiacutepios eacuteticos pois complementa e aperfeiccediloa a liberdade a igualdade e a seguranccedila () E um erro considerar que no mundo da natureza sobretudo no mundo animal natildeo exista solidariedade e que ela seja uma criaccedilatildeo poliacutetica Muito pelo contraacuterio pode-se dizer que a biosfera forma naturalmente um sistema solidaacuterio e que o rompimento desse sistema eacute sempre obra do homem O proacuteprio Darwin bem advertiu que a expressatildeo struggle for Existence fora por ele usada em sentido amplo e matafoacuterico incluindo a dependecircncia de um ser em relaccedilatildeo a outro bem como incluindo (o que eacute mais importante) natildeo apenas a vida do indiviacuteduo mas o ecircxito em deixar descendentes Os zooacutelogos jaacute observaram que o processo de seleccedilatildeo natural deu mais vantagens bioloacutegicas aos grupos que cuidavam de seus membros natildeo reprodutivos do que agravequeles que abandonavam ou matavam os anciatildeos pois a capacidade de reproduccedilatildeo global dos grupos altruiacutestas eacute assim singularmente reforccedilada Cf COMPARATO Faacutebio Konder Eacutetica direito moral e religiatildeo no mundo moderno Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 p 577578

100

Natildeo eacute agrave toa portanto que como jaacute visto a Resoluccedilatildeo 19696 vincula a eticidade na pesquisa aos princiacutepios da Bioeacutetica tanto no seu preacircmbulo como no seu item III 1

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1214 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

dos participantes - ou dos seus representantes se incapazes - 101 cuja ausecircncia macula o princiacutepio da autonomia Tambeacutem eacute objetiva a exigecircncia da pesquisa estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou outros fatos cientiacuteficos102 cuja inobservacircncia implica em ofensa agrave natildeo-maleficecircncia Nessas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou-natildeo vir a ter um benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

Outras exigecircncias entretanto possuem um certo grau de subjetividade em maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as circunstacircncias faacuteticas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo de valor iacutensito a cada um Desse tipo vg eacute a exigecircncia segundo a qual a pesquisa deve ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e ter possibilidades concretas de responder a incertezas103 A avaliaccedilatildeo quanto ao cumprimento ou-natildeo da exigecircncia e portanto quanto agrave legitimidade ou ilegitimidade da utilizaccedilatildeo de seres humanos tem um niacutetido caraacuteter subjetivo podendo variar de pessoa para pessoa

Quando tratamos de exigecircncias subjetivas haacute ainda um outro aspecto a ser apontado deveraacute ser levado em conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca Em outras palavras a circunstacircncia do sujeito de pesquisa poder vir a ser beneficiado ou-natildeo pelo resultado do experimento deve ser considerada na verificaccedilatildeo da legitimidade eacutetica quando da ponderaccedilatildeo sobre o cumprimento das exigecircncias subjetivas

Tomemos como exemplo a exigecircncia de que devem prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis104 Ora essa exigecircncia eacute subjetiva pois envolve uma ponderaccedilatildeo cujo resultado estaacute vinculado a um juiacutezo de valor sobre a natureza e a importacircncia ou peso de cada benefiacutecio ou risco provaacutevel Ao nosso entender quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal no resultado do experimento tratando-se portanto de justificativa extriacutenseca eacute oacutebvio que os riscos a que se submete devem ser considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o benefiacutecio esperado tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa submetida ao experimento

101 Item III3 letra g da Resoluccedilatildeo 19696 102 Item III3 letra b da Resoluccedilatildeo 19696 103 Item III3 letra a da Resoluccedilatildeo 19696 104 Item III3 letra d da Resoluccedilatildeo 19696

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1215

Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila105 Por outro lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

A proacutepria realizaccedilatildeo ou-natildeo da pesquisa pode depender dessa ponderaccedilatildeo jaacute que a Resoluccedilatildeo n 19696 prevecirc que havendo riscos potenciais as pesquisas envolvendo seres humanos poderatildeo ser admitidas quando oferecerem elevada possibilidade de gerar conhecimento para entender prevenir ou aliviar um problema que afete o bem-estar dos sujeitos da pesquisa e de outros indiviacuteduos 106

Aleacutem disso parece ser mais aceitaacutevel eticamente submeter o ser humano a riscos maiores quando a justificativa eacute intriacutenseca do que quando ela eacute extriacutenseca priorizando assim a sua preservaccedilatildeo Nesse sentido a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO estipula que uos interesses e o bem-estar do indiviacuteduo devem ter prioridade sobre o interesse exclusivo da ciecircncia ou da sociedade 107

Natildeo se pode esquecer ainda que por forccedila dos princiacutepios da beneficecircncia da natildeo-maleficecircncia e da justiccedila eacute preciso considerar na mediccedilatildeo da legitimidade as peculiaridades individuais ou coletivas dos sujeitos de pesquisa especialmente no que concerne agraves suas eventuais vulnerabilidades bem como cuidar para que natildeo lhes seja imposto um mal desnecessaacuterio ou desproporcional O princiacutepio da justiccedila como vimos implica necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa os quais sempre que possiacutevel devem ter garantido para si pelo pesquisador a fruiccedilatildeo dos benefiacutecios da experimentaccedilatildeo natildeo sendo equacircnime impor-Ihes ocircnus excessivos108 especialmente se vulneraacuteveis Natildeo eacute agrave toa portanto que pode

105 O princiacutepio da justiccedila implica atenccedilatildeo especial agraves regras de recrutamento de participantes de experimentos Natildeo se pode fazer experimentos apenas com determinados grupos - pacientes de enfermaria asilados prisioneiros - simplesmente porque eles estatildeo agrave disposiccedilatildeo e em situaccedilatildeo de dependecircncia Isso eacute injusto Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 Item Vl aliacutenea a

107 Art 3 aliacutenea b 108 bull

Consideramos que deva ser modificada a praacutetica muito comum em nosso paiacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de pesquisados provenientes das camadas mais desfavorecidas da sociedade ou de outros grupos vulneraacuteveis mas que posteriormente natildeo poderatildeo se beneficiar dos resultantes positivos das pesquisas em que tomaram parte mesmo tendo enfrentado riscos de danos psico-sociais As pesquisas realizadas nesses grupos devem poder lhes trazer benefiacutecios e os pesquisadores sempre que possiacutevel devem garantir retomo dos benefiacutecios resultados das pesquisas para os sujeitos individuais e coletivos que nelas participarem Cf FORTES Paulo Antonio de Carvalho As Pesquisas em Seres Humanos e o Principio Eacutetico da Justiccedila

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1216 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

haver exigecircncias eacuteticas especiacuteficas para pesquisas com serem humanos em situaccedilatildeo de vulnerabilidade109

Assim sempre seraacute preciso dosar a equaccedilatildeo riscobeneficio ponderando em cada caso concreto se os eventuais benefiacutecios satildeo suficientes para motivar a exposiccedilatildeo das pessoas ao processo de experimentaccedilatildeo Pode ser que diante de certas peculiaridades ou vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima110 Aliaacutes como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis justamente porque como jaacute dito o ser humano natildeo pode ser tratado como mero instrumento1

E natildeo eacute soacute Aleacutem disso em princiacutepio a pesquisa com pessoas ou grupos vulneraacuteveis deve ter uma justificativa intriacutenseca2 Entretanto sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas em experimentos extriacutensecos agrave luz da solidariedade como no caso do grupo vulneraacutevel ser imune a determinada moleacutestia por razatildeo ainda desconhecida o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias objetivas agrave risca deve ser ainda mais

Cadernos de Eacutetica em Pesquisa Ano 1 n 2 p 22-23 nov 1998 109

A tiacutetulo de exemplo a Resoluccedilatildeo 19696 traz alguns requisitos especiacuteficos para o consentimento livre e esclarecido de pessoas ou populaccedilotildees vulneraacuteveis no item IV3

110 Um caso de niacutetida violaccedilatildeo aos princiacutepios bioeacuteticos em pesquisas envolvendo grupo vulneraacutevel foi o jaacute mencionado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm Conforme um dos colaboradores da pesquisa utilizar doentes mentais ainda que natildeo voluntaacuterios foi a melhor opccedilatildeo diante do fato de que o principal problema da sauacutede puacuteblica era justamente o das doenccedilas dentaacuterias razatildeo pela qual os fins justificariam os meios ainda mais considerando que o estudo foi utilizado em todo o mundo (Krasse B Sueacutecia usou deficiente mental como cobaia Folha de Satildeo Paulo 23 Set 1997 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas cliacutenicas sobre seus direitos 2005 p 61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo) sendo faacutecil criticar o fato depois de consumado (Krasse B The Vipeholm dental caries study recollections and reflections 50 years later J Dent Res 2001 80(9) 1785-8 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu op cit p 61) Mais uma vez cabiacutevel rememorar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () j) ser desenvolvida preferencialmente em indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida

112 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO eacute clara ao afirmar em seu art 7 aliacutenea b no que diz respeito a indiviacuteduos sem a capacidade para fornecer consentimento que a pesquisa soacute deve ser realizada para o beneficio direto agrave sauacutede do indiviacuteduo envolvido estando sujeita agrave autorizaccedilatildeo e agraves condiccedilotildees de proteccedilatildeo prescritas pela legislaccedilatildeo e caso natildeo haja nenhuma alternativa de pesquisa de eficaacutecia comparaacutevel que possa incluir sujeitos de pesquisa com capacidade para fornecer consentimento

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1217

rigoroso na ponderaccedilatildeo do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da autonomia e justiccedila expondo tais pessoas a riscos miacutenimos menores ateacute do que aqueles normalmente empregados em pesquisas com justificativa intriacutenseca3

Se essas diretrizes natildeo forem observadas teremos uma pesquisa carente de justificativa eacutetica e de legitimidade

6 Conclusotildees

Em virtude dos limites inerentes agrave nossa abordagem nessas consideraccedilotildees finais natildeo apresentaremos verdades irrefutaacuteveis e definitivas sobre um tema que ainda carece de um importante debate acadecircmico e normativo Com efeito o que pretendemos modestamente foi evidenciar alguns paradigmas que possam ensejar a conciliaccedilatildeo da dignidade da pessoa humana com a continuidade dos processos de investigaccedilatildeo cientiacuteficos realizados em seres humanos Para tanto podemos sintetizar nosso pensamento nas seguintes conclusotildees

a) O desenvolvimento da ciecircncia mormente em aacutereas afeitas agrave vida e a ocorrecircncia de pesquisas francamente contraacuterias agrave dignidade humana como ocorrido em vaacuterias passagens da Segunda Guerra ensejaram o surgimento da Bioeacutetica como um novo ramo do conhecimento

b) Deve-se limitar a atuaccedilatildeo da Bioeacutetica aos casos em que haacute conflito de valores quando dois princiacutepios eacutetica e moralmente admissiacuteveis natildeo podem coexistir

c) Haacute iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica Autonomia Beneficecircncia e Justiccedila aleacutem da Natildeo-Maleficecircncia - e as pesquisas em seres humanos

113 Ainda conforme o art 7 aliacutenea b da Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO quando se trata de pessoas incapazes Pesquisas sem potencial beneficio direto agrave sauacutede soacute devem ser realizadas excepcionalmente com a maior restriccedilatildeo expondo o indiviacuteduo apenas a risco e desconforto miacutenimos e quando se espera que a pesquisa contribua com o benefiacutecio agrave sauacutede de outros indiviacuteduos na mesma categoria sendo sujeitas agraves condiccedilotildees prescritas por lei e compatiacuteveis com a proteccedilatildeo dos direitos humanos do indiviacuteduo A recusa de tais indiviacuteduos em participar de pesquisas deve ser respeitada

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1218 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

d) Os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica

pluralista aberta e receptiva e satildeo um poderoso instrumento

para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

razotildees pelas quais eacute descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos

debates bioeacuteticos

e) O avanccedilo tecnoloacutegico traz cada vez mais a diminuiccedilatildeo de

limites teacutecnicos ao ser humano o que conduz ao debate sobre a

necessidade de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees para

evitar eventuais abusos especialmente na aacuterea biomeacutedica

elevando a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que

demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave

vida

0 A concretizaccedilatildeo dos objetivos atuais da humanidade

especialmente em relaccedilatildeo agrave expectativa de vida depende

dentre outros fatores da pesquisa cientiacutefica e da

experimentaccedilatildeo em seres humanos Poreacutem eacute preciso tomar o

Homem como sujeito de pesquisa sem trataacute-lo como mero

instrumento mas como um fim em si mesmo

g) A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do

interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda

Guerra trouxeram agrave tona a questatildeo da eacutetica na pesquisa

evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana e

de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa

em seres humanos gerando uma seacuterie de normas internacionais

e nacionais a exemplo do Coacutedigo de Nuremberg da

Declaraccedilatildeo de Helsinque e no Brasil da Resoluccedilatildeo n 19696

do Conselho Nacional de Sauacutede

h) Dentre os principais aspectos da Resoluccedilatildeo n 19696 do

Conselho Nacional de Sauacutede encontramos a vinculaccedilatildeo da

experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da

principiologia da Bioeacutetica a explicitaccedilatildeo de um rol de

exigecircncias para a eticidade na pesquisa as definiccedilotildees de

diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica como o

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1219

consentimento livre e esclarecido a vulnerabilidade e a

incapacidade a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em

Pesquisa -CONEP e a regulamentaccedilatildeo dos Comitecircs de Eacutetica e

Pesquisa - CEPs

i) O consentimento livre e esclarecido decorre da adoccedilatildeo do

princiacutepio da autonomia e pressupotildee dentre outras premissas a

capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os

aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos

possiacuteveis

j) A vulnerabilidade natildeo pode ser desconsiderada pelo

pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais ocorrendo

quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de

estudo por quaisquer motivos possuem a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto agrave

compreensatildeo sobre o experimento e a possibilidade de

livremente consentir com a pesquisa e dela desistir

k) A incapacidade ocorre quando as pessoas que seratildeo estudadas

na pesquisa natildeo possuem capacidade civil para dar o seu

consentimento soacute podendo ser levada adiante a pesquisa com a

intervenccedilatildeo de seus representantes legais implicando tambeacutem

no dever do pesquisador de cercar-se de cautelas eacuteticas

redobradas

1) As experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas

teleologicamcnte em dois grupos a) aquelas cujos objetivos

possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas

observadas as quais chamamos de pesquisas com justificativa

intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo

direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de

terceiros as quais denominamos pesquisas com justificativa

extrinseca

m) Em todo experimento eacute necessaacuterio averiguar se a justificativa -

seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1220 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima jaacute que a

justificativa soacute pelo fato de ser intriacutenseca natildeo seraacute

necessariamente legiacutetima nem tampouco soacute por ser extriacutenseca

seraacute necessariamente ilegiacutetima

n) Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a

realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser

encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca

como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

o) A interpretaccedilatildeo do item III1 letra d da Resoluccedilatildeo n 19696

que vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens

significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de

infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila natildeo deve ser literal nem

assistemaacutetica devendo ser considerada a incidecircncia de um

outro principio ainda que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que

eacute o da solidariedade

p) Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita ao princiacutepio da

solidariedade na Resoluccedilatildeo n 19696 a sua aplicaccedilatildeo eacute

cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele

texto afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua

relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-

humanitaacuteria

q) Logo mesmo que natildeo haja nenhum beneficio direto ao sujeito

de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma

justificativa a qual pode ser a intenccedilatildeo sua e do pesquisador

de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e

consequumlentemente para todos os demais seres humanos Aleacutem

disso natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica

sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao

respeito agrave dignidade da pessoa humana

r) A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em

seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade

poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1221

diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica listadas na

Resoluccedilatildeo n 19696 especialmente no item III3

s) Algumas exigecircncias satildeo puramente objetivas e uma vez

desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da

justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca

t) Nas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa

ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou natildeo vir a ter um

benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

u) Outras exigecircncias possuem um certo grau de subjetividade em

maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da

pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo

exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as

circunstacircncias faacutetiacutecas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo

de valor iacutensito a cada um

v) Quando se tratar de exigecircncias subjetivas deveraacute ser levado em

conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma

justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca

w) Quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou

sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal

no resultado do experimento tratando-se portanto de

justificativa extriacutenseca os riscos a que se submete devem ser

considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a

justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o beneficio esperado

tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa

submetida ao experimento

x) Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do

sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero

instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila e por outro

lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute

menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa

consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1222 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a

algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

y) Pode ser que diante de certas peculiaridades ou

vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo

considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa

em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua

realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo

eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima

z) Como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras

pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis

mas sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas agrave luz da

solidariedade o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias

objetivas agrave risca deve ser ainda mais rigoroso na ponderaccedilatildeo

do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave

observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da

autonomia e justiccedila

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Page 7: BIOÉTICA E PESQUISAS EM SERES HUMANOS

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1193

O postulado da autonomia tem forte base teoacuterica John Stuart Mill por exemplo jaacute tinha afirmado que sobre si mesmo sobre seu corpo e sua mente o indiviacuteduo eacute soberano20 Emile Durkheim entendia a autonomia como a interiorizaccedilatildeo das normas21 Por sua vez Jean Piaget estudou a autonomia como a capacidade de coordenaccedilatildeo de diferentes perspectivas sociais com o pressuposto do respeito reciacuteproco22

Poreacutem talvez a autonomia tenha tido na teoria kantiana o seu mais importante manancial A doutrina do filoacutesofo prussiano ultrapassou geraccedilotildees atingindo contornos cosmopolitas e atemporais Suas obras satildeo analisadas sob diferentes prismas idiomas e culturas sendo largamente estudado e recepcionado pela Bioeacutetica A autonomia em obra originalmente publicada em 1785 eacute para o filoacutesofo o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racionar23 E assim o pressuposto para a racionalidade da conduta bem como um princiacutepio supremo da moralidade vez que implica simultaneamente na vontade da norma universal (imperativo categoacuterico) e no respeito agrave dignidade da pessoa humana Registrou Kant na mesma obra que I autonomia da vontade eacute aquela sua propriedade graccedilas agrave qual ela eacute para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer) O princiacutepio da autonomia eacute portanto natildeo escolher senatildeo de modo a que as maacuteximas da escolha estejam incluiacutedas simultaneamente no querer mesmo como lei universal 24

Foi natural assim que a Bioeacutetica adotasse como fundamento o princiacutepio da autonomia2

O Relatoacuterio Belmont propocircs que a autonomia incorpora pelo menos duas convicccedilotildees eacuteticas a primeira que os indiviacuteduos devem ser tratados como agentes

meacutedicos possiacuteveis O doente e o meacutedico devem decidir juntos o domiacutenio do tratamento O doente deveraacute exprimir o seu consentimento livre apoacutes ter sido informado de maneira adequada Vale conferir a doutrina de COHEN Claacuteudio MARCOLINO Joseacute Aacutelvaro Marques Relaccedilatildeo Meacutedico-Paciente Autonomia amp Paternalismo In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo 1999 p 83-94

20 MILL John Stuart On Liberty Boston Collier 1909 p 5 21 Cf SEGRE Marco SILVA F L SCHRAMM F R O contexto histoacuterico semacircntico e filosoacutefico do

principio de autonomia Disponiacutevel em lthttpvwwvportaldomedicoorgbrrevistabiol v6conthistoricohtmgt Acessado em 04 maio 2006 Vide tambeacutem Joseacute Roberto Goldim Princiacutepio do respeito agrave pessoa ou da autonomia Disponiacutevel em lthttpwwwbioeticaufrgsbrautonomihtmgt Acessado cm 23 maio 2006

22 Cf KESSELRING T Jean Piaget Petroacutepolis Vozes 1993 p 173-189 23 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 1992 p 79 24 Id Ibid p 85 25 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO de 2005 agasalha o princiacutepio

da autonomia Seu art 5 por exemplo estatui que Deve ser respeitada a autonomia dos indiviacuteduos para tomar decisotildees quando possam ser responsaacuteveis por essas decisotildees e respeitem a autonomia dos demais Devem ser tomadas medidas especiais para proteger direitos e interesses dos indiviacuteduos natildeo capazes de exercer autonomia

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autocircnomos e a segunda que as pessoas com autonomia diminuiacuteda devem ser protegidas Desta forma divide-se em duas exigecircncias morais separadas a exigecircncia do reconhecimento da autonomia e a exigecircncia de proteger aqueles com autonomia reduzida Esta uacuteltima exigecircncia vincula-se agrave questatildeo da vulnerabilidade que pode ser observada em certas pessoas ou grupos e que seraacute mais adiante abordada

Por sua vez o principio da beneficecircncia de acordo com Clotet e Kipper deve ser entendido como uma dupla obrigaccedilatildeo primeiramente a de natildeo-causar danos e em segundo lugar a de maximizar o nuacutemero de possiacuteveis benefiacutecios e minimizar os prejuiacutezos26

Tambeacutem este postulado mereceu larga abordagem doutrinaacuteria muitas vezes em contraponto ao princiacutepio da natildeo-maleficecircncia que perfunctoriamente impotildee a obrigaccedilatildeo de natildeo-causar intencionalmente danos a outrem

Tal preceito deita raiacutezes no discurso hipocraacutetico na expressatildeo primum non nocere Mas tambeacutem eacute possiacutevel vinculaacute-lo aacute teoria kantiana jaacute que o imperativo categoacuterico conforme o qual Age segundo maacuteximas que possam simultaneamente ter-se a si mesmas por objecto como leis universais da natureza exige uma vontade absolutamente boa ou seja afasta qualquer possibilidade de agir que natildeo seja em benefiacutecio do outro27

Jaacute em 1930 Sir David Ross estabeleceu o conceito de dever prima facie propondo que no caso de eventual conflito entre beneficecircncia e natildeo-maleficecircncia prevaleccedila esta uacuteltima28

Frankena em 1963 escreveu que o princiacutepio da beneficecircncia natildeo nos ensina como fazer a distribuiccedilatildeo do bem e do mal apenas determina que promovamos o primeiro e evitemos o segundo2 Observa-se assim que a natildeo-maleficecircncia eacute entendida como parte da beneficecircncia

O Relatoacuterio Belmont foi influenciado pelo pensamento de Frankena jaacute que tratou a natildeo-maleficecircncia como um desdobramento natural da beneficecircncia ao estabelecer duas regras gerais que devem ser formuladas como complementares das

26 CLOTET amp KIPPER Princiacutepios da beneficecircncia e natildeo-maleficecircncia In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 45

27 Id Ibidp 80-81 28 ROSS W D The right and lhe Good Oxford Clarendon 1930 p 21-22 apud GOLDIM Joseacute Roberto

Principio da Beneficecircncia Disponiacutevel em lthttpwwwbioeticaufrgsbrbenefichtmgt Acessado em 23 maio de 2006

29 Quando se manifestam exigecircncias conflitantes o mais que ele pode fazer eacute aconselhar-nos a conseguir a maior porccedilatildeo possiacutevel de bem em relaccedilatildeo ao mal Cf FRANKENA W K Eacutetica Rio de Janeiro Zahar 1981 p 61-73 apud GOLDIM Joseacute Roberto op cit

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accedilotildees beneacuteficas a) natildeo-causar o mal e b) maximizar os benefiacutecios e minimizar os danos

A seu turno o princiacutepio da justiccedila pode ser resumido no dever de imparcialidade na distribuiccedilatildeo dos riscos e benefiacutecios inerentes agrave pesquisa bem como no tratamento igualitaacuterio aos iguais30 embora naturalmente haja dificuldades na determinaccedilatildeo de quem eacute ou-natildeo igual31 Implica ainda necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa

Segundo o Relatoacuterio Belmont haveraacute injusticcedila quando eacute imposto um dano ou encargo indevidamente ou quando um benefiacutecio eacute negado a algueacutem de maneira injustificada Aleacutem disso reconhece dificuldades na determinaccedilatildeo de um criteacuterio para a distribuiccedilatildeo dos benefiacutecios havendo vaacuterias possibilidades a cada um igualmente a cada um na medida da sua necessidade a cada um conforme seu esforccedilo individual a cada um de acordo com seu meacuterito2

Alguns autores defendem que a importacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica deve ser minorada postulando por uma reflexatildeo mais autocircnoma Nos parece que esse eacute

30 Eacute o princiacutepio da justiccedila que obriga a garantir a distribuiccedilatildeo justa equumlitativa e universal dos benefiacutecios dos serviccedilos de sauacutede Impotildee que todas as pessoas sejam tratadas de igual maneira natildeo obstante suas diferenccedilas Cf SANTOS Celeste Cordeiro dos O equiliacutebrio do pecircndulo a Bioeacutetica e a lei implicaccedilotildees meacutedico-legais Satildeo Paulo iacutecone 1998 p 45

31 O princiacutepio da igualdade tem suscitado importantes debates filosoacuteficos na Histoacuteria da humanidade dando ensejo a interpretaccedilotildees as mais variadas Aristoacuteteles vinculou a igualdade agrave justiccedila que pode ser comutativa ou distributiva (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos Satildeo Paulo Editora Nova Cultural 1996) Haacute ainda os autores nominalistas que entendem que a desigualdade eacute universal e portanto a igualdade natildeo passa de um nome Jaacute LOCKE John Ensaio sobre o governo civil Traduccedilatildeo Carmo Nunes Porto Seacuteculo XX 1986 e Montcsquieu Charles Secondat de O espirito das leis Satildeo Paulo Martins Fontes 1993 ao contraacuterio entendiam que a igualdade entre as pessoas era absoluta pertencendo assim ao grupo denominado de idealistas ROSSEAU Jean-Jacques Discurso sobre a origem das desigualdades entre os homens Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 de sua parte embora tambeacutem pertenccedila a essa uacuteltima vertente admitia a existecircncia de dois tipos de desigualdades a natural (ou fiacutesica) e a moral (ou poliacutetica) Vale entretanto trazer a lume as percucicntes anotaccedilotildees de Leila Pinheiro Bellintani sobre o tema Atraveacutes da anaacutelise histoacuterica do princiacutepio da igualdade [] percebe-se claramente que este preceito passou por intensa evoluccedilatildeo tendo sua conceituaccedilatildeo moldado-se atraveacutes dos tempos agraves novas necessidades sociais Apesar do constante aprimoramento do conceito dos ideais isonocircmicos natildeo se pode dizer que as concepccedilotildees anteriores foram ultrapassadas mas sim que houve uma agregaccedilatildeo de significados no decorrer da histoacuteria fazendo do principio da igualdade o preceito complexo que ora se apresenta Assim os estaacutegios evolutivos natildeo se deram de forma isolada ou independente Ao reveacutes se acumularam como telhas sobrepostas ampliando sempre o leque de acepccedilotildees a serem salvaguardadas ocorrendo o que se pode denominar de sobreposiccedilatildeo de significados Predomina portanto a ideacuteia de cumulaccedilatildeo e natildeo de alternacircncia entre eles Pode-se dizer portanto que hodiernamente o princiacutepio da igualdade possui diversas faces que se integram e que devem ser constantemente observadas pelos aplicadores das leis legisladores e pela proacutepria comunidade BELLINTANI Leila Pinheiro Accedilatildeo Afirmativa e os Princiacutepios do Direito Rio de Janeiro Lumen Juacuteris 2006 p 19-20

32 Impossiacutevel deixar de fazer menccedilatildeo aqui agrave noccedilatildeo de justiccedila distributiva de Aristoacuteteles que tem como base uma igualdade geomeacutetrica e consiste em dar a cada um o que lhe eacute devido mas considerando a excelecircncia que cada um possui o seu valor (areteacute) para a polis () porque aquilo que eacute distribuiacutedo agraves pessoas deve secirc-lo de acordo com o meacuterito de cada uma Op cit p 198

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um falso dilema jaacute que princiacutepios natildeo devem ser aplicados como regras e portanto natildeo representam uma camisa-de-forccedila para a Bioeacutetica Embora os objetivos deste trabalho natildeo nos permitam aprofundar a discussatildeo em torno da sua origem e aplicabilidade celeuma muito comum na ciecircncia juriacutedica natildeo seraacute despiciendo relembrar ao menos que haacute uma distinccedilatildeo juriacutedica entre princiacutepios e regras e que enquanto estas uacuteltimas satildeo aplicadas a partir da oacutetica do ali or nothing excluindo-se mutuamente os primeiros convivem entre si natildeo se excluem e representam motivos para decidir em determinado sentido

Portanto podemos afirmar que os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica pluralista aberta e receptiva Aleacutem disso pragmaticamente a aplicaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo dos princiacutepios em cada caso concreto eacute poderoso instrumento para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

Por tudo isso parece descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos debates bioeacuteticos Tanto assim eacute que a tendecircncia moderna eacute no sentido do reconhecimento de princiacutepios universais da Bioeacutetica Importante anotar por exemplo que o uacuteltimo documento internacional acerca do tema a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO datada de 2005 eacute fortemente principioloacutegica e dentre outros aspectos deliberou ser necessaacuterio e oportuno que a comunidade internacional declare princiacutepios universais que proporcionaratildeo uma base para a resposta da humanidade aos sempre crescentes dilemas e controveacutersias que a ciecircncia e a tecnologia apresentam agrave raccedila humana e ao meio ambiente

Deve-se lembrar finalmente que a abordagem dos princiacutepios da Bioeacutetica em separado tem uma justificativa puramente didaacutetica jaacute que eles natildeo podem ser cindidos na sua conceituaccedilatildeo e muito menos na sua aplicaccedilatildeo praacutetica34

4 Experimentaccedilatildeo em seres humanos aspectos da normatizaccedilatildeo nacional e internacional

Sobre princiacutepios a literatura juriacutedica eacute vasta Vide vg ALEXY Robert Teoria de tos Derechos Fundamentales Madrid Centro de Estuacutedios Constitucionales 1997 p 81-172 DWORKFN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1997 AacuteVILA Humberto Teoria dos Princiacutepios da definiccedilatildeo agrave aplicaccedilatildeo dos princiacutepios juriacutedicos 2 ed Satildeo Paulo Malheiros Editores 2003 ROTHEMBURG Waller Claudius Princiacutepios Constitucionais Porto Alegre Seacutergio Antonio Fabris 1999

4 Nesse sentido GUIMARAtildeES Maria Carolina S Eacutetica biomeacutedica e pesquisa em grupos humanos Revista Meacutedica de Minas Gerais v 3 n 1 p 52-53 janmar 1993 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO destina o seu art 26 agrave inter-relaccedilatildeo e complementaridade dos princiacutepios dispondo que A presente Declaraccedilatildeo deve ser considerada em sua totalidade e seus princiacutepios devem ser compreendidos como complementares e inter-relacionados Cada princiacutepio deve ser interpretado no contexto dos demais de forma pertinente e adequada a cada circunstacircncia

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No seacuteculo XVI Galileu passou a buscar a verdade atraveacutes da experimentaccedilatildeo e da observaccedilatildeo das coisas desvinculando-se da verdade dos escolaacutesticos ou da Igreja Esse eacute considerado o marco de referecircncia das origens da ciecircncia experimental a qual terminou por proporcionar a Revoluccedilatildeo Cientiacutefica nos seacuteculos seguintes35 Esta uacuteltima abriu as portas para uma nova era na humanidade multiplicando o conhecimento e as descobertas gerando tecnologia A tecnologia passou a imprimir uma velocidade cada vez maior nas transformaccedilotildees cientiacuteficas e sociais A velocidade com que as mudanccedilas ocorrem por sua vez municia o Homem com novas perspectivas e instrumentos sempre mais apurados de investigaccedilatildeo o que implica em mais tecnologia36 Investigaccedilatildeo pesquisa conhecimento mudanccedilas tecnologia velocidade formam uma espeacutecie de ciacuterculo virtuoso - natildeo-vicioso31 e satildeo palavras indissociaacuteveis da realidade nos uacuteltimos tempos a partir do seacuteculo XX no qual testemunhamos pelo menos duas espantosas revoluccedilotildees a atocircmica e a molecular38

Todo esse acervo mudou por completo as sociedades e o pensamento humano e natildeo se trata de um processo jaacute findo Pelo contraacuterio muito ainda estaacute por vir Natildeo se sabe aliaacutes se o Homem encontraraacute fronteiras tecnologicamente intransponiacuteveis Essa perspectiva de escassez de barreiras teacutecnicas conduz ao debate sobre a necessidade

35 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 edbdquo rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179

36 Por exemplo vale lembrar o ocorrido durante o desenrolar dos estudos do projeto genoma humano Segundo Jordan (1993) o verdadeiro objetivo inicial do PGH natildeo era o sequumlenciamento muito complexo caro e trabalhoso mas um mapeamento detalhado do genoma humano No decorrer do processo os progressos tecnoloacutegicos foram tatildeo grandes que propiciaram o sequumlenciamento mesmo antes do prazo previsto Cf GOLDIM Joseacute Roberto MATTE Uacutersulla Projeto Genoma Humano - HUGO Disponiacutevel em lthttpwwwufrgsbrbioeticagenomahtmgt Acessado em 28 maio de 2006

37 Natildeo se desconhece entretanto que o ser humano eacute capaz visando objetivos condenaacuteveis natildeo apenas de bloquear pesquisas mas tambeacutem de manipulaacute-las ou de realizaacute-las de forma direcionada propositadamente sem a observacircncia de criteacuterios cientiacuteficos Todavia antes de examinar a transmissatildeo de conhecimentos eacute necessaacuterio acenar para a sua fonte primaacuteria a pesquisa cientiacutefica Tambeacutem aiacute natildeo faltam aacutereas de conflito Foram sobretudo analisadas as frequumlentes ameaccedilas ao conhecimento e agrave informaccedilatildeo cientiacutefica provenientes de decisotildees poliacuteticas ou da proteccedilatildeo de interesses particulares Dentre as decisotildees poliacuteticas a diretora do Instituto Nacional da Seguranccedila e da Sauacutede Ocupacional (NIOSH) dos EUA Linda Rosenstock recordou aquelas assumidas pelo Congresso nos uacuteltimos anos dentro de um quadro de reduccedilatildeo de muitos programas para a proteccedilatildeo aos trabalhadores com a finalidade de bloquear a utilizaccedilatildeo de pesquisas no campo das artropatias do trabalho e de estudos sobre a relaccedilatildeo entre a motorizaccedilatildeo e os tumores e tambeacutem encobrir o fato de duas organizaccedilotildees internacionais designadas para a proteccedilatildeo agrave sauacutede a Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e a Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho estatildeo sob a acusaccedilatildeo de ter manipulado os relatoacuterios teacutecnicos relativos agrave induacutestria do asbesto Dentre os interesses particulares prcvalcccm aqueles das induacutestrias que encomendam pesquisas com a finalidade de demonstrar a inexistecircncia de efeitos nocivos (o exemplo mais macroscoacutepico concerne ao tabaco) ou entatildeo aumentar as incertezas para evitar fazer o que eacute necessaacuterio com base em conhecimentos jaacute comprovados ou mesmo sugerir procedimentos que alongam indefinidamente os periacuteodos de intervenccedilatildeo Cf BERLINGUER Giovanni Bioeacutetica Cotidiana Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2004 p 147-148

38 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia op cit p 159-179

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de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees tendo em conta que a teoria de haacute muito jaacute advertiu1 e a experiecircncia jaacute nos ensinou como adiante se veraacute que a ausecircncia de limites pode levar ao abuso

Embora isso possa ocorrer em vaacuterios campos como vg a economia e a poliacutetica sem duacutevida a aacuterea biomeacutedica eacute uma das que mais merecem nossa atenccedilatildeo natildeo soacute porque estaacute entre as mais influenciadas por essas transformaccedilotildees mas tambeacutem porque eacute uma das que mais tem potencial de desenvolvimento aleacutem do fato oacutebvio de estar diretamente ligada agrave vida humana Exatamente por isso cresce a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave vida especialmente a Medicina40

O acreacutescimo jaacute obtido na expectativa de vida do Homem que praticamente dobrou nos uacuteltimos dois seacuteculos decorrente de vaacuterios fatores dentre os quais uma verdadeira revoluccedilatildeo terapecircutica41 natildeo eacute suficiente As pessoas querem viver ainda mais e com melhor qualidade Por isso cobram mais avanccedilos tecnoloacutegicos nessa aacuterea despertando interesses diversos que vatildeo dos humanitaacuterios aos puramente comerciais e econocircmicos Chega-se a se falar ateacute mesmo em um direito agrave pesquisa que deve figurar entre as liberdades fundamentais unanimemente reconhecidas42

Para que esses desejos se tornem viaacuteveis eacute preciso conhecer cada vez mais profundamente a complexa maacutequina que eacute o corpo humano desenvolver novos faacutermacos medicamentos vacinas e terapias para combater doenccedilas descobrir a fonte da juventude atraveacutes de meacutetodos de desaceleraccedilatildeo - ou quiccedilaacute interrupccedilatildeo - da degeneraccedilatildeo celular dentre outras possibilidades e desafios

Por exemplo eacute conhecida nos meios juriacutedicos a passagem que adverte () mas trata-se de uma experiecircncia eterna que todo homem que possui poder eacute levado a dele abusar ele vai ateacute onde encontra limites Quem diria Ateacute a virtude precisa de limites MONTESQUIEU Charles de Secondat op cit p 170

40 Natildeo eacute agrave toa portanto que em interessante estudo sobre as exigecircncias referentes aos aspectos eacuteticos da pesquisa em revistas cientiacuteficas brasileiras se chegou agrave conclusatildeo de que As revistas de medicina e enfermagem apresentaram maior preocupaccedilatildeo com as orientaccedilotildees eacuteticas do que as revistas natildeo-meacutedicas classificadas nos grupos de miscelecircncia e odontologia sugerindo que o debate eacutetico da experimentaccedilatildeo em seres humanos estaacute mais difundido nas aacutereas meacutedica e de enfermagem do que em outras aacutereas da sauacutede Tal no entanto natildeo representa necessariamente um dado a ser festejado pois o resultado global comprovou que 791 das revistas cientiacuteficas estudadas natildeo fazem qualquer referecircncia aos aspectos eacuteticos Cf T SARDENBERG S S MUumlLLER H R PEREIRA R A DE OLIVEIRA W S HOSSNE Anaacutelise dos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos contidos nas Instruccedilotildees aos Autores de 139 rev istas cientiacuteficas brasileiras Revista da Associaccedilatildeo Meacutedica do Brasil v 45 n 4 p 295-302 1999

41 Sobre a chamada revoluccedilatildeo terapecircutica vide dentre outros BERNARD Jean La Bioeacutethique Paris Dominos Flammarion 1994 p 14-33

42 Conforme LAFON Claudc De la Biologie agrave Ia Bioeacutethique Paris Ellipses 2006 p 30

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A concretizaccedilatildeo desses objetivos depende de inuacutemeros fatores ligados agrave pesquisa cientiacutefica43 dentre os quais um que eacute o ponto central deste trabalho a experimentaccedilatildeo em seres humanos De fato o progresso do nosso conhecimento no passado e no futuro estaacute intimamente ligado agrave necessidade de observaccedilatildeo do funcionamento e da reaccedilatildeo do corpo e da mente humanas44

Em outras palavras eacute preciso tomar o ser humano como sujeito de pesquisa45

Esse fato bom que se diga natildeo eacute exatamente novo tem ocorrido no correr dos tempos suscitando questotildees eacuteticas de suma relevacircncia pois nem sempre as pessoas estudadas tiveram o trato adequado

A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda Guerra mormente as realizadas pelos japoneses e nazistas alematildees tais como a infestaccedilatildeo de prisioneiros com doenccedilas para testar vacinas e a esterilizaccedilatildeo e amputaccedilatildeo de membros46 trouxeram agrave tona a questatildeo da

43 A discussatildeo a respeito das pesquisas natildeo pode se limitar agravequelas de natureza meacutedica e farmacoloacutegica onde os impactos e riscos satildeo maiores e mais perceptiacuteveis E ampla a definiccedilatildeo de pesquisas em seres humanos adotada pela Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede conforme adiante se veraacute Leonard M Martin C Ss R preleciona O documento pretende regulamentar toda pesquisa em seres humanos e natildeo apenas pesquisas puramente biomeacutedicas Nesta perspectiva pesquisas socioloacutegicas e antropoloacutegicas tambeacutem devem passar pelo crivo de Comitecircs de Eacutetica independentes e ser alvo de discussatildeo sobre sua eticidade MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

44 O efeito de um tratamento sobre o homem soacute pode ser observado no proacuteprio homem Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

45 Esse fenocircmeno ocorre em todas as aacutereas do conhecimento e natildeo apenas nas ciecircncias biomeacutedicas Na realidade quando se fala em experimentaccedilatildeo com seres humanos pensa-se quase que exclusivamente na experimentaccedilatildeo no campo da Medicina Essa vinculaccedilatildeo eacute compreensiacutevel pois a experimentaccedilatildeo na aacuterea meacutedica eacute mais visiacutevel e de efeitos mais patentes em geral Contudo eacute bom assinalar que seres humanos satildeo utilizados em experimentaccedilatildeo por profissionais e cientistas de outras aacutereas odontoacutelogos nutricionistas farmacecircuticos fisioterapeutas psicoacutelogos profissionais da aacuterea de educaccedilatildeo fiacutesica e de esporte educadores e tambeacutem economistas Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179 Leonard M Martin C Ss R com base em McNeill e Jonsen destaca que [] as experiecircncias antieacuteticas dos nazistas incluiacuteram colocar prisioneiros em cacircmaras de pressatildeo modificar a pressatildeo atmosfeacuterica e observar suas mortes estudar o impacto sobre o corpo humano de imersatildeo em aacutegua gelada por periacuteodos prolongados infectar os internos com tifo malaacuteria e outras doenccedilas para testar drogas e vacinas esterilizaccedilatildeo e castraccedilatildeo procurando meacutetodos eficazes para esterilizaccedilatildeo em massa administrar venenos para estudar os efeitos letais e estudos com gecircmeos tipo infectando um matando os dois e comparando os corpos em autoacutepsia No atinente a experiecircncias japonesas MARTIN informa que no ala de desenvolver armas bioloacutegicas [] os japoneses atacaram pelo menos onze cidades com armas bioloacutegicas e infestaram uma cidade com pulgas portadores da peste bubocircnica A Unidade 731 tambeacutem era uma prisatildeo onde os prisioneiros foram submetidos a experiecircncias desumanas Houve cirurgia experimentais pessoas foram desidratadas ateacute a morrer alguns tiveram braccedilos congelados e depois degelados usando vaacuterios meacutetodos com a consequumlecircncia de que a carne apodreceu e caiu o fiacutegado de outras pessoas foi exposto por longos

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eacutetica na pesquisa evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana47 e de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa em seres humanos48

Como resposta agraves atrocidades praticadas na Segunda Guerra foi instituiacutedo em 1947 no acircmbito internacional pelo Tribunal de Nuremberg que julgou vinte e trecircs criminosos de guerra nazistas dos quais vinte meacutedicos ligados agrave experimentaccedilatildeo em pessoas49 o denominado Coacutedigo de Nuremberg o qual estabeleceu as diretrizes gerais para pesquisa em seres humanos A doutrina destaca como principais conquistas do coacutedigo o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa em retirar-se do experimento e de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias deste bem como a necessidade de estudos preacutevios sobre a importacircncia da pesquisa e os seus riscos aleacutem da comprovaccedilatildeo da capacidade dos pesquisadores50

Um ano depois a humanidade assiste agrave proclamaccedilatildeo agora pela Assembleacuteia Geral das Naccedilotildees Unidas de um outro documento de suma importacircncia a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos que embora de caraacuteter geral alberga

periacuteodos ao raio-X houve casos do sangue da pessoa ser substituiacutedo por sangue de cavalo e quando as cobaias humanas natildeo serviam mais para as experiecircncias foram executadas O autor ainda ressalta que diferentemente dos alematildees que foram condenados alguns inclusive enforcados os americanos resolveram poupar os japoneses permitindo que continuassem suas carreiras MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

4 Haacute quem afirme - sem razatildeo ao nosso ver - que a dignidade eacute um conceito inuacutetil um mero slogan e que natildeo significaria mais do que o respeito pelas pessoas e por sua autonomia Nesse sentido vide vg MACKLIN Ruth Dignity is a useless concept Brilish Medica Journal v 327 p 20-27 dez 2003 Disponiacutevel em lthttpbmjbmjjournalscomcgicontentfull3277429l419gt Aacessado em 27 maio de 2006 Em sentido inverso sobre as relaccedilotildees entre a Bioeacutetica e a dignidade vide dentre outros ADORNO Roberto La bioegravetique et la dignitegrave de Ia persone Paris Presses Universitaires de France 1997 Os documentos internacionais mencionam o elo entre Bioeacutetica e dignidade A jaacute mencionada Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten por exemplo afirma textualmente que A pesquisa e experiecircncia com seres humanos devem ser realizadas harmonizando a liberdade da ciecircncia e o respeito da dignidade humana

48 A experimentaccedilatildeo em seres humanos causa impacto porque as pessoas temem o abuso Os abusos jaacute ocorreram estatildeo ocorrendo c ainda ocorreratildeo mas proibir o uso natildeo eacute a melhor maneira de impedir o abuso Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

49 Estima-se que centenas de meacutedicos atuaram nos campos de concentraccedilatildeo dos quais pelo menos setenta teriam participado de experimentos com seres humanos A maioria dos meacutedicos de maior expressatildeo conseguiram escapar do julgamento como foi o caso de Josef Mengele principal meacutedico do campo de extermiacutenio de Auschwitz que fugiu e chegou a viver 14 anos no Brasil onde morreu afogado em Bertioga em 1979 O julgamento levou oito meses As sentenccedilas e o Coacutedigo de Nuremberg foram anunciados conjuntamente em 19 de agosto de 1947 Sete acusados foram condenados agrave morte Cf CREMESP Diretrizes e Declaraccedilotildees Disponiacutevel em lthttpvwvbiocticaorgbrlegislacaooutras_diretrizesintegraphpgt Acessado em 30 maio 2006 Discute-se hoje a validade cientiacutefica dos experimentos realizados bem como se eacute eacutetico utilizar os resultados obtidos Nesse sentido vide mateacuteria intitulada Doutores da agonia publicada na revista Superinteressante ed 225 abr2006 p 52-61

50 Cf FREITAS Corina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 195

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direitos que natildeo podem ser olvidados quando da experimentaccedilatildeo com seres humanos a exemplo da dignidade da igualdade e da liberdade Aleacutem disso haacute diversas ligaccedilotildees entre a Declaraccedilatildeo e os princiacutepios da Bioeacutetica51

Assim como a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos o Coacutedigo de Nuremberg proclama criteacuterios princiacutepios miacutenimos e irredutiacuteveis para eticidade da pesquisa em seres humanos Ambas as declaraccedilotildees embora de grande importacircncia para a Bioeacutetica satildeo normalmente entendidas como desprovidas de instrumentos adequados de obrigatoriedade52 e de mecanismos sancionatoacuterios de modo que sua infraccedilatildeo na maioria dos casos tem gerado apenas sanccedilotildees morais

Natildeo-obstante o estabelecido no Coacutedigo de Nuremberg - e na Declaraccedilatildeo Universal - as violaccedilotildees continuaram a ocorrer inclusive nos paiacuteses signataacuterios De fato por exemplo nos Estados Unidos teve continuidade como se nada houvesse acontecido a famosa pesquisa sobre siacutefilis em Tuskegee no condado de Macon Alabama financiada com recursos federais onde especialmente negros e pobres acreditavam que estavam se submetendo a um tratamento especial gratuito quando na verdade nada recebiam embora jaacute houvesse medicamentos disponiacuteveis servindo como verdadeiras cobaias entre 1932 e 1973 para que os pesquisadores pudessem acompanhar o desenvolvimento da doenccedila1 Ainda exemplificativamente foi iniciado em 1946 o chamado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm um dos mais famosos e importantes estudos de odontologia jaacute realizados no qual mais de 436 deficientes mentais crocircnicos internos da cidade de Lund no sul da Sueacutecia que natildeo tinham sequer a menor consciecircncia do que ocorria foram submetidos ateacute 1951 a uma dieta especial rica em accediluacutecar para provar que esta substacircncia provocava caacuteries sem que lhes fosse dado qualquer tratamento54

Por exemplo ao afirmar no seu art 1deg que todas pessoas satildeo dotadas de razatildeo e consciecircncia o documento da ONU reforccedila a ideacuteia de autonomia

52 Em relaccedilatildeo agrave Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Faacutebio Konder Comparato afirma que embora seja tecnicamente apenas uma recomendaccedilatildeo da ONU a seus membros os direitos ali definidos correspondem integralmente ao que o costume e os princiacutepios juriacutedicos internacionais reconhecem hoje como normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens) como a proacutepria Corte Internacional de Justiccedila tem entendido COMPARATO Faacutebio Konder A afirmaccedilatildeo histoacuterica dos Direitos Humanos 4 ed rev e atual Satildeo Paulo Saraiva 2005 p 223-224

53 Vide vg a respeito REVERBY S M More than Fact and Fiction Cultural Memory and the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 31 p 22-28 2001 BRANDT A M Racism and Research The Case of the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 8 p 21-29 1978 BEECHER H K Ethics and Clinicai Research New England Journal of Medicine n 274 p 1354-1360 1966

54 Cf SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas clinicas sobre seus direitos 2005 p 55-61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

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Os avanccedilos tecnoloacutegicos cada vez mais raacutepidos reverberaram nas questotildees eacuteticas forccedilando novas e perioacutedicas revisotildees Necessaacuterio se fez portanto a rediscussatildeo do tema e o aprimoramento do sistema normativo Assim sobreveio a Declaraccedilatildeo de Helsinque elaborada pela Associaccedilatildeo Meacutedica Mundial em 1964 texto que foi revisto e ampliado em 1975 (Toacutequio)55 1983 (Veneza) 1989 (Hong Kong) 1996 (Somerset) e 2000 (Edimburgo) com o que foram incorporadas vaacuterias inovaccedilotildees Por exemplo a disposiccedilatildeo no sentido de que No final do estudo todos os pacientes participantes devem ter assegurado o acesso aos melhores meacutetodos comprovados profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos identificados pelo estudo E no atinente ao uso de placebo que Os benefiacutecios riscos dificuldades e efetividade de um novo meacutetodo devem ser testados comparando-os com os melhores meacutetodos profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos atuais Isto natildeo exclui o uso de placebo ou nenhum tratamento em estudo onde existam meacutetodos provados de profiacutelaxia diagnoacutestico e tratamento 56 Foi tambeacutem reforccedilada a recomendaccedilatildeo do Coacutedigo de Nuremberg sobre a necessidade de submissatildeo do protocolo de pesquisa agrave anaacutelise por um Comitecirc de Eacutetica independente do pesquisador

Outros textos e documentos que tratam da pesquisa merecem referecircncia como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos de 196657 o intitulado Diretrizes Internacionais para a pesquisa biomeacutedica em seres humanos elaborado conjuntamente pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e pelo Council for International Organizations of Medicai Sciences (1993) a Declaraccedilatildeo de Manila (1981) a Declaraccedilatildeo de Princiacutepios Eacuteticos dos Meacutedicos do Mercosul (1996) a Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten (2000) e a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da Unesco (2005)

Em que pese o entendimento de que haacute carecircncia de instrumentos imperativos que garantam a exigibilidade dos referidos documentos sem duacutevida eles

A respeito Leo Pessini e Christian de Paul Barehifontaine ensinam que Tal modificaccedilatildeo fieou conhecida como Helsinque II Entre outros pontos importantes foram incluiacutedos nesta revisatildeo os seguintes aspectos I) Exigecircncia de que o protocolo experimental seja aprovado por uma comissatildeo independente para efeito de apreciaccedilatildeo comentaacuterios e orientaccedilatildeo (item I 2) 2) Que os seres humanos natildeo sejam utilizados em pesquisas a menos que o consentimento consciente do paciente dado livremente tenha sido obtido depois do mesmo ter sido adequadamente informado sobre os objetivos meacutetodos benefiacutecios esperados riscos potenciais e inconvenientes da experimentaccedilatildeo e que ele tenha liberdade de se abster e de cancelar sua participaccedilatildeo a qualquer momento (art I 9) 3) Que o protocolo contenha embasamento eacutetico da pesquisa e a referecircncia de que foram obedecidos os princiacutepios da Declaraccedilatildeo de Helsinque (item I 12) 4) Que os interesses da ciecircncia e da sociedade jamais tenham precedecircncia sobre o bem-estar do indiviacuteduo (item III 4) PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Problemas aluais de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1994 p 131

56 GRECO Dirceu B Poder e injusticcedila na pesquisa envolvendo seres humanos In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 264

57 De acordo com o seu art 7o Ningueacutem poderaacute ser submetido a tortura nem a penas ou tratamentos crueacuteis desumanos ou degradantes Seraacute proibido sobretudo submeter uma pessoa sem seu livre consentimento a experiecircncias meacutedicas ou cientiacuteficas

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contribuiacuteram e contribuem significativamente na proteccedilatildeo ao ser humano objeto de pesquisa pois influenciaram a elaboraccedilatildeo de diretrizes vinculantes no plano individual de cada Estado a exemplo do Brasil como a seguir veremos Por outro lado importante anotar que uma harmonia consensual e global no atinente agrave pesquisa parece impossiacutevel tendo em conta que a cultura os objetivos e as condiccedilotildees cientiacuteficas dos diversos paiacuteses satildeo naturalmente diversificados58 Aliaacutes haacute quem chegue a afirmar que o pluralismo eacutetico em vigor nos dias de hoje natildeo nos permite mais falar em moral universal59

No Brasil a normatizaccedilatildeo se daacute principalmente atraveacutes de resoluccedilotildees do Conselho Federal de Medicina60 e do Conselho Nacional de Sauacutede Aliaacutes a primeira resoluccedilatildeo deste uacuteltimo oacutergatildeo - Resoluccedilatildeo n 01 de 13 de junho de 1988 - tratou justamente de normas de pesquisa em sauacutede tendo dedicado o seu Capiacutetulo II arts 4o a 16 aos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos Esse diploma legal foi posteriormente revogado pela Resoluccedilatildeo n 196 de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Sauacutede que eacute atualmente a base regulamentar da pesquisa no Brasil tratando das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos Esta Resoluccedilatildeo eacute na verdade uma revisatildeo da anterior tendo sido precedida de diaacutelogo entre governo e sociedade civil61

A Resoluccedilatildeo atual afirma jaacute em seu preacircmbulo a sua fundamentaccedilatildeo nos principais documentos internacionais que emanaram declaraccedilotildees e diretrizes sobre

58 Nesse contexto por tanto deve ser considerada a questatildeo do multicuturalismo Como bem ensinam Joseacute A Mainetti Joseacute L Mainettil Existen dificultades en la aplicacioacuten de los principos elaborados por los paiacuteses centrales y es una evidencia por ejemplo que resulta inapropiada la visioacuten estrccha de la autonomia y la aplicacioacuten riacutegida dei requisito dei consentimento informado al modo norteamericano en determinadas circunstancias y comunidades Es preciso entoces reconocer Ias diferenccedilas culturales y en base a eacutestas aplicar los princiacutepios sin renunciar a cllos en formas maacutes adecuadas al ethos particular MAINETTI Joseacute A MAINETTI Joseacute L Bioeacutetica y la experimentacioacuten humana In SOROKIN Patriacutecia (Coord) Bioeacutelica entre utopias y desarraigos Buenos Aires Ad-Hoc Villela 2002 p 190

59 Cf ENGELHARDT JUacuteNIOR Tristam apuei BAUZON Steacutephane La personne biojuridique Paris Press Universitaires de France 2006 p 63

60 Vide como exemplo a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro o qual no seu Capiacutetulo XII trata especificamente da pesquisa meacutedica

61 Cf FREITAS Corina Bontempo Duca de Eacutetica na pesquisa com seres humanos A experiecircncia brasileira In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutelica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 307

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pesquisas que envolvem seres humanos62 e que visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito agrave comunidade cientiacutefica aos sujeitos da pesquisa e ao Estado

Aleacutem disso vinculou a experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da principiologia da Bioeacutetica seja no preacircmbulo onde afirma que incorpora sob a oacutetica do indiviacuteduo e das coletividades os quatro referenciais baacutesicos da Bioeacutetica autonomia natildeo-maleficecircncia beneficecircncia e justiccedila entre outros seja no seu item III 1 que versa sobre a eticidade na pesquisa63

Entre as suas disposiccedilotildees encontramos definiccedilotildees de diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica pesquisa64 pesquisa envolvendo seres humanos65

protocolo de pesquisa66 pesquisador responsaacutevel67 instituiccedilatildeo de pesquisa68 promotor69

patrocinador70 risco da pesquisa71 dano associado ou decorrente da pesquisa72 sujeito da

62 Cila a Resoluccedilatildeo os seguintes documentos o Coacutedigo de Nuremberg (1947) a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem (1948) a Declaraccedilatildeo de Helsinque (1964 e suas versotildees posteriores de 1975 1983 e 1989) o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Poliacuteticos (ONU 1966 aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1992) as Propostas de Diretrizes Eacuteticas Internacionais para Pesquisas Biomeacutedicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMSOMS 1982 e 1993) e as Diretrizes Internacionais para Revisatildeo Eacutetica de Estudos Epidemioloacutegicos (C10MS 1991) III1 - A eticidade da pesquisa implica em a) consentimento livre e esclarecido dos indiviacuteduos-alvo e a proteccedilatildeo a grupos vulneraacuteveis e aos legalmente incapazes (autonomia) Neste sentido a pesquisa envolvendo seres humanos deveraacute sempre trataacute-los em sua dignidade respeitaacute-los em sua autonomia e defendecirc-los em sua vulnerabilidade b) ponderaccedilatildeo entre riscos e benefiacutecios tanto atuais como potenciais individuais ou coletivos (beneficecircncia) comprometendo-se com o maacuteximo de benefiacutecios e o miacutenimo de danos e riscos c) garantia de que danos previsiacuteveis seratildeo evitados (natildeo maleficecircncia)- d) relevacircncia social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimizaccedilatildeo do ocircnus para os sujeitos vulneraacuteveis o que garante a igual consideraccedilatildeo dos interesses envolvidos natildeo perdendo o sentido de sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria (justiccedila e equumlidade) (negritos originais)

64 111 Pesquisa classe de atividades cujo objetivo eacute desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizaacutevel O conhecimento generalizaacutevel consiste em teorias relaccedilotildees ou princiacutepios ou no acuacutemulo de informaccedilotildees sobre as quais estatildeo baseados que possam ser corroborados por meacutetodos cientiacuteficos aceitos de observaccedilatildeo e infercncia

65 112 Pesquisa envolvendo seres humanos pesquisa que individual ou coletivamente envolva o ser humano de forma direta ou indireta em sua totalidade ou partes dele incluindo o manejo de informaccedilotildees ou materiais

66 II3 Protocolo de Pesquisa Documento contemplando a descriccedilatildeo da pesquisa em seus aspectos fundamentais informaccedilotildees relativas ao sujeito da pesquisa agrave qualificaccedilatildeo dos pesquisadores e a todas as instacircncias responsaacuteveis

67 II-4 Pesquisador responsaacutevel pessoa responsaacutevel pela coordenaccedilatildeo e realizaccedilatildeo da pesquisa e pela integridade e bem-estar dos sujeitos da pesquisa

68 II5 - Instituiccedilatildeo de pesquisa - organizaccedilatildeo puacuteblica ou privada legitimamente constituiacuteda e habilitada na qual satildeo realizadas investigaccedilotildees cientiacuteficas

69 116 - Promotor - indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo responsaacutevel pela promoccedilatildeo da pesquisa 70 II7 - Patrocinador - pessoa fiacutesica ou juriacutedica que apoia financeiramente a pesquisa 71 II8 Risco da pesquisa - possibilidade de danos agrave dimensatildeo fiacutesica psiacutequica moral intelectual social

cultural ou espiritual do ser humano em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente II9 Dano associado ou decorrente da pesquisa agravo imediato ou tardio ao indiviacuteduo ou agrave coletividade com nexo causai comprovado direto ou indireto decorrente do estudo cientiacutefico

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pesquisa73 consentimento livre e esclarecido74 indenizaccedilatildeo75 ressarcimento6 Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (CEP)77 vulnerabilidade78 e incapacidade79

A Resoluccedilatildeo regulamentou os Comitecircs de Eacutetica e Pesquisa - CEPs80 em cujas funccedilotildees81 destaca-se a apreciaccedilatildeo do protocolo da pesquisa em todas as suas especificidades o que foi um grande passo no sentido da construccedilatildeo de padrotildees eacuteticos82

Haacute requisitos para a instituiccedilatildeo dos Comitecircs principalmente no atinente agrave sua composiccedilatildeo83

1110 Sujeito da pesquisa eacute o(a) participante pesquisado(a) individual ou coletivamente de caraacuteter voluntaacuterio vedada qualquer forma de remuneraccedilatildeo IIII Consentimento livre e esclarecido anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal livre de viacutecios (simulaccedilatildeo fraude ou erro) dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar formulada em um termo de consentimento autorizando sua participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa 1112 - Indenizaccedilatildeo - cobertura material em reparaccedilatildeo a dano imediato ou tardio causado pela pesquisa ao ser humano a ela submetida 1113 Ressarcimento - cobertura em compensaccedilatildeo exclusiva de despesas decorrentes da participaccedilatildeo do sujeito na pesquisa 1114 - Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa-CEP - colegiados interdisciplinares e independentes com munus puacuteblico de caraacuteter consultivo deliberativo e educativo criados para defender os interesses dos sujeitos da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrotildees eacuteticos 1115 Vulnerabilidade refere-se a estado de pessoas ou grupos que por quaisquer razotildees ou motivos tenham a sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido 1116 - Incapacidade - Refere-se ao possiacutevel sujeito da pesquisa que natildeo tenha capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido devendo ser assistido ou representado de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira vigente O CEP pode ser entendido como um oacutergatildeo controlador da pesquisa por um lado mas por outro eacute tambeacutem um oacutergatildeo que ajuda a harmonizar diversos interesses que como vimos podem ser os mais diversos e agraves vezes ateacute conflitantes Cf PALAacuteCIOS Marisa Eacutetica na pesquisa - 1 Eacutetica em pesquisa em seres humanos In PALAacuteCIOS Marisa MARTINS Andreacute PEGORARO Olinto A (Orgs) Eacutetica ciecircncia e sauacutede humana Petroacutepolis Vozes 2001 p 74 Satildeo atribuiccedilotildees conferidas pela Resoluccedilatildeo aos CEPs a) revisar todos os protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos b) emitir parecer consubstanciado por escrito c) manter a guarda confidencial de todos os dados obtidos na execuccedilatildeo de sua tarefa e arquivamento do protocolo completo que ficaraacute agrave disposiccedilatildeo das autoridades sanitaacuterias d) acompanhar o desenvolvimento dos projetos atraveacutes de relatoacuterios anuais dos pesquisadores e) desempenhar papel consultivo e educativo 0 receber dos sujeitos da pesquisa ou de qualquer outra parte denuacutencias de abusos ou notificaccedilatildeo sobre fatos adversos que possam alterar o curso normal do estudo decidindo pela continuidade modificaccedilatildeo ou suspensatildeo da pesquisa devendo se necessaacuterio adequar o termo de consentimento considerando-se anti-eacutetica a pesquisa descontinuada sem justificativa aceita pelo CEP que a aprovou g) requerer instauraccedilatildeo de sindicacircncia agrave direccedilatildeo da instituiccedilatildeo em caso de denuacutencias de irregularidades de natureza eacutetica nas pesquisas e em havendo comprovaccedilatildeo comunicar agrave Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa CONEPMS e no que couber a outras instacircncias e h) manter comunicaccedilatildeo regular e permanente com a CONEPMS A existecircncia de oacutergatildeos com a funccedilatildeo de aprovar e acompanhar pesquisas jaacute era preconizada por exemplo pelo Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988) cujo art 127 veda ao

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Foi mais aleacutem a Resoluccedilatildeo que de modo inovador reforccedilou o controle eacutetico e a defesa da dignidade da pessoa humana com a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa - CONEP84 que atua na direccedilatildeo e orientaccedilatildeo dos comitecircs8S A comissatildeo de acordo com a Resoluccedilatildeo eacute uma instacircncia colegiada de natureza consultiva deliberativa normativa independente vinculada ao Conselho Nacional de Sauacutede86 Essa vinculaccedilatildeo eacute bastante positiva posto que a alternativa de submetecirc-la a outros oacutergatildeos poderia dar ensejo a uma indesejada politizaccedilatildeo dos seus membros o que seria capaz de terminar por afetar a sua autonomia

meacutedico Realizar pesquisa meacutedica em ser humano sem submeter o protocolo a aprovaccedilatildeo e acompanhamento de comissatildeo isenta de qualquer dependecircncia em relaccedilatildeo ao pesquisador O colegiado com nuacutemero natildeo inferior a 7 (sete) membros deve ser multidisciplinar abrangendo profissionais idocircneos e de distinta formaccedilatildeo da aacuterea de sauacutede e das ciecircncias exatas sociais e humanas incluindo por exemplo juristas teoacutelogos socioacutelogos filoacutesofos bioeticistas aleacutem de membros da sociedade e obrigatoriamente pelo menos um membro representando os usuaacuterios Se a pesquisa envolver grupos vulneraacuteveis comunidades e coletividades um dos seus representantes deveraacute ser convidado para participar como membro ad hoc do CEP da anaacutelise do projeto especiacutefico Assim o CEP ainda segundo a Resoluccedilatildeo teraacute sempre um caraacuteter multi e transdisciplinar sendo vedado que mais que metade de seus membros pertenccedilam a uma mesma categoria profissional devendo ainda participarem pessoas dos dois sexos Satildeo permitidos consultores ad hoc pessoas que pertencem ou natildeo aacute instituiccedilatildeo com o objetivo de fornecer subsiacutedios teacutecnicos Merece ainda atenccedilatildeo especial a autonomia do comitecirc cuja manifestaccedilatildeo deve ser totalmente autocircnoma e imaculada de coaccedilotildees ou pressotildees dos interessados A autonomia e a independecircncia satildeo condiccedilotildees sine qua non para a desejada eficaacutecia dos comitecircs que felizmente estatildeo se proliferando em nosso paiacutes Conforme informaccedilotildees do site da CONEP satildeo 446 CEPs aprovados no Brasil ateacute janeiro de 2006 Disponiacutevel em lthttpoonselhosaudegovbrcomissaoconep2006ceps20APROVADOSxlsgt Acessado em 04 jun 2006 A Comissatildeo tem 13 membros titulares e o mesmo nuacutemero de suplentes em uma composiccedilatildeo que tambeacutem deveraacute ser multi e transdisciplinar com pessoas de ambos os sexos Dentre os seus membros 05 (cinco) devem ser personalidades destacadas no campo da eacutetica na pesquisa e na sauacutede e 08 (oito) devem ser personalidades com destacada atuaccedilatildeo nos campos teoloacutegico juriacutedico e outros assegurando-se que pelo menos um seja da aacuterea de gestatildeo da sauacutede Embora natildeo desconheccedilamos a importacircncia das religiotildees na formaccedilatildeo do pensamento eacutetico humano e sem querer desmerecer as pessoas que nelas militam no mais das vezes com accedilotildees de destacada importacircncia pensamos que eacute inadequada em um Estado laico como o nosso a destinaccedilacirco de vaga ou de vagas especificamente a pessoas do campo teleoloacutegico Essa observaccedilatildeo imperioso demarcar natildeo eacute no sentido de entender que a contribuiccedilatildeo dessas pessoas eacute desnecessaacuteria ou inconveniente Pelo contraacuterio Poreacutem a desejada participaccedilatildeo jaacute poderia ser levada a efeito incluindo-as no grupo de personalidades com atuaccedilatildeo de destaque na esfera da eacutetica na pesquisa e na sauacutede sem necessidade de vinculaccedilatildeo necessaacuteria ao pensamento religioso Isso ateacute mesmo para preservar o pluralismo e a igualdade jaacute que obviamente natildeo seraacute possiacutevel oferecer a cada religiatildeo uma vaga Os membros da Comissatildeo satildeo recrutados a partir de indicaccedilotildees contidas em listas elaboradas pelas instituiccedilotildees que possuem CEP registrado na CONEP sendo que 07 (sete) satildeo escolhidos pelo Conselho Nacional de Sauacutede e 06 (seis) satildeo definidos por sorteio Tambeacutem pode contar com consultores e membros ad hoc sendo assegurada a representaccedilatildeo dos usuaacuterios O mandato eacute de quatro anos com renovaccedilatildeo alternada a cada dois anos de sete ou seis de seus membros A CONEP tem tambeacutem um papel coordenador da rede de Comitecircs institucionais aleacutem de se constituir em oacutergatildeo consultor na aacuterea eacutetica em pesquisa Num primeiro momento tem ainda a atribuiccedilatildeo de apreciar os projetos de pesquisas de aacutereas temaacuteticas especiais enviadas pelos CFPs ou seja projetos que contemplam aacutereas com maiores dilemas eacuteticos e grande repercussatildeo social ateacute que se acumulem experiecircncias para elaboraccedilatildeo de normas especiacuteficas complementares agraves existentes Cf FREITAS Carolina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA

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Outros aspectos da Resoluccedilatildeo que merecem especial destaque para o nosso estudo satildeo os relativos ao consentimento livre e esclarecido agrave vulnerabilidade e agrave incapacidade

Como jaacute dito um dos principais pontos da Declaraccedilatildeo de Nuremberg foi o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias A Resoluccedilatildeo tratou do tema exigindo a anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar87 A anuecircncia deve ser expressa atraveacutes de

Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 202

S6 Segundo a Resoluccedilatildeo compete agrave CONEP examinar os aspectos eacuteticos da pesquisa envolvendo seres humanos assim como a adequaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo das normas atinentes consultando a sociedade sempre que julgar necessaacuterio cabendo-lhe entre outras as seguintes atribuiccedilotildees a) estimular a criaccedilatildeo de CEPs institucionais e de outras instacircncias b) registrar os CEPs institucionais e de outras instacircncias c) aprovar no prazo de 60 dias e acompanhar os protocolos de pesquisa em aacutereas temaacuteticas especiais tais como geneacutetica humana reproduccedilatildeo humana faacutermacos medicamentos vacinas e testes diagnoacutesticos novos (fases I II e III) ou natildeo registrados no pais (ainda que fase IV) ou quando a pesquisa for referente a seu uso com modalidades indicaccedilotildees doses ou vias de administraccedilatildeo diferentes daquelas estabelecidas incluindo seu emprego em combinaccedilotildees equipamentos insumos e dispositivos para a sauacutede novos ou natildeo registrados no paiacutes novos procedimentos ainda natildeo consagrados na literatura populaccedilotildees indiacutegenas projetos que envolvam aspectos de biosseguranccedila pesquisas coordenadas do exterior ou com participaccedilatildeo estrangeira c pesquisas que envolvam remessa de material bioloacutegico para o exterior e projetos que a criteacuterio do CEP devidamente justificado sejam julgados merecedores de anaacutelise pela CONEP d) prover normas especiacuteficas no campo da eacutetica em pesquisa inclusive nas aacutereas temaacuteticas especiais bem como recomendaccedilotildees para aplicaccedilatildeo das mesmas e) funcionar como instacircncia final de recursos a partir de informaccedilotildees fornecidas sistematicamente em caraacuteter ex-ofiacutecio ou a partir de denuacutencias ou de solicitaccedilatildeo de partes interessadas devendo manifestar-se em um prazo natildeo superior a 60 (sessenta) dias 0 rever responsabilidades proibir ou interromper pesquisas definitiva ou temporariamente podendo requisitar protocolos para revisatildeo eacutetica inclusive os jaacute aprovados pelo CEP g) constituir um sistema de informaccedilatildeo e acompanhamento dos aspectos eacuteticos das pesquisas envolvendo seres humanos em todo o territoacuterio nacional mantendo atualizados os bancos de dados h) informar e assessorar o MS o CNS e outras instacircncias do SUS bem como do governo e da sociedade sobre questotildees eacuteticas relativas agrave pesquisa em seres humanos i) divulgar esta e outras normas relativas agrave eacutetica em pesquisa envolvendo seres humanos j) juntamente com outros setores do Ministeacuterio da Sauacutede estabelecer normas e criteacuterios para o credenciamento de Centros de Pesquisa e I) estabelecer suas proacuteprias normas de funcionamento

87 No que concerne agrave pesquisa meacutedica a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro estipula no seu art 123 que eacute vedado ao meacutedico Realizar pesquisa em ser humano sem que este tenha dado consentimento por escrito apoacutes devidamente esclarecido sobre a natureza e consequumlecircncia da pesquisa e que Caso o paciente natildeo tenha condiccedilotildees de dar seu livre consentimento a pesquisa somente poderaacute se realizada em seu proacuteprio beneficio apoacutes expressa autorizaccedilatildeo de seu responsaacutevel legal Jaacute a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO no seu art 6 aliacutenea b estabelece que A pesquisa cientiacutefica soacute deve ser realizada com o preacutevio livre expresso e esclarecido consentimento do indiviacuteduo envolvido A informaccedilatildeo deve ser adequada fornecida de uma forma compreensiacutevel e incluir os procedimentos para a retirada do consentimento O consentimento pode ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer hora e por qualquer razatildeo sem acarretar qualquer desvantagem ou preconceito Exceccedilotildees a este princiacutepio somente devem ocorrer quando em conformidade com os padrotildees eacuteticos e legais adotados pelos Estados consistentes com as provisotildees da presente Declaraccedilatildeo particularmente com o art 27 e com os direitos humanos

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em um termo de consentimento onde eacute autorizada a participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa Aleacutem disso natildeo pode estar viciada por simulaccedilatildeo fraude ou erro nem tampouco pode ser obtida por forccedila de uma situaccedilatildeo de dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo

Trata-se de disposiccedilatildeo decorrente da adoccedilatildeo do princiacutepio da autonomia jaacute abordado que se vincula agrave capacidade de autodeterminaccedilatildeo e auto-escolha e pressupotildee dentre outras premissas a capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos possiacuteveis18

Quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de estudo possuem a capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto ao consentimento livre e esclarecido por quaisquer motivos verifica-se uma situaccedilatildeo de vulnerabilidade que natildeo pode ser desconsiderada pelo pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais A preocupaccedilatildeo com a vulnerabilidade dos sujeitos encontra supedacircneo no Coacutedigo de Nuremberg na Declaraccedilatildeo de Helsinque nas Diretrizes Internacionais para Pesquisa Biomeacutedica envolvendo Seres Humanos89 e tambeacutem como jaacute dito na Resoluccedilatildeo 19696 A dificuldade central relacionada a indiviacuteduos e comunidades vulneraacuteveis eacute com a sua capacidade de compreensatildeo (autonomia plena) sobre o experimento e possibilidade de livremente consentir com a pesquisa e quando quiser dela desistir o que justifica todas as preocupaccedilotildees nesse sentido90

Cabe trazer a lume os ensinamentos do professor chileno Fernando Lolas O respeito pela autonomia das pessoas como agentes morais capazes de decisotildees informadas eacute central no diaacutelogo bioeacutetico Somente a permissatildeo outorgada por uma pessoa pode legitimar uma accedilatildeo que a envolva O valor das pessoas eacute incondicional o que obriga a consideraacute-las fins natildeo meios com a liberdade de viver e a de decidir livres de interferecircncias LOLAS Fernando Bioeacutetica o que eacute como se faz Traduccedilatildeo Milton Camargo Mota Satildeo Paulo Loyola 2001 p 63 A Diretriz Internacional para Pesquisa Biomeacutedica afirma Pesquisa envolvendo indiviacuteduos de comunidades sub-desenvolvidas Antes de iniciar a pesquisa em indiviacuteduos de comunidades subdesenvolvidas seja em paiacuteses desenvolvidos ou em desenvolvimento o pesquisador deve estar seguro que As pessoas da comunidade subdesenvolvida natildeo seratildeo ordinariamente envolvidas na pesquisa que possa ser realizada de forma adequada em comunidades desenvolvidas A pesquisa eacute uma resposta agraves necessidades de sauacutede e agraves prioridades da comunidade na qual seraacute realizada todos os esforccedilos seratildeo tomados no sentido de assegurar o imperativo eacutetico de que o consentimento individual dos sujeitos seraacute informado e Os projetos para a pesquisa foram revisados e aprovados por um comitecirc de eacutetica que tenha entre os seus membros ou consultores pessoas que tenham familiaridade com os costumes e tradiccedilotildees da comunidade Em comentaacuterio agraves diretrizes acima Leo Pessini e Christian Paul de Barchifontaine entendem que Quando a experimentaccedilatildeo visa ao estudo de determinadas condiccedilotildees moacuterbidas tais como doenccedilas endecircmicas em comunidades de baixo niacutevel socioeconocircmico eou cultural incapazes de terem uma consciecircncia clara e apropriada das implicaccedilotildees de sua participaccedilatildeo na experiecircncia eacute de bom alvitre que seja obtida a interveniecircncia de um liacuteder em que a coletividade confia Esse intermediaacuterio dever deixar claro que a participaccedilatildeo eacute voluntaacuteria e que qualquer participante tem a liberdade de natildeo aceitar ou abandonar a experiecircncia a qualquer momento op cit p 133

Conforme Marisa Palaacutecios Quando a autonomia dos sujeitos natildeo eacute plena ou seja quando a capacidade de entender as situaccedilotildees que se apresentam ao sujeito e de autodeterminar-se segundo este entendimento estaacute de alguma forma limitada eacute preciso tomar cuidado especial Eacute o caso dos grupos vulneraacuteveis os iacutendios que tecircm a capacidade de entendimento das situaccedilotildees diminuiacuteda uma vez que compotildeem sociedades

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A vulnerabilidade pode assumir as mais variadas vertentes bem como atingir uma determinada pessoa ou um grupo de seres humanos com peculiaridades comuns tais como crianccedilas idosos iacutendios pacientes terminais desempregados deficientes91 presidiaacuterios92 ou outras situaccedilotildees de dependecircncia93

Pode ocorrer que as pessoas que seratildeo estudadas na pesquisa natildeo tenham capacidade civil para dar o seu consentimento Nesse caso se encontram em situaccedilatildeo de incapacidade e a pesquisa soacute pode ser levada adiante com a intervenccedilatildeo de seus representantes legais que de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira deveratildeo assistir ou representar os incapazes Tambeacutem aqui deve o pesquisador cercar-se de cautelas eacuteticas redobradas

Finalmente deve-se louvar a Resoluccedilatildeo por ter explicitado no seu item III3 um rol de 23 (vinte e trecircs) exigecircncias eacuteticas para a pesquisa de qualquer aacuterea do conhecimento que envolva seres humanos94

culturalmente diversas[] Estas para citar algumas populaccedilotildees caracteriacutesticas Satildeo populaccedilotildees que precisam ser especialmente protegidas dada a proacutepria condiccedilatildeo de vulnerabilidade Maria Carolina S Guimaratildees e Sylvia Caiuby Novaes com alento em Hannah Arendt e Cardia definem o ser vulneraacutevel como Algueacutem que possui cidadania fraacutegil que ignora a relevacircncia do direito agrave integridade fiacutesica como condiccedilatildeo de acesso aos direitos sociais econocircmicos poliacuteticos e trabalhistas Dito assim o que parece a primeira condiccedilatildeo para que um ser vulneraacutevel perca tal situaccedilatildeo eacute o investimento do Estado naquilo que constroacutei e constitui a cidadania naqueles atributos que transformam o indiviacuteduo em cidadatildeo que transformam o animal laborans em homem poliacutetico Essa transformaccedilatildeo eacute no dizer de Hannah Arendt um pressuposto da democracia pois permite ao animal laborans ir do reino da necessidade para o reino da liberdade GUIMARAtildeES Maria Carolina S NOVAES Sylvia Caiuby Autonomia reduzida e vulnerabilidade liberdade de decisatildeo diferenccedila e desigualdade Revista Bioeacutetica Brasiacutelia v 7 n 1 p 23 1999

91 Sobre o tema vide COHEN Claacuteudio Bioeacutetica Pesquisa e Deficiecircncia In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 55-62 92 Nem todo ser humano eacute no entanto capaz de autodeterminaccedilatildeo A capacidade de autodeterminaccedilatildeo amadurece ao longo da vida mas pode ser perdida total ou parcialmente por doenccedila velhice ou situaccedilatildeo de restriccedilatildeo severa como a prisatildeo Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 93 O Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de janeiro de 1988) veda ao meacutedico no seu art 128 Realizar pesquisa meacutedica em voluntaacuterios sadios ou-natildeo que tenham direta ou indiretamente dependecircncia ou subordinaccedilatildeo relativamente ao pesquisador 94 I1I3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias a) ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder a incertezas b) estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou em outros fatos cientiacuteficos c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio d) prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis e) obedecer a metodologia adequada Se houver necessidade de distribuiccedilatildeo aleatoacuteria dos sujeitos da pesquisa em grupos experimentais e de controle assegurar que apriori natildeo seja possiacutevel estabelecer as vantagens de um procedimento sobre outro atraveacutes de revisatildeo de literatura meacutetodos observacionais ou meacutetodos que natildeo envolvam seres humanos 0 ter plenamente justificada quando for o caso a utilizaccedilatildeo de placebo em termos de natildeo maleficecircncia e de necessidade metodoloacutegica g) contar com o consentimento livre e esclarecido do sujeito da pesquisa eou seu representante legal h) contar com os recursos humanos e materiais necessaacuterios que garantam o bem-

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5 Teleologia e legitimidade da pesquisa em seres humanos

Toda experimentaccedilatildeo em seres humanos possui um determinado objetivo o qual pode ou-natildeo estar vinculado ao bem estar proacuteprio da pessoa ou grupo observado

Essa situaccedilatildeo natildeo foi esquecida pela Declaraccedilatildeo de Helsinque cujo preacircmbulo afirma Wo campo cia pesquisa biomeacutedica uma distinccedilatildeo fundamental deve ser feita entre a pesquisa meacutedica na qual o objetivo eacute essencialmente o diagnoacutestico ou a terapecircutica para um paciente e a pesquisa meacutedica cujo objeto essencial eacute puramente cientiacutefico e sem um valor direto diagnoacutestico ou terapecircutico para a pessoa sujeita agrave

estar do sujeito da pesquisa devendo ainda haver adequaccedilatildeo entre a competecircncia do pesquisador e o projeto proposto i) prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade a proteccedilatildeo da imagem e a natildeo estigmatizaccedilatildeo garantindo a natildeo utilizaccedilatildeo das informaccedilotildees em prejuiacutezo das pessoas eou das comunidades inclusive em termos de auto-estima de prestiacutegio eou econocircmico - financeiro j) ser desenvolvida preferencialmente cm indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida 1) respeitar sempre os valores culturais sociais morais religiosos e eacuteticos bem como os haacutebitos e costumes quando as pesquisas envolverem comunidades m) garantir que as pesquisas em comunidades sempre que possiacutevel traduzir-se-atildeo em benefiacutecios cujos efeitos continuem a se fazer sentir apoacutes sua conclusatildeo O projeto deve analisar as necessidades de cada um dos membros da comunidade e analisar as diferenccedilas presentes entre eles explicitando como seraacute assegurado o respeito agraves mesmas n) garantir o retomo dos benefiacutecios obtidos atraveacutes das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas Quando no interesse da comunidade houver benefiacutecio real em incentivar ou estimular mudanccedilas de costumes ou comportamentos o protocolo de pesquisa deve incluir sempre que possiacutevel disposiccedilotildees para comunicar tal benefiacutecio agraves pessoas eou comunidades o) comunicar agraves autoridades sanitaacuterias os resultados da pesquisa sempre que os mesmos puderem contribuir para a melhoria das condiccedilotildees de sauacutede da coletividade preservando poreacutem a imagem e assegurando que os sujeitos da pesquisa natildeo sejam estigmatizados ou percam a auto-estima p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefiacutecios resultantes do projeto seja em termos de retorno social acesso aos procedimentos produtos ou agentes da pesquisa q)assegurar aos sujeitos da pesquisa as condiccedilotildees de acompanhamento tratamento ou de orientaccedilatildeo conforme o caso nas pesquisas de rastreamento demonstrar a preponderacircncia de benefiacutecios sobre riscos e custos r) assegurar a inexistecircncia de conflito de interesses entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa ou patrocinador do projeto s) comprovar nas pesquisas conduzidas do exterior ou com cooperaccedilatildeo estrangeira os compromissos e as vantagens para os sujeitos das pesquisas e para o Brasil decorrentes de sua realizaccedilatildeo Nestes casos deve ser identificado o pesquisador e a instituiccedilatildeo nacionais co-responsaacuteveis pela pesquisa O protocolo deveraacute observar as exigecircncias da Declaraccedilatildeo de Helsinque e incluir documento de aprovaccedilatildeo no paiacutes de origem entre os apresentados para avaliaccedilatildeo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa da instituiccedilatildeo brasileira que exigiraacute o cumprimento de seus proacuteprios referenciais eacuteticos Os estudos patrocinados do exterior tambeacutem devem responder agraves necessidades de treinamento de pessoal no Brasil para que o paiacutes possa desenvolver projetos similares de forma independente t) utilizar o material bioloacutegico e os dados obtidos na pesquisa exclusivamente para a finalidade prevista no seu protocolo u) levar em conta nas pesquisas realizadas em mulheres em idade feacutertil ou em mulheres graacutevidas a avaliaccedilatildeo de riscos e benefiacutecios e as eventuais interferecircncias sobre a fertilidade a gravidez o embriatildeo ou o feto o trabalho de parto o puerpeacuterio a lactaccedilatildeo e o receacutem-nascido v) considerar que as pesquisas em mulheres graacutevidas devem ser precedidas de pesquisas em mulheres fora do periacuteodo gestacional exceto quando a gravidez for o objetivo fundamental da pesquisa x) propiciar nos estudos multicecircntricos a participaccedilatildeo dos pesquisadores que desenvolveratildeo a pesquisa na elaboraccedilatildeo do delineamento geral do projeto e z) descontinuar o estudo somente apoacutes anaacutelise das razotildees da descontinuidade pelo CEP que a aprovou

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pesquisa Em outras palavras haacute experimentos em benefiacutecio do paciente e experimentos em benefiacutecio da ciecircncia Ainda no preacircmbulo da Declaraccedilatildeo de Helsinque encontramos que A finalidade da pesquisa meacutedica envolvendo seres humanos deve ser o aperfeiccediloamento do diagnoacutestico procedimentos terapecircuticos e profilaacuteticos e a compreensatildeo da etiologia e da patologia da doenccedila Conjugando essa afirmaccedilatildeo com a anterior podemos extrair que uma determinada pessoa ou populaccedilatildeo pode ser objeto de pesquisa para desvendar doenccedilas que a afligem ou para desnudar as razotildees pelas quais eacute menos suscetiacutevel ou-natildeo eacute atingida por determinada moleacutestia que afeta aos demais seres humanos

A partir dessas observaccedilotildees podemos considerar para os fins do nosso estudo que as experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas teleologicamente em dois grupos a) aquelas cujos objetivos possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas as quais chamaremos de pesquisas com justificativa intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de terceiros as quais denominaremos pesquisas com justificativa extrinseca Temos como exemplo na primeira situaccedilatildeo os experimentos cientiacuteficos para desvendar o porquecirc de uma determinada coletividade ser atingida por taxas elevadas de uma certa doenccedila e na segunda uma pesquisa para revelar as razotildees pelas quais certas pessoas natildeo desenvolvem uma moleacutestia com o objetivo de descobrir uma vacina ou um medicamento para os demais

Entretanto em todo experimento seraacute necessaacuterio averiguar se a justificativa - seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima Isso porque o fato de uma pesquisa ter por objetivo um tratamento mais eficiente ou a cura de certas doenccedilas natildeo legitima por si soacute a utilizaccedilatildeo de pessoas como sujeito de pesquisa mesmo que elas sofram da moleacutestia e possam vir a ser beneficiadas Natildeo se deve perder de vista aliaacutes que se o conhecimento puder ser obtido por outro meio a utilizaccedilatildeo de seres humanos justamente por ser desnecessaacuteria seraacute ilegiacutetima95 Ademais soacute pelo fato de ser intriacutenseca a justificativa natildeo seraacute necessariamente legiacutetima Por outro lado a circunstacircncia isoladamente considerada do eventual resultado da experimentaccedilatildeo ser absolutamente indiferente ao sujeito de pesquisa natildeo torna a sua participaccedilatildeo ilegiacutetima Em outras palavras a justificativa soacute por ser extrinseca natildeo seraacute necessariamente ilegiacutetima

Vale relembrar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 - A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio

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A razatildeo disso reside na afirmaccedilatildeo de que como se sabe desde Kant o Homem deve ser tratado como um fim em si mesmo e natildeo como instrumento De fato eacute em Kant que o Homem ganha status de valor absoluto manifesto no imperativo praacutetico expresso na maacutexima segundo a qual Ages de tal maneira que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio 96

Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

Quando se trata de experimentaccedilatildeo com justificativa intriacutenseca a razatildeo legitimadora pode estar no objetivo de beneficiar os proacuteprios sujeitos da pesquisa algueacutem se submete a uma experimentaccedilatildeo na tentativa de auferir uma vantagem em seu bem-estar fiacutesico ou mental

Jaacute no caso da justificativa extriacutenseca poder-se-ia objetar a realizaccedilatildeo da experimentaccedilatildeo com suposto fundamento na Resoluccedilatildeo 19696 cujo item III 1 letra d vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila Ora se em uma determinada situaccedilatildeo algueacutem participa do experimento sem que haja qualquer possibilidade de benefiacutecio fiacutesico ou mental para si a partir do resultado da pesquisa e considerando que a mesma Resoluccedilatildeo veda qualquer forma de remuneraccedilatildeo do sujeito da pesquisa (item 1110) qual a vantagem significativa que poderaacute essa pessoa auferir para justificar a sua participaccedilatildeo

Ao nosso ver a interpretaccedilatildeo desse ponto da Resoluccedilatildeo natildeo deve ser literal nem assistemaacutetica97 devendo ser considerada a incidecircncia de um outro princiacutepio ainda

Op cit p 69 Em comento a este imperativo Francesca Puigpclat Marti apregoa que La concepcioacuten liberal asocia a esta expresioacuten una idea comuacuten en Ia reflexioacuten eacutetica de raigambre kantiana el hombre es un fin en si mismo un sujeto y no un objeto Seguacuten Kant en el sistema de Ia natureza el hombre (homo phaenomenon animal rationale) es un ser de escasa importancia y tiene con los demaacutes animales en tanto que productos de Ia tierra un precio comuacuten () Ahora bien el hombre considerado como persona es dccir como sujeto de una razoacuten praacutetico-moral estaacute situado por encima de todo precio porque como tal (homo noumenon) no puede valorarse soacutelo como meacutedio para fines ajenos incluso para sus proprios fines sino como fin en siacute mismo es decir posee una dignidad(un valor interno absoluto) gracias a la cual infunde respeto haciacutea eacutel a todos los demaacutes seres racionales dei mundo puede medirse con cualquier otro de esta clase y valorarse en pie de igualdad En la medida en que seguacuten Kant el hombre existe como fin en siacute mismo y no soacutelo como meacutedio para usos cualesquiera de una u otra voluntad se puede formular el siguiente principio praacutetico supremo obra de tal modo que uses la humanidad tanto en tu persona como en la persona de cualquier otro siempre como un fin al mismo tiempo y nunca solamente como un meacutedio MARTIacute Francesca Puigpelat Clonacioacuten dignidad humana y constitucioacuten Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo ano II n 42 janmar p37-64 2003

Natildeo se interpreta o direito em tiras aos pedaccedilos () Um texto de direito isolado destacado desprendido do sistema juriacutedico natildeo expressa significado normativo algum Cf GRAU Eros Roberto Ensaio e

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que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que eacute o da solidariedade Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita entendemos que a sua aplicaccedilatildeo eacute cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele dispositivo (item 1111 letra d da Resoluccedilatildeo 19696) afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria Aleacutem disso outros documentos de importacircncia para a Bioeacutetica fazem referecircncia agrave solidariedade98 De fato natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao respeito agrave dignidade da pessoa humana99

Logo no nosso pensar mesmo que natildeo haja nenhum benefiacutecio ou vantagem direta ao sujeito de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma justificativa eacutetica a qual pode ter como nuacutecleo a intenccedilatildeo solidaacuteria dessa pessoa e do pesquisador de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e consequumlentemente para todos os demais seres humanos

A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica100

Estas exigecircncias no acircmbito normativo brasileiro estatildeo listadas na Resoluccedilatildeo 19696 especialmente no item III3

Algumas delas satildeo puramente objetivas e uma vez desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca E o caso por exemplo da necessidade de consentimento preacutevio e informado

discurso sobre a interpretaccedilatildeoaplicaccedilatildeo do Direito Satildeo Paulo Malheiros Editores 2002 p 34 98

O art 1deg da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos proclama que todas pessoas devem agir em relaccedilatildeo umas agraves outras com espiacuterito de fraternidade Alem disso a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO em um dos seus considerandos observa que os seres humanos tecircm um papel importante na proteccedilatildeo um do outro tratando expressamente da solidariedade e cooperaccedilatildeo no seu art 13 segundo o qual A solidariedade entre os seres humanos e cooperaccedilatildeo internacional para este fim devem ser estimuladas 99 Ela [a solidariedade] eacute o fecho de aboacutebada do sistema de princiacutepios eacuteticos pois complementa e aperfeiccediloa a liberdade a igualdade e a seguranccedila () E um erro considerar que no mundo da natureza sobretudo no mundo animal natildeo exista solidariedade e que ela seja uma criaccedilatildeo poliacutetica Muito pelo contraacuterio pode-se dizer que a biosfera forma naturalmente um sistema solidaacuterio e que o rompimento desse sistema eacute sempre obra do homem O proacuteprio Darwin bem advertiu que a expressatildeo struggle for Existence fora por ele usada em sentido amplo e matafoacuterico incluindo a dependecircncia de um ser em relaccedilatildeo a outro bem como incluindo (o que eacute mais importante) natildeo apenas a vida do indiviacuteduo mas o ecircxito em deixar descendentes Os zooacutelogos jaacute observaram que o processo de seleccedilatildeo natural deu mais vantagens bioloacutegicas aos grupos que cuidavam de seus membros natildeo reprodutivos do que agravequeles que abandonavam ou matavam os anciatildeos pois a capacidade de reproduccedilatildeo global dos grupos altruiacutestas eacute assim singularmente reforccedilada Cf COMPARATO Faacutebio Konder Eacutetica direito moral e religiatildeo no mundo moderno Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 p 577578

100

Natildeo eacute agrave toa portanto que como jaacute visto a Resoluccedilatildeo 19696 vincula a eticidade na pesquisa aos princiacutepios da Bioeacutetica tanto no seu preacircmbulo como no seu item III 1

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1214 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

dos participantes - ou dos seus representantes se incapazes - 101 cuja ausecircncia macula o princiacutepio da autonomia Tambeacutem eacute objetiva a exigecircncia da pesquisa estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou outros fatos cientiacuteficos102 cuja inobservacircncia implica em ofensa agrave natildeo-maleficecircncia Nessas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou-natildeo vir a ter um benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

Outras exigecircncias entretanto possuem um certo grau de subjetividade em maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as circunstacircncias faacuteticas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo de valor iacutensito a cada um Desse tipo vg eacute a exigecircncia segundo a qual a pesquisa deve ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e ter possibilidades concretas de responder a incertezas103 A avaliaccedilatildeo quanto ao cumprimento ou-natildeo da exigecircncia e portanto quanto agrave legitimidade ou ilegitimidade da utilizaccedilatildeo de seres humanos tem um niacutetido caraacuteter subjetivo podendo variar de pessoa para pessoa

Quando tratamos de exigecircncias subjetivas haacute ainda um outro aspecto a ser apontado deveraacute ser levado em conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca Em outras palavras a circunstacircncia do sujeito de pesquisa poder vir a ser beneficiado ou-natildeo pelo resultado do experimento deve ser considerada na verificaccedilatildeo da legitimidade eacutetica quando da ponderaccedilatildeo sobre o cumprimento das exigecircncias subjetivas

Tomemos como exemplo a exigecircncia de que devem prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis104 Ora essa exigecircncia eacute subjetiva pois envolve uma ponderaccedilatildeo cujo resultado estaacute vinculado a um juiacutezo de valor sobre a natureza e a importacircncia ou peso de cada benefiacutecio ou risco provaacutevel Ao nosso entender quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal no resultado do experimento tratando-se portanto de justificativa extriacutenseca eacute oacutebvio que os riscos a que se submete devem ser considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o benefiacutecio esperado tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa submetida ao experimento

101 Item III3 letra g da Resoluccedilatildeo 19696 102 Item III3 letra b da Resoluccedilatildeo 19696 103 Item III3 letra a da Resoluccedilatildeo 19696 104 Item III3 letra d da Resoluccedilatildeo 19696

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1215

Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila105 Por outro lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

A proacutepria realizaccedilatildeo ou-natildeo da pesquisa pode depender dessa ponderaccedilatildeo jaacute que a Resoluccedilatildeo n 19696 prevecirc que havendo riscos potenciais as pesquisas envolvendo seres humanos poderatildeo ser admitidas quando oferecerem elevada possibilidade de gerar conhecimento para entender prevenir ou aliviar um problema que afete o bem-estar dos sujeitos da pesquisa e de outros indiviacuteduos 106

Aleacutem disso parece ser mais aceitaacutevel eticamente submeter o ser humano a riscos maiores quando a justificativa eacute intriacutenseca do que quando ela eacute extriacutenseca priorizando assim a sua preservaccedilatildeo Nesse sentido a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO estipula que uos interesses e o bem-estar do indiviacuteduo devem ter prioridade sobre o interesse exclusivo da ciecircncia ou da sociedade 107

Natildeo se pode esquecer ainda que por forccedila dos princiacutepios da beneficecircncia da natildeo-maleficecircncia e da justiccedila eacute preciso considerar na mediccedilatildeo da legitimidade as peculiaridades individuais ou coletivas dos sujeitos de pesquisa especialmente no que concerne agraves suas eventuais vulnerabilidades bem como cuidar para que natildeo lhes seja imposto um mal desnecessaacuterio ou desproporcional O princiacutepio da justiccedila como vimos implica necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa os quais sempre que possiacutevel devem ter garantido para si pelo pesquisador a fruiccedilatildeo dos benefiacutecios da experimentaccedilatildeo natildeo sendo equacircnime impor-Ihes ocircnus excessivos108 especialmente se vulneraacuteveis Natildeo eacute agrave toa portanto que pode

105 O princiacutepio da justiccedila implica atenccedilatildeo especial agraves regras de recrutamento de participantes de experimentos Natildeo se pode fazer experimentos apenas com determinados grupos - pacientes de enfermaria asilados prisioneiros - simplesmente porque eles estatildeo agrave disposiccedilatildeo e em situaccedilatildeo de dependecircncia Isso eacute injusto Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 Item Vl aliacutenea a

107 Art 3 aliacutenea b 108 bull

Consideramos que deva ser modificada a praacutetica muito comum em nosso paiacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de pesquisados provenientes das camadas mais desfavorecidas da sociedade ou de outros grupos vulneraacuteveis mas que posteriormente natildeo poderatildeo se beneficiar dos resultantes positivos das pesquisas em que tomaram parte mesmo tendo enfrentado riscos de danos psico-sociais As pesquisas realizadas nesses grupos devem poder lhes trazer benefiacutecios e os pesquisadores sempre que possiacutevel devem garantir retomo dos benefiacutecios resultados das pesquisas para os sujeitos individuais e coletivos que nelas participarem Cf FORTES Paulo Antonio de Carvalho As Pesquisas em Seres Humanos e o Principio Eacutetico da Justiccedila

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1216 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

haver exigecircncias eacuteticas especiacuteficas para pesquisas com serem humanos em situaccedilatildeo de vulnerabilidade109

Assim sempre seraacute preciso dosar a equaccedilatildeo riscobeneficio ponderando em cada caso concreto se os eventuais benefiacutecios satildeo suficientes para motivar a exposiccedilatildeo das pessoas ao processo de experimentaccedilatildeo Pode ser que diante de certas peculiaridades ou vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima110 Aliaacutes como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis justamente porque como jaacute dito o ser humano natildeo pode ser tratado como mero instrumento1

E natildeo eacute soacute Aleacutem disso em princiacutepio a pesquisa com pessoas ou grupos vulneraacuteveis deve ter uma justificativa intriacutenseca2 Entretanto sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas em experimentos extriacutensecos agrave luz da solidariedade como no caso do grupo vulneraacutevel ser imune a determinada moleacutestia por razatildeo ainda desconhecida o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias objetivas agrave risca deve ser ainda mais

Cadernos de Eacutetica em Pesquisa Ano 1 n 2 p 22-23 nov 1998 109

A tiacutetulo de exemplo a Resoluccedilatildeo 19696 traz alguns requisitos especiacuteficos para o consentimento livre e esclarecido de pessoas ou populaccedilotildees vulneraacuteveis no item IV3

110 Um caso de niacutetida violaccedilatildeo aos princiacutepios bioeacuteticos em pesquisas envolvendo grupo vulneraacutevel foi o jaacute mencionado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm Conforme um dos colaboradores da pesquisa utilizar doentes mentais ainda que natildeo voluntaacuterios foi a melhor opccedilatildeo diante do fato de que o principal problema da sauacutede puacuteblica era justamente o das doenccedilas dentaacuterias razatildeo pela qual os fins justificariam os meios ainda mais considerando que o estudo foi utilizado em todo o mundo (Krasse B Sueacutecia usou deficiente mental como cobaia Folha de Satildeo Paulo 23 Set 1997 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas cliacutenicas sobre seus direitos 2005 p 61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo) sendo faacutecil criticar o fato depois de consumado (Krasse B The Vipeholm dental caries study recollections and reflections 50 years later J Dent Res 2001 80(9) 1785-8 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu op cit p 61) Mais uma vez cabiacutevel rememorar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () j) ser desenvolvida preferencialmente em indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida

112 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO eacute clara ao afirmar em seu art 7 aliacutenea b no que diz respeito a indiviacuteduos sem a capacidade para fornecer consentimento que a pesquisa soacute deve ser realizada para o beneficio direto agrave sauacutede do indiviacuteduo envolvido estando sujeita agrave autorizaccedilatildeo e agraves condiccedilotildees de proteccedilatildeo prescritas pela legislaccedilatildeo e caso natildeo haja nenhuma alternativa de pesquisa de eficaacutecia comparaacutevel que possa incluir sujeitos de pesquisa com capacidade para fornecer consentimento

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1217

rigoroso na ponderaccedilatildeo do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da autonomia e justiccedila expondo tais pessoas a riscos miacutenimos menores ateacute do que aqueles normalmente empregados em pesquisas com justificativa intriacutenseca3

Se essas diretrizes natildeo forem observadas teremos uma pesquisa carente de justificativa eacutetica e de legitimidade

6 Conclusotildees

Em virtude dos limites inerentes agrave nossa abordagem nessas consideraccedilotildees finais natildeo apresentaremos verdades irrefutaacuteveis e definitivas sobre um tema que ainda carece de um importante debate acadecircmico e normativo Com efeito o que pretendemos modestamente foi evidenciar alguns paradigmas que possam ensejar a conciliaccedilatildeo da dignidade da pessoa humana com a continuidade dos processos de investigaccedilatildeo cientiacuteficos realizados em seres humanos Para tanto podemos sintetizar nosso pensamento nas seguintes conclusotildees

a) O desenvolvimento da ciecircncia mormente em aacutereas afeitas agrave vida e a ocorrecircncia de pesquisas francamente contraacuterias agrave dignidade humana como ocorrido em vaacuterias passagens da Segunda Guerra ensejaram o surgimento da Bioeacutetica como um novo ramo do conhecimento

b) Deve-se limitar a atuaccedilatildeo da Bioeacutetica aos casos em que haacute conflito de valores quando dois princiacutepios eacutetica e moralmente admissiacuteveis natildeo podem coexistir

c) Haacute iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica Autonomia Beneficecircncia e Justiccedila aleacutem da Natildeo-Maleficecircncia - e as pesquisas em seres humanos

113 Ainda conforme o art 7 aliacutenea b da Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO quando se trata de pessoas incapazes Pesquisas sem potencial beneficio direto agrave sauacutede soacute devem ser realizadas excepcionalmente com a maior restriccedilatildeo expondo o indiviacuteduo apenas a risco e desconforto miacutenimos e quando se espera que a pesquisa contribua com o benefiacutecio agrave sauacutede de outros indiviacuteduos na mesma categoria sendo sujeitas agraves condiccedilotildees prescritas por lei e compatiacuteveis com a proteccedilatildeo dos direitos humanos do indiviacuteduo A recusa de tais indiviacuteduos em participar de pesquisas deve ser respeitada

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1218 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

d) Os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica

pluralista aberta e receptiva e satildeo um poderoso instrumento

para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

razotildees pelas quais eacute descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos

debates bioeacuteticos

e) O avanccedilo tecnoloacutegico traz cada vez mais a diminuiccedilatildeo de

limites teacutecnicos ao ser humano o que conduz ao debate sobre a

necessidade de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees para

evitar eventuais abusos especialmente na aacuterea biomeacutedica

elevando a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que

demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave

vida

0 A concretizaccedilatildeo dos objetivos atuais da humanidade

especialmente em relaccedilatildeo agrave expectativa de vida depende

dentre outros fatores da pesquisa cientiacutefica e da

experimentaccedilatildeo em seres humanos Poreacutem eacute preciso tomar o

Homem como sujeito de pesquisa sem trataacute-lo como mero

instrumento mas como um fim em si mesmo

g) A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do

interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda

Guerra trouxeram agrave tona a questatildeo da eacutetica na pesquisa

evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana e

de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa

em seres humanos gerando uma seacuterie de normas internacionais

e nacionais a exemplo do Coacutedigo de Nuremberg da

Declaraccedilatildeo de Helsinque e no Brasil da Resoluccedilatildeo n 19696

do Conselho Nacional de Sauacutede

h) Dentre os principais aspectos da Resoluccedilatildeo n 19696 do

Conselho Nacional de Sauacutede encontramos a vinculaccedilatildeo da

experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da

principiologia da Bioeacutetica a explicitaccedilatildeo de um rol de

exigecircncias para a eticidade na pesquisa as definiccedilotildees de

diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica como o

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1219

consentimento livre e esclarecido a vulnerabilidade e a

incapacidade a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em

Pesquisa -CONEP e a regulamentaccedilatildeo dos Comitecircs de Eacutetica e

Pesquisa - CEPs

i) O consentimento livre e esclarecido decorre da adoccedilatildeo do

princiacutepio da autonomia e pressupotildee dentre outras premissas a

capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os

aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos

possiacuteveis

j) A vulnerabilidade natildeo pode ser desconsiderada pelo

pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais ocorrendo

quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de

estudo por quaisquer motivos possuem a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto agrave

compreensatildeo sobre o experimento e a possibilidade de

livremente consentir com a pesquisa e dela desistir

k) A incapacidade ocorre quando as pessoas que seratildeo estudadas

na pesquisa natildeo possuem capacidade civil para dar o seu

consentimento soacute podendo ser levada adiante a pesquisa com a

intervenccedilatildeo de seus representantes legais implicando tambeacutem

no dever do pesquisador de cercar-se de cautelas eacuteticas

redobradas

1) As experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas

teleologicamcnte em dois grupos a) aquelas cujos objetivos

possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas

observadas as quais chamamos de pesquisas com justificativa

intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo

direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de

terceiros as quais denominamos pesquisas com justificativa

extrinseca

m) Em todo experimento eacute necessaacuterio averiguar se a justificativa -

seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1220 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima jaacute que a

justificativa soacute pelo fato de ser intriacutenseca natildeo seraacute

necessariamente legiacutetima nem tampouco soacute por ser extriacutenseca

seraacute necessariamente ilegiacutetima

n) Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a

realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser

encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca

como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

o) A interpretaccedilatildeo do item III1 letra d da Resoluccedilatildeo n 19696

que vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens

significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de

infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila natildeo deve ser literal nem

assistemaacutetica devendo ser considerada a incidecircncia de um

outro principio ainda que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que

eacute o da solidariedade

p) Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita ao princiacutepio da

solidariedade na Resoluccedilatildeo n 19696 a sua aplicaccedilatildeo eacute

cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele

texto afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua

relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-

humanitaacuteria

q) Logo mesmo que natildeo haja nenhum beneficio direto ao sujeito

de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma

justificativa a qual pode ser a intenccedilatildeo sua e do pesquisador

de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e

consequumlentemente para todos os demais seres humanos Aleacutem

disso natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica

sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao

respeito agrave dignidade da pessoa humana

r) A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em

seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade

poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1221

diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica listadas na

Resoluccedilatildeo n 19696 especialmente no item III3

s) Algumas exigecircncias satildeo puramente objetivas e uma vez

desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da

justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca

t) Nas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa

ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou natildeo vir a ter um

benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

u) Outras exigecircncias possuem um certo grau de subjetividade em

maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da

pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo

exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as

circunstacircncias faacutetiacutecas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo

de valor iacutensito a cada um

v) Quando se tratar de exigecircncias subjetivas deveraacute ser levado em

conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma

justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca

w) Quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou

sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal

no resultado do experimento tratando-se portanto de

justificativa extriacutenseca os riscos a que se submete devem ser

considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a

justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o beneficio esperado

tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa

submetida ao experimento

x) Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do

sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero

instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila e por outro

lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute

menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa

consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1222 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a

algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

y) Pode ser que diante de certas peculiaridades ou

vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo

considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa

em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua

realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo

eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima

z) Como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras

pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis

mas sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas agrave luz da

solidariedade o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias

objetivas agrave risca deve ser ainda mais rigoroso na ponderaccedilatildeo

do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave

observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da

autonomia e justiccedila

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autocircnomos e a segunda que as pessoas com autonomia diminuiacuteda devem ser protegidas Desta forma divide-se em duas exigecircncias morais separadas a exigecircncia do reconhecimento da autonomia e a exigecircncia de proteger aqueles com autonomia reduzida Esta uacuteltima exigecircncia vincula-se agrave questatildeo da vulnerabilidade que pode ser observada em certas pessoas ou grupos e que seraacute mais adiante abordada

Por sua vez o principio da beneficecircncia de acordo com Clotet e Kipper deve ser entendido como uma dupla obrigaccedilatildeo primeiramente a de natildeo-causar danos e em segundo lugar a de maximizar o nuacutemero de possiacuteveis benefiacutecios e minimizar os prejuiacutezos26

Tambeacutem este postulado mereceu larga abordagem doutrinaacuteria muitas vezes em contraponto ao princiacutepio da natildeo-maleficecircncia que perfunctoriamente impotildee a obrigaccedilatildeo de natildeo-causar intencionalmente danos a outrem

Tal preceito deita raiacutezes no discurso hipocraacutetico na expressatildeo primum non nocere Mas tambeacutem eacute possiacutevel vinculaacute-lo aacute teoria kantiana jaacute que o imperativo categoacuterico conforme o qual Age segundo maacuteximas que possam simultaneamente ter-se a si mesmas por objecto como leis universais da natureza exige uma vontade absolutamente boa ou seja afasta qualquer possibilidade de agir que natildeo seja em benefiacutecio do outro27

Jaacute em 1930 Sir David Ross estabeleceu o conceito de dever prima facie propondo que no caso de eventual conflito entre beneficecircncia e natildeo-maleficecircncia prevaleccedila esta uacuteltima28

Frankena em 1963 escreveu que o princiacutepio da beneficecircncia natildeo nos ensina como fazer a distribuiccedilatildeo do bem e do mal apenas determina que promovamos o primeiro e evitemos o segundo2 Observa-se assim que a natildeo-maleficecircncia eacute entendida como parte da beneficecircncia

O Relatoacuterio Belmont foi influenciado pelo pensamento de Frankena jaacute que tratou a natildeo-maleficecircncia como um desdobramento natural da beneficecircncia ao estabelecer duas regras gerais que devem ser formuladas como complementares das

26 CLOTET amp KIPPER Princiacutepios da beneficecircncia e natildeo-maleficecircncia In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 45

27 Id Ibidp 80-81 28 ROSS W D The right and lhe Good Oxford Clarendon 1930 p 21-22 apud GOLDIM Joseacute Roberto

Principio da Beneficecircncia Disponiacutevel em lthttpwwwbioeticaufrgsbrbenefichtmgt Acessado em 23 maio de 2006

29 Quando se manifestam exigecircncias conflitantes o mais que ele pode fazer eacute aconselhar-nos a conseguir a maior porccedilatildeo possiacutevel de bem em relaccedilatildeo ao mal Cf FRANKENA W K Eacutetica Rio de Janeiro Zahar 1981 p 61-73 apud GOLDIM Joseacute Roberto op cit

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accedilotildees beneacuteficas a) natildeo-causar o mal e b) maximizar os benefiacutecios e minimizar os danos

A seu turno o princiacutepio da justiccedila pode ser resumido no dever de imparcialidade na distribuiccedilatildeo dos riscos e benefiacutecios inerentes agrave pesquisa bem como no tratamento igualitaacuterio aos iguais30 embora naturalmente haja dificuldades na determinaccedilatildeo de quem eacute ou-natildeo igual31 Implica ainda necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa

Segundo o Relatoacuterio Belmont haveraacute injusticcedila quando eacute imposto um dano ou encargo indevidamente ou quando um benefiacutecio eacute negado a algueacutem de maneira injustificada Aleacutem disso reconhece dificuldades na determinaccedilatildeo de um criteacuterio para a distribuiccedilatildeo dos benefiacutecios havendo vaacuterias possibilidades a cada um igualmente a cada um na medida da sua necessidade a cada um conforme seu esforccedilo individual a cada um de acordo com seu meacuterito2

Alguns autores defendem que a importacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica deve ser minorada postulando por uma reflexatildeo mais autocircnoma Nos parece que esse eacute

30 Eacute o princiacutepio da justiccedila que obriga a garantir a distribuiccedilatildeo justa equumlitativa e universal dos benefiacutecios dos serviccedilos de sauacutede Impotildee que todas as pessoas sejam tratadas de igual maneira natildeo obstante suas diferenccedilas Cf SANTOS Celeste Cordeiro dos O equiliacutebrio do pecircndulo a Bioeacutetica e a lei implicaccedilotildees meacutedico-legais Satildeo Paulo iacutecone 1998 p 45

31 O princiacutepio da igualdade tem suscitado importantes debates filosoacuteficos na Histoacuteria da humanidade dando ensejo a interpretaccedilotildees as mais variadas Aristoacuteteles vinculou a igualdade agrave justiccedila que pode ser comutativa ou distributiva (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos Satildeo Paulo Editora Nova Cultural 1996) Haacute ainda os autores nominalistas que entendem que a desigualdade eacute universal e portanto a igualdade natildeo passa de um nome Jaacute LOCKE John Ensaio sobre o governo civil Traduccedilatildeo Carmo Nunes Porto Seacuteculo XX 1986 e Montcsquieu Charles Secondat de O espirito das leis Satildeo Paulo Martins Fontes 1993 ao contraacuterio entendiam que a igualdade entre as pessoas era absoluta pertencendo assim ao grupo denominado de idealistas ROSSEAU Jean-Jacques Discurso sobre a origem das desigualdades entre os homens Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 de sua parte embora tambeacutem pertenccedila a essa uacuteltima vertente admitia a existecircncia de dois tipos de desigualdades a natural (ou fiacutesica) e a moral (ou poliacutetica) Vale entretanto trazer a lume as percucicntes anotaccedilotildees de Leila Pinheiro Bellintani sobre o tema Atraveacutes da anaacutelise histoacuterica do princiacutepio da igualdade [] percebe-se claramente que este preceito passou por intensa evoluccedilatildeo tendo sua conceituaccedilatildeo moldado-se atraveacutes dos tempos agraves novas necessidades sociais Apesar do constante aprimoramento do conceito dos ideais isonocircmicos natildeo se pode dizer que as concepccedilotildees anteriores foram ultrapassadas mas sim que houve uma agregaccedilatildeo de significados no decorrer da histoacuteria fazendo do principio da igualdade o preceito complexo que ora se apresenta Assim os estaacutegios evolutivos natildeo se deram de forma isolada ou independente Ao reveacutes se acumularam como telhas sobrepostas ampliando sempre o leque de acepccedilotildees a serem salvaguardadas ocorrendo o que se pode denominar de sobreposiccedilatildeo de significados Predomina portanto a ideacuteia de cumulaccedilatildeo e natildeo de alternacircncia entre eles Pode-se dizer portanto que hodiernamente o princiacutepio da igualdade possui diversas faces que se integram e que devem ser constantemente observadas pelos aplicadores das leis legisladores e pela proacutepria comunidade BELLINTANI Leila Pinheiro Accedilatildeo Afirmativa e os Princiacutepios do Direito Rio de Janeiro Lumen Juacuteris 2006 p 19-20

32 Impossiacutevel deixar de fazer menccedilatildeo aqui agrave noccedilatildeo de justiccedila distributiva de Aristoacuteteles que tem como base uma igualdade geomeacutetrica e consiste em dar a cada um o que lhe eacute devido mas considerando a excelecircncia que cada um possui o seu valor (areteacute) para a polis () porque aquilo que eacute distribuiacutedo agraves pessoas deve secirc-lo de acordo com o meacuterito de cada uma Op cit p 198

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um falso dilema jaacute que princiacutepios natildeo devem ser aplicados como regras e portanto natildeo representam uma camisa-de-forccedila para a Bioeacutetica Embora os objetivos deste trabalho natildeo nos permitam aprofundar a discussatildeo em torno da sua origem e aplicabilidade celeuma muito comum na ciecircncia juriacutedica natildeo seraacute despiciendo relembrar ao menos que haacute uma distinccedilatildeo juriacutedica entre princiacutepios e regras e que enquanto estas uacuteltimas satildeo aplicadas a partir da oacutetica do ali or nothing excluindo-se mutuamente os primeiros convivem entre si natildeo se excluem e representam motivos para decidir em determinado sentido

Portanto podemos afirmar que os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica pluralista aberta e receptiva Aleacutem disso pragmaticamente a aplicaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo dos princiacutepios em cada caso concreto eacute poderoso instrumento para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

Por tudo isso parece descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos debates bioeacuteticos Tanto assim eacute que a tendecircncia moderna eacute no sentido do reconhecimento de princiacutepios universais da Bioeacutetica Importante anotar por exemplo que o uacuteltimo documento internacional acerca do tema a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO datada de 2005 eacute fortemente principioloacutegica e dentre outros aspectos deliberou ser necessaacuterio e oportuno que a comunidade internacional declare princiacutepios universais que proporcionaratildeo uma base para a resposta da humanidade aos sempre crescentes dilemas e controveacutersias que a ciecircncia e a tecnologia apresentam agrave raccedila humana e ao meio ambiente

Deve-se lembrar finalmente que a abordagem dos princiacutepios da Bioeacutetica em separado tem uma justificativa puramente didaacutetica jaacute que eles natildeo podem ser cindidos na sua conceituaccedilatildeo e muito menos na sua aplicaccedilatildeo praacutetica34

4 Experimentaccedilatildeo em seres humanos aspectos da normatizaccedilatildeo nacional e internacional

Sobre princiacutepios a literatura juriacutedica eacute vasta Vide vg ALEXY Robert Teoria de tos Derechos Fundamentales Madrid Centro de Estuacutedios Constitucionales 1997 p 81-172 DWORKFN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1997 AacuteVILA Humberto Teoria dos Princiacutepios da definiccedilatildeo agrave aplicaccedilatildeo dos princiacutepios juriacutedicos 2 ed Satildeo Paulo Malheiros Editores 2003 ROTHEMBURG Waller Claudius Princiacutepios Constitucionais Porto Alegre Seacutergio Antonio Fabris 1999

4 Nesse sentido GUIMARAtildeES Maria Carolina S Eacutetica biomeacutedica e pesquisa em grupos humanos Revista Meacutedica de Minas Gerais v 3 n 1 p 52-53 janmar 1993 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO destina o seu art 26 agrave inter-relaccedilatildeo e complementaridade dos princiacutepios dispondo que A presente Declaraccedilatildeo deve ser considerada em sua totalidade e seus princiacutepios devem ser compreendidos como complementares e inter-relacionados Cada princiacutepio deve ser interpretado no contexto dos demais de forma pertinente e adequada a cada circunstacircncia

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No seacuteculo XVI Galileu passou a buscar a verdade atraveacutes da experimentaccedilatildeo e da observaccedilatildeo das coisas desvinculando-se da verdade dos escolaacutesticos ou da Igreja Esse eacute considerado o marco de referecircncia das origens da ciecircncia experimental a qual terminou por proporcionar a Revoluccedilatildeo Cientiacutefica nos seacuteculos seguintes35 Esta uacuteltima abriu as portas para uma nova era na humanidade multiplicando o conhecimento e as descobertas gerando tecnologia A tecnologia passou a imprimir uma velocidade cada vez maior nas transformaccedilotildees cientiacuteficas e sociais A velocidade com que as mudanccedilas ocorrem por sua vez municia o Homem com novas perspectivas e instrumentos sempre mais apurados de investigaccedilatildeo o que implica em mais tecnologia36 Investigaccedilatildeo pesquisa conhecimento mudanccedilas tecnologia velocidade formam uma espeacutecie de ciacuterculo virtuoso - natildeo-vicioso31 e satildeo palavras indissociaacuteveis da realidade nos uacuteltimos tempos a partir do seacuteculo XX no qual testemunhamos pelo menos duas espantosas revoluccedilotildees a atocircmica e a molecular38

Todo esse acervo mudou por completo as sociedades e o pensamento humano e natildeo se trata de um processo jaacute findo Pelo contraacuterio muito ainda estaacute por vir Natildeo se sabe aliaacutes se o Homem encontraraacute fronteiras tecnologicamente intransponiacuteveis Essa perspectiva de escassez de barreiras teacutecnicas conduz ao debate sobre a necessidade

35 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 edbdquo rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179

36 Por exemplo vale lembrar o ocorrido durante o desenrolar dos estudos do projeto genoma humano Segundo Jordan (1993) o verdadeiro objetivo inicial do PGH natildeo era o sequumlenciamento muito complexo caro e trabalhoso mas um mapeamento detalhado do genoma humano No decorrer do processo os progressos tecnoloacutegicos foram tatildeo grandes que propiciaram o sequumlenciamento mesmo antes do prazo previsto Cf GOLDIM Joseacute Roberto MATTE Uacutersulla Projeto Genoma Humano - HUGO Disponiacutevel em lthttpwwwufrgsbrbioeticagenomahtmgt Acessado em 28 maio de 2006

37 Natildeo se desconhece entretanto que o ser humano eacute capaz visando objetivos condenaacuteveis natildeo apenas de bloquear pesquisas mas tambeacutem de manipulaacute-las ou de realizaacute-las de forma direcionada propositadamente sem a observacircncia de criteacuterios cientiacuteficos Todavia antes de examinar a transmissatildeo de conhecimentos eacute necessaacuterio acenar para a sua fonte primaacuteria a pesquisa cientiacutefica Tambeacutem aiacute natildeo faltam aacutereas de conflito Foram sobretudo analisadas as frequumlentes ameaccedilas ao conhecimento e agrave informaccedilatildeo cientiacutefica provenientes de decisotildees poliacuteticas ou da proteccedilatildeo de interesses particulares Dentre as decisotildees poliacuteticas a diretora do Instituto Nacional da Seguranccedila e da Sauacutede Ocupacional (NIOSH) dos EUA Linda Rosenstock recordou aquelas assumidas pelo Congresso nos uacuteltimos anos dentro de um quadro de reduccedilatildeo de muitos programas para a proteccedilatildeo aos trabalhadores com a finalidade de bloquear a utilizaccedilatildeo de pesquisas no campo das artropatias do trabalho e de estudos sobre a relaccedilatildeo entre a motorizaccedilatildeo e os tumores e tambeacutem encobrir o fato de duas organizaccedilotildees internacionais designadas para a proteccedilatildeo agrave sauacutede a Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e a Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho estatildeo sob a acusaccedilatildeo de ter manipulado os relatoacuterios teacutecnicos relativos agrave induacutestria do asbesto Dentre os interesses particulares prcvalcccm aqueles das induacutestrias que encomendam pesquisas com a finalidade de demonstrar a inexistecircncia de efeitos nocivos (o exemplo mais macroscoacutepico concerne ao tabaco) ou entatildeo aumentar as incertezas para evitar fazer o que eacute necessaacuterio com base em conhecimentos jaacute comprovados ou mesmo sugerir procedimentos que alongam indefinidamente os periacuteodos de intervenccedilatildeo Cf BERLINGUER Giovanni Bioeacutetica Cotidiana Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2004 p 147-148

38 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia op cit p 159-179

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de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees tendo em conta que a teoria de haacute muito jaacute advertiu1 e a experiecircncia jaacute nos ensinou como adiante se veraacute que a ausecircncia de limites pode levar ao abuso

Embora isso possa ocorrer em vaacuterios campos como vg a economia e a poliacutetica sem duacutevida a aacuterea biomeacutedica eacute uma das que mais merecem nossa atenccedilatildeo natildeo soacute porque estaacute entre as mais influenciadas por essas transformaccedilotildees mas tambeacutem porque eacute uma das que mais tem potencial de desenvolvimento aleacutem do fato oacutebvio de estar diretamente ligada agrave vida humana Exatamente por isso cresce a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave vida especialmente a Medicina40

O acreacutescimo jaacute obtido na expectativa de vida do Homem que praticamente dobrou nos uacuteltimos dois seacuteculos decorrente de vaacuterios fatores dentre os quais uma verdadeira revoluccedilatildeo terapecircutica41 natildeo eacute suficiente As pessoas querem viver ainda mais e com melhor qualidade Por isso cobram mais avanccedilos tecnoloacutegicos nessa aacuterea despertando interesses diversos que vatildeo dos humanitaacuterios aos puramente comerciais e econocircmicos Chega-se a se falar ateacute mesmo em um direito agrave pesquisa que deve figurar entre as liberdades fundamentais unanimemente reconhecidas42

Para que esses desejos se tornem viaacuteveis eacute preciso conhecer cada vez mais profundamente a complexa maacutequina que eacute o corpo humano desenvolver novos faacutermacos medicamentos vacinas e terapias para combater doenccedilas descobrir a fonte da juventude atraveacutes de meacutetodos de desaceleraccedilatildeo - ou quiccedilaacute interrupccedilatildeo - da degeneraccedilatildeo celular dentre outras possibilidades e desafios

Por exemplo eacute conhecida nos meios juriacutedicos a passagem que adverte () mas trata-se de uma experiecircncia eterna que todo homem que possui poder eacute levado a dele abusar ele vai ateacute onde encontra limites Quem diria Ateacute a virtude precisa de limites MONTESQUIEU Charles de Secondat op cit p 170

40 Natildeo eacute agrave toa portanto que em interessante estudo sobre as exigecircncias referentes aos aspectos eacuteticos da pesquisa em revistas cientiacuteficas brasileiras se chegou agrave conclusatildeo de que As revistas de medicina e enfermagem apresentaram maior preocupaccedilatildeo com as orientaccedilotildees eacuteticas do que as revistas natildeo-meacutedicas classificadas nos grupos de miscelecircncia e odontologia sugerindo que o debate eacutetico da experimentaccedilatildeo em seres humanos estaacute mais difundido nas aacutereas meacutedica e de enfermagem do que em outras aacutereas da sauacutede Tal no entanto natildeo representa necessariamente um dado a ser festejado pois o resultado global comprovou que 791 das revistas cientiacuteficas estudadas natildeo fazem qualquer referecircncia aos aspectos eacuteticos Cf T SARDENBERG S S MUumlLLER H R PEREIRA R A DE OLIVEIRA W S HOSSNE Anaacutelise dos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos contidos nas Instruccedilotildees aos Autores de 139 rev istas cientiacuteficas brasileiras Revista da Associaccedilatildeo Meacutedica do Brasil v 45 n 4 p 295-302 1999

41 Sobre a chamada revoluccedilatildeo terapecircutica vide dentre outros BERNARD Jean La Bioeacutethique Paris Dominos Flammarion 1994 p 14-33

42 Conforme LAFON Claudc De la Biologie agrave Ia Bioeacutethique Paris Ellipses 2006 p 30

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1199

A concretizaccedilatildeo desses objetivos depende de inuacutemeros fatores ligados agrave pesquisa cientiacutefica43 dentre os quais um que eacute o ponto central deste trabalho a experimentaccedilatildeo em seres humanos De fato o progresso do nosso conhecimento no passado e no futuro estaacute intimamente ligado agrave necessidade de observaccedilatildeo do funcionamento e da reaccedilatildeo do corpo e da mente humanas44

Em outras palavras eacute preciso tomar o ser humano como sujeito de pesquisa45

Esse fato bom que se diga natildeo eacute exatamente novo tem ocorrido no correr dos tempos suscitando questotildees eacuteticas de suma relevacircncia pois nem sempre as pessoas estudadas tiveram o trato adequado

A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda Guerra mormente as realizadas pelos japoneses e nazistas alematildees tais como a infestaccedilatildeo de prisioneiros com doenccedilas para testar vacinas e a esterilizaccedilatildeo e amputaccedilatildeo de membros46 trouxeram agrave tona a questatildeo da

43 A discussatildeo a respeito das pesquisas natildeo pode se limitar agravequelas de natureza meacutedica e farmacoloacutegica onde os impactos e riscos satildeo maiores e mais perceptiacuteveis E ampla a definiccedilatildeo de pesquisas em seres humanos adotada pela Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede conforme adiante se veraacute Leonard M Martin C Ss R preleciona O documento pretende regulamentar toda pesquisa em seres humanos e natildeo apenas pesquisas puramente biomeacutedicas Nesta perspectiva pesquisas socioloacutegicas e antropoloacutegicas tambeacutem devem passar pelo crivo de Comitecircs de Eacutetica independentes e ser alvo de discussatildeo sobre sua eticidade MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

44 O efeito de um tratamento sobre o homem soacute pode ser observado no proacuteprio homem Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

45 Esse fenocircmeno ocorre em todas as aacutereas do conhecimento e natildeo apenas nas ciecircncias biomeacutedicas Na realidade quando se fala em experimentaccedilatildeo com seres humanos pensa-se quase que exclusivamente na experimentaccedilatildeo no campo da Medicina Essa vinculaccedilatildeo eacute compreensiacutevel pois a experimentaccedilatildeo na aacuterea meacutedica eacute mais visiacutevel e de efeitos mais patentes em geral Contudo eacute bom assinalar que seres humanos satildeo utilizados em experimentaccedilatildeo por profissionais e cientistas de outras aacutereas odontoacutelogos nutricionistas farmacecircuticos fisioterapeutas psicoacutelogos profissionais da aacuterea de educaccedilatildeo fiacutesica e de esporte educadores e tambeacutem economistas Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179 Leonard M Martin C Ss R com base em McNeill e Jonsen destaca que [] as experiecircncias antieacuteticas dos nazistas incluiacuteram colocar prisioneiros em cacircmaras de pressatildeo modificar a pressatildeo atmosfeacuterica e observar suas mortes estudar o impacto sobre o corpo humano de imersatildeo em aacutegua gelada por periacuteodos prolongados infectar os internos com tifo malaacuteria e outras doenccedilas para testar drogas e vacinas esterilizaccedilatildeo e castraccedilatildeo procurando meacutetodos eficazes para esterilizaccedilatildeo em massa administrar venenos para estudar os efeitos letais e estudos com gecircmeos tipo infectando um matando os dois e comparando os corpos em autoacutepsia No atinente a experiecircncias japonesas MARTIN informa que no ala de desenvolver armas bioloacutegicas [] os japoneses atacaram pelo menos onze cidades com armas bioloacutegicas e infestaram uma cidade com pulgas portadores da peste bubocircnica A Unidade 731 tambeacutem era uma prisatildeo onde os prisioneiros foram submetidos a experiecircncias desumanas Houve cirurgia experimentais pessoas foram desidratadas ateacute a morrer alguns tiveram braccedilos congelados e depois degelados usando vaacuterios meacutetodos com a consequumlecircncia de que a carne apodreceu e caiu o fiacutegado de outras pessoas foi exposto por longos

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eacutetica na pesquisa evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana47 e de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa em seres humanos48

Como resposta agraves atrocidades praticadas na Segunda Guerra foi instituiacutedo em 1947 no acircmbito internacional pelo Tribunal de Nuremberg que julgou vinte e trecircs criminosos de guerra nazistas dos quais vinte meacutedicos ligados agrave experimentaccedilatildeo em pessoas49 o denominado Coacutedigo de Nuremberg o qual estabeleceu as diretrizes gerais para pesquisa em seres humanos A doutrina destaca como principais conquistas do coacutedigo o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa em retirar-se do experimento e de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias deste bem como a necessidade de estudos preacutevios sobre a importacircncia da pesquisa e os seus riscos aleacutem da comprovaccedilatildeo da capacidade dos pesquisadores50

Um ano depois a humanidade assiste agrave proclamaccedilatildeo agora pela Assembleacuteia Geral das Naccedilotildees Unidas de um outro documento de suma importacircncia a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos que embora de caraacuteter geral alberga

periacuteodos ao raio-X houve casos do sangue da pessoa ser substituiacutedo por sangue de cavalo e quando as cobaias humanas natildeo serviam mais para as experiecircncias foram executadas O autor ainda ressalta que diferentemente dos alematildees que foram condenados alguns inclusive enforcados os americanos resolveram poupar os japoneses permitindo que continuassem suas carreiras MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

4 Haacute quem afirme - sem razatildeo ao nosso ver - que a dignidade eacute um conceito inuacutetil um mero slogan e que natildeo significaria mais do que o respeito pelas pessoas e por sua autonomia Nesse sentido vide vg MACKLIN Ruth Dignity is a useless concept Brilish Medica Journal v 327 p 20-27 dez 2003 Disponiacutevel em lthttpbmjbmjjournalscomcgicontentfull3277429l419gt Aacessado em 27 maio de 2006 Em sentido inverso sobre as relaccedilotildees entre a Bioeacutetica e a dignidade vide dentre outros ADORNO Roberto La bioegravetique et la dignitegrave de Ia persone Paris Presses Universitaires de France 1997 Os documentos internacionais mencionam o elo entre Bioeacutetica e dignidade A jaacute mencionada Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten por exemplo afirma textualmente que A pesquisa e experiecircncia com seres humanos devem ser realizadas harmonizando a liberdade da ciecircncia e o respeito da dignidade humana

48 A experimentaccedilatildeo em seres humanos causa impacto porque as pessoas temem o abuso Os abusos jaacute ocorreram estatildeo ocorrendo c ainda ocorreratildeo mas proibir o uso natildeo eacute a melhor maneira de impedir o abuso Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

49 Estima-se que centenas de meacutedicos atuaram nos campos de concentraccedilatildeo dos quais pelo menos setenta teriam participado de experimentos com seres humanos A maioria dos meacutedicos de maior expressatildeo conseguiram escapar do julgamento como foi o caso de Josef Mengele principal meacutedico do campo de extermiacutenio de Auschwitz que fugiu e chegou a viver 14 anos no Brasil onde morreu afogado em Bertioga em 1979 O julgamento levou oito meses As sentenccedilas e o Coacutedigo de Nuremberg foram anunciados conjuntamente em 19 de agosto de 1947 Sete acusados foram condenados agrave morte Cf CREMESP Diretrizes e Declaraccedilotildees Disponiacutevel em lthttpvwvbiocticaorgbrlegislacaooutras_diretrizesintegraphpgt Acessado em 30 maio 2006 Discute-se hoje a validade cientiacutefica dos experimentos realizados bem como se eacute eacutetico utilizar os resultados obtidos Nesse sentido vide mateacuteria intitulada Doutores da agonia publicada na revista Superinteressante ed 225 abr2006 p 52-61

50 Cf FREITAS Corina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 195

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direitos que natildeo podem ser olvidados quando da experimentaccedilatildeo com seres humanos a exemplo da dignidade da igualdade e da liberdade Aleacutem disso haacute diversas ligaccedilotildees entre a Declaraccedilatildeo e os princiacutepios da Bioeacutetica51

Assim como a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos o Coacutedigo de Nuremberg proclama criteacuterios princiacutepios miacutenimos e irredutiacuteveis para eticidade da pesquisa em seres humanos Ambas as declaraccedilotildees embora de grande importacircncia para a Bioeacutetica satildeo normalmente entendidas como desprovidas de instrumentos adequados de obrigatoriedade52 e de mecanismos sancionatoacuterios de modo que sua infraccedilatildeo na maioria dos casos tem gerado apenas sanccedilotildees morais

Natildeo-obstante o estabelecido no Coacutedigo de Nuremberg - e na Declaraccedilatildeo Universal - as violaccedilotildees continuaram a ocorrer inclusive nos paiacuteses signataacuterios De fato por exemplo nos Estados Unidos teve continuidade como se nada houvesse acontecido a famosa pesquisa sobre siacutefilis em Tuskegee no condado de Macon Alabama financiada com recursos federais onde especialmente negros e pobres acreditavam que estavam se submetendo a um tratamento especial gratuito quando na verdade nada recebiam embora jaacute houvesse medicamentos disponiacuteveis servindo como verdadeiras cobaias entre 1932 e 1973 para que os pesquisadores pudessem acompanhar o desenvolvimento da doenccedila1 Ainda exemplificativamente foi iniciado em 1946 o chamado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm um dos mais famosos e importantes estudos de odontologia jaacute realizados no qual mais de 436 deficientes mentais crocircnicos internos da cidade de Lund no sul da Sueacutecia que natildeo tinham sequer a menor consciecircncia do que ocorria foram submetidos ateacute 1951 a uma dieta especial rica em accediluacutecar para provar que esta substacircncia provocava caacuteries sem que lhes fosse dado qualquer tratamento54

Por exemplo ao afirmar no seu art 1deg que todas pessoas satildeo dotadas de razatildeo e consciecircncia o documento da ONU reforccedila a ideacuteia de autonomia

52 Em relaccedilatildeo agrave Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Faacutebio Konder Comparato afirma que embora seja tecnicamente apenas uma recomendaccedilatildeo da ONU a seus membros os direitos ali definidos correspondem integralmente ao que o costume e os princiacutepios juriacutedicos internacionais reconhecem hoje como normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens) como a proacutepria Corte Internacional de Justiccedila tem entendido COMPARATO Faacutebio Konder A afirmaccedilatildeo histoacuterica dos Direitos Humanos 4 ed rev e atual Satildeo Paulo Saraiva 2005 p 223-224

53 Vide vg a respeito REVERBY S M More than Fact and Fiction Cultural Memory and the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 31 p 22-28 2001 BRANDT A M Racism and Research The Case of the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 8 p 21-29 1978 BEECHER H K Ethics and Clinicai Research New England Journal of Medicine n 274 p 1354-1360 1966

54 Cf SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas clinicas sobre seus direitos 2005 p 55-61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

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Os avanccedilos tecnoloacutegicos cada vez mais raacutepidos reverberaram nas questotildees eacuteticas forccedilando novas e perioacutedicas revisotildees Necessaacuterio se fez portanto a rediscussatildeo do tema e o aprimoramento do sistema normativo Assim sobreveio a Declaraccedilatildeo de Helsinque elaborada pela Associaccedilatildeo Meacutedica Mundial em 1964 texto que foi revisto e ampliado em 1975 (Toacutequio)55 1983 (Veneza) 1989 (Hong Kong) 1996 (Somerset) e 2000 (Edimburgo) com o que foram incorporadas vaacuterias inovaccedilotildees Por exemplo a disposiccedilatildeo no sentido de que No final do estudo todos os pacientes participantes devem ter assegurado o acesso aos melhores meacutetodos comprovados profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos identificados pelo estudo E no atinente ao uso de placebo que Os benefiacutecios riscos dificuldades e efetividade de um novo meacutetodo devem ser testados comparando-os com os melhores meacutetodos profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos atuais Isto natildeo exclui o uso de placebo ou nenhum tratamento em estudo onde existam meacutetodos provados de profiacutelaxia diagnoacutestico e tratamento 56 Foi tambeacutem reforccedilada a recomendaccedilatildeo do Coacutedigo de Nuremberg sobre a necessidade de submissatildeo do protocolo de pesquisa agrave anaacutelise por um Comitecirc de Eacutetica independente do pesquisador

Outros textos e documentos que tratam da pesquisa merecem referecircncia como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos de 196657 o intitulado Diretrizes Internacionais para a pesquisa biomeacutedica em seres humanos elaborado conjuntamente pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e pelo Council for International Organizations of Medicai Sciences (1993) a Declaraccedilatildeo de Manila (1981) a Declaraccedilatildeo de Princiacutepios Eacuteticos dos Meacutedicos do Mercosul (1996) a Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten (2000) e a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da Unesco (2005)

Em que pese o entendimento de que haacute carecircncia de instrumentos imperativos que garantam a exigibilidade dos referidos documentos sem duacutevida eles

A respeito Leo Pessini e Christian de Paul Barehifontaine ensinam que Tal modificaccedilatildeo fieou conhecida como Helsinque II Entre outros pontos importantes foram incluiacutedos nesta revisatildeo os seguintes aspectos I) Exigecircncia de que o protocolo experimental seja aprovado por uma comissatildeo independente para efeito de apreciaccedilatildeo comentaacuterios e orientaccedilatildeo (item I 2) 2) Que os seres humanos natildeo sejam utilizados em pesquisas a menos que o consentimento consciente do paciente dado livremente tenha sido obtido depois do mesmo ter sido adequadamente informado sobre os objetivos meacutetodos benefiacutecios esperados riscos potenciais e inconvenientes da experimentaccedilatildeo e que ele tenha liberdade de se abster e de cancelar sua participaccedilatildeo a qualquer momento (art I 9) 3) Que o protocolo contenha embasamento eacutetico da pesquisa e a referecircncia de que foram obedecidos os princiacutepios da Declaraccedilatildeo de Helsinque (item I 12) 4) Que os interesses da ciecircncia e da sociedade jamais tenham precedecircncia sobre o bem-estar do indiviacuteduo (item III 4) PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Problemas aluais de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1994 p 131

56 GRECO Dirceu B Poder e injusticcedila na pesquisa envolvendo seres humanos In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 264

57 De acordo com o seu art 7o Ningueacutem poderaacute ser submetido a tortura nem a penas ou tratamentos crueacuteis desumanos ou degradantes Seraacute proibido sobretudo submeter uma pessoa sem seu livre consentimento a experiecircncias meacutedicas ou cientiacuteficas

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contribuiacuteram e contribuem significativamente na proteccedilatildeo ao ser humano objeto de pesquisa pois influenciaram a elaboraccedilatildeo de diretrizes vinculantes no plano individual de cada Estado a exemplo do Brasil como a seguir veremos Por outro lado importante anotar que uma harmonia consensual e global no atinente agrave pesquisa parece impossiacutevel tendo em conta que a cultura os objetivos e as condiccedilotildees cientiacuteficas dos diversos paiacuteses satildeo naturalmente diversificados58 Aliaacutes haacute quem chegue a afirmar que o pluralismo eacutetico em vigor nos dias de hoje natildeo nos permite mais falar em moral universal59

No Brasil a normatizaccedilatildeo se daacute principalmente atraveacutes de resoluccedilotildees do Conselho Federal de Medicina60 e do Conselho Nacional de Sauacutede Aliaacutes a primeira resoluccedilatildeo deste uacuteltimo oacutergatildeo - Resoluccedilatildeo n 01 de 13 de junho de 1988 - tratou justamente de normas de pesquisa em sauacutede tendo dedicado o seu Capiacutetulo II arts 4o a 16 aos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos Esse diploma legal foi posteriormente revogado pela Resoluccedilatildeo n 196 de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Sauacutede que eacute atualmente a base regulamentar da pesquisa no Brasil tratando das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos Esta Resoluccedilatildeo eacute na verdade uma revisatildeo da anterior tendo sido precedida de diaacutelogo entre governo e sociedade civil61

A Resoluccedilatildeo atual afirma jaacute em seu preacircmbulo a sua fundamentaccedilatildeo nos principais documentos internacionais que emanaram declaraccedilotildees e diretrizes sobre

58 Nesse contexto por tanto deve ser considerada a questatildeo do multicuturalismo Como bem ensinam Joseacute A Mainetti Joseacute L Mainettil Existen dificultades en la aplicacioacuten de los principos elaborados por los paiacuteses centrales y es una evidencia por ejemplo que resulta inapropiada la visioacuten estrccha de la autonomia y la aplicacioacuten riacutegida dei requisito dei consentimento informado al modo norteamericano en determinadas circunstancias y comunidades Es preciso entoces reconocer Ias diferenccedilas culturales y en base a eacutestas aplicar los princiacutepios sin renunciar a cllos en formas maacutes adecuadas al ethos particular MAINETTI Joseacute A MAINETTI Joseacute L Bioeacutetica y la experimentacioacuten humana In SOROKIN Patriacutecia (Coord) Bioeacutelica entre utopias y desarraigos Buenos Aires Ad-Hoc Villela 2002 p 190

59 Cf ENGELHARDT JUacuteNIOR Tristam apuei BAUZON Steacutephane La personne biojuridique Paris Press Universitaires de France 2006 p 63

60 Vide como exemplo a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro o qual no seu Capiacutetulo XII trata especificamente da pesquisa meacutedica

61 Cf FREITAS Corina Bontempo Duca de Eacutetica na pesquisa com seres humanos A experiecircncia brasileira In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutelica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 307

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pesquisas que envolvem seres humanos62 e que visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito agrave comunidade cientiacutefica aos sujeitos da pesquisa e ao Estado

Aleacutem disso vinculou a experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da principiologia da Bioeacutetica seja no preacircmbulo onde afirma que incorpora sob a oacutetica do indiviacuteduo e das coletividades os quatro referenciais baacutesicos da Bioeacutetica autonomia natildeo-maleficecircncia beneficecircncia e justiccedila entre outros seja no seu item III 1 que versa sobre a eticidade na pesquisa63

Entre as suas disposiccedilotildees encontramos definiccedilotildees de diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica pesquisa64 pesquisa envolvendo seres humanos65

protocolo de pesquisa66 pesquisador responsaacutevel67 instituiccedilatildeo de pesquisa68 promotor69

patrocinador70 risco da pesquisa71 dano associado ou decorrente da pesquisa72 sujeito da

62 Cila a Resoluccedilatildeo os seguintes documentos o Coacutedigo de Nuremberg (1947) a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem (1948) a Declaraccedilatildeo de Helsinque (1964 e suas versotildees posteriores de 1975 1983 e 1989) o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Poliacuteticos (ONU 1966 aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1992) as Propostas de Diretrizes Eacuteticas Internacionais para Pesquisas Biomeacutedicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMSOMS 1982 e 1993) e as Diretrizes Internacionais para Revisatildeo Eacutetica de Estudos Epidemioloacutegicos (C10MS 1991) III1 - A eticidade da pesquisa implica em a) consentimento livre e esclarecido dos indiviacuteduos-alvo e a proteccedilatildeo a grupos vulneraacuteveis e aos legalmente incapazes (autonomia) Neste sentido a pesquisa envolvendo seres humanos deveraacute sempre trataacute-los em sua dignidade respeitaacute-los em sua autonomia e defendecirc-los em sua vulnerabilidade b) ponderaccedilatildeo entre riscos e benefiacutecios tanto atuais como potenciais individuais ou coletivos (beneficecircncia) comprometendo-se com o maacuteximo de benefiacutecios e o miacutenimo de danos e riscos c) garantia de que danos previsiacuteveis seratildeo evitados (natildeo maleficecircncia)- d) relevacircncia social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimizaccedilatildeo do ocircnus para os sujeitos vulneraacuteveis o que garante a igual consideraccedilatildeo dos interesses envolvidos natildeo perdendo o sentido de sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria (justiccedila e equumlidade) (negritos originais)

64 111 Pesquisa classe de atividades cujo objetivo eacute desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizaacutevel O conhecimento generalizaacutevel consiste em teorias relaccedilotildees ou princiacutepios ou no acuacutemulo de informaccedilotildees sobre as quais estatildeo baseados que possam ser corroborados por meacutetodos cientiacuteficos aceitos de observaccedilatildeo e infercncia

65 112 Pesquisa envolvendo seres humanos pesquisa que individual ou coletivamente envolva o ser humano de forma direta ou indireta em sua totalidade ou partes dele incluindo o manejo de informaccedilotildees ou materiais

66 II3 Protocolo de Pesquisa Documento contemplando a descriccedilatildeo da pesquisa em seus aspectos fundamentais informaccedilotildees relativas ao sujeito da pesquisa agrave qualificaccedilatildeo dos pesquisadores e a todas as instacircncias responsaacuteveis

67 II-4 Pesquisador responsaacutevel pessoa responsaacutevel pela coordenaccedilatildeo e realizaccedilatildeo da pesquisa e pela integridade e bem-estar dos sujeitos da pesquisa

68 II5 - Instituiccedilatildeo de pesquisa - organizaccedilatildeo puacuteblica ou privada legitimamente constituiacuteda e habilitada na qual satildeo realizadas investigaccedilotildees cientiacuteficas

69 116 - Promotor - indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo responsaacutevel pela promoccedilatildeo da pesquisa 70 II7 - Patrocinador - pessoa fiacutesica ou juriacutedica que apoia financeiramente a pesquisa 71 II8 Risco da pesquisa - possibilidade de danos agrave dimensatildeo fiacutesica psiacutequica moral intelectual social

cultural ou espiritual do ser humano em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente II9 Dano associado ou decorrente da pesquisa agravo imediato ou tardio ao indiviacuteduo ou agrave coletividade com nexo causai comprovado direto ou indireto decorrente do estudo cientiacutefico

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pesquisa73 consentimento livre e esclarecido74 indenizaccedilatildeo75 ressarcimento6 Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (CEP)77 vulnerabilidade78 e incapacidade79

A Resoluccedilatildeo regulamentou os Comitecircs de Eacutetica e Pesquisa - CEPs80 em cujas funccedilotildees81 destaca-se a apreciaccedilatildeo do protocolo da pesquisa em todas as suas especificidades o que foi um grande passo no sentido da construccedilatildeo de padrotildees eacuteticos82

Haacute requisitos para a instituiccedilatildeo dos Comitecircs principalmente no atinente agrave sua composiccedilatildeo83

1110 Sujeito da pesquisa eacute o(a) participante pesquisado(a) individual ou coletivamente de caraacuteter voluntaacuterio vedada qualquer forma de remuneraccedilatildeo IIII Consentimento livre e esclarecido anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal livre de viacutecios (simulaccedilatildeo fraude ou erro) dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar formulada em um termo de consentimento autorizando sua participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa 1112 - Indenizaccedilatildeo - cobertura material em reparaccedilatildeo a dano imediato ou tardio causado pela pesquisa ao ser humano a ela submetida 1113 Ressarcimento - cobertura em compensaccedilatildeo exclusiva de despesas decorrentes da participaccedilatildeo do sujeito na pesquisa 1114 - Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa-CEP - colegiados interdisciplinares e independentes com munus puacuteblico de caraacuteter consultivo deliberativo e educativo criados para defender os interesses dos sujeitos da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrotildees eacuteticos 1115 Vulnerabilidade refere-se a estado de pessoas ou grupos que por quaisquer razotildees ou motivos tenham a sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido 1116 - Incapacidade - Refere-se ao possiacutevel sujeito da pesquisa que natildeo tenha capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido devendo ser assistido ou representado de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira vigente O CEP pode ser entendido como um oacutergatildeo controlador da pesquisa por um lado mas por outro eacute tambeacutem um oacutergatildeo que ajuda a harmonizar diversos interesses que como vimos podem ser os mais diversos e agraves vezes ateacute conflitantes Cf PALAacuteCIOS Marisa Eacutetica na pesquisa - 1 Eacutetica em pesquisa em seres humanos In PALAacuteCIOS Marisa MARTINS Andreacute PEGORARO Olinto A (Orgs) Eacutetica ciecircncia e sauacutede humana Petroacutepolis Vozes 2001 p 74 Satildeo atribuiccedilotildees conferidas pela Resoluccedilatildeo aos CEPs a) revisar todos os protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos b) emitir parecer consubstanciado por escrito c) manter a guarda confidencial de todos os dados obtidos na execuccedilatildeo de sua tarefa e arquivamento do protocolo completo que ficaraacute agrave disposiccedilatildeo das autoridades sanitaacuterias d) acompanhar o desenvolvimento dos projetos atraveacutes de relatoacuterios anuais dos pesquisadores e) desempenhar papel consultivo e educativo 0 receber dos sujeitos da pesquisa ou de qualquer outra parte denuacutencias de abusos ou notificaccedilatildeo sobre fatos adversos que possam alterar o curso normal do estudo decidindo pela continuidade modificaccedilatildeo ou suspensatildeo da pesquisa devendo se necessaacuterio adequar o termo de consentimento considerando-se anti-eacutetica a pesquisa descontinuada sem justificativa aceita pelo CEP que a aprovou g) requerer instauraccedilatildeo de sindicacircncia agrave direccedilatildeo da instituiccedilatildeo em caso de denuacutencias de irregularidades de natureza eacutetica nas pesquisas e em havendo comprovaccedilatildeo comunicar agrave Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa CONEPMS e no que couber a outras instacircncias e h) manter comunicaccedilatildeo regular e permanente com a CONEPMS A existecircncia de oacutergatildeos com a funccedilatildeo de aprovar e acompanhar pesquisas jaacute era preconizada por exemplo pelo Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988) cujo art 127 veda ao

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Foi mais aleacutem a Resoluccedilatildeo que de modo inovador reforccedilou o controle eacutetico e a defesa da dignidade da pessoa humana com a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa - CONEP84 que atua na direccedilatildeo e orientaccedilatildeo dos comitecircs8S A comissatildeo de acordo com a Resoluccedilatildeo eacute uma instacircncia colegiada de natureza consultiva deliberativa normativa independente vinculada ao Conselho Nacional de Sauacutede86 Essa vinculaccedilatildeo eacute bastante positiva posto que a alternativa de submetecirc-la a outros oacutergatildeos poderia dar ensejo a uma indesejada politizaccedilatildeo dos seus membros o que seria capaz de terminar por afetar a sua autonomia

meacutedico Realizar pesquisa meacutedica em ser humano sem submeter o protocolo a aprovaccedilatildeo e acompanhamento de comissatildeo isenta de qualquer dependecircncia em relaccedilatildeo ao pesquisador O colegiado com nuacutemero natildeo inferior a 7 (sete) membros deve ser multidisciplinar abrangendo profissionais idocircneos e de distinta formaccedilatildeo da aacuterea de sauacutede e das ciecircncias exatas sociais e humanas incluindo por exemplo juristas teoacutelogos socioacutelogos filoacutesofos bioeticistas aleacutem de membros da sociedade e obrigatoriamente pelo menos um membro representando os usuaacuterios Se a pesquisa envolver grupos vulneraacuteveis comunidades e coletividades um dos seus representantes deveraacute ser convidado para participar como membro ad hoc do CEP da anaacutelise do projeto especiacutefico Assim o CEP ainda segundo a Resoluccedilatildeo teraacute sempre um caraacuteter multi e transdisciplinar sendo vedado que mais que metade de seus membros pertenccedilam a uma mesma categoria profissional devendo ainda participarem pessoas dos dois sexos Satildeo permitidos consultores ad hoc pessoas que pertencem ou natildeo aacute instituiccedilatildeo com o objetivo de fornecer subsiacutedios teacutecnicos Merece ainda atenccedilatildeo especial a autonomia do comitecirc cuja manifestaccedilatildeo deve ser totalmente autocircnoma e imaculada de coaccedilotildees ou pressotildees dos interessados A autonomia e a independecircncia satildeo condiccedilotildees sine qua non para a desejada eficaacutecia dos comitecircs que felizmente estatildeo se proliferando em nosso paiacutes Conforme informaccedilotildees do site da CONEP satildeo 446 CEPs aprovados no Brasil ateacute janeiro de 2006 Disponiacutevel em lthttpoonselhosaudegovbrcomissaoconep2006ceps20APROVADOSxlsgt Acessado em 04 jun 2006 A Comissatildeo tem 13 membros titulares e o mesmo nuacutemero de suplentes em uma composiccedilatildeo que tambeacutem deveraacute ser multi e transdisciplinar com pessoas de ambos os sexos Dentre os seus membros 05 (cinco) devem ser personalidades destacadas no campo da eacutetica na pesquisa e na sauacutede e 08 (oito) devem ser personalidades com destacada atuaccedilatildeo nos campos teoloacutegico juriacutedico e outros assegurando-se que pelo menos um seja da aacuterea de gestatildeo da sauacutede Embora natildeo desconheccedilamos a importacircncia das religiotildees na formaccedilatildeo do pensamento eacutetico humano e sem querer desmerecer as pessoas que nelas militam no mais das vezes com accedilotildees de destacada importacircncia pensamos que eacute inadequada em um Estado laico como o nosso a destinaccedilacirco de vaga ou de vagas especificamente a pessoas do campo teleoloacutegico Essa observaccedilatildeo imperioso demarcar natildeo eacute no sentido de entender que a contribuiccedilatildeo dessas pessoas eacute desnecessaacuteria ou inconveniente Pelo contraacuterio Poreacutem a desejada participaccedilatildeo jaacute poderia ser levada a efeito incluindo-as no grupo de personalidades com atuaccedilatildeo de destaque na esfera da eacutetica na pesquisa e na sauacutede sem necessidade de vinculaccedilatildeo necessaacuteria ao pensamento religioso Isso ateacute mesmo para preservar o pluralismo e a igualdade jaacute que obviamente natildeo seraacute possiacutevel oferecer a cada religiatildeo uma vaga Os membros da Comissatildeo satildeo recrutados a partir de indicaccedilotildees contidas em listas elaboradas pelas instituiccedilotildees que possuem CEP registrado na CONEP sendo que 07 (sete) satildeo escolhidos pelo Conselho Nacional de Sauacutede e 06 (seis) satildeo definidos por sorteio Tambeacutem pode contar com consultores e membros ad hoc sendo assegurada a representaccedilatildeo dos usuaacuterios O mandato eacute de quatro anos com renovaccedilatildeo alternada a cada dois anos de sete ou seis de seus membros A CONEP tem tambeacutem um papel coordenador da rede de Comitecircs institucionais aleacutem de se constituir em oacutergatildeo consultor na aacuterea eacutetica em pesquisa Num primeiro momento tem ainda a atribuiccedilatildeo de apreciar os projetos de pesquisas de aacutereas temaacuteticas especiais enviadas pelos CFPs ou seja projetos que contemplam aacutereas com maiores dilemas eacuteticos e grande repercussatildeo social ateacute que se acumulem experiecircncias para elaboraccedilatildeo de normas especiacuteficas complementares agraves existentes Cf FREITAS Carolina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA

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Outros aspectos da Resoluccedilatildeo que merecem especial destaque para o nosso estudo satildeo os relativos ao consentimento livre e esclarecido agrave vulnerabilidade e agrave incapacidade

Como jaacute dito um dos principais pontos da Declaraccedilatildeo de Nuremberg foi o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias A Resoluccedilatildeo tratou do tema exigindo a anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar87 A anuecircncia deve ser expressa atraveacutes de

Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 202

S6 Segundo a Resoluccedilatildeo compete agrave CONEP examinar os aspectos eacuteticos da pesquisa envolvendo seres humanos assim como a adequaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo das normas atinentes consultando a sociedade sempre que julgar necessaacuterio cabendo-lhe entre outras as seguintes atribuiccedilotildees a) estimular a criaccedilatildeo de CEPs institucionais e de outras instacircncias b) registrar os CEPs institucionais e de outras instacircncias c) aprovar no prazo de 60 dias e acompanhar os protocolos de pesquisa em aacutereas temaacuteticas especiais tais como geneacutetica humana reproduccedilatildeo humana faacutermacos medicamentos vacinas e testes diagnoacutesticos novos (fases I II e III) ou natildeo registrados no pais (ainda que fase IV) ou quando a pesquisa for referente a seu uso com modalidades indicaccedilotildees doses ou vias de administraccedilatildeo diferentes daquelas estabelecidas incluindo seu emprego em combinaccedilotildees equipamentos insumos e dispositivos para a sauacutede novos ou natildeo registrados no paiacutes novos procedimentos ainda natildeo consagrados na literatura populaccedilotildees indiacutegenas projetos que envolvam aspectos de biosseguranccedila pesquisas coordenadas do exterior ou com participaccedilatildeo estrangeira c pesquisas que envolvam remessa de material bioloacutegico para o exterior e projetos que a criteacuterio do CEP devidamente justificado sejam julgados merecedores de anaacutelise pela CONEP d) prover normas especiacuteficas no campo da eacutetica em pesquisa inclusive nas aacutereas temaacuteticas especiais bem como recomendaccedilotildees para aplicaccedilatildeo das mesmas e) funcionar como instacircncia final de recursos a partir de informaccedilotildees fornecidas sistematicamente em caraacuteter ex-ofiacutecio ou a partir de denuacutencias ou de solicitaccedilatildeo de partes interessadas devendo manifestar-se em um prazo natildeo superior a 60 (sessenta) dias 0 rever responsabilidades proibir ou interromper pesquisas definitiva ou temporariamente podendo requisitar protocolos para revisatildeo eacutetica inclusive os jaacute aprovados pelo CEP g) constituir um sistema de informaccedilatildeo e acompanhamento dos aspectos eacuteticos das pesquisas envolvendo seres humanos em todo o territoacuterio nacional mantendo atualizados os bancos de dados h) informar e assessorar o MS o CNS e outras instacircncias do SUS bem como do governo e da sociedade sobre questotildees eacuteticas relativas agrave pesquisa em seres humanos i) divulgar esta e outras normas relativas agrave eacutetica em pesquisa envolvendo seres humanos j) juntamente com outros setores do Ministeacuterio da Sauacutede estabelecer normas e criteacuterios para o credenciamento de Centros de Pesquisa e I) estabelecer suas proacuteprias normas de funcionamento

87 No que concerne agrave pesquisa meacutedica a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro estipula no seu art 123 que eacute vedado ao meacutedico Realizar pesquisa em ser humano sem que este tenha dado consentimento por escrito apoacutes devidamente esclarecido sobre a natureza e consequumlecircncia da pesquisa e que Caso o paciente natildeo tenha condiccedilotildees de dar seu livre consentimento a pesquisa somente poderaacute se realizada em seu proacuteprio beneficio apoacutes expressa autorizaccedilatildeo de seu responsaacutevel legal Jaacute a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO no seu art 6 aliacutenea b estabelece que A pesquisa cientiacutefica soacute deve ser realizada com o preacutevio livre expresso e esclarecido consentimento do indiviacuteduo envolvido A informaccedilatildeo deve ser adequada fornecida de uma forma compreensiacutevel e incluir os procedimentos para a retirada do consentimento O consentimento pode ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer hora e por qualquer razatildeo sem acarretar qualquer desvantagem ou preconceito Exceccedilotildees a este princiacutepio somente devem ocorrer quando em conformidade com os padrotildees eacuteticos e legais adotados pelos Estados consistentes com as provisotildees da presente Declaraccedilatildeo particularmente com o art 27 e com os direitos humanos

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em um termo de consentimento onde eacute autorizada a participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa Aleacutem disso natildeo pode estar viciada por simulaccedilatildeo fraude ou erro nem tampouco pode ser obtida por forccedila de uma situaccedilatildeo de dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo

Trata-se de disposiccedilatildeo decorrente da adoccedilatildeo do princiacutepio da autonomia jaacute abordado que se vincula agrave capacidade de autodeterminaccedilatildeo e auto-escolha e pressupotildee dentre outras premissas a capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos possiacuteveis18

Quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de estudo possuem a capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto ao consentimento livre e esclarecido por quaisquer motivos verifica-se uma situaccedilatildeo de vulnerabilidade que natildeo pode ser desconsiderada pelo pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais A preocupaccedilatildeo com a vulnerabilidade dos sujeitos encontra supedacircneo no Coacutedigo de Nuremberg na Declaraccedilatildeo de Helsinque nas Diretrizes Internacionais para Pesquisa Biomeacutedica envolvendo Seres Humanos89 e tambeacutem como jaacute dito na Resoluccedilatildeo 19696 A dificuldade central relacionada a indiviacuteduos e comunidades vulneraacuteveis eacute com a sua capacidade de compreensatildeo (autonomia plena) sobre o experimento e possibilidade de livremente consentir com a pesquisa e quando quiser dela desistir o que justifica todas as preocupaccedilotildees nesse sentido90

Cabe trazer a lume os ensinamentos do professor chileno Fernando Lolas O respeito pela autonomia das pessoas como agentes morais capazes de decisotildees informadas eacute central no diaacutelogo bioeacutetico Somente a permissatildeo outorgada por uma pessoa pode legitimar uma accedilatildeo que a envolva O valor das pessoas eacute incondicional o que obriga a consideraacute-las fins natildeo meios com a liberdade de viver e a de decidir livres de interferecircncias LOLAS Fernando Bioeacutetica o que eacute como se faz Traduccedilatildeo Milton Camargo Mota Satildeo Paulo Loyola 2001 p 63 A Diretriz Internacional para Pesquisa Biomeacutedica afirma Pesquisa envolvendo indiviacuteduos de comunidades sub-desenvolvidas Antes de iniciar a pesquisa em indiviacuteduos de comunidades subdesenvolvidas seja em paiacuteses desenvolvidos ou em desenvolvimento o pesquisador deve estar seguro que As pessoas da comunidade subdesenvolvida natildeo seratildeo ordinariamente envolvidas na pesquisa que possa ser realizada de forma adequada em comunidades desenvolvidas A pesquisa eacute uma resposta agraves necessidades de sauacutede e agraves prioridades da comunidade na qual seraacute realizada todos os esforccedilos seratildeo tomados no sentido de assegurar o imperativo eacutetico de que o consentimento individual dos sujeitos seraacute informado e Os projetos para a pesquisa foram revisados e aprovados por um comitecirc de eacutetica que tenha entre os seus membros ou consultores pessoas que tenham familiaridade com os costumes e tradiccedilotildees da comunidade Em comentaacuterio agraves diretrizes acima Leo Pessini e Christian Paul de Barchifontaine entendem que Quando a experimentaccedilatildeo visa ao estudo de determinadas condiccedilotildees moacuterbidas tais como doenccedilas endecircmicas em comunidades de baixo niacutevel socioeconocircmico eou cultural incapazes de terem uma consciecircncia clara e apropriada das implicaccedilotildees de sua participaccedilatildeo na experiecircncia eacute de bom alvitre que seja obtida a interveniecircncia de um liacuteder em que a coletividade confia Esse intermediaacuterio dever deixar claro que a participaccedilatildeo eacute voluntaacuteria e que qualquer participante tem a liberdade de natildeo aceitar ou abandonar a experiecircncia a qualquer momento op cit p 133

Conforme Marisa Palaacutecios Quando a autonomia dos sujeitos natildeo eacute plena ou seja quando a capacidade de entender as situaccedilotildees que se apresentam ao sujeito e de autodeterminar-se segundo este entendimento estaacute de alguma forma limitada eacute preciso tomar cuidado especial Eacute o caso dos grupos vulneraacuteveis os iacutendios que tecircm a capacidade de entendimento das situaccedilotildees diminuiacuteda uma vez que compotildeem sociedades

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A vulnerabilidade pode assumir as mais variadas vertentes bem como atingir uma determinada pessoa ou um grupo de seres humanos com peculiaridades comuns tais como crianccedilas idosos iacutendios pacientes terminais desempregados deficientes91 presidiaacuterios92 ou outras situaccedilotildees de dependecircncia93

Pode ocorrer que as pessoas que seratildeo estudadas na pesquisa natildeo tenham capacidade civil para dar o seu consentimento Nesse caso se encontram em situaccedilatildeo de incapacidade e a pesquisa soacute pode ser levada adiante com a intervenccedilatildeo de seus representantes legais que de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira deveratildeo assistir ou representar os incapazes Tambeacutem aqui deve o pesquisador cercar-se de cautelas eacuteticas redobradas

Finalmente deve-se louvar a Resoluccedilatildeo por ter explicitado no seu item III3 um rol de 23 (vinte e trecircs) exigecircncias eacuteticas para a pesquisa de qualquer aacuterea do conhecimento que envolva seres humanos94

culturalmente diversas[] Estas para citar algumas populaccedilotildees caracteriacutesticas Satildeo populaccedilotildees que precisam ser especialmente protegidas dada a proacutepria condiccedilatildeo de vulnerabilidade Maria Carolina S Guimaratildees e Sylvia Caiuby Novaes com alento em Hannah Arendt e Cardia definem o ser vulneraacutevel como Algueacutem que possui cidadania fraacutegil que ignora a relevacircncia do direito agrave integridade fiacutesica como condiccedilatildeo de acesso aos direitos sociais econocircmicos poliacuteticos e trabalhistas Dito assim o que parece a primeira condiccedilatildeo para que um ser vulneraacutevel perca tal situaccedilatildeo eacute o investimento do Estado naquilo que constroacutei e constitui a cidadania naqueles atributos que transformam o indiviacuteduo em cidadatildeo que transformam o animal laborans em homem poliacutetico Essa transformaccedilatildeo eacute no dizer de Hannah Arendt um pressuposto da democracia pois permite ao animal laborans ir do reino da necessidade para o reino da liberdade GUIMARAtildeES Maria Carolina S NOVAES Sylvia Caiuby Autonomia reduzida e vulnerabilidade liberdade de decisatildeo diferenccedila e desigualdade Revista Bioeacutetica Brasiacutelia v 7 n 1 p 23 1999

91 Sobre o tema vide COHEN Claacuteudio Bioeacutetica Pesquisa e Deficiecircncia In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 55-62 92 Nem todo ser humano eacute no entanto capaz de autodeterminaccedilatildeo A capacidade de autodeterminaccedilatildeo amadurece ao longo da vida mas pode ser perdida total ou parcialmente por doenccedila velhice ou situaccedilatildeo de restriccedilatildeo severa como a prisatildeo Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 93 O Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de janeiro de 1988) veda ao meacutedico no seu art 128 Realizar pesquisa meacutedica em voluntaacuterios sadios ou-natildeo que tenham direta ou indiretamente dependecircncia ou subordinaccedilatildeo relativamente ao pesquisador 94 I1I3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias a) ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder a incertezas b) estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou em outros fatos cientiacuteficos c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio d) prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis e) obedecer a metodologia adequada Se houver necessidade de distribuiccedilatildeo aleatoacuteria dos sujeitos da pesquisa em grupos experimentais e de controle assegurar que apriori natildeo seja possiacutevel estabelecer as vantagens de um procedimento sobre outro atraveacutes de revisatildeo de literatura meacutetodos observacionais ou meacutetodos que natildeo envolvam seres humanos 0 ter plenamente justificada quando for o caso a utilizaccedilatildeo de placebo em termos de natildeo maleficecircncia e de necessidade metodoloacutegica g) contar com o consentimento livre e esclarecido do sujeito da pesquisa eou seu representante legal h) contar com os recursos humanos e materiais necessaacuterios que garantam o bem-

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5 Teleologia e legitimidade da pesquisa em seres humanos

Toda experimentaccedilatildeo em seres humanos possui um determinado objetivo o qual pode ou-natildeo estar vinculado ao bem estar proacuteprio da pessoa ou grupo observado

Essa situaccedilatildeo natildeo foi esquecida pela Declaraccedilatildeo de Helsinque cujo preacircmbulo afirma Wo campo cia pesquisa biomeacutedica uma distinccedilatildeo fundamental deve ser feita entre a pesquisa meacutedica na qual o objetivo eacute essencialmente o diagnoacutestico ou a terapecircutica para um paciente e a pesquisa meacutedica cujo objeto essencial eacute puramente cientiacutefico e sem um valor direto diagnoacutestico ou terapecircutico para a pessoa sujeita agrave

estar do sujeito da pesquisa devendo ainda haver adequaccedilatildeo entre a competecircncia do pesquisador e o projeto proposto i) prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade a proteccedilatildeo da imagem e a natildeo estigmatizaccedilatildeo garantindo a natildeo utilizaccedilatildeo das informaccedilotildees em prejuiacutezo das pessoas eou das comunidades inclusive em termos de auto-estima de prestiacutegio eou econocircmico - financeiro j) ser desenvolvida preferencialmente cm indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida 1) respeitar sempre os valores culturais sociais morais religiosos e eacuteticos bem como os haacutebitos e costumes quando as pesquisas envolverem comunidades m) garantir que as pesquisas em comunidades sempre que possiacutevel traduzir-se-atildeo em benefiacutecios cujos efeitos continuem a se fazer sentir apoacutes sua conclusatildeo O projeto deve analisar as necessidades de cada um dos membros da comunidade e analisar as diferenccedilas presentes entre eles explicitando como seraacute assegurado o respeito agraves mesmas n) garantir o retomo dos benefiacutecios obtidos atraveacutes das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas Quando no interesse da comunidade houver benefiacutecio real em incentivar ou estimular mudanccedilas de costumes ou comportamentos o protocolo de pesquisa deve incluir sempre que possiacutevel disposiccedilotildees para comunicar tal benefiacutecio agraves pessoas eou comunidades o) comunicar agraves autoridades sanitaacuterias os resultados da pesquisa sempre que os mesmos puderem contribuir para a melhoria das condiccedilotildees de sauacutede da coletividade preservando poreacutem a imagem e assegurando que os sujeitos da pesquisa natildeo sejam estigmatizados ou percam a auto-estima p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefiacutecios resultantes do projeto seja em termos de retorno social acesso aos procedimentos produtos ou agentes da pesquisa q)assegurar aos sujeitos da pesquisa as condiccedilotildees de acompanhamento tratamento ou de orientaccedilatildeo conforme o caso nas pesquisas de rastreamento demonstrar a preponderacircncia de benefiacutecios sobre riscos e custos r) assegurar a inexistecircncia de conflito de interesses entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa ou patrocinador do projeto s) comprovar nas pesquisas conduzidas do exterior ou com cooperaccedilatildeo estrangeira os compromissos e as vantagens para os sujeitos das pesquisas e para o Brasil decorrentes de sua realizaccedilatildeo Nestes casos deve ser identificado o pesquisador e a instituiccedilatildeo nacionais co-responsaacuteveis pela pesquisa O protocolo deveraacute observar as exigecircncias da Declaraccedilatildeo de Helsinque e incluir documento de aprovaccedilatildeo no paiacutes de origem entre os apresentados para avaliaccedilatildeo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa da instituiccedilatildeo brasileira que exigiraacute o cumprimento de seus proacuteprios referenciais eacuteticos Os estudos patrocinados do exterior tambeacutem devem responder agraves necessidades de treinamento de pessoal no Brasil para que o paiacutes possa desenvolver projetos similares de forma independente t) utilizar o material bioloacutegico e os dados obtidos na pesquisa exclusivamente para a finalidade prevista no seu protocolo u) levar em conta nas pesquisas realizadas em mulheres em idade feacutertil ou em mulheres graacutevidas a avaliaccedilatildeo de riscos e benefiacutecios e as eventuais interferecircncias sobre a fertilidade a gravidez o embriatildeo ou o feto o trabalho de parto o puerpeacuterio a lactaccedilatildeo e o receacutem-nascido v) considerar que as pesquisas em mulheres graacutevidas devem ser precedidas de pesquisas em mulheres fora do periacuteodo gestacional exceto quando a gravidez for o objetivo fundamental da pesquisa x) propiciar nos estudos multicecircntricos a participaccedilatildeo dos pesquisadores que desenvolveratildeo a pesquisa na elaboraccedilatildeo do delineamento geral do projeto e z) descontinuar o estudo somente apoacutes anaacutelise das razotildees da descontinuidade pelo CEP que a aprovou

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pesquisa Em outras palavras haacute experimentos em benefiacutecio do paciente e experimentos em benefiacutecio da ciecircncia Ainda no preacircmbulo da Declaraccedilatildeo de Helsinque encontramos que A finalidade da pesquisa meacutedica envolvendo seres humanos deve ser o aperfeiccediloamento do diagnoacutestico procedimentos terapecircuticos e profilaacuteticos e a compreensatildeo da etiologia e da patologia da doenccedila Conjugando essa afirmaccedilatildeo com a anterior podemos extrair que uma determinada pessoa ou populaccedilatildeo pode ser objeto de pesquisa para desvendar doenccedilas que a afligem ou para desnudar as razotildees pelas quais eacute menos suscetiacutevel ou-natildeo eacute atingida por determinada moleacutestia que afeta aos demais seres humanos

A partir dessas observaccedilotildees podemos considerar para os fins do nosso estudo que as experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas teleologicamente em dois grupos a) aquelas cujos objetivos possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas as quais chamaremos de pesquisas com justificativa intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de terceiros as quais denominaremos pesquisas com justificativa extrinseca Temos como exemplo na primeira situaccedilatildeo os experimentos cientiacuteficos para desvendar o porquecirc de uma determinada coletividade ser atingida por taxas elevadas de uma certa doenccedila e na segunda uma pesquisa para revelar as razotildees pelas quais certas pessoas natildeo desenvolvem uma moleacutestia com o objetivo de descobrir uma vacina ou um medicamento para os demais

Entretanto em todo experimento seraacute necessaacuterio averiguar se a justificativa - seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima Isso porque o fato de uma pesquisa ter por objetivo um tratamento mais eficiente ou a cura de certas doenccedilas natildeo legitima por si soacute a utilizaccedilatildeo de pessoas como sujeito de pesquisa mesmo que elas sofram da moleacutestia e possam vir a ser beneficiadas Natildeo se deve perder de vista aliaacutes que se o conhecimento puder ser obtido por outro meio a utilizaccedilatildeo de seres humanos justamente por ser desnecessaacuteria seraacute ilegiacutetima95 Ademais soacute pelo fato de ser intriacutenseca a justificativa natildeo seraacute necessariamente legiacutetima Por outro lado a circunstacircncia isoladamente considerada do eventual resultado da experimentaccedilatildeo ser absolutamente indiferente ao sujeito de pesquisa natildeo torna a sua participaccedilatildeo ilegiacutetima Em outras palavras a justificativa soacute por ser extrinseca natildeo seraacute necessariamente ilegiacutetima

Vale relembrar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 - A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio

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A razatildeo disso reside na afirmaccedilatildeo de que como se sabe desde Kant o Homem deve ser tratado como um fim em si mesmo e natildeo como instrumento De fato eacute em Kant que o Homem ganha status de valor absoluto manifesto no imperativo praacutetico expresso na maacutexima segundo a qual Ages de tal maneira que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio 96

Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

Quando se trata de experimentaccedilatildeo com justificativa intriacutenseca a razatildeo legitimadora pode estar no objetivo de beneficiar os proacuteprios sujeitos da pesquisa algueacutem se submete a uma experimentaccedilatildeo na tentativa de auferir uma vantagem em seu bem-estar fiacutesico ou mental

Jaacute no caso da justificativa extriacutenseca poder-se-ia objetar a realizaccedilatildeo da experimentaccedilatildeo com suposto fundamento na Resoluccedilatildeo 19696 cujo item III 1 letra d vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila Ora se em uma determinada situaccedilatildeo algueacutem participa do experimento sem que haja qualquer possibilidade de benefiacutecio fiacutesico ou mental para si a partir do resultado da pesquisa e considerando que a mesma Resoluccedilatildeo veda qualquer forma de remuneraccedilatildeo do sujeito da pesquisa (item 1110) qual a vantagem significativa que poderaacute essa pessoa auferir para justificar a sua participaccedilatildeo

Ao nosso ver a interpretaccedilatildeo desse ponto da Resoluccedilatildeo natildeo deve ser literal nem assistemaacutetica97 devendo ser considerada a incidecircncia de um outro princiacutepio ainda

Op cit p 69 Em comento a este imperativo Francesca Puigpclat Marti apregoa que La concepcioacuten liberal asocia a esta expresioacuten una idea comuacuten en Ia reflexioacuten eacutetica de raigambre kantiana el hombre es un fin en si mismo un sujeto y no un objeto Seguacuten Kant en el sistema de Ia natureza el hombre (homo phaenomenon animal rationale) es un ser de escasa importancia y tiene con los demaacutes animales en tanto que productos de Ia tierra un precio comuacuten () Ahora bien el hombre considerado como persona es dccir como sujeto de una razoacuten praacutetico-moral estaacute situado por encima de todo precio porque como tal (homo noumenon) no puede valorarse soacutelo como meacutedio para fines ajenos incluso para sus proprios fines sino como fin en siacute mismo es decir posee una dignidad(un valor interno absoluto) gracias a la cual infunde respeto haciacutea eacutel a todos los demaacutes seres racionales dei mundo puede medirse con cualquier otro de esta clase y valorarse en pie de igualdad En la medida en que seguacuten Kant el hombre existe como fin en siacute mismo y no soacutelo como meacutedio para usos cualesquiera de una u otra voluntad se puede formular el siguiente principio praacutetico supremo obra de tal modo que uses la humanidad tanto en tu persona como en la persona de cualquier otro siempre como un fin al mismo tiempo y nunca solamente como un meacutedio MARTIacute Francesca Puigpelat Clonacioacuten dignidad humana y constitucioacuten Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo ano II n 42 janmar p37-64 2003

Natildeo se interpreta o direito em tiras aos pedaccedilos () Um texto de direito isolado destacado desprendido do sistema juriacutedico natildeo expressa significado normativo algum Cf GRAU Eros Roberto Ensaio e

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que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que eacute o da solidariedade Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita entendemos que a sua aplicaccedilatildeo eacute cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele dispositivo (item 1111 letra d da Resoluccedilatildeo 19696) afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria Aleacutem disso outros documentos de importacircncia para a Bioeacutetica fazem referecircncia agrave solidariedade98 De fato natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao respeito agrave dignidade da pessoa humana99

Logo no nosso pensar mesmo que natildeo haja nenhum benefiacutecio ou vantagem direta ao sujeito de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma justificativa eacutetica a qual pode ter como nuacutecleo a intenccedilatildeo solidaacuteria dessa pessoa e do pesquisador de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e consequumlentemente para todos os demais seres humanos

A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica100

Estas exigecircncias no acircmbito normativo brasileiro estatildeo listadas na Resoluccedilatildeo 19696 especialmente no item III3

Algumas delas satildeo puramente objetivas e uma vez desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca E o caso por exemplo da necessidade de consentimento preacutevio e informado

discurso sobre a interpretaccedilatildeoaplicaccedilatildeo do Direito Satildeo Paulo Malheiros Editores 2002 p 34 98

O art 1deg da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos proclama que todas pessoas devem agir em relaccedilatildeo umas agraves outras com espiacuterito de fraternidade Alem disso a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO em um dos seus considerandos observa que os seres humanos tecircm um papel importante na proteccedilatildeo um do outro tratando expressamente da solidariedade e cooperaccedilatildeo no seu art 13 segundo o qual A solidariedade entre os seres humanos e cooperaccedilatildeo internacional para este fim devem ser estimuladas 99 Ela [a solidariedade] eacute o fecho de aboacutebada do sistema de princiacutepios eacuteticos pois complementa e aperfeiccediloa a liberdade a igualdade e a seguranccedila () E um erro considerar que no mundo da natureza sobretudo no mundo animal natildeo exista solidariedade e que ela seja uma criaccedilatildeo poliacutetica Muito pelo contraacuterio pode-se dizer que a biosfera forma naturalmente um sistema solidaacuterio e que o rompimento desse sistema eacute sempre obra do homem O proacuteprio Darwin bem advertiu que a expressatildeo struggle for Existence fora por ele usada em sentido amplo e matafoacuterico incluindo a dependecircncia de um ser em relaccedilatildeo a outro bem como incluindo (o que eacute mais importante) natildeo apenas a vida do indiviacuteduo mas o ecircxito em deixar descendentes Os zooacutelogos jaacute observaram que o processo de seleccedilatildeo natural deu mais vantagens bioloacutegicas aos grupos que cuidavam de seus membros natildeo reprodutivos do que agravequeles que abandonavam ou matavam os anciatildeos pois a capacidade de reproduccedilatildeo global dos grupos altruiacutestas eacute assim singularmente reforccedilada Cf COMPARATO Faacutebio Konder Eacutetica direito moral e religiatildeo no mundo moderno Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 p 577578

100

Natildeo eacute agrave toa portanto que como jaacute visto a Resoluccedilatildeo 19696 vincula a eticidade na pesquisa aos princiacutepios da Bioeacutetica tanto no seu preacircmbulo como no seu item III 1

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1214 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

dos participantes - ou dos seus representantes se incapazes - 101 cuja ausecircncia macula o princiacutepio da autonomia Tambeacutem eacute objetiva a exigecircncia da pesquisa estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou outros fatos cientiacuteficos102 cuja inobservacircncia implica em ofensa agrave natildeo-maleficecircncia Nessas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou-natildeo vir a ter um benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

Outras exigecircncias entretanto possuem um certo grau de subjetividade em maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as circunstacircncias faacuteticas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo de valor iacutensito a cada um Desse tipo vg eacute a exigecircncia segundo a qual a pesquisa deve ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e ter possibilidades concretas de responder a incertezas103 A avaliaccedilatildeo quanto ao cumprimento ou-natildeo da exigecircncia e portanto quanto agrave legitimidade ou ilegitimidade da utilizaccedilatildeo de seres humanos tem um niacutetido caraacuteter subjetivo podendo variar de pessoa para pessoa

Quando tratamos de exigecircncias subjetivas haacute ainda um outro aspecto a ser apontado deveraacute ser levado em conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca Em outras palavras a circunstacircncia do sujeito de pesquisa poder vir a ser beneficiado ou-natildeo pelo resultado do experimento deve ser considerada na verificaccedilatildeo da legitimidade eacutetica quando da ponderaccedilatildeo sobre o cumprimento das exigecircncias subjetivas

Tomemos como exemplo a exigecircncia de que devem prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis104 Ora essa exigecircncia eacute subjetiva pois envolve uma ponderaccedilatildeo cujo resultado estaacute vinculado a um juiacutezo de valor sobre a natureza e a importacircncia ou peso de cada benefiacutecio ou risco provaacutevel Ao nosso entender quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal no resultado do experimento tratando-se portanto de justificativa extriacutenseca eacute oacutebvio que os riscos a que se submete devem ser considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o benefiacutecio esperado tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa submetida ao experimento

101 Item III3 letra g da Resoluccedilatildeo 19696 102 Item III3 letra b da Resoluccedilatildeo 19696 103 Item III3 letra a da Resoluccedilatildeo 19696 104 Item III3 letra d da Resoluccedilatildeo 19696

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1215

Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila105 Por outro lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

A proacutepria realizaccedilatildeo ou-natildeo da pesquisa pode depender dessa ponderaccedilatildeo jaacute que a Resoluccedilatildeo n 19696 prevecirc que havendo riscos potenciais as pesquisas envolvendo seres humanos poderatildeo ser admitidas quando oferecerem elevada possibilidade de gerar conhecimento para entender prevenir ou aliviar um problema que afete o bem-estar dos sujeitos da pesquisa e de outros indiviacuteduos 106

Aleacutem disso parece ser mais aceitaacutevel eticamente submeter o ser humano a riscos maiores quando a justificativa eacute intriacutenseca do que quando ela eacute extriacutenseca priorizando assim a sua preservaccedilatildeo Nesse sentido a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO estipula que uos interesses e o bem-estar do indiviacuteduo devem ter prioridade sobre o interesse exclusivo da ciecircncia ou da sociedade 107

Natildeo se pode esquecer ainda que por forccedila dos princiacutepios da beneficecircncia da natildeo-maleficecircncia e da justiccedila eacute preciso considerar na mediccedilatildeo da legitimidade as peculiaridades individuais ou coletivas dos sujeitos de pesquisa especialmente no que concerne agraves suas eventuais vulnerabilidades bem como cuidar para que natildeo lhes seja imposto um mal desnecessaacuterio ou desproporcional O princiacutepio da justiccedila como vimos implica necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa os quais sempre que possiacutevel devem ter garantido para si pelo pesquisador a fruiccedilatildeo dos benefiacutecios da experimentaccedilatildeo natildeo sendo equacircnime impor-Ihes ocircnus excessivos108 especialmente se vulneraacuteveis Natildeo eacute agrave toa portanto que pode

105 O princiacutepio da justiccedila implica atenccedilatildeo especial agraves regras de recrutamento de participantes de experimentos Natildeo se pode fazer experimentos apenas com determinados grupos - pacientes de enfermaria asilados prisioneiros - simplesmente porque eles estatildeo agrave disposiccedilatildeo e em situaccedilatildeo de dependecircncia Isso eacute injusto Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 Item Vl aliacutenea a

107 Art 3 aliacutenea b 108 bull

Consideramos que deva ser modificada a praacutetica muito comum em nosso paiacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de pesquisados provenientes das camadas mais desfavorecidas da sociedade ou de outros grupos vulneraacuteveis mas que posteriormente natildeo poderatildeo se beneficiar dos resultantes positivos das pesquisas em que tomaram parte mesmo tendo enfrentado riscos de danos psico-sociais As pesquisas realizadas nesses grupos devem poder lhes trazer benefiacutecios e os pesquisadores sempre que possiacutevel devem garantir retomo dos benefiacutecios resultados das pesquisas para os sujeitos individuais e coletivos que nelas participarem Cf FORTES Paulo Antonio de Carvalho As Pesquisas em Seres Humanos e o Principio Eacutetico da Justiccedila

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1216 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

haver exigecircncias eacuteticas especiacuteficas para pesquisas com serem humanos em situaccedilatildeo de vulnerabilidade109

Assim sempre seraacute preciso dosar a equaccedilatildeo riscobeneficio ponderando em cada caso concreto se os eventuais benefiacutecios satildeo suficientes para motivar a exposiccedilatildeo das pessoas ao processo de experimentaccedilatildeo Pode ser que diante de certas peculiaridades ou vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima110 Aliaacutes como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis justamente porque como jaacute dito o ser humano natildeo pode ser tratado como mero instrumento1

E natildeo eacute soacute Aleacutem disso em princiacutepio a pesquisa com pessoas ou grupos vulneraacuteveis deve ter uma justificativa intriacutenseca2 Entretanto sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas em experimentos extriacutensecos agrave luz da solidariedade como no caso do grupo vulneraacutevel ser imune a determinada moleacutestia por razatildeo ainda desconhecida o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias objetivas agrave risca deve ser ainda mais

Cadernos de Eacutetica em Pesquisa Ano 1 n 2 p 22-23 nov 1998 109

A tiacutetulo de exemplo a Resoluccedilatildeo 19696 traz alguns requisitos especiacuteficos para o consentimento livre e esclarecido de pessoas ou populaccedilotildees vulneraacuteveis no item IV3

110 Um caso de niacutetida violaccedilatildeo aos princiacutepios bioeacuteticos em pesquisas envolvendo grupo vulneraacutevel foi o jaacute mencionado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm Conforme um dos colaboradores da pesquisa utilizar doentes mentais ainda que natildeo voluntaacuterios foi a melhor opccedilatildeo diante do fato de que o principal problema da sauacutede puacuteblica era justamente o das doenccedilas dentaacuterias razatildeo pela qual os fins justificariam os meios ainda mais considerando que o estudo foi utilizado em todo o mundo (Krasse B Sueacutecia usou deficiente mental como cobaia Folha de Satildeo Paulo 23 Set 1997 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas cliacutenicas sobre seus direitos 2005 p 61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo) sendo faacutecil criticar o fato depois de consumado (Krasse B The Vipeholm dental caries study recollections and reflections 50 years later J Dent Res 2001 80(9) 1785-8 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu op cit p 61) Mais uma vez cabiacutevel rememorar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () j) ser desenvolvida preferencialmente em indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida

112 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO eacute clara ao afirmar em seu art 7 aliacutenea b no que diz respeito a indiviacuteduos sem a capacidade para fornecer consentimento que a pesquisa soacute deve ser realizada para o beneficio direto agrave sauacutede do indiviacuteduo envolvido estando sujeita agrave autorizaccedilatildeo e agraves condiccedilotildees de proteccedilatildeo prescritas pela legislaccedilatildeo e caso natildeo haja nenhuma alternativa de pesquisa de eficaacutecia comparaacutevel que possa incluir sujeitos de pesquisa com capacidade para fornecer consentimento

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1217

rigoroso na ponderaccedilatildeo do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da autonomia e justiccedila expondo tais pessoas a riscos miacutenimos menores ateacute do que aqueles normalmente empregados em pesquisas com justificativa intriacutenseca3

Se essas diretrizes natildeo forem observadas teremos uma pesquisa carente de justificativa eacutetica e de legitimidade

6 Conclusotildees

Em virtude dos limites inerentes agrave nossa abordagem nessas consideraccedilotildees finais natildeo apresentaremos verdades irrefutaacuteveis e definitivas sobre um tema que ainda carece de um importante debate acadecircmico e normativo Com efeito o que pretendemos modestamente foi evidenciar alguns paradigmas que possam ensejar a conciliaccedilatildeo da dignidade da pessoa humana com a continuidade dos processos de investigaccedilatildeo cientiacuteficos realizados em seres humanos Para tanto podemos sintetizar nosso pensamento nas seguintes conclusotildees

a) O desenvolvimento da ciecircncia mormente em aacutereas afeitas agrave vida e a ocorrecircncia de pesquisas francamente contraacuterias agrave dignidade humana como ocorrido em vaacuterias passagens da Segunda Guerra ensejaram o surgimento da Bioeacutetica como um novo ramo do conhecimento

b) Deve-se limitar a atuaccedilatildeo da Bioeacutetica aos casos em que haacute conflito de valores quando dois princiacutepios eacutetica e moralmente admissiacuteveis natildeo podem coexistir

c) Haacute iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica Autonomia Beneficecircncia e Justiccedila aleacutem da Natildeo-Maleficecircncia - e as pesquisas em seres humanos

113 Ainda conforme o art 7 aliacutenea b da Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO quando se trata de pessoas incapazes Pesquisas sem potencial beneficio direto agrave sauacutede soacute devem ser realizadas excepcionalmente com a maior restriccedilatildeo expondo o indiviacuteduo apenas a risco e desconforto miacutenimos e quando se espera que a pesquisa contribua com o benefiacutecio agrave sauacutede de outros indiviacuteduos na mesma categoria sendo sujeitas agraves condiccedilotildees prescritas por lei e compatiacuteveis com a proteccedilatildeo dos direitos humanos do indiviacuteduo A recusa de tais indiviacuteduos em participar de pesquisas deve ser respeitada

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1218 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

d) Os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica

pluralista aberta e receptiva e satildeo um poderoso instrumento

para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

razotildees pelas quais eacute descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos

debates bioeacuteticos

e) O avanccedilo tecnoloacutegico traz cada vez mais a diminuiccedilatildeo de

limites teacutecnicos ao ser humano o que conduz ao debate sobre a

necessidade de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees para

evitar eventuais abusos especialmente na aacuterea biomeacutedica

elevando a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que

demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave

vida

0 A concretizaccedilatildeo dos objetivos atuais da humanidade

especialmente em relaccedilatildeo agrave expectativa de vida depende

dentre outros fatores da pesquisa cientiacutefica e da

experimentaccedilatildeo em seres humanos Poreacutem eacute preciso tomar o

Homem como sujeito de pesquisa sem trataacute-lo como mero

instrumento mas como um fim em si mesmo

g) A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do

interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda

Guerra trouxeram agrave tona a questatildeo da eacutetica na pesquisa

evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana e

de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa

em seres humanos gerando uma seacuterie de normas internacionais

e nacionais a exemplo do Coacutedigo de Nuremberg da

Declaraccedilatildeo de Helsinque e no Brasil da Resoluccedilatildeo n 19696

do Conselho Nacional de Sauacutede

h) Dentre os principais aspectos da Resoluccedilatildeo n 19696 do

Conselho Nacional de Sauacutede encontramos a vinculaccedilatildeo da

experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da

principiologia da Bioeacutetica a explicitaccedilatildeo de um rol de

exigecircncias para a eticidade na pesquisa as definiccedilotildees de

diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica como o

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1219

consentimento livre e esclarecido a vulnerabilidade e a

incapacidade a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em

Pesquisa -CONEP e a regulamentaccedilatildeo dos Comitecircs de Eacutetica e

Pesquisa - CEPs

i) O consentimento livre e esclarecido decorre da adoccedilatildeo do

princiacutepio da autonomia e pressupotildee dentre outras premissas a

capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os

aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos

possiacuteveis

j) A vulnerabilidade natildeo pode ser desconsiderada pelo

pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais ocorrendo

quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de

estudo por quaisquer motivos possuem a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto agrave

compreensatildeo sobre o experimento e a possibilidade de

livremente consentir com a pesquisa e dela desistir

k) A incapacidade ocorre quando as pessoas que seratildeo estudadas

na pesquisa natildeo possuem capacidade civil para dar o seu

consentimento soacute podendo ser levada adiante a pesquisa com a

intervenccedilatildeo de seus representantes legais implicando tambeacutem

no dever do pesquisador de cercar-se de cautelas eacuteticas

redobradas

1) As experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas

teleologicamcnte em dois grupos a) aquelas cujos objetivos

possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas

observadas as quais chamamos de pesquisas com justificativa

intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo

direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de

terceiros as quais denominamos pesquisas com justificativa

extrinseca

m) Em todo experimento eacute necessaacuterio averiguar se a justificativa -

seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1220 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima jaacute que a

justificativa soacute pelo fato de ser intriacutenseca natildeo seraacute

necessariamente legiacutetima nem tampouco soacute por ser extriacutenseca

seraacute necessariamente ilegiacutetima

n) Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a

realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser

encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca

como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

o) A interpretaccedilatildeo do item III1 letra d da Resoluccedilatildeo n 19696

que vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens

significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de

infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila natildeo deve ser literal nem

assistemaacutetica devendo ser considerada a incidecircncia de um

outro principio ainda que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que

eacute o da solidariedade

p) Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita ao princiacutepio da

solidariedade na Resoluccedilatildeo n 19696 a sua aplicaccedilatildeo eacute

cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele

texto afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua

relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-

humanitaacuteria

q) Logo mesmo que natildeo haja nenhum beneficio direto ao sujeito

de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma

justificativa a qual pode ser a intenccedilatildeo sua e do pesquisador

de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e

consequumlentemente para todos os demais seres humanos Aleacutem

disso natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica

sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao

respeito agrave dignidade da pessoa humana

r) A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em

seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade

poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1221

diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica listadas na

Resoluccedilatildeo n 19696 especialmente no item III3

s) Algumas exigecircncias satildeo puramente objetivas e uma vez

desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da

justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca

t) Nas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa

ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou natildeo vir a ter um

benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

u) Outras exigecircncias possuem um certo grau de subjetividade em

maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da

pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo

exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as

circunstacircncias faacutetiacutecas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo

de valor iacutensito a cada um

v) Quando se tratar de exigecircncias subjetivas deveraacute ser levado em

conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma

justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca

w) Quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou

sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal

no resultado do experimento tratando-se portanto de

justificativa extriacutenseca os riscos a que se submete devem ser

considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a

justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o beneficio esperado

tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa

submetida ao experimento

x) Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do

sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero

instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila e por outro

lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute

menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa

consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1222 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a

algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

y) Pode ser que diante de certas peculiaridades ou

vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo

considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa

em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua

realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo

eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima

z) Como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras

pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis

mas sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas agrave luz da

solidariedade o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias

objetivas agrave risca deve ser ainda mais rigoroso na ponderaccedilatildeo

do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave

observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da

autonomia e justiccedila

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Page 9: BIOÉTICA E PESQUISAS EM SERES HUMANOS

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1195

accedilotildees beneacuteficas a) natildeo-causar o mal e b) maximizar os benefiacutecios e minimizar os danos

A seu turno o princiacutepio da justiccedila pode ser resumido no dever de imparcialidade na distribuiccedilatildeo dos riscos e benefiacutecios inerentes agrave pesquisa bem como no tratamento igualitaacuterio aos iguais30 embora naturalmente haja dificuldades na determinaccedilatildeo de quem eacute ou-natildeo igual31 Implica ainda necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa

Segundo o Relatoacuterio Belmont haveraacute injusticcedila quando eacute imposto um dano ou encargo indevidamente ou quando um benefiacutecio eacute negado a algueacutem de maneira injustificada Aleacutem disso reconhece dificuldades na determinaccedilatildeo de um criteacuterio para a distribuiccedilatildeo dos benefiacutecios havendo vaacuterias possibilidades a cada um igualmente a cada um na medida da sua necessidade a cada um conforme seu esforccedilo individual a cada um de acordo com seu meacuterito2

Alguns autores defendem que a importacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica deve ser minorada postulando por uma reflexatildeo mais autocircnoma Nos parece que esse eacute

30 Eacute o princiacutepio da justiccedila que obriga a garantir a distribuiccedilatildeo justa equumlitativa e universal dos benefiacutecios dos serviccedilos de sauacutede Impotildee que todas as pessoas sejam tratadas de igual maneira natildeo obstante suas diferenccedilas Cf SANTOS Celeste Cordeiro dos O equiliacutebrio do pecircndulo a Bioeacutetica e a lei implicaccedilotildees meacutedico-legais Satildeo Paulo iacutecone 1998 p 45

31 O princiacutepio da igualdade tem suscitado importantes debates filosoacuteficos na Histoacuteria da humanidade dando ensejo a interpretaccedilotildees as mais variadas Aristoacuteteles vinculou a igualdade agrave justiccedila que pode ser comutativa ou distributiva (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos Satildeo Paulo Editora Nova Cultural 1996) Haacute ainda os autores nominalistas que entendem que a desigualdade eacute universal e portanto a igualdade natildeo passa de um nome Jaacute LOCKE John Ensaio sobre o governo civil Traduccedilatildeo Carmo Nunes Porto Seacuteculo XX 1986 e Montcsquieu Charles Secondat de O espirito das leis Satildeo Paulo Martins Fontes 1993 ao contraacuterio entendiam que a igualdade entre as pessoas era absoluta pertencendo assim ao grupo denominado de idealistas ROSSEAU Jean-Jacques Discurso sobre a origem das desigualdades entre os homens Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 de sua parte embora tambeacutem pertenccedila a essa uacuteltima vertente admitia a existecircncia de dois tipos de desigualdades a natural (ou fiacutesica) e a moral (ou poliacutetica) Vale entretanto trazer a lume as percucicntes anotaccedilotildees de Leila Pinheiro Bellintani sobre o tema Atraveacutes da anaacutelise histoacuterica do princiacutepio da igualdade [] percebe-se claramente que este preceito passou por intensa evoluccedilatildeo tendo sua conceituaccedilatildeo moldado-se atraveacutes dos tempos agraves novas necessidades sociais Apesar do constante aprimoramento do conceito dos ideais isonocircmicos natildeo se pode dizer que as concepccedilotildees anteriores foram ultrapassadas mas sim que houve uma agregaccedilatildeo de significados no decorrer da histoacuteria fazendo do principio da igualdade o preceito complexo que ora se apresenta Assim os estaacutegios evolutivos natildeo se deram de forma isolada ou independente Ao reveacutes se acumularam como telhas sobrepostas ampliando sempre o leque de acepccedilotildees a serem salvaguardadas ocorrendo o que se pode denominar de sobreposiccedilatildeo de significados Predomina portanto a ideacuteia de cumulaccedilatildeo e natildeo de alternacircncia entre eles Pode-se dizer portanto que hodiernamente o princiacutepio da igualdade possui diversas faces que se integram e que devem ser constantemente observadas pelos aplicadores das leis legisladores e pela proacutepria comunidade BELLINTANI Leila Pinheiro Accedilatildeo Afirmativa e os Princiacutepios do Direito Rio de Janeiro Lumen Juacuteris 2006 p 19-20

32 Impossiacutevel deixar de fazer menccedilatildeo aqui agrave noccedilatildeo de justiccedila distributiva de Aristoacuteteles que tem como base uma igualdade geomeacutetrica e consiste em dar a cada um o que lhe eacute devido mas considerando a excelecircncia que cada um possui o seu valor (areteacute) para a polis () porque aquilo que eacute distribuiacutedo agraves pessoas deve secirc-lo de acordo com o meacuterito de cada uma Op cit p 198

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um falso dilema jaacute que princiacutepios natildeo devem ser aplicados como regras e portanto natildeo representam uma camisa-de-forccedila para a Bioeacutetica Embora os objetivos deste trabalho natildeo nos permitam aprofundar a discussatildeo em torno da sua origem e aplicabilidade celeuma muito comum na ciecircncia juriacutedica natildeo seraacute despiciendo relembrar ao menos que haacute uma distinccedilatildeo juriacutedica entre princiacutepios e regras e que enquanto estas uacuteltimas satildeo aplicadas a partir da oacutetica do ali or nothing excluindo-se mutuamente os primeiros convivem entre si natildeo se excluem e representam motivos para decidir em determinado sentido

Portanto podemos afirmar que os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica pluralista aberta e receptiva Aleacutem disso pragmaticamente a aplicaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo dos princiacutepios em cada caso concreto eacute poderoso instrumento para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

Por tudo isso parece descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos debates bioeacuteticos Tanto assim eacute que a tendecircncia moderna eacute no sentido do reconhecimento de princiacutepios universais da Bioeacutetica Importante anotar por exemplo que o uacuteltimo documento internacional acerca do tema a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO datada de 2005 eacute fortemente principioloacutegica e dentre outros aspectos deliberou ser necessaacuterio e oportuno que a comunidade internacional declare princiacutepios universais que proporcionaratildeo uma base para a resposta da humanidade aos sempre crescentes dilemas e controveacutersias que a ciecircncia e a tecnologia apresentam agrave raccedila humana e ao meio ambiente

Deve-se lembrar finalmente que a abordagem dos princiacutepios da Bioeacutetica em separado tem uma justificativa puramente didaacutetica jaacute que eles natildeo podem ser cindidos na sua conceituaccedilatildeo e muito menos na sua aplicaccedilatildeo praacutetica34

4 Experimentaccedilatildeo em seres humanos aspectos da normatizaccedilatildeo nacional e internacional

Sobre princiacutepios a literatura juriacutedica eacute vasta Vide vg ALEXY Robert Teoria de tos Derechos Fundamentales Madrid Centro de Estuacutedios Constitucionales 1997 p 81-172 DWORKFN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1997 AacuteVILA Humberto Teoria dos Princiacutepios da definiccedilatildeo agrave aplicaccedilatildeo dos princiacutepios juriacutedicos 2 ed Satildeo Paulo Malheiros Editores 2003 ROTHEMBURG Waller Claudius Princiacutepios Constitucionais Porto Alegre Seacutergio Antonio Fabris 1999

4 Nesse sentido GUIMARAtildeES Maria Carolina S Eacutetica biomeacutedica e pesquisa em grupos humanos Revista Meacutedica de Minas Gerais v 3 n 1 p 52-53 janmar 1993 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO destina o seu art 26 agrave inter-relaccedilatildeo e complementaridade dos princiacutepios dispondo que A presente Declaraccedilatildeo deve ser considerada em sua totalidade e seus princiacutepios devem ser compreendidos como complementares e inter-relacionados Cada princiacutepio deve ser interpretado no contexto dos demais de forma pertinente e adequada a cada circunstacircncia

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No seacuteculo XVI Galileu passou a buscar a verdade atraveacutes da experimentaccedilatildeo e da observaccedilatildeo das coisas desvinculando-se da verdade dos escolaacutesticos ou da Igreja Esse eacute considerado o marco de referecircncia das origens da ciecircncia experimental a qual terminou por proporcionar a Revoluccedilatildeo Cientiacutefica nos seacuteculos seguintes35 Esta uacuteltima abriu as portas para uma nova era na humanidade multiplicando o conhecimento e as descobertas gerando tecnologia A tecnologia passou a imprimir uma velocidade cada vez maior nas transformaccedilotildees cientiacuteficas e sociais A velocidade com que as mudanccedilas ocorrem por sua vez municia o Homem com novas perspectivas e instrumentos sempre mais apurados de investigaccedilatildeo o que implica em mais tecnologia36 Investigaccedilatildeo pesquisa conhecimento mudanccedilas tecnologia velocidade formam uma espeacutecie de ciacuterculo virtuoso - natildeo-vicioso31 e satildeo palavras indissociaacuteveis da realidade nos uacuteltimos tempos a partir do seacuteculo XX no qual testemunhamos pelo menos duas espantosas revoluccedilotildees a atocircmica e a molecular38

Todo esse acervo mudou por completo as sociedades e o pensamento humano e natildeo se trata de um processo jaacute findo Pelo contraacuterio muito ainda estaacute por vir Natildeo se sabe aliaacutes se o Homem encontraraacute fronteiras tecnologicamente intransponiacuteveis Essa perspectiva de escassez de barreiras teacutecnicas conduz ao debate sobre a necessidade

35 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 edbdquo rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179

36 Por exemplo vale lembrar o ocorrido durante o desenrolar dos estudos do projeto genoma humano Segundo Jordan (1993) o verdadeiro objetivo inicial do PGH natildeo era o sequumlenciamento muito complexo caro e trabalhoso mas um mapeamento detalhado do genoma humano No decorrer do processo os progressos tecnoloacutegicos foram tatildeo grandes que propiciaram o sequumlenciamento mesmo antes do prazo previsto Cf GOLDIM Joseacute Roberto MATTE Uacutersulla Projeto Genoma Humano - HUGO Disponiacutevel em lthttpwwwufrgsbrbioeticagenomahtmgt Acessado em 28 maio de 2006

37 Natildeo se desconhece entretanto que o ser humano eacute capaz visando objetivos condenaacuteveis natildeo apenas de bloquear pesquisas mas tambeacutem de manipulaacute-las ou de realizaacute-las de forma direcionada propositadamente sem a observacircncia de criteacuterios cientiacuteficos Todavia antes de examinar a transmissatildeo de conhecimentos eacute necessaacuterio acenar para a sua fonte primaacuteria a pesquisa cientiacutefica Tambeacutem aiacute natildeo faltam aacutereas de conflito Foram sobretudo analisadas as frequumlentes ameaccedilas ao conhecimento e agrave informaccedilatildeo cientiacutefica provenientes de decisotildees poliacuteticas ou da proteccedilatildeo de interesses particulares Dentre as decisotildees poliacuteticas a diretora do Instituto Nacional da Seguranccedila e da Sauacutede Ocupacional (NIOSH) dos EUA Linda Rosenstock recordou aquelas assumidas pelo Congresso nos uacuteltimos anos dentro de um quadro de reduccedilatildeo de muitos programas para a proteccedilatildeo aos trabalhadores com a finalidade de bloquear a utilizaccedilatildeo de pesquisas no campo das artropatias do trabalho e de estudos sobre a relaccedilatildeo entre a motorizaccedilatildeo e os tumores e tambeacutem encobrir o fato de duas organizaccedilotildees internacionais designadas para a proteccedilatildeo agrave sauacutede a Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e a Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho estatildeo sob a acusaccedilatildeo de ter manipulado os relatoacuterios teacutecnicos relativos agrave induacutestria do asbesto Dentre os interesses particulares prcvalcccm aqueles das induacutestrias que encomendam pesquisas com a finalidade de demonstrar a inexistecircncia de efeitos nocivos (o exemplo mais macroscoacutepico concerne ao tabaco) ou entatildeo aumentar as incertezas para evitar fazer o que eacute necessaacuterio com base em conhecimentos jaacute comprovados ou mesmo sugerir procedimentos que alongam indefinidamente os periacuteodos de intervenccedilatildeo Cf BERLINGUER Giovanni Bioeacutetica Cotidiana Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2004 p 147-148

38 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia op cit p 159-179

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de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees tendo em conta que a teoria de haacute muito jaacute advertiu1 e a experiecircncia jaacute nos ensinou como adiante se veraacute que a ausecircncia de limites pode levar ao abuso

Embora isso possa ocorrer em vaacuterios campos como vg a economia e a poliacutetica sem duacutevida a aacuterea biomeacutedica eacute uma das que mais merecem nossa atenccedilatildeo natildeo soacute porque estaacute entre as mais influenciadas por essas transformaccedilotildees mas tambeacutem porque eacute uma das que mais tem potencial de desenvolvimento aleacutem do fato oacutebvio de estar diretamente ligada agrave vida humana Exatamente por isso cresce a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave vida especialmente a Medicina40

O acreacutescimo jaacute obtido na expectativa de vida do Homem que praticamente dobrou nos uacuteltimos dois seacuteculos decorrente de vaacuterios fatores dentre os quais uma verdadeira revoluccedilatildeo terapecircutica41 natildeo eacute suficiente As pessoas querem viver ainda mais e com melhor qualidade Por isso cobram mais avanccedilos tecnoloacutegicos nessa aacuterea despertando interesses diversos que vatildeo dos humanitaacuterios aos puramente comerciais e econocircmicos Chega-se a se falar ateacute mesmo em um direito agrave pesquisa que deve figurar entre as liberdades fundamentais unanimemente reconhecidas42

Para que esses desejos se tornem viaacuteveis eacute preciso conhecer cada vez mais profundamente a complexa maacutequina que eacute o corpo humano desenvolver novos faacutermacos medicamentos vacinas e terapias para combater doenccedilas descobrir a fonte da juventude atraveacutes de meacutetodos de desaceleraccedilatildeo - ou quiccedilaacute interrupccedilatildeo - da degeneraccedilatildeo celular dentre outras possibilidades e desafios

Por exemplo eacute conhecida nos meios juriacutedicos a passagem que adverte () mas trata-se de uma experiecircncia eterna que todo homem que possui poder eacute levado a dele abusar ele vai ateacute onde encontra limites Quem diria Ateacute a virtude precisa de limites MONTESQUIEU Charles de Secondat op cit p 170

40 Natildeo eacute agrave toa portanto que em interessante estudo sobre as exigecircncias referentes aos aspectos eacuteticos da pesquisa em revistas cientiacuteficas brasileiras se chegou agrave conclusatildeo de que As revistas de medicina e enfermagem apresentaram maior preocupaccedilatildeo com as orientaccedilotildees eacuteticas do que as revistas natildeo-meacutedicas classificadas nos grupos de miscelecircncia e odontologia sugerindo que o debate eacutetico da experimentaccedilatildeo em seres humanos estaacute mais difundido nas aacutereas meacutedica e de enfermagem do que em outras aacutereas da sauacutede Tal no entanto natildeo representa necessariamente um dado a ser festejado pois o resultado global comprovou que 791 das revistas cientiacuteficas estudadas natildeo fazem qualquer referecircncia aos aspectos eacuteticos Cf T SARDENBERG S S MUumlLLER H R PEREIRA R A DE OLIVEIRA W S HOSSNE Anaacutelise dos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos contidos nas Instruccedilotildees aos Autores de 139 rev istas cientiacuteficas brasileiras Revista da Associaccedilatildeo Meacutedica do Brasil v 45 n 4 p 295-302 1999

41 Sobre a chamada revoluccedilatildeo terapecircutica vide dentre outros BERNARD Jean La Bioeacutethique Paris Dominos Flammarion 1994 p 14-33

42 Conforme LAFON Claudc De la Biologie agrave Ia Bioeacutethique Paris Ellipses 2006 p 30

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1199

A concretizaccedilatildeo desses objetivos depende de inuacutemeros fatores ligados agrave pesquisa cientiacutefica43 dentre os quais um que eacute o ponto central deste trabalho a experimentaccedilatildeo em seres humanos De fato o progresso do nosso conhecimento no passado e no futuro estaacute intimamente ligado agrave necessidade de observaccedilatildeo do funcionamento e da reaccedilatildeo do corpo e da mente humanas44

Em outras palavras eacute preciso tomar o ser humano como sujeito de pesquisa45

Esse fato bom que se diga natildeo eacute exatamente novo tem ocorrido no correr dos tempos suscitando questotildees eacuteticas de suma relevacircncia pois nem sempre as pessoas estudadas tiveram o trato adequado

A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda Guerra mormente as realizadas pelos japoneses e nazistas alematildees tais como a infestaccedilatildeo de prisioneiros com doenccedilas para testar vacinas e a esterilizaccedilatildeo e amputaccedilatildeo de membros46 trouxeram agrave tona a questatildeo da

43 A discussatildeo a respeito das pesquisas natildeo pode se limitar agravequelas de natureza meacutedica e farmacoloacutegica onde os impactos e riscos satildeo maiores e mais perceptiacuteveis E ampla a definiccedilatildeo de pesquisas em seres humanos adotada pela Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede conforme adiante se veraacute Leonard M Martin C Ss R preleciona O documento pretende regulamentar toda pesquisa em seres humanos e natildeo apenas pesquisas puramente biomeacutedicas Nesta perspectiva pesquisas socioloacutegicas e antropoloacutegicas tambeacutem devem passar pelo crivo de Comitecircs de Eacutetica independentes e ser alvo de discussatildeo sobre sua eticidade MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

44 O efeito de um tratamento sobre o homem soacute pode ser observado no proacuteprio homem Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

45 Esse fenocircmeno ocorre em todas as aacutereas do conhecimento e natildeo apenas nas ciecircncias biomeacutedicas Na realidade quando se fala em experimentaccedilatildeo com seres humanos pensa-se quase que exclusivamente na experimentaccedilatildeo no campo da Medicina Essa vinculaccedilatildeo eacute compreensiacutevel pois a experimentaccedilatildeo na aacuterea meacutedica eacute mais visiacutevel e de efeitos mais patentes em geral Contudo eacute bom assinalar que seres humanos satildeo utilizados em experimentaccedilatildeo por profissionais e cientistas de outras aacutereas odontoacutelogos nutricionistas farmacecircuticos fisioterapeutas psicoacutelogos profissionais da aacuterea de educaccedilatildeo fiacutesica e de esporte educadores e tambeacutem economistas Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179 Leonard M Martin C Ss R com base em McNeill e Jonsen destaca que [] as experiecircncias antieacuteticas dos nazistas incluiacuteram colocar prisioneiros em cacircmaras de pressatildeo modificar a pressatildeo atmosfeacuterica e observar suas mortes estudar o impacto sobre o corpo humano de imersatildeo em aacutegua gelada por periacuteodos prolongados infectar os internos com tifo malaacuteria e outras doenccedilas para testar drogas e vacinas esterilizaccedilatildeo e castraccedilatildeo procurando meacutetodos eficazes para esterilizaccedilatildeo em massa administrar venenos para estudar os efeitos letais e estudos com gecircmeos tipo infectando um matando os dois e comparando os corpos em autoacutepsia No atinente a experiecircncias japonesas MARTIN informa que no ala de desenvolver armas bioloacutegicas [] os japoneses atacaram pelo menos onze cidades com armas bioloacutegicas e infestaram uma cidade com pulgas portadores da peste bubocircnica A Unidade 731 tambeacutem era uma prisatildeo onde os prisioneiros foram submetidos a experiecircncias desumanas Houve cirurgia experimentais pessoas foram desidratadas ateacute a morrer alguns tiveram braccedilos congelados e depois degelados usando vaacuterios meacutetodos com a consequumlecircncia de que a carne apodreceu e caiu o fiacutegado de outras pessoas foi exposto por longos

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1200 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

eacutetica na pesquisa evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana47 e de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa em seres humanos48

Como resposta agraves atrocidades praticadas na Segunda Guerra foi instituiacutedo em 1947 no acircmbito internacional pelo Tribunal de Nuremberg que julgou vinte e trecircs criminosos de guerra nazistas dos quais vinte meacutedicos ligados agrave experimentaccedilatildeo em pessoas49 o denominado Coacutedigo de Nuremberg o qual estabeleceu as diretrizes gerais para pesquisa em seres humanos A doutrina destaca como principais conquistas do coacutedigo o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa em retirar-se do experimento e de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias deste bem como a necessidade de estudos preacutevios sobre a importacircncia da pesquisa e os seus riscos aleacutem da comprovaccedilatildeo da capacidade dos pesquisadores50

Um ano depois a humanidade assiste agrave proclamaccedilatildeo agora pela Assembleacuteia Geral das Naccedilotildees Unidas de um outro documento de suma importacircncia a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos que embora de caraacuteter geral alberga

periacuteodos ao raio-X houve casos do sangue da pessoa ser substituiacutedo por sangue de cavalo e quando as cobaias humanas natildeo serviam mais para as experiecircncias foram executadas O autor ainda ressalta que diferentemente dos alematildees que foram condenados alguns inclusive enforcados os americanos resolveram poupar os japoneses permitindo que continuassem suas carreiras MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

4 Haacute quem afirme - sem razatildeo ao nosso ver - que a dignidade eacute um conceito inuacutetil um mero slogan e que natildeo significaria mais do que o respeito pelas pessoas e por sua autonomia Nesse sentido vide vg MACKLIN Ruth Dignity is a useless concept Brilish Medica Journal v 327 p 20-27 dez 2003 Disponiacutevel em lthttpbmjbmjjournalscomcgicontentfull3277429l419gt Aacessado em 27 maio de 2006 Em sentido inverso sobre as relaccedilotildees entre a Bioeacutetica e a dignidade vide dentre outros ADORNO Roberto La bioegravetique et la dignitegrave de Ia persone Paris Presses Universitaires de France 1997 Os documentos internacionais mencionam o elo entre Bioeacutetica e dignidade A jaacute mencionada Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten por exemplo afirma textualmente que A pesquisa e experiecircncia com seres humanos devem ser realizadas harmonizando a liberdade da ciecircncia e o respeito da dignidade humana

48 A experimentaccedilatildeo em seres humanos causa impacto porque as pessoas temem o abuso Os abusos jaacute ocorreram estatildeo ocorrendo c ainda ocorreratildeo mas proibir o uso natildeo eacute a melhor maneira de impedir o abuso Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

49 Estima-se que centenas de meacutedicos atuaram nos campos de concentraccedilatildeo dos quais pelo menos setenta teriam participado de experimentos com seres humanos A maioria dos meacutedicos de maior expressatildeo conseguiram escapar do julgamento como foi o caso de Josef Mengele principal meacutedico do campo de extermiacutenio de Auschwitz que fugiu e chegou a viver 14 anos no Brasil onde morreu afogado em Bertioga em 1979 O julgamento levou oito meses As sentenccedilas e o Coacutedigo de Nuremberg foram anunciados conjuntamente em 19 de agosto de 1947 Sete acusados foram condenados agrave morte Cf CREMESP Diretrizes e Declaraccedilotildees Disponiacutevel em lthttpvwvbiocticaorgbrlegislacaooutras_diretrizesintegraphpgt Acessado em 30 maio 2006 Discute-se hoje a validade cientiacutefica dos experimentos realizados bem como se eacute eacutetico utilizar os resultados obtidos Nesse sentido vide mateacuteria intitulada Doutores da agonia publicada na revista Superinteressante ed 225 abr2006 p 52-61

50 Cf FREITAS Corina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 195

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direitos que natildeo podem ser olvidados quando da experimentaccedilatildeo com seres humanos a exemplo da dignidade da igualdade e da liberdade Aleacutem disso haacute diversas ligaccedilotildees entre a Declaraccedilatildeo e os princiacutepios da Bioeacutetica51

Assim como a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos o Coacutedigo de Nuremberg proclama criteacuterios princiacutepios miacutenimos e irredutiacuteveis para eticidade da pesquisa em seres humanos Ambas as declaraccedilotildees embora de grande importacircncia para a Bioeacutetica satildeo normalmente entendidas como desprovidas de instrumentos adequados de obrigatoriedade52 e de mecanismos sancionatoacuterios de modo que sua infraccedilatildeo na maioria dos casos tem gerado apenas sanccedilotildees morais

Natildeo-obstante o estabelecido no Coacutedigo de Nuremberg - e na Declaraccedilatildeo Universal - as violaccedilotildees continuaram a ocorrer inclusive nos paiacuteses signataacuterios De fato por exemplo nos Estados Unidos teve continuidade como se nada houvesse acontecido a famosa pesquisa sobre siacutefilis em Tuskegee no condado de Macon Alabama financiada com recursos federais onde especialmente negros e pobres acreditavam que estavam se submetendo a um tratamento especial gratuito quando na verdade nada recebiam embora jaacute houvesse medicamentos disponiacuteveis servindo como verdadeiras cobaias entre 1932 e 1973 para que os pesquisadores pudessem acompanhar o desenvolvimento da doenccedila1 Ainda exemplificativamente foi iniciado em 1946 o chamado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm um dos mais famosos e importantes estudos de odontologia jaacute realizados no qual mais de 436 deficientes mentais crocircnicos internos da cidade de Lund no sul da Sueacutecia que natildeo tinham sequer a menor consciecircncia do que ocorria foram submetidos ateacute 1951 a uma dieta especial rica em accediluacutecar para provar que esta substacircncia provocava caacuteries sem que lhes fosse dado qualquer tratamento54

Por exemplo ao afirmar no seu art 1deg que todas pessoas satildeo dotadas de razatildeo e consciecircncia o documento da ONU reforccedila a ideacuteia de autonomia

52 Em relaccedilatildeo agrave Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Faacutebio Konder Comparato afirma que embora seja tecnicamente apenas uma recomendaccedilatildeo da ONU a seus membros os direitos ali definidos correspondem integralmente ao que o costume e os princiacutepios juriacutedicos internacionais reconhecem hoje como normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens) como a proacutepria Corte Internacional de Justiccedila tem entendido COMPARATO Faacutebio Konder A afirmaccedilatildeo histoacuterica dos Direitos Humanos 4 ed rev e atual Satildeo Paulo Saraiva 2005 p 223-224

53 Vide vg a respeito REVERBY S M More than Fact and Fiction Cultural Memory and the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 31 p 22-28 2001 BRANDT A M Racism and Research The Case of the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 8 p 21-29 1978 BEECHER H K Ethics and Clinicai Research New England Journal of Medicine n 274 p 1354-1360 1966

54 Cf SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas clinicas sobre seus direitos 2005 p 55-61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

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Os avanccedilos tecnoloacutegicos cada vez mais raacutepidos reverberaram nas questotildees eacuteticas forccedilando novas e perioacutedicas revisotildees Necessaacuterio se fez portanto a rediscussatildeo do tema e o aprimoramento do sistema normativo Assim sobreveio a Declaraccedilatildeo de Helsinque elaborada pela Associaccedilatildeo Meacutedica Mundial em 1964 texto que foi revisto e ampliado em 1975 (Toacutequio)55 1983 (Veneza) 1989 (Hong Kong) 1996 (Somerset) e 2000 (Edimburgo) com o que foram incorporadas vaacuterias inovaccedilotildees Por exemplo a disposiccedilatildeo no sentido de que No final do estudo todos os pacientes participantes devem ter assegurado o acesso aos melhores meacutetodos comprovados profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos identificados pelo estudo E no atinente ao uso de placebo que Os benefiacutecios riscos dificuldades e efetividade de um novo meacutetodo devem ser testados comparando-os com os melhores meacutetodos profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos atuais Isto natildeo exclui o uso de placebo ou nenhum tratamento em estudo onde existam meacutetodos provados de profiacutelaxia diagnoacutestico e tratamento 56 Foi tambeacutem reforccedilada a recomendaccedilatildeo do Coacutedigo de Nuremberg sobre a necessidade de submissatildeo do protocolo de pesquisa agrave anaacutelise por um Comitecirc de Eacutetica independente do pesquisador

Outros textos e documentos que tratam da pesquisa merecem referecircncia como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos de 196657 o intitulado Diretrizes Internacionais para a pesquisa biomeacutedica em seres humanos elaborado conjuntamente pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e pelo Council for International Organizations of Medicai Sciences (1993) a Declaraccedilatildeo de Manila (1981) a Declaraccedilatildeo de Princiacutepios Eacuteticos dos Meacutedicos do Mercosul (1996) a Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten (2000) e a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da Unesco (2005)

Em que pese o entendimento de que haacute carecircncia de instrumentos imperativos que garantam a exigibilidade dos referidos documentos sem duacutevida eles

A respeito Leo Pessini e Christian de Paul Barehifontaine ensinam que Tal modificaccedilatildeo fieou conhecida como Helsinque II Entre outros pontos importantes foram incluiacutedos nesta revisatildeo os seguintes aspectos I) Exigecircncia de que o protocolo experimental seja aprovado por uma comissatildeo independente para efeito de apreciaccedilatildeo comentaacuterios e orientaccedilatildeo (item I 2) 2) Que os seres humanos natildeo sejam utilizados em pesquisas a menos que o consentimento consciente do paciente dado livremente tenha sido obtido depois do mesmo ter sido adequadamente informado sobre os objetivos meacutetodos benefiacutecios esperados riscos potenciais e inconvenientes da experimentaccedilatildeo e que ele tenha liberdade de se abster e de cancelar sua participaccedilatildeo a qualquer momento (art I 9) 3) Que o protocolo contenha embasamento eacutetico da pesquisa e a referecircncia de que foram obedecidos os princiacutepios da Declaraccedilatildeo de Helsinque (item I 12) 4) Que os interesses da ciecircncia e da sociedade jamais tenham precedecircncia sobre o bem-estar do indiviacuteduo (item III 4) PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Problemas aluais de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1994 p 131

56 GRECO Dirceu B Poder e injusticcedila na pesquisa envolvendo seres humanos In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 264

57 De acordo com o seu art 7o Ningueacutem poderaacute ser submetido a tortura nem a penas ou tratamentos crueacuteis desumanos ou degradantes Seraacute proibido sobretudo submeter uma pessoa sem seu livre consentimento a experiecircncias meacutedicas ou cientiacuteficas

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contribuiacuteram e contribuem significativamente na proteccedilatildeo ao ser humano objeto de pesquisa pois influenciaram a elaboraccedilatildeo de diretrizes vinculantes no plano individual de cada Estado a exemplo do Brasil como a seguir veremos Por outro lado importante anotar que uma harmonia consensual e global no atinente agrave pesquisa parece impossiacutevel tendo em conta que a cultura os objetivos e as condiccedilotildees cientiacuteficas dos diversos paiacuteses satildeo naturalmente diversificados58 Aliaacutes haacute quem chegue a afirmar que o pluralismo eacutetico em vigor nos dias de hoje natildeo nos permite mais falar em moral universal59

No Brasil a normatizaccedilatildeo se daacute principalmente atraveacutes de resoluccedilotildees do Conselho Federal de Medicina60 e do Conselho Nacional de Sauacutede Aliaacutes a primeira resoluccedilatildeo deste uacuteltimo oacutergatildeo - Resoluccedilatildeo n 01 de 13 de junho de 1988 - tratou justamente de normas de pesquisa em sauacutede tendo dedicado o seu Capiacutetulo II arts 4o a 16 aos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos Esse diploma legal foi posteriormente revogado pela Resoluccedilatildeo n 196 de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Sauacutede que eacute atualmente a base regulamentar da pesquisa no Brasil tratando das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos Esta Resoluccedilatildeo eacute na verdade uma revisatildeo da anterior tendo sido precedida de diaacutelogo entre governo e sociedade civil61

A Resoluccedilatildeo atual afirma jaacute em seu preacircmbulo a sua fundamentaccedilatildeo nos principais documentos internacionais que emanaram declaraccedilotildees e diretrizes sobre

58 Nesse contexto por tanto deve ser considerada a questatildeo do multicuturalismo Como bem ensinam Joseacute A Mainetti Joseacute L Mainettil Existen dificultades en la aplicacioacuten de los principos elaborados por los paiacuteses centrales y es una evidencia por ejemplo que resulta inapropiada la visioacuten estrccha de la autonomia y la aplicacioacuten riacutegida dei requisito dei consentimento informado al modo norteamericano en determinadas circunstancias y comunidades Es preciso entoces reconocer Ias diferenccedilas culturales y en base a eacutestas aplicar los princiacutepios sin renunciar a cllos en formas maacutes adecuadas al ethos particular MAINETTI Joseacute A MAINETTI Joseacute L Bioeacutetica y la experimentacioacuten humana In SOROKIN Patriacutecia (Coord) Bioeacutelica entre utopias y desarraigos Buenos Aires Ad-Hoc Villela 2002 p 190

59 Cf ENGELHARDT JUacuteNIOR Tristam apuei BAUZON Steacutephane La personne biojuridique Paris Press Universitaires de France 2006 p 63

60 Vide como exemplo a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro o qual no seu Capiacutetulo XII trata especificamente da pesquisa meacutedica

61 Cf FREITAS Corina Bontempo Duca de Eacutetica na pesquisa com seres humanos A experiecircncia brasileira In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutelica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 307

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pesquisas que envolvem seres humanos62 e que visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito agrave comunidade cientiacutefica aos sujeitos da pesquisa e ao Estado

Aleacutem disso vinculou a experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da principiologia da Bioeacutetica seja no preacircmbulo onde afirma que incorpora sob a oacutetica do indiviacuteduo e das coletividades os quatro referenciais baacutesicos da Bioeacutetica autonomia natildeo-maleficecircncia beneficecircncia e justiccedila entre outros seja no seu item III 1 que versa sobre a eticidade na pesquisa63

Entre as suas disposiccedilotildees encontramos definiccedilotildees de diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica pesquisa64 pesquisa envolvendo seres humanos65

protocolo de pesquisa66 pesquisador responsaacutevel67 instituiccedilatildeo de pesquisa68 promotor69

patrocinador70 risco da pesquisa71 dano associado ou decorrente da pesquisa72 sujeito da

62 Cila a Resoluccedilatildeo os seguintes documentos o Coacutedigo de Nuremberg (1947) a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem (1948) a Declaraccedilatildeo de Helsinque (1964 e suas versotildees posteriores de 1975 1983 e 1989) o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Poliacuteticos (ONU 1966 aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1992) as Propostas de Diretrizes Eacuteticas Internacionais para Pesquisas Biomeacutedicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMSOMS 1982 e 1993) e as Diretrizes Internacionais para Revisatildeo Eacutetica de Estudos Epidemioloacutegicos (C10MS 1991) III1 - A eticidade da pesquisa implica em a) consentimento livre e esclarecido dos indiviacuteduos-alvo e a proteccedilatildeo a grupos vulneraacuteveis e aos legalmente incapazes (autonomia) Neste sentido a pesquisa envolvendo seres humanos deveraacute sempre trataacute-los em sua dignidade respeitaacute-los em sua autonomia e defendecirc-los em sua vulnerabilidade b) ponderaccedilatildeo entre riscos e benefiacutecios tanto atuais como potenciais individuais ou coletivos (beneficecircncia) comprometendo-se com o maacuteximo de benefiacutecios e o miacutenimo de danos e riscos c) garantia de que danos previsiacuteveis seratildeo evitados (natildeo maleficecircncia)- d) relevacircncia social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimizaccedilatildeo do ocircnus para os sujeitos vulneraacuteveis o que garante a igual consideraccedilatildeo dos interesses envolvidos natildeo perdendo o sentido de sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria (justiccedila e equumlidade) (negritos originais)

64 111 Pesquisa classe de atividades cujo objetivo eacute desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizaacutevel O conhecimento generalizaacutevel consiste em teorias relaccedilotildees ou princiacutepios ou no acuacutemulo de informaccedilotildees sobre as quais estatildeo baseados que possam ser corroborados por meacutetodos cientiacuteficos aceitos de observaccedilatildeo e infercncia

65 112 Pesquisa envolvendo seres humanos pesquisa que individual ou coletivamente envolva o ser humano de forma direta ou indireta em sua totalidade ou partes dele incluindo o manejo de informaccedilotildees ou materiais

66 II3 Protocolo de Pesquisa Documento contemplando a descriccedilatildeo da pesquisa em seus aspectos fundamentais informaccedilotildees relativas ao sujeito da pesquisa agrave qualificaccedilatildeo dos pesquisadores e a todas as instacircncias responsaacuteveis

67 II-4 Pesquisador responsaacutevel pessoa responsaacutevel pela coordenaccedilatildeo e realizaccedilatildeo da pesquisa e pela integridade e bem-estar dos sujeitos da pesquisa

68 II5 - Instituiccedilatildeo de pesquisa - organizaccedilatildeo puacuteblica ou privada legitimamente constituiacuteda e habilitada na qual satildeo realizadas investigaccedilotildees cientiacuteficas

69 116 - Promotor - indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo responsaacutevel pela promoccedilatildeo da pesquisa 70 II7 - Patrocinador - pessoa fiacutesica ou juriacutedica que apoia financeiramente a pesquisa 71 II8 Risco da pesquisa - possibilidade de danos agrave dimensatildeo fiacutesica psiacutequica moral intelectual social

cultural ou espiritual do ser humano em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente II9 Dano associado ou decorrente da pesquisa agravo imediato ou tardio ao indiviacuteduo ou agrave coletividade com nexo causai comprovado direto ou indireto decorrente do estudo cientiacutefico

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pesquisa73 consentimento livre e esclarecido74 indenizaccedilatildeo75 ressarcimento6 Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (CEP)77 vulnerabilidade78 e incapacidade79

A Resoluccedilatildeo regulamentou os Comitecircs de Eacutetica e Pesquisa - CEPs80 em cujas funccedilotildees81 destaca-se a apreciaccedilatildeo do protocolo da pesquisa em todas as suas especificidades o que foi um grande passo no sentido da construccedilatildeo de padrotildees eacuteticos82

Haacute requisitos para a instituiccedilatildeo dos Comitecircs principalmente no atinente agrave sua composiccedilatildeo83

1110 Sujeito da pesquisa eacute o(a) participante pesquisado(a) individual ou coletivamente de caraacuteter voluntaacuterio vedada qualquer forma de remuneraccedilatildeo IIII Consentimento livre e esclarecido anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal livre de viacutecios (simulaccedilatildeo fraude ou erro) dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar formulada em um termo de consentimento autorizando sua participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa 1112 - Indenizaccedilatildeo - cobertura material em reparaccedilatildeo a dano imediato ou tardio causado pela pesquisa ao ser humano a ela submetida 1113 Ressarcimento - cobertura em compensaccedilatildeo exclusiva de despesas decorrentes da participaccedilatildeo do sujeito na pesquisa 1114 - Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa-CEP - colegiados interdisciplinares e independentes com munus puacuteblico de caraacuteter consultivo deliberativo e educativo criados para defender os interesses dos sujeitos da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrotildees eacuteticos 1115 Vulnerabilidade refere-se a estado de pessoas ou grupos que por quaisquer razotildees ou motivos tenham a sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido 1116 - Incapacidade - Refere-se ao possiacutevel sujeito da pesquisa que natildeo tenha capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido devendo ser assistido ou representado de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira vigente O CEP pode ser entendido como um oacutergatildeo controlador da pesquisa por um lado mas por outro eacute tambeacutem um oacutergatildeo que ajuda a harmonizar diversos interesses que como vimos podem ser os mais diversos e agraves vezes ateacute conflitantes Cf PALAacuteCIOS Marisa Eacutetica na pesquisa - 1 Eacutetica em pesquisa em seres humanos In PALAacuteCIOS Marisa MARTINS Andreacute PEGORARO Olinto A (Orgs) Eacutetica ciecircncia e sauacutede humana Petroacutepolis Vozes 2001 p 74 Satildeo atribuiccedilotildees conferidas pela Resoluccedilatildeo aos CEPs a) revisar todos os protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos b) emitir parecer consubstanciado por escrito c) manter a guarda confidencial de todos os dados obtidos na execuccedilatildeo de sua tarefa e arquivamento do protocolo completo que ficaraacute agrave disposiccedilatildeo das autoridades sanitaacuterias d) acompanhar o desenvolvimento dos projetos atraveacutes de relatoacuterios anuais dos pesquisadores e) desempenhar papel consultivo e educativo 0 receber dos sujeitos da pesquisa ou de qualquer outra parte denuacutencias de abusos ou notificaccedilatildeo sobre fatos adversos que possam alterar o curso normal do estudo decidindo pela continuidade modificaccedilatildeo ou suspensatildeo da pesquisa devendo se necessaacuterio adequar o termo de consentimento considerando-se anti-eacutetica a pesquisa descontinuada sem justificativa aceita pelo CEP que a aprovou g) requerer instauraccedilatildeo de sindicacircncia agrave direccedilatildeo da instituiccedilatildeo em caso de denuacutencias de irregularidades de natureza eacutetica nas pesquisas e em havendo comprovaccedilatildeo comunicar agrave Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa CONEPMS e no que couber a outras instacircncias e h) manter comunicaccedilatildeo regular e permanente com a CONEPMS A existecircncia de oacutergatildeos com a funccedilatildeo de aprovar e acompanhar pesquisas jaacute era preconizada por exemplo pelo Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988) cujo art 127 veda ao

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Foi mais aleacutem a Resoluccedilatildeo que de modo inovador reforccedilou o controle eacutetico e a defesa da dignidade da pessoa humana com a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa - CONEP84 que atua na direccedilatildeo e orientaccedilatildeo dos comitecircs8S A comissatildeo de acordo com a Resoluccedilatildeo eacute uma instacircncia colegiada de natureza consultiva deliberativa normativa independente vinculada ao Conselho Nacional de Sauacutede86 Essa vinculaccedilatildeo eacute bastante positiva posto que a alternativa de submetecirc-la a outros oacutergatildeos poderia dar ensejo a uma indesejada politizaccedilatildeo dos seus membros o que seria capaz de terminar por afetar a sua autonomia

meacutedico Realizar pesquisa meacutedica em ser humano sem submeter o protocolo a aprovaccedilatildeo e acompanhamento de comissatildeo isenta de qualquer dependecircncia em relaccedilatildeo ao pesquisador O colegiado com nuacutemero natildeo inferior a 7 (sete) membros deve ser multidisciplinar abrangendo profissionais idocircneos e de distinta formaccedilatildeo da aacuterea de sauacutede e das ciecircncias exatas sociais e humanas incluindo por exemplo juristas teoacutelogos socioacutelogos filoacutesofos bioeticistas aleacutem de membros da sociedade e obrigatoriamente pelo menos um membro representando os usuaacuterios Se a pesquisa envolver grupos vulneraacuteveis comunidades e coletividades um dos seus representantes deveraacute ser convidado para participar como membro ad hoc do CEP da anaacutelise do projeto especiacutefico Assim o CEP ainda segundo a Resoluccedilatildeo teraacute sempre um caraacuteter multi e transdisciplinar sendo vedado que mais que metade de seus membros pertenccedilam a uma mesma categoria profissional devendo ainda participarem pessoas dos dois sexos Satildeo permitidos consultores ad hoc pessoas que pertencem ou natildeo aacute instituiccedilatildeo com o objetivo de fornecer subsiacutedios teacutecnicos Merece ainda atenccedilatildeo especial a autonomia do comitecirc cuja manifestaccedilatildeo deve ser totalmente autocircnoma e imaculada de coaccedilotildees ou pressotildees dos interessados A autonomia e a independecircncia satildeo condiccedilotildees sine qua non para a desejada eficaacutecia dos comitecircs que felizmente estatildeo se proliferando em nosso paiacutes Conforme informaccedilotildees do site da CONEP satildeo 446 CEPs aprovados no Brasil ateacute janeiro de 2006 Disponiacutevel em lthttpoonselhosaudegovbrcomissaoconep2006ceps20APROVADOSxlsgt Acessado em 04 jun 2006 A Comissatildeo tem 13 membros titulares e o mesmo nuacutemero de suplentes em uma composiccedilatildeo que tambeacutem deveraacute ser multi e transdisciplinar com pessoas de ambos os sexos Dentre os seus membros 05 (cinco) devem ser personalidades destacadas no campo da eacutetica na pesquisa e na sauacutede e 08 (oito) devem ser personalidades com destacada atuaccedilatildeo nos campos teoloacutegico juriacutedico e outros assegurando-se que pelo menos um seja da aacuterea de gestatildeo da sauacutede Embora natildeo desconheccedilamos a importacircncia das religiotildees na formaccedilatildeo do pensamento eacutetico humano e sem querer desmerecer as pessoas que nelas militam no mais das vezes com accedilotildees de destacada importacircncia pensamos que eacute inadequada em um Estado laico como o nosso a destinaccedilacirco de vaga ou de vagas especificamente a pessoas do campo teleoloacutegico Essa observaccedilatildeo imperioso demarcar natildeo eacute no sentido de entender que a contribuiccedilatildeo dessas pessoas eacute desnecessaacuteria ou inconveniente Pelo contraacuterio Poreacutem a desejada participaccedilatildeo jaacute poderia ser levada a efeito incluindo-as no grupo de personalidades com atuaccedilatildeo de destaque na esfera da eacutetica na pesquisa e na sauacutede sem necessidade de vinculaccedilatildeo necessaacuteria ao pensamento religioso Isso ateacute mesmo para preservar o pluralismo e a igualdade jaacute que obviamente natildeo seraacute possiacutevel oferecer a cada religiatildeo uma vaga Os membros da Comissatildeo satildeo recrutados a partir de indicaccedilotildees contidas em listas elaboradas pelas instituiccedilotildees que possuem CEP registrado na CONEP sendo que 07 (sete) satildeo escolhidos pelo Conselho Nacional de Sauacutede e 06 (seis) satildeo definidos por sorteio Tambeacutem pode contar com consultores e membros ad hoc sendo assegurada a representaccedilatildeo dos usuaacuterios O mandato eacute de quatro anos com renovaccedilatildeo alternada a cada dois anos de sete ou seis de seus membros A CONEP tem tambeacutem um papel coordenador da rede de Comitecircs institucionais aleacutem de se constituir em oacutergatildeo consultor na aacuterea eacutetica em pesquisa Num primeiro momento tem ainda a atribuiccedilatildeo de apreciar os projetos de pesquisas de aacutereas temaacuteticas especiais enviadas pelos CFPs ou seja projetos que contemplam aacutereas com maiores dilemas eacuteticos e grande repercussatildeo social ateacute que se acumulem experiecircncias para elaboraccedilatildeo de normas especiacuteficas complementares agraves existentes Cf FREITAS Carolina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA

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Outros aspectos da Resoluccedilatildeo que merecem especial destaque para o nosso estudo satildeo os relativos ao consentimento livre e esclarecido agrave vulnerabilidade e agrave incapacidade

Como jaacute dito um dos principais pontos da Declaraccedilatildeo de Nuremberg foi o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias A Resoluccedilatildeo tratou do tema exigindo a anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar87 A anuecircncia deve ser expressa atraveacutes de

Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 202

S6 Segundo a Resoluccedilatildeo compete agrave CONEP examinar os aspectos eacuteticos da pesquisa envolvendo seres humanos assim como a adequaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo das normas atinentes consultando a sociedade sempre que julgar necessaacuterio cabendo-lhe entre outras as seguintes atribuiccedilotildees a) estimular a criaccedilatildeo de CEPs institucionais e de outras instacircncias b) registrar os CEPs institucionais e de outras instacircncias c) aprovar no prazo de 60 dias e acompanhar os protocolos de pesquisa em aacutereas temaacuteticas especiais tais como geneacutetica humana reproduccedilatildeo humana faacutermacos medicamentos vacinas e testes diagnoacutesticos novos (fases I II e III) ou natildeo registrados no pais (ainda que fase IV) ou quando a pesquisa for referente a seu uso com modalidades indicaccedilotildees doses ou vias de administraccedilatildeo diferentes daquelas estabelecidas incluindo seu emprego em combinaccedilotildees equipamentos insumos e dispositivos para a sauacutede novos ou natildeo registrados no paiacutes novos procedimentos ainda natildeo consagrados na literatura populaccedilotildees indiacutegenas projetos que envolvam aspectos de biosseguranccedila pesquisas coordenadas do exterior ou com participaccedilatildeo estrangeira c pesquisas que envolvam remessa de material bioloacutegico para o exterior e projetos que a criteacuterio do CEP devidamente justificado sejam julgados merecedores de anaacutelise pela CONEP d) prover normas especiacuteficas no campo da eacutetica em pesquisa inclusive nas aacutereas temaacuteticas especiais bem como recomendaccedilotildees para aplicaccedilatildeo das mesmas e) funcionar como instacircncia final de recursos a partir de informaccedilotildees fornecidas sistematicamente em caraacuteter ex-ofiacutecio ou a partir de denuacutencias ou de solicitaccedilatildeo de partes interessadas devendo manifestar-se em um prazo natildeo superior a 60 (sessenta) dias 0 rever responsabilidades proibir ou interromper pesquisas definitiva ou temporariamente podendo requisitar protocolos para revisatildeo eacutetica inclusive os jaacute aprovados pelo CEP g) constituir um sistema de informaccedilatildeo e acompanhamento dos aspectos eacuteticos das pesquisas envolvendo seres humanos em todo o territoacuterio nacional mantendo atualizados os bancos de dados h) informar e assessorar o MS o CNS e outras instacircncias do SUS bem como do governo e da sociedade sobre questotildees eacuteticas relativas agrave pesquisa em seres humanos i) divulgar esta e outras normas relativas agrave eacutetica em pesquisa envolvendo seres humanos j) juntamente com outros setores do Ministeacuterio da Sauacutede estabelecer normas e criteacuterios para o credenciamento de Centros de Pesquisa e I) estabelecer suas proacuteprias normas de funcionamento

87 No que concerne agrave pesquisa meacutedica a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro estipula no seu art 123 que eacute vedado ao meacutedico Realizar pesquisa em ser humano sem que este tenha dado consentimento por escrito apoacutes devidamente esclarecido sobre a natureza e consequumlecircncia da pesquisa e que Caso o paciente natildeo tenha condiccedilotildees de dar seu livre consentimento a pesquisa somente poderaacute se realizada em seu proacuteprio beneficio apoacutes expressa autorizaccedilatildeo de seu responsaacutevel legal Jaacute a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO no seu art 6 aliacutenea b estabelece que A pesquisa cientiacutefica soacute deve ser realizada com o preacutevio livre expresso e esclarecido consentimento do indiviacuteduo envolvido A informaccedilatildeo deve ser adequada fornecida de uma forma compreensiacutevel e incluir os procedimentos para a retirada do consentimento O consentimento pode ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer hora e por qualquer razatildeo sem acarretar qualquer desvantagem ou preconceito Exceccedilotildees a este princiacutepio somente devem ocorrer quando em conformidade com os padrotildees eacuteticos e legais adotados pelos Estados consistentes com as provisotildees da presente Declaraccedilatildeo particularmente com o art 27 e com os direitos humanos

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em um termo de consentimento onde eacute autorizada a participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa Aleacutem disso natildeo pode estar viciada por simulaccedilatildeo fraude ou erro nem tampouco pode ser obtida por forccedila de uma situaccedilatildeo de dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo

Trata-se de disposiccedilatildeo decorrente da adoccedilatildeo do princiacutepio da autonomia jaacute abordado que se vincula agrave capacidade de autodeterminaccedilatildeo e auto-escolha e pressupotildee dentre outras premissas a capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos possiacuteveis18

Quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de estudo possuem a capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto ao consentimento livre e esclarecido por quaisquer motivos verifica-se uma situaccedilatildeo de vulnerabilidade que natildeo pode ser desconsiderada pelo pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais A preocupaccedilatildeo com a vulnerabilidade dos sujeitos encontra supedacircneo no Coacutedigo de Nuremberg na Declaraccedilatildeo de Helsinque nas Diretrizes Internacionais para Pesquisa Biomeacutedica envolvendo Seres Humanos89 e tambeacutem como jaacute dito na Resoluccedilatildeo 19696 A dificuldade central relacionada a indiviacuteduos e comunidades vulneraacuteveis eacute com a sua capacidade de compreensatildeo (autonomia plena) sobre o experimento e possibilidade de livremente consentir com a pesquisa e quando quiser dela desistir o que justifica todas as preocupaccedilotildees nesse sentido90

Cabe trazer a lume os ensinamentos do professor chileno Fernando Lolas O respeito pela autonomia das pessoas como agentes morais capazes de decisotildees informadas eacute central no diaacutelogo bioeacutetico Somente a permissatildeo outorgada por uma pessoa pode legitimar uma accedilatildeo que a envolva O valor das pessoas eacute incondicional o que obriga a consideraacute-las fins natildeo meios com a liberdade de viver e a de decidir livres de interferecircncias LOLAS Fernando Bioeacutetica o que eacute como se faz Traduccedilatildeo Milton Camargo Mota Satildeo Paulo Loyola 2001 p 63 A Diretriz Internacional para Pesquisa Biomeacutedica afirma Pesquisa envolvendo indiviacuteduos de comunidades sub-desenvolvidas Antes de iniciar a pesquisa em indiviacuteduos de comunidades subdesenvolvidas seja em paiacuteses desenvolvidos ou em desenvolvimento o pesquisador deve estar seguro que As pessoas da comunidade subdesenvolvida natildeo seratildeo ordinariamente envolvidas na pesquisa que possa ser realizada de forma adequada em comunidades desenvolvidas A pesquisa eacute uma resposta agraves necessidades de sauacutede e agraves prioridades da comunidade na qual seraacute realizada todos os esforccedilos seratildeo tomados no sentido de assegurar o imperativo eacutetico de que o consentimento individual dos sujeitos seraacute informado e Os projetos para a pesquisa foram revisados e aprovados por um comitecirc de eacutetica que tenha entre os seus membros ou consultores pessoas que tenham familiaridade com os costumes e tradiccedilotildees da comunidade Em comentaacuterio agraves diretrizes acima Leo Pessini e Christian Paul de Barchifontaine entendem que Quando a experimentaccedilatildeo visa ao estudo de determinadas condiccedilotildees moacuterbidas tais como doenccedilas endecircmicas em comunidades de baixo niacutevel socioeconocircmico eou cultural incapazes de terem uma consciecircncia clara e apropriada das implicaccedilotildees de sua participaccedilatildeo na experiecircncia eacute de bom alvitre que seja obtida a interveniecircncia de um liacuteder em que a coletividade confia Esse intermediaacuterio dever deixar claro que a participaccedilatildeo eacute voluntaacuteria e que qualquer participante tem a liberdade de natildeo aceitar ou abandonar a experiecircncia a qualquer momento op cit p 133

Conforme Marisa Palaacutecios Quando a autonomia dos sujeitos natildeo eacute plena ou seja quando a capacidade de entender as situaccedilotildees que se apresentam ao sujeito e de autodeterminar-se segundo este entendimento estaacute de alguma forma limitada eacute preciso tomar cuidado especial Eacute o caso dos grupos vulneraacuteveis os iacutendios que tecircm a capacidade de entendimento das situaccedilotildees diminuiacuteda uma vez que compotildeem sociedades

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A vulnerabilidade pode assumir as mais variadas vertentes bem como atingir uma determinada pessoa ou um grupo de seres humanos com peculiaridades comuns tais como crianccedilas idosos iacutendios pacientes terminais desempregados deficientes91 presidiaacuterios92 ou outras situaccedilotildees de dependecircncia93

Pode ocorrer que as pessoas que seratildeo estudadas na pesquisa natildeo tenham capacidade civil para dar o seu consentimento Nesse caso se encontram em situaccedilatildeo de incapacidade e a pesquisa soacute pode ser levada adiante com a intervenccedilatildeo de seus representantes legais que de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira deveratildeo assistir ou representar os incapazes Tambeacutem aqui deve o pesquisador cercar-se de cautelas eacuteticas redobradas

Finalmente deve-se louvar a Resoluccedilatildeo por ter explicitado no seu item III3 um rol de 23 (vinte e trecircs) exigecircncias eacuteticas para a pesquisa de qualquer aacuterea do conhecimento que envolva seres humanos94

culturalmente diversas[] Estas para citar algumas populaccedilotildees caracteriacutesticas Satildeo populaccedilotildees que precisam ser especialmente protegidas dada a proacutepria condiccedilatildeo de vulnerabilidade Maria Carolina S Guimaratildees e Sylvia Caiuby Novaes com alento em Hannah Arendt e Cardia definem o ser vulneraacutevel como Algueacutem que possui cidadania fraacutegil que ignora a relevacircncia do direito agrave integridade fiacutesica como condiccedilatildeo de acesso aos direitos sociais econocircmicos poliacuteticos e trabalhistas Dito assim o que parece a primeira condiccedilatildeo para que um ser vulneraacutevel perca tal situaccedilatildeo eacute o investimento do Estado naquilo que constroacutei e constitui a cidadania naqueles atributos que transformam o indiviacuteduo em cidadatildeo que transformam o animal laborans em homem poliacutetico Essa transformaccedilatildeo eacute no dizer de Hannah Arendt um pressuposto da democracia pois permite ao animal laborans ir do reino da necessidade para o reino da liberdade GUIMARAtildeES Maria Carolina S NOVAES Sylvia Caiuby Autonomia reduzida e vulnerabilidade liberdade de decisatildeo diferenccedila e desigualdade Revista Bioeacutetica Brasiacutelia v 7 n 1 p 23 1999

91 Sobre o tema vide COHEN Claacuteudio Bioeacutetica Pesquisa e Deficiecircncia In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 55-62 92 Nem todo ser humano eacute no entanto capaz de autodeterminaccedilatildeo A capacidade de autodeterminaccedilatildeo amadurece ao longo da vida mas pode ser perdida total ou parcialmente por doenccedila velhice ou situaccedilatildeo de restriccedilatildeo severa como a prisatildeo Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 93 O Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de janeiro de 1988) veda ao meacutedico no seu art 128 Realizar pesquisa meacutedica em voluntaacuterios sadios ou-natildeo que tenham direta ou indiretamente dependecircncia ou subordinaccedilatildeo relativamente ao pesquisador 94 I1I3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias a) ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder a incertezas b) estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou em outros fatos cientiacuteficos c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio d) prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis e) obedecer a metodologia adequada Se houver necessidade de distribuiccedilatildeo aleatoacuteria dos sujeitos da pesquisa em grupos experimentais e de controle assegurar que apriori natildeo seja possiacutevel estabelecer as vantagens de um procedimento sobre outro atraveacutes de revisatildeo de literatura meacutetodos observacionais ou meacutetodos que natildeo envolvam seres humanos 0 ter plenamente justificada quando for o caso a utilizaccedilatildeo de placebo em termos de natildeo maleficecircncia e de necessidade metodoloacutegica g) contar com o consentimento livre e esclarecido do sujeito da pesquisa eou seu representante legal h) contar com os recursos humanos e materiais necessaacuterios que garantam o bem-

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5 Teleologia e legitimidade da pesquisa em seres humanos

Toda experimentaccedilatildeo em seres humanos possui um determinado objetivo o qual pode ou-natildeo estar vinculado ao bem estar proacuteprio da pessoa ou grupo observado

Essa situaccedilatildeo natildeo foi esquecida pela Declaraccedilatildeo de Helsinque cujo preacircmbulo afirma Wo campo cia pesquisa biomeacutedica uma distinccedilatildeo fundamental deve ser feita entre a pesquisa meacutedica na qual o objetivo eacute essencialmente o diagnoacutestico ou a terapecircutica para um paciente e a pesquisa meacutedica cujo objeto essencial eacute puramente cientiacutefico e sem um valor direto diagnoacutestico ou terapecircutico para a pessoa sujeita agrave

estar do sujeito da pesquisa devendo ainda haver adequaccedilatildeo entre a competecircncia do pesquisador e o projeto proposto i) prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade a proteccedilatildeo da imagem e a natildeo estigmatizaccedilatildeo garantindo a natildeo utilizaccedilatildeo das informaccedilotildees em prejuiacutezo das pessoas eou das comunidades inclusive em termos de auto-estima de prestiacutegio eou econocircmico - financeiro j) ser desenvolvida preferencialmente cm indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida 1) respeitar sempre os valores culturais sociais morais religiosos e eacuteticos bem como os haacutebitos e costumes quando as pesquisas envolverem comunidades m) garantir que as pesquisas em comunidades sempre que possiacutevel traduzir-se-atildeo em benefiacutecios cujos efeitos continuem a se fazer sentir apoacutes sua conclusatildeo O projeto deve analisar as necessidades de cada um dos membros da comunidade e analisar as diferenccedilas presentes entre eles explicitando como seraacute assegurado o respeito agraves mesmas n) garantir o retomo dos benefiacutecios obtidos atraveacutes das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas Quando no interesse da comunidade houver benefiacutecio real em incentivar ou estimular mudanccedilas de costumes ou comportamentos o protocolo de pesquisa deve incluir sempre que possiacutevel disposiccedilotildees para comunicar tal benefiacutecio agraves pessoas eou comunidades o) comunicar agraves autoridades sanitaacuterias os resultados da pesquisa sempre que os mesmos puderem contribuir para a melhoria das condiccedilotildees de sauacutede da coletividade preservando poreacutem a imagem e assegurando que os sujeitos da pesquisa natildeo sejam estigmatizados ou percam a auto-estima p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefiacutecios resultantes do projeto seja em termos de retorno social acesso aos procedimentos produtos ou agentes da pesquisa q)assegurar aos sujeitos da pesquisa as condiccedilotildees de acompanhamento tratamento ou de orientaccedilatildeo conforme o caso nas pesquisas de rastreamento demonstrar a preponderacircncia de benefiacutecios sobre riscos e custos r) assegurar a inexistecircncia de conflito de interesses entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa ou patrocinador do projeto s) comprovar nas pesquisas conduzidas do exterior ou com cooperaccedilatildeo estrangeira os compromissos e as vantagens para os sujeitos das pesquisas e para o Brasil decorrentes de sua realizaccedilatildeo Nestes casos deve ser identificado o pesquisador e a instituiccedilatildeo nacionais co-responsaacuteveis pela pesquisa O protocolo deveraacute observar as exigecircncias da Declaraccedilatildeo de Helsinque e incluir documento de aprovaccedilatildeo no paiacutes de origem entre os apresentados para avaliaccedilatildeo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa da instituiccedilatildeo brasileira que exigiraacute o cumprimento de seus proacuteprios referenciais eacuteticos Os estudos patrocinados do exterior tambeacutem devem responder agraves necessidades de treinamento de pessoal no Brasil para que o paiacutes possa desenvolver projetos similares de forma independente t) utilizar o material bioloacutegico e os dados obtidos na pesquisa exclusivamente para a finalidade prevista no seu protocolo u) levar em conta nas pesquisas realizadas em mulheres em idade feacutertil ou em mulheres graacutevidas a avaliaccedilatildeo de riscos e benefiacutecios e as eventuais interferecircncias sobre a fertilidade a gravidez o embriatildeo ou o feto o trabalho de parto o puerpeacuterio a lactaccedilatildeo e o receacutem-nascido v) considerar que as pesquisas em mulheres graacutevidas devem ser precedidas de pesquisas em mulheres fora do periacuteodo gestacional exceto quando a gravidez for o objetivo fundamental da pesquisa x) propiciar nos estudos multicecircntricos a participaccedilatildeo dos pesquisadores que desenvolveratildeo a pesquisa na elaboraccedilatildeo do delineamento geral do projeto e z) descontinuar o estudo somente apoacutes anaacutelise das razotildees da descontinuidade pelo CEP que a aprovou

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pesquisa Em outras palavras haacute experimentos em benefiacutecio do paciente e experimentos em benefiacutecio da ciecircncia Ainda no preacircmbulo da Declaraccedilatildeo de Helsinque encontramos que A finalidade da pesquisa meacutedica envolvendo seres humanos deve ser o aperfeiccediloamento do diagnoacutestico procedimentos terapecircuticos e profilaacuteticos e a compreensatildeo da etiologia e da patologia da doenccedila Conjugando essa afirmaccedilatildeo com a anterior podemos extrair que uma determinada pessoa ou populaccedilatildeo pode ser objeto de pesquisa para desvendar doenccedilas que a afligem ou para desnudar as razotildees pelas quais eacute menos suscetiacutevel ou-natildeo eacute atingida por determinada moleacutestia que afeta aos demais seres humanos

A partir dessas observaccedilotildees podemos considerar para os fins do nosso estudo que as experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas teleologicamente em dois grupos a) aquelas cujos objetivos possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas as quais chamaremos de pesquisas com justificativa intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de terceiros as quais denominaremos pesquisas com justificativa extrinseca Temos como exemplo na primeira situaccedilatildeo os experimentos cientiacuteficos para desvendar o porquecirc de uma determinada coletividade ser atingida por taxas elevadas de uma certa doenccedila e na segunda uma pesquisa para revelar as razotildees pelas quais certas pessoas natildeo desenvolvem uma moleacutestia com o objetivo de descobrir uma vacina ou um medicamento para os demais

Entretanto em todo experimento seraacute necessaacuterio averiguar se a justificativa - seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima Isso porque o fato de uma pesquisa ter por objetivo um tratamento mais eficiente ou a cura de certas doenccedilas natildeo legitima por si soacute a utilizaccedilatildeo de pessoas como sujeito de pesquisa mesmo que elas sofram da moleacutestia e possam vir a ser beneficiadas Natildeo se deve perder de vista aliaacutes que se o conhecimento puder ser obtido por outro meio a utilizaccedilatildeo de seres humanos justamente por ser desnecessaacuteria seraacute ilegiacutetima95 Ademais soacute pelo fato de ser intriacutenseca a justificativa natildeo seraacute necessariamente legiacutetima Por outro lado a circunstacircncia isoladamente considerada do eventual resultado da experimentaccedilatildeo ser absolutamente indiferente ao sujeito de pesquisa natildeo torna a sua participaccedilatildeo ilegiacutetima Em outras palavras a justificativa soacute por ser extrinseca natildeo seraacute necessariamente ilegiacutetima

Vale relembrar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 - A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio

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A razatildeo disso reside na afirmaccedilatildeo de que como se sabe desde Kant o Homem deve ser tratado como um fim em si mesmo e natildeo como instrumento De fato eacute em Kant que o Homem ganha status de valor absoluto manifesto no imperativo praacutetico expresso na maacutexima segundo a qual Ages de tal maneira que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio 96

Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

Quando se trata de experimentaccedilatildeo com justificativa intriacutenseca a razatildeo legitimadora pode estar no objetivo de beneficiar os proacuteprios sujeitos da pesquisa algueacutem se submete a uma experimentaccedilatildeo na tentativa de auferir uma vantagem em seu bem-estar fiacutesico ou mental

Jaacute no caso da justificativa extriacutenseca poder-se-ia objetar a realizaccedilatildeo da experimentaccedilatildeo com suposto fundamento na Resoluccedilatildeo 19696 cujo item III 1 letra d vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila Ora se em uma determinada situaccedilatildeo algueacutem participa do experimento sem que haja qualquer possibilidade de benefiacutecio fiacutesico ou mental para si a partir do resultado da pesquisa e considerando que a mesma Resoluccedilatildeo veda qualquer forma de remuneraccedilatildeo do sujeito da pesquisa (item 1110) qual a vantagem significativa que poderaacute essa pessoa auferir para justificar a sua participaccedilatildeo

Ao nosso ver a interpretaccedilatildeo desse ponto da Resoluccedilatildeo natildeo deve ser literal nem assistemaacutetica97 devendo ser considerada a incidecircncia de um outro princiacutepio ainda

Op cit p 69 Em comento a este imperativo Francesca Puigpclat Marti apregoa que La concepcioacuten liberal asocia a esta expresioacuten una idea comuacuten en Ia reflexioacuten eacutetica de raigambre kantiana el hombre es un fin en si mismo un sujeto y no un objeto Seguacuten Kant en el sistema de Ia natureza el hombre (homo phaenomenon animal rationale) es un ser de escasa importancia y tiene con los demaacutes animales en tanto que productos de Ia tierra un precio comuacuten () Ahora bien el hombre considerado como persona es dccir como sujeto de una razoacuten praacutetico-moral estaacute situado por encima de todo precio porque como tal (homo noumenon) no puede valorarse soacutelo como meacutedio para fines ajenos incluso para sus proprios fines sino como fin en siacute mismo es decir posee una dignidad(un valor interno absoluto) gracias a la cual infunde respeto haciacutea eacutel a todos los demaacutes seres racionales dei mundo puede medirse con cualquier otro de esta clase y valorarse en pie de igualdad En la medida en que seguacuten Kant el hombre existe como fin en siacute mismo y no soacutelo como meacutedio para usos cualesquiera de una u otra voluntad se puede formular el siguiente principio praacutetico supremo obra de tal modo que uses la humanidad tanto en tu persona como en la persona de cualquier otro siempre como un fin al mismo tiempo y nunca solamente como un meacutedio MARTIacute Francesca Puigpelat Clonacioacuten dignidad humana y constitucioacuten Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo ano II n 42 janmar p37-64 2003

Natildeo se interpreta o direito em tiras aos pedaccedilos () Um texto de direito isolado destacado desprendido do sistema juriacutedico natildeo expressa significado normativo algum Cf GRAU Eros Roberto Ensaio e

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que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que eacute o da solidariedade Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita entendemos que a sua aplicaccedilatildeo eacute cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele dispositivo (item 1111 letra d da Resoluccedilatildeo 19696) afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria Aleacutem disso outros documentos de importacircncia para a Bioeacutetica fazem referecircncia agrave solidariedade98 De fato natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao respeito agrave dignidade da pessoa humana99

Logo no nosso pensar mesmo que natildeo haja nenhum benefiacutecio ou vantagem direta ao sujeito de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma justificativa eacutetica a qual pode ter como nuacutecleo a intenccedilatildeo solidaacuteria dessa pessoa e do pesquisador de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e consequumlentemente para todos os demais seres humanos

A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica100

Estas exigecircncias no acircmbito normativo brasileiro estatildeo listadas na Resoluccedilatildeo 19696 especialmente no item III3

Algumas delas satildeo puramente objetivas e uma vez desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca E o caso por exemplo da necessidade de consentimento preacutevio e informado

discurso sobre a interpretaccedilatildeoaplicaccedilatildeo do Direito Satildeo Paulo Malheiros Editores 2002 p 34 98

O art 1deg da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos proclama que todas pessoas devem agir em relaccedilatildeo umas agraves outras com espiacuterito de fraternidade Alem disso a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO em um dos seus considerandos observa que os seres humanos tecircm um papel importante na proteccedilatildeo um do outro tratando expressamente da solidariedade e cooperaccedilatildeo no seu art 13 segundo o qual A solidariedade entre os seres humanos e cooperaccedilatildeo internacional para este fim devem ser estimuladas 99 Ela [a solidariedade] eacute o fecho de aboacutebada do sistema de princiacutepios eacuteticos pois complementa e aperfeiccediloa a liberdade a igualdade e a seguranccedila () E um erro considerar que no mundo da natureza sobretudo no mundo animal natildeo exista solidariedade e que ela seja uma criaccedilatildeo poliacutetica Muito pelo contraacuterio pode-se dizer que a biosfera forma naturalmente um sistema solidaacuterio e que o rompimento desse sistema eacute sempre obra do homem O proacuteprio Darwin bem advertiu que a expressatildeo struggle for Existence fora por ele usada em sentido amplo e matafoacuterico incluindo a dependecircncia de um ser em relaccedilatildeo a outro bem como incluindo (o que eacute mais importante) natildeo apenas a vida do indiviacuteduo mas o ecircxito em deixar descendentes Os zooacutelogos jaacute observaram que o processo de seleccedilatildeo natural deu mais vantagens bioloacutegicas aos grupos que cuidavam de seus membros natildeo reprodutivos do que agravequeles que abandonavam ou matavam os anciatildeos pois a capacidade de reproduccedilatildeo global dos grupos altruiacutestas eacute assim singularmente reforccedilada Cf COMPARATO Faacutebio Konder Eacutetica direito moral e religiatildeo no mundo moderno Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 p 577578

100

Natildeo eacute agrave toa portanto que como jaacute visto a Resoluccedilatildeo 19696 vincula a eticidade na pesquisa aos princiacutepios da Bioeacutetica tanto no seu preacircmbulo como no seu item III 1

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dos participantes - ou dos seus representantes se incapazes - 101 cuja ausecircncia macula o princiacutepio da autonomia Tambeacutem eacute objetiva a exigecircncia da pesquisa estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou outros fatos cientiacuteficos102 cuja inobservacircncia implica em ofensa agrave natildeo-maleficecircncia Nessas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou-natildeo vir a ter um benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

Outras exigecircncias entretanto possuem um certo grau de subjetividade em maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as circunstacircncias faacuteticas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo de valor iacutensito a cada um Desse tipo vg eacute a exigecircncia segundo a qual a pesquisa deve ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e ter possibilidades concretas de responder a incertezas103 A avaliaccedilatildeo quanto ao cumprimento ou-natildeo da exigecircncia e portanto quanto agrave legitimidade ou ilegitimidade da utilizaccedilatildeo de seres humanos tem um niacutetido caraacuteter subjetivo podendo variar de pessoa para pessoa

Quando tratamos de exigecircncias subjetivas haacute ainda um outro aspecto a ser apontado deveraacute ser levado em conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca Em outras palavras a circunstacircncia do sujeito de pesquisa poder vir a ser beneficiado ou-natildeo pelo resultado do experimento deve ser considerada na verificaccedilatildeo da legitimidade eacutetica quando da ponderaccedilatildeo sobre o cumprimento das exigecircncias subjetivas

Tomemos como exemplo a exigecircncia de que devem prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis104 Ora essa exigecircncia eacute subjetiva pois envolve uma ponderaccedilatildeo cujo resultado estaacute vinculado a um juiacutezo de valor sobre a natureza e a importacircncia ou peso de cada benefiacutecio ou risco provaacutevel Ao nosso entender quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal no resultado do experimento tratando-se portanto de justificativa extriacutenseca eacute oacutebvio que os riscos a que se submete devem ser considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o benefiacutecio esperado tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa submetida ao experimento

101 Item III3 letra g da Resoluccedilatildeo 19696 102 Item III3 letra b da Resoluccedilatildeo 19696 103 Item III3 letra a da Resoluccedilatildeo 19696 104 Item III3 letra d da Resoluccedilatildeo 19696

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1215

Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila105 Por outro lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

A proacutepria realizaccedilatildeo ou-natildeo da pesquisa pode depender dessa ponderaccedilatildeo jaacute que a Resoluccedilatildeo n 19696 prevecirc que havendo riscos potenciais as pesquisas envolvendo seres humanos poderatildeo ser admitidas quando oferecerem elevada possibilidade de gerar conhecimento para entender prevenir ou aliviar um problema que afete o bem-estar dos sujeitos da pesquisa e de outros indiviacuteduos 106

Aleacutem disso parece ser mais aceitaacutevel eticamente submeter o ser humano a riscos maiores quando a justificativa eacute intriacutenseca do que quando ela eacute extriacutenseca priorizando assim a sua preservaccedilatildeo Nesse sentido a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO estipula que uos interesses e o bem-estar do indiviacuteduo devem ter prioridade sobre o interesse exclusivo da ciecircncia ou da sociedade 107

Natildeo se pode esquecer ainda que por forccedila dos princiacutepios da beneficecircncia da natildeo-maleficecircncia e da justiccedila eacute preciso considerar na mediccedilatildeo da legitimidade as peculiaridades individuais ou coletivas dos sujeitos de pesquisa especialmente no que concerne agraves suas eventuais vulnerabilidades bem como cuidar para que natildeo lhes seja imposto um mal desnecessaacuterio ou desproporcional O princiacutepio da justiccedila como vimos implica necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa os quais sempre que possiacutevel devem ter garantido para si pelo pesquisador a fruiccedilatildeo dos benefiacutecios da experimentaccedilatildeo natildeo sendo equacircnime impor-Ihes ocircnus excessivos108 especialmente se vulneraacuteveis Natildeo eacute agrave toa portanto que pode

105 O princiacutepio da justiccedila implica atenccedilatildeo especial agraves regras de recrutamento de participantes de experimentos Natildeo se pode fazer experimentos apenas com determinados grupos - pacientes de enfermaria asilados prisioneiros - simplesmente porque eles estatildeo agrave disposiccedilatildeo e em situaccedilatildeo de dependecircncia Isso eacute injusto Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 Item Vl aliacutenea a

107 Art 3 aliacutenea b 108 bull

Consideramos que deva ser modificada a praacutetica muito comum em nosso paiacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de pesquisados provenientes das camadas mais desfavorecidas da sociedade ou de outros grupos vulneraacuteveis mas que posteriormente natildeo poderatildeo se beneficiar dos resultantes positivos das pesquisas em que tomaram parte mesmo tendo enfrentado riscos de danos psico-sociais As pesquisas realizadas nesses grupos devem poder lhes trazer benefiacutecios e os pesquisadores sempre que possiacutevel devem garantir retomo dos benefiacutecios resultados das pesquisas para os sujeitos individuais e coletivos que nelas participarem Cf FORTES Paulo Antonio de Carvalho As Pesquisas em Seres Humanos e o Principio Eacutetico da Justiccedila

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1216 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

haver exigecircncias eacuteticas especiacuteficas para pesquisas com serem humanos em situaccedilatildeo de vulnerabilidade109

Assim sempre seraacute preciso dosar a equaccedilatildeo riscobeneficio ponderando em cada caso concreto se os eventuais benefiacutecios satildeo suficientes para motivar a exposiccedilatildeo das pessoas ao processo de experimentaccedilatildeo Pode ser que diante de certas peculiaridades ou vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima110 Aliaacutes como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis justamente porque como jaacute dito o ser humano natildeo pode ser tratado como mero instrumento1

E natildeo eacute soacute Aleacutem disso em princiacutepio a pesquisa com pessoas ou grupos vulneraacuteveis deve ter uma justificativa intriacutenseca2 Entretanto sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas em experimentos extriacutensecos agrave luz da solidariedade como no caso do grupo vulneraacutevel ser imune a determinada moleacutestia por razatildeo ainda desconhecida o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias objetivas agrave risca deve ser ainda mais

Cadernos de Eacutetica em Pesquisa Ano 1 n 2 p 22-23 nov 1998 109

A tiacutetulo de exemplo a Resoluccedilatildeo 19696 traz alguns requisitos especiacuteficos para o consentimento livre e esclarecido de pessoas ou populaccedilotildees vulneraacuteveis no item IV3

110 Um caso de niacutetida violaccedilatildeo aos princiacutepios bioeacuteticos em pesquisas envolvendo grupo vulneraacutevel foi o jaacute mencionado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm Conforme um dos colaboradores da pesquisa utilizar doentes mentais ainda que natildeo voluntaacuterios foi a melhor opccedilatildeo diante do fato de que o principal problema da sauacutede puacuteblica era justamente o das doenccedilas dentaacuterias razatildeo pela qual os fins justificariam os meios ainda mais considerando que o estudo foi utilizado em todo o mundo (Krasse B Sueacutecia usou deficiente mental como cobaia Folha de Satildeo Paulo 23 Set 1997 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas cliacutenicas sobre seus direitos 2005 p 61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo) sendo faacutecil criticar o fato depois de consumado (Krasse B The Vipeholm dental caries study recollections and reflections 50 years later J Dent Res 2001 80(9) 1785-8 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu op cit p 61) Mais uma vez cabiacutevel rememorar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () j) ser desenvolvida preferencialmente em indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida

112 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO eacute clara ao afirmar em seu art 7 aliacutenea b no que diz respeito a indiviacuteduos sem a capacidade para fornecer consentimento que a pesquisa soacute deve ser realizada para o beneficio direto agrave sauacutede do indiviacuteduo envolvido estando sujeita agrave autorizaccedilatildeo e agraves condiccedilotildees de proteccedilatildeo prescritas pela legislaccedilatildeo e caso natildeo haja nenhuma alternativa de pesquisa de eficaacutecia comparaacutevel que possa incluir sujeitos de pesquisa com capacidade para fornecer consentimento

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1217

rigoroso na ponderaccedilatildeo do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da autonomia e justiccedila expondo tais pessoas a riscos miacutenimos menores ateacute do que aqueles normalmente empregados em pesquisas com justificativa intriacutenseca3

Se essas diretrizes natildeo forem observadas teremos uma pesquisa carente de justificativa eacutetica e de legitimidade

6 Conclusotildees

Em virtude dos limites inerentes agrave nossa abordagem nessas consideraccedilotildees finais natildeo apresentaremos verdades irrefutaacuteveis e definitivas sobre um tema que ainda carece de um importante debate acadecircmico e normativo Com efeito o que pretendemos modestamente foi evidenciar alguns paradigmas que possam ensejar a conciliaccedilatildeo da dignidade da pessoa humana com a continuidade dos processos de investigaccedilatildeo cientiacuteficos realizados em seres humanos Para tanto podemos sintetizar nosso pensamento nas seguintes conclusotildees

a) O desenvolvimento da ciecircncia mormente em aacutereas afeitas agrave vida e a ocorrecircncia de pesquisas francamente contraacuterias agrave dignidade humana como ocorrido em vaacuterias passagens da Segunda Guerra ensejaram o surgimento da Bioeacutetica como um novo ramo do conhecimento

b) Deve-se limitar a atuaccedilatildeo da Bioeacutetica aos casos em que haacute conflito de valores quando dois princiacutepios eacutetica e moralmente admissiacuteveis natildeo podem coexistir

c) Haacute iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica Autonomia Beneficecircncia e Justiccedila aleacutem da Natildeo-Maleficecircncia - e as pesquisas em seres humanos

113 Ainda conforme o art 7 aliacutenea b da Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO quando se trata de pessoas incapazes Pesquisas sem potencial beneficio direto agrave sauacutede soacute devem ser realizadas excepcionalmente com a maior restriccedilatildeo expondo o indiviacuteduo apenas a risco e desconforto miacutenimos e quando se espera que a pesquisa contribua com o benefiacutecio agrave sauacutede de outros indiviacuteduos na mesma categoria sendo sujeitas agraves condiccedilotildees prescritas por lei e compatiacuteveis com a proteccedilatildeo dos direitos humanos do indiviacuteduo A recusa de tais indiviacuteduos em participar de pesquisas deve ser respeitada

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1218 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

d) Os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica

pluralista aberta e receptiva e satildeo um poderoso instrumento

para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

razotildees pelas quais eacute descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos

debates bioeacuteticos

e) O avanccedilo tecnoloacutegico traz cada vez mais a diminuiccedilatildeo de

limites teacutecnicos ao ser humano o que conduz ao debate sobre a

necessidade de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees para

evitar eventuais abusos especialmente na aacuterea biomeacutedica

elevando a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que

demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave

vida

0 A concretizaccedilatildeo dos objetivos atuais da humanidade

especialmente em relaccedilatildeo agrave expectativa de vida depende

dentre outros fatores da pesquisa cientiacutefica e da

experimentaccedilatildeo em seres humanos Poreacutem eacute preciso tomar o

Homem como sujeito de pesquisa sem trataacute-lo como mero

instrumento mas como um fim em si mesmo

g) A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do

interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda

Guerra trouxeram agrave tona a questatildeo da eacutetica na pesquisa

evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana e

de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa

em seres humanos gerando uma seacuterie de normas internacionais

e nacionais a exemplo do Coacutedigo de Nuremberg da

Declaraccedilatildeo de Helsinque e no Brasil da Resoluccedilatildeo n 19696

do Conselho Nacional de Sauacutede

h) Dentre os principais aspectos da Resoluccedilatildeo n 19696 do

Conselho Nacional de Sauacutede encontramos a vinculaccedilatildeo da

experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da

principiologia da Bioeacutetica a explicitaccedilatildeo de um rol de

exigecircncias para a eticidade na pesquisa as definiccedilotildees de

diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica como o

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1219

consentimento livre e esclarecido a vulnerabilidade e a

incapacidade a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em

Pesquisa -CONEP e a regulamentaccedilatildeo dos Comitecircs de Eacutetica e

Pesquisa - CEPs

i) O consentimento livre e esclarecido decorre da adoccedilatildeo do

princiacutepio da autonomia e pressupotildee dentre outras premissas a

capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os

aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos

possiacuteveis

j) A vulnerabilidade natildeo pode ser desconsiderada pelo

pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais ocorrendo

quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de

estudo por quaisquer motivos possuem a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto agrave

compreensatildeo sobre o experimento e a possibilidade de

livremente consentir com a pesquisa e dela desistir

k) A incapacidade ocorre quando as pessoas que seratildeo estudadas

na pesquisa natildeo possuem capacidade civil para dar o seu

consentimento soacute podendo ser levada adiante a pesquisa com a

intervenccedilatildeo de seus representantes legais implicando tambeacutem

no dever do pesquisador de cercar-se de cautelas eacuteticas

redobradas

1) As experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas

teleologicamcnte em dois grupos a) aquelas cujos objetivos

possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas

observadas as quais chamamos de pesquisas com justificativa

intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo

direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de

terceiros as quais denominamos pesquisas com justificativa

extrinseca

m) Em todo experimento eacute necessaacuterio averiguar se a justificativa -

seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1220 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima jaacute que a

justificativa soacute pelo fato de ser intriacutenseca natildeo seraacute

necessariamente legiacutetima nem tampouco soacute por ser extriacutenseca

seraacute necessariamente ilegiacutetima

n) Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a

realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser

encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca

como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

o) A interpretaccedilatildeo do item III1 letra d da Resoluccedilatildeo n 19696

que vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens

significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de

infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila natildeo deve ser literal nem

assistemaacutetica devendo ser considerada a incidecircncia de um

outro principio ainda que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que

eacute o da solidariedade

p) Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita ao princiacutepio da

solidariedade na Resoluccedilatildeo n 19696 a sua aplicaccedilatildeo eacute

cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele

texto afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua

relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-

humanitaacuteria

q) Logo mesmo que natildeo haja nenhum beneficio direto ao sujeito

de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma

justificativa a qual pode ser a intenccedilatildeo sua e do pesquisador

de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e

consequumlentemente para todos os demais seres humanos Aleacutem

disso natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica

sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao

respeito agrave dignidade da pessoa humana

r) A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em

seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade

poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1221

diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica listadas na

Resoluccedilatildeo n 19696 especialmente no item III3

s) Algumas exigecircncias satildeo puramente objetivas e uma vez

desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da

justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca

t) Nas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa

ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou natildeo vir a ter um

benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

u) Outras exigecircncias possuem um certo grau de subjetividade em

maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da

pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo

exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as

circunstacircncias faacutetiacutecas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo

de valor iacutensito a cada um

v) Quando se tratar de exigecircncias subjetivas deveraacute ser levado em

conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma

justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca

w) Quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou

sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal

no resultado do experimento tratando-se portanto de

justificativa extriacutenseca os riscos a que se submete devem ser

considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a

justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o beneficio esperado

tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa

submetida ao experimento

x) Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do

sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero

instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila e por outro

lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute

menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa

consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1222 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a

algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

y) Pode ser que diante de certas peculiaridades ou

vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo

considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa

em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua

realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo

eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima

z) Como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras

pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis

mas sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas agrave luz da

solidariedade o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias

objetivas agrave risca deve ser ainda mais rigoroso na ponderaccedilatildeo

do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave

observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da

autonomia e justiccedila

Satildeo Paulo novembro de 2006

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um falso dilema jaacute que princiacutepios natildeo devem ser aplicados como regras e portanto natildeo representam uma camisa-de-forccedila para a Bioeacutetica Embora os objetivos deste trabalho natildeo nos permitam aprofundar a discussatildeo em torno da sua origem e aplicabilidade celeuma muito comum na ciecircncia juriacutedica natildeo seraacute despiciendo relembrar ao menos que haacute uma distinccedilatildeo juriacutedica entre princiacutepios e regras e que enquanto estas uacuteltimas satildeo aplicadas a partir da oacutetica do ali or nothing excluindo-se mutuamente os primeiros convivem entre si natildeo se excluem e representam motivos para decidir em determinado sentido

Portanto podemos afirmar que os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica pluralista aberta e receptiva Aleacutem disso pragmaticamente a aplicaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo dos princiacutepios em cada caso concreto eacute poderoso instrumento para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

Por tudo isso parece descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos debates bioeacuteticos Tanto assim eacute que a tendecircncia moderna eacute no sentido do reconhecimento de princiacutepios universais da Bioeacutetica Importante anotar por exemplo que o uacuteltimo documento internacional acerca do tema a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO datada de 2005 eacute fortemente principioloacutegica e dentre outros aspectos deliberou ser necessaacuterio e oportuno que a comunidade internacional declare princiacutepios universais que proporcionaratildeo uma base para a resposta da humanidade aos sempre crescentes dilemas e controveacutersias que a ciecircncia e a tecnologia apresentam agrave raccedila humana e ao meio ambiente

Deve-se lembrar finalmente que a abordagem dos princiacutepios da Bioeacutetica em separado tem uma justificativa puramente didaacutetica jaacute que eles natildeo podem ser cindidos na sua conceituaccedilatildeo e muito menos na sua aplicaccedilatildeo praacutetica34

4 Experimentaccedilatildeo em seres humanos aspectos da normatizaccedilatildeo nacional e internacional

Sobre princiacutepios a literatura juriacutedica eacute vasta Vide vg ALEXY Robert Teoria de tos Derechos Fundamentales Madrid Centro de Estuacutedios Constitucionales 1997 p 81-172 DWORKFN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1997 AacuteVILA Humberto Teoria dos Princiacutepios da definiccedilatildeo agrave aplicaccedilatildeo dos princiacutepios juriacutedicos 2 ed Satildeo Paulo Malheiros Editores 2003 ROTHEMBURG Waller Claudius Princiacutepios Constitucionais Porto Alegre Seacutergio Antonio Fabris 1999

4 Nesse sentido GUIMARAtildeES Maria Carolina S Eacutetica biomeacutedica e pesquisa em grupos humanos Revista Meacutedica de Minas Gerais v 3 n 1 p 52-53 janmar 1993 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO destina o seu art 26 agrave inter-relaccedilatildeo e complementaridade dos princiacutepios dispondo que A presente Declaraccedilatildeo deve ser considerada em sua totalidade e seus princiacutepios devem ser compreendidos como complementares e inter-relacionados Cada princiacutepio deve ser interpretado no contexto dos demais de forma pertinente e adequada a cada circunstacircncia

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No seacuteculo XVI Galileu passou a buscar a verdade atraveacutes da experimentaccedilatildeo e da observaccedilatildeo das coisas desvinculando-se da verdade dos escolaacutesticos ou da Igreja Esse eacute considerado o marco de referecircncia das origens da ciecircncia experimental a qual terminou por proporcionar a Revoluccedilatildeo Cientiacutefica nos seacuteculos seguintes35 Esta uacuteltima abriu as portas para uma nova era na humanidade multiplicando o conhecimento e as descobertas gerando tecnologia A tecnologia passou a imprimir uma velocidade cada vez maior nas transformaccedilotildees cientiacuteficas e sociais A velocidade com que as mudanccedilas ocorrem por sua vez municia o Homem com novas perspectivas e instrumentos sempre mais apurados de investigaccedilatildeo o que implica em mais tecnologia36 Investigaccedilatildeo pesquisa conhecimento mudanccedilas tecnologia velocidade formam uma espeacutecie de ciacuterculo virtuoso - natildeo-vicioso31 e satildeo palavras indissociaacuteveis da realidade nos uacuteltimos tempos a partir do seacuteculo XX no qual testemunhamos pelo menos duas espantosas revoluccedilotildees a atocircmica e a molecular38

Todo esse acervo mudou por completo as sociedades e o pensamento humano e natildeo se trata de um processo jaacute findo Pelo contraacuterio muito ainda estaacute por vir Natildeo se sabe aliaacutes se o Homem encontraraacute fronteiras tecnologicamente intransponiacuteveis Essa perspectiva de escassez de barreiras teacutecnicas conduz ao debate sobre a necessidade

35 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 edbdquo rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179

36 Por exemplo vale lembrar o ocorrido durante o desenrolar dos estudos do projeto genoma humano Segundo Jordan (1993) o verdadeiro objetivo inicial do PGH natildeo era o sequumlenciamento muito complexo caro e trabalhoso mas um mapeamento detalhado do genoma humano No decorrer do processo os progressos tecnoloacutegicos foram tatildeo grandes que propiciaram o sequumlenciamento mesmo antes do prazo previsto Cf GOLDIM Joseacute Roberto MATTE Uacutersulla Projeto Genoma Humano - HUGO Disponiacutevel em lthttpwwwufrgsbrbioeticagenomahtmgt Acessado em 28 maio de 2006

37 Natildeo se desconhece entretanto que o ser humano eacute capaz visando objetivos condenaacuteveis natildeo apenas de bloquear pesquisas mas tambeacutem de manipulaacute-las ou de realizaacute-las de forma direcionada propositadamente sem a observacircncia de criteacuterios cientiacuteficos Todavia antes de examinar a transmissatildeo de conhecimentos eacute necessaacuterio acenar para a sua fonte primaacuteria a pesquisa cientiacutefica Tambeacutem aiacute natildeo faltam aacutereas de conflito Foram sobretudo analisadas as frequumlentes ameaccedilas ao conhecimento e agrave informaccedilatildeo cientiacutefica provenientes de decisotildees poliacuteticas ou da proteccedilatildeo de interesses particulares Dentre as decisotildees poliacuteticas a diretora do Instituto Nacional da Seguranccedila e da Sauacutede Ocupacional (NIOSH) dos EUA Linda Rosenstock recordou aquelas assumidas pelo Congresso nos uacuteltimos anos dentro de um quadro de reduccedilatildeo de muitos programas para a proteccedilatildeo aos trabalhadores com a finalidade de bloquear a utilizaccedilatildeo de pesquisas no campo das artropatias do trabalho e de estudos sobre a relaccedilatildeo entre a motorizaccedilatildeo e os tumores e tambeacutem encobrir o fato de duas organizaccedilotildees internacionais designadas para a proteccedilatildeo agrave sauacutede a Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e a Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho estatildeo sob a acusaccedilatildeo de ter manipulado os relatoacuterios teacutecnicos relativos agrave induacutestria do asbesto Dentre os interesses particulares prcvalcccm aqueles das induacutestrias que encomendam pesquisas com a finalidade de demonstrar a inexistecircncia de efeitos nocivos (o exemplo mais macroscoacutepico concerne ao tabaco) ou entatildeo aumentar as incertezas para evitar fazer o que eacute necessaacuterio com base em conhecimentos jaacute comprovados ou mesmo sugerir procedimentos que alongam indefinidamente os periacuteodos de intervenccedilatildeo Cf BERLINGUER Giovanni Bioeacutetica Cotidiana Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2004 p 147-148

38 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia op cit p 159-179

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de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees tendo em conta que a teoria de haacute muito jaacute advertiu1 e a experiecircncia jaacute nos ensinou como adiante se veraacute que a ausecircncia de limites pode levar ao abuso

Embora isso possa ocorrer em vaacuterios campos como vg a economia e a poliacutetica sem duacutevida a aacuterea biomeacutedica eacute uma das que mais merecem nossa atenccedilatildeo natildeo soacute porque estaacute entre as mais influenciadas por essas transformaccedilotildees mas tambeacutem porque eacute uma das que mais tem potencial de desenvolvimento aleacutem do fato oacutebvio de estar diretamente ligada agrave vida humana Exatamente por isso cresce a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave vida especialmente a Medicina40

O acreacutescimo jaacute obtido na expectativa de vida do Homem que praticamente dobrou nos uacuteltimos dois seacuteculos decorrente de vaacuterios fatores dentre os quais uma verdadeira revoluccedilatildeo terapecircutica41 natildeo eacute suficiente As pessoas querem viver ainda mais e com melhor qualidade Por isso cobram mais avanccedilos tecnoloacutegicos nessa aacuterea despertando interesses diversos que vatildeo dos humanitaacuterios aos puramente comerciais e econocircmicos Chega-se a se falar ateacute mesmo em um direito agrave pesquisa que deve figurar entre as liberdades fundamentais unanimemente reconhecidas42

Para que esses desejos se tornem viaacuteveis eacute preciso conhecer cada vez mais profundamente a complexa maacutequina que eacute o corpo humano desenvolver novos faacutermacos medicamentos vacinas e terapias para combater doenccedilas descobrir a fonte da juventude atraveacutes de meacutetodos de desaceleraccedilatildeo - ou quiccedilaacute interrupccedilatildeo - da degeneraccedilatildeo celular dentre outras possibilidades e desafios

Por exemplo eacute conhecida nos meios juriacutedicos a passagem que adverte () mas trata-se de uma experiecircncia eterna que todo homem que possui poder eacute levado a dele abusar ele vai ateacute onde encontra limites Quem diria Ateacute a virtude precisa de limites MONTESQUIEU Charles de Secondat op cit p 170

40 Natildeo eacute agrave toa portanto que em interessante estudo sobre as exigecircncias referentes aos aspectos eacuteticos da pesquisa em revistas cientiacuteficas brasileiras se chegou agrave conclusatildeo de que As revistas de medicina e enfermagem apresentaram maior preocupaccedilatildeo com as orientaccedilotildees eacuteticas do que as revistas natildeo-meacutedicas classificadas nos grupos de miscelecircncia e odontologia sugerindo que o debate eacutetico da experimentaccedilatildeo em seres humanos estaacute mais difundido nas aacutereas meacutedica e de enfermagem do que em outras aacutereas da sauacutede Tal no entanto natildeo representa necessariamente um dado a ser festejado pois o resultado global comprovou que 791 das revistas cientiacuteficas estudadas natildeo fazem qualquer referecircncia aos aspectos eacuteticos Cf T SARDENBERG S S MUumlLLER H R PEREIRA R A DE OLIVEIRA W S HOSSNE Anaacutelise dos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos contidos nas Instruccedilotildees aos Autores de 139 rev istas cientiacuteficas brasileiras Revista da Associaccedilatildeo Meacutedica do Brasil v 45 n 4 p 295-302 1999

41 Sobre a chamada revoluccedilatildeo terapecircutica vide dentre outros BERNARD Jean La Bioeacutethique Paris Dominos Flammarion 1994 p 14-33

42 Conforme LAFON Claudc De la Biologie agrave Ia Bioeacutethique Paris Ellipses 2006 p 30

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A concretizaccedilatildeo desses objetivos depende de inuacutemeros fatores ligados agrave pesquisa cientiacutefica43 dentre os quais um que eacute o ponto central deste trabalho a experimentaccedilatildeo em seres humanos De fato o progresso do nosso conhecimento no passado e no futuro estaacute intimamente ligado agrave necessidade de observaccedilatildeo do funcionamento e da reaccedilatildeo do corpo e da mente humanas44

Em outras palavras eacute preciso tomar o ser humano como sujeito de pesquisa45

Esse fato bom que se diga natildeo eacute exatamente novo tem ocorrido no correr dos tempos suscitando questotildees eacuteticas de suma relevacircncia pois nem sempre as pessoas estudadas tiveram o trato adequado

A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda Guerra mormente as realizadas pelos japoneses e nazistas alematildees tais como a infestaccedilatildeo de prisioneiros com doenccedilas para testar vacinas e a esterilizaccedilatildeo e amputaccedilatildeo de membros46 trouxeram agrave tona a questatildeo da

43 A discussatildeo a respeito das pesquisas natildeo pode se limitar agravequelas de natureza meacutedica e farmacoloacutegica onde os impactos e riscos satildeo maiores e mais perceptiacuteveis E ampla a definiccedilatildeo de pesquisas em seres humanos adotada pela Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede conforme adiante se veraacute Leonard M Martin C Ss R preleciona O documento pretende regulamentar toda pesquisa em seres humanos e natildeo apenas pesquisas puramente biomeacutedicas Nesta perspectiva pesquisas socioloacutegicas e antropoloacutegicas tambeacutem devem passar pelo crivo de Comitecircs de Eacutetica independentes e ser alvo de discussatildeo sobre sua eticidade MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

44 O efeito de um tratamento sobre o homem soacute pode ser observado no proacuteprio homem Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

45 Esse fenocircmeno ocorre em todas as aacutereas do conhecimento e natildeo apenas nas ciecircncias biomeacutedicas Na realidade quando se fala em experimentaccedilatildeo com seres humanos pensa-se quase que exclusivamente na experimentaccedilatildeo no campo da Medicina Essa vinculaccedilatildeo eacute compreensiacutevel pois a experimentaccedilatildeo na aacuterea meacutedica eacute mais visiacutevel e de efeitos mais patentes em geral Contudo eacute bom assinalar que seres humanos satildeo utilizados em experimentaccedilatildeo por profissionais e cientistas de outras aacutereas odontoacutelogos nutricionistas farmacecircuticos fisioterapeutas psicoacutelogos profissionais da aacuterea de educaccedilatildeo fiacutesica e de esporte educadores e tambeacutem economistas Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179 Leonard M Martin C Ss R com base em McNeill e Jonsen destaca que [] as experiecircncias antieacuteticas dos nazistas incluiacuteram colocar prisioneiros em cacircmaras de pressatildeo modificar a pressatildeo atmosfeacuterica e observar suas mortes estudar o impacto sobre o corpo humano de imersatildeo em aacutegua gelada por periacuteodos prolongados infectar os internos com tifo malaacuteria e outras doenccedilas para testar drogas e vacinas esterilizaccedilatildeo e castraccedilatildeo procurando meacutetodos eficazes para esterilizaccedilatildeo em massa administrar venenos para estudar os efeitos letais e estudos com gecircmeos tipo infectando um matando os dois e comparando os corpos em autoacutepsia No atinente a experiecircncias japonesas MARTIN informa que no ala de desenvolver armas bioloacutegicas [] os japoneses atacaram pelo menos onze cidades com armas bioloacutegicas e infestaram uma cidade com pulgas portadores da peste bubocircnica A Unidade 731 tambeacutem era uma prisatildeo onde os prisioneiros foram submetidos a experiecircncias desumanas Houve cirurgia experimentais pessoas foram desidratadas ateacute a morrer alguns tiveram braccedilos congelados e depois degelados usando vaacuterios meacutetodos com a consequumlecircncia de que a carne apodreceu e caiu o fiacutegado de outras pessoas foi exposto por longos

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eacutetica na pesquisa evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana47 e de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa em seres humanos48

Como resposta agraves atrocidades praticadas na Segunda Guerra foi instituiacutedo em 1947 no acircmbito internacional pelo Tribunal de Nuremberg que julgou vinte e trecircs criminosos de guerra nazistas dos quais vinte meacutedicos ligados agrave experimentaccedilatildeo em pessoas49 o denominado Coacutedigo de Nuremberg o qual estabeleceu as diretrizes gerais para pesquisa em seres humanos A doutrina destaca como principais conquistas do coacutedigo o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa em retirar-se do experimento e de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias deste bem como a necessidade de estudos preacutevios sobre a importacircncia da pesquisa e os seus riscos aleacutem da comprovaccedilatildeo da capacidade dos pesquisadores50

Um ano depois a humanidade assiste agrave proclamaccedilatildeo agora pela Assembleacuteia Geral das Naccedilotildees Unidas de um outro documento de suma importacircncia a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos que embora de caraacuteter geral alberga

periacuteodos ao raio-X houve casos do sangue da pessoa ser substituiacutedo por sangue de cavalo e quando as cobaias humanas natildeo serviam mais para as experiecircncias foram executadas O autor ainda ressalta que diferentemente dos alematildees que foram condenados alguns inclusive enforcados os americanos resolveram poupar os japoneses permitindo que continuassem suas carreiras MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

4 Haacute quem afirme - sem razatildeo ao nosso ver - que a dignidade eacute um conceito inuacutetil um mero slogan e que natildeo significaria mais do que o respeito pelas pessoas e por sua autonomia Nesse sentido vide vg MACKLIN Ruth Dignity is a useless concept Brilish Medica Journal v 327 p 20-27 dez 2003 Disponiacutevel em lthttpbmjbmjjournalscomcgicontentfull3277429l419gt Aacessado em 27 maio de 2006 Em sentido inverso sobre as relaccedilotildees entre a Bioeacutetica e a dignidade vide dentre outros ADORNO Roberto La bioegravetique et la dignitegrave de Ia persone Paris Presses Universitaires de France 1997 Os documentos internacionais mencionam o elo entre Bioeacutetica e dignidade A jaacute mencionada Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten por exemplo afirma textualmente que A pesquisa e experiecircncia com seres humanos devem ser realizadas harmonizando a liberdade da ciecircncia e o respeito da dignidade humana

48 A experimentaccedilatildeo em seres humanos causa impacto porque as pessoas temem o abuso Os abusos jaacute ocorreram estatildeo ocorrendo c ainda ocorreratildeo mas proibir o uso natildeo eacute a melhor maneira de impedir o abuso Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

49 Estima-se que centenas de meacutedicos atuaram nos campos de concentraccedilatildeo dos quais pelo menos setenta teriam participado de experimentos com seres humanos A maioria dos meacutedicos de maior expressatildeo conseguiram escapar do julgamento como foi o caso de Josef Mengele principal meacutedico do campo de extermiacutenio de Auschwitz que fugiu e chegou a viver 14 anos no Brasil onde morreu afogado em Bertioga em 1979 O julgamento levou oito meses As sentenccedilas e o Coacutedigo de Nuremberg foram anunciados conjuntamente em 19 de agosto de 1947 Sete acusados foram condenados agrave morte Cf CREMESP Diretrizes e Declaraccedilotildees Disponiacutevel em lthttpvwvbiocticaorgbrlegislacaooutras_diretrizesintegraphpgt Acessado em 30 maio 2006 Discute-se hoje a validade cientiacutefica dos experimentos realizados bem como se eacute eacutetico utilizar os resultados obtidos Nesse sentido vide mateacuteria intitulada Doutores da agonia publicada na revista Superinteressante ed 225 abr2006 p 52-61

50 Cf FREITAS Corina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 195

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1201

direitos que natildeo podem ser olvidados quando da experimentaccedilatildeo com seres humanos a exemplo da dignidade da igualdade e da liberdade Aleacutem disso haacute diversas ligaccedilotildees entre a Declaraccedilatildeo e os princiacutepios da Bioeacutetica51

Assim como a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos o Coacutedigo de Nuremberg proclama criteacuterios princiacutepios miacutenimos e irredutiacuteveis para eticidade da pesquisa em seres humanos Ambas as declaraccedilotildees embora de grande importacircncia para a Bioeacutetica satildeo normalmente entendidas como desprovidas de instrumentos adequados de obrigatoriedade52 e de mecanismos sancionatoacuterios de modo que sua infraccedilatildeo na maioria dos casos tem gerado apenas sanccedilotildees morais

Natildeo-obstante o estabelecido no Coacutedigo de Nuremberg - e na Declaraccedilatildeo Universal - as violaccedilotildees continuaram a ocorrer inclusive nos paiacuteses signataacuterios De fato por exemplo nos Estados Unidos teve continuidade como se nada houvesse acontecido a famosa pesquisa sobre siacutefilis em Tuskegee no condado de Macon Alabama financiada com recursos federais onde especialmente negros e pobres acreditavam que estavam se submetendo a um tratamento especial gratuito quando na verdade nada recebiam embora jaacute houvesse medicamentos disponiacuteveis servindo como verdadeiras cobaias entre 1932 e 1973 para que os pesquisadores pudessem acompanhar o desenvolvimento da doenccedila1 Ainda exemplificativamente foi iniciado em 1946 o chamado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm um dos mais famosos e importantes estudos de odontologia jaacute realizados no qual mais de 436 deficientes mentais crocircnicos internos da cidade de Lund no sul da Sueacutecia que natildeo tinham sequer a menor consciecircncia do que ocorria foram submetidos ateacute 1951 a uma dieta especial rica em accediluacutecar para provar que esta substacircncia provocava caacuteries sem que lhes fosse dado qualquer tratamento54

Por exemplo ao afirmar no seu art 1deg que todas pessoas satildeo dotadas de razatildeo e consciecircncia o documento da ONU reforccedila a ideacuteia de autonomia

52 Em relaccedilatildeo agrave Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Faacutebio Konder Comparato afirma que embora seja tecnicamente apenas uma recomendaccedilatildeo da ONU a seus membros os direitos ali definidos correspondem integralmente ao que o costume e os princiacutepios juriacutedicos internacionais reconhecem hoje como normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens) como a proacutepria Corte Internacional de Justiccedila tem entendido COMPARATO Faacutebio Konder A afirmaccedilatildeo histoacuterica dos Direitos Humanos 4 ed rev e atual Satildeo Paulo Saraiva 2005 p 223-224

53 Vide vg a respeito REVERBY S M More than Fact and Fiction Cultural Memory and the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 31 p 22-28 2001 BRANDT A M Racism and Research The Case of the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 8 p 21-29 1978 BEECHER H K Ethics and Clinicai Research New England Journal of Medicine n 274 p 1354-1360 1966

54 Cf SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas clinicas sobre seus direitos 2005 p 55-61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

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Os avanccedilos tecnoloacutegicos cada vez mais raacutepidos reverberaram nas questotildees eacuteticas forccedilando novas e perioacutedicas revisotildees Necessaacuterio se fez portanto a rediscussatildeo do tema e o aprimoramento do sistema normativo Assim sobreveio a Declaraccedilatildeo de Helsinque elaborada pela Associaccedilatildeo Meacutedica Mundial em 1964 texto que foi revisto e ampliado em 1975 (Toacutequio)55 1983 (Veneza) 1989 (Hong Kong) 1996 (Somerset) e 2000 (Edimburgo) com o que foram incorporadas vaacuterias inovaccedilotildees Por exemplo a disposiccedilatildeo no sentido de que No final do estudo todos os pacientes participantes devem ter assegurado o acesso aos melhores meacutetodos comprovados profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos identificados pelo estudo E no atinente ao uso de placebo que Os benefiacutecios riscos dificuldades e efetividade de um novo meacutetodo devem ser testados comparando-os com os melhores meacutetodos profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos atuais Isto natildeo exclui o uso de placebo ou nenhum tratamento em estudo onde existam meacutetodos provados de profiacutelaxia diagnoacutestico e tratamento 56 Foi tambeacutem reforccedilada a recomendaccedilatildeo do Coacutedigo de Nuremberg sobre a necessidade de submissatildeo do protocolo de pesquisa agrave anaacutelise por um Comitecirc de Eacutetica independente do pesquisador

Outros textos e documentos que tratam da pesquisa merecem referecircncia como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos de 196657 o intitulado Diretrizes Internacionais para a pesquisa biomeacutedica em seres humanos elaborado conjuntamente pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e pelo Council for International Organizations of Medicai Sciences (1993) a Declaraccedilatildeo de Manila (1981) a Declaraccedilatildeo de Princiacutepios Eacuteticos dos Meacutedicos do Mercosul (1996) a Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten (2000) e a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da Unesco (2005)

Em que pese o entendimento de que haacute carecircncia de instrumentos imperativos que garantam a exigibilidade dos referidos documentos sem duacutevida eles

A respeito Leo Pessini e Christian de Paul Barehifontaine ensinam que Tal modificaccedilatildeo fieou conhecida como Helsinque II Entre outros pontos importantes foram incluiacutedos nesta revisatildeo os seguintes aspectos I) Exigecircncia de que o protocolo experimental seja aprovado por uma comissatildeo independente para efeito de apreciaccedilatildeo comentaacuterios e orientaccedilatildeo (item I 2) 2) Que os seres humanos natildeo sejam utilizados em pesquisas a menos que o consentimento consciente do paciente dado livremente tenha sido obtido depois do mesmo ter sido adequadamente informado sobre os objetivos meacutetodos benefiacutecios esperados riscos potenciais e inconvenientes da experimentaccedilatildeo e que ele tenha liberdade de se abster e de cancelar sua participaccedilatildeo a qualquer momento (art I 9) 3) Que o protocolo contenha embasamento eacutetico da pesquisa e a referecircncia de que foram obedecidos os princiacutepios da Declaraccedilatildeo de Helsinque (item I 12) 4) Que os interesses da ciecircncia e da sociedade jamais tenham precedecircncia sobre o bem-estar do indiviacuteduo (item III 4) PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Problemas aluais de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1994 p 131

56 GRECO Dirceu B Poder e injusticcedila na pesquisa envolvendo seres humanos In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 264

57 De acordo com o seu art 7o Ningueacutem poderaacute ser submetido a tortura nem a penas ou tratamentos crueacuteis desumanos ou degradantes Seraacute proibido sobretudo submeter uma pessoa sem seu livre consentimento a experiecircncias meacutedicas ou cientiacuteficas

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contribuiacuteram e contribuem significativamente na proteccedilatildeo ao ser humano objeto de pesquisa pois influenciaram a elaboraccedilatildeo de diretrizes vinculantes no plano individual de cada Estado a exemplo do Brasil como a seguir veremos Por outro lado importante anotar que uma harmonia consensual e global no atinente agrave pesquisa parece impossiacutevel tendo em conta que a cultura os objetivos e as condiccedilotildees cientiacuteficas dos diversos paiacuteses satildeo naturalmente diversificados58 Aliaacutes haacute quem chegue a afirmar que o pluralismo eacutetico em vigor nos dias de hoje natildeo nos permite mais falar em moral universal59

No Brasil a normatizaccedilatildeo se daacute principalmente atraveacutes de resoluccedilotildees do Conselho Federal de Medicina60 e do Conselho Nacional de Sauacutede Aliaacutes a primeira resoluccedilatildeo deste uacuteltimo oacutergatildeo - Resoluccedilatildeo n 01 de 13 de junho de 1988 - tratou justamente de normas de pesquisa em sauacutede tendo dedicado o seu Capiacutetulo II arts 4o a 16 aos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos Esse diploma legal foi posteriormente revogado pela Resoluccedilatildeo n 196 de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Sauacutede que eacute atualmente a base regulamentar da pesquisa no Brasil tratando das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos Esta Resoluccedilatildeo eacute na verdade uma revisatildeo da anterior tendo sido precedida de diaacutelogo entre governo e sociedade civil61

A Resoluccedilatildeo atual afirma jaacute em seu preacircmbulo a sua fundamentaccedilatildeo nos principais documentos internacionais que emanaram declaraccedilotildees e diretrizes sobre

58 Nesse contexto por tanto deve ser considerada a questatildeo do multicuturalismo Como bem ensinam Joseacute A Mainetti Joseacute L Mainettil Existen dificultades en la aplicacioacuten de los principos elaborados por los paiacuteses centrales y es una evidencia por ejemplo que resulta inapropiada la visioacuten estrccha de la autonomia y la aplicacioacuten riacutegida dei requisito dei consentimento informado al modo norteamericano en determinadas circunstancias y comunidades Es preciso entoces reconocer Ias diferenccedilas culturales y en base a eacutestas aplicar los princiacutepios sin renunciar a cllos en formas maacutes adecuadas al ethos particular MAINETTI Joseacute A MAINETTI Joseacute L Bioeacutetica y la experimentacioacuten humana In SOROKIN Patriacutecia (Coord) Bioeacutelica entre utopias y desarraigos Buenos Aires Ad-Hoc Villela 2002 p 190

59 Cf ENGELHARDT JUacuteNIOR Tristam apuei BAUZON Steacutephane La personne biojuridique Paris Press Universitaires de France 2006 p 63

60 Vide como exemplo a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro o qual no seu Capiacutetulo XII trata especificamente da pesquisa meacutedica

61 Cf FREITAS Corina Bontempo Duca de Eacutetica na pesquisa com seres humanos A experiecircncia brasileira In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutelica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 307

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pesquisas que envolvem seres humanos62 e que visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito agrave comunidade cientiacutefica aos sujeitos da pesquisa e ao Estado

Aleacutem disso vinculou a experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da principiologia da Bioeacutetica seja no preacircmbulo onde afirma que incorpora sob a oacutetica do indiviacuteduo e das coletividades os quatro referenciais baacutesicos da Bioeacutetica autonomia natildeo-maleficecircncia beneficecircncia e justiccedila entre outros seja no seu item III 1 que versa sobre a eticidade na pesquisa63

Entre as suas disposiccedilotildees encontramos definiccedilotildees de diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica pesquisa64 pesquisa envolvendo seres humanos65

protocolo de pesquisa66 pesquisador responsaacutevel67 instituiccedilatildeo de pesquisa68 promotor69

patrocinador70 risco da pesquisa71 dano associado ou decorrente da pesquisa72 sujeito da

62 Cila a Resoluccedilatildeo os seguintes documentos o Coacutedigo de Nuremberg (1947) a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem (1948) a Declaraccedilatildeo de Helsinque (1964 e suas versotildees posteriores de 1975 1983 e 1989) o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Poliacuteticos (ONU 1966 aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1992) as Propostas de Diretrizes Eacuteticas Internacionais para Pesquisas Biomeacutedicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMSOMS 1982 e 1993) e as Diretrizes Internacionais para Revisatildeo Eacutetica de Estudos Epidemioloacutegicos (C10MS 1991) III1 - A eticidade da pesquisa implica em a) consentimento livre e esclarecido dos indiviacuteduos-alvo e a proteccedilatildeo a grupos vulneraacuteveis e aos legalmente incapazes (autonomia) Neste sentido a pesquisa envolvendo seres humanos deveraacute sempre trataacute-los em sua dignidade respeitaacute-los em sua autonomia e defendecirc-los em sua vulnerabilidade b) ponderaccedilatildeo entre riscos e benefiacutecios tanto atuais como potenciais individuais ou coletivos (beneficecircncia) comprometendo-se com o maacuteximo de benefiacutecios e o miacutenimo de danos e riscos c) garantia de que danos previsiacuteveis seratildeo evitados (natildeo maleficecircncia)- d) relevacircncia social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimizaccedilatildeo do ocircnus para os sujeitos vulneraacuteveis o que garante a igual consideraccedilatildeo dos interesses envolvidos natildeo perdendo o sentido de sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria (justiccedila e equumlidade) (negritos originais)

64 111 Pesquisa classe de atividades cujo objetivo eacute desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizaacutevel O conhecimento generalizaacutevel consiste em teorias relaccedilotildees ou princiacutepios ou no acuacutemulo de informaccedilotildees sobre as quais estatildeo baseados que possam ser corroborados por meacutetodos cientiacuteficos aceitos de observaccedilatildeo e infercncia

65 112 Pesquisa envolvendo seres humanos pesquisa que individual ou coletivamente envolva o ser humano de forma direta ou indireta em sua totalidade ou partes dele incluindo o manejo de informaccedilotildees ou materiais

66 II3 Protocolo de Pesquisa Documento contemplando a descriccedilatildeo da pesquisa em seus aspectos fundamentais informaccedilotildees relativas ao sujeito da pesquisa agrave qualificaccedilatildeo dos pesquisadores e a todas as instacircncias responsaacuteveis

67 II-4 Pesquisador responsaacutevel pessoa responsaacutevel pela coordenaccedilatildeo e realizaccedilatildeo da pesquisa e pela integridade e bem-estar dos sujeitos da pesquisa

68 II5 - Instituiccedilatildeo de pesquisa - organizaccedilatildeo puacuteblica ou privada legitimamente constituiacuteda e habilitada na qual satildeo realizadas investigaccedilotildees cientiacuteficas

69 116 - Promotor - indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo responsaacutevel pela promoccedilatildeo da pesquisa 70 II7 - Patrocinador - pessoa fiacutesica ou juriacutedica que apoia financeiramente a pesquisa 71 II8 Risco da pesquisa - possibilidade de danos agrave dimensatildeo fiacutesica psiacutequica moral intelectual social

cultural ou espiritual do ser humano em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente II9 Dano associado ou decorrente da pesquisa agravo imediato ou tardio ao indiviacuteduo ou agrave coletividade com nexo causai comprovado direto ou indireto decorrente do estudo cientiacutefico

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pesquisa73 consentimento livre e esclarecido74 indenizaccedilatildeo75 ressarcimento6 Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (CEP)77 vulnerabilidade78 e incapacidade79

A Resoluccedilatildeo regulamentou os Comitecircs de Eacutetica e Pesquisa - CEPs80 em cujas funccedilotildees81 destaca-se a apreciaccedilatildeo do protocolo da pesquisa em todas as suas especificidades o que foi um grande passo no sentido da construccedilatildeo de padrotildees eacuteticos82

Haacute requisitos para a instituiccedilatildeo dos Comitecircs principalmente no atinente agrave sua composiccedilatildeo83

1110 Sujeito da pesquisa eacute o(a) participante pesquisado(a) individual ou coletivamente de caraacuteter voluntaacuterio vedada qualquer forma de remuneraccedilatildeo IIII Consentimento livre e esclarecido anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal livre de viacutecios (simulaccedilatildeo fraude ou erro) dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar formulada em um termo de consentimento autorizando sua participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa 1112 - Indenizaccedilatildeo - cobertura material em reparaccedilatildeo a dano imediato ou tardio causado pela pesquisa ao ser humano a ela submetida 1113 Ressarcimento - cobertura em compensaccedilatildeo exclusiva de despesas decorrentes da participaccedilatildeo do sujeito na pesquisa 1114 - Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa-CEP - colegiados interdisciplinares e independentes com munus puacuteblico de caraacuteter consultivo deliberativo e educativo criados para defender os interesses dos sujeitos da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrotildees eacuteticos 1115 Vulnerabilidade refere-se a estado de pessoas ou grupos que por quaisquer razotildees ou motivos tenham a sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido 1116 - Incapacidade - Refere-se ao possiacutevel sujeito da pesquisa que natildeo tenha capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido devendo ser assistido ou representado de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira vigente O CEP pode ser entendido como um oacutergatildeo controlador da pesquisa por um lado mas por outro eacute tambeacutem um oacutergatildeo que ajuda a harmonizar diversos interesses que como vimos podem ser os mais diversos e agraves vezes ateacute conflitantes Cf PALAacuteCIOS Marisa Eacutetica na pesquisa - 1 Eacutetica em pesquisa em seres humanos In PALAacuteCIOS Marisa MARTINS Andreacute PEGORARO Olinto A (Orgs) Eacutetica ciecircncia e sauacutede humana Petroacutepolis Vozes 2001 p 74 Satildeo atribuiccedilotildees conferidas pela Resoluccedilatildeo aos CEPs a) revisar todos os protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos b) emitir parecer consubstanciado por escrito c) manter a guarda confidencial de todos os dados obtidos na execuccedilatildeo de sua tarefa e arquivamento do protocolo completo que ficaraacute agrave disposiccedilatildeo das autoridades sanitaacuterias d) acompanhar o desenvolvimento dos projetos atraveacutes de relatoacuterios anuais dos pesquisadores e) desempenhar papel consultivo e educativo 0 receber dos sujeitos da pesquisa ou de qualquer outra parte denuacutencias de abusos ou notificaccedilatildeo sobre fatos adversos que possam alterar o curso normal do estudo decidindo pela continuidade modificaccedilatildeo ou suspensatildeo da pesquisa devendo se necessaacuterio adequar o termo de consentimento considerando-se anti-eacutetica a pesquisa descontinuada sem justificativa aceita pelo CEP que a aprovou g) requerer instauraccedilatildeo de sindicacircncia agrave direccedilatildeo da instituiccedilatildeo em caso de denuacutencias de irregularidades de natureza eacutetica nas pesquisas e em havendo comprovaccedilatildeo comunicar agrave Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa CONEPMS e no que couber a outras instacircncias e h) manter comunicaccedilatildeo regular e permanente com a CONEPMS A existecircncia de oacutergatildeos com a funccedilatildeo de aprovar e acompanhar pesquisas jaacute era preconizada por exemplo pelo Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988) cujo art 127 veda ao

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Foi mais aleacutem a Resoluccedilatildeo que de modo inovador reforccedilou o controle eacutetico e a defesa da dignidade da pessoa humana com a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa - CONEP84 que atua na direccedilatildeo e orientaccedilatildeo dos comitecircs8S A comissatildeo de acordo com a Resoluccedilatildeo eacute uma instacircncia colegiada de natureza consultiva deliberativa normativa independente vinculada ao Conselho Nacional de Sauacutede86 Essa vinculaccedilatildeo eacute bastante positiva posto que a alternativa de submetecirc-la a outros oacutergatildeos poderia dar ensejo a uma indesejada politizaccedilatildeo dos seus membros o que seria capaz de terminar por afetar a sua autonomia

meacutedico Realizar pesquisa meacutedica em ser humano sem submeter o protocolo a aprovaccedilatildeo e acompanhamento de comissatildeo isenta de qualquer dependecircncia em relaccedilatildeo ao pesquisador O colegiado com nuacutemero natildeo inferior a 7 (sete) membros deve ser multidisciplinar abrangendo profissionais idocircneos e de distinta formaccedilatildeo da aacuterea de sauacutede e das ciecircncias exatas sociais e humanas incluindo por exemplo juristas teoacutelogos socioacutelogos filoacutesofos bioeticistas aleacutem de membros da sociedade e obrigatoriamente pelo menos um membro representando os usuaacuterios Se a pesquisa envolver grupos vulneraacuteveis comunidades e coletividades um dos seus representantes deveraacute ser convidado para participar como membro ad hoc do CEP da anaacutelise do projeto especiacutefico Assim o CEP ainda segundo a Resoluccedilatildeo teraacute sempre um caraacuteter multi e transdisciplinar sendo vedado que mais que metade de seus membros pertenccedilam a uma mesma categoria profissional devendo ainda participarem pessoas dos dois sexos Satildeo permitidos consultores ad hoc pessoas que pertencem ou natildeo aacute instituiccedilatildeo com o objetivo de fornecer subsiacutedios teacutecnicos Merece ainda atenccedilatildeo especial a autonomia do comitecirc cuja manifestaccedilatildeo deve ser totalmente autocircnoma e imaculada de coaccedilotildees ou pressotildees dos interessados A autonomia e a independecircncia satildeo condiccedilotildees sine qua non para a desejada eficaacutecia dos comitecircs que felizmente estatildeo se proliferando em nosso paiacutes Conforme informaccedilotildees do site da CONEP satildeo 446 CEPs aprovados no Brasil ateacute janeiro de 2006 Disponiacutevel em lthttpoonselhosaudegovbrcomissaoconep2006ceps20APROVADOSxlsgt Acessado em 04 jun 2006 A Comissatildeo tem 13 membros titulares e o mesmo nuacutemero de suplentes em uma composiccedilatildeo que tambeacutem deveraacute ser multi e transdisciplinar com pessoas de ambos os sexos Dentre os seus membros 05 (cinco) devem ser personalidades destacadas no campo da eacutetica na pesquisa e na sauacutede e 08 (oito) devem ser personalidades com destacada atuaccedilatildeo nos campos teoloacutegico juriacutedico e outros assegurando-se que pelo menos um seja da aacuterea de gestatildeo da sauacutede Embora natildeo desconheccedilamos a importacircncia das religiotildees na formaccedilatildeo do pensamento eacutetico humano e sem querer desmerecer as pessoas que nelas militam no mais das vezes com accedilotildees de destacada importacircncia pensamos que eacute inadequada em um Estado laico como o nosso a destinaccedilacirco de vaga ou de vagas especificamente a pessoas do campo teleoloacutegico Essa observaccedilatildeo imperioso demarcar natildeo eacute no sentido de entender que a contribuiccedilatildeo dessas pessoas eacute desnecessaacuteria ou inconveniente Pelo contraacuterio Poreacutem a desejada participaccedilatildeo jaacute poderia ser levada a efeito incluindo-as no grupo de personalidades com atuaccedilatildeo de destaque na esfera da eacutetica na pesquisa e na sauacutede sem necessidade de vinculaccedilatildeo necessaacuteria ao pensamento religioso Isso ateacute mesmo para preservar o pluralismo e a igualdade jaacute que obviamente natildeo seraacute possiacutevel oferecer a cada religiatildeo uma vaga Os membros da Comissatildeo satildeo recrutados a partir de indicaccedilotildees contidas em listas elaboradas pelas instituiccedilotildees que possuem CEP registrado na CONEP sendo que 07 (sete) satildeo escolhidos pelo Conselho Nacional de Sauacutede e 06 (seis) satildeo definidos por sorteio Tambeacutem pode contar com consultores e membros ad hoc sendo assegurada a representaccedilatildeo dos usuaacuterios O mandato eacute de quatro anos com renovaccedilatildeo alternada a cada dois anos de sete ou seis de seus membros A CONEP tem tambeacutem um papel coordenador da rede de Comitecircs institucionais aleacutem de se constituir em oacutergatildeo consultor na aacuterea eacutetica em pesquisa Num primeiro momento tem ainda a atribuiccedilatildeo de apreciar os projetos de pesquisas de aacutereas temaacuteticas especiais enviadas pelos CFPs ou seja projetos que contemplam aacutereas com maiores dilemas eacuteticos e grande repercussatildeo social ateacute que se acumulem experiecircncias para elaboraccedilatildeo de normas especiacuteficas complementares agraves existentes Cf FREITAS Carolina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA

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Outros aspectos da Resoluccedilatildeo que merecem especial destaque para o nosso estudo satildeo os relativos ao consentimento livre e esclarecido agrave vulnerabilidade e agrave incapacidade

Como jaacute dito um dos principais pontos da Declaraccedilatildeo de Nuremberg foi o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias A Resoluccedilatildeo tratou do tema exigindo a anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar87 A anuecircncia deve ser expressa atraveacutes de

Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 202

S6 Segundo a Resoluccedilatildeo compete agrave CONEP examinar os aspectos eacuteticos da pesquisa envolvendo seres humanos assim como a adequaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo das normas atinentes consultando a sociedade sempre que julgar necessaacuterio cabendo-lhe entre outras as seguintes atribuiccedilotildees a) estimular a criaccedilatildeo de CEPs institucionais e de outras instacircncias b) registrar os CEPs institucionais e de outras instacircncias c) aprovar no prazo de 60 dias e acompanhar os protocolos de pesquisa em aacutereas temaacuteticas especiais tais como geneacutetica humana reproduccedilatildeo humana faacutermacos medicamentos vacinas e testes diagnoacutesticos novos (fases I II e III) ou natildeo registrados no pais (ainda que fase IV) ou quando a pesquisa for referente a seu uso com modalidades indicaccedilotildees doses ou vias de administraccedilatildeo diferentes daquelas estabelecidas incluindo seu emprego em combinaccedilotildees equipamentos insumos e dispositivos para a sauacutede novos ou natildeo registrados no paiacutes novos procedimentos ainda natildeo consagrados na literatura populaccedilotildees indiacutegenas projetos que envolvam aspectos de biosseguranccedila pesquisas coordenadas do exterior ou com participaccedilatildeo estrangeira c pesquisas que envolvam remessa de material bioloacutegico para o exterior e projetos que a criteacuterio do CEP devidamente justificado sejam julgados merecedores de anaacutelise pela CONEP d) prover normas especiacuteficas no campo da eacutetica em pesquisa inclusive nas aacutereas temaacuteticas especiais bem como recomendaccedilotildees para aplicaccedilatildeo das mesmas e) funcionar como instacircncia final de recursos a partir de informaccedilotildees fornecidas sistematicamente em caraacuteter ex-ofiacutecio ou a partir de denuacutencias ou de solicitaccedilatildeo de partes interessadas devendo manifestar-se em um prazo natildeo superior a 60 (sessenta) dias 0 rever responsabilidades proibir ou interromper pesquisas definitiva ou temporariamente podendo requisitar protocolos para revisatildeo eacutetica inclusive os jaacute aprovados pelo CEP g) constituir um sistema de informaccedilatildeo e acompanhamento dos aspectos eacuteticos das pesquisas envolvendo seres humanos em todo o territoacuterio nacional mantendo atualizados os bancos de dados h) informar e assessorar o MS o CNS e outras instacircncias do SUS bem como do governo e da sociedade sobre questotildees eacuteticas relativas agrave pesquisa em seres humanos i) divulgar esta e outras normas relativas agrave eacutetica em pesquisa envolvendo seres humanos j) juntamente com outros setores do Ministeacuterio da Sauacutede estabelecer normas e criteacuterios para o credenciamento de Centros de Pesquisa e I) estabelecer suas proacuteprias normas de funcionamento

87 No que concerne agrave pesquisa meacutedica a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro estipula no seu art 123 que eacute vedado ao meacutedico Realizar pesquisa em ser humano sem que este tenha dado consentimento por escrito apoacutes devidamente esclarecido sobre a natureza e consequumlecircncia da pesquisa e que Caso o paciente natildeo tenha condiccedilotildees de dar seu livre consentimento a pesquisa somente poderaacute se realizada em seu proacuteprio beneficio apoacutes expressa autorizaccedilatildeo de seu responsaacutevel legal Jaacute a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO no seu art 6 aliacutenea b estabelece que A pesquisa cientiacutefica soacute deve ser realizada com o preacutevio livre expresso e esclarecido consentimento do indiviacuteduo envolvido A informaccedilatildeo deve ser adequada fornecida de uma forma compreensiacutevel e incluir os procedimentos para a retirada do consentimento O consentimento pode ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer hora e por qualquer razatildeo sem acarretar qualquer desvantagem ou preconceito Exceccedilotildees a este princiacutepio somente devem ocorrer quando em conformidade com os padrotildees eacuteticos e legais adotados pelos Estados consistentes com as provisotildees da presente Declaraccedilatildeo particularmente com o art 27 e com os direitos humanos

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em um termo de consentimento onde eacute autorizada a participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa Aleacutem disso natildeo pode estar viciada por simulaccedilatildeo fraude ou erro nem tampouco pode ser obtida por forccedila de uma situaccedilatildeo de dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo

Trata-se de disposiccedilatildeo decorrente da adoccedilatildeo do princiacutepio da autonomia jaacute abordado que se vincula agrave capacidade de autodeterminaccedilatildeo e auto-escolha e pressupotildee dentre outras premissas a capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos possiacuteveis18

Quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de estudo possuem a capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto ao consentimento livre e esclarecido por quaisquer motivos verifica-se uma situaccedilatildeo de vulnerabilidade que natildeo pode ser desconsiderada pelo pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais A preocupaccedilatildeo com a vulnerabilidade dos sujeitos encontra supedacircneo no Coacutedigo de Nuremberg na Declaraccedilatildeo de Helsinque nas Diretrizes Internacionais para Pesquisa Biomeacutedica envolvendo Seres Humanos89 e tambeacutem como jaacute dito na Resoluccedilatildeo 19696 A dificuldade central relacionada a indiviacuteduos e comunidades vulneraacuteveis eacute com a sua capacidade de compreensatildeo (autonomia plena) sobre o experimento e possibilidade de livremente consentir com a pesquisa e quando quiser dela desistir o que justifica todas as preocupaccedilotildees nesse sentido90

Cabe trazer a lume os ensinamentos do professor chileno Fernando Lolas O respeito pela autonomia das pessoas como agentes morais capazes de decisotildees informadas eacute central no diaacutelogo bioeacutetico Somente a permissatildeo outorgada por uma pessoa pode legitimar uma accedilatildeo que a envolva O valor das pessoas eacute incondicional o que obriga a consideraacute-las fins natildeo meios com a liberdade de viver e a de decidir livres de interferecircncias LOLAS Fernando Bioeacutetica o que eacute como se faz Traduccedilatildeo Milton Camargo Mota Satildeo Paulo Loyola 2001 p 63 A Diretriz Internacional para Pesquisa Biomeacutedica afirma Pesquisa envolvendo indiviacuteduos de comunidades sub-desenvolvidas Antes de iniciar a pesquisa em indiviacuteduos de comunidades subdesenvolvidas seja em paiacuteses desenvolvidos ou em desenvolvimento o pesquisador deve estar seguro que As pessoas da comunidade subdesenvolvida natildeo seratildeo ordinariamente envolvidas na pesquisa que possa ser realizada de forma adequada em comunidades desenvolvidas A pesquisa eacute uma resposta agraves necessidades de sauacutede e agraves prioridades da comunidade na qual seraacute realizada todos os esforccedilos seratildeo tomados no sentido de assegurar o imperativo eacutetico de que o consentimento individual dos sujeitos seraacute informado e Os projetos para a pesquisa foram revisados e aprovados por um comitecirc de eacutetica que tenha entre os seus membros ou consultores pessoas que tenham familiaridade com os costumes e tradiccedilotildees da comunidade Em comentaacuterio agraves diretrizes acima Leo Pessini e Christian Paul de Barchifontaine entendem que Quando a experimentaccedilatildeo visa ao estudo de determinadas condiccedilotildees moacuterbidas tais como doenccedilas endecircmicas em comunidades de baixo niacutevel socioeconocircmico eou cultural incapazes de terem uma consciecircncia clara e apropriada das implicaccedilotildees de sua participaccedilatildeo na experiecircncia eacute de bom alvitre que seja obtida a interveniecircncia de um liacuteder em que a coletividade confia Esse intermediaacuterio dever deixar claro que a participaccedilatildeo eacute voluntaacuteria e que qualquer participante tem a liberdade de natildeo aceitar ou abandonar a experiecircncia a qualquer momento op cit p 133

Conforme Marisa Palaacutecios Quando a autonomia dos sujeitos natildeo eacute plena ou seja quando a capacidade de entender as situaccedilotildees que se apresentam ao sujeito e de autodeterminar-se segundo este entendimento estaacute de alguma forma limitada eacute preciso tomar cuidado especial Eacute o caso dos grupos vulneraacuteveis os iacutendios que tecircm a capacidade de entendimento das situaccedilotildees diminuiacuteda uma vez que compotildeem sociedades

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A vulnerabilidade pode assumir as mais variadas vertentes bem como atingir uma determinada pessoa ou um grupo de seres humanos com peculiaridades comuns tais como crianccedilas idosos iacutendios pacientes terminais desempregados deficientes91 presidiaacuterios92 ou outras situaccedilotildees de dependecircncia93

Pode ocorrer que as pessoas que seratildeo estudadas na pesquisa natildeo tenham capacidade civil para dar o seu consentimento Nesse caso se encontram em situaccedilatildeo de incapacidade e a pesquisa soacute pode ser levada adiante com a intervenccedilatildeo de seus representantes legais que de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira deveratildeo assistir ou representar os incapazes Tambeacutem aqui deve o pesquisador cercar-se de cautelas eacuteticas redobradas

Finalmente deve-se louvar a Resoluccedilatildeo por ter explicitado no seu item III3 um rol de 23 (vinte e trecircs) exigecircncias eacuteticas para a pesquisa de qualquer aacuterea do conhecimento que envolva seres humanos94

culturalmente diversas[] Estas para citar algumas populaccedilotildees caracteriacutesticas Satildeo populaccedilotildees que precisam ser especialmente protegidas dada a proacutepria condiccedilatildeo de vulnerabilidade Maria Carolina S Guimaratildees e Sylvia Caiuby Novaes com alento em Hannah Arendt e Cardia definem o ser vulneraacutevel como Algueacutem que possui cidadania fraacutegil que ignora a relevacircncia do direito agrave integridade fiacutesica como condiccedilatildeo de acesso aos direitos sociais econocircmicos poliacuteticos e trabalhistas Dito assim o que parece a primeira condiccedilatildeo para que um ser vulneraacutevel perca tal situaccedilatildeo eacute o investimento do Estado naquilo que constroacutei e constitui a cidadania naqueles atributos que transformam o indiviacuteduo em cidadatildeo que transformam o animal laborans em homem poliacutetico Essa transformaccedilatildeo eacute no dizer de Hannah Arendt um pressuposto da democracia pois permite ao animal laborans ir do reino da necessidade para o reino da liberdade GUIMARAtildeES Maria Carolina S NOVAES Sylvia Caiuby Autonomia reduzida e vulnerabilidade liberdade de decisatildeo diferenccedila e desigualdade Revista Bioeacutetica Brasiacutelia v 7 n 1 p 23 1999

91 Sobre o tema vide COHEN Claacuteudio Bioeacutetica Pesquisa e Deficiecircncia In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 55-62 92 Nem todo ser humano eacute no entanto capaz de autodeterminaccedilatildeo A capacidade de autodeterminaccedilatildeo amadurece ao longo da vida mas pode ser perdida total ou parcialmente por doenccedila velhice ou situaccedilatildeo de restriccedilatildeo severa como a prisatildeo Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 93 O Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de janeiro de 1988) veda ao meacutedico no seu art 128 Realizar pesquisa meacutedica em voluntaacuterios sadios ou-natildeo que tenham direta ou indiretamente dependecircncia ou subordinaccedilatildeo relativamente ao pesquisador 94 I1I3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias a) ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder a incertezas b) estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou em outros fatos cientiacuteficos c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio d) prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis e) obedecer a metodologia adequada Se houver necessidade de distribuiccedilatildeo aleatoacuteria dos sujeitos da pesquisa em grupos experimentais e de controle assegurar que apriori natildeo seja possiacutevel estabelecer as vantagens de um procedimento sobre outro atraveacutes de revisatildeo de literatura meacutetodos observacionais ou meacutetodos que natildeo envolvam seres humanos 0 ter plenamente justificada quando for o caso a utilizaccedilatildeo de placebo em termos de natildeo maleficecircncia e de necessidade metodoloacutegica g) contar com o consentimento livre e esclarecido do sujeito da pesquisa eou seu representante legal h) contar com os recursos humanos e materiais necessaacuterios que garantam o bem-

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5 Teleologia e legitimidade da pesquisa em seres humanos

Toda experimentaccedilatildeo em seres humanos possui um determinado objetivo o qual pode ou-natildeo estar vinculado ao bem estar proacuteprio da pessoa ou grupo observado

Essa situaccedilatildeo natildeo foi esquecida pela Declaraccedilatildeo de Helsinque cujo preacircmbulo afirma Wo campo cia pesquisa biomeacutedica uma distinccedilatildeo fundamental deve ser feita entre a pesquisa meacutedica na qual o objetivo eacute essencialmente o diagnoacutestico ou a terapecircutica para um paciente e a pesquisa meacutedica cujo objeto essencial eacute puramente cientiacutefico e sem um valor direto diagnoacutestico ou terapecircutico para a pessoa sujeita agrave

estar do sujeito da pesquisa devendo ainda haver adequaccedilatildeo entre a competecircncia do pesquisador e o projeto proposto i) prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade a proteccedilatildeo da imagem e a natildeo estigmatizaccedilatildeo garantindo a natildeo utilizaccedilatildeo das informaccedilotildees em prejuiacutezo das pessoas eou das comunidades inclusive em termos de auto-estima de prestiacutegio eou econocircmico - financeiro j) ser desenvolvida preferencialmente cm indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida 1) respeitar sempre os valores culturais sociais morais religiosos e eacuteticos bem como os haacutebitos e costumes quando as pesquisas envolverem comunidades m) garantir que as pesquisas em comunidades sempre que possiacutevel traduzir-se-atildeo em benefiacutecios cujos efeitos continuem a se fazer sentir apoacutes sua conclusatildeo O projeto deve analisar as necessidades de cada um dos membros da comunidade e analisar as diferenccedilas presentes entre eles explicitando como seraacute assegurado o respeito agraves mesmas n) garantir o retomo dos benefiacutecios obtidos atraveacutes das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas Quando no interesse da comunidade houver benefiacutecio real em incentivar ou estimular mudanccedilas de costumes ou comportamentos o protocolo de pesquisa deve incluir sempre que possiacutevel disposiccedilotildees para comunicar tal benefiacutecio agraves pessoas eou comunidades o) comunicar agraves autoridades sanitaacuterias os resultados da pesquisa sempre que os mesmos puderem contribuir para a melhoria das condiccedilotildees de sauacutede da coletividade preservando poreacutem a imagem e assegurando que os sujeitos da pesquisa natildeo sejam estigmatizados ou percam a auto-estima p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefiacutecios resultantes do projeto seja em termos de retorno social acesso aos procedimentos produtos ou agentes da pesquisa q)assegurar aos sujeitos da pesquisa as condiccedilotildees de acompanhamento tratamento ou de orientaccedilatildeo conforme o caso nas pesquisas de rastreamento demonstrar a preponderacircncia de benefiacutecios sobre riscos e custos r) assegurar a inexistecircncia de conflito de interesses entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa ou patrocinador do projeto s) comprovar nas pesquisas conduzidas do exterior ou com cooperaccedilatildeo estrangeira os compromissos e as vantagens para os sujeitos das pesquisas e para o Brasil decorrentes de sua realizaccedilatildeo Nestes casos deve ser identificado o pesquisador e a instituiccedilatildeo nacionais co-responsaacuteveis pela pesquisa O protocolo deveraacute observar as exigecircncias da Declaraccedilatildeo de Helsinque e incluir documento de aprovaccedilatildeo no paiacutes de origem entre os apresentados para avaliaccedilatildeo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa da instituiccedilatildeo brasileira que exigiraacute o cumprimento de seus proacuteprios referenciais eacuteticos Os estudos patrocinados do exterior tambeacutem devem responder agraves necessidades de treinamento de pessoal no Brasil para que o paiacutes possa desenvolver projetos similares de forma independente t) utilizar o material bioloacutegico e os dados obtidos na pesquisa exclusivamente para a finalidade prevista no seu protocolo u) levar em conta nas pesquisas realizadas em mulheres em idade feacutertil ou em mulheres graacutevidas a avaliaccedilatildeo de riscos e benefiacutecios e as eventuais interferecircncias sobre a fertilidade a gravidez o embriatildeo ou o feto o trabalho de parto o puerpeacuterio a lactaccedilatildeo e o receacutem-nascido v) considerar que as pesquisas em mulheres graacutevidas devem ser precedidas de pesquisas em mulheres fora do periacuteodo gestacional exceto quando a gravidez for o objetivo fundamental da pesquisa x) propiciar nos estudos multicecircntricos a participaccedilatildeo dos pesquisadores que desenvolveratildeo a pesquisa na elaboraccedilatildeo do delineamento geral do projeto e z) descontinuar o estudo somente apoacutes anaacutelise das razotildees da descontinuidade pelo CEP que a aprovou

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pesquisa Em outras palavras haacute experimentos em benefiacutecio do paciente e experimentos em benefiacutecio da ciecircncia Ainda no preacircmbulo da Declaraccedilatildeo de Helsinque encontramos que A finalidade da pesquisa meacutedica envolvendo seres humanos deve ser o aperfeiccediloamento do diagnoacutestico procedimentos terapecircuticos e profilaacuteticos e a compreensatildeo da etiologia e da patologia da doenccedila Conjugando essa afirmaccedilatildeo com a anterior podemos extrair que uma determinada pessoa ou populaccedilatildeo pode ser objeto de pesquisa para desvendar doenccedilas que a afligem ou para desnudar as razotildees pelas quais eacute menos suscetiacutevel ou-natildeo eacute atingida por determinada moleacutestia que afeta aos demais seres humanos

A partir dessas observaccedilotildees podemos considerar para os fins do nosso estudo que as experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas teleologicamente em dois grupos a) aquelas cujos objetivos possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas as quais chamaremos de pesquisas com justificativa intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de terceiros as quais denominaremos pesquisas com justificativa extrinseca Temos como exemplo na primeira situaccedilatildeo os experimentos cientiacuteficos para desvendar o porquecirc de uma determinada coletividade ser atingida por taxas elevadas de uma certa doenccedila e na segunda uma pesquisa para revelar as razotildees pelas quais certas pessoas natildeo desenvolvem uma moleacutestia com o objetivo de descobrir uma vacina ou um medicamento para os demais

Entretanto em todo experimento seraacute necessaacuterio averiguar se a justificativa - seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima Isso porque o fato de uma pesquisa ter por objetivo um tratamento mais eficiente ou a cura de certas doenccedilas natildeo legitima por si soacute a utilizaccedilatildeo de pessoas como sujeito de pesquisa mesmo que elas sofram da moleacutestia e possam vir a ser beneficiadas Natildeo se deve perder de vista aliaacutes que se o conhecimento puder ser obtido por outro meio a utilizaccedilatildeo de seres humanos justamente por ser desnecessaacuteria seraacute ilegiacutetima95 Ademais soacute pelo fato de ser intriacutenseca a justificativa natildeo seraacute necessariamente legiacutetima Por outro lado a circunstacircncia isoladamente considerada do eventual resultado da experimentaccedilatildeo ser absolutamente indiferente ao sujeito de pesquisa natildeo torna a sua participaccedilatildeo ilegiacutetima Em outras palavras a justificativa soacute por ser extrinseca natildeo seraacute necessariamente ilegiacutetima

Vale relembrar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 - A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio

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A razatildeo disso reside na afirmaccedilatildeo de que como se sabe desde Kant o Homem deve ser tratado como um fim em si mesmo e natildeo como instrumento De fato eacute em Kant que o Homem ganha status de valor absoluto manifesto no imperativo praacutetico expresso na maacutexima segundo a qual Ages de tal maneira que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio 96

Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

Quando se trata de experimentaccedilatildeo com justificativa intriacutenseca a razatildeo legitimadora pode estar no objetivo de beneficiar os proacuteprios sujeitos da pesquisa algueacutem se submete a uma experimentaccedilatildeo na tentativa de auferir uma vantagem em seu bem-estar fiacutesico ou mental

Jaacute no caso da justificativa extriacutenseca poder-se-ia objetar a realizaccedilatildeo da experimentaccedilatildeo com suposto fundamento na Resoluccedilatildeo 19696 cujo item III 1 letra d vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila Ora se em uma determinada situaccedilatildeo algueacutem participa do experimento sem que haja qualquer possibilidade de benefiacutecio fiacutesico ou mental para si a partir do resultado da pesquisa e considerando que a mesma Resoluccedilatildeo veda qualquer forma de remuneraccedilatildeo do sujeito da pesquisa (item 1110) qual a vantagem significativa que poderaacute essa pessoa auferir para justificar a sua participaccedilatildeo

Ao nosso ver a interpretaccedilatildeo desse ponto da Resoluccedilatildeo natildeo deve ser literal nem assistemaacutetica97 devendo ser considerada a incidecircncia de um outro princiacutepio ainda

Op cit p 69 Em comento a este imperativo Francesca Puigpclat Marti apregoa que La concepcioacuten liberal asocia a esta expresioacuten una idea comuacuten en Ia reflexioacuten eacutetica de raigambre kantiana el hombre es un fin en si mismo un sujeto y no un objeto Seguacuten Kant en el sistema de Ia natureza el hombre (homo phaenomenon animal rationale) es un ser de escasa importancia y tiene con los demaacutes animales en tanto que productos de Ia tierra un precio comuacuten () Ahora bien el hombre considerado como persona es dccir como sujeto de una razoacuten praacutetico-moral estaacute situado por encima de todo precio porque como tal (homo noumenon) no puede valorarse soacutelo como meacutedio para fines ajenos incluso para sus proprios fines sino como fin en siacute mismo es decir posee una dignidad(un valor interno absoluto) gracias a la cual infunde respeto haciacutea eacutel a todos los demaacutes seres racionales dei mundo puede medirse con cualquier otro de esta clase y valorarse en pie de igualdad En la medida en que seguacuten Kant el hombre existe como fin en siacute mismo y no soacutelo como meacutedio para usos cualesquiera de una u otra voluntad se puede formular el siguiente principio praacutetico supremo obra de tal modo que uses la humanidad tanto en tu persona como en la persona de cualquier otro siempre como un fin al mismo tiempo y nunca solamente como un meacutedio MARTIacute Francesca Puigpelat Clonacioacuten dignidad humana y constitucioacuten Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo ano II n 42 janmar p37-64 2003

Natildeo se interpreta o direito em tiras aos pedaccedilos () Um texto de direito isolado destacado desprendido do sistema juriacutedico natildeo expressa significado normativo algum Cf GRAU Eros Roberto Ensaio e

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que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que eacute o da solidariedade Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita entendemos que a sua aplicaccedilatildeo eacute cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele dispositivo (item 1111 letra d da Resoluccedilatildeo 19696) afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria Aleacutem disso outros documentos de importacircncia para a Bioeacutetica fazem referecircncia agrave solidariedade98 De fato natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao respeito agrave dignidade da pessoa humana99

Logo no nosso pensar mesmo que natildeo haja nenhum benefiacutecio ou vantagem direta ao sujeito de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma justificativa eacutetica a qual pode ter como nuacutecleo a intenccedilatildeo solidaacuteria dessa pessoa e do pesquisador de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e consequumlentemente para todos os demais seres humanos

A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica100

Estas exigecircncias no acircmbito normativo brasileiro estatildeo listadas na Resoluccedilatildeo 19696 especialmente no item III3

Algumas delas satildeo puramente objetivas e uma vez desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca E o caso por exemplo da necessidade de consentimento preacutevio e informado

discurso sobre a interpretaccedilatildeoaplicaccedilatildeo do Direito Satildeo Paulo Malheiros Editores 2002 p 34 98

O art 1deg da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos proclama que todas pessoas devem agir em relaccedilatildeo umas agraves outras com espiacuterito de fraternidade Alem disso a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO em um dos seus considerandos observa que os seres humanos tecircm um papel importante na proteccedilatildeo um do outro tratando expressamente da solidariedade e cooperaccedilatildeo no seu art 13 segundo o qual A solidariedade entre os seres humanos e cooperaccedilatildeo internacional para este fim devem ser estimuladas 99 Ela [a solidariedade] eacute o fecho de aboacutebada do sistema de princiacutepios eacuteticos pois complementa e aperfeiccediloa a liberdade a igualdade e a seguranccedila () E um erro considerar que no mundo da natureza sobretudo no mundo animal natildeo exista solidariedade e que ela seja uma criaccedilatildeo poliacutetica Muito pelo contraacuterio pode-se dizer que a biosfera forma naturalmente um sistema solidaacuterio e que o rompimento desse sistema eacute sempre obra do homem O proacuteprio Darwin bem advertiu que a expressatildeo struggle for Existence fora por ele usada em sentido amplo e matafoacuterico incluindo a dependecircncia de um ser em relaccedilatildeo a outro bem como incluindo (o que eacute mais importante) natildeo apenas a vida do indiviacuteduo mas o ecircxito em deixar descendentes Os zooacutelogos jaacute observaram que o processo de seleccedilatildeo natural deu mais vantagens bioloacutegicas aos grupos que cuidavam de seus membros natildeo reprodutivos do que agravequeles que abandonavam ou matavam os anciatildeos pois a capacidade de reproduccedilatildeo global dos grupos altruiacutestas eacute assim singularmente reforccedilada Cf COMPARATO Faacutebio Konder Eacutetica direito moral e religiatildeo no mundo moderno Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 p 577578

100

Natildeo eacute agrave toa portanto que como jaacute visto a Resoluccedilatildeo 19696 vincula a eticidade na pesquisa aos princiacutepios da Bioeacutetica tanto no seu preacircmbulo como no seu item III 1

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dos participantes - ou dos seus representantes se incapazes - 101 cuja ausecircncia macula o princiacutepio da autonomia Tambeacutem eacute objetiva a exigecircncia da pesquisa estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou outros fatos cientiacuteficos102 cuja inobservacircncia implica em ofensa agrave natildeo-maleficecircncia Nessas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou-natildeo vir a ter um benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

Outras exigecircncias entretanto possuem um certo grau de subjetividade em maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as circunstacircncias faacuteticas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo de valor iacutensito a cada um Desse tipo vg eacute a exigecircncia segundo a qual a pesquisa deve ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e ter possibilidades concretas de responder a incertezas103 A avaliaccedilatildeo quanto ao cumprimento ou-natildeo da exigecircncia e portanto quanto agrave legitimidade ou ilegitimidade da utilizaccedilatildeo de seres humanos tem um niacutetido caraacuteter subjetivo podendo variar de pessoa para pessoa

Quando tratamos de exigecircncias subjetivas haacute ainda um outro aspecto a ser apontado deveraacute ser levado em conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca Em outras palavras a circunstacircncia do sujeito de pesquisa poder vir a ser beneficiado ou-natildeo pelo resultado do experimento deve ser considerada na verificaccedilatildeo da legitimidade eacutetica quando da ponderaccedilatildeo sobre o cumprimento das exigecircncias subjetivas

Tomemos como exemplo a exigecircncia de que devem prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis104 Ora essa exigecircncia eacute subjetiva pois envolve uma ponderaccedilatildeo cujo resultado estaacute vinculado a um juiacutezo de valor sobre a natureza e a importacircncia ou peso de cada benefiacutecio ou risco provaacutevel Ao nosso entender quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal no resultado do experimento tratando-se portanto de justificativa extriacutenseca eacute oacutebvio que os riscos a que se submete devem ser considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o benefiacutecio esperado tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa submetida ao experimento

101 Item III3 letra g da Resoluccedilatildeo 19696 102 Item III3 letra b da Resoluccedilatildeo 19696 103 Item III3 letra a da Resoluccedilatildeo 19696 104 Item III3 letra d da Resoluccedilatildeo 19696

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Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila105 Por outro lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

A proacutepria realizaccedilatildeo ou-natildeo da pesquisa pode depender dessa ponderaccedilatildeo jaacute que a Resoluccedilatildeo n 19696 prevecirc que havendo riscos potenciais as pesquisas envolvendo seres humanos poderatildeo ser admitidas quando oferecerem elevada possibilidade de gerar conhecimento para entender prevenir ou aliviar um problema que afete o bem-estar dos sujeitos da pesquisa e de outros indiviacuteduos 106

Aleacutem disso parece ser mais aceitaacutevel eticamente submeter o ser humano a riscos maiores quando a justificativa eacute intriacutenseca do que quando ela eacute extriacutenseca priorizando assim a sua preservaccedilatildeo Nesse sentido a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO estipula que uos interesses e o bem-estar do indiviacuteduo devem ter prioridade sobre o interesse exclusivo da ciecircncia ou da sociedade 107

Natildeo se pode esquecer ainda que por forccedila dos princiacutepios da beneficecircncia da natildeo-maleficecircncia e da justiccedila eacute preciso considerar na mediccedilatildeo da legitimidade as peculiaridades individuais ou coletivas dos sujeitos de pesquisa especialmente no que concerne agraves suas eventuais vulnerabilidades bem como cuidar para que natildeo lhes seja imposto um mal desnecessaacuterio ou desproporcional O princiacutepio da justiccedila como vimos implica necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa os quais sempre que possiacutevel devem ter garantido para si pelo pesquisador a fruiccedilatildeo dos benefiacutecios da experimentaccedilatildeo natildeo sendo equacircnime impor-Ihes ocircnus excessivos108 especialmente se vulneraacuteveis Natildeo eacute agrave toa portanto que pode

105 O princiacutepio da justiccedila implica atenccedilatildeo especial agraves regras de recrutamento de participantes de experimentos Natildeo se pode fazer experimentos apenas com determinados grupos - pacientes de enfermaria asilados prisioneiros - simplesmente porque eles estatildeo agrave disposiccedilatildeo e em situaccedilatildeo de dependecircncia Isso eacute injusto Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 Item Vl aliacutenea a

107 Art 3 aliacutenea b 108 bull

Consideramos que deva ser modificada a praacutetica muito comum em nosso paiacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de pesquisados provenientes das camadas mais desfavorecidas da sociedade ou de outros grupos vulneraacuteveis mas que posteriormente natildeo poderatildeo se beneficiar dos resultantes positivos das pesquisas em que tomaram parte mesmo tendo enfrentado riscos de danos psico-sociais As pesquisas realizadas nesses grupos devem poder lhes trazer benefiacutecios e os pesquisadores sempre que possiacutevel devem garantir retomo dos benefiacutecios resultados das pesquisas para os sujeitos individuais e coletivos que nelas participarem Cf FORTES Paulo Antonio de Carvalho As Pesquisas em Seres Humanos e o Principio Eacutetico da Justiccedila

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haver exigecircncias eacuteticas especiacuteficas para pesquisas com serem humanos em situaccedilatildeo de vulnerabilidade109

Assim sempre seraacute preciso dosar a equaccedilatildeo riscobeneficio ponderando em cada caso concreto se os eventuais benefiacutecios satildeo suficientes para motivar a exposiccedilatildeo das pessoas ao processo de experimentaccedilatildeo Pode ser que diante de certas peculiaridades ou vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima110 Aliaacutes como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis justamente porque como jaacute dito o ser humano natildeo pode ser tratado como mero instrumento1

E natildeo eacute soacute Aleacutem disso em princiacutepio a pesquisa com pessoas ou grupos vulneraacuteveis deve ter uma justificativa intriacutenseca2 Entretanto sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas em experimentos extriacutensecos agrave luz da solidariedade como no caso do grupo vulneraacutevel ser imune a determinada moleacutestia por razatildeo ainda desconhecida o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias objetivas agrave risca deve ser ainda mais

Cadernos de Eacutetica em Pesquisa Ano 1 n 2 p 22-23 nov 1998 109

A tiacutetulo de exemplo a Resoluccedilatildeo 19696 traz alguns requisitos especiacuteficos para o consentimento livre e esclarecido de pessoas ou populaccedilotildees vulneraacuteveis no item IV3

110 Um caso de niacutetida violaccedilatildeo aos princiacutepios bioeacuteticos em pesquisas envolvendo grupo vulneraacutevel foi o jaacute mencionado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm Conforme um dos colaboradores da pesquisa utilizar doentes mentais ainda que natildeo voluntaacuterios foi a melhor opccedilatildeo diante do fato de que o principal problema da sauacutede puacuteblica era justamente o das doenccedilas dentaacuterias razatildeo pela qual os fins justificariam os meios ainda mais considerando que o estudo foi utilizado em todo o mundo (Krasse B Sueacutecia usou deficiente mental como cobaia Folha de Satildeo Paulo 23 Set 1997 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas cliacutenicas sobre seus direitos 2005 p 61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo) sendo faacutecil criticar o fato depois de consumado (Krasse B The Vipeholm dental caries study recollections and reflections 50 years later J Dent Res 2001 80(9) 1785-8 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu op cit p 61) Mais uma vez cabiacutevel rememorar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () j) ser desenvolvida preferencialmente em indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida

112 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO eacute clara ao afirmar em seu art 7 aliacutenea b no que diz respeito a indiviacuteduos sem a capacidade para fornecer consentimento que a pesquisa soacute deve ser realizada para o beneficio direto agrave sauacutede do indiviacuteduo envolvido estando sujeita agrave autorizaccedilatildeo e agraves condiccedilotildees de proteccedilatildeo prescritas pela legislaccedilatildeo e caso natildeo haja nenhuma alternativa de pesquisa de eficaacutecia comparaacutevel que possa incluir sujeitos de pesquisa com capacidade para fornecer consentimento

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rigoroso na ponderaccedilatildeo do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da autonomia e justiccedila expondo tais pessoas a riscos miacutenimos menores ateacute do que aqueles normalmente empregados em pesquisas com justificativa intriacutenseca3

Se essas diretrizes natildeo forem observadas teremos uma pesquisa carente de justificativa eacutetica e de legitimidade

6 Conclusotildees

Em virtude dos limites inerentes agrave nossa abordagem nessas consideraccedilotildees finais natildeo apresentaremos verdades irrefutaacuteveis e definitivas sobre um tema que ainda carece de um importante debate acadecircmico e normativo Com efeito o que pretendemos modestamente foi evidenciar alguns paradigmas que possam ensejar a conciliaccedilatildeo da dignidade da pessoa humana com a continuidade dos processos de investigaccedilatildeo cientiacuteficos realizados em seres humanos Para tanto podemos sintetizar nosso pensamento nas seguintes conclusotildees

a) O desenvolvimento da ciecircncia mormente em aacutereas afeitas agrave vida e a ocorrecircncia de pesquisas francamente contraacuterias agrave dignidade humana como ocorrido em vaacuterias passagens da Segunda Guerra ensejaram o surgimento da Bioeacutetica como um novo ramo do conhecimento

b) Deve-se limitar a atuaccedilatildeo da Bioeacutetica aos casos em que haacute conflito de valores quando dois princiacutepios eacutetica e moralmente admissiacuteveis natildeo podem coexistir

c) Haacute iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica Autonomia Beneficecircncia e Justiccedila aleacutem da Natildeo-Maleficecircncia - e as pesquisas em seres humanos

113 Ainda conforme o art 7 aliacutenea b da Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO quando se trata de pessoas incapazes Pesquisas sem potencial beneficio direto agrave sauacutede soacute devem ser realizadas excepcionalmente com a maior restriccedilatildeo expondo o indiviacuteduo apenas a risco e desconforto miacutenimos e quando se espera que a pesquisa contribua com o benefiacutecio agrave sauacutede de outros indiviacuteduos na mesma categoria sendo sujeitas agraves condiccedilotildees prescritas por lei e compatiacuteveis com a proteccedilatildeo dos direitos humanos do indiviacuteduo A recusa de tais indiviacuteduos em participar de pesquisas deve ser respeitada

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1218 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

d) Os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica

pluralista aberta e receptiva e satildeo um poderoso instrumento

para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

razotildees pelas quais eacute descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos

debates bioeacuteticos

e) O avanccedilo tecnoloacutegico traz cada vez mais a diminuiccedilatildeo de

limites teacutecnicos ao ser humano o que conduz ao debate sobre a

necessidade de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees para

evitar eventuais abusos especialmente na aacuterea biomeacutedica

elevando a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que

demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave

vida

0 A concretizaccedilatildeo dos objetivos atuais da humanidade

especialmente em relaccedilatildeo agrave expectativa de vida depende

dentre outros fatores da pesquisa cientiacutefica e da

experimentaccedilatildeo em seres humanos Poreacutem eacute preciso tomar o

Homem como sujeito de pesquisa sem trataacute-lo como mero

instrumento mas como um fim em si mesmo

g) A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do

interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda

Guerra trouxeram agrave tona a questatildeo da eacutetica na pesquisa

evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana e

de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa

em seres humanos gerando uma seacuterie de normas internacionais

e nacionais a exemplo do Coacutedigo de Nuremberg da

Declaraccedilatildeo de Helsinque e no Brasil da Resoluccedilatildeo n 19696

do Conselho Nacional de Sauacutede

h) Dentre os principais aspectos da Resoluccedilatildeo n 19696 do

Conselho Nacional de Sauacutede encontramos a vinculaccedilatildeo da

experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da

principiologia da Bioeacutetica a explicitaccedilatildeo de um rol de

exigecircncias para a eticidade na pesquisa as definiccedilotildees de

diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica como o

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1219

consentimento livre e esclarecido a vulnerabilidade e a

incapacidade a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em

Pesquisa -CONEP e a regulamentaccedilatildeo dos Comitecircs de Eacutetica e

Pesquisa - CEPs

i) O consentimento livre e esclarecido decorre da adoccedilatildeo do

princiacutepio da autonomia e pressupotildee dentre outras premissas a

capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os

aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos

possiacuteveis

j) A vulnerabilidade natildeo pode ser desconsiderada pelo

pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais ocorrendo

quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de

estudo por quaisquer motivos possuem a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto agrave

compreensatildeo sobre o experimento e a possibilidade de

livremente consentir com a pesquisa e dela desistir

k) A incapacidade ocorre quando as pessoas que seratildeo estudadas

na pesquisa natildeo possuem capacidade civil para dar o seu

consentimento soacute podendo ser levada adiante a pesquisa com a

intervenccedilatildeo de seus representantes legais implicando tambeacutem

no dever do pesquisador de cercar-se de cautelas eacuteticas

redobradas

1) As experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas

teleologicamcnte em dois grupos a) aquelas cujos objetivos

possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas

observadas as quais chamamos de pesquisas com justificativa

intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo

direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de

terceiros as quais denominamos pesquisas com justificativa

extrinseca

m) Em todo experimento eacute necessaacuterio averiguar se a justificativa -

seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1220 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima jaacute que a

justificativa soacute pelo fato de ser intriacutenseca natildeo seraacute

necessariamente legiacutetima nem tampouco soacute por ser extriacutenseca

seraacute necessariamente ilegiacutetima

n) Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a

realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser

encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca

como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

o) A interpretaccedilatildeo do item III1 letra d da Resoluccedilatildeo n 19696

que vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens

significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de

infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila natildeo deve ser literal nem

assistemaacutetica devendo ser considerada a incidecircncia de um

outro principio ainda que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que

eacute o da solidariedade

p) Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita ao princiacutepio da

solidariedade na Resoluccedilatildeo n 19696 a sua aplicaccedilatildeo eacute

cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele

texto afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua

relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-

humanitaacuteria

q) Logo mesmo que natildeo haja nenhum beneficio direto ao sujeito

de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma

justificativa a qual pode ser a intenccedilatildeo sua e do pesquisador

de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e

consequumlentemente para todos os demais seres humanos Aleacutem

disso natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica

sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao

respeito agrave dignidade da pessoa humana

r) A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em

seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade

poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1221

diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica listadas na

Resoluccedilatildeo n 19696 especialmente no item III3

s) Algumas exigecircncias satildeo puramente objetivas e uma vez

desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da

justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca

t) Nas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa

ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou natildeo vir a ter um

benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

u) Outras exigecircncias possuem um certo grau de subjetividade em

maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da

pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo

exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as

circunstacircncias faacutetiacutecas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo

de valor iacutensito a cada um

v) Quando se tratar de exigecircncias subjetivas deveraacute ser levado em

conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma

justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca

w) Quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou

sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal

no resultado do experimento tratando-se portanto de

justificativa extriacutenseca os riscos a que se submete devem ser

considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a

justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o beneficio esperado

tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa

submetida ao experimento

x) Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do

sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero

instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila e por outro

lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute

menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa

consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1222 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a

algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

y) Pode ser que diante de certas peculiaridades ou

vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo

considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa

em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua

realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo

eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima

z) Como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras

pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis

mas sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas agrave luz da

solidariedade o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias

objetivas agrave risca deve ser ainda mais rigoroso na ponderaccedilatildeo

do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave

observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da

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Page 11: BIOÉTICA E PESQUISAS EM SERES HUMANOS

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1197

No seacuteculo XVI Galileu passou a buscar a verdade atraveacutes da experimentaccedilatildeo e da observaccedilatildeo das coisas desvinculando-se da verdade dos escolaacutesticos ou da Igreja Esse eacute considerado o marco de referecircncia das origens da ciecircncia experimental a qual terminou por proporcionar a Revoluccedilatildeo Cientiacutefica nos seacuteculos seguintes35 Esta uacuteltima abriu as portas para uma nova era na humanidade multiplicando o conhecimento e as descobertas gerando tecnologia A tecnologia passou a imprimir uma velocidade cada vez maior nas transformaccedilotildees cientiacuteficas e sociais A velocidade com que as mudanccedilas ocorrem por sua vez municia o Homem com novas perspectivas e instrumentos sempre mais apurados de investigaccedilatildeo o que implica em mais tecnologia36 Investigaccedilatildeo pesquisa conhecimento mudanccedilas tecnologia velocidade formam uma espeacutecie de ciacuterculo virtuoso - natildeo-vicioso31 e satildeo palavras indissociaacuteveis da realidade nos uacuteltimos tempos a partir do seacuteculo XX no qual testemunhamos pelo menos duas espantosas revoluccedilotildees a atocircmica e a molecular38

Todo esse acervo mudou por completo as sociedades e o pensamento humano e natildeo se trata de um processo jaacute findo Pelo contraacuterio muito ainda estaacute por vir Natildeo se sabe aliaacutes se o Homem encontraraacute fronteiras tecnologicamente intransponiacuteveis Essa perspectiva de escassez de barreiras teacutecnicas conduz ao debate sobre a necessidade

35 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 edbdquo rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179

36 Por exemplo vale lembrar o ocorrido durante o desenrolar dos estudos do projeto genoma humano Segundo Jordan (1993) o verdadeiro objetivo inicial do PGH natildeo era o sequumlenciamento muito complexo caro e trabalhoso mas um mapeamento detalhado do genoma humano No decorrer do processo os progressos tecnoloacutegicos foram tatildeo grandes que propiciaram o sequumlenciamento mesmo antes do prazo previsto Cf GOLDIM Joseacute Roberto MATTE Uacutersulla Projeto Genoma Humano - HUGO Disponiacutevel em lthttpwwwufrgsbrbioeticagenomahtmgt Acessado em 28 maio de 2006

37 Natildeo se desconhece entretanto que o ser humano eacute capaz visando objetivos condenaacuteveis natildeo apenas de bloquear pesquisas mas tambeacutem de manipulaacute-las ou de realizaacute-las de forma direcionada propositadamente sem a observacircncia de criteacuterios cientiacuteficos Todavia antes de examinar a transmissatildeo de conhecimentos eacute necessaacuterio acenar para a sua fonte primaacuteria a pesquisa cientiacutefica Tambeacutem aiacute natildeo faltam aacutereas de conflito Foram sobretudo analisadas as frequumlentes ameaccedilas ao conhecimento e agrave informaccedilatildeo cientiacutefica provenientes de decisotildees poliacuteticas ou da proteccedilatildeo de interesses particulares Dentre as decisotildees poliacuteticas a diretora do Instituto Nacional da Seguranccedila e da Sauacutede Ocupacional (NIOSH) dos EUA Linda Rosenstock recordou aquelas assumidas pelo Congresso nos uacuteltimos anos dentro de um quadro de reduccedilatildeo de muitos programas para a proteccedilatildeo aos trabalhadores com a finalidade de bloquear a utilizaccedilatildeo de pesquisas no campo das artropatias do trabalho e de estudos sobre a relaccedilatildeo entre a motorizaccedilatildeo e os tumores e tambeacutem encobrir o fato de duas organizaccedilotildees internacionais designadas para a proteccedilatildeo agrave sauacutede a Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e a Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho estatildeo sob a acusaccedilatildeo de ter manipulado os relatoacuterios teacutecnicos relativos agrave induacutestria do asbesto Dentre os interesses particulares prcvalcccm aqueles das induacutestrias que encomendam pesquisas com a finalidade de demonstrar a inexistecircncia de efeitos nocivos (o exemplo mais macroscoacutepico concerne ao tabaco) ou entatildeo aumentar as incertezas para evitar fazer o que eacute necessaacuterio com base em conhecimentos jaacute comprovados ou mesmo sugerir procedimentos que alongam indefinidamente os periacuteodos de intervenccedilatildeo Cf BERLINGUER Giovanni Bioeacutetica Cotidiana Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2004 p 147-148

38 Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia op cit p 159-179

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de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees tendo em conta que a teoria de haacute muito jaacute advertiu1 e a experiecircncia jaacute nos ensinou como adiante se veraacute que a ausecircncia de limites pode levar ao abuso

Embora isso possa ocorrer em vaacuterios campos como vg a economia e a poliacutetica sem duacutevida a aacuterea biomeacutedica eacute uma das que mais merecem nossa atenccedilatildeo natildeo soacute porque estaacute entre as mais influenciadas por essas transformaccedilotildees mas tambeacutem porque eacute uma das que mais tem potencial de desenvolvimento aleacutem do fato oacutebvio de estar diretamente ligada agrave vida humana Exatamente por isso cresce a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave vida especialmente a Medicina40

O acreacutescimo jaacute obtido na expectativa de vida do Homem que praticamente dobrou nos uacuteltimos dois seacuteculos decorrente de vaacuterios fatores dentre os quais uma verdadeira revoluccedilatildeo terapecircutica41 natildeo eacute suficiente As pessoas querem viver ainda mais e com melhor qualidade Por isso cobram mais avanccedilos tecnoloacutegicos nessa aacuterea despertando interesses diversos que vatildeo dos humanitaacuterios aos puramente comerciais e econocircmicos Chega-se a se falar ateacute mesmo em um direito agrave pesquisa que deve figurar entre as liberdades fundamentais unanimemente reconhecidas42

Para que esses desejos se tornem viaacuteveis eacute preciso conhecer cada vez mais profundamente a complexa maacutequina que eacute o corpo humano desenvolver novos faacutermacos medicamentos vacinas e terapias para combater doenccedilas descobrir a fonte da juventude atraveacutes de meacutetodos de desaceleraccedilatildeo - ou quiccedilaacute interrupccedilatildeo - da degeneraccedilatildeo celular dentre outras possibilidades e desafios

Por exemplo eacute conhecida nos meios juriacutedicos a passagem que adverte () mas trata-se de uma experiecircncia eterna que todo homem que possui poder eacute levado a dele abusar ele vai ateacute onde encontra limites Quem diria Ateacute a virtude precisa de limites MONTESQUIEU Charles de Secondat op cit p 170

40 Natildeo eacute agrave toa portanto que em interessante estudo sobre as exigecircncias referentes aos aspectos eacuteticos da pesquisa em revistas cientiacuteficas brasileiras se chegou agrave conclusatildeo de que As revistas de medicina e enfermagem apresentaram maior preocupaccedilatildeo com as orientaccedilotildees eacuteticas do que as revistas natildeo-meacutedicas classificadas nos grupos de miscelecircncia e odontologia sugerindo que o debate eacutetico da experimentaccedilatildeo em seres humanos estaacute mais difundido nas aacutereas meacutedica e de enfermagem do que em outras aacutereas da sauacutede Tal no entanto natildeo representa necessariamente um dado a ser festejado pois o resultado global comprovou que 791 das revistas cientiacuteficas estudadas natildeo fazem qualquer referecircncia aos aspectos eacuteticos Cf T SARDENBERG S S MUumlLLER H R PEREIRA R A DE OLIVEIRA W S HOSSNE Anaacutelise dos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos contidos nas Instruccedilotildees aos Autores de 139 rev istas cientiacuteficas brasileiras Revista da Associaccedilatildeo Meacutedica do Brasil v 45 n 4 p 295-302 1999

41 Sobre a chamada revoluccedilatildeo terapecircutica vide dentre outros BERNARD Jean La Bioeacutethique Paris Dominos Flammarion 1994 p 14-33

42 Conforme LAFON Claudc De la Biologie agrave Ia Bioeacutethique Paris Ellipses 2006 p 30

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A concretizaccedilatildeo desses objetivos depende de inuacutemeros fatores ligados agrave pesquisa cientiacutefica43 dentre os quais um que eacute o ponto central deste trabalho a experimentaccedilatildeo em seres humanos De fato o progresso do nosso conhecimento no passado e no futuro estaacute intimamente ligado agrave necessidade de observaccedilatildeo do funcionamento e da reaccedilatildeo do corpo e da mente humanas44

Em outras palavras eacute preciso tomar o ser humano como sujeito de pesquisa45

Esse fato bom que se diga natildeo eacute exatamente novo tem ocorrido no correr dos tempos suscitando questotildees eacuteticas de suma relevacircncia pois nem sempre as pessoas estudadas tiveram o trato adequado

A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda Guerra mormente as realizadas pelos japoneses e nazistas alematildees tais como a infestaccedilatildeo de prisioneiros com doenccedilas para testar vacinas e a esterilizaccedilatildeo e amputaccedilatildeo de membros46 trouxeram agrave tona a questatildeo da

43 A discussatildeo a respeito das pesquisas natildeo pode se limitar agravequelas de natureza meacutedica e farmacoloacutegica onde os impactos e riscos satildeo maiores e mais perceptiacuteveis E ampla a definiccedilatildeo de pesquisas em seres humanos adotada pela Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede conforme adiante se veraacute Leonard M Martin C Ss R preleciona O documento pretende regulamentar toda pesquisa em seres humanos e natildeo apenas pesquisas puramente biomeacutedicas Nesta perspectiva pesquisas socioloacutegicas e antropoloacutegicas tambeacutem devem passar pelo crivo de Comitecircs de Eacutetica independentes e ser alvo de discussatildeo sobre sua eticidade MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

44 O efeito de um tratamento sobre o homem soacute pode ser observado no proacuteprio homem Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

45 Esse fenocircmeno ocorre em todas as aacutereas do conhecimento e natildeo apenas nas ciecircncias biomeacutedicas Na realidade quando se fala em experimentaccedilatildeo com seres humanos pensa-se quase que exclusivamente na experimentaccedilatildeo no campo da Medicina Essa vinculaccedilatildeo eacute compreensiacutevel pois a experimentaccedilatildeo na aacuterea meacutedica eacute mais visiacutevel e de efeitos mais patentes em geral Contudo eacute bom assinalar que seres humanos satildeo utilizados em experimentaccedilatildeo por profissionais e cientistas de outras aacutereas odontoacutelogos nutricionistas farmacecircuticos fisioterapeutas psicoacutelogos profissionais da aacuterea de educaccedilatildeo fiacutesica e de esporte educadores e tambeacutem economistas Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179 Leonard M Martin C Ss R com base em McNeill e Jonsen destaca que [] as experiecircncias antieacuteticas dos nazistas incluiacuteram colocar prisioneiros em cacircmaras de pressatildeo modificar a pressatildeo atmosfeacuterica e observar suas mortes estudar o impacto sobre o corpo humano de imersatildeo em aacutegua gelada por periacuteodos prolongados infectar os internos com tifo malaacuteria e outras doenccedilas para testar drogas e vacinas esterilizaccedilatildeo e castraccedilatildeo procurando meacutetodos eficazes para esterilizaccedilatildeo em massa administrar venenos para estudar os efeitos letais e estudos com gecircmeos tipo infectando um matando os dois e comparando os corpos em autoacutepsia No atinente a experiecircncias japonesas MARTIN informa que no ala de desenvolver armas bioloacutegicas [] os japoneses atacaram pelo menos onze cidades com armas bioloacutegicas e infestaram uma cidade com pulgas portadores da peste bubocircnica A Unidade 731 tambeacutem era uma prisatildeo onde os prisioneiros foram submetidos a experiecircncias desumanas Houve cirurgia experimentais pessoas foram desidratadas ateacute a morrer alguns tiveram braccedilos congelados e depois degelados usando vaacuterios meacutetodos com a consequumlecircncia de que a carne apodreceu e caiu o fiacutegado de outras pessoas foi exposto por longos

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eacutetica na pesquisa evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana47 e de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa em seres humanos48

Como resposta agraves atrocidades praticadas na Segunda Guerra foi instituiacutedo em 1947 no acircmbito internacional pelo Tribunal de Nuremberg que julgou vinte e trecircs criminosos de guerra nazistas dos quais vinte meacutedicos ligados agrave experimentaccedilatildeo em pessoas49 o denominado Coacutedigo de Nuremberg o qual estabeleceu as diretrizes gerais para pesquisa em seres humanos A doutrina destaca como principais conquistas do coacutedigo o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa em retirar-se do experimento e de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias deste bem como a necessidade de estudos preacutevios sobre a importacircncia da pesquisa e os seus riscos aleacutem da comprovaccedilatildeo da capacidade dos pesquisadores50

Um ano depois a humanidade assiste agrave proclamaccedilatildeo agora pela Assembleacuteia Geral das Naccedilotildees Unidas de um outro documento de suma importacircncia a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos que embora de caraacuteter geral alberga

periacuteodos ao raio-X houve casos do sangue da pessoa ser substituiacutedo por sangue de cavalo e quando as cobaias humanas natildeo serviam mais para as experiecircncias foram executadas O autor ainda ressalta que diferentemente dos alematildees que foram condenados alguns inclusive enforcados os americanos resolveram poupar os japoneses permitindo que continuassem suas carreiras MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

4 Haacute quem afirme - sem razatildeo ao nosso ver - que a dignidade eacute um conceito inuacutetil um mero slogan e que natildeo significaria mais do que o respeito pelas pessoas e por sua autonomia Nesse sentido vide vg MACKLIN Ruth Dignity is a useless concept Brilish Medica Journal v 327 p 20-27 dez 2003 Disponiacutevel em lthttpbmjbmjjournalscomcgicontentfull3277429l419gt Aacessado em 27 maio de 2006 Em sentido inverso sobre as relaccedilotildees entre a Bioeacutetica e a dignidade vide dentre outros ADORNO Roberto La bioegravetique et la dignitegrave de Ia persone Paris Presses Universitaires de France 1997 Os documentos internacionais mencionam o elo entre Bioeacutetica e dignidade A jaacute mencionada Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten por exemplo afirma textualmente que A pesquisa e experiecircncia com seres humanos devem ser realizadas harmonizando a liberdade da ciecircncia e o respeito da dignidade humana

48 A experimentaccedilatildeo em seres humanos causa impacto porque as pessoas temem o abuso Os abusos jaacute ocorreram estatildeo ocorrendo c ainda ocorreratildeo mas proibir o uso natildeo eacute a melhor maneira de impedir o abuso Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

49 Estima-se que centenas de meacutedicos atuaram nos campos de concentraccedilatildeo dos quais pelo menos setenta teriam participado de experimentos com seres humanos A maioria dos meacutedicos de maior expressatildeo conseguiram escapar do julgamento como foi o caso de Josef Mengele principal meacutedico do campo de extermiacutenio de Auschwitz que fugiu e chegou a viver 14 anos no Brasil onde morreu afogado em Bertioga em 1979 O julgamento levou oito meses As sentenccedilas e o Coacutedigo de Nuremberg foram anunciados conjuntamente em 19 de agosto de 1947 Sete acusados foram condenados agrave morte Cf CREMESP Diretrizes e Declaraccedilotildees Disponiacutevel em lthttpvwvbiocticaorgbrlegislacaooutras_diretrizesintegraphpgt Acessado em 30 maio 2006 Discute-se hoje a validade cientiacutefica dos experimentos realizados bem como se eacute eacutetico utilizar os resultados obtidos Nesse sentido vide mateacuteria intitulada Doutores da agonia publicada na revista Superinteressante ed 225 abr2006 p 52-61

50 Cf FREITAS Corina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 195

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direitos que natildeo podem ser olvidados quando da experimentaccedilatildeo com seres humanos a exemplo da dignidade da igualdade e da liberdade Aleacutem disso haacute diversas ligaccedilotildees entre a Declaraccedilatildeo e os princiacutepios da Bioeacutetica51

Assim como a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos o Coacutedigo de Nuremberg proclama criteacuterios princiacutepios miacutenimos e irredutiacuteveis para eticidade da pesquisa em seres humanos Ambas as declaraccedilotildees embora de grande importacircncia para a Bioeacutetica satildeo normalmente entendidas como desprovidas de instrumentos adequados de obrigatoriedade52 e de mecanismos sancionatoacuterios de modo que sua infraccedilatildeo na maioria dos casos tem gerado apenas sanccedilotildees morais

Natildeo-obstante o estabelecido no Coacutedigo de Nuremberg - e na Declaraccedilatildeo Universal - as violaccedilotildees continuaram a ocorrer inclusive nos paiacuteses signataacuterios De fato por exemplo nos Estados Unidos teve continuidade como se nada houvesse acontecido a famosa pesquisa sobre siacutefilis em Tuskegee no condado de Macon Alabama financiada com recursos federais onde especialmente negros e pobres acreditavam que estavam se submetendo a um tratamento especial gratuito quando na verdade nada recebiam embora jaacute houvesse medicamentos disponiacuteveis servindo como verdadeiras cobaias entre 1932 e 1973 para que os pesquisadores pudessem acompanhar o desenvolvimento da doenccedila1 Ainda exemplificativamente foi iniciado em 1946 o chamado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm um dos mais famosos e importantes estudos de odontologia jaacute realizados no qual mais de 436 deficientes mentais crocircnicos internos da cidade de Lund no sul da Sueacutecia que natildeo tinham sequer a menor consciecircncia do que ocorria foram submetidos ateacute 1951 a uma dieta especial rica em accediluacutecar para provar que esta substacircncia provocava caacuteries sem que lhes fosse dado qualquer tratamento54

Por exemplo ao afirmar no seu art 1deg que todas pessoas satildeo dotadas de razatildeo e consciecircncia o documento da ONU reforccedila a ideacuteia de autonomia

52 Em relaccedilatildeo agrave Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Faacutebio Konder Comparato afirma que embora seja tecnicamente apenas uma recomendaccedilatildeo da ONU a seus membros os direitos ali definidos correspondem integralmente ao que o costume e os princiacutepios juriacutedicos internacionais reconhecem hoje como normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens) como a proacutepria Corte Internacional de Justiccedila tem entendido COMPARATO Faacutebio Konder A afirmaccedilatildeo histoacuterica dos Direitos Humanos 4 ed rev e atual Satildeo Paulo Saraiva 2005 p 223-224

53 Vide vg a respeito REVERBY S M More than Fact and Fiction Cultural Memory and the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 31 p 22-28 2001 BRANDT A M Racism and Research The Case of the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 8 p 21-29 1978 BEECHER H K Ethics and Clinicai Research New England Journal of Medicine n 274 p 1354-1360 1966

54 Cf SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas clinicas sobre seus direitos 2005 p 55-61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

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Os avanccedilos tecnoloacutegicos cada vez mais raacutepidos reverberaram nas questotildees eacuteticas forccedilando novas e perioacutedicas revisotildees Necessaacuterio se fez portanto a rediscussatildeo do tema e o aprimoramento do sistema normativo Assim sobreveio a Declaraccedilatildeo de Helsinque elaborada pela Associaccedilatildeo Meacutedica Mundial em 1964 texto que foi revisto e ampliado em 1975 (Toacutequio)55 1983 (Veneza) 1989 (Hong Kong) 1996 (Somerset) e 2000 (Edimburgo) com o que foram incorporadas vaacuterias inovaccedilotildees Por exemplo a disposiccedilatildeo no sentido de que No final do estudo todos os pacientes participantes devem ter assegurado o acesso aos melhores meacutetodos comprovados profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos identificados pelo estudo E no atinente ao uso de placebo que Os benefiacutecios riscos dificuldades e efetividade de um novo meacutetodo devem ser testados comparando-os com os melhores meacutetodos profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos atuais Isto natildeo exclui o uso de placebo ou nenhum tratamento em estudo onde existam meacutetodos provados de profiacutelaxia diagnoacutestico e tratamento 56 Foi tambeacutem reforccedilada a recomendaccedilatildeo do Coacutedigo de Nuremberg sobre a necessidade de submissatildeo do protocolo de pesquisa agrave anaacutelise por um Comitecirc de Eacutetica independente do pesquisador

Outros textos e documentos que tratam da pesquisa merecem referecircncia como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos de 196657 o intitulado Diretrizes Internacionais para a pesquisa biomeacutedica em seres humanos elaborado conjuntamente pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e pelo Council for International Organizations of Medicai Sciences (1993) a Declaraccedilatildeo de Manila (1981) a Declaraccedilatildeo de Princiacutepios Eacuteticos dos Meacutedicos do Mercosul (1996) a Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten (2000) e a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da Unesco (2005)

Em que pese o entendimento de que haacute carecircncia de instrumentos imperativos que garantam a exigibilidade dos referidos documentos sem duacutevida eles

A respeito Leo Pessini e Christian de Paul Barehifontaine ensinam que Tal modificaccedilatildeo fieou conhecida como Helsinque II Entre outros pontos importantes foram incluiacutedos nesta revisatildeo os seguintes aspectos I) Exigecircncia de que o protocolo experimental seja aprovado por uma comissatildeo independente para efeito de apreciaccedilatildeo comentaacuterios e orientaccedilatildeo (item I 2) 2) Que os seres humanos natildeo sejam utilizados em pesquisas a menos que o consentimento consciente do paciente dado livremente tenha sido obtido depois do mesmo ter sido adequadamente informado sobre os objetivos meacutetodos benefiacutecios esperados riscos potenciais e inconvenientes da experimentaccedilatildeo e que ele tenha liberdade de se abster e de cancelar sua participaccedilatildeo a qualquer momento (art I 9) 3) Que o protocolo contenha embasamento eacutetico da pesquisa e a referecircncia de que foram obedecidos os princiacutepios da Declaraccedilatildeo de Helsinque (item I 12) 4) Que os interesses da ciecircncia e da sociedade jamais tenham precedecircncia sobre o bem-estar do indiviacuteduo (item III 4) PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Problemas aluais de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1994 p 131

56 GRECO Dirceu B Poder e injusticcedila na pesquisa envolvendo seres humanos In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 264

57 De acordo com o seu art 7o Ningueacutem poderaacute ser submetido a tortura nem a penas ou tratamentos crueacuteis desumanos ou degradantes Seraacute proibido sobretudo submeter uma pessoa sem seu livre consentimento a experiecircncias meacutedicas ou cientiacuteficas

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contribuiacuteram e contribuem significativamente na proteccedilatildeo ao ser humano objeto de pesquisa pois influenciaram a elaboraccedilatildeo de diretrizes vinculantes no plano individual de cada Estado a exemplo do Brasil como a seguir veremos Por outro lado importante anotar que uma harmonia consensual e global no atinente agrave pesquisa parece impossiacutevel tendo em conta que a cultura os objetivos e as condiccedilotildees cientiacuteficas dos diversos paiacuteses satildeo naturalmente diversificados58 Aliaacutes haacute quem chegue a afirmar que o pluralismo eacutetico em vigor nos dias de hoje natildeo nos permite mais falar em moral universal59

No Brasil a normatizaccedilatildeo se daacute principalmente atraveacutes de resoluccedilotildees do Conselho Federal de Medicina60 e do Conselho Nacional de Sauacutede Aliaacutes a primeira resoluccedilatildeo deste uacuteltimo oacutergatildeo - Resoluccedilatildeo n 01 de 13 de junho de 1988 - tratou justamente de normas de pesquisa em sauacutede tendo dedicado o seu Capiacutetulo II arts 4o a 16 aos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos Esse diploma legal foi posteriormente revogado pela Resoluccedilatildeo n 196 de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Sauacutede que eacute atualmente a base regulamentar da pesquisa no Brasil tratando das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos Esta Resoluccedilatildeo eacute na verdade uma revisatildeo da anterior tendo sido precedida de diaacutelogo entre governo e sociedade civil61

A Resoluccedilatildeo atual afirma jaacute em seu preacircmbulo a sua fundamentaccedilatildeo nos principais documentos internacionais que emanaram declaraccedilotildees e diretrizes sobre

58 Nesse contexto por tanto deve ser considerada a questatildeo do multicuturalismo Como bem ensinam Joseacute A Mainetti Joseacute L Mainettil Existen dificultades en la aplicacioacuten de los principos elaborados por los paiacuteses centrales y es una evidencia por ejemplo que resulta inapropiada la visioacuten estrccha de la autonomia y la aplicacioacuten riacutegida dei requisito dei consentimento informado al modo norteamericano en determinadas circunstancias y comunidades Es preciso entoces reconocer Ias diferenccedilas culturales y en base a eacutestas aplicar los princiacutepios sin renunciar a cllos en formas maacutes adecuadas al ethos particular MAINETTI Joseacute A MAINETTI Joseacute L Bioeacutetica y la experimentacioacuten humana In SOROKIN Patriacutecia (Coord) Bioeacutelica entre utopias y desarraigos Buenos Aires Ad-Hoc Villela 2002 p 190

59 Cf ENGELHARDT JUacuteNIOR Tristam apuei BAUZON Steacutephane La personne biojuridique Paris Press Universitaires de France 2006 p 63

60 Vide como exemplo a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro o qual no seu Capiacutetulo XII trata especificamente da pesquisa meacutedica

61 Cf FREITAS Corina Bontempo Duca de Eacutetica na pesquisa com seres humanos A experiecircncia brasileira In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutelica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 307

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pesquisas que envolvem seres humanos62 e que visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito agrave comunidade cientiacutefica aos sujeitos da pesquisa e ao Estado

Aleacutem disso vinculou a experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da principiologia da Bioeacutetica seja no preacircmbulo onde afirma que incorpora sob a oacutetica do indiviacuteduo e das coletividades os quatro referenciais baacutesicos da Bioeacutetica autonomia natildeo-maleficecircncia beneficecircncia e justiccedila entre outros seja no seu item III 1 que versa sobre a eticidade na pesquisa63

Entre as suas disposiccedilotildees encontramos definiccedilotildees de diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica pesquisa64 pesquisa envolvendo seres humanos65

protocolo de pesquisa66 pesquisador responsaacutevel67 instituiccedilatildeo de pesquisa68 promotor69

patrocinador70 risco da pesquisa71 dano associado ou decorrente da pesquisa72 sujeito da

62 Cila a Resoluccedilatildeo os seguintes documentos o Coacutedigo de Nuremberg (1947) a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem (1948) a Declaraccedilatildeo de Helsinque (1964 e suas versotildees posteriores de 1975 1983 e 1989) o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Poliacuteticos (ONU 1966 aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1992) as Propostas de Diretrizes Eacuteticas Internacionais para Pesquisas Biomeacutedicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMSOMS 1982 e 1993) e as Diretrizes Internacionais para Revisatildeo Eacutetica de Estudos Epidemioloacutegicos (C10MS 1991) III1 - A eticidade da pesquisa implica em a) consentimento livre e esclarecido dos indiviacuteduos-alvo e a proteccedilatildeo a grupos vulneraacuteveis e aos legalmente incapazes (autonomia) Neste sentido a pesquisa envolvendo seres humanos deveraacute sempre trataacute-los em sua dignidade respeitaacute-los em sua autonomia e defendecirc-los em sua vulnerabilidade b) ponderaccedilatildeo entre riscos e benefiacutecios tanto atuais como potenciais individuais ou coletivos (beneficecircncia) comprometendo-se com o maacuteximo de benefiacutecios e o miacutenimo de danos e riscos c) garantia de que danos previsiacuteveis seratildeo evitados (natildeo maleficecircncia)- d) relevacircncia social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimizaccedilatildeo do ocircnus para os sujeitos vulneraacuteveis o que garante a igual consideraccedilatildeo dos interesses envolvidos natildeo perdendo o sentido de sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria (justiccedila e equumlidade) (negritos originais)

64 111 Pesquisa classe de atividades cujo objetivo eacute desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizaacutevel O conhecimento generalizaacutevel consiste em teorias relaccedilotildees ou princiacutepios ou no acuacutemulo de informaccedilotildees sobre as quais estatildeo baseados que possam ser corroborados por meacutetodos cientiacuteficos aceitos de observaccedilatildeo e infercncia

65 112 Pesquisa envolvendo seres humanos pesquisa que individual ou coletivamente envolva o ser humano de forma direta ou indireta em sua totalidade ou partes dele incluindo o manejo de informaccedilotildees ou materiais

66 II3 Protocolo de Pesquisa Documento contemplando a descriccedilatildeo da pesquisa em seus aspectos fundamentais informaccedilotildees relativas ao sujeito da pesquisa agrave qualificaccedilatildeo dos pesquisadores e a todas as instacircncias responsaacuteveis

67 II-4 Pesquisador responsaacutevel pessoa responsaacutevel pela coordenaccedilatildeo e realizaccedilatildeo da pesquisa e pela integridade e bem-estar dos sujeitos da pesquisa

68 II5 - Instituiccedilatildeo de pesquisa - organizaccedilatildeo puacuteblica ou privada legitimamente constituiacuteda e habilitada na qual satildeo realizadas investigaccedilotildees cientiacuteficas

69 116 - Promotor - indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo responsaacutevel pela promoccedilatildeo da pesquisa 70 II7 - Patrocinador - pessoa fiacutesica ou juriacutedica que apoia financeiramente a pesquisa 71 II8 Risco da pesquisa - possibilidade de danos agrave dimensatildeo fiacutesica psiacutequica moral intelectual social

cultural ou espiritual do ser humano em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente II9 Dano associado ou decorrente da pesquisa agravo imediato ou tardio ao indiviacuteduo ou agrave coletividade com nexo causai comprovado direto ou indireto decorrente do estudo cientiacutefico

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pesquisa73 consentimento livre e esclarecido74 indenizaccedilatildeo75 ressarcimento6 Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (CEP)77 vulnerabilidade78 e incapacidade79

A Resoluccedilatildeo regulamentou os Comitecircs de Eacutetica e Pesquisa - CEPs80 em cujas funccedilotildees81 destaca-se a apreciaccedilatildeo do protocolo da pesquisa em todas as suas especificidades o que foi um grande passo no sentido da construccedilatildeo de padrotildees eacuteticos82

Haacute requisitos para a instituiccedilatildeo dos Comitecircs principalmente no atinente agrave sua composiccedilatildeo83

1110 Sujeito da pesquisa eacute o(a) participante pesquisado(a) individual ou coletivamente de caraacuteter voluntaacuterio vedada qualquer forma de remuneraccedilatildeo IIII Consentimento livre e esclarecido anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal livre de viacutecios (simulaccedilatildeo fraude ou erro) dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar formulada em um termo de consentimento autorizando sua participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa 1112 - Indenizaccedilatildeo - cobertura material em reparaccedilatildeo a dano imediato ou tardio causado pela pesquisa ao ser humano a ela submetida 1113 Ressarcimento - cobertura em compensaccedilatildeo exclusiva de despesas decorrentes da participaccedilatildeo do sujeito na pesquisa 1114 - Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa-CEP - colegiados interdisciplinares e independentes com munus puacuteblico de caraacuteter consultivo deliberativo e educativo criados para defender os interesses dos sujeitos da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrotildees eacuteticos 1115 Vulnerabilidade refere-se a estado de pessoas ou grupos que por quaisquer razotildees ou motivos tenham a sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido 1116 - Incapacidade - Refere-se ao possiacutevel sujeito da pesquisa que natildeo tenha capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido devendo ser assistido ou representado de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira vigente O CEP pode ser entendido como um oacutergatildeo controlador da pesquisa por um lado mas por outro eacute tambeacutem um oacutergatildeo que ajuda a harmonizar diversos interesses que como vimos podem ser os mais diversos e agraves vezes ateacute conflitantes Cf PALAacuteCIOS Marisa Eacutetica na pesquisa - 1 Eacutetica em pesquisa em seres humanos In PALAacuteCIOS Marisa MARTINS Andreacute PEGORARO Olinto A (Orgs) Eacutetica ciecircncia e sauacutede humana Petroacutepolis Vozes 2001 p 74 Satildeo atribuiccedilotildees conferidas pela Resoluccedilatildeo aos CEPs a) revisar todos os protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos b) emitir parecer consubstanciado por escrito c) manter a guarda confidencial de todos os dados obtidos na execuccedilatildeo de sua tarefa e arquivamento do protocolo completo que ficaraacute agrave disposiccedilatildeo das autoridades sanitaacuterias d) acompanhar o desenvolvimento dos projetos atraveacutes de relatoacuterios anuais dos pesquisadores e) desempenhar papel consultivo e educativo 0 receber dos sujeitos da pesquisa ou de qualquer outra parte denuacutencias de abusos ou notificaccedilatildeo sobre fatos adversos que possam alterar o curso normal do estudo decidindo pela continuidade modificaccedilatildeo ou suspensatildeo da pesquisa devendo se necessaacuterio adequar o termo de consentimento considerando-se anti-eacutetica a pesquisa descontinuada sem justificativa aceita pelo CEP que a aprovou g) requerer instauraccedilatildeo de sindicacircncia agrave direccedilatildeo da instituiccedilatildeo em caso de denuacutencias de irregularidades de natureza eacutetica nas pesquisas e em havendo comprovaccedilatildeo comunicar agrave Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa CONEPMS e no que couber a outras instacircncias e h) manter comunicaccedilatildeo regular e permanente com a CONEPMS A existecircncia de oacutergatildeos com a funccedilatildeo de aprovar e acompanhar pesquisas jaacute era preconizada por exemplo pelo Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988) cujo art 127 veda ao

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Foi mais aleacutem a Resoluccedilatildeo que de modo inovador reforccedilou o controle eacutetico e a defesa da dignidade da pessoa humana com a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa - CONEP84 que atua na direccedilatildeo e orientaccedilatildeo dos comitecircs8S A comissatildeo de acordo com a Resoluccedilatildeo eacute uma instacircncia colegiada de natureza consultiva deliberativa normativa independente vinculada ao Conselho Nacional de Sauacutede86 Essa vinculaccedilatildeo eacute bastante positiva posto que a alternativa de submetecirc-la a outros oacutergatildeos poderia dar ensejo a uma indesejada politizaccedilatildeo dos seus membros o que seria capaz de terminar por afetar a sua autonomia

meacutedico Realizar pesquisa meacutedica em ser humano sem submeter o protocolo a aprovaccedilatildeo e acompanhamento de comissatildeo isenta de qualquer dependecircncia em relaccedilatildeo ao pesquisador O colegiado com nuacutemero natildeo inferior a 7 (sete) membros deve ser multidisciplinar abrangendo profissionais idocircneos e de distinta formaccedilatildeo da aacuterea de sauacutede e das ciecircncias exatas sociais e humanas incluindo por exemplo juristas teoacutelogos socioacutelogos filoacutesofos bioeticistas aleacutem de membros da sociedade e obrigatoriamente pelo menos um membro representando os usuaacuterios Se a pesquisa envolver grupos vulneraacuteveis comunidades e coletividades um dos seus representantes deveraacute ser convidado para participar como membro ad hoc do CEP da anaacutelise do projeto especiacutefico Assim o CEP ainda segundo a Resoluccedilatildeo teraacute sempre um caraacuteter multi e transdisciplinar sendo vedado que mais que metade de seus membros pertenccedilam a uma mesma categoria profissional devendo ainda participarem pessoas dos dois sexos Satildeo permitidos consultores ad hoc pessoas que pertencem ou natildeo aacute instituiccedilatildeo com o objetivo de fornecer subsiacutedios teacutecnicos Merece ainda atenccedilatildeo especial a autonomia do comitecirc cuja manifestaccedilatildeo deve ser totalmente autocircnoma e imaculada de coaccedilotildees ou pressotildees dos interessados A autonomia e a independecircncia satildeo condiccedilotildees sine qua non para a desejada eficaacutecia dos comitecircs que felizmente estatildeo se proliferando em nosso paiacutes Conforme informaccedilotildees do site da CONEP satildeo 446 CEPs aprovados no Brasil ateacute janeiro de 2006 Disponiacutevel em lthttpoonselhosaudegovbrcomissaoconep2006ceps20APROVADOSxlsgt Acessado em 04 jun 2006 A Comissatildeo tem 13 membros titulares e o mesmo nuacutemero de suplentes em uma composiccedilatildeo que tambeacutem deveraacute ser multi e transdisciplinar com pessoas de ambos os sexos Dentre os seus membros 05 (cinco) devem ser personalidades destacadas no campo da eacutetica na pesquisa e na sauacutede e 08 (oito) devem ser personalidades com destacada atuaccedilatildeo nos campos teoloacutegico juriacutedico e outros assegurando-se que pelo menos um seja da aacuterea de gestatildeo da sauacutede Embora natildeo desconheccedilamos a importacircncia das religiotildees na formaccedilatildeo do pensamento eacutetico humano e sem querer desmerecer as pessoas que nelas militam no mais das vezes com accedilotildees de destacada importacircncia pensamos que eacute inadequada em um Estado laico como o nosso a destinaccedilacirco de vaga ou de vagas especificamente a pessoas do campo teleoloacutegico Essa observaccedilatildeo imperioso demarcar natildeo eacute no sentido de entender que a contribuiccedilatildeo dessas pessoas eacute desnecessaacuteria ou inconveniente Pelo contraacuterio Poreacutem a desejada participaccedilatildeo jaacute poderia ser levada a efeito incluindo-as no grupo de personalidades com atuaccedilatildeo de destaque na esfera da eacutetica na pesquisa e na sauacutede sem necessidade de vinculaccedilatildeo necessaacuteria ao pensamento religioso Isso ateacute mesmo para preservar o pluralismo e a igualdade jaacute que obviamente natildeo seraacute possiacutevel oferecer a cada religiatildeo uma vaga Os membros da Comissatildeo satildeo recrutados a partir de indicaccedilotildees contidas em listas elaboradas pelas instituiccedilotildees que possuem CEP registrado na CONEP sendo que 07 (sete) satildeo escolhidos pelo Conselho Nacional de Sauacutede e 06 (seis) satildeo definidos por sorteio Tambeacutem pode contar com consultores e membros ad hoc sendo assegurada a representaccedilatildeo dos usuaacuterios O mandato eacute de quatro anos com renovaccedilatildeo alternada a cada dois anos de sete ou seis de seus membros A CONEP tem tambeacutem um papel coordenador da rede de Comitecircs institucionais aleacutem de se constituir em oacutergatildeo consultor na aacuterea eacutetica em pesquisa Num primeiro momento tem ainda a atribuiccedilatildeo de apreciar os projetos de pesquisas de aacutereas temaacuteticas especiais enviadas pelos CFPs ou seja projetos que contemplam aacutereas com maiores dilemas eacuteticos e grande repercussatildeo social ateacute que se acumulem experiecircncias para elaboraccedilatildeo de normas especiacuteficas complementares agraves existentes Cf FREITAS Carolina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA

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Outros aspectos da Resoluccedilatildeo que merecem especial destaque para o nosso estudo satildeo os relativos ao consentimento livre e esclarecido agrave vulnerabilidade e agrave incapacidade

Como jaacute dito um dos principais pontos da Declaraccedilatildeo de Nuremberg foi o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias A Resoluccedilatildeo tratou do tema exigindo a anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar87 A anuecircncia deve ser expressa atraveacutes de

Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 202

S6 Segundo a Resoluccedilatildeo compete agrave CONEP examinar os aspectos eacuteticos da pesquisa envolvendo seres humanos assim como a adequaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo das normas atinentes consultando a sociedade sempre que julgar necessaacuterio cabendo-lhe entre outras as seguintes atribuiccedilotildees a) estimular a criaccedilatildeo de CEPs institucionais e de outras instacircncias b) registrar os CEPs institucionais e de outras instacircncias c) aprovar no prazo de 60 dias e acompanhar os protocolos de pesquisa em aacutereas temaacuteticas especiais tais como geneacutetica humana reproduccedilatildeo humana faacutermacos medicamentos vacinas e testes diagnoacutesticos novos (fases I II e III) ou natildeo registrados no pais (ainda que fase IV) ou quando a pesquisa for referente a seu uso com modalidades indicaccedilotildees doses ou vias de administraccedilatildeo diferentes daquelas estabelecidas incluindo seu emprego em combinaccedilotildees equipamentos insumos e dispositivos para a sauacutede novos ou natildeo registrados no paiacutes novos procedimentos ainda natildeo consagrados na literatura populaccedilotildees indiacutegenas projetos que envolvam aspectos de biosseguranccedila pesquisas coordenadas do exterior ou com participaccedilatildeo estrangeira c pesquisas que envolvam remessa de material bioloacutegico para o exterior e projetos que a criteacuterio do CEP devidamente justificado sejam julgados merecedores de anaacutelise pela CONEP d) prover normas especiacuteficas no campo da eacutetica em pesquisa inclusive nas aacutereas temaacuteticas especiais bem como recomendaccedilotildees para aplicaccedilatildeo das mesmas e) funcionar como instacircncia final de recursos a partir de informaccedilotildees fornecidas sistematicamente em caraacuteter ex-ofiacutecio ou a partir de denuacutencias ou de solicitaccedilatildeo de partes interessadas devendo manifestar-se em um prazo natildeo superior a 60 (sessenta) dias 0 rever responsabilidades proibir ou interromper pesquisas definitiva ou temporariamente podendo requisitar protocolos para revisatildeo eacutetica inclusive os jaacute aprovados pelo CEP g) constituir um sistema de informaccedilatildeo e acompanhamento dos aspectos eacuteticos das pesquisas envolvendo seres humanos em todo o territoacuterio nacional mantendo atualizados os bancos de dados h) informar e assessorar o MS o CNS e outras instacircncias do SUS bem como do governo e da sociedade sobre questotildees eacuteticas relativas agrave pesquisa em seres humanos i) divulgar esta e outras normas relativas agrave eacutetica em pesquisa envolvendo seres humanos j) juntamente com outros setores do Ministeacuterio da Sauacutede estabelecer normas e criteacuterios para o credenciamento de Centros de Pesquisa e I) estabelecer suas proacuteprias normas de funcionamento

87 No que concerne agrave pesquisa meacutedica a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro estipula no seu art 123 que eacute vedado ao meacutedico Realizar pesquisa em ser humano sem que este tenha dado consentimento por escrito apoacutes devidamente esclarecido sobre a natureza e consequumlecircncia da pesquisa e que Caso o paciente natildeo tenha condiccedilotildees de dar seu livre consentimento a pesquisa somente poderaacute se realizada em seu proacuteprio beneficio apoacutes expressa autorizaccedilatildeo de seu responsaacutevel legal Jaacute a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO no seu art 6 aliacutenea b estabelece que A pesquisa cientiacutefica soacute deve ser realizada com o preacutevio livre expresso e esclarecido consentimento do indiviacuteduo envolvido A informaccedilatildeo deve ser adequada fornecida de uma forma compreensiacutevel e incluir os procedimentos para a retirada do consentimento O consentimento pode ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer hora e por qualquer razatildeo sem acarretar qualquer desvantagem ou preconceito Exceccedilotildees a este princiacutepio somente devem ocorrer quando em conformidade com os padrotildees eacuteticos e legais adotados pelos Estados consistentes com as provisotildees da presente Declaraccedilatildeo particularmente com o art 27 e com os direitos humanos

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em um termo de consentimento onde eacute autorizada a participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa Aleacutem disso natildeo pode estar viciada por simulaccedilatildeo fraude ou erro nem tampouco pode ser obtida por forccedila de uma situaccedilatildeo de dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo

Trata-se de disposiccedilatildeo decorrente da adoccedilatildeo do princiacutepio da autonomia jaacute abordado que se vincula agrave capacidade de autodeterminaccedilatildeo e auto-escolha e pressupotildee dentre outras premissas a capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos possiacuteveis18

Quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de estudo possuem a capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto ao consentimento livre e esclarecido por quaisquer motivos verifica-se uma situaccedilatildeo de vulnerabilidade que natildeo pode ser desconsiderada pelo pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais A preocupaccedilatildeo com a vulnerabilidade dos sujeitos encontra supedacircneo no Coacutedigo de Nuremberg na Declaraccedilatildeo de Helsinque nas Diretrizes Internacionais para Pesquisa Biomeacutedica envolvendo Seres Humanos89 e tambeacutem como jaacute dito na Resoluccedilatildeo 19696 A dificuldade central relacionada a indiviacuteduos e comunidades vulneraacuteveis eacute com a sua capacidade de compreensatildeo (autonomia plena) sobre o experimento e possibilidade de livremente consentir com a pesquisa e quando quiser dela desistir o que justifica todas as preocupaccedilotildees nesse sentido90

Cabe trazer a lume os ensinamentos do professor chileno Fernando Lolas O respeito pela autonomia das pessoas como agentes morais capazes de decisotildees informadas eacute central no diaacutelogo bioeacutetico Somente a permissatildeo outorgada por uma pessoa pode legitimar uma accedilatildeo que a envolva O valor das pessoas eacute incondicional o que obriga a consideraacute-las fins natildeo meios com a liberdade de viver e a de decidir livres de interferecircncias LOLAS Fernando Bioeacutetica o que eacute como se faz Traduccedilatildeo Milton Camargo Mota Satildeo Paulo Loyola 2001 p 63 A Diretriz Internacional para Pesquisa Biomeacutedica afirma Pesquisa envolvendo indiviacuteduos de comunidades sub-desenvolvidas Antes de iniciar a pesquisa em indiviacuteduos de comunidades subdesenvolvidas seja em paiacuteses desenvolvidos ou em desenvolvimento o pesquisador deve estar seguro que As pessoas da comunidade subdesenvolvida natildeo seratildeo ordinariamente envolvidas na pesquisa que possa ser realizada de forma adequada em comunidades desenvolvidas A pesquisa eacute uma resposta agraves necessidades de sauacutede e agraves prioridades da comunidade na qual seraacute realizada todos os esforccedilos seratildeo tomados no sentido de assegurar o imperativo eacutetico de que o consentimento individual dos sujeitos seraacute informado e Os projetos para a pesquisa foram revisados e aprovados por um comitecirc de eacutetica que tenha entre os seus membros ou consultores pessoas que tenham familiaridade com os costumes e tradiccedilotildees da comunidade Em comentaacuterio agraves diretrizes acima Leo Pessini e Christian Paul de Barchifontaine entendem que Quando a experimentaccedilatildeo visa ao estudo de determinadas condiccedilotildees moacuterbidas tais como doenccedilas endecircmicas em comunidades de baixo niacutevel socioeconocircmico eou cultural incapazes de terem uma consciecircncia clara e apropriada das implicaccedilotildees de sua participaccedilatildeo na experiecircncia eacute de bom alvitre que seja obtida a interveniecircncia de um liacuteder em que a coletividade confia Esse intermediaacuterio dever deixar claro que a participaccedilatildeo eacute voluntaacuteria e que qualquer participante tem a liberdade de natildeo aceitar ou abandonar a experiecircncia a qualquer momento op cit p 133

Conforme Marisa Palaacutecios Quando a autonomia dos sujeitos natildeo eacute plena ou seja quando a capacidade de entender as situaccedilotildees que se apresentam ao sujeito e de autodeterminar-se segundo este entendimento estaacute de alguma forma limitada eacute preciso tomar cuidado especial Eacute o caso dos grupos vulneraacuteveis os iacutendios que tecircm a capacidade de entendimento das situaccedilotildees diminuiacuteda uma vez que compotildeem sociedades

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A vulnerabilidade pode assumir as mais variadas vertentes bem como atingir uma determinada pessoa ou um grupo de seres humanos com peculiaridades comuns tais como crianccedilas idosos iacutendios pacientes terminais desempregados deficientes91 presidiaacuterios92 ou outras situaccedilotildees de dependecircncia93

Pode ocorrer que as pessoas que seratildeo estudadas na pesquisa natildeo tenham capacidade civil para dar o seu consentimento Nesse caso se encontram em situaccedilatildeo de incapacidade e a pesquisa soacute pode ser levada adiante com a intervenccedilatildeo de seus representantes legais que de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira deveratildeo assistir ou representar os incapazes Tambeacutem aqui deve o pesquisador cercar-se de cautelas eacuteticas redobradas

Finalmente deve-se louvar a Resoluccedilatildeo por ter explicitado no seu item III3 um rol de 23 (vinte e trecircs) exigecircncias eacuteticas para a pesquisa de qualquer aacuterea do conhecimento que envolva seres humanos94

culturalmente diversas[] Estas para citar algumas populaccedilotildees caracteriacutesticas Satildeo populaccedilotildees que precisam ser especialmente protegidas dada a proacutepria condiccedilatildeo de vulnerabilidade Maria Carolina S Guimaratildees e Sylvia Caiuby Novaes com alento em Hannah Arendt e Cardia definem o ser vulneraacutevel como Algueacutem que possui cidadania fraacutegil que ignora a relevacircncia do direito agrave integridade fiacutesica como condiccedilatildeo de acesso aos direitos sociais econocircmicos poliacuteticos e trabalhistas Dito assim o que parece a primeira condiccedilatildeo para que um ser vulneraacutevel perca tal situaccedilatildeo eacute o investimento do Estado naquilo que constroacutei e constitui a cidadania naqueles atributos que transformam o indiviacuteduo em cidadatildeo que transformam o animal laborans em homem poliacutetico Essa transformaccedilatildeo eacute no dizer de Hannah Arendt um pressuposto da democracia pois permite ao animal laborans ir do reino da necessidade para o reino da liberdade GUIMARAtildeES Maria Carolina S NOVAES Sylvia Caiuby Autonomia reduzida e vulnerabilidade liberdade de decisatildeo diferenccedila e desigualdade Revista Bioeacutetica Brasiacutelia v 7 n 1 p 23 1999

91 Sobre o tema vide COHEN Claacuteudio Bioeacutetica Pesquisa e Deficiecircncia In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 55-62 92 Nem todo ser humano eacute no entanto capaz de autodeterminaccedilatildeo A capacidade de autodeterminaccedilatildeo amadurece ao longo da vida mas pode ser perdida total ou parcialmente por doenccedila velhice ou situaccedilatildeo de restriccedilatildeo severa como a prisatildeo Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 93 O Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de janeiro de 1988) veda ao meacutedico no seu art 128 Realizar pesquisa meacutedica em voluntaacuterios sadios ou-natildeo que tenham direta ou indiretamente dependecircncia ou subordinaccedilatildeo relativamente ao pesquisador 94 I1I3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias a) ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder a incertezas b) estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou em outros fatos cientiacuteficos c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio d) prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis e) obedecer a metodologia adequada Se houver necessidade de distribuiccedilatildeo aleatoacuteria dos sujeitos da pesquisa em grupos experimentais e de controle assegurar que apriori natildeo seja possiacutevel estabelecer as vantagens de um procedimento sobre outro atraveacutes de revisatildeo de literatura meacutetodos observacionais ou meacutetodos que natildeo envolvam seres humanos 0 ter plenamente justificada quando for o caso a utilizaccedilatildeo de placebo em termos de natildeo maleficecircncia e de necessidade metodoloacutegica g) contar com o consentimento livre e esclarecido do sujeito da pesquisa eou seu representante legal h) contar com os recursos humanos e materiais necessaacuterios que garantam o bem-

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5 Teleologia e legitimidade da pesquisa em seres humanos

Toda experimentaccedilatildeo em seres humanos possui um determinado objetivo o qual pode ou-natildeo estar vinculado ao bem estar proacuteprio da pessoa ou grupo observado

Essa situaccedilatildeo natildeo foi esquecida pela Declaraccedilatildeo de Helsinque cujo preacircmbulo afirma Wo campo cia pesquisa biomeacutedica uma distinccedilatildeo fundamental deve ser feita entre a pesquisa meacutedica na qual o objetivo eacute essencialmente o diagnoacutestico ou a terapecircutica para um paciente e a pesquisa meacutedica cujo objeto essencial eacute puramente cientiacutefico e sem um valor direto diagnoacutestico ou terapecircutico para a pessoa sujeita agrave

estar do sujeito da pesquisa devendo ainda haver adequaccedilatildeo entre a competecircncia do pesquisador e o projeto proposto i) prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade a proteccedilatildeo da imagem e a natildeo estigmatizaccedilatildeo garantindo a natildeo utilizaccedilatildeo das informaccedilotildees em prejuiacutezo das pessoas eou das comunidades inclusive em termos de auto-estima de prestiacutegio eou econocircmico - financeiro j) ser desenvolvida preferencialmente cm indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida 1) respeitar sempre os valores culturais sociais morais religiosos e eacuteticos bem como os haacutebitos e costumes quando as pesquisas envolverem comunidades m) garantir que as pesquisas em comunidades sempre que possiacutevel traduzir-se-atildeo em benefiacutecios cujos efeitos continuem a se fazer sentir apoacutes sua conclusatildeo O projeto deve analisar as necessidades de cada um dos membros da comunidade e analisar as diferenccedilas presentes entre eles explicitando como seraacute assegurado o respeito agraves mesmas n) garantir o retomo dos benefiacutecios obtidos atraveacutes das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas Quando no interesse da comunidade houver benefiacutecio real em incentivar ou estimular mudanccedilas de costumes ou comportamentos o protocolo de pesquisa deve incluir sempre que possiacutevel disposiccedilotildees para comunicar tal benefiacutecio agraves pessoas eou comunidades o) comunicar agraves autoridades sanitaacuterias os resultados da pesquisa sempre que os mesmos puderem contribuir para a melhoria das condiccedilotildees de sauacutede da coletividade preservando poreacutem a imagem e assegurando que os sujeitos da pesquisa natildeo sejam estigmatizados ou percam a auto-estima p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefiacutecios resultantes do projeto seja em termos de retorno social acesso aos procedimentos produtos ou agentes da pesquisa q)assegurar aos sujeitos da pesquisa as condiccedilotildees de acompanhamento tratamento ou de orientaccedilatildeo conforme o caso nas pesquisas de rastreamento demonstrar a preponderacircncia de benefiacutecios sobre riscos e custos r) assegurar a inexistecircncia de conflito de interesses entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa ou patrocinador do projeto s) comprovar nas pesquisas conduzidas do exterior ou com cooperaccedilatildeo estrangeira os compromissos e as vantagens para os sujeitos das pesquisas e para o Brasil decorrentes de sua realizaccedilatildeo Nestes casos deve ser identificado o pesquisador e a instituiccedilatildeo nacionais co-responsaacuteveis pela pesquisa O protocolo deveraacute observar as exigecircncias da Declaraccedilatildeo de Helsinque e incluir documento de aprovaccedilatildeo no paiacutes de origem entre os apresentados para avaliaccedilatildeo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa da instituiccedilatildeo brasileira que exigiraacute o cumprimento de seus proacuteprios referenciais eacuteticos Os estudos patrocinados do exterior tambeacutem devem responder agraves necessidades de treinamento de pessoal no Brasil para que o paiacutes possa desenvolver projetos similares de forma independente t) utilizar o material bioloacutegico e os dados obtidos na pesquisa exclusivamente para a finalidade prevista no seu protocolo u) levar em conta nas pesquisas realizadas em mulheres em idade feacutertil ou em mulheres graacutevidas a avaliaccedilatildeo de riscos e benefiacutecios e as eventuais interferecircncias sobre a fertilidade a gravidez o embriatildeo ou o feto o trabalho de parto o puerpeacuterio a lactaccedilatildeo e o receacutem-nascido v) considerar que as pesquisas em mulheres graacutevidas devem ser precedidas de pesquisas em mulheres fora do periacuteodo gestacional exceto quando a gravidez for o objetivo fundamental da pesquisa x) propiciar nos estudos multicecircntricos a participaccedilatildeo dos pesquisadores que desenvolveratildeo a pesquisa na elaboraccedilatildeo do delineamento geral do projeto e z) descontinuar o estudo somente apoacutes anaacutelise das razotildees da descontinuidade pelo CEP que a aprovou

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pesquisa Em outras palavras haacute experimentos em benefiacutecio do paciente e experimentos em benefiacutecio da ciecircncia Ainda no preacircmbulo da Declaraccedilatildeo de Helsinque encontramos que A finalidade da pesquisa meacutedica envolvendo seres humanos deve ser o aperfeiccediloamento do diagnoacutestico procedimentos terapecircuticos e profilaacuteticos e a compreensatildeo da etiologia e da patologia da doenccedila Conjugando essa afirmaccedilatildeo com a anterior podemos extrair que uma determinada pessoa ou populaccedilatildeo pode ser objeto de pesquisa para desvendar doenccedilas que a afligem ou para desnudar as razotildees pelas quais eacute menos suscetiacutevel ou-natildeo eacute atingida por determinada moleacutestia que afeta aos demais seres humanos

A partir dessas observaccedilotildees podemos considerar para os fins do nosso estudo que as experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas teleologicamente em dois grupos a) aquelas cujos objetivos possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas as quais chamaremos de pesquisas com justificativa intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de terceiros as quais denominaremos pesquisas com justificativa extrinseca Temos como exemplo na primeira situaccedilatildeo os experimentos cientiacuteficos para desvendar o porquecirc de uma determinada coletividade ser atingida por taxas elevadas de uma certa doenccedila e na segunda uma pesquisa para revelar as razotildees pelas quais certas pessoas natildeo desenvolvem uma moleacutestia com o objetivo de descobrir uma vacina ou um medicamento para os demais

Entretanto em todo experimento seraacute necessaacuterio averiguar se a justificativa - seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima Isso porque o fato de uma pesquisa ter por objetivo um tratamento mais eficiente ou a cura de certas doenccedilas natildeo legitima por si soacute a utilizaccedilatildeo de pessoas como sujeito de pesquisa mesmo que elas sofram da moleacutestia e possam vir a ser beneficiadas Natildeo se deve perder de vista aliaacutes que se o conhecimento puder ser obtido por outro meio a utilizaccedilatildeo de seres humanos justamente por ser desnecessaacuteria seraacute ilegiacutetima95 Ademais soacute pelo fato de ser intriacutenseca a justificativa natildeo seraacute necessariamente legiacutetima Por outro lado a circunstacircncia isoladamente considerada do eventual resultado da experimentaccedilatildeo ser absolutamente indiferente ao sujeito de pesquisa natildeo torna a sua participaccedilatildeo ilegiacutetima Em outras palavras a justificativa soacute por ser extrinseca natildeo seraacute necessariamente ilegiacutetima

Vale relembrar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 - A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio

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A razatildeo disso reside na afirmaccedilatildeo de que como se sabe desde Kant o Homem deve ser tratado como um fim em si mesmo e natildeo como instrumento De fato eacute em Kant que o Homem ganha status de valor absoluto manifesto no imperativo praacutetico expresso na maacutexima segundo a qual Ages de tal maneira que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio 96

Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

Quando se trata de experimentaccedilatildeo com justificativa intriacutenseca a razatildeo legitimadora pode estar no objetivo de beneficiar os proacuteprios sujeitos da pesquisa algueacutem se submete a uma experimentaccedilatildeo na tentativa de auferir uma vantagem em seu bem-estar fiacutesico ou mental

Jaacute no caso da justificativa extriacutenseca poder-se-ia objetar a realizaccedilatildeo da experimentaccedilatildeo com suposto fundamento na Resoluccedilatildeo 19696 cujo item III 1 letra d vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila Ora se em uma determinada situaccedilatildeo algueacutem participa do experimento sem que haja qualquer possibilidade de benefiacutecio fiacutesico ou mental para si a partir do resultado da pesquisa e considerando que a mesma Resoluccedilatildeo veda qualquer forma de remuneraccedilatildeo do sujeito da pesquisa (item 1110) qual a vantagem significativa que poderaacute essa pessoa auferir para justificar a sua participaccedilatildeo

Ao nosso ver a interpretaccedilatildeo desse ponto da Resoluccedilatildeo natildeo deve ser literal nem assistemaacutetica97 devendo ser considerada a incidecircncia de um outro princiacutepio ainda

Op cit p 69 Em comento a este imperativo Francesca Puigpclat Marti apregoa que La concepcioacuten liberal asocia a esta expresioacuten una idea comuacuten en Ia reflexioacuten eacutetica de raigambre kantiana el hombre es un fin en si mismo un sujeto y no un objeto Seguacuten Kant en el sistema de Ia natureza el hombre (homo phaenomenon animal rationale) es un ser de escasa importancia y tiene con los demaacutes animales en tanto que productos de Ia tierra un precio comuacuten () Ahora bien el hombre considerado como persona es dccir como sujeto de una razoacuten praacutetico-moral estaacute situado por encima de todo precio porque como tal (homo noumenon) no puede valorarse soacutelo como meacutedio para fines ajenos incluso para sus proprios fines sino como fin en siacute mismo es decir posee una dignidad(un valor interno absoluto) gracias a la cual infunde respeto haciacutea eacutel a todos los demaacutes seres racionales dei mundo puede medirse con cualquier otro de esta clase y valorarse en pie de igualdad En la medida en que seguacuten Kant el hombre existe como fin en siacute mismo y no soacutelo como meacutedio para usos cualesquiera de una u otra voluntad se puede formular el siguiente principio praacutetico supremo obra de tal modo que uses la humanidad tanto en tu persona como en la persona de cualquier otro siempre como un fin al mismo tiempo y nunca solamente como un meacutedio MARTIacute Francesca Puigpelat Clonacioacuten dignidad humana y constitucioacuten Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo ano II n 42 janmar p37-64 2003

Natildeo se interpreta o direito em tiras aos pedaccedilos () Um texto de direito isolado destacado desprendido do sistema juriacutedico natildeo expressa significado normativo algum Cf GRAU Eros Roberto Ensaio e

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1213

que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que eacute o da solidariedade Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita entendemos que a sua aplicaccedilatildeo eacute cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele dispositivo (item 1111 letra d da Resoluccedilatildeo 19696) afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria Aleacutem disso outros documentos de importacircncia para a Bioeacutetica fazem referecircncia agrave solidariedade98 De fato natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao respeito agrave dignidade da pessoa humana99

Logo no nosso pensar mesmo que natildeo haja nenhum benefiacutecio ou vantagem direta ao sujeito de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma justificativa eacutetica a qual pode ter como nuacutecleo a intenccedilatildeo solidaacuteria dessa pessoa e do pesquisador de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e consequumlentemente para todos os demais seres humanos

A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica100

Estas exigecircncias no acircmbito normativo brasileiro estatildeo listadas na Resoluccedilatildeo 19696 especialmente no item III3

Algumas delas satildeo puramente objetivas e uma vez desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca E o caso por exemplo da necessidade de consentimento preacutevio e informado

discurso sobre a interpretaccedilatildeoaplicaccedilatildeo do Direito Satildeo Paulo Malheiros Editores 2002 p 34 98

O art 1deg da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos proclama que todas pessoas devem agir em relaccedilatildeo umas agraves outras com espiacuterito de fraternidade Alem disso a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO em um dos seus considerandos observa que os seres humanos tecircm um papel importante na proteccedilatildeo um do outro tratando expressamente da solidariedade e cooperaccedilatildeo no seu art 13 segundo o qual A solidariedade entre os seres humanos e cooperaccedilatildeo internacional para este fim devem ser estimuladas 99 Ela [a solidariedade] eacute o fecho de aboacutebada do sistema de princiacutepios eacuteticos pois complementa e aperfeiccediloa a liberdade a igualdade e a seguranccedila () E um erro considerar que no mundo da natureza sobretudo no mundo animal natildeo exista solidariedade e que ela seja uma criaccedilatildeo poliacutetica Muito pelo contraacuterio pode-se dizer que a biosfera forma naturalmente um sistema solidaacuterio e que o rompimento desse sistema eacute sempre obra do homem O proacuteprio Darwin bem advertiu que a expressatildeo struggle for Existence fora por ele usada em sentido amplo e matafoacuterico incluindo a dependecircncia de um ser em relaccedilatildeo a outro bem como incluindo (o que eacute mais importante) natildeo apenas a vida do indiviacuteduo mas o ecircxito em deixar descendentes Os zooacutelogos jaacute observaram que o processo de seleccedilatildeo natural deu mais vantagens bioloacutegicas aos grupos que cuidavam de seus membros natildeo reprodutivos do que agravequeles que abandonavam ou matavam os anciatildeos pois a capacidade de reproduccedilatildeo global dos grupos altruiacutestas eacute assim singularmente reforccedilada Cf COMPARATO Faacutebio Konder Eacutetica direito moral e religiatildeo no mundo moderno Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 p 577578

100

Natildeo eacute agrave toa portanto que como jaacute visto a Resoluccedilatildeo 19696 vincula a eticidade na pesquisa aos princiacutepios da Bioeacutetica tanto no seu preacircmbulo como no seu item III 1

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1214 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

dos participantes - ou dos seus representantes se incapazes - 101 cuja ausecircncia macula o princiacutepio da autonomia Tambeacutem eacute objetiva a exigecircncia da pesquisa estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou outros fatos cientiacuteficos102 cuja inobservacircncia implica em ofensa agrave natildeo-maleficecircncia Nessas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou-natildeo vir a ter um benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

Outras exigecircncias entretanto possuem um certo grau de subjetividade em maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as circunstacircncias faacuteticas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo de valor iacutensito a cada um Desse tipo vg eacute a exigecircncia segundo a qual a pesquisa deve ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e ter possibilidades concretas de responder a incertezas103 A avaliaccedilatildeo quanto ao cumprimento ou-natildeo da exigecircncia e portanto quanto agrave legitimidade ou ilegitimidade da utilizaccedilatildeo de seres humanos tem um niacutetido caraacuteter subjetivo podendo variar de pessoa para pessoa

Quando tratamos de exigecircncias subjetivas haacute ainda um outro aspecto a ser apontado deveraacute ser levado em conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca Em outras palavras a circunstacircncia do sujeito de pesquisa poder vir a ser beneficiado ou-natildeo pelo resultado do experimento deve ser considerada na verificaccedilatildeo da legitimidade eacutetica quando da ponderaccedilatildeo sobre o cumprimento das exigecircncias subjetivas

Tomemos como exemplo a exigecircncia de que devem prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis104 Ora essa exigecircncia eacute subjetiva pois envolve uma ponderaccedilatildeo cujo resultado estaacute vinculado a um juiacutezo de valor sobre a natureza e a importacircncia ou peso de cada benefiacutecio ou risco provaacutevel Ao nosso entender quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal no resultado do experimento tratando-se portanto de justificativa extriacutenseca eacute oacutebvio que os riscos a que se submete devem ser considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o benefiacutecio esperado tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa submetida ao experimento

101 Item III3 letra g da Resoluccedilatildeo 19696 102 Item III3 letra b da Resoluccedilatildeo 19696 103 Item III3 letra a da Resoluccedilatildeo 19696 104 Item III3 letra d da Resoluccedilatildeo 19696

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1215

Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila105 Por outro lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

A proacutepria realizaccedilatildeo ou-natildeo da pesquisa pode depender dessa ponderaccedilatildeo jaacute que a Resoluccedilatildeo n 19696 prevecirc que havendo riscos potenciais as pesquisas envolvendo seres humanos poderatildeo ser admitidas quando oferecerem elevada possibilidade de gerar conhecimento para entender prevenir ou aliviar um problema que afete o bem-estar dos sujeitos da pesquisa e de outros indiviacuteduos 106

Aleacutem disso parece ser mais aceitaacutevel eticamente submeter o ser humano a riscos maiores quando a justificativa eacute intriacutenseca do que quando ela eacute extriacutenseca priorizando assim a sua preservaccedilatildeo Nesse sentido a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO estipula que uos interesses e o bem-estar do indiviacuteduo devem ter prioridade sobre o interesse exclusivo da ciecircncia ou da sociedade 107

Natildeo se pode esquecer ainda que por forccedila dos princiacutepios da beneficecircncia da natildeo-maleficecircncia e da justiccedila eacute preciso considerar na mediccedilatildeo da legitimidade as peculiaridades individuais ou coletivas dos sujeitos de pesquisa especialmente no que concerne agraves suas eventuais vulnerabilidades bem como cuidar para que natildeo lhes seja imposto um mal desnecessaacuterio ou desproporcional O princiacutepio da justiccedila como vimos implica necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa os quais sempre que possiacutevel devem ter garantido para si pelo pesquisador a fruiccedilatildeo dos benefiacutecios da experimentaccedilatildeo natildeo sendo equacircnime impor-Ihes ocircnus excessivos108 especialmente se vulneraacuteveis Natildeo eacute agrave toa portanto que pode

105 O princiacutepio da justiccedila implica atenccedilatildeo especial agraves regras de recrutamento de participantes de experimentos Natildeo se pode fazer experimentos apenas com determinados grupos - pacientes de enfermaria asilados prisioneiros - simplesmente porque eles estatildeo agrave disposiccedilatildeo e em situaccedilatildeo de dependecircncia Isso eacute injusto Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 Item Vl aliacutenea a

107 Art 3 aliacutenea b 108 bull

Consideramos que deva ser modificada a praacutetica muito comum em nosso paiacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de pesquisados provenientes das camadas mais desfavorecidas da sociedade ou de outros grupos vulneraacuteveis mas que posteriormente natildeo poderatildeo se beneficiar dos resultantes positivos das pesquisas em que tomaram parte mesmo tendo enfrentado riscos de danos psico-sociais As pesquisas realizadas nesses grupos devem poder lhes trazer benefiacutecios e os pesquisadores sempre que possiacutevel devem garantir retomo dos benefiacutecios resultados das pesquisas para os sujeitos individuais e coletivos que nelas participarem Cf FORTES Paulo Antonio de Carvalho As Pesquisas em Seres Humanos e o Principio Eacutetico da Justiccedila

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1216 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

haver exigecircncias eacuteticas especiacuteficas para pesquisas com serem humanos em situaccedilatildeo de vulnerabilidade109

Assim sempre seraacute preciso dosar a equaccedilatildeo riscobeneficio ponderando em cada caso concreto se os eventuais benefiacutecios satildeo suficientes para motivar a exposiccedilatildeo das pessoas ao processo de experimentaccedilatildeo Pode ser que diante de certas peculiaridades ou vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima110 Aliaacutes como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis justamente porque como jaacute dito o ser humano natildeo pode ser tratado como mero instrumento1

E natildeo eacute soacute Aleacutem disso em princiacutepio a pesquisa com pessoas ou grupos vulneraacuteveis deve ter uma justificativa intriacutenseca2 Entretanto sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas em experimentos extriacutensecos agrave luz da solidariedade como no caso do grupo vulneraacutevel ser imune a determinada moleacutestia por razatildeo ainda desconhecida o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias objetivas agrave risca deve ser ainda mais

Cadernos de Eacutetica em Pesquisa Ano 1 n 2 p 22-23 nov 1998 109

A tiacutetulo de exemplo a Resoluccedilatildeo 19696 traz alguns requisitos especiacuteficos para o consentimento livre e esclarecido de pessoas ou populaccedilotildees vulneraacuteveis no item IV3

110 Um caso de niacutetida violaccedilatildeo aos princiacutepios bioeacuteticos em pesquisas envolvendo grupo vulneraacutevel foi o jaacute mencionado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm Conforme um dos colaboradores da pesquisa utilizar doentes mentais ainda que natildeo voluntaacuterios foi a melhor opccedilatildeo diante do fato de que o principal problema da sauacutede puacuteblica era justamente o das doenccedilas dentaacuterias razatildeo pela qual os fins justificariam os meios ainda mais considerando que o estudo foi utilizado em todo o mundo (Krasse B Sueacutecia usou deficiente mental como cobaia Folha de Satildeo Paulo 23 Set 1997 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas cliacutenicas sobre seus direitos 2005 p 61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo) sendo faacutecil criticar o fato depois de consumado (Krasse B The Vipeholm dental caries study recollections and reflections 50 years later J Dent Res 2001 80(9) 1785-8 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu op cit p 61) Mais uma vez cabiacutevel rememorar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () j) ser desenvolvida preferencialmente em indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida

112 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO eacute clara ao afirmar em seu art 7 aliacutenea b no que diz respeito a indiviacuteduos sem a capacidade para fornecer consentimento que a pesquisa soacute deve ser realizada para o beneficio direto agrave sauacutede do indiviacuteduo envolvido estando sujeita agrave autorizaccedilatildeo e agraves condiccedilotildees de proteccedilatildeo prescritas pela legislaccedilatildeo e caso natildeo haja nenhuma alternativa de pesquisa de eficaacutecia comparaacutevel que possa incluir sujeitos de pesquisa com capacidade para fornecer consentimento

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1217

rigoroso na ponderaccedilatildeo do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da autonomia e justiccedila expondo tais pessoas a riscos miacutenimos menores ateacute do que aqueles normalmente empregados em pesquisas com justificativa intriacutenseca3

Se essas diretrizes natildeo forem observadas teremos uma pesquisa carente de justificativa eacutetica e de legitimidade

6 Conclusotildees

Em virtude dos limites inerentes agrave nossa abordagem nessas consideraccedilotildees finais natildeo apresentaremos verdades irrefutaacuteveis e definitivas sobre um tema que ainda carece de um importante debate acadecircmico e normativo Com efeito o que pretendemos modestamente foi evidenciar alguns paradigmas que possam ensejar a conciliaccedilatildeo da dignidade da pessoa humana com a continuidade dos processos de investigaccedilatildeo cientiacuteficos realizados em seres humanos Para tanto podemos sintetizar nosso pensamento nas seguintes conclusotildees

a) O desenvolvimento da ciecircncia mormente em aacutereas afeitas agrave vida e a ocorrecircncia de pesquisas francamente contraacuterias agrave dignidade humana como ocorrido em vaacuterias passagens da Segunda Guerra ensejaram o surgimento da Bioeacutetica como um novo ramo do conhecimento

b) Deve-se limitar a atuaccedilatildeo da Bioeacutetica aos casos em que haacute conflito de valores quando dois princiacutepios eacutetica e moralmente admissiacuteveis natildeo podem coexistir

c) Haacute iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica Autonomia Beneficecircncia e Justiccedila aleacutem da Natildeo-Maleficecircncia - e as pesquisas em seres humanos

113 Ainda conforme o art 7 aliacutenea b da Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO quando se trata de pessoas incapazes Pesquisas sem potencial beneficio direto agrave sauacutede soacute devem ser realizadas excepcionalmente com a maior restriccedilatildeo expondo o indiviacuteduo apenas a risco e desconforto miacutenimos e quando se espera que a pesquisa contribua com o benefiacutecio agrave sauacutede de outros indiviacuteduos na mesma categoria sendo sujeitas agraves condiccedilotildees prescritas por lei e compatiacuteveis com a proteccedilatildeo dos direitos humanos do indiviacuteduo A recusa de tais indiviacuteduos em participar de pesquisas deve ser respeitada

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1218 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

d) Os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica

pluralista aberta e receptiva e satildeo um poderoso instrumento

para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

razotildees pelas quais eacute descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos

debates bioeacuteticos

e) O avanccedilo tecnoloacutegico traz cada vez mais a diminuiccedilatildeo de

limites teacutecnicos ao ser humano o que conduz ao debate sobre a

necessidade de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees para

evitar eventuais abusos especialmente na aacuterea biomeacutedica

elevando a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que

demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave

vida

0 A concretizaccedilatildeo dos objetivos atuais da humanidade

especialmente em relaccedilatildeo agrave expectativa de vida depende

dentre outros fatores da pesquisa cientiacutefica e da

experimentaccedilatildeo em seres humanos Poreacutem eacute preciso tomar o

Homem como sujeito de pesquisa sem trataacute-lo como mero

instrumento mas como um fim em si mesmo

g) A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do

interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda

Guerra trouxeram agrave tona a questatildeo da eacutetica na pesquisa

evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana e

de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa

em seres humanos gerando uma seacuterie de normas internacionais

e nacionais a exemplo do Coacutedigo de Nuremberg da

Declaraccedilatildeo de Helsinque e no Brasil da Resoluccedilatildeo n 19696

do Conselho Nacional de Sauacutede

h) Dentre os principais aspectos da Resoluccedilatildeo n 19696 do

Conselho Nacional de Sauacutede encontramos a vinculaccedilatildeo da

experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da

principiologia da Bioeacutetica a explicitaccedilatildeo de um rol de

exigecircncias para a eticidade na pesquisa as definiccedilotildees de

diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica como o

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1219

consentimento livre e esclarecido a vulnerabilidade e a

incapacidade a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em

Pesquisa -CONEP e a regulamentaccedilatildeo dos Comitecircs de Eacutetica e

Pesquisa - CEPs

i) O consentimento livre e esclarecido decorre da adoccedilatildeo do

princiacutepio da autonomia e pressupotildee dentre outras premissas a

capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os

aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos

possiacuteveis

j) A vulnerabilidade natildeo pode ser desconsiderada pelo

pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais ocorrendo

quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de

estudo por quaisquer motivos possuem a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto agrave

compreensatildeo sobre o experimento e a possibilidade de

livremente consentir com a pesquisa e dela desistir

k) A incapacidade ocorre quando as pessoas que seratildeo estudadas

na pesquisa natildeo possuem capacidade civil para dar o seu

consentimento soacute podendo ser levada adiante a pesquisa com a

intervenccedilatildeo de seus representantes legais implicando tambeacutem

no dever do pesquisador de cercar-se de cautelas eacuteticas

redobradas

1) As experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas

teleologicamcnte em dois grupos a) aquelas cujos objetivos

possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas

observadas as quais chamamos de pesquisas com justificativa

intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo

direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de

terceiros as quais denominamos pesquisas com justificativa

extrinseca

m) Em todo experimento eacute necessaacuterio averiguar se a justificativa -

seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1220 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima jaacute que a

justificativa soacute pelo fato de ser intriacutenseca natildeo seraacute

necessariamente legiacutetima nem tampouco soacute por ser extriacutenseca

seraacute necessariamente ilegiacutetima

n) Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a

realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser

encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca

como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

o) A interpretaccedilatildeo do item III1 letra d da Resoluccedilatildeo n 19696

que vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens

significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de

infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila natildeo deve ser literal nem

assistemaacutetica devendo ser considerada a incidecircncia de um

outro principio ainda que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que

eacute o da solidariedade

p) Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita ao princiacutepio da

solidariedade na Resoluccedilatildeo n 19696 a sua aplicaccedilatildeo eacute

cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele

texto afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua

relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-

humanitaacuteria

q) Logo mesmo que natildeo haja nenhum beneficio direto ao sujeito

de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma

justificativa a qual pode ser a intenccedilatildeo sua e do pesquisador

de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e

consequumlentemente para todos os demais seres humanos Aleacutem

disso natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica

sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao

respeito agrave dignidade da pessoa humana

r) A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em

seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade

poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1221

diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica listadas na

Resoluccedilatildeo n 19696 especialmente no item III3

s) Algumas exigecircncias satildeo puramente objetivas e uma vez

desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da

justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca

t) Nas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa

ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou natildeo vir a ter um

benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

u) Outras exigecircncias possuem um certo grau de subjetividade em

maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da

pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo

exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as

circunstacircncias faacutetiacutecas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo

de valor iacutensito a cada um

v) Quando se tratar de exigecircncias subjetivas deveraacute ser levado em

conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma

justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca

w) Quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou

sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal

no resultado do experimento tratando-se portanto de

justificativa extriacutenseca os riscos a que se submete devem ser

considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a

justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o beneficio esperado

tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa

submetida ao experimento

x) Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do

sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero

instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila e por outro

lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute

menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa

consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1222 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a

algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

y) Pode ser que diante de certas peculiaridades ou

vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo

considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa

em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua

realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo

eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima

z) Como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras

pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis

mas sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas agrave luz da

solidariedade o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias

objetivas agrave risca deve ser ainda mais rigoroso na ponderaccedilatildeo

do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave

observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da

autonomia e justiccedila

Satildeo Paulo novembro de 2006

Referecircncias

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ALEMANHA Rodrigo Resende da Doutores da agonia Revista Superinteressante ed 225 p

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de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees tendo em conta que a teoria de haacute muito jaacute advertiu1 e a experiecircncia jaacute nos ensinou como adiante se veraacute que a ausecircncia de limites pode levar ao abuso

Embora isso possa ocorrer em vaacuterios campos como vg a economia e a poliacutetica sem duacutevida a aacuterea biomeacutedica eacute uma das que mais merecem nossa atenccedilatildeo natildeo soacute porque estaacute entre as mais influenciadas por essas transformaccedilotildees mas tambeacutem porque eacute uma das que mais tem potencial de desenvolvimento aleacutem do fato oacutebvio de estar diretamente ligada agrave vida humana Exatamente por isso cresce a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave vida especialmente a Medicina40

O acreacutescimo jaacute obtido na expectativa de vida do Homem que praticamente dobrou nos uacuteltimos dois seacuteculos decorrente de vaacuterios fatores dentre os quais uma verdadeira revoluccedilatildeo terapecircutica41 natildeo eacute suficiente As pessoas querem viver ainda mais e com melhor qualidade Por isso cobram mais avanccedilos tecnoloacutegicos nessa aacuterea despertando interesses diversos que vatildeo dos humanitaacuterios aos puramente comerciais e econocircmicos Chega-se a se falar ateacute mesmo em um direito agrave pesquisa que deve figurar entre as liberdades fundamentais unanimemente reconhecidas42

Para que esses desejos se tornem viaacuteveis eacute preciso conhecer cada vez mais profundamente a complexa maacutequina que eacute o corpo humano desenvolver novos faacutermacos medicamentos vacinas e terapias para combater doenccedilas descobrir a fonte da juventude atraveacutes de meacutetodos de desaceleraccedilatildeo - ou quiccedilaacute interrupccedilatildeo - da degeneraccedilatildeo celular dentre outras possibilidades e desafios

Por exemplo eacute conhecida nos meios juriacutedicos a passagem que adverte () mas trata-se de uma experiecircncia eterna que todo homem que possui poder eacute levado a dele abusar ele vai ateacute onde encontra limites Quem diria Ateacute a virtude precisa de limites MONTESQUIEU Charles de Secondat op cit p 170

40 Natildeo eacute agrave toa portanto que em interessante estudo sobre as exigecircncias referentes aos aspectos eacuteticos da pesquisa em revistas cientiacuteficas brasileiras se chegou agrave conclusatildeo de que As revistas de medicina e enfermagem apresentaram maior preocupaccedilatildeo com as orientaccedilotildees eacuteticas do que as revistas natildeo-meacutedicas classificadas nos grupos de miscelecircncia e odontologia sugerindo que o debate eacutetico da experimentaccedilatildeo em seres humanos estaacute mais difundido nas aacutereas meacutedica e de enfermagem do que em outras aacutereas da sauacutede Tal no entanto natildeo representa necessariamente um dado a ser festejado pois o resultado global comprovou que 791 das revistas cientiacuteficas estudadas natildeo fazem qualquer referecircncia aos aspectos eacuteticos Cf T SARDENBERG S S MUumlLLER H R PEREIRA R A DE OLIVEIRA W S HOSSNE Anaacutelise dos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos contidos nas Instruccedilotildees aos Autores de 139 rev istas cientiacuteficas brasileiras Revista da Associaccedilatildeo Meacutedica do Brasil v 45 n 4 p 295-302 1999

41 Sobre a chamada revoluccedilatildeo terapecircutica vide dentre outros BERNARD Jean La Bioeacutethique Paris Dominos Flammarion 1994 p 14-33

42 Conforme LAFON Claudc De la Biologie agrave Ia Bioeacutethique Paris Ellipses 2006 p 30

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1199

A concretizaccedilatildeo desses objetivos depende de inuacutemeros fatores ligados agrave pesquisa cientiacutefica43 dentre os quais um que eacute o ponto central deste trabalho a experimentaccedilatildeo em seres humanos De fato o progresso do nosso conhecimento no passado e no futuro estaacute intimamente ligado agrave necessidade de observaccedilatildeo do funcionamento e da reaccedilatildeo do corpo e da mente humanas44

Em outras palavras eacute preciso tomar o ser humano como sujeito de pesquisa45

Esse fato bom que se diga natildeo eacute exatamente novo tem ocorrido no correr dos tempos suscitando questotildees eacuteticas de suma relevacircncia pois nem sempre as pessoas estudadas tiveram o trato adequado

A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda Guerra mormente as realizadas pelos japoneses e nazistas alematildees tais como a infestaccedilatildeo de prisioneiros com doenccedilas para testar vacinas e a esterilizaccedilatildeo e amputaccedilatildeo de membros46 trouxeram agrave tona a questatildeo da

43 A discussatildeo a respeito das pesquisas natildeo pode se limitar agravequelas de natureza meacutedica e farmacoloacutegica onde os impactos e riscos satildeo maiores e mais perceptiacuteveis E ampla a definiccedilatildeo de pesquisas em seres humanos adotada pela Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede conforme adiante se veraacute Leonard M Martin C Ss R preleciona O documento pretende regulamentar toda pesquisa em seres humanos e natildeo apenas pesquisas puramente biomeacutedicas Nesta perspectiva pesquisas socioloacutegicas e antropoloacutegicas tambeacutem devem passar pelo crivo de Comitecircs de Eacutetica independentes e ser alvo de discussatildeo sobre sua eticidade MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

44 O efeito de um tratamento sobre o homem soacute pode ser observado no proacuteprio homem Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

45 Esse fenocircmeno ocorre em todas as aacutereas do conhecimento e natildeo apenas nas ciecircncias biomeacutedicas Na realidade quando se fala em experimentaccedilatildeo com seres humanos pensa-se quase que exclusivamente na experimentaccedilatildeo no campo da Medicina Essa vinculaccedilatildeo eacute compreensiacutevel pois a experimentaccedilatildeo na aacuterea meacutedica eacute mais visiacutevel e de efeitos mais patentes em geral Contudo eacute bom assinalar que seres humanos satildeo utilizados em experimentaccedilatildeo por profissionais e cientistas de outras aacutereas odontoacutelogos nutricionistas farmacecircuticos fisioterapeutas psicoacutelogos profissionais da aacuterea de educaccedilatildeo fiacutesica e de esporte educadores e tambeacutem economistas Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179 Leonard M Martin C Ss R com base em McNeill e Jonsen destaca que [] as experiecircncias antieacuteticas dos nazistas incluiacuteram colocar prisioneiros em cacircmaras de pressatildeo modificar a pressatildeo atmosfeacuterica e observar suas mortes estudar o impacto sobre o corpo humano de imersatildeo em aacutegua gelada por periacuteodos prolongados infectar os internos com tifo malaacuteria e outras doenccedilas para testar drogas e vacinas esterilizaccedilatildeo e castraccedilatildeo procurando meacutetodos eficazes para esterilizaccedilatildeo em massa administrar venenos para estudar os efeitos letais e estudos com gecircmeos tipo infectando um matando os dois e comparando os corpos em autoacutepsia No atinente a experiecircncias japonesas MARTIN informa que no ala de desenvolver armas bioloacutegicas [] os japoneses atacaram pelo menos onze cidades com armas bioloacutegicas e infestaram uma cidade com pulgas portadores da peste bubocircnica A Unidade 731 tambeacutem era uma prisatildeo onde os prisioneiros foram submetidos a experiecircncias desumanas Houve cirurgia experimentais pessoas foram desidratadas ateacute a morrer alguns tiveram braccedilos congelados e depois degelados usando vaacuterios meacutetodos com a consequumlecircncia de que a carne apodreceu e caiu o fiacutegado de outras pessoas foi exposto por longos

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eacutetica na pesquisa evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana47 e de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa em seres humanos48

Como resposta agraves atrocidades praticadas na Segunda Guerra foi instituiacutedo em 1947 no acircmbito internacional pelo Tribunal de Nuremberg que julgou vinte e trecircs criminosos de guerra nazistas dos quais vinte meacutedicos ligados agrave experimentaccedilatildeo em pessoas49 o denominado Coacutedigo de Nuremberg o qual estabeleceu as diretrizes gerais para pesquisa em seres humanos A doutrina destaca como principais conquistas do coacutedigo o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa em retirar-se do experimento e de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias deste bem como a necessidade de estudos preacutevios sobre a importacircncia da pesquisa e os seus riscos aleacutem da comprovaccedilatildeo da capacidade dos pesquisadores50

Um ano depois a humanidade assiste agrave proclamaccedilatildeo agora pela Assembleacuteia Geral das Naccedilotildees Unidas de um outro documento de suma importacircncia a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos que embora de caraacuteter geral alberga

periacuteodos ao raio-X houve casos do sangue da pessoa ser substituiacutedo por sangue de cavalo e quando as cobaias humanas natildeo serviam mais para as experiecircncias foram executadas O autor ainda ressalta que diferentemente dos alematildees que foram condenados alguns inclusive enforcados os americanos resolveram poupar os japoneses permitindo que continuassem suas carreiras MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

4 Haacute quem afirme - sem razatildeo ao nosso ver - que a dignidade eacute um conceito inuacutetil um mero slogan e que natildeo significaria mais do que o respeito pelas pessoas e por sua autonomia Nesse sentido vide vg MACKLIN Ruth Dignity is a useless concept Brilish Medica Journal v 327 p 20-27 dez 2003 Disponiacutevel em lthttpbmjbmjjournalscomcgicontentfull3277429l419gt Aacessado em 27 maio de 2006 Em sentido inverso sobre as relaccedilotildees entre a Bioeacutetica e a dignidade vide dentre outros ADORNO Roberto La bioegravetique et la dignitegrave de Ia persone Paris Presses Universitaires de France 1997 Os documentos internacionais mencionam o elo entre Bioeacutetica e dignidade A jaacute mencionada Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten por exemplo afirma textualmente que A pesquisa e experiecircncia com seres humanos devem ser realizadas harmonizando a liberdade da ciecircncia e o respeito da dignidade humana

48 A experimentaccedilatildeo em seres humanos causa impacto porque as pessoas temem o abuso Os abusos jaacute ocorreram estatildeo ocorrendo c ainda ocorreratildeo mas proibir o uso natildeo eacute a melhor maneira de impedir o abuso Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

49 Estima-se que centenas de meacutedicos atuaram nos campos de concentraccedilatildeo dos quais pelo menos setenta teriam participado de experimentos com seres humanos A maioria dos meacutedicos de maior expressatildeo conseguiram escapar do julgamento como foi o caso de Josef Mengele principal meacutedico do campo de extermiacutenio de Auschwitz que fugiu e chegou a viver 14 anos no Brasil onde morreu afogado em Bertioga em 1979 O julgamento levou oito meses As sentenccedilas e o Coacutedigo de Nuremberg foram anunciados conjuntamente em 19 de agosto de 1947 Sete acusados foram condenados agrave morte Cf CREMESP Diretrizes e Declaraccedilotildees Disponiacutevel em lthttpvwvbiocticaorgbrlegislacaooutras_diretrizesintegraphpgt Acessado em 30 maio 2006 Discute-se hoje a validade cientiacutefica dos experimentos realizados bem como se eacute eacutetico utilizar os resultados obtidos Nesse sentido vide mateacuteria intitulada Doutores da agonia publicada na revista Superinteressante ed 225 abr2006 p 52-61

50 Cf FREITAS Corina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 195

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direitos que natildeo podem ser olvidados quando da experimentaccedilatildeo com seres humanos a exemplo da dignidade da igualdade e da liberdade Aleacutem disso haacute diversas ligaccedilotildees entre a Declaraccedilatildeo e os princiacutepios da Bioeacutetica51

Assim como a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos o Coacutedigo de Nuremberg proclama criteacuterios princiacutepios miacutenimos e irredutiacuteveis para eticidade da pesquisa em seres humanos Ambas as declaraccedilotildees embora de grande importacircncia para a Bioeacutetica satildeo normalmente entendidas como desprovidas de instrumentos adequados de obrigatoriedade52 e de mecanismos sancionatoacuterios de modo que sua infraccedilatildeo na maioria dos casos tem gerado apenas sanccedilotildees morais

Natildeo-obstante o estabelecido no Coacutedigo de Nuremberg - e na Declaraccedilatildeo Universal - as violaccedilotildees continuaram a ocorrer inclusive nos paiacuteses signataacuterios De fato por exemplo nos Estados Unidos teve continuidade como se nada houvesse acontecido a famosa pesquisa sobre siacutefilis em Tuskegee no condado de Macon Alabama financiada com recursos federais onde especialmente negros e pobres acreditavam que estavam se submetendo a um tratamento especial gratuito quando na verdade nada recebiam embora jaacute houvesse medicamentos disponiacuteveis servindo como verdadeiras cobaias entre 1932 e 1973 para que os pesquisadores pudessem acompanhar o desenvolvimento da doenccedila1 Ainda exemplificativamente foi iniciado em 1946 o chamado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm um dos mais famosos e importantes estudos de odontologia jaacute realizados no qual mais de 436 deficientes mentais crocircnicos internos da cidade de Lund no sul da Sueacutecia que natildeo tinham sequer a menor consciecircncia do que ocorria foram submetidos ateacute 1951 a uma dieta especial rica em accediluacutecar para provar que esta substacircncia provocava caacuteries sem que lhes fosse dado qualquer tratamento54

Por exemplo ao afirmar no seu art 1deg que todas pessoas satildeo dotadas de razatildeo e consciecircncia o documento da ONU reforccedila a ideacuteia de autonomia

52 Em relaccedilatildeo agrave Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Faacutebio Konder Comparato afirma que embora seja tecnicamente apenas uma recomendaccedilatildeo da ONU a seus membros os direitos ali definidos correspondem integralmente ao que o costume e os princiacutepios juriacutedicos internacionais reconhecem hoje como normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens) como a proacutepria Corte Internacional de Justiccedila tem entendido COMPARATO Faacutebio Konder A afirmaccedilatildeo histoacuterica dos Direitos Humanos 4 ed rev e atual Satildeo Paulo Saraiva 2005 p 223-224

53 Vide vg a respeito REVERBY S M More than Fact and Fiction Cultural Memory and the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 31 p 22-28 2001 BRANDT A M Racism and Research The Case of the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 8 p 21-29 1978 BEECHER H K Ethics and Clinicai Research New England Journal of Medicine n 274 p 1354-1360 1966

54 Cf SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas clinicas sobre seus direitos 2005 p 55-61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

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Os avanccedilos tecnoloacutegicos cada vez mais raacutepidos reverberaram nas questotildees eacuteticas forccedilando novas e perioacutedicas revisotildees Necessaacuterio se fez portanto a rediscussatildeo do tema e o aprimoramento do sistema normativo Assim sobreveio a Declaraccedilatildeo de Helsinque elaborada pela Associaccedilatildeo Meacutedica Mundial em 1964 texto que foi revisto e ampliado em 1975 (Toacutequio)55 1983 (Veneza) 1989 (Hong Kong) 1996 (Somerset) e 2000 (Edimburgo) com o que foram incorporadas vaacuterias inovaccedilotildees Por exemplo a disposiccedilatildeo no sentido de que No final do estudo todos os pacientes participantes devem ter assegurado o acesso aos melhores meacutetodos comprovados profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos identificados pelo estudo E no atinente ao uso de placebo que Os benefiacutecios riscos dificuldades e efetividade de um novo meacutetodo devem ser testados comparando-os com os melhores meacutetodos profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos atuais Isto natildeo exclui o uso de placebo ou nenhum tratamento em estudo onde existam meacutetodos provados de profiacutelaxia diagnoacutestico e tratamento 56 Foi tambeacutem reforccedilada a recomendaccedilatildeo do Coacutedigo de Nuremberg sobre a necessidade de submissatildeo do protocolo de pesquisa agrave anaacutelise por um Comitecirc de Eacutetica independente do pesquisador

Outros textos e documentos que tratam da pesquisa merecem referecircncia como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos de 196657 o intitulado Diretrizes Internacionais para a pesquisa biomeacutedica em seres humanos elaborado conjuntamente pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e pelo Council for International Organizations of Medicai Sciences (1993) a Declaraccedilatildeo de Manila (1981) a Declaraccedilatildeo de Princiacutepios Eacuteticos dos Meacutedicos do Mercosul (1996) a Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten (2000) e a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da Unesco (2005)

Em que pese o entendimento de que haacute carecircncia de instrumentos imperativos que garantam a exigibilidade dos referidos documentos sem duacutevida eles

A respeito Leo Pessini e Christian de Paul Barehifontaine ensinam que Tal modificaccedilatildeo fieou conhecida como Helsinque II Entre outros pontos importantes foram incluiacutedos nesta revisatildeo os seguintes aspectos I) Exigecircncia de que o protocolo experimental seja aprovado por uma comissatildeo independente para efeito de apreciaccedilatildeo comentaacuterios e orientaccedilatildeo (item I 2) 2) Que os seres humanos natildeo sejam utilizados em pesquisas a menos que o consentimento consciente do paciente dado livremente tenha sido obtido depois do mesmo ter sido adequadamente informado sobre os objetivos meacutetodos benefiacutecios esperados riscos potenciais e inconvenientes da experimentaccedilatildeo e que ele tenha liberdade de se abster e de cancelar sua participaccedilatildeo a qualquer momento (art I 9) 3) Que o protocolo contenha embasamento eacutetico da pesquisa e a referecircncia de que foram obedecidos os princiacutepios da Declaraccedilatildeo de Helsinque (item I 12) 4) Que os interesses da ciecircncia e da sociedade jamais tenham precedecircncia sobre o bem-estar do indiviacuteduo (item III 4) PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Problemas aluais de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1994 p 131

56 GRECO Dirceu B Poder e injusticcedila na pesquisa envolvendo seres humanos In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 264

57 De acordo com o seu art 7o Ningueacutem poderaacute ser submetido a tortura nem a penas ou tratamentos crueacuteis desumanos ou degradantes Seraacute proibido sobretudo submeter uma pessoa sem seu livre consentimento a experiecircncias meacutedicas ou cientiacuteficas

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contribuiacuteram e contribuem significativamente na proteccedilatildeo ao ser humano objeto de pesquisa pois influenciaram a elaboraccedilatildeo de diretrizes vinculantes no plano individual de cada Estado a exemplo do Brasil como a seguir veremos Por outro lado importante anotar que uma harmonia consensual e global no atinente agrave pesquisa parece impossiacutevel tendo em conta que a cultura os objetivos e as condiccedilotildees cientiacuteficas dos diversos paiacuteses satildeo naturalmente diversificados58 Aliaacutes haacute quem chegue a afirmar que o pluralismo eacutetico em vigor nos dias de hoje natildeo nos permite mais falar em moral universal59

No Brasil a normatizaccedilatildeo se daacute principalmente atraveacutes de resoluccedilotildees do Conselho Federal de Medicina60 e do Conselho Nacional de Sauacutede Aliaacutes a primeira resoluccedilatildeo deste uacuteltimo oacutergatildeo - Resoluccedilatildeo n 01 de 13 de junho de 1988 - tratou justamente de normas de pesquisa em sauacutede tendo dedicado o seu Capiacutetulo II arts 4o a 16 aos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos Esse diploma legal foi posteriormente revogado pela Resoluccedilatildeo n 196 de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Sauacutede que eacute atualmente a base regulamentar da pesquisa no Brasil tratando das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos Esta Resoluccedilatildeo eacute na verdade uma revisatildeo da anterior tendo sido precedida de diaacutelogo entre governo e sociedade civil61

A Resoluccedilatildeo atual afirma jaacute em seu preacircmbulo a sua fundamentaccedilatildeo nos principais documentos internacionais que emanaram declaraccedilotildees e diretrizes sobre

58 Nesse contexto por tanto deve ser considerada a questatildeo do multicuturalismo Como bem ensinam Joseacute A Mainetti Joseacute L Mainettil Existen dificultades en la aplicacioacuten de los principos elaborados por los paiacuteses centrales y es una evidencia por ejemplo que resulta inapropiada la visioacuten estrccha de la autonomia y la aplicacioacuten riacutegida dei requisito dei consentimento informado al modo norteamericano en determinadas circunstancias y comunidades Es preciso entoces reconocer Ias diferenccedilas culturales y en base a eacutestas aplicar los princiacutepios sin renunciar a cllos en formas maacutes adecuadas al ethos particular MAINETTI Joseacute A MAINETTI Joseacute L Bioeacutetica y la experimentacioacuten humana In SOROKIN Patriacutecia (Coord) Bioeacutelica entre utopias y desarraigos Buenos Aires Ad-Hoc Villela 2002 p 190

59 Cf ENGELHARDT JUacuteNIOR Tristam apuei BAUZON Steacutephane La personne biojuridique Paris Press Universitaires de France 2006 p 63

60 Vide como exemplo a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro o qual no seu Capiacutetulo XII trata especificamente da pesquisa meacutedica

61 Cf FREITAS Corina Bontempo Duca de Eacutetica na pesquisa com seres humanos A experiecircncia brasileira In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutelica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 307

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pesquisas que envolvem seres humanos62 e que visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito agrave comunidade cientiacutefica aos sujeitos da pesquisa e ao Estado

Aleacutem disso vinculou a experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da principiologia da Bioeacutetica seja no preacircmbulo onde afirma que incorpora sob a oacutetica do indiviacuteduo e das coletividades os quatro referenciais baacutesicos da Bioeacutetica autonomia natildeo-maleficecircncia beneficecircncia e justiccedila entre outros seja no seu item III 1 que versa sobre a eticidade na pesquisa63

Entre as suas disposiccedilotildees encontramos definiccedilotildees de diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica pesquisa64 pesquisa envolvendo seres humanos65

protocolo de pesquisa66 pesquisador responsaacutevel67 instituiccedilatildeo de pesquisa68 promotor69

patrocinador70 risco da pesquisa71 dano associado ou decorrente da pesquisa72 sujeito da

62 Cila a Resoluccedilatildeo os seguintes documentos o Coacutedigo de Nuremberg (1947) a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem (1948) a Declaraccedilatildeo de Helsinque (1964 e suas versotildees posteriores de 1975 1983 e 1989) o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Poliacuteticos (ONU 1966 aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1992) as Propostas de Diretrizes Eacuteticas Internacionais para Pesquisas Biomeacutedicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMSOMS 1982 e 1993) e as Diretrizes Internacionais para Revisatildeo Eacutetica de Estudos Epidemioloacutegicos (C10MS 1991) III1 - A eticidade da pesquisa implica em a) consentimento livre e esclarecido dos indiviacuteduos-alvo e a proteccedilatildeo a grupos vulneraacuteveis e aos legalmente incapazes (autonomia) Neste sentido a pesquisa envolvendo seres humanos deveraacute sempre trataacute-los em sua dignidade respeitaacute-los em sua autonomia e defendecirc-los em sua vulnerabilidade b) ponderaccedilatildeo entre riscos e benefiacutecios tanto atuais como potenciais individuais ou coletivos (beneficecircncia) comprometendo-se com o maacuteximo de benefiacutecios e o miacutenimo de danos e riscos c) garantia de que danos previsiacuteveis seratildeo evitados (natildeo maleficecircncia)- d) relevacircncia social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimizaccedilatildeo do ocircnus para os sujeitos vulneraacuteveis o que garante a igual consideraccedilatildeo dos interesses envolvidos natildeo perdendo o sentido de sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria (justiccedila e equumlidade) (negritos originais)

64 111 Pesquisa classe de atividades cujo objetivo eacute desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizaacutevel O conhecimento generalizaacutevel consiste em teorias relaccedilotildees ou princiacutepios ou no acuacutemulo de informaccedilotildees sobre as quais estatildeo baseados que possam ser corroborados por meacutetodos cientiacuteficos aceitos de observaccedilatildeo e infercncia

65 112 Pesquisa envolvendo seres humanos pesquisa que individual ou coletivamente envolva o ser humano de forma direta ou indireta em sua totalidade ou partes dele incluindo o manejo de informaccedilotildees ou materiais

66 II3 Protocolo de Pesquisa Documento contemplando a descriccedilatildeo da pesquisa em seus aspectos fundamentais informaccedilotildees relativas ao sujeito da pesquisa agrave qualificaccedilatildeo dos pesquisadores e a todas as instacircncias responsaacuteveis

67 II-4 Pesquisador responsaacutevel pessoa responsaacutevel pela coordenaccedilatildeo e realizaccedilatildeo da pesquisa e pela integridade e bem-estar dos sujeitos da pesquisa

68 II5 - Instituiccedilatildeo de pesquisa - organizaccedilatildeo puacuteblica ou privada legitimamente constituiacuteda e habilitada na qual satildeo realizadas investigaccedilotildees cientiacuteficas

69 116 - Promotor - indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo responsaacutevel pela promoccedilatildeo da pesquisa 70 II7 - Patrocinador - pessoa fiacutesica ou juriacutedica que apoia financeiramente a pesquisa 71 II8 Risco da pesquisa - possibilidade de danos agrave dimensatildeo fiacutesica psiacutequica moral intelectual social

cultural ou espiritual do ser humano em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente II9 Dano associado ou decorrente da pesquisa agravo imediato ou tardio ao indiviacuteduo ou agrave coletividade com nexo causai comprovado direto ou indireto decorrente do estudo cientiacutefico

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pesquisa73 consentimento livre e esclarecido74 indenizaccedilatildeo75 ressarcimento6 Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (CEP)77 vulnerabilidade78 e incapacidade79

A Resoluccedilatildeo regulamentou os Comitecircs de Eacutetica e Pesquisa - CEPs80 em cujas funccedilotildees81 destaca-se a apreciaccedilatildeo do protocolo da pesquisa em todas as suas especificidades o que foi um grande passo no sentido da construccedilatildeo de padrotildees eacuteticos82

Haacute requisitos para a instituiccedilatildeo dos Comitecircs principalmente no atinente agrave sua composiccedilatildeo83

1110 Sujeito da pesquisa eacute o(a) participante pesquisado(a) individual ou coletivamente de caraacuteter voluntaacuterio vedada qualquer forma de remuneraccedilatildeo IIII Consentimento livre e esclarecido anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal livre de viacutecios (simulaccedilatildeo fraude ou erro) dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar formulada em um termo de consentimento autorizando sua participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa 1112 - Indenizaccedilatildeo - cobertura material em reparaccedilatildeo a dano imediato ou tardio causado pela pesquisa ao ser humano a ela submetida 1113 Ressarcimento - cobertura em compensaccedilatildeo exclusiva de despesas decorrentes da participaccedilatildeo do sujeito na pesquisa 1114 - Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa-CEP - colegiados interdisciplinares e independentes com munus puacuteblico de caraacuteter consultivo deliberativo e educativo criados para defender os interesses dos sujeitos da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrotildees eacuteticos 1115 Vulnerabilidade refere-se a estado de pessoas ou grupos que por quaisquer razotildees ou motivos tenham a sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido 1116 - Incapacidade - Refere-se ao possiacutevel sujeito da pesquisa que natildeo tenha capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido devendo ser assistido ou representado de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira vigente O CEP pode ser entendido como um oacutergatildeo controlador da pesquisa por um lado mas por outro eacute tambeacutem um oacutergatildeo que ajuda a harmonizar diversos interesses que como vimos podem ser os mais diversos e agraves vezes ateacute conflitantes Cf PALAacuteCIOS Marisa Eacutetica na pesquisa - 1 Eacutetica em pesquisa em seres humanos In PALAacuteCIOS Marisa MARTINS Andreacute PEGORARO Olinto A (Orgs) Eacutetica ciecircncia e sauacutede humana Petroacutepolis Vozes 2001 p 74 Satildeo atribuiccedilotildees conferidas pela Resoluccedilatildeo aos CEPs a) revisar todos os protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos b) emitir parecer consubstanciado por escrito c) manter a guarda confidencial de todos os dados obtidos na execuccedilatildeo de sua tarefa e arquivamento do protocolo completo que ficaraacute agrave disposiccedilatildeo das autoridades sanitaacuterias d) acompanhar o desenvolvimento dos projetos atraveacutes de relatoacuterios anuais dos pesquisadores e) desempenhar papel consultivo e educativo 0 receber dos sujeitos da pesquisa ou de qualquer outra parte denuacutencias de abusos ou notificaccedilatildeo sobre fatos adversos que possam alterar o curso normal do estudo decidindo pela continuidade modificaccedilatildeo ou suspensatildeo da pesquisa devendo se necessaacuterio adequar o termo de consentimento considerando-se anti-eacutetica a pesquisa descontinuada sem justificativa aceita pelo CEP que a aprovou g) requerer instauraccedilatildeo de sindicacircncia agrave direccedilatildeo da instituiccedilatildeo em caso de denuacutencias de irregularidades de natureza eacutetica nas pesquisas e em havendo comprovaccedilatildeo comunicar agrave Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa CONEPMS e no que couber a outras instacircncias e h) manter comunicaccedilatildeo regular e permanente com a CONEPMS A existecircncia de oacutergatildeos com a funccedilatildeo de aprovar e acompanhar pesquisas jaacute era preconizada por exemplo pelo Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988) cujo art 127 veda ao

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Foi mais aleacutem a Resoluccedilatildeo que de modo inovador reforccedilou o controle eacutetico e a defesa da dignidade da pessoa humana com a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa - CONEP84 que atua na direccedilatildeo e orientaccedilatildeo dos comitecircs8S A comissatildeo de acordo com a Resoluccedilatildeo eacute uma instacircncia colegiada de natureza consultiva deliberativa normativa independente vinculada ao Conselho Nacional de Sauacutede86 Essa vinculaccedilatildeo eacute bastante positiva posto que a alternativa de submetecirc-la a outros oacutergatildeos poderia dar ensejo a uma indesejada politizaccedilatildeo dos seus membros o que seria capaz de terminar por afetar a sua autonomia

meacutedico Realizar pesquisa meacutedica em ser humano sem submeter o protocolo a aprovaccedilatildeo e acompanhamento de comissatildeo isenta de qualquer dependecircncia em relaccedilatildeo ao pesquisador O colegiado com nuacutemero natildeo inferior a 7 (sete) membros deve ser multidisciplinar abrangendo profissionais idocircneos e de distinta formaccedilatildeo da aacuterea de sauacutede e das ciecircncias exatas sociais e humanas incluindo por exemplo juristas teoacutelogos socioacutelogos filoacutesofos bioeticistas aleacutem de membros da sociedade e obrigatoriamente pelo menos um membro representando os usuaacuterios Se a pesquisa envolver grupos vulneraacuteveis comunidades e coletividades um dos seus representantes deveraacute ser convidado para participar como membro ad hoc do CEP da anaacutelise do projeto especiacutefico Assim o CEP ainda segundo a Resoluccedilatildeo teraacute sempre um caraacuteter multi e transdisciplinar sendo vedado que mais que metade de seus membros pertenccedilam a uma mesma categoria profissional devendo ainda participarem pessoas dos dois sexos Satildeo permitidos consultores ad hoc pessoas que pertencem ou natildeo aacute instituiccedilatildeo com o objetivo de fornecer subsiacutedios teacutecnicos Merece ainda atenccedilatildeo especial a autonomia do comitecirc cuja manifestaccedilatildeo deve ser totalmente autocircnoma e imaculada de coaccedilotildees ou pressotildees dos interessados A autonomia e a independecircncia satildeo condiccedilotildees sine qua non para a desejada eficaacutecia dos comitecircs que felizmente estatildeo se proliferando em nosso paiacutes Conforme informaccedilotildees do site da CONEP satildeo 446 CEPs aprovados no Brasil ateacute janeiro de 2006 Disponiacutevel em lthttpoonselhosaudegovbrcomissaoconep2006ceps20APROVADOSxlsgt Acessado em 04 jun 2006 A Comissatildeo tem 13 membros titulares e o mesmo nuacutemero de suplentes em uma composiccedilatildeo que tambeacutem deveraacute ser multi e transdisciplinar com pessoas de ambos os sexos Dentre os seus membros 05 (cinco) devem ser personalidades destacadas no campo da eacutetica na pesquisa e na sauacutede e 08 (oito) devem ser personalidades com destacada atuaccedilatildeo nos campos teoloacutegico juriacutedico e outros assegurando-se que pelo menos um seja da aacuterea de gestatildeo da sauacutede Embora natildeo desconheccedilamos a importacircncia das religiotildees na formaccedilatildeo do pensamento eacutetico humano e sem querer desmerecer as pessoas que nelas militam no mais das vezes com accedilotildees de destacada importacircncia pensamos que eacute inadequada em um Estado laico como o nosso a destinaccedilacirco de vaga ou de vagas especificamente a pessoas do campo teleoloacutegico Essa observaccedilatildeo imperioso demarcar natildeo eacute no sentido de entender que a contribuiccedilatildeo dessas pessoas eacute desnecessaacuteria ou inconveniente Pelo contraacuterio Poreacutem a desejada participaccedilatildeo jaacute poderia ser levada a efeito incluindo-as no grupo de personalidades com atuaccedilatildeo de destaque na esfera da eacutetica na pesquisa e na sauacutede sem necessidade de vinculaccedilatildeo necessaacuteria ao pensamento religioso Isso ateacute mesmo para preservar o pluralismo e a igualdade jaacute que obviamente natildeo seraacute possiacutevel oferecer a cada religiatildeo uma vaga Os membros da Comissatildeo satildeo recrutados a partir de indicaccedilotildees contidas em listas elaboradas pelas instituiccedilotildees que possuem CEP registrado na CONEP sendo que 07 (sete) satildeo escolhidos pelo Conselho Nacional de Sauacutede e 06 (seis) satildeo definidos por sorteio Tambeacutem pode contar com consultores e membros ad hoc sendo assegurada a representaccedilatildeo dos usuaacuterios O mandato eacute de quatro anos com renovaccedilatildeo alternada a cada dois anos de sete ou seis de seus membros A CONEP tem tambeacutem um papel coordenador da rede de Comitecircs institucionais aleacutem de se constituir em oacutergatildeo consultor na aacuterea eacutetica em pesquisa Num primeiro momento tem ainda a atribuiccedilatildeo de apreciar os projetos de pesquisas de aacutereas temaacuteticas especiais enviadas pelos CFPs ou seja projetos que contemplam aacutereas com maiores dilemas eacuteticos e grande repercussatildeo social ateacute que se acumulem experiecircncias para elaboraccedilatildeo de normas especiacuteficas complementares agraves existentes Cf FREITAS Carolina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA

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Outros aspectos da Resoluccedilatildeo que merecem especial destaque para o nosso estudo satildeo os relativos ao consentimento livre e esclarecido agrave vulnerabilidade e agrave incapacidade

Como jaacute dito um dos principais pontos da Declaraccedilatildeo de Nuremberg foi o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias A Resoluccedilatildeo tratou do tema exigindo a anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar87 A anuecircncia deve ser expressa atraveacutes de

Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 202

S6 Segundo a Resoluccedilatildeo compete agrave CONEP examinar os aspectos eacuteticos da pesquisa envolvendo seres humanos assim como a adequaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo das normas atinentes consultando a sociedade sempre que julgar necessaacuterio cabendo-lhe entre outras as seguintes atribuiccedilotildees a) estimular a criaccedilatildeo de CEPs institucionais e de outras instacircncias b) registrar os CEPs institucionais e de outras instacircncias c) aprovar no prazo de 60 dias e acompanhar os protocolos de pesquisa em aacutereas temaacuteticas especiais tais como geneacutetica humana reproduccedilatildeo humana faacutermacos medicamentos vacinas e testes diagnoacutesticos novos (fases I II e III) ou natildeo registrados no pais (ainda que fase IV) ou quando a pesquisa for referente a seu uso com modalidades indicaccedilotildees doses ou vias de administraccedilatildeo diferentes daquelas estabelecidas incluindo seu emprego em combinaccedilotildees equipamentos insumos e dispositivos para a sauacutede novos ou natildeo registrados no paiacutes novos procedimentos ainda natildeo consagrados na literatura populaccedilotildees indiacutegenas projetos que envolvam aspectos de biosseguranccedila pesquisas coordenadas do exterior ou com participaccedilatildeo estrangeira c pesquisas que envolvam remessa de material bioloacutegico para o exterior e projetos que a criteacuterio do CEP devidamente justificado sejam julgados merecedores de anaacutelise pela CONEP d) prover normas especiacuteficas no campo da eacutetica em pesquisa inclusive nas aacutereas temaacuteticas especiais bem como recomendaccedilotildees para aplicaccedilatildeo das mesmas e) funcionar como instacircncia final de recursos a partir de informaccedilotildees fornecidas sistematicamente em caraacuteter ex-ofiacutecio ou a partir de denuacutencias ou de solicitaccedilatildeo de partes interessadas devendo manifestar-se em um prazo natildeo superior a 60 (sessenta) dias 0 rever responsabilidades proibir ou interromper pesquisas definitiva ou temporariamente podendo requisitar protocolos para revisatildeo eacutetica inclusive os jaacute aprovados pelo CEP g) constituir um sistema de informaccedilatildeo e acompanhamento dos aspectos eacuteticos das pesquisas envolvendo seres humanos em todo o territoacuterio nacional mantendo atualizados os bancos de dados h) informar e assessorar o MS o CNS e outras instacircncias do SUS bem como do governo e da sociedade sobre questotildees eacuteticas relativas agrave pesquisa em seres humanos i) divulgar esta e outras normas relativas agrave eacutetica em pesquisa envolvendo seres humanos j) juntamente com outros setores do Ministeacuterio da Sauacutede estabelecer normas e criteacuterios para o credenciamento de Centros de Pesquisa e I) estabelecer suas proacuteprias normas de funcionamento

87 No que concerne agrave pesquisa meacutedica a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro estipula no seu art 123 que eacute vedado ao meacutedico Realizar pesquisa em ser humano sem que este tenha dado consentimento por escrito apoacutes devidamente esclarecido sobre a natureza e consequumlecircncia da pesquisa e que Caso o paciente natildeo tenha condiccedilotildees de dar seu livre consentimento a pesquisa somente poderaacute se realizada em seu proacuteprio beneficio apoacutes expressa autorizaccedilatildeo de seu responsaacutevel legal Jaacute a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO no seu art 6 aliacutenea b estabelece que A pesquisa cientiacutefica soacute deve ser realizada com o preacutevio livre expresso e esclarecido consentimento do indiviacuteduo envolvido A informaccedilatildeo deve ser adequada fornecida de uma forma compreensiacutevel e incluir os procedimentos para a retirada do consentimento O consentimento pode ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer hora e por qualquer razatildeo sem acarretar qualquer desvantagem ou preconceito Exceccedilotildees a este princiacutepio somente devem ocorrer quando em conformidade com os padrotildees eacuteticos e legais adotados pelos Estados consistentes com as provisotildees da presente Declaraccedilatildeo particularmente com o art 27 e com os direitos humanos

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em um termo de consentimento onde eacute autorizada a participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa Aleacutem disso natildeo pode estar viciada por simulaccedilatildeo fraude ou erro nem tampouco pode ser obtida por forccedila de uma situaccedilatildeo de dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo

Trata-se de disposiccedilatildeo decorrente da adoccedilatildeo do princiacutepio da autonomia jaacute abordado que se vincula agrave capacidade de autodeterminaccedilatildeo e auto-escolha e pressupotildee dentre outras premissas a capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos possiacuteveis18

Quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de estudo possuem a capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto ao consentimento livre e esclarecido por quaisquer motivos verifica-se uma situaccedilatildeo de vulnerabilidade que natildeo pode ser desconsiderada pelo pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais A preocupaccedilatildeo com a vulnerabilidade dos sujeitos encontra supedacircneo no Coacutedigo de Nuremberg na Declaraccedilatildeo de Helsinque nas Diretrizes Internacionais para Pesquisa Biomeacutedica envolvendo Seres Humanos89 e tambeacutem como jaacute dito na Resoluccedilatildeo 19696 A dificuldade central relacionada a indiviacuteduos e comunidades vulneraacuteveis eacute com a sua capacidade de compreensatildeo (autonomia plena) sobre o experimento e possibilidade de livremente consentir com a pesquisa e quando quiser dela desistir o que justifica todas as preocupaccedilotildees nesse sentido90

Cabe trazer a lume os ensinamentos do professor chileno Fernando Lolas O respeito pela autonomia das pessoas como agentes morais capazes de decisotildees informadas eacute central no diaacutelogo bioeacutetico Somente a permissatildeo outorgada por uma pessoa pode legitimar uma accedilatildeo que a envolva O valor das pessoas eacute incondicional o que obriga a consideraacute-las fins natildeo meios com a liberdade de viver e a de decidir livres de interferecircncias LOLAS Fernando Bioeacutetica o que eacute como se faz Traduccedilatildeo Milton Camargo Mota Satildeo Paulo Loyola 2001 p 63 A Diretriz Internacional para Pesquisa Biomeacutedica afirma Pesquisa envolvendo indiviacuteduos de comunidades sub-desenvolvidas Antes de iniciar a pesquisa em indiviacuteduos de comunidades subdesenvolvidas seja em paiacuteses desenvolvidos ou em desenvolvimento o pesquisador deve estar seguro que As pessoas da comunidade subdesenvolvida natildeo seratildeo ordinariamente envolvidas na pesquisa que possa ser realizada de forma adequada em comunidades desenvolvidas A pesquisa eacute uma resposta agraves necessidades de sauacutede e agraves prioridades da comunidade na qual seraacute realizada todos os esforccedilos seratildeo tomados no sentido de assegurar o imperativo eacutetico de que o consentimento individual dos sujeitos seraacute informado e Os projetos para a pesquisa foram revisados e aprovados por um comitecirc de eacutetica que tenha entre os seus membros ou consultores pessoas que tenham familiaridade com os costumes e tradiccedilotildees da comunidade Em comentaacuterio agraves diretrizes acima Leo Pessini e Christian Paul de Barchifontaine entendem que Quando a experimentaccedilatildeo visa ao estudo de determinadas condiccedilotildees moacuterbidas tais como doenccedilas endecircmicas em comunidades de baixo niacutevel socioeconocircmico eou cultural incapazes de terem uma consciecircncia clara e apropriada das implicaccedilotildees de sua participaccedilatildeo na experiecircncia eacute de bom alvitre que seja obtida a interveniecircncia de um liacuteder em que a coletividade confia Esse intermediaacuterio dever deixar claro que a participaccedilatildeo eacute voluntaacuteria e que qualquer participante tem a liberdade de natildeo aceitar ou abandonar a experiecircncia a qualquer momento op cit p 133

Conforme Marisa Palaacutecios Quando a autonomia dos sujeitos natildeo eacute plena ou seja quando a capacidade de entender as situaccedilotildees que se apresentam ao sujeito e de autodeterminar-se segundo este entendimento estaacute de alguma forma limitada eacute preciso tomar cuidado especial Eacute o caso dos grupos vulneraacuteveis os iacutendios que tecircm a capacidade de entendimento das situaccedilotildees diminuiacuteda uma vez que compotildeem sociedades

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A vulnerabilidade pode assumir as mais variadas vertentes bem como atingir uma determinada pessoa ou um grupo de seres humanos com peculiaridades comuns tais como crianccedilas idosos iacutendios pacientes terminais desempregados deficientes91 presidiaacuterios92 ou outras situaccedilotildees de dependecircncia93

Pode ocorrer que as pessoas que seratildeo estudadas na pesquisa natildeo tenham capacidade civil para dar o seu consentimento Nesse caso se encontram em situaccedilatildeo de incapacidade e a pesquisa soacute pode ser levada adiante com a intervenccedilatildeo de seus representantes legais que de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira deveratildeo assistir ou representar os incapazes Tambeacutem aqui deve o pesquisador cercar-se de cautelas eacuteticas redobradas

Finalmente deve-se louvar a Resoluccedilatildeo por ter explicitado no seu item III3 um rol de 23 (vinte e trecircs) exigecircncias eacuteticas para a pesquisa de qualquer aacuterea do conhecimento que envolva seres humanos94

culturalmente diversas[] Estas para citar algumas populaccedilotildees caracteriacutesticas Satildeo populaccedilotildees que precisam ser especialmente protegidas dada a proacutepria condiccedilatildeo de vulnerabilidade Maria Carolina S Guimaratildees e Sylvia Caiuby Novaes com alento em Hannah Arendt e Cardia definem o ser vulneraacutevel como Algueacutem que possui cidadania fraacutegil que ignora a relevacircncia do direito agrave integridade fiacutesica como condiccedilatildeo de acesso aos direitos sociais econocircmicos poliacuteticos e trabalhistas Dito assim o que parece a primeira condiccedilatildeo para que um ser vulneraacutevel perca tal situaccedilatildeo eacute o investimento do Estado naquilo que constroacutei e constitui a cidadania naqueles atributos que transformam o indiviacuteduo em cidadatildeo que transformam o animal laborans em homem poliacutetico Essa transformaccedilatildeo eacute no dizer de Hannah Arendt um pressuposto da democracia pois permite ao animal laborans ir do reino da necessidade para o reino da liberdade GUIMARAtildeES Maria Carolina S NOVAES Sylvia Caiuby Autonomia reduzida e vulnerabilidade liberdade de decisatildeo diferenccedila e desigualdade Revista Bioeacutetica Brasiacutelia v 7 n 1 p 23 1999

91 Sobre o tema vide COHEN Claacuteudio Bioeacutetica Pesquisa e Deficiecircncia In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 55-62 92 Nem todo ser humano eacute no entanto capaz de autodeterminaccedilatildeo A capacidade de autodeterminaccedilatildeo amadurece ao longo da vida mas pode ser perdida total ou parcialmente por doenccedila velhice ou situaccedilatildeo de restriccedilatildeo severa como a prisatildeo Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 93 O Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de janeiro de 1988) veda ao meacutedico no seu art 128 Realizar pesquisa meacutedica em voluntaacuterios sadios ou-natildeo que tenham direta ou indiretamente dependecircncia ou subordinaccedilatildeo relativamente ao pesquisador 94 I1I3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias a) ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder a incertezas b) estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou em outros fatos cientiacuteficos c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio d) prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis e) obedecer a metodologia adequada Se houver necessidade de distribuiccedilatildeo aleatoacuteria dos sujeitos da pesquisa em grupos experimentais e de controle assegurar que apriori natildeo seja possiacutevel estabelecer as vantagens de um procedimento sobre outro atraveacutes de revisatildeo de literatura meacutetodos observacionais ou meacutetodos que natildeo envolvam seres humanos 0 ter plenamente justificada quando for o caso a utilizaccedilatildeo de placebo em termos de natildeo maleficecircncia e de necessidade metodoloacutegica g) contar com o consentimento livre e esclarecido do sujeito da pesquisa eou seu representante legal h) contar com os recursos humanos e materiais necessaacuterios que garantam o bem-

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5 Teleologia e legitimidade da pesquisa em seres humanos

Toda experimentaccedilatildeo em seres humanos possui um determinado objetivo o qual pode ou-natildeo estar vinculado ao bem estar proacuteprio da pessoa ou grupo observado

Essa situaccedilatildeo natildeo foi esquecida pela Declaraccedilatildeo de Helsinque cujo preacircmbulo afirma Wo campo cia pesquisa biomeacutedica uma distinccedilatildeo fundamental deve ser feita entre a pesquisa meacutedica na qual o objetivo eacute essencialmente o diagnoacutestico ou a terapecircutica para um paciente e a pesquisa meacutedica cujo objeto essencial eacute puramente cientiacutefico e sem um valor direto diagnoacutestico ou terapecircutico para a pessoa sujeita agrave

estar do sujeito da pesquisa devendo ainda haver adequaccedilatildeo entre a competecircncia do pesquisador e o projeto proposto i) prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade a proteccedilatildeo da imagem e a natildeo estigmatizaccedilatildeo garantindo a natildeo utilizaccedilatildeo das informaccedilotildees em prejuiacutezo das pessoas eou das comunidades inclusive em termos de auto-estima de prestiacutegio eou econocircmico - financeiro j) ser desenvolvida preferencialmente cm indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida 1) respeitar sempre os valores culturais sociais morais religiosos e eacuteticos bem como os haacutebitos e costumes quando as pesquisas envolverem comunidades m) garantir que as pesquisas em comunidades sempre que possiacutevel traduzir-se-atildeo em benefiacutecios cujos efeitos continuem a se fazer sentir apoacutes sua conclusatildeo O projeto deve analisar as necessidades de cada um dos membros da comunidade e analisar as diferenccedilas presentes entre eles explicitando como seraacute assegurado o respeito agraves mesmas n) garantir o retomo dos benefiacutecios obtidos atraveacutes das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas Quando no interesse da comunidade houver benefiacutecio real em incentivar ou estimular mudanccedilas de costumes ou comportamentos o protocolo de pesquisa deve incluir sempre que possiacutevel disposiccedilotildees para comunicar tal benefiacutecio agraves pessoas eou comunidades o) comunicar agraves autoridades sanitaacuterias os resultados da pesquisa sempre que os mesmos puderem contribuir para a melhoria das condiccedilotildees de sauacutede da coletividade preservando poreacutem a imagem e assegurando que os sujeitos da pesquisa natildeo sejam estigmatizados ou percam a auto-estima p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefiacutecios resultantes do projeto seja em termos de retorno social acesso aos procedimentos produtos ou agentes da pesquisa q)assegurar aos sujeitos da pesquisa as condiccedilotildees de acompanhamento tratamento ou de orientaccedilatildeo conforme o caso nas pesquisas de rastreamento demonstrar a preponderacircncia de benefiacutecios sobre riscos e custos r) assegurar a inexistecircncia de conflito de interesses entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa ou patrocinador do projeto s) comprovar nas pesquisas conduzidas do exterior ou com cooperaccedilatildeo estrangeira os compromissos e as vantagens para os sujeitos das pesquisas e para o Brasil decorrentes de sua realizaccedilatildeo Nestes casos deve ser identificado o pesquisador e a instituiccedilatildeo nacionais co-responsaacuteveis pela pesquisa O protocolo deveraacute observar as exigecircncias da Declaraccedilatildeo de Helsinque e incluir documento de aprovaccedilatildeo no paiacutes de origem entre os apresentados para avaliaccedilatildeo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa da instituiccedilatildeo brasileira que exigiraacute o cumprimento de seus proacuteprios referenciais eacuteticos Os estudos patrocinados do exterior tambeacutem devem responder agraves necessidades de treinamento de pessoal no Brasil para que o paiacutes possa desenvolver projetos similares de forma independente t) utilizar o material bioloacutegico e os dados obtidos na pesquisa exclusivamente para a finalidade prevista no seu protocolo u) levar em conta nas pesquisas realizadas em mulheres em idade feacutertil ou em mulheres graacutevidas a avaliaccedilatildeo de riscos e benefiacutecios e as eventuais interferecircncias sobre a fertilidade a gravidez o embriatildeo ou o feto o trabalho de parto o puerpeacuterio a lactaccedilatildeo e o receacutem-nascido v) considerar que as pesquisas em mulheres graacutevidas devem ser precedidas de pesquisas em mulheres fora do periacuteodo gestacional exceto quando a gravidez for o objetivo fundamental da pesquisa x) propiciar nos estudos multicecircntricos a participaccedilatildeo dos pesquisadores que desenvolveratildeo a pesquisa na elaboraccedilatildeo do delineamento geral do projeto e z) descontinuar o estudo somente apoacutes anaacutelise das razotildees da descontinuidade pelo CEP que a aprovou

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pesquisa Em outras palavras haacute experimentos em benefiacutecio do paciente e experimentos em benefiacutecio da ciecircncia Ainda no preacircmbulo da Declaraccedilatildeo de Helsinque encontramos que A finalidade da pesquisa meacutedica envolvendo seres humanos deve ser o aperfeiccediloamento do diagnoacutestico procedimentos terapecircuticos e profilaacuteticos e a compreensatildeo da etiologia e da patologia da doenccedila Conjugando essa afirmaccedilatildeo com a anterior podemos extrair que uma determinada pessoa ou populaccedilatildeo pode ser objeto de pesquisa para desvendar doenccedilas que a afligem ou para desnudar as razotildees pelas quais eacute menos suscetiacutevel ou-natildeo eacute atingida por determinada moleacutestia que afeta aos demais seres humanos

A partir dessas observaccedilotildees podemos considerar para os fins do nosso estudo que as experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas teleologicamente em dois grupos a) aquelas cujos objetivos possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas as quais chamaremos de pesquisas com justificativa intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de terceiros as quais denominaremos pesquisas com justificativa extrinseca Temos como exemplo na primeira situaccedilatildeo os experimentos cientiacuteficos para desvendar o porquecirc de uma determinada coletividade ser atingida por taxas elevadas de uma certa doenccedila e na segunda uma pesquisa para revelar as razotildees pelas quais certas pessoas natildeo desenvolvem uma moleacutestia com o objetivo de descobrir uma vacina ou um medicamento para os demais

Entretanto em todo experimento seraacute necessaacuterio averiguar se a justificativa - seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima Isso porque o fato de uma pesquisa ter por objetivo um tratamento mais eficiente ou a cura de certas doenccedilas natildeo legitima por si soacute a utilizaccedilatildeo de pessoas como sujeito de pesquisa mesmo que elas sofram da moleacutestia e possam vir a ser beneficiadas Natildeo se deve perder de vista aliaacutes que se o conhecimento puder ser obtido por outro meio a utilizaccedilatildeo de seres humanos justamente por ser desnecessaacuteria seraacute ilegiacutetima95 Ademais soacute pelo fato de ser intriacutenseca a justificativa natildeo seraacute necessariamente legiacutetima Por outro lado a circunstacircncia isoladamente considerada do eventual resultado da experimentaccedilatildeo ser absolutamente indiferente ao sujeito de pesquisa natildeo torna a sua participaccedilatildeo ilegiacutetima Em outras palavras a justificativa soacute por ser extrinseca natildeo seraacute necessariamente ilegiacutetima

Vale relembrar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 - A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio

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A razatildeo disso reside na afirmaccedilatildeo de que como se sabe desde Kant o Homem deve ser tratado como um fim em si mesmo e natildeo como instrumento De fato eacute em Kant que o Homem ganha status de valor absoluto manifesto no imperativo praacutetico expresso na maacutexima segundo a qual Ages de tal maneira que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio 96

Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

Quando se trata de experimentaccedilatildeo com justificativa intriacutenseca a razatildeo legitimadora pode estar no objetivo de beneficiar os proacuteprios sujeitos da pesquisa algueacutem se submete a uma experimentaccedilatildeo na tentativa de auferir uma vantagem em seu bem-estar fiacutesico ou mental

Jaacute no caso da justificativa extriacutenseca poder-se-ia objetar a realizaccedilatildeo da experimentaccedilatildeo com suposto fundamento na Resoluccedilatildeo 19696 cujo item III 1 letra d vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila Ora se em uma determinada situaccedilatildeo algueacutem participa do experimento sem que haja qualquer possibilidade de benefiacutecio fiacutesico ou mental para si a partir do resultado da pesquisa e considerando que a mesma Resoluccedilatildeo veda qualquer forma de remuneraccedilatildeo do sujeito da pesquisa (item 1110) qual a vantagem significativa que poderaacute essa pessoa auferir para justificar a sua participaccedilatildeo

Ao nosso ver a interpretaccedilatildeo desse ponto da Resoluccedilatildeo natildeo deve ser literal nem assistemaacutetica97 devendo ser considerada a incidecircncia de um outro princiacutepio ainda

Op cit p 69 Em comento a este imperativo Francesca Puigpclat Marti apregoa que La concepcioacuten liberal asocia a esta expresioacuten una idea comuacuten en Ia reflexioacuten eacutetica de raigambre kantiana el hombre es un fin en si mismo un sujeto y no un objeto Seguacuten Kant en el sistema de Ia natureza el hombre (homo phaenomenon animal rationale) es un ser de escasa importancia y tiene con los demaacutes animales en tanto que productos de Ia tierra un precio comuacuten () Ahora bien el hombre considerado como persona es dccir como sujeto de una razoacuten praacutetico-moral estaacute situado por encima de todo precio porque como tal (homo noumenon) no puede valorarse soacutelo como meacutedio para fines ajenos incluso para sus proprios fines sino como fin en siacute mismo es decir posee una dignidad(un valor interno absoluto) gracias a la cual infunde respeto haciacutea eacutel a todos los demaacutes seres racionales dei mundo puede medirse con cualquier otro de esta clase y valorarse en pie de igualdad En la medida en que seguacuten Kant el hombre existe como fin en siacute mismo y no soacutelo como meacutedio para usos cualesquiera de una u otra voluntad se puede formular el siguiente principio praacutetico supremo obra de tal modo que uses la humanidad tanto en tu persona como en la persona de cualquier otro siempre como un fin al mismo tiempo y nunca solamente como un meacutedio MARTIacute Francesca Puigpelat Clonacioacuten dignidad humana y constitucioacuten Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo ano II n 42 janmar p37-64 2003

Natildeo se interpreta o direito em tiras aos pedaccedilos () Um texto de direito isolado destacado desprendido do sistema juriacutedico natildeo expressa significado normativo algum Cf GRAU Eros Roberto Ensaio e

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que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que eacute o da solidariedade Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita entendemos que a sua aplicaccedilatildeo eacute cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele dispositivo (item 1111 letra d da Resoluccedilatildeo 19696) afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria Aleacutem disso outros documentos de importacircncia para a Bioeacutetica fazem referecircncia agrave solidariedade98 De fato natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao respeito agrave dignidade da pessoa humana99

Logo no nosso pensar mesmo que natildeo haja nenhum benefiacutecio ou vantagem direta ao sujeito de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma justificativa eacutetica a qual pode ter como nuacutecleo a intenccedilatildeo solidaacuteria dessa pessoa e do pesquisador de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e consequumlentemente para todos os demais seres humanos

A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica100

Estas exigecircncias no acircmbito normativo brasileiro estatildeo listadas na Resoluccedilatildeo 19696 especialmente no item III3

Algumas delas satildeo puramente objetivas e uma vez desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca E o caso por exemplo da necessidade de consentimento preacutevio e informado

discurso sobre a interpretaccedilatildeoaplicaccedilatildeo do Direito Satildeo Paulo Malheiros Editores 2002 p 34 98

O art 1deg da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos proclama que todas pessoas devem agir em relaccedilatildeo umas agraves outras com espiacuterito de fraternidade Alem disso a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO em um dos seus considerandos observa que os seres humanos tecircm um papel importante na proteccedilatildeo um do outro tratando expressamente da solidariedade e cooperaccedilatildeo no seu art 13 segundo o qual A solidariedade entre os seres humanos e cooperaccedilatildeo internacional para este fim devem ser estimuladas 99 Ela [a solidariedade] eacute o fecho de aboacutebada do sistema de princiacutepios eacuteticos pois complementa e aperfeiccediloa a liberdade a igualdade e a seguranccedila () E um erro considerar que no mundo da natureza sobretudo no mundo animal natildeo exista solidariedade e que ela seja uma criaccedilatildeo poliacutetica Muito pelo contraacuterio pode-se dizer que a biosfera forma naturalmente um sistema solidaacuterio e que o rompimento desse sistema eacute sempre obra do homem O proacuteprio Darwin bem advertiu que a expressatildeo struggle for Existence fora por ele usada em sentido amplo e matafoacuterico incluindo a dependecircncia de um ser em relaccedilatildeo a outro bem como incluindo (o que eacute mais importante) natildeo apenas a vida do indiviacuteduo mas o ecircxito em deixar descendentes Os zooacutelogos jaacute observaram que o processo de seleccedilatildeo natural deu mais vantagens bioloacutegicas aos grupos que cuidavam de seus membros natildeo reprodutivos do que agravequeles que abandonavam ou matavam os anciatildeos pois a capacidade de reproduccedilatildeo global dos grupos altruiacutestas eacute assim singularmente reforccedilada Cf COMPARATO Faacutebio Konder Eacutetica direito moral e religiatildeo no mundo moderno Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 p 577578

100

Natildeo eacute agrave toa portanto que como jaacute visto a Resoluccedilatildeo 19696 vincula a eticidade na pesquisa aos princiacutepios da Bioeacutetica tanto no seu preacircmbulo como no seu item III 1

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dos participantes - ou dos seus representantes se incapazes - 101 cuja ausecircncia macula o princiacutepio da autonomia Tambeacutem eacute objetiva a exigecircncia da pesquisa estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou outros fatos cientiacuteficos102 cuja inobservacircncia implica em ofensa agrave natildeo-maleficecircncia Nessas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou-natildeo vir a ter um benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

Outras exigecircncias entretanto possuem um certo grau de subjetividade em maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as circunstacircncias faacuteticas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo de valor iacutensito a cada um Desse tipo vg eacute a exigecircncia segundo a qual a pesquisa deve ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e ter possibilidades concretas de responder a incertezas103 A avaliaccedilatildeo quanto ao cumprimento ou-natildeo da exigecircncia e portanto quanto agrave legitimidade ou ilegitimidade da utilizaccedilatildeo de seres humanos tem um niacutetido caraacuteter subjetivo podendo variar de pessoa para pessoa

Quando tratamos de exigecircncias subjetivas haacute ainda um outro aspecto a ser apontado deveraacute ser levado em conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca Em outras palavras a circunstacircncia do sujeito de pesquisa poder vir a ser beneficiado ou-natildeo pelo resultado do experimento deve ser considerada na verificaccedilatildeo da legitimidade eacutetica quando da ponderaccedilatildeo sobre o cumprimento das exigecircncias subjetivas

Tomemos como exemplo a exigecircncia de que devem prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis104 Ora essa exigecircncia eacute subjetiva pois envolve uma ponderaccedilatildeo cujo resultado estaacute vinculado a um juiacutezo de valor sobre a natureza e a importacircncia ou peso de cada benefiacutecio ou risco provaacutevel Ao nosso entender quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal no resultado do experimento tratando-se portanto de justificativa extriacutenseca eacute oacutebvio que os riscos a que se submete devem ser considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o benefiacutecio esperado tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa submetida ao experimento

101 Item III3 letra g da Resoluccedilatildeo 19696 102 Item III3 letra b da Resoluccedilatildeo 19696 103 Item III3 letra a da Resoluccedilatildeo 19696 104 Item III3 letra d da Resoluccedilatildeo 19696

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Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila105 Por outro lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

A proacutepria realizaccedilatildeo ou-natildeo da pesquisa pode depender dessa ponderaccedilatildeo jaacute que a Resoluccedilatildeo n 19696 prevecirc que havendo riscos potenciais as pesquisas envolvendo seres humanos poderatildeo ser admitidas quando oferecerem elevada possibilidade de gerar conhecimento para entender prevenir ou aliviar um problema que afete o bem-estar dos sujeitos da pesquisa e de outros indiviacuteduos 106

Aleacutem disso parece ser mais aceitaacutevel eticamente submeter o ser humano a riscos maiores quando a justificativa eacute intriacutenseca do que quando ela eacute extriacutenseca priorizando assim a sua preservaccedilatildeo Nesse sentido a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO estipula que uos interesses e o bem-estar do indiviacuteduo devem ter prioridade sobre o interesse exclusivo da ciecircncia ou da sociedade 107

Natildeo se pode esquecer ainda que por forccedila dos princiacutepios da beneficecircncia da natildeo-maleficecircncia e da justiccedila eacute preciso considerar na mediccedilatildeo da legitimidade as peculiaridades individuais ou coletivas dos sujeitos de pesquisa especialmente no que concerne agraves suas eventuais vulnerabilidades bem como cuidar para que natildeo lhes seja imposto um mal desnecessaacuterio ou desproporcional O princiacutepio da justiccedila como vimos implica necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa os quais sempre que possiacutevel devem ter garantido para si pelo pesquisador a fruiccedilatildeo dos benefiacutecios da experimentaccedilatildeo natildeo sendo equacircnime impor-Ihes ocircnus excessivos108 especialmente se vulneraacuteveis Natildeo eacute agrave toa portanto que pode

105 O princiacutepio da justiccedila implica atenccedilatildeo especial agraves regras de recrutamento de participantes de experimentos Natildeo se pode fazer experimentos apenas com determinados grupos - pacientes de enfermaria asilados prisioneiros - simplesmente porque eles estatildeo agrave disposiccedilatildeo e em situaccedilatildeo de dependecircncia Isso eacute injusto Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 Item Vl aliacutenea a

107 Art 3 aliacutenea b 108 bull

Consideramos que deva ser modificada a praacutetica muito comum em nosso paiacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de pesquisados provenientes das camadas mais desfavorecidas da sociedade ou de outros grupos vulneraacuteveis mas que posteriormente natildeo poderatildeo se beneficiar dos resultantes positivos das pesquisas em que tomaram parte mesmo tendo enfrentado riscos de danos psico-sociais As pesquisas realizadas nesses grupos devem poder lhes trazer benefiacutecios e os pesquisadores sempre que possiacutevel devem garantir retomo dos benefiacutecios resultados das pesquisas para os sujeitos individuais e coletivos que nelas participarem Cf FORTES Paulo Antonio de Carvalho As Pesquisas em Seres Humanos e o Principio Eacutetico da Justiccedila

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haver exigecircncias eacuteticas especiacuteficas para pesquisas com serem humanos em situaccedilatildeo de vulnerabilidade109

Assim sempre seraacute preciso dosar a equaccedilatildeo riscobeneficio ponderando em cada caso concreto se os eventuais benefiacutecios satildeo suficientes para motivar a exposiccedilatildeo das pessoas ao processo de experimentaccedilatildeo Pode ser que diante de certas peculiaridades ou vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima110 Aliaacutes como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis justamente porque como jaacute dito o ser humano natildeo pode ser tratado como mero instrumento1

E natildeo eacute soacute Aleacutem disso em princiacutepio a pesquisa com pessoas ou grupos vulneraacuteveis deve ter uma justificativa intriacutenseca2 Entretanto sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas em experimentos extriacutensecos agrave luz da solidariedade como no caso do grupo vulneraacutevel ser imune a determinada moleacutestia por razatildeo ainda desconhecida o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias objetivas agrave risca deve ser ainda mais

Cadernos de Eacutetica em Pesquisa Ano 1 n 2 p 22-23 nov 1998 109

A tiacutetulo de exemplo a Resoluccedilatildeo 19696 traz alguns requisitos especiacuteficos para o consentimento livre e esclarecido de pessoas ou populaccedilotildees vulneraacuteveis no item IV3

110 Um caso de niacutetida violaccedilatildeo aos princiacutepios bioeacuteticos em pesquisas envolvendo grupo vulneraacutevel foi o jaacute mencionado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm Conforme um dos colaboradores da pesquisa utilizar doentes mentais ainda que natildeo voluntaacuterios foi a melhor opccedilatildeo diante do fato de que o principal problema da sauacutede puacuteblica era justamente o das doenccedilas dentaacuterias razatildeo pela qual os fins justificariam os meios ainda mais considerando que o estudo foi utilizado em todo o mundo (Krasse B Sueacutecia usou deficiente mental como cobaia Folha de Satildeo Paulo 23 Set 1997 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas cliacutenicas sobre seus direitos 2005 p 61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo) sendo faacutecil criticar o fato depois de consumado (Krasse B The Vipeholm dental caries study recollections and reflections 50 years later J Dent Res 2001 80(9) 1785-8 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu op cit p 61) Mais uma vez cabiacutevel rememorar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () j) ser desenvolvida preferencialmente em indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida

112 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO eacute clara ao afirmar em seu art 7 aliacutenea b no que diz respeito a indiviacuteduos sem a capacidade para fornecer consentimento que a pesquisa soacute deve ser realizada para o beneficio direto agrave sauacutede do indiviacuteduo envolvido estando sujeita agrave autorizaccedilatildeo e agraves condiccedilotildees de proteccedilatildeo prescritas pela legislaccedilatildeo e caso natildeo haja nenhuma alternativa de pesquisa de eficaacutecia comparaacutevel que possa incluir sujeitos de pesquisa com capacidade para fornecer consentimento

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rigoroso na ponderaccedilatildeo do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da autonomia e justiccedila expondo tais pessoas a riscos miacutenimos menores ateacute do que aqueles normalmente empregados em pesquisas com justificativa intriacutenseca3

Se essas diretrizes natildeo forem observadas teremos uma pesquisa carente de justificativa eacutetica e de legitimidade

6 Conclusotildees

Em virtude dos limites inerentes agrave nossa abordagem nessas consideraccedilotildees finais natildeo apresentaremos verdades irrefutaacuteveis e definitivas sobre um tema que ainda carece de um importante debate acadecircmico e normativo Com efeito o que pretendemos modestamente foi evidenciar alguns paradigmas que possam ensejar a conciliaccedilatildeo da dignidade da pessoa humana com a continuidade dos processos de investigaccedilatildeo cientiacuteficos realizados em seres humanos Para tanto podemos sintetizar nosso pensamento nas seguintes conclusotildees

a) O desenvolvimento da ciecircncia mormente em aacutereas afeitas agrave vida e a ocorrecircncia de pesquisas francamente contraacuterias agrave dignidade humana como ocorrido em vaacuterias passagens da Segunda Guerra ensejaram o surgimento da Bioeacutetica como um novo ramo do conhecimento

b) Deve-se limitar a atuaccedilatildeo da Bioeacutetica aos casos em que haacute conflito de valores quando dois princiacutepios eacutetica e moralmente admissiacuteveis natildeo podem coexistir

c) Haacute iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica Autonomia Beneficecircncia e Justiccedila aleacutem da Natildeo-Maleficecircncia - e as pesquisas em seres humanos

113 Ainda conforme o art 7 aliacutenea b da Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO quando se trata de pessoas incapazes Pesquisas sem potencial beneficio direto agrave sauacutede soacute devem ser realizadas excepcionalmente com a maior restriccedilatildeo expondo o indiviacuteduo apenas a risco e desconforto miacutenimos e quando se espera que a pesquisa contribua com o benefiacutecio agrave sauacutede de outros indiviacuteduos na mesma categoria sendo sujeitas agraves condiccedilotildees prescritas por lei e compatiacuteveis com a proteccedilatildeo dos direitos humanos do indiviacuteduo A recusa de tais indiviacuteduos em participar de pesquisas deve ser respeitada

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1218 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

d) Os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica

pluralista aberta e receptiva e satildeo um poderoso instrumento

para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

razotildees pelas quais eacute descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos

debates bioeacuteticos

e) O avanccedilo tecnoloacutegico traz cada vez mais a diminuiccedilatildeo de

limites teacutecnicos ao ser humano o que conduz ao debate sobre a

necessidade de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees para

evitar eventuais abusos especialmente na aacuterea biomeacutedica

elevando a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que

demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave

vida

0 A concretizaccedilatildeo dos objetivos atuais da humanidade

especialmente em relaccedilatildeo agrave expectativa de vida depende

dentre outros fatores da pesquisa cientiacutefica e da

experimentaccedilatildeo em seres humanos Poreacutem eacute preciso tomar o

Homem como sujeito de pesquisa sem trataacute-lo como mero

instrumento mas como um fim em si mesmo

g) A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do

interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda

Guerra trouxeram agrave tona a questatildeo da eacutetica na pesquisa

evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana e

de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa

em seres humanos gerando uma seacuterie de normas internacionais

e nacionais a exemplo do Coacutedigo de Nuremberg da

Declaraccedilatildeo de Helsinque e no Brasil da Resoluccedilatildeo n 19696

do Conselho Nacional de Sauacutede

h) Dentre os principais aspectos da Resoluccedilatildeo n 19696 do

Conselho Nacional de Sauacutede encontramos a vinculaccedilatildeo da

experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da

principiologia da Bioeacutetica a explicitaccedilatildeo de um rol de

exigecircncias para a eticidade na pesquisa as definiccedilotildees de

diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica como o

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1219

consentimento livre e esclarecido a vulnerabilidade e a

incapacidade a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em

Pesquisa -CONEP e a regulamentaccedilatildeo dos Comitecircs de Eacutetica e

Pesquisa - CEPs

i) O consentimento livre e esclarecido decorre da adoccedilatildeo do

princiacutepio da autonomia e pressupotildee dentre outras premissas a

capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os

aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos

possiacuteveis

j) A vulnerabilidade natildeo pode ser desconsiderada pelo

pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais ocorrendo

quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de

estudo por quaisquer motivos possuem a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto agrave

compreensatildeo sobre o experimento e a possibilidade de

livremente consentir com a pesquisa e dela desistir

k) A incapacidade ocorre quando as pessoas que seratildeo estudadas

na pesquisa natildeo possuem capacidade civil para dar o seu

consentimento soacute podendo ser levada adiante a pesquisa com a

intervenccedilatildeo de seus representantes legais implicando tambeacutem

no dever do pesquisador de cercar-se de cautelas eacuteticas

redobradas

1) As experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas

teleologicamcnte em dois grupos a) aquelas cujos objetivos

possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas

observadas as quais chamamos de pesquisas com justificativa

intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo

direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de

terceiros as quais denominamos pesquisas com justificativa

extrinseca

m) Em todo experimento eacute necessaacuterio averiguar se a justificativa -

seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1220 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima jaacute que a

justificativa soacute pelo fato de ser intriacutenseca natildeo seraacute

necessariamente legiacutetima nem tampouco soacute por ser extriacutenseca

seraacute necessariamente ilegiacutetima

n) Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a

realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser

encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca

como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

o) A interpretaccedilatildeo do item III1 letra d da Resoluccedilatildeo n 19696

que vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens

significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de

infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila natildeo deve ser literal nem

assistemaacutetica devendo ser considerada a incidecircncia de um

outro principio ainda que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que

eacute o da solidariedade

p) Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita ao princiacutepio da

solidariedade na Resoluccedilatildeo n 19696 a sua aplicaccedilatildeo eacute

cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele

texto afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua

relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-

humanitaacuteria

q) Logo mesmo que natildeo haja nenhum beneficio direto ao sujeito

de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma

justificativa a qual pode ser a intenccedilatildeo sua e do pesquisador

de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e

consequumlentemente para todos os demais seres humanos Aleacutem

disso natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica

sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao

respeito agrave dignidade da pessoa humana

r) A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em

seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade

poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1221

diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica listadas na

Resoluccedilatildeo n 19696 especialmente no item III3

s) Algumas exigecircncias satildeo puramente objetivas e uma vez

desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da

justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca

t) Nas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa

ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou natildeo vir a ter um

benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

u) Outras exigecircncias possuem um certo grau de subjetividade em

maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da

pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo

exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as

circunstacircncias faacutetiacutecas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo

de valor iacutensito a cada um

v) Quando se tratar de exigecircncias subjetivas deveraacute ser levado em

conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma

justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca

w) Quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou

sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal

no resultado do experimento tratando-se portanto de

justificativa extriacutenseca os riscos a que se submete devem ser

considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a

justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o beneficio esperado

tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa

submetida ao experimento

x) Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do

sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero

instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila e por outro

lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute

menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa

consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1222 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a

algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

y) Pode ser que diante de certas peculiaridades ou

vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo

considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa

em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua

realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo

eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima

z) Como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras

pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis

mas sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas agrave luz da

solidariedade o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias

objetivas agrave risca deve ser ainda mais rigoroso na ponderaccedilatildeo

do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave

observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da

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Page 13: BIOÉTICA E PESQUISAS EM SERES HUMANOS

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1199

A concretizaccedilatildeo desses objetivos depende de inuacutemeros fatores ligados agrave pesquisa cientiacutefica43 dentre os quais um que eacute o ponto central deste trabalho a experimentaccedilatildeo em seres humanos De fato o progresso do nosso conhecimento no passado e no futuro estaacute intimamente ligado agrave necessidade de observaccedilatildeo do funcionamento e da reaccedilatildeo do corpo e da mente humanas44

Em outras palavras eacute preciso tomar o ser humano como sujeito de pesquisa45

Esse fato bom que se diga natildeo eacute exatamente novo tem ocorrido no correr dos tempos suscitando questotildees eacuteticas de suma relevacircncia pois nem sempre as pessoas estudadas tiveram o trato adequado

A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda Guerra mormente as realizadas pelos japoneses e nazistas alematildees tais como a infestaccedilatildeo de prisioneiros com doenccedilas para testar vacinas e a esterilizaccedilatildeo e amputaccedilatildeo de membros46 trouxeram agrave tona a questatildeo da

43 A discussatildeo a respeito das pesquisas natildeo pode se limitar agravequelas de natureza meacutedica e farmacoloacutegica onde os impactos e riscos satildeo maiores e mais perceptiacuteveis E ampla a definiccedilatildeo de pesquisas em seres humanos adotada pela Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede conforme adiante se veraacute Leonard M Martin C Ss R preleciona O documento pretende regulamentar toda pesquisa em seres humanos e natildeo apenas pesquisas puramente biomeacutedicas Nesta perspectiva pesquisas socioloacutegicas e antropoloacutegicas tambeacutem devem passar pelo crivo de Comitecircs de Eacutetica independentes e ser alvo de discussatildeo sobre sua eticidade MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

44 O efeito de um tratamento sobre o homem soacute pode ser observado no proacuteprio homem Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

45 Esse fenocircmeno ocorre em todas as aacutereas do conhecimento e natildeo apenas nas ciecircncias biomeacutedicas Na realidade quando se fala em experimentaccedilatildeo com seres humanos pensa-se quase que exclusivamente na experimentaccedilatildeo no campo da Medicina Essa vinculaccedilatildeo eacute compreensiacutevel pois a experimentaccedilatildeo na aacuterea meacutedica eacute mais visiacutevel e de efeitos mais patentes em geral Contudo eacute bom assinalar que seres humanos satildeo utilizados em experimentaccedilatildeo por profissionais e cientistas de outras aacutereas odontoacutelogos nutricionistas farmacecircuticos fisioterapeutas psicoacutelogos profissionais da aacuterea de educaccedilatildeo fiacutesica e de esporte educadores e tambeacutem economistas Cf HOSSNE William Saad VIEIRA Socircnia Experimentaccedilatildeo com Seres Humanos Aspectos Eacuteticos In SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 159-179 Leonard M Martin C Ss R com base em McNeill e Jonsen destaca que [] as experiecircncias antieacuteticas dos nazistas incluiacuteram colocar prisioneiros em cacircmaras de pressatildeo modificar a pressatildeo atmosfeacuterica e observar suas mortes estudar o impacto sobre o corpo humano de imersatildeo em aacutegua gelada por periacuteodos prolongados infectar os internos com tifo malaacuteria e outras doenccedilas para testar drogas e vacinas esterilizaccedilatildeo e castraccedilatildeo procurando meacutetodos eficazes para esterilizaccedilatildeo em massa administrar venenos para estudar os efeitos letais e estudos com gecircmeos tipo infectando um matando os dois e comparando os corpos em autoacutepsia No atinente a experiecircncias japonesas MARTIN informa que no ala de desenvolver armas bioloacutegicas [] os japoneses atacaram pelo menos onze cidades com armas bioloacutegicas e infestaram uma cidade com pulgas portadores da peste bubocircnica A Unidade 731 tambeacutem era uma prisatildeo onde os prisioneiros foram submetidos a experiecircncias desumanas Houve cirurgia experimentais pessoas foram desidratadas ateacute a morrer alguns tiveram braccedilos congelados e depois degelados usando vaacuterios meacutetodos com a consequumlecircncia de que a carne apodreceu e caiu o fiacutegado de outras pessoas foi exposto por longos

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eacutetica na pesquisa evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana47 e de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa em seres humanos48

Como resposta agraves atrocidades praticadas na Segunda Guerra foi instituiacutedo em 1947 no acircmbito internacional pelo Tribunal de Nuremberg que julgou vinte e trecircs criminosos de guerra nazistas dos quais vinte meacutedicos ligados agrave experimentaccedilatildeo em pessoas49 o denominado Coacutedigo de Nuremberg o qual estabeleceu as diretrizes gerais para pesquisa em seres humanos A doutrina destaca como principais conquistas do coacutedigo o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa em retirar-se do experimento e de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias deste bem como a necessidade de estudos preacutevios sobre a importacircncia da pesquisa e os seus riscos aleacutem da comprovaccedilatildeo da capacidade dos pesquisadores50

Um ano depois a humanidade assiste agrave proclamaccedilatildeo agora pela Assembleacuteia Geral das Naccedilotildees Unidas de um outro documento de suma importacircncia a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos que embora de caraacuteter geral alberga

periacuteodos ao raio-X houve casos do sangue da pessoa ser substituiacutedo por sangue de cavalo e quando as cobaias humanas natildeo serviam mais para as experiecircncias foram executadas O autor ainda ressalta que diferentemente dos alematildees que foram condenados alguns inclusive enforcados os americanos resolveram poupar os japoneses permitindo que continuassem suas carreiras MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

4 Haacute quem afirme - sem razatildeo ao nosso ver - que a dignidade eacute um conceito inuacutetil um mero slogan e que natildeo significaria mais do que o respeito pelas pessoas e por sua autonomia Nesse sentido vide vg MACKLIN Ruth Dignity is a useless concept Brilish Medica Journal v 327 p 20-27 dez 2003 Disponiacutevel em lthttpbmjbmjjournalscomcgicontentfull3277429l419gt Aacessado em 27 maio de 2006 Em sentido inverso sobre as relaccedilotildees entre a Bioeacutetica e a dignidade vide dentre outros ADORNO Roberto La bioegravetique et la dignitegrave de Ia persone Paris Presses Universitaires de France 1997 Os documentos internacionais mencionam o elo entre Bioeacutetica e dignidade A jaacute mencionada Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten por exemplo afirma textualmente que A pesquisa e experiecircncia com seres humanos devem ser realizadas harmonizando a liberdade da ciecircncia e o respeito da dignidade humana

48 A experimentaccedilatildeo em seres humanos causa impacto porque as pessoas temem o abuso Os abusos jaacute ocorreram estatildeo ocorrendo c ainda ocorreratildeo mas proibir o uso natildeo eacute a melhor maneira de impedir o abuso Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

49 Estima-se que centenas de meacutedicos atuaram nos campos de concentraccedilatildeo dos quais pelo menos setenta teriam participado de experimentos com seres humanos A maioria dos meacutedicos de maior expressatildeo conseguiram escapar do julgamento como foi o caso de Josef Mengele principal meacutedico do campo de extermiacutenio de Auschwitz que fugiu e chegou a viver 14 anos no Brasil onde morreu afogado em Bertioga em 1979 O julgamento levou oito meses As sentenccedilas e o Coacutedigo de Nuremberg foram anunciados conjuntamente em 19 de agosto de 1947 Sete acusados foram condenados agrave morte Cf CREMESP Diretrizes e Declaraccedilotildees Disponiacutevel em lthttpvwvbiocticaorgbrlegislacaooutras_diretrizesintegraphpgt Acessado em 30 maio 2006 Discute-se hoje a validade cientiacutefica dos experimentos realizados bem como se eacute eacutetico utilizar os resultados obtidos Nesse sentido vide mateacuteria intitulada Doutores da agonia publicada na revista Superinteressante ed 225 abr2006 p 52-61

50 Cf FREITAS Corina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 195

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direitos que natildeo podem ser olvidados quando da experimentaccedilatildeo com seres humanos a exemplo da dignidade da igualdade e da liberdade Aleacutem disso haacute diversas ligaccedilotildees entre a Declaraccedilatildeo e os princiacutepios da Bioeacutetica51

Assim como a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos o Coacutedigo de Nuremberg proclama criteacuterios princiacutepios miacutenimos e irredutiacuteveis para eticidade da pesquisa em seres humanos Ambas as declaraccedilotildees embora de grande importacircncia para a Bioeacutetica satildeo normalmente entendidas como desprovidas de instrumentos adequados de obrigatoriedade52 e de mecanismos sancionatoacuterios de modo que sua infraccedilatildeo na maioria dos casos tem gerado apenas sanccedilotildees morais

Natildeo-obstante o estabelecido no Coacutedigo de Nuremberg - e na Declaraccedilatildeo Universal - as violaccedilotildees continuaram a ocorrer inclusive nos paiacuteses signataacuterios De fato por exemplo nos Estados Unidos teve continuidade como se nada houvesse acontecido a famosa pesquisa sobre siacutefilis em Tuskegee no condado de Macon Alabama financiada com recursos federais onde especialmente negros e pobres acreditavam que estavam se submetendo a um tratamento especial gratuito quando na verdade nada recebiam embora jaacute houvesse medicamentos disponiacuteveis servindo como verdadeiras cobaias entre 1932 e 1973 para que os pesquisadores pudessem acompanhar o desenvolvimento da doenccedila1 Ainda exemplificativamente foi iniciado em 1946 o chamado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm um dos mais famosos e importantes estudos de odontologia jaacute realizados no qual mais de 436 deficientes mentais crocircnicos internos da cidade de Lund no sul da Sueacutecia que natildeo tinham sequer a menor consciecircncia do que ocorria foram submetidos ateacute 1951 a uma dieta especial rica em accediluacutecar para provar que esta substacircncia provocava caacuteries sem que lhes fosse dado qualquer tratamento54

Por exemplo ao afirmar no seu art 1deg que todas pessoas satildeo dotadas de razatildeo e consciecircncia o documento da ONU reforccedila a ideacuteia de autonomia

52 Em relaccedilatildeo agrave Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Faacutebio Konder Comparato afirma que embora seja tecnicamente apenas uma recomendaccedilatildeo da ONU a seus membros os direitos ali definidos correspondem integralmente ao que o costume e os princiacutepios juriacutedicos internacionais reconhecem hoje como normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens) como a proacutepria Corte Internacional de Justiccedila tem entendido COMPARATO Faacutebio Konder A afirmaccedilatildeo histoacuterica dos Direitos Humanos 4 ed rev e atual Satildeo Paulo Saraiva 2005 p 223-224

53 Vide vg a respeito REVERBY S M More than Fact and Fiction Cultural Memory and the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 31 p 22-28 2001 BRANDT A M Racism and Research The Case of the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 8 p 21-29 1978 BEECHER H K Ethics and Clinicai Research New England Journal of Medicine n 274 p 1354-1360 1966

54 Cf SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas clinicas sobre seus direitos 2005 p 55-61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

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Os avanccedilos tecnoloacutegicos cada vez mais raacutepidos reverberaram nas questotildees eacuteticas forccedilando novas e perioacutedicas revisotildees Necessaacuterio se fez portanto a rediscussatildeo do tema e o aprimoramento do sistema normativo Assim sobreveio a Declaraccedilatildeo de Helsinque elaborada pela Associaccedilatildeo Meacutedica Mundial em 1964 texto que foi revisto e ampliado em 1975 (Toacutequio)55 1983 (Veneza) 1989 (Hong Kong) 1996 (Somerset) e 2000 (Edimburgo) com o que foram incorporadas vaacuterias inovaccedilotildees Por exemplo a disposiccedilatildeo no sentido de que No final do estudo todos os pacientes participantes devem ter assegurado o acesso aos melhores meacutetodos comprovados profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos identificados pelo estudo E no atinente ao uso de placebo que Os benefiacutecios riscos dificuldades e efetividade de um novo meacutetodo devem ser testados comparando-os com os melhores meacutetodos profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos atuais Isto natildeo exclui o uso de placebo ou nenhum tratamento em estudo onde existam meacutetodos provados de profiacutelaxia diagnoacutestico e tratamento 56 Foi tambeacutem reforccedilada a recomendaccedilatildeo do Coacutedigo de Nuremberg sobre a necessidade de submissatildeo do protocolo de pesquisa agrave anaacutelise por um Comitecirc de Eacutetica independente do pesquisador

Outros textos e documentos que tratam da pesquisa merecem referecircncia como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos de 196657 o intitulado Diretrizes Internacionais para a pesquisa biomeacutedica em seres humanos elaborado conjuntamente pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e pelo Council for International Organizations of Medicai Sciences (1993) a Declaraccedilatildeo de Manila (1981) a Declaraccedilatildeo de Princiacutepios Eacuteticos dos Meacutedicos do Mercosul (1996) a Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten (2000) e a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da Unesco (2005)

Em que pese o entendimento de que haacute carecircncia de instrumentos imperativos que garantam a exigibilidade dos referidos documentos sem duacutevida eles

A respeito Leo Pessini e Christian de Paul Barehifontaine ensinam que Tal modificaccedilatildeo fieou conhecida como Helsinque II Entre outros pontos importantes foram incluiacutedos nesta revisatildeo os seguintes aspectos I) Exigecircncia de que o protocolo experimental seja aprovado por uma comissatildeo independente para efeito de apreciaccedilatildeo comentaacuterios e orientaccedilatildeo (item I 2) 2) Que os seres humanos natildeo sejam utilizados em pesquisas a menos que o consentimento consciente do paciente dado livremente tenha sido obtido depois do mesmo ter sido adequadamente informado sobre os objetivos meacutetodos benefiacutecios esperados riscos potenciais e inconvenientes da experimentaccedilatildeo e que ele tenha liberdade de se abster e de cancelar sua participaccedilatildeo a qualquer momento (art I 9) 3) Que o protocolo contenha embasamento eacutetico da pesquisa e a referecircncia de que foram obedecidos os princiacutepios da Declaraccedilatildeo de Helsinque (item I 12) 4) Que os interesses da ciecircncia e da sociedade jamais tenham precedecircncia sobre o bem-estar do indiviacuteduo (item III 4) PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Problemas aluais de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1994 p 131

56 GRECO Dirceu B Poder e injusticcedila na pesquisa envolvendo seres humanos In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 264

57 De acordo com o seu art 7o Ningueacutem poderaacute ser submetido a tortura nem a penas ou tratamentos crueacuteis desumanos ou degradantes Seraacute proibido sobretudo submeter uma pessoa sem seu livre consentimento a experiecircncias meacutedicas ou cientiacuteficas

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contribuiacuteram e contribuem significativamente na proteccedilatildeo ao ser humano objeto de pesquisa pois influenciaram a elaboraccedilatildeo de diretrizes vinculantes no plano individual de cada Estado a exemplo do Brasil como a seguir veremos Por outro lado importante anotar que uma harmonia consensual e global no atinente agrave pesquisa parece impossiacutevel tendo em conta que a cultura os objetivos e as condiccedilotildees cientiacuteficas dos diversos paiacuteses satildeo naturalmente diversificados58 Aliaacutes haacute quem chegue a afirmar que o pluralismo eacutetico em vigor nos dias de hoje natildeo nos permite mais falar em moral universal59

No Brasil a normatizaccedilatildeo se daacute principalmente atraveacutes de resoluccedilotildees do Conselho Federal de Medicina60 e do Conselho Nacional de Sauacutede Aliaacutes a primeira resoluccedilatildeo deste uacuteltimo oacutergatildeo - Resoluccedilatildeo n 01 de 13 de junho de 1988 - tratou justamente de normas de pesquisa em sauacutede tendo dedicado o seu Capiacutetulo II arts 4o a 16 aos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos Esse diploma legal foi posteriormente revogado pela Resoluccedilatildeo n 196 de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Sauacutede que eacute atualmente a base regulamentar da pesquisa no Brasil tratando das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos Esta Resoluccedilatildeo eacute na verdade uma revisatildeo da anterior tendo sido precedida de diaacutelogo entre governo e sociedade civil61

A Resoluccedilatildeo atual afirma jaacute em seu preacircmbulo a sua fundamentaccedilatildeo nos principais documentos internacionais que emanaram declaraccedilotildees e diretrizes sobre

58 Nesse contexto por tanto deve ser considerada a questatildeo do multicuturalismo Como bem ensinam Joseacute A Mainetti Joseacute L Mainettil Existen dificultades en la aplicacioacuten de los principos elaborados por los paiacuteses centrales y es una evidencia por ejemplo que resulta inapropiada la visioacuten estrccha de la autonomia y la aplicacioacuten riacutegida dei requisito dei consentimento informado al modo norteamericano en determinadas circunstancias y comunidades Es preciso entoces reconocer Ias diferenccedilas culturales y en base a eacutestas aplicar los princiacutepios sin renunciar a cllos en formas maacutes adecuadas al ethos particular MAINETTI Joseacute A MAINETTI Joseacute L Bioeacutetica y la experimentacioacuten humana In SOROKIN Patriacutecia (Coord) Bioeacutelica entre utopias y desarraigos Buenos Aires Ad-Hoc Villela 2002 p 190

59 Cf ENGELHARDT JUacuteNIOR Tristam apuei BAUZON Steacutephane La personne biojuridique Paris Press Universitaires de France 2006 p 63

60 Vide como exemplo a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro o qual no seu Capiacutetulo XII trata especificamente da pesquisa meacutedica

61 Cf FREITAS Corina Bontempo Duca de Eacutetica na pesquisa com seres humanos A experiecircncia brasileira In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutelica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 307

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pesquisas que envolvem seres humanos62 e que visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito agrave comunidade cientiacutefica aos sujeitos da pesquisa e ao Estado

Aleacutem disso vinculou a experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da principiologia da Bioeacutetica seja no preacircmbulo onde afirma que incorpora sob a oacutetica do indiviacuteduo e das coletividades os quatro referenciais baacutesicos da Bioeacutetica autonomia natildeo-maleficecircncia beneficecircncia e justiccedila entre outros seja no seu item III 1 que versa sobre a eticidade na pesquisa63

Entre as suas disposiccedilotildees encontramos definiccedilotildees de diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica pesquisa64 pesquisa envolvendo seres humanos65

protocolo de pesquisa66 pesquisador responsaacutevel67 instituiccedilatildeo de pesquisa68 promotor69

patrocinador70 risco da pesquisa71 dano associado ou decorrente da pesquisa72 sujeito da

62 Cila a Resoluccedilatildeo os seguintes documentos o Coacutedigo de Nuremberg (1947) a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem (1948) a Declaraccedilatildeo de Helsinque (1964 e suas versotildees posteriores de 1975 1983 e 1989) o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Poliacuteticos (ONU 1966 aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1992) as Propostas de Diretrizes Eacuteticas Internacionais para Pesquisas Biomeacutedicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMSOMS 1982 e 1993) e as Diretrizes Internacionais para Revisatildeo Eacutetica de Estudos Epidemioloacutegicos (C10MS 1991) III1 - A eticidade da pesquisa implica em a) consentimento livre e esclarecido dos indiviacuteduos-alvo e a proteccedilatildeo a grupos vulneraacuteveis e aos legalmente incapazes (autonomia) Neste sentido a pesquisa envolvendo seres humanos deveraacute sempre trataacute-los em sua dignidade respeitaacute-los em sua autonomia e defendecirc-los em sua vulnerabilidade b) ponderaccedilatildeo entre riscos e benefiacutecios tanto atuais como potenciais individuais ou coletivos (beneficecircncia) comprometendo-se com o maacuteximo de benefiacutecios e o miacutenimo de danos e riscos c) garantia de que danos previsiacuteveis seratildeo evitados (natildeo maleficecircncia)- d) relevacircncia social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimizaccedilatildeo do ocircnus para os sujeitos vulneraacuteveis o que garante a igual consideraccedilatildeo dos interesses envolvidos natildeo perdendo o sentido de sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria (justiccedila e equumlidade) (negritos originais)

64 111 Pesquisa classe de atividades cujo objetivo eacute desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizaacutevel O conhecimento generalizaacutevel consiste em teorias relaccedilotildees ou princiacutepios ou no acuacutemulo de informaccedilotildees sobre as quais estatildeo baseados que possam ser corroborados por meacutetodos cientiacuteficos aceitos de observaccedilatildeo e infercncia

65 112 Pesquisa envolvendo seres humanos pesquisa que individual ou coletivamente envolva o ser humano de forma direta ou indireta em sua totalidade ou partes dele incluindo o manejo de informaccedilotildees ou materiais

66 II3 Protocolo de Pesquisa Documento contemplando a descriccedilatildeo da pesquisa em seus aspectos fundamentais informaccedilotildees relativas ao sujeito da pesquisa agrave qualificaccedilatildeo dos pesquisadores e a todas as instacircncias responsaacuteveis

67 II-4 Pesquisador responsaacutevel pessoa responsaacutevel pela coordenaccedilatildeo e realizaccedilatildeo da pesquisa e pela integridade e bem-estar dos sujeitos da pesquisa

68 II5 - Instituiccedilatildeo de pesquisa - organizaccedilatildeo puacuteblica ou privada legitimamente constituiacuteda e habilitada na qual satildeo realizadas investigaccedilotildees cientiacuteficas

69 116 - Promotor - indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo responsaacutevel pela promoccedilatildeo da pesquisa 70 II7 - Patrocinador - pessoa fiacutesica ou juriacutedica que apoia financeiramente a pesquisa 71 II8 Risco da pesquisa - possibilidade de danos agrave dimensatildeo fiacutesica psiacutequica moral intelectual social

cultural ou espiritual do ser humano em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente II9 Dano associado ou decorrente da pesquisa agravo imediato ou tardio ao indiviacuteduo ou agrave coletividade com nexo causai comprovado direto ou indireto decorrente do estudo cientiacutefico

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pesquisa73 consentimento livre e esclarecido74 indenizaccedilatildeo75 ressarcimento6 Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (CEP)77 vulnerabilidade78 e incapacidade79

A Resoluccedilatildeo regulamentou os Comitecircs de Eacutetica e Pesquisa - CEPs80 em cujas funccedilotildees81 destaca-se a apreciaccedilatildeo do protocolo da pesquisa em todas as suas especificidades o que foi um grande passo no sentido da construccedilatildeo de padrotildees eacuteticos82

Haacute requisitos para a instituiccedilatildeo dos Comitecircs principalmente no atinente agrave sua composiccedilatildeo83

1110 Sujeito da pesquisa eacute o(a) participante pesquisado(a) individual ou coletivamente de caraacuteter voluntaacuterio vedada qualquer forma de remuneraccedilatildeo IIII Consentimento livre e esclarecido anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal livre de viacutecios (simulaccedilatildeo fraude ou erro) dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar formulada em um termo de consentimento autorizando sua participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa 1112 - Indenizaccedilatildeo - cobertura material em reparaccedilatildeo a dano imediato ou tardio causado pela pesquisa ao ser humano a ela submetida 1113 Ressarcimento - cobertura em compensaccedilatildeo exclusiva de despesas decorrentes da participaccedilatildeo do sujeito na pesquisa 1114 - Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa-CEP - colegiados interdisciplinares e independentes com munus puacuteblico de caraacuteter consultivo deliberativo e educativo criados para defender os interesses dos sujeitos da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrotildees eacuteticos 1115 Vulnerabilidade refere-se a estado de pessoas ou grupos que por quaisquer razotildees ou motivos tenham a sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido 1116 - Incapacidade - Refere-se ao possiacutevel sujeito da pesquisa que natildeo tenha capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido devendo ser assistido ou representado de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira vigente O CEP pode ser entendido como um oacutergatildeo controlador da pesquisa por um lado mas por outro eacute tambeacutem um oacutergatildeo que ajuda a harmonizar diversos interesses que como vimos podem ser os mais diversos e agraves vezes ateacute conflitantes Cf PALAacuteCIOS Marisa Eacutetica na pesquisa - 1 Eacutetica em pesquisa em seres humanos In PALAacuteCIOS Marisa MARTINS Andreacute PEGORARO Olinto A (Orgs) Eacutetica ciecircncia e sauacutede humana Petroacutepolis Vozes 2001 p 74 Satildeo atribuiccedilotildees conferidas pela Resoluccedilatildeo aos CEPs a) revisar todos os protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos b) emitir parecer consubstanciado por escrito c) manter a guarda confidencial de todos os dados obtidos na execuccedilatildeo de sua tarefa e arquivamento do protocolo completo que ficaraacute agrave disposiccedilatildeo das autoridades sanitaacuterias d) acompanhar o desenvolvimento dos projetos atraveacutes de relatoacuterios anuais dos pesquisadores e) desempenhar papel consultivo e educativo 0 receber dos sujeitos da pesquisa ou de qualquer outra parte denuacutencias de abusos ou notificaccedilatildeo sobre fatos adversos que possam alterar o curso normal do estudo decidindo pela continuidade modificaccedilatildeo ou suspensatildeo da pesquisa devendo se necessaacuterio adequar o termo de consentimento considerando-se anti-eacutetica a pesquisa descontinuada sem justificativa aceita pelo CEP que a aprovou g) requerer instauraccedilatildeo de sindicacircncia agrave direccedilatildeo da instituiccedilatildeo em caso de denuacutencias de irregularidades de natureza eacutetica nas pesquisas e em havendo comprovaccedilatildeo comunicar agrave Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa CONEPMS e no que couber a outras instacircncias e h) manter comunicaccedilatildeo regular e permanente com a CONEPMS A existecircncia de oacutergatildeos com a funccedilatildeo de aprovar e acompanhar pesquisas jaacute era preconizada por exemplo pelo Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988) cujo art 127 veda ao

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Foi mais aleacutem a Resoluccedilatildeo que de modo inovador reforccedilou o controle eacutetico e a defesa da dignidade da pessoa humana com a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa - CONEP84 que atua na direccedilatildeo e orientaccedilatildeo dos comitecircs8S A comissatildeo de acordo com a Resoluccedilatildeo eacute uma instacircncia colegiada de natureza consultiva deliberativa normativa independente vinculada ao Conselho Nacional de Sauacutede86 Essa vinculaccedilatildeo eacute bastante positiva posto que a alternativa de submetecirc-la a outros oacutergatildeos poderia dar ensejo a uma indesejada politizaccedilatildeo dos seus membros o que seria capaz de terminar por afetar a sua autonomia

meacutedico Realizar pesquisa meacutedica em ser humano sem submeter o protocolo a aprovaccedilatildeo e acompanhamento de comissatildeo isenta de qualquer dependecircncia em relaccedilatildeo ao pesquisador O colegiado com nuacutemero natildeo inferior a 7 (sete) membros deve ser multidisciplinar abrangendo profissionais idocircneos e de distinta formaccedilatildeo da aacuterea de sauacutede e das ciecircncias exatas sociais e humanas incluindo por exemplo juristas teoacutelogos socioacutelogos filoacutesofos bioeticistas aleacutem de membros da sociedade e obrigatoriamente pelo menos um membro representando os usuaacuterios Se a pesquisa envolver grupos vulneraacuteveis comunidades e coletividades um dos seus representantes deveraacute ser convidado para participar como membro ad hoc do CEP da anaacutelise do projeto especiacutefico Assim o CEP ainda segundo a Resoluccedilatildeo teraacute sempre um caraacuteter multi e transdisciplinar sendo vedado que mais que metade de seus membros pertenccedilam a uma mesma categoria profissional devendo ainda participarem pessoas dos dois sexos Satildeo permitidos consultores ad hoc pessoas que pertencem ou natildeo aacute instituiccedilatildeo com o objetivo de fornecer subsiacutedios teacutecnicos Merece ainda atenccedilatildeo especial a autonomia do comitecirc cuja manifestaccedilatildeo deve ser totalmente autocircnoma e imaculada de coaccedilotildees ou pressotildees dos interessados A autonomia e a independecircncia satildeo condiccedilotildees sine qua non para a desejada eficaacutecia dos comitecircs que felizmente estatildeo se proliferando em nosso paiacutes Conforme informaccedilotildees do site da CONEP satildeo 446 CEPs aprovados no Brasil ateacute janeiro de 2006 Disponiacutevel em lthttpoonselhosaudegovbrcomissaoconep2006ceps20APROVADOSxlsgt Acessado em 04 jun 2006 A Comissatildeo tem 13 membros titulares e o mesmo nuacutemero de suplentes em uma composiccedilatildeo que tambeacutem deveraacute ser multi e transdisciplinar com pessoas de ambos os sexos Dentre os seus membros 05 (cinco) devem ser personalidades destacadas no campo da eacutetica na pesquisa e na sauacutede e 08 (oito) devem ser personalidades com destacada atuaccedilatildeo nos campos teoloacutegico juriacutedico e outros assegurando-se que pelo menos um seja da aacuterea de gestatildeo da sauacutede Embora natildeo desconheccedilamos a importacircncia das religiotildees na formaccedilatildeo do pensamento eacutetico humano e sem querer desmerecer as pessoas que nelas militam no mais das vezes com accedilotildees de destacada importacircncia pensamos que eacute inadequada em um Estado laico como o nosso a destinaccedilacirco de vaga ou de vagas especificamente a pessoas do campo teleoloacutegico Essa observaccedilatildeo imperioso demarcar natildeo eacute no sentido de entender que a contribuiccedilatildeo dessas pessoas eacute desnecessaacuteria ou inconveniente Pelo contraacuterio Poreacutem a desejada participaccedilatildeo jaacute poderia ser levada a efeito incluindo-as no grupo de personalidades com atuaccedilatildeo de destaque na esfera da eacutetica na pesquisa e na sauacutede sem necessidade de vinculaccedilatildeo necessaacuteria ao pensamento religioso Isso ateacute mesmo para preservar o pluralismo e a igualdade jaacute que obviamente natildeo seraacute possiacutevel oferecer a cada religiatildeo uma vaga Os membros da Comissatildeo satildeo recrutados a partir de indicaccedilotildees contidas em listas elaboradas pelas instituiccedilotildees que possuem CEP registrado na CONEP sendo que 07 (sete) satildeo escolhidos pelo Conselho Nacional de Sauacutede e 06 (seis) satildeo definidos por sorteio Tambeacutem pode contar com consultores e membros ad hoc sendo assegurada a representaccedilatildeo dos usuaacuterios O mandato eacute de quatro anos com renovaccedilatildeo alternada a cada dois anos de sete ou seis de seus membros A CONEP tem tambeacutem um papel coordenador da rede de Comitecircs institucionais aleacutem de se constituir em oacutergatildeo consultor na aacuterea eacutetica em pesquisa Num primeiro momento tem ainda a atribuiccedilatildeo de apreciar os projetos de pesquisas de aacutereas temaacuteticas especiais enviadas pelos CFPs ou seja projetos que contemplam aacutereas com maiores dilemas eacuteticos e grande repercussatildeo social ateacute que se acumulem experiecircncias para elaboraccedilatildeo de normas especiacuteficas complementares agraves existentes Cf FREITAS Carolina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA

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Outros aspectos da Resoluccedilatildeo que merecem especial destaque para o nosso estudo satildeo os relativos ao consentimento livre e esclarecido agrave vulnerabilidade e agrave incapacidade

Como jaacute dito um dos principais pontos da Declaraccedilatildeo de Nuremberg foi o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias A Resoluccedilatildeo tratou do tema exigindo a anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar87 A anuecircncia deve ser expressa atraveacutes de

Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 202

S6 Segundo a Resoluccedilatildeo compete agrave CONEP examinar os aspectos eacuteticos da pesquisa envolvendo seres humanos assim como a adequaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo das normas atinentes consultando a sociedade sempre que julgar necessaacuterio cabendo-lhe entre outras as seguintes atribuiccedilotildees a) estimular a criaccedilatildeo de CEPs institucionais e de outras instacircncias b) registrar os CEPs institucionais e de outras instacircncias c) aprovar no prazo de 60 dias e acompanhar os protocolos de pesquisa em aacutereas temaacuteticas especiais tais como geneacutetica humana reproduccedilatildeo humana faacutermacos medicamentos vacinas e testes diagnoacutesticos novos (fases I II e III) ou natildeo registrados no pais (ainda que fase IV) ou quando a pesquisa for referente a seu uso com modalidades indicaccedilotildees doses ou vias de administraccedilatildeo diferentes daquelas estabelecidas incluindo seu emprego em combinaccedilotildees equipamentos insumos e dispositivos para a sauacutede novos ou natildeo registrados no paiacutes novos procedimentos ainda natildeo consagrados na literatura populaccedilotildees indiacutegenas projetos que envolvam aspectos de biosseguranccedila pesquisas coordenadas do exterior ou com participaccedilatildeo estrangeira c pesquisas que envolvam remessa de material bioloacutegico para o exterior e projetos que a criteacuterio do CEP devidamente justificado sejam julgados merecedores de anaacutelise pela CONEP d) prover normas especiacuteficas no campo da eacutetica em pesquisa inclusive nas aacutereas temaacuteticas especiais bem como recomendaccedilotildees para aplicaccedilatildeo das mesmas e) funcionar como instacircncia final de recursos a partir de informaccedilotildees fornecidas sistematicamente em caraacuteter ex-ofiacutecio ou a partir de denuacutencias ou de solicitaccedilatildeo de partes interessadas devendo manifestar-se em um prazo natildeo superior a 60 (sessenta) dias 0 rever responsabilidades proibir ou interromper pesquisas definitiva ou temporariamente podendo requisitar protocolos para revisatildeo eacutetica inclusive os jaacute aprovados pelo CEP g) constituir um sistema de informaccedilatildeo e acompanhamento dos aspectos eacuteticos das pesquisas envolvendo seres humanos em todo o territoacuterio nacional mantendo atualizados os bancos de dados h) informar e assessorar o MS o CNS e outras instacircncias do SUS bem como do governo e da sociedade sobre questotildees eacuteticas relativas agrave pesquisa em seres humanos i) divulgar esta e outras normas relativas agrave eacutetica em pesquisa envolvendo seres humanos j) juntamente com outros setores do Ministeacuterio da Sauacutede estabelecer normas e criteacuterios para o credenciamento de Centros de Pesquisa e I) estabelecer suas proacuteprias normas de funcionamento

87 No que concerne agrave pesquisa meacutedica a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro estipula no seu art 123 que eacute vedado ao meacutedico Realizar pesquisa em ser humano sem que este tenha dado consentimento por escrito apoacutes devidamente esclarecido sobre a natureza e consequumlecircncia da pesquisa e que Caso o paciente natildeo tenha condiccedilotildees de dar seu livre consentimento a pesquisa somente poderaacute se realizada em seu proacuteprio beneficio apoacutes expressa autorizaccedilatildeo de seu responsaacutevel legal Jaacute a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO no seu art 6 aliacutenea b estabelece que A pesquisa cientiacutefica soacute deve ser realizada com o preacutevio livre expresso e esclarecido consentimento do indiviacuteduo envolvido A informaccedilatildeo deve ser adequada fornecida de uma forma compreensiacutevel e incluir os procedimentos para a retirada do consentimento O consentimento pode ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer hora e por qualquer razatildeo sem acarretar qualquer desvantagem ou preconceito Exceccedilotildees a este princiacutepio somente devem ocorrer quando em conformidade com os padrotildees eacuteticos e legais adotados pelos Estados consistentes com as provisotildees da presente Declaraccedilatildeo particularmente com o art 27 e com os direitos humanos

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em um termo de consentimento onde eacute autorizada a participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa Aleacutem disso natildeo pode estar viciada por simulaccedilatildeo fraude ou erro nem tampouco pode ser obtida por forccedila de uma situaccedilatildeo de dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo

Trata-se de disposiccedilatildeo decorrente da adoccedilatildeo do princiacutepio da autonomia jaacute abordado que se vincula agrave capacidade de autodeterminaccedilatildeo e auto-escolha e pressupotildee dentre outras premissas a capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos possiacuteveis18

Quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de estudo possuem a capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto ao consentimento livre e esclarecido por quaisquer motivos verifica-se uma situaccedilatildeo de vulnerabilidade que natildeo pode ser desconsiderada pelo pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais A preocupaccedilatildeo com a vulnerabilidade dos sujeitos encontra supedacircneo no Coacutedigo de Nuremberg na Declaraccedilatildeo de Helsinque nas Diretrizes Internacionais para Pesquisa Biomeacutedica envolvendo Seres Humanos89 e tambeacutem como jaacute dito na Resoluccedilatildeo 19696 A dificuldade central relacionada a indiviacuteduos e comunidades vulneraacuteveis eacute com a sua capacidade de compreensatildeo (autonomia plena) sobre o experimento e possibilidade de livremente consentir com a pesquisa e quando quiser dela desistir o que justifica todas as preocupaccedilotildees nesse sentido90

Cabe trazer a lume os ensinamentos do professor chileno Fernando Lolas O respeito pela autonomia das pessoas como agentes morais capazes de decisotildees informadas eacute central no diaacutelogo bioeacutetico Somente a permissatildeo outorgada por uma pessoa pode legitimar uma accedilatildeo que a envolva O valor das pessoas eacute incondicional o que obriga a consideraacute-las fins natildeo meios com a liberdade de viver e a de decidir livres de interferecircncias LOLAS Fernando Bioeacutetica o que eacute como se faz Traduccedilatildeo Milton Camargo Mota Satildeo Paulo Loyola 2001 p 63 A Diretriz Internacional para Pesquisa Biomeacutedica afirma Pesquisa envolvendo indiviacuteduos de comunidades sub-desenvolvidas Antes de iniciar a pesquisa em indiviacuteduos de comunidades subdesenvolvidas seja em paiacuteses desenvolvidos ou em desenvolvimento o pesquisador deve estar seguro que As pessoas da comunidade subdesenvolvida natildeo seratildeo ordinariamente envolvidas na pesquisa que possa ser realizada de forma adequada em comunidades desenvolvidas A pesquisa eacute uma resposta agraves necessidades de sauacutede e agraves prioridades da comunidade na qual seraacute realizada todos os esforccedilos seratildeo tomados no sentido de assegurar o imperativo eacutetico de que o consentimento individual dos sujeitos seraacute informado e Os projetos para a pesquisa foram revisados e aprovados por um comitecirc de eacutetica que tenha entre os seus membros ou consultores pessoas que tenham familiaridade com os costumes e tradiccedilotildees da comunidade Em comentaacuterio agraves diretrizes acima Leo Pessini e Christian Paul de Barchifontaine entendem que Quando a experimentaccedilatildeo visa ao estudo de determinadas condiccedilotildees moacuterbidas tais como doenccedilas endecircmicas em comunidades de baixo niacutevel socioeconocircmico eou cultural incapazes de terem uma consciecircncia clara e apropriada das implicaccedilotildees de sua participaccedilatildeo na experiecircncia eacute de bom alvitre que seja obtida a interveniecircncia de um liacuteder em que a coletividade confia Esse intermediaacuterio dever deixar claro que a participaccedilatildeo eacute voluntaacuteria e que qualquer participante tem a liberdade de natildeo aceitar ou abandonar a experiecircncia a qualquer momento op cit p 133

Conforme Marisa Palaacutecios Quando a autonomia dos sujeitos natildeo eacute plena ou seja quando a capacidade de entender as situaccedilotildees que se apresentam ao sujeito e de autodeterminar-se segundo este entendimento estaacute de alguma forma limitada eacute preciso tomar cuidado especial Eacute o caso dos grupos vulneraacuteveis os iacutendios que tecircm a capacidade de entendimento das situaccedilotildees diminuiacuteda uma vez que compotildeem sociedades

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A vulnerabilidade pode assumir as mais variadas vertentes bem como atingir uma determinada pessoa ou um grupo de seres humanos com peculiaridades comuns tais como crianccedilas idosos iacutendios pacientes terminais desempregados deficientes91 presidiaacuterios92 ou outras situaccedilotildees de dependecircncia93

Pode ocorrer que as pessoas que seratildeo estudadas na pesquisa natildeo tenham capacidade civil para dar o seu consentimento Nesse caso se encontram em situaccedilatildeo de incapacidade e a pesquisa soacute pode ser levada adiante com a intervenccedilatildeo de seus representantes legais que de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira deveratildeo assistir ou representar os incapazes Tambeacutem aqui deve o pesquisador cercar-se de cautelas eacuteticas redobradas

Finalmente deve-se louvar a Resoluccedilatildeo por ter explicitado no seu item III3 um rol de 23 (vinte e trecircs) exigecircncias eacuteticas para a pesquisa de qualquer aacuterea do conhecimento que envolva seres humanos94

culturalmente diversas[] Estas para citar algumas populaccedilotildees caracteriacutesticas Satildeo populaccedilotildees que precisam ser especialmente protegidas dada a proacutepria condiccedilatildeo de vulnerabilidade Maria Carolina S Guimaratildees e Sylvia Caiuby Novaes com alento em Hannah Arendt e Cardia definem o ser vulneraacutevel como Algueacutem que possui cidadania fraacutegil que ignora a relevacircncia do direito agrave integridade fiacutesica como condiccedilatildeo de acesso aos direitos sociais econocircmicos poliacuteticos e trabalhistas Dito assim o que parece a primeira condiccedilatildeo para que um ser vulneraacutevel perca tal situaccedilatildeo eacute o investimento do Estado naquilo que constroacutei e constitui a cidadania naqueles atributos que transformam o indiviacuteduo em cidadatildeo que transformam o animal laborans em homem poliacutetico Essa transformaccedilatildeo eacute no dizer de Hannah Arendt um pressuposto da democracia pois permite ao animal laborans ir do reino da necessidade para o reino da liberdade GUIMARAtildeES Maria Carolina S NOVAES Sylvia Caiuby Autonomia reduzida e vulnerabilidade liberdade de decisatildeo diferenccedila e desigualdade Revista Bioeacutetica Brasiacutelia v 7 n 1 p 23 1999

91 Sobre o tema vide COHEN Claacuteudio Bioeacutetica Pesquisa e Deficiecircncia In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 55-62 92 Nem todo ser humano eacute no entanto capaz de autodeterminaccedilatildeo A capacidade de autodeterminaccedilatildeo amadurece ao longo da vida mas pode ser perdida total ou parcialmente por doenccedila velhice ou situaccedilatildeo de restriccedilatildeo severa como a prisatildeo Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 93 O Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de janeiro de 1988) veda ao meacutedico no seu art 128 Realizar pesquisa meacutedica em voluntaacuterios sadios ou-natildeo que tenham direta ou indiretamente dependecircncia ou subordinaccedilatildeo relativamente ao pesquisador 94 I1I3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias a) ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder a incertezas b) estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou em outros fatos cientiacuteficos c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio d) prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis e) obedecer a metodologia adequada Se houver necessidade de distribuiccedilatildeo aleatoacuteria dos sujeitos da pesquisa em grupos experimentais e de controle assegurar que apriori natildeo seja possiacutevel estabelecer as vantagens de um procedimento sobre outro atraveacutes de revisatildeo de literatura meacutetodos observacionais ou meacutetodos que natildeo envolvam seres humanos 0 ter plenamente justificada quando for o caso a utilizaccedilatildeo de placebo em termos de natildeo maleficecircncia e de necessidade metodoloacutegica g) contar com o consentimento livre e esclarecido do sujeito da pesquisa eou seu representante legal h) contar com os recursos humanos e materiais necessaacuterios que garantam o bem-

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5 Teleologia e legitimidade da pesquisa em seres humanos

Toda experimentaccedilatildeo em seres humanos possui um determinado objetivo o qual pode ou-natildeo estar vinculado ao bem estar proacuteprio da pessoa ou grupo observado

Essa situaccedilatildeo natildeo foi esquecida pela Declaraccedilatildeo de Helsinque cujo preacircmbulo afirma Wo campo cia pesquisa biomeacutedica uma distinccedilatildeo fundamental deve ser feita entre a pesquisa meacutedica na qual o objetivo eacute essencialmente o diagnoacutestico ou a terapecircutica para um paciente e a pesquisa meacutedica cujo objeto essencial eacute puramente cientiacutefico e sem um valor direto diagnoacutestico ou terapecircutico para a pessoa sujeita agrave

estar do sujeito da pesquisa devendo ainda haver adequaccedilatildeo entre a competecircncia do pesquisador e o projeto proposto i) prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade a proteccedilatildeo da imagem e a natildeo estigmatizaccedilatildeo garantindo a natildeo utilizaccedilatildeo das informaccedilotildees em prejuiacutezo das pessoas eou das comunidades inclusive em termos de auto-estima de prestiacutegio eou econocircmico - financeiro j) ser desenvolvida preferencialmente cm indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida 1) respeitar sempre os valores culturais sociais morais religiosos e eacuteticos bem como os haacutebitos e costumes quando as pesquisas envolverem comunidades m) garantir que as pesquisas em comunidades sempre que possiacutevel traduzir-se-atildeo em benefiacutecios cujos efeitos continuem a se fazer sentir apoacutes sua conclusatildeo O projeto deve analisar as necessidades de cada um dos membros da comunidade e analisar as diferenccedilas presentes entre eles explicitando como seraacute assegurado o respeito agraves mesmas n) garantir o retomo dos benefiacutecios obtidos atraveacutes das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas Quando no interesse da comunidade houver benefiacutecio real em incentivar ou estimular mudanccedilas de costumes ou comportamentos o protocolo de pesquisa deve incluir sempre que possiacutevel disposiccedilotildees para comunicar tal benefiacutecio agraves pessoas eou comunidades o) comunicar agraves autoridades sanitaacuterias os resultados da pesquisa sempre que os mesmos puderem contribuir para a melhoria das condiccedilotildees de sauacutede da coletividade preservando poreacutem a imagem e assegurando que os sujeitos da pesquisa natildeo sejam estigmatizados ou percam a auto-estima p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefiacutecios resultantes do projeto seja em termos de retorno social acesso aos procedimentos produtos ou agentes da pesquisa q)assegurar aos sujeitos da pesquisa as condiccedilotildees de acompanhamento tratamento ou de orientaccedilatildeo conforme o caso nas pesquisas de rastreamento demonstrar a preponderacircncia de benefiacutecios sobre riscos e custos r) assegurar a inexistecircncia de conflito de interesses entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa ou patrocinador do projeto s) comprovar nas pesquisas conduzidas do exterior ou com cooperaccedilatildeo estrangeira os compromissos e as vantagens para os sujeitos das pesquisas e para o Brasil decorrentes de sua realizaccedilatildeo Nestes casos deve ser identificado o pesquisador e a instituiccedilatildeo nacionais co-responsaacuteveis pela pesquisa O protocolo deveraacute observar as exigecircncias da Declaraccedilatildeo de Helsinque e incluir documento de aprovaccedilatildeo no paiacutes de origem entre os apresentados para avaliaccedilatildeo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa da instituiccedilatildeo brasileira que exigiraacute o cumprimento de seus proacuteprios referenciais eacuteticos Os estudos patrocinados do exterior tambeacutem devem responder agraves necessidades de treinamento de pessoal no Brasil para que o paiacutes possa desenvolver projetos similares de forma independente t) utilizar o material bioloacutegico e os dados obtidos na pesquisa exclusivamente para a finalidade prevista no seu protocolo u) levar em conta nas pesquisas realizadas em mulheres em idade feacutertil ou em mulheres graacutevidas a avaliaccedilatildeo de riscos e benefiacutecios e as eventuais interferecircncias sobre a fertilidade a gravidez o embriatildeo ou o feto o trabalho de parto o puerpeacuterio a lactaccedilatildeo e o receacutem-nascido v) considerar que as pesquisas em mulheres graacutevidas devem ser precedidas de pesquisas em mulheres fora do periacuteodo gestacional exceto quando a gravidez for o objetivo fundamental da pesquisa x) propiciar nos estudos multicecircntricos a participaccedilatildeo dos pesquisadores que desenvolveratildeo a pesquisa na elaboraccedilatildeo do delineamento geral do projeto e z) descontinuar o estudo somente apoacutes anaacutelise das razotildees da descontinuidade pelo CEP que a aprovou

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pesquisa Em outras palavras haacute experimentos em benefiacutecio do paciente e experimentos em benefiacutecio da ciecircncia Ainda no preacircmbulo da Declaraccedilatildeo de Helsinque encontramos que A finalidade da pesquisa meacutedica envolvendo seres humanos deve ser o aperfeiccediloamento do diagnoacutestico procedimentos terapecircuticos e profilaacuteticos e a compreensatildeo da etiologia e da patologia da doenccedila Conjugando essa afirmaccedilatildeo com a anterior podemos extrair que uma determinada pessoa ou populaccedilatildeo pode ser objeto de pesquisa para desvendar doenccedilas que a afligem ou para desnudar as razotildees pelas quais eacute menos suscetiacutevel ou-natildeo eacute atingida por determinada moleacutestia que afeta aos demais seres humanos

A partir dessas observaccedilotildees podemos considerar para os fins do nosso estudo que as experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas teleologicamente em dois grupos a) aquelas cujos objetivos possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas as quais chamaremos de pesquisas com justificativa intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de terceiros as quais denominaremos pesquisas com justificativa extrinseca Temos como exemplo na primeira situaccedilatildeo os experimentos cientiacuteficos para desvendar o porquecirc de uma determinada coletividade ser atingida por taxas elevadas de uma certa doenccedila e na segunda uma pesquisa para revelar as razotildees pelas quais certas pessoas natildeo desenvolvem uma moleacutestia com o objetivo de descobrir uma vacina ou um medicamento para os demais

Entretanto em todo experimento seraacute necessaacuterio averiguar se a justificativa - seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima Isso porque o fato de uma pesquisa ter por objetivo um tratamento mais eficiente ou a cura de certas doenccedilas natildeo legitima por si soacute a utilizaccedilatildeo de pessoas como sujeito de pesquisa mesmo que elas sofram da moleacutestia e possam vir a ser beneficiadas Natildeo se deve perder de vista aliaacutes que se o conhecimento puder ser obtido por outro meio a utilizaccedilatildeo de seres humanos justamente por ser desnecessaacuteria seraacute ilegiacutetima95 Ademais soacute pelo fato de ser intriacutenseca a justificativa natildeo seraacute necessariamente legiacutetima Por outro lado a circunstacircncia isoladamente considerada do eventual resultado da experimentaccedilatildeo ser absolutamente indiferente ao sujeito de pesquisa natildeo torna a sua participaccedilatildeo ilegiacutetima Em outras palavras a justificativa soacute por ser extrinseca natildeo seraacute necessariamente ilegiacutetima

Vale relembrar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 - A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio

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A razatildeo disso reside na afirmaccedilatildeo de que como se sabe desde Kant o Homem deve ser tratado como um fim em si mesmo e natildeo como instrumento De fato eacute em Kant que o Homem ganha status de valor absoluto manifesto no imperativo praacutetico expresso na maacutexima segundo a qual Ages de tal maneira que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio 96

Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

Quando se trata de experimentaccedilatildeo com justificativa intriacutenseca a razatildeo legitimadora pode estar no objetivo de beneficiar os proacuteprios sujeitos da pesquisa algueacutem se submete a uma experimentaccedilatildeo na tentativa de auferir uma vantagem em seu bem-estar fiacutesico ou mental

Jaacute no caso da justificativa extriacutenseca poder-se-ia objetar a realizaccedilatildeo da experimentaccedilatildeo com suposto fundamento na Resoluccedilatildeo 19696 cujo item III 1 letra d vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila Ora se em uma determinada situaccedilatildeo algueacutem participa do experimento sem que haja qualquer possibilidade de benefiacutecio fiacutesico ou mental para si a partir do resultado da pesquisa e considerando que a mesma Resoluccedilatildeo veda qualquer forma de remuneraccedilatildeo do sujeito da pesquisa (item 1110) qual a vantagem significativa que poderaacute essa pessoa auferir para justificar a sua participaccedilatildeo

Ao nosso ver a interpretaccedilatildeo desse ponto da Resoluccedilatildeo natildeo deve ser literal nem assistemaacutetica97 devendo ser considerada a incidecircncia de um outro princiacutepio ainda

Op cit p 69 Em comento a este imperativo Francesca Puigpclat Marti apregoa que La concepcioacuten liberal asocia a esta expresioacuten una idea comuacuten en Ia reflexioacuten eacutetica de raigambre kantiana el hombre es un fin en si mismo un sujeto y no un objeto Seguacuten Kant en el sistema de Ia natureza el hombre (homo phaenomenon animal rationale) es un ser de escasa importancia y tiene con los demaacutes animales en tanto que productos de Ia tierra un precio comuacuten () Ahora bien el hombre considerado como persona es dccir como sujeto de una razoacuten praacutetico-moral estaacute situado por encima de todo precio porque como tal (homo noumenon) no puede valorarse soacutelo como meacutedio para fines ajenos incluso para sus proprios fines sino como fin en siacute mismo es decir posee una dignidad(un valor interno absoluto) gracias a la cual infunde respeto haciacutea eacutel a todos los demaacutes seres racionales dei mundo puede medirse con cualquier otro de esta clase y valorarse en pie de igualdad En la medida en que seguacuten Kant el hombre existe como fin en siacute mismo y no soacutelo como meacutedio para usos cualesquiera de una u otra voluntad se puede formular el siguiente principio praacutetico supremo obra de tal modo que uses la humanidad tanto en tu persona como en la persona de cualquier otro siempre como un fin al mismo tiempo y nunca solamente como un meacutedio MARTIacute Francesca Puigpelat Clonacioacuten dignidad humana y constitucioacuten Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo ano II n 42 janmar p37-64 2003

Natildeo se interpreta o direito em tiras aos pedaccedilos () Um texto de direito isolado destacado desprendido do sistema juriacutedico natildeo expressa significado normativo algum Cf GRAU Eros Roberto Ensaio e

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que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que eacute o da solidariedade Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita entendemos que a sua aplicaccedilatildeo eacute cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele dispositivo (item 1111 letra d da Resoluccedilatildeo 19696) afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria Aleacutem disso outros documentos de importacircncia para a Bioeacutetica fazem referecircncia agrave solidariedade98 De fato natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao respeito agrave dignidade da pessoa humana99

Logo no nosso pensar mesmo que natildeo haja nenhum benefiacutecio ou vantagem direta ao sujeito de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma justificativa eacutetica a qual pode ter como nuacutecleo a intenccedilatildeo solidaacuteria dessa pessoa e do pesquisador de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e consequumlentemente para todos os demais seres humanos

A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica100

Estas exigecircncias no acircmbito normativo brasileiro estatildeo listadas na Resoluccedilatildeo 19696 especialmente no item III3

Algumas delas satildeo puramente objetivas e uma vez desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca E o caso por exemplo da necessidade de consentimento preacutevio e informado

discurso sobre a interpretaccedilatildeoaplicaccedilatildeo do Direito Satildeo Paulo Malheiros Editores 2002 p 34 98

O art 1deg da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos proclama que todas pessoas devem agir em relaccedilatildeo umas agraves outras com espiacuterito de fraternidade Alem disso a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO em um dos seus considerandos observa que os seres humanos tecircm um papel importante na proteccedilatildeo um do outro tratando expressamente da solidariedade e cooperaccedilatildeo no seu art 13 segundo o qual A solidariedade entre os seres humanos e cooperaccedilatildeo internacional para este fim devem ser estimuladas 99 Ela [a solidariedade] eacute o fecho de aboacutebada do sistema de princiacutepios eacuteticos pois complementa e aperfeiccediloa a liberdade a igualdade e a seguranccedila () E um erro considerar que no mundo da natureza sobretudo no mundo animal natildeo exista solidariedade e que ela seja uma criaccedilatildeo poliacutetica Muito pelo contraacuterio pode-se dizer que a biosfera forma naturalmente um sistema solidaacuterio e que o rompimento desse sistema eacute sempre obra do homem O proacuteprio Darwin bem advertiu que a expressatildeo struggle for Existence fora por ele usada em sentido amplo e matafoacuterico incluindo a dependecircncia de um ser em relaccedilatildeo a outro bem como incluindo (o que eacute mais importante) natildeo apenas a vida do indiviacuteduo mas o ecircxito em deixar descendentes Os zooacutelogos jaacute observaram que o processo de seleccedilatildeo natural deu mais vantagens bioloacutegicas aos grupos que cuidavam de seus membros natildeo reprodutivos do que agravequeles que abandonavam ou matavam os anciatildeos pois a capacidade de reproduccedilatildeo global dos grupos altruiacutestas eacute assim singularmente reforccedilada Cf COMPARATO Faacutebio Konder Eacutetica direito moral e religiatildeo no mundo moderno Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 p 577578

100

Natildeo eacute agrave toa portanto que como jaacute visto a Resoluccedilatildeo 19696 vincula a eticidade na pesquisa aos princiacutepios da Bioeacutetica tanto no seu preacircmbulo como no seu item III 1

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1214 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

dos participantes - ou dos seus representantes se incapazes - 101 cuja ausecircncia macula o princiacutepio da autonomia Tambeacutem eacute objetiva a exigecircncia da pesquisa estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou outros fatos cientiacuteficos102 cuja inobservacircncia implica em ofensa agrave natildeo-maleficecircncia Nessas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou-natildeo vir a ter um benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

Outras exigecircncias entretanto possuem um certo grau de subjetividade em maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as circunstacircncias faacuteticas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo de valor iacutensito a cada um Desse tipo vg eacute a exigecircncia segundo a qual a pesquisa deve ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e ter possibilidades concretas de responder a incertezas103 A avaliaccedilatildeo quanto ao cumprimento ou-natildeo da exigecircncia e portanto quanto agrave legitimidade ou ilegitimidade da utilizaccedilatildeo de seres humanos tem um niacutetido caraacuteter subjetivo podendo variar de pessoa para pessoa

Quando tratamos de exigecircncias subjetivas haacute ainda um outro aspecto a ser apontado deveraacute ser levado em conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca Em outras palavras a circunstacircncia do sujeito de pesquisa poder vir a ser beneficiado ou-natildeo pelo resultado do experimento deve ser considerada na verificaccedilatildeo da legitimidade eacutetica quando da ponderaccedilatildeo sobre o cumprimento das exigecircncias subjetivas

Tomemos como exemplo a exigecircncia de que devem prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis104 Ora essa exigecircncia eacute subjetiva pois envolve uma ponderaccedilatildeo cujo resultado estaacute vinculado a um juiacutezo de valor sobre a natureza e a importacircncia ou peso de cada benefiacutecio ou risco provaacutevel Ao nosso entender quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal no resultado do experimento tratando-se portanto de justificativa extriacutenseca eacute oacutebvio que os riscos a que se submete devem ser considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o benefiacutecio esperado tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa submetida ao experimento

101 Item III3 letra g da Resoluccedilatildeo 19696 102 Item III3 letra b da Resoluccedilatildeo 19696 103 Item III3 letra a da Resoluccedilatildeo 19696 104 Item III3 letra d da Resoluccedilatildeo 19696

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1215

Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila105 Por outro lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

A proacutepria realizaccedilatildeo ou-natildeo da pesquisa pode depender dessa ponderaccedilatildeo jaacute que a Resoluccedilatildeo n 19696 prevecirc que havendo riscos potenciais as pesquisas envolvendo seres humanos poderatildeo ser admitidas quando oferecerem elevada possibilidade de gerar conhecimento para entender prevenir ou aliviar um problema que afete o bem-estar dos sujeitos da pesquisa e de outros indiviacuteduos 106

Aleacutem disso parece ser mais aceitaacutevel eticamente submeter o ser humano a riscos maiores quando a justificativa eacute intriacutenseca do que quando ela eacute extriacutenseca priorizando assim a sua preservaccedilatildeo Nesse sentido a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO estipula que uos interesses e o bem-estar do indiviacuteduo devem ter prioridade sobre o interesse exclusivo da ciecircncia ou da sociedade 107

Natildeo se pode esquecer ainda que por forccedila dos princiacutepios da beneficecircncia da natildeo-maleficecircncia e da justiccedila eacute preciso considerar na mediccedilatildeo da legitimidade as peculiaridades individuais ou coletivas dos sujeitos de pesquisa especialmente no que concerne agraves suas eventuais vulnerabilidades bem como cuidar para que natildeo lhes seja imposto um mal desnecessaacuterio ou desproporcional O princiacutepio da justiccedila como vimos implica necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa os quais sempre que possiacutevel devem ter garantido para si pelo pesquisador a fruiccedilatildeo dos benefiacutecios da experimentaccedilatildeo natildeo sendo equacircnime impor-Ihes ocircnus excessivos108 especialmente se vulneraacuteveis Natildeo eacute agrave toa portanto que pode

105 O princiacutepio da justiccedila implica atenccedilatildeo especial agraves regras de recrutamento de participantes de experimentos Natildeo se pode fazer experimentos apenas com determinados grupos - pacientes de enfermaria asilados prisioneiros - simplesmente porque eles estatildeo agrave disposiccedilatildeo e em situaccedilatildeo de dependecircncia Isso eacute injusto Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 Item Vl aliacutenea a

107 Art 3 aliacutenea b 108 bull

Consideramos que deva ser modificada a praacutetica muito comum em nosso paiacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de pesquisados provenientes das camadas mais desfavorecidas da sociedade ou de outros grupos vulneraacuteveis mas que posteriormente natildeo poderatildeo se beneficiar dos resultantes positivos das pesquisas em que tomaram parte mesmo tendo enfrentado riscos de danos psico-sociais As pesquisas realizadas nesses grupos devem poder lhes trazer benefiacutecios e os pesquisadores sempre que possiacutevel devem garantir retomo dos benefiacutecios resultados das pesquisas para os sujeitos individuais e coletivos que nelas participarem Cf FORTES Paulo Antonio de Carvalho As Pesquisas em Seres Humanos e o Principio Eacutetico da Justiccedila

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1216 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

haver exigecircncias eacuteticas especiacuteficas para pesquisas com serem humanos em situaccedilatildeo de vulnerabilidade109

Assim sempre seraacute preciso dosar a equaccedilatildeo riscobeneficio ponderando em cada caso concreto se os eventuais benefiacutecios satildeo suficientes para motivar a exposiccedilatildeo das pessoas ao processo de experimentaccedilatildeo Pode ser que diante de certas peculiaridades ou vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima110 Aliaacutes como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis justamente porque como jaacute dito o ser humano natildeo pode ser tratado como mero instrumento1

E natildeo eacute soacute Aleacutem disso em princiacutepio a pesquisa com pessoas ou grupos vulneraacuteveis deve ter uma justificativa intriacutenseca2 Entretanto sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas em experimentos extriacutensecos agrave luz da solidariedade como no caso do grupo vulneraacutevel ser imune a determinada moleacutestia por razatildeo ainda desconhecida o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias objetivas agrave risca deve ser ainda mais

Cadernos de Eacutetica em Pesquisa Ano 1 n 2 p 22-23 nov 1998 109

A tiacutetulo de exemplo a Resoluccedilatildeo 19696 traz alguns requisitos especiacuteficos para o consentimento livre e esclarecido de pessoas ou populaccedilotildees vulneraacuteveis no item IV3

110 Um caso de niacutetida violaccedilatildeo aos princiacutepios bioeacuteticos em pesquisas envolvendo grupo vulneraacutevel foi o jaacute mencionado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm Conforme um dos colaboradores da pesquisa utilizar doentes mentais ainda que natildeo voluntaacuterios foi a melhor opccedilatildeo diante do fato de que o principal problema da sauacutede puacuteblica era justamente o das doenccedilas dentaacuterias razatildeo pela qual os fins justificariam os meios ainda mais considerando que o estudo foi utilizado em todo o mundo (Krasse B Sueacutecia usou deficiente mental como cobaia Folha de Satildeo Paulo 23 Set 1997 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas cliacutenicas sobre seus direitos 2005 p 61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo) sendo faacutecil criticar o fato depois de consumado (Krasse B The Vipeholm dental caries study recollections and reflections 50 years later J Dent Res 2001 80(9) 1785-8 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu op cit p 61) Mais uma vez cabiacutevel rememorar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () j) ser desenvolvida preferencialmente em indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida

112 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO eacute clara ao afirmar em seu art 7 aliacutenea b no que diz respeito a indiviacuteduos sem a capacidade para fornecer consentimento que a pesquisa soacute deve ser realizada para o beneficio direto agrave sauacutede do indiviacuteduo envolvido estando sujeita agrave autorizaccedilatildeo e agraves condiccedilotildees de proteccedilatildeo prescritas pela legislaccedilatildeo e caso natildeo haja nenhuma alternativa de pesquisa de eficaacutecia comparaacutevel que possa incluir sujeitos de pesquisa com capacidade para fornecer consentimento

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1217

rigoroso na ponderaccedilatildeo do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da autonomia e justiccedila expondo tais pessoas a riscos miacutenimos menores ateacute do que aqueles normalmente empregados em pesquisas com justificativa intriacutenseca3

Se essas diretrizes natildeo forem observadas teremos uma pesquisa carente de justificativa eacutetica e de legitimidade

6 Conclusotildees

Em virtude dos limites inerentes agrave nossa abordagem nessas consideraccedilotildees finais natildeo apresentaremos verdades irrefutaacuteveis e definitivas sobre um tema que ainda carece de um importante debate acadecircmico e normativo Com efeito o que pretendemos modestamente foi evidenciar alguns paradigmas que possam ensejar a conciliaccedilatildeo da dignidade da pessoa humana com a continuidade dos processos de investigaccedilatildeo cientiacuteficos realizados em seres humanos Para tanto podemos sintetizar nosso pensamento nas seguintes conclusotildees

a) O desenvolvimento da ciecircncia mormente em aacutereas afeitas agrave vida e a ocorrecircncia de pesquisas francamente contraacuterias agrave dignidade humana como ocorrido em vaacuterias passagens da Segunda Guerra ensejaram o surgimento da Bioeacutetica como um novo ramo do conhecimento

b) Deve-se limitar a atuaccedilatildeo da Bioeacutetica aos casos em que haacute conflito de valores quando dois princiacutepios eacutetica e moralmente admissiacuteveis natildeo podem coexistir

c) Haacute iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica Autonomia Beneficecircncia e Justiccedila aleacutem da Natildeo-Maleficecircncia - e as pesquisas em seres humanos

113 Ainda conforme o art 7 aliacutenea b da Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO quando se trata de pessoas incapazes Pesquisas sem potencial beneficio direto agrave sauacutede soacute devem ser realizadas excepcionalmente com a maior restriccedilatildeo expondo o indiviacuteduo apenas a risco e desconforto miacutenimos e quando se espera que a pesquisa contribua com o benefiacutecio agrave sauacutede de outros indiviacuteduos na mesma categoria sendo sujeitas agraves condiccedilotildees prescritas por lei e compatiacuteveis com a proteccedilatildeo dos direitos humanos do indiviacuteduo A recusa de tais indiviacuteduos em participar de pesquisas deve ser respeitada

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1218 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

d) Os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica

pluralista aberta e receptiva e satildeo um poderoso instrumento

para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

razotildees pelas quais eacute descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos

debates bioeacuteticos

e) O avanccedilo tecnoloacutegico traz cada vez mais a diminuiccedilatildeo de

limites teacutecnicos ao ser humano o que conduz ao debate sobre a

necessidade de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees para

evitar eventuais abusos especialmente na aacuterea biomeacutedica

elevando a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que

demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave

vida

0 A concretizaccedilatildeo dos objetivos atuais da humanidade

especialmente em relaccedilatildeo agrave expectativa de vida depende

dentre outros fatores da pesquisa cientiacutefica e da

experimentaccedilatildeo em seres humanos Poreacutem eacute preciso tomar o

Homem como sujeito de pesquisa sem trataacute-lo como mero

instrumento mas como um fim em si mesmo

g) A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do

interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda

Guerra trouxeram agrave tona a questatildeo da eacutetica na pesquisa

evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana e

de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa

em seres humanos gerando uma seacuterie de normas internacionais

e nacionais a exemplo do Coacutedigo de Nuremberg da

Declaraccedilatildeo de Helsinque e no Brasil da Resoluccedilatildeo n 19696

do Conselho Nacional de Sauacutede

h) Dentre os principais aspectos da Resoluccedilatildeo n 19696 do

Conselho Nacional de Sauacutede encontramos a vinculaccedilatildeo da

experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da

principiologia da Bioeacutetica a explicitaccedilatildeo de um rol de

exigecircncias para a eticidade na pesquisa as definiccedilotildees de

diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica como o

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1219

consentimento livre e esclarecido a vulnerabilidade e a

incapacidade a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em

Pesquisa -CONEP e a regulamentaccedilatildeo dos Comitecircs de Eacutetica e

Pesquisa - CEPs

i) O consentimento livre e esclarecido decorre da adoccedilatildeo do

princiacutepio da autonomia e pressupotildee dentre outras premissas a

capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os

aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos

possiacuteveis

j) A vulnerabilidade natildeo pode ser desconsiderada pelo

pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais ocorrendo

quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de

estudo por quaisquer motivos possuem a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto agrave

compreensatildeo sobre o experimento e a possibilidade de

livremente consentir com a pesquisa e dela desistir

k) A incapacidade ocorre quando as pessoas que seratildeo estudadas

na pesquisa natildeo possuem capacidade civil para dar o seu

consentimento soacute podendo ser levada adiante a pesquisa com a

intervenccedilatildeo de seus representantes legais implicando tambeacutem

no dever do pesquisador de cercar-se de cautelas eacuteticas

redobradas

1) As experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas

teleologicamcnte em dois grupos a) aquelas cujos objetivos

possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas

observadas as quais chamamos de pesquisas com justificativa

intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo

direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de

terceiros as quais denominamos pesquisas com justificativa

extrinseca

m) Em todo experimento eacute necessaacuterio averiguar se a justificativa -

seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1220 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima jaacute que a

justificativa soacute pelo fato de ser intriacutenseca natildeo seraacute

necessariamente legiacutetima nem tampouco soacute por ser extriacutenseca

seraacute necessariamente ilegiacutetima

n) Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a

realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser

encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca

como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

o) A interpretaccedilatildeo do item III1 letra d da Resoluccedilatildeo n 19696

que vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens

significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de

infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila natildeo deve ser literal nem

assistemaacutetica devendo ser considerada a incidecircncia de um

outro principio ainda que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que

eacute o da solidariedade

p) Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita ao princiacutepio da

solidariedade na Resoluccedilatildeo n 19696 a sua aplicaccedilatildeo eacute

cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele

texto afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua

relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-

humanitaacuteria

q) Logo mesmo que natildeo haja nenhum beneficio direto ao sujeito

de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma

justificativa a qual pode ser a intenccedilatildeo sua e do pesquisador

de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e

consequumlentemente para todos os demais seres humanos Aleacutem

disso natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica

sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao

respeito agrave dignidade da pessoa humana

r) A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em

seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade

poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1221

diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica listadas na

Resoluccedilatildeo n 19696 especialmente no item III3

s) Algumas exigecircncias satildeo puramente objetivas e uma vez

desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da

justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca

t) Nas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa

ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou natildeo vir a ter um

benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

u) Outras exigecircncias possuem um certo grau de subjetividade em

maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da

pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo

exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as

circunstacircncias faacutetiacutecas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo

de valor iacutensito a cada um

v) Quando se tratar de exigecircncias subjetivas deveraacute ser levado em

conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma

justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca

w) Quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou

sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal

no resultado do experimento tratando-se portanto de

justificativa extriacutenseca os riscos a que se submete devem ser

considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a

justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o beneficio esperado

tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa

submetida ao experimento

x) Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do

sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero

instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila e por outro

lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute

menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa

consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1222 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a

algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

y) Pode ser que diante de certas peculiaridades ou

vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo

considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa

em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua

realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo

eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima

z) Como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras

pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis

mas sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas agrave luz da

solidariedade o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias

objetivas agrave risca deve ser ainda mais rigoroso na ponderaccedilatildeo

do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave

observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da

autonomia e justiccedila

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Page 14: BIOÉTICA E PESQUISAS EM SERES HUMANOS

1200 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

eacutetica na pesquisa evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana47 e de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa em seres humanos48

Como resposta agraves atrocidades praticadas na Segunda Guerra foi instituiacutedo em 1947 no acircmbito internacional pelo Tribunal de Nuremberg que julgou vinte e trecircs criminosos de guerra nazistas dos quais vinte meacutedicos ligados agrave experimentaccedilatildeo em pessoas49 o denominado Coacutedigo de Nuremberg o qual estabeleceu as diretrizes gerais para pesquisa em seres humanos A doutrina destaca como principais conquistas do coacutedigo o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa em retirar-se do experimento e de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias deste bem como a necessidade de estudos preacutevios sobre a importacircncia da pesquisa e os seus riscos aleacutem da comprovaccedilatildeo da capacidade dos pesquisadores50

Um ano depois a humanidade assiste agrave proclamaccedilatildeo agora pela Assembleacuteia Geral das Naccedilotildees Unidas de um outro documento de suma importacircncia a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos que embora de caraacuteter geral alberga

periacuteodos ao raio-X houve casos do sangue da pessoa ser substituiacutedo por sangue de cavalo e quando as cobaias humanas natildeo serviam mais para as experiecircncias foram executadas O autor ainda ressalta que diferentemente dos alematildees que foram condenados alguns inclusive enforcados os americanos resolveram poupar os japoneses permitindo que continuassem suas carreiras MARTIN Leonard M C Ss R Eacutetica em pesquisa uma perspectiva brasileira O mundo da sauacutede Satildeo Paulo ano 26 v 26 n 1 p 98 janmar 2002

4 Haacute quem afirme - sem razatildeo ao nosso ver - que a dignidade eacute um conceito inuacutetil um mero slogan e que natildeo significaria mais do que o respeito pelas pessoas e por sua autonomia Nesse sentido vide vg MACKLIN Ruth Dignity is a useless concept Brilish Medica Journal v 327 p 20-27 dez 2003 Disponiacutevel em lthttpbmjbmjjournalscomcgicontentfull3277429l419gt Aacessado em 27 maio de 2006 Em sentido inverso sobre as relaccedilotildees entre a Bioeacutetica e a dignidade vide dentre outros ADORNO Roberto La bioegravetique et la dignitegrave de Ia persone Paris Presses Universitaires de France 1997 Os documentos internacionais mencionam o elo entre Bioeacutetica e dignidade A jaacute mencionada Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten por exemplo afirma textualmente que A pesquisa e experiecircncia com seres humanos devem ser realizadas harmonizando a liberdade da ciecircncia e o respeito da dignidade humana

48 A experimentaccedilatildeo em seres humanos causa impacto porque as pessoas temem o abuso Os abusos jaacute ocorreram estatildeo ocorrendo c ainda ocorreratildeo mas proibir o uso natildeo eacute a melhor maneira de impedir o abuso Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo em seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 p 7-9 junho 1997

49 Estima-se que centenas de meacutedicos atuaram nos campos de concentraccedilatildeo dos quais pelo menos setenta teriam participado de experimentos com seres humanos A maioria dos meacutedicos de maior expressatildeo conseguiram escapar do julgamento como foi o caso de Josef Mengele principal meacutedico do campo de extermiacutenio de Auschwitz que fugiu e chegou a viver 14 anos no Brasil onde morreu afogado em Bertioga em 1979 O julgamento levou oito meses As sentenccedilas e o Coacutedigo de Nuremberg foram anunciados conjuntamente em 19 de agosto de 1947 Sete acusados foram condenados agrave morte Cf CREMESP Diretrizes e Declaraccedilotildees Disponiacutevel em lthttpvwvbiocticaorgbrlegislacaooutras_diretrizesintegraphpgt Acessado em 30 maio 2006 Discute-se hoje a validade cientiacutefica dos experimentos realizados bem como se eacute eacutetico utilizar os resultados obtidos Nesse sentido vide mateacuteria intitulada Doutores da agonia publicada na revista Superinteressante ed 225 abr2006 p 52-61

50 Cf FREITAS Corina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos In COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 195

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direitos que natildeo podem ser olvidados quando da experimentaccedilatildeo com seres humanos a exemplo da dignidade da igualdade e da liberdade Aleacutem disso haacute diversas ligaccedilotildees entre a Declaraccedilatildeo e os princiacutepios da Bioeacutetica51

Assim como a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos o Coacutedigo de Nuremberg proclama criteacuterios princiacutepios miacutenimos e irredutiacuteveis para eticidade da pesquisa em seres humanos Ambas as declaraccedilotildees embora de grande importacircncia para a Bioeacutetica satildeo normalmente entendidas como desprovidas de instrumentos adequados de obrigatoriedade52 e de mecanismos sancionatoacuterios de modo que sua infraccedilatildeo na maioria dos casos tem gerado apenas sanccedilotildees morais

Natildeo-obstante o estabelecido no Coacutedigo de Nuremberg - e na Declaraccedilatildeo Universal - as violaccedilotildees continuaram a ocorrer inclusive nos paiacuteses signataacuterios De fato por exemplo nos Estados Unidos teve continuidade como se nada houvesse acontecido a famosa pesquisa sobre siacutefilis em Tuskegee no condado de Macon Alabama financiada com recursos federais onde especialmente negros e pobres acreditavam que estavam se submetendo a um tratamento especial gratuito quando na verdade nada recebiam embora jaacute houvesse medicamentos disponiacuteveis servindo como verdadeiras cobaias entre 1932 e 1973 para que os pesquisadores pudessem acompanhar o desenvolvimento da doenccedila1 Ainda exemplificativamente foi iniciado em 1946 o chamado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm um dos mais famosos e importantes estudos de odontologia jaacute realizados no qual mais de 436 deficientes mentais crocircnicos internos da cidade de Lund no sul da Sueacutecia que natildeo tinham sequer a menor consciecircncia do que ocorria foram submetidos ateacute 1951 a uma dieta especial rica em accediluacutecar para provar que esta substacircncia provocava caacuteries sem que lhes fosse dado qualquer tratamento54

Por exemplo ao afirmar no seu art 1deg que todas pessoas satildeo dotadas de razatildeo e consciecircncia o documento da ONU reforccedila a ideacuteia de autonomia

52 Em relaccedilatildeo agrave Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Faacutebio Konder Comparato afirma que embora seja tecnicamente apenas uma recomendaccedilatildeo da ONU a seus membros os direitos ali definidos correspondem integralmente ao que o costume e os princiacutepios juriacutedicos internacionais reconhecem hoje como normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens) como a proacutepria Corte Internacional de Justiccedila tem entendido COMPARATO Faacutebio Konder A afirmaccedilatildeo histoacuterica dos Direitos Humanos 4 ed rev e atual Satildeo Paulo Saraiva 2005 p 223-224

53 Vide vg a respeito REVERBY S M More than Fact and Fiction Cultural Memory and the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 31 p 22-28 2001 BRANDT A M Racism and Research The Case of the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 8 p 21-29 1978 BEECHER H K Ethics and Clinicai Research New England Journal of Medicine n 274 p 1354-1360 1966

54 Cf SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas clinicas sobre seus direitos 2005 p 55-61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

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1202 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

Os avanccedilos tecnoloacutegicos cada vez mais raacutepidos reverberaram nas questotildees eacuteticas forccedilando novas e perioacutedicas revisotildees Necessaacuterio se fez portanto a rediscussatildeo do tema e o aprimoramento do sistema normativo Assim sobreveio a Declaraccedilatildeo de Helsinque elaborada pela Associaccedilatildeo Meacutedica Mundial em 1964 texto que foi revisto e ampliado em 1975 (Toacutequio)55 1983 (Veneza) 1989 (Hong Kong) 1996 (Somerset) e 2000 (Edimburgo) com o que foram incorporadas vaacuterias inovaccedilotildees Por exemplo a disposiccedilatildeo no sentido de que No final do estudo todos os pacientes participantes devem ter assegurado o acesso aos melhores meacutetodos comprovados profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos identificados pelo estudo E no atinente ao uso de placebo que Os benefiacutecios riscos dificuldades e efetividade de um novo meacutetodo devem ser testados comparando-os com os melhores meacutetodos profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos atuais Isto natildeo exclui o uso de placebo ou nenhum tratamento em estudo onde existam meacutetodos provados de profiacutelaxia diagnoacutestico e tratamento 56 Foi tambeacutem reforccedilada a recomendaccedilatildeo do Coacutedigo de Nuremberg sobre a necessidade de submissatildeo do protocolo de pesquisa agrave anaacutelise por um Comitecirc de Eacutetica independente do pesquisador

Outros textos e documentos que tratam da pesquisa merecem referecircncia como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos de 196657 o intitulado Diretrizes Internacionais para a pesquisa biomeacutedica em seres humanos elaborado conjuntamente pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e pelo Council for International Organizations of Medicai Sciences (1993) a Declaraccedilatildeo de Manila (1981) a Declaraccedilatildeo de Princiacutepios Eacuteticos dos Meacutedicos do Mercosul (1996) a Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten (2000) e a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da Unesco (2005)

Em que pese o entendimento de que haacute carecircncia de instrumentos imperativos que garantam a exigibilidade dos referidos documentos sem duacutevida eles

A respeito Leo Pessini e Christian de Paul Barehifontaine ensinam que Tal modificaccedilatildeo fieou conhecida como Helsinque II Entre outros pontos importantes foram incluiacutedos nesta revisatildeo os seguintes aspectos I) Exigecircncia de que o protocolo experimental seja aprovado por uma comissatildeo independente para efeito de apreciaccedilatildeo comentaacuterios e orientaccedilatildeo (item I 2) 2) Que os seres humanos natildeo sejam utilizados em pesquisas a menos que o consentimento consciente do paciente dado livremente tenha sido obtido depois do mesmo ter sido adequadamente informado sobre os objetivos meacutetodos benefiacutecios esperados riscos potenciais e inconvenientes da experimentaccedilatildeo e que ele tenha liberdade de se abster e de cancelar sua participaccedilatildeo a qualquer momento (art I 9) 3) Que o protocolo contenha embasamento eacutetico da pesquisa e a referecircncia de que foram obedecidos os princiacutepios da Declaraccedilatildeo de Helsinque (item I 12) 4) Que os interesses da ciecircncia e da sociedade jamais tenham precedecircncia sobre o bem-estar do indiviacuteduo (item III 4) PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Problemas aluais de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1994 p 131

56 GRECO Dirceu B Poder e injusticcedila na pesquisa envolvendo seres humanos In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 264

57 De acordo com o seu art 7o Ningueacutem poderaacute ser submetido a tortura nem a penas ou tratamentos crueacuteis desumanos ou degradantes Seraacute proibido sobretudo submeter uma pessoa sem seu livre consentimento a experiecircncias meacutedicas ou cientiacuteficas

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contribuiacuteram e contribuem significativamente na proteccedilatildeo ao ser humano objeto de pesquisa pois influenciaram a elaboraccedilatildeo de diretrizes vinculantes no plano individual de cada Estado a exemplo do Brasil como a seguir veremos Por outro lado importante anotar que uma harmonia consensual e global no atinente agrave pesquisa parece impossiacutevel tendo em conta que a cultura os objetivos e as condiccedilotildees cientiacuteficas dos diversos paiacuteses satildeo naturalmente diversificados58 Aliaacutes haacute quem chegue a afirmar que o pluralismo eacutetico em vigor nos dias de hoje natildeo nos permite mais falar em moral universal59

No Brasil a normatizaccedilatildeo se daacute principalmente atraveacutes de resoluccedilotildees do Conselho Federal de Medicina60 e do Conselho Nacional de Sauacutede Aliaacutes a primeira resoluccedilatildeo deste uacuteltimo oacutergatildeo - Resoluccedilatildeo n 01 de 13 de junho de 1988 - tratou justamente de normas de pesquisa em sauacutede tendo dedicado o seu Capiacutetulo II arts 4o a 16 aos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos Esse diploma legal foi posteriormente revogado pela Resoluccedilatildeo n 196 de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Sauacutede que eacute atualmente a base regulamentar da pesquisa no Brasil tratando das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos Esta Resoluccedilatildeo eacute na verdade uma revisatildeo da anterior tendo sido precedida de diaacutelogo entre governo e sociedade civil61

A Resoluccedilatildeo atual afirma jaacute em seu preacircmbulo a sua fundamentaccedilatildeo nos principais documentos internacionais que emanaram declaraccedilotildees e diretrizes sobre

58 Nesse contexto por tanto deve ser considerada a questatildeo do multicuturalismo Como bem ensinam Joseacute A Mainetti Joseacute L Mainettil Existen dificultades en la aplicacioacuten de los principos elaborados por los paiacuteses centrales y es una evidencia por ejemplo que resulta inapropiada la visioacuten estrccha de la autonomia y la aplicacioacuten riacutegida dei requisito dei consentimento informado al modo norteamericano en determinadas circunstancias y comunidades Es preciso entoces reconocer Ias diferenccedilas culturales y en base a eacutestas aplicar los princiacutepios sin renunciar a cllos en formas maacutes adecuadas al ethos particular MAINETTI Joseacute A MAINETTI Joseacute L Bioeacutetica y la experimentacioacuten humana In SOROKIN Patriacutecia (Coord) Bioeacutelica entre utopias y desarraigos Buenos Aires Ad-Hoc Villela 2002 p 190

59 Cf ENGELHARDT JUacuteNIOR Tristam apuei BAUZON Steacutephane La personne biojuridique Paris Press Universitaires de France 2006 p 63

60 Vide como exemplo a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro o qual no seu Capiacutetulo XII trata especificamente da pesquisa meacutedica

61 Cf FREITAS Corina Bontempo Duca de Eacutetica na pesquisa com seres humanos A experiecircncia brasileira In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutelica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 307

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pesquisas que envolvem seres humanos62 e que visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito agrave comunidade cientiacutefica aos sujeitos da pesquisa e ao Estado

Aleacutem disso vinculou a experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da principiologia da Bioeacutetica seja no preacircmbulo onde afirma que incorpora sob a oacutetica do indiviacuteduo e das coletividades os quatro referenciais baacutesicos da Bioeacutetica autonomia natildeo-maleficecircncia beneficecircncia e justiccedila entre outros seja no seu item III 1 que versa sobre a eticidade na pesquisa63

Entre as suas disposiccedilotildees encontramos definiccedilotildees de diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica pesquisa64 pesquisa envolvendo seres humanos65

protocolo de pesquisa66 pesquisador responsaacutevel67 instituiccedilatildeo de pesquisa68 promotor69

patrocinador70 risco da pesquisa71 dano associado ou decorrente da pesquisa72 sujeito da

62 Cila a Resoluccedilatildeo os seguintes documentos o Coacutedigo de Nuremberg (1947) a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem (1948) a Declaraccedilatildeo de Helsinque (1964 e suas versotildees posteriores de 1975 1983 e 1989) o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Poliacuteticos (ONU 1966 aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1992) as Propostas de Diretrizes Eacuteticas Internacionais para Pesquisas Biomeacutedicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMSOMS 1982 e 1993) e as Diretrizes Internacionais para Revisatildeo Eacutetica de Estudos Epidemioloacutegicos (C10MS 1991) III1 - A eticidade da pesquisa implica em a) consentimento livre e esclarecido dos indiviacuteduos-alvo e a proteccedilatildeo a grupos vulneraacuteveis e aos legalmente incapazes (autonomia) Neste sentido a pesquisa envolvendo seres humanos deveraacute sempre trataacute-los em sua dignidade respeitaacute-los em sua autonomia e defendecirc-los em sua vulnerabilidade b) ponderaccedilatildeo entre riscos e benefiacutecios tanto atuais como potenciais individuais ou coletivos (beneficecircncia) comprometendo-se com o maacuteximo de benefiacutecios e o miacutenimo de danos e riscos c) garantia de que danos previsiacuteveis seratildeo evitados (natildeo maleficecircncia)- d) relevacircncia social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimizaccedilatildeo do ocircnus para os sujeitos vulneraacuteveis o que garante a igual consideraccedilatildeo dos interesses envolvidos natildeo perdendo o sentido de sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria (justiccedila e equumlidade) (negritos originais)

64 111 Pesquisa classe de atividades cujo objetivo eacute desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizaacutevel O conhecimento generalizaacutevel consiste em teorias relaccedilotildees ou princiacutepios ou no acuacutemulo de informaccedilotildees sobre as quais estatildeo baseados que possam ser corroborados por meacutetodos cientiacuteficos aceitos de observaccedilatildeo e infercncia

65 112 Pesquisa envolvendo seres humanos pesquisa que individual ou coletivamente envolva o ser humano de forma direta ou indireta em sua totalidade ou partes dele incluindo o manejo de informaccedilotildees ou materiais

66 II3 Protocolo de Pesquisa Documento contemplando a descriccedilatildeo da pesquisa em seus aspectos fundamentais informaccedilotildees relativas ao sujeito da pesquisa agrave qualificaccedilatildeo dos pesquisadores e a todas as instacircncias responsaacuteveis

67 II-4 Pesquisador responsaacutevel pessoa responsaacutevel pela coordenaccedilatildeo e realizaccedilatildeo da pesquisa e pela integridade e bem-estar dos sujeitos da pesquisa

68 II5 - Instituiccedilatildeo de pesquisa - organizaccedilatildeo puacuteblica ou privada legitimamente constituiacuteda e habilitada na qual satildeo realizadas investigaccedilotildees cientiacuteficas

69 116 - Promotor - indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo responsaacutevel pela promoccedilatildeo da pesquisa 70 II7 - Patrocinador - pessoa fiacutesica ou juriacutedica que apoia financeiramente a pesquisa 71 II8 Risco da pesquisa - possibilidade de danos agrave dimensatildeo fiacutesica psiacutequica moral intelectual social

cultural ou espiritual do ser humano em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente II9 Dano associado ou decorrente da pesquisa agravo imediato ou tardio ao indiviacuteduo ou agrave coletividade com nexo causai comprovado direto ou indireto decorrente do estudo cientiacutefico

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1205

pesquisa73 consentimento livre e esclarecido74 indenizaccedilatildeo75 ressarcimento6 Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (CEP)77 vulnerabilidade78 e incapacidade79

A Resoluccedilatildeo regulamentou os Comitecircs de Eacutetica e Pesquisa - CEPs80 em cujas funccedilotildees81 destaca-se a apreciaccedilatildeo do protocolo da pesquisa em todas as suas especificidades o que foi um grande passo no sentido da construccedilatildeo de padrotildees eacuteticos82

Haacute requisitos para a instituiccedilatildeo dos Comitecircs principalmente no atinente agrave sua composiccedilatildeo83

1110 Sujeito da pesquisa eacute o(a) participante pesquisado(a) individual ou coletivamente de caraacuteter voluntaacuterio vedada qualquer forma de remuneraccedilatildeo IIII Consentimento livre e esclarecido anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal livre de viacutecios (simulaccedilatildeo fraude ou erro) dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar formulada em um termo de consentimento autorizando sua participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa 1112 - Indenizaccedilatildeo - cobertura material em reparaccedilatildeo a dano imediato ou tardio causado pela pesquisa ao ser humano a ela submetida 1113 Ressarcimento - cobertura em compensaccedilatildeo exclusiva de despesas decorrentes da participaccedilatildeo do sujeito na pesquisa 1114 - Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa-CEP - colegiados interdisciplinares e independentes com munus puacuteblico de caraacuteter consultivo deliberativo e educativo criados para defender os interesses dos sujeitos da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrotildees eacuteticos 1115 Vulnerabilidade refere-se a estado de pessoas ou grupos que por quaisquer razotildees ou motivos tenham a sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido 1116 - Incapacidade - Refere-se ao possiacutevel sujeito da pesquisa que natildeo tenha capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido devendo ser assistido ou representado de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira vigente O CEP pode ser entendido como um oacutergatildeo controlador da pesquisa por um lado mas por outro eacute tambeacutem um oacutergatildeo que ajuda a harmonizar diversos interesses que como vimos podem ser os mais diversos e agraves vezes ateacute conflitantes Cf PALAacuteCIOS Marisa Eacutetica na pesquisa - 1 Eacutetica em pesquisa em seres humanos In PALAacuteCIOS Marisa MARTINS Andreacute PEGORARO Olinto A (Orgs) Eacutetica ciecircncia e sauacutede humana Petroacutepolis Vozes 2001 p 74 Satildeo atribuiccedilotildees conferidas pela Resoluccedilatildeo aos CEPs a) revisar todos os protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos b) emitir parecer consubstanciado por escrito c) manter a guarda confidencial de todos os dados obtidos na execuccedilatildeo de sua tarefa e arquivamento do protocolo completo que ficaraacute agrave disposiccedilatildeo das autoridades sanitaacuterias d) acompanhar o desenvolvimento dos projetos atraveacutes de relatoacuterios anuais dos pesquisadores e) desempenhar papel consultivo e educativo 0 receber dos sujeitos da pesquisa ou de qualquer outra parte denuacutencias de abusos ou notificaccedilatildeo sobre fatos adversos que possam alterar o curso normal do estudo decidindo pela continuidade modificaccedilatildeo ou suspensatildeo da pesquisa devendo se necessaacuterio adequar o termo de consentimento considerando-se anti-eacutetica a pesquisa descontinuada sem justificativa aceita pelo CEP que a aprovou g) requerer instauraccedilatildeo de sindicacircncia agrave direccedilatildeo da instituiccedilatildeo em caso de denuacutencias de irregularidades de natureza eacutetica nas pesquisas e em havendo comprovaccedilatildeo comunicar agrave Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa CONEPMS e no que couber a outras instacircncias e h) manter comunicaccedilatildeo regular e permanente com a CONEPMS A existecircncia de oacutergatildeos com a funccedilatildeo de aprovar e acompanhar pesquisas jaacute era preconizada por exemplo pelo Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988) cujo art 127 veda ao

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Foi mais aleacutem a Resoluccedilatildeo que de modo inovador reforccedilou o controle eacutetico e a defesa da dignidade da pessoa humana com a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa - CONEP84 que atua na direccedilatildeo e orientaccedilatildeo dos comitecircs8S A comissatildeo de acordo com a Resoluccedilatildeo eacute uma instacircncia colegiada de natureza consultiva deliberativa normativa independente vinculada ao Conselho Nacional de Sauacutede86 Essa vinculaccedilatildeo eacute bastante positiva posto que a alternativa de submetecirc-la a outros oacutergatildeos poderia dar ensejo a uma indesejada politizaccedilatildeo dos seus membros o que seria capaz de terminar por afetar a sua autonomia

meacutedico Realizar pesquisa meacutedica em ser humano sem submeter o protocolo a aprovaccedilatildeo e acompanhamento de comissatildeo isenta de qualquer dependecircncia em relaccedilatildeo ao pesquisador O colegiado com nuacutemero natildeo inferior a 7 (sete) membros deve ser multidisciplinar abrangendo profissionais idocircneos e de distinta formaccedilatildeo da aacuterea de sauacutede e das ciecircncias exatas sociais e humanas incluindo por exemplo juristas teoacutelogos socioacutelogos filoacutesofos bioeticistas aleacutem de membros da sociedade e obrigatoriamente pelo menos um membro representando os usuaacuterios Se a pesquisa envolver grupos vulneraacuteveis comunidades e coletividades um dos seus representantes deveraacute ser convidado para participar como membro ad hoc do CEP da anaacutelise do projeto especiacutefico Assim o CEP ainda segundo a Resoluccedilatildeo teraacute sempre um caraacuteter multi e transdisciplinar sendo vedado que mais que metade de seus membros pertenccedilam a uma mesma categoria profissional devendo ainda participarem pessoas dos dois sexos Satildeo permitidos consultores ad hoc pessoas que pertencem ou natildeo aacute instituiccedilatildeo com o objetivo de fornecer subsiacutedios teacutecnicos Merece ainda atenccedilatildeo especial a autonomia do comitecirc cuja manifestaccedilatildeo deve ser totalmente autocircnoma e imaculada de coaccedilotildees ou pressotildees dos interessados A autonomia e a independecircncia satildeo condiccedilotildees sine qua non para a desejada eficaacutecia dos comitecircs que felizmente estatildeo se proliferando em nosso paiacutes Conforme informaccedilotildees do site da CONEP satildeo 446 CEPs aprovados no Brasil ateacute janeiro de 2006 Disponiacutevel em lthttpoonselhosaudegovbrcomissaoconep2006ceps20APROVADOSxlsgt Acessado em 04 jun 2006 A Comissatildeo tem 13 membros titulares e o mesmo nuacutemero de suplentes em uma composiccedilatildeo que tambeacutem deveraacute ser multi e transdisciplinar com pessoas de ambos os sexos Dentre os seus membros 05 (cinco) devem ser personalidades destacadas no campo da eacutetica na pesquisa e na sauacutede e 08 (oito) devem ser personalidades com destacada atuaccedilatildeo nos campos teoloacutegico juriacutedico e outros assegurando-se que pelo menos um seja da aacuterea de gestatildeo da sauacutede Embora natildeo desconheccedilamos a importacircncia das religiotildees na formaccedilatildeo do pensamento eacutetico humano e sem querer desmerecer as pessoas que nelas militam no mais das vezes com accedilotildees de destacada importacircncia pensamos que eacute inadequada em um Estado laico como o nosso a destinaccedilacirco de vaga ou de vagas especificamente a pessoas do campo teleoloacutegico Essa observaccedilatildeo imperioso demarcar natildeo eacute no sentido de entender que a contribuiccedilatildeo dessas pessoas eacute desnecessaacuteria ou inconveniente Pelo contraacuterio Poreacutem a desejada participaccedilatildeo jaacute poderia ser levada a efeito incluindo-as no grupo de personalidades com atuaccedilatildeo de destaque na esfera da eacutetica na pesquisa e na sauacutede sem necessidade de vinculaccedilatildeo necessaacuteria ao pensamento religioso Isso ateacute mesmo para preservar o pluralismo e a igualdade jaacute que obviamente natildeo seraacute possiacutevel oferecer a cada religiatildeo uma vaga Os membros da Comissatildeo satildeo recrutados a partir de indicaccedilotildees contidas em listas elaboradas pelas instituiccedilotildees que possuem CEP registrado na CONEP sendo que 07 (sete) satildeo escolhidos pelo Conselho Nacional de Sauacutede e 06 (seis) satildeo definidos por sorteio Tambeacutem pode contar com consultores e membros ad hoc sendo assegurada a representaccedilatildeo dos usuaacuterios O mandato eacute de quatro anos com renovaccedilatildeo alternada a cada dois anos de sete ou seis de seus membros A CONEP tem tambeacutem um papel coordenador da rede de Comitecircs institucionais aleacutem de se constituir em oacutergatildeo consultor na aacuterea eacutetica em pesquisa Num primeiro momento tem ainda a atribuiccedilatildeo de apreciar os projetos de pesquisas de aacutereas temaacuteticas especiais enviadas pelos CFPs ou seja projetos que contemplam aacutereas com maiores dilemas eacuteticos e grande repercussatildeo social ateacute que se acumulem experiecircncias para elaboraccedilatildeo de normas especiacuteficas complementares agraves existentes Cf FREITAS Carolina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA

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Outros aspectos da Resoluccedilatildeo que merecem especial destaque para o nosso estudo satildeo os relativos ao consentimento livre e esclarecido agrave vulnerabilidade e agrave incapacidade

Como jaacute dito um dos principais pontos da Declaraccedilatildeo de Nuremberg foi o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias A Resoluccedilatildeo tratou do tema exigindo a anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar87 A anuecircncia deve ser expressa atraveacutes de

Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 202

S6 Segundo a Resoluccedilatildeo compete agrave CONEP examinar os aspectos eacuteticos da pesquisa envolvendo seres humanos assim como a adequaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo das normas atinentes consultando a sociedade sempre que julgar necessaacuterio cabendo-lhe entre outras as seguintes atribuiccedilotildees a) estimular a criaccedilatildeo de CEPs institucionais e de outras instacircncias b) registrar os CEPs institucionais e de outras instacircncias c) aprovar no prazo de 60 dias e acompanhar os protocolos de pesquisa em aacutereas temaacuteticas especiais tais como geneacutetica humana reproduccedilatildeo humana faacutermacos medicamentos vacinas e testes diagnoacutesticos novos (fases I II e III) ou natildeo registrados no pais (ainda que fase IV) ou quando a pesquisa for referente a seu uso com modalidades indicaccedilotildees doses ou vias de administraccedilatildeo diferentes daquelas estabelecidas incluindo seu emprego em combinaccedilotildees equipamentos insumos e dispositivos para a sauacutede novos ou natildeo registrados no paiacutes novos procedimentos ainda natildeo consagrados na literatura populaccedilotildees indiacutegenas projetos que envolvam aspectos de biosseguranccedila pesquisas coordenadas do exterior ou com participaccedilatildeo estrangeira c pesquisas que envolvam remessa de material bioloacutegico para o exterior e projetos que a criteacuterio do CEP devidamente justificado sejam julgados merecedores de anaacutelise pela CONEP d) prover normas especiacuteficas no campo da eacutetica em pesquisa inclusive nas aacutereas temaacuteticas especiais bem como recomendaccedilotildees para aplicaccedilatildeo das mesmas e) funcionar como instacircncia final de recursos a partir de informaccedilotildees fornecidas sistematicamente em caraacuteter ex-ofiacutecio ou a partir de denuacutencias ou de solicitaccedilatildeo de partes interessadas devendo manifestar-se em um prazo natildeo superior a 60 (sessenta) dias 0 rever responsabilidades proibir ou interromper pesquisas definitiva ou temporariamente podendo requisitar protocolos para revisatildeo eacutetica inclusive os jaacute aprovados pelo CEP g) constituir um sistema de informaccedilatildeo e acompanhamento dos aspectos eacuteticos das pesquisas envolvendo seres humanos em todo o territoacuterio nacional mantendo atualizados os bancos de dados h) informar e assessorar o MS o CNS e outras instacircncias do SUS bem como do governo e da sociedade sobre questotildees eacuteticas relativas agrave pesquisa em seres humanos i) divulgar esta e outras normas relativas agrave eacutetica em pesquisa envolvendo seres humanos j) juntamente com outros setores do Ministeacuterio da Sauacutede estabelecer normas e criteacuterios para o credenciamento de Centros de Pesquisa e I) estabelecer suas proacuteprias normas de funcionamento

87 No que concerne agrave pesquisa meacutedica a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro estipula no seu art 123 que eacute vedado ao meacutedico Realizar pesquisa em ser humano sem que este tenha dado consentimento por escrito apoacutes devidamente esclarecido sobre a natureza e consequumlecircncia da pesquisa e que Caso o paciente natildeo tenha condiccedilotildees de dar seu livre consentimento a pesquisa somente poderaacute se realizada em seu proacuteprio beneficio apoacutes expressa autorizaccedilatildeo de seu responsaacutevel legal Jaacute a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO no seu art 6 aliacutenea b estabelece que A pesquisa cientiacutefica soacute deve ser realizada com o preacutevio livre expresso e esclarecido consentimento do indiviacuteduo envolvido A informaccedilatildeo deve ser adequada fornecida de uma forma compreensiacutevel e incluir os procedimentos para a retirada do consentimento O consentimento pode ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer hora e por qualquer razatildeo sem acarretar qualquer desvantagem ou preconceito Exceccedilotildees a este princiacutepio somente devem ocorrer quando em conformidade com os padrotildees eacuteticos e legais adotados pelos Estados consistentes com as provisotildees da presente Declaraccedilatildeo particularmente com o art 27 e com os direitos humanos

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em um termo de consentimento onde eacute autorizada a participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa Aleacutem disso natildeo pode estar viciada por simulaccedilatildeo fraude ou erro nem tampouco pode ser obtida por forccedila de uma situaccedilatildeo de dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo

Trata-se de disposiccedilatildeo decorrente da adoccedilatildeo do princiacutepio da autonomia jaacute abordado que se vincula agrave capacidade de autodeterminaccedilatildeo e auto-escolha e pressupotildee dentre outras premissas a capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos possiacuteveis18

Quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de estudo possuem a capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto ao consentimento livre e esclarecido por quaisquer motivos verifica-se uma situaccedilatildeo de vulnerabilidade que natildeo pode ser desconsiderada pelo pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais A preocupaccedilatildeo com a vulnerabilidade dos sujeitos encontra supedacircneo no Coacutedigo de Nuremberg na Declaraccedilatildeo de Helsinque nas Diretrizes Internacionais para Pesquisa Biomeacutedica envolvendo Seres Humanos89 e tambeacutem como jaacute dito na Resoluccedilatildeo 19696 A dificuldade central relacionada a indiviacuteduos e comunidades vulneraacuteveis eacute com a sua capacidade de compreensatildeo (autonomia plena) sobre o experimento e possibilidade de livremente consentir com a pesquisa e quando quiser dela desistir o que justifica todas as preocupaccedilotildees nesse sentido90

Cabe trazer a lume os ensinamentos do professor chileno Fernando Lolas O respeito pela autonomia das pessoas como agentes morais capazes de decisotildees informadas eacute central no diaacutelogo bioeacutetico Somente a permissatildeo outorgada por uma pessoa pode legitimar uma accedilatildeo que a envolva O valor das pessoas eacute incondicional o que obriga a consideraacute-las fins natildeo meios com a liberdade de viver e a de decidir livres de interferecircncias LOLAS Fernando Bioeacutetica o que eacute como se faz Traduccedilatildeo Milton Camargo Mota Satildeo Paulo Loyola 2001 p 63 A Diretriz Internacional para Pesquisa Biomeacutedica afirma Pesquisa envolvendo indiviacuteduos de comunidades sub-desenvolvidas Antes de iniciar a pesquisa em indiviacuteduos de comunidades subdesenvolvidas seja em paiacuteses desenvolvidos ou em desenvolvimento o pesquisador deve estar seguro que As pessoas da comunidade subdesenvolvida natildeo seratildeo ordinariamente envolvidas na pesquisa que possa ser realizada de forma adequada em comunidades desenvolvidas A pesquisa eacute uma resposta agraves necessidades de sauacutede e agraves prioridades da comunidade na qual seraacute realizada todos os esforccedilos seratildeo tomados no sentido de assegurar o imperativo eacutetico de que o consentimento individual dos sujeitos seraacute informado e Os projetos para a pesquisa foram revisados e aprovados por um comitecirc de eacutetica que tenha entre os seus membros ou consultores pessoas que tenham familiaridade com os costumes e tradiccedilotildees da comunidade Em comentaacuterio agraves diretrizes acima Leo Pessini e Christian Paul de Barchifontaine entendem que Quando a experimentaccedilatildeo visa ao estudo de determinadas condiccedilotildees moacuterbidas tais como doenccedilas endecircmicas em comunidades de baixo niacutevel socioeconocircmico eou cultural incapazes de terem uma consciecircncia clara e apropriada das implicaccedilotildees de sua participaccedilatildeo na experiecircncia eacute de bom alvitre que seja obtida a interveniecircncia de um liacuteder em que a coletividade confia Esse intermediaacuterio dever deixar claro que a participaccedilatildeo eacute voluntaacuteria e que qualquer participante tem a liberdade de natildeo aceitar ou abandonar a experiecircncia a qualquer momento op cit p 133

Conforme Marisa Palaacutecios Quando a autonomia dos sujeitos natildeo eacute plena ou seja quando a capacidade de entender as situaccedilotildees que se apresentam ao sujeito e de autodeterminar-se segundo este entendimento estaacute de alguma forma limitada eacute preciso tomar cuidado especial Eacute o caso dos grupos vulneraacuteveis os iacutendios que tecircm a capacidade de entendimento das situaccedilotildees diminuiacuteda uma vez que compotildeem sociedades

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A vulnerabilidade pode assumir as mais variadas vertentes bem como atingir uma determinada pessoa ou um grupo de seres humanos com peculiaridades comuns tais como crianccedilas idosos iacutendios pacientes terminais desempregados deficientes91 presidiaacuterios92 ou outras situaccedilotildees de dependecircncia93

Pode ocorrer que as pessoas que seratildeo estudadas na pesquisa natildeo tenham capacidade civil para dar o seu consentimento Nesse caso se encontram em situaccedilatildeo de incapacidade e a pesquisa soacute pode ser levada adiante com a intervenccedilatildeo de seus representantes legais que de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira deveratildeo assistir ou representar os incapazes Tambeacutem aqui deve o pesquisador cercar-se de cautelas eacuteticas redobradas

Finalmente deve-se louvar a Resoluccedilatildeo por ter explicitado no seu item III3 um rol de 23 (vinte e trecircs) exigecircncias eacuteticas para a pesquisa de qualquer aacuterea do conhecimento que envolva seres humanos94

culturalmente diversas[] Estas para citar algumas populaccedilotildees caracteriacutesticas Satildeo populaccedilotildees que precisam ser especialmente protegidas dada a proacutepria condiccedilatildeo de vulnerabilidade Maria Carolina S Guimaratildees e Sylvia Caiuby Novaes com alento em Hannah Arendt e Cardia definem o ser vulneraacutevel como Algueacutem que possui cidadania fraacutegil que ignora a relevacircncia do direito agrave integridade fiacutesica como condiccedilatildeo de acesso aos direitos sociais econocircmicos poliacuteticos e trabalhistas Dito assim o que parece a primeira condiccedilatildeo para que um ser vulneraacutevel perca tal situaccedilatildeo eacute o investimento do Estado naquilo que constroacutei e constitui a cidadania naqueles atributos que transformam o indiviacuteduo em cidadatildeo que transformam o animal laborans em homem poliacutetico Essa transformaccedilatildeo eacute no dizer de Hannah Arendt um pressuposto da democracia pois permite ao animal laborans ir do reino da necessidade para o reino da liberdade GUIMARAtildeES Maria Carolina S NOVAES Sylvia Caiuby Autonomia reduzida e vulnerabilidade liberdade de decisatildeo diferenccedila e desigualdade Revista Bioeacutetica Brasiacutelia v 7 n 1 p 23 1999

91 Sobre o tema vide COHEN Claacuteudio Bioeacutetica Pesquisa e Deficiecircncia In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 55-62 92 Nem todo ser humano eacute no entanto capaz de autodeterminaccedilatildeo A capacidade de autodeterminaccedilatildeo amadurece ao longo da vida mas pode ser perdida total ou parcialmente por doenccedila velhice ou situaccedilatildeo de restriccedilatildeo severa como a prisatildeo Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 93 O Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de janeiro de 1988) veda ao meacutedico no seu art 128 Realizar pesquisa meacutedica em voluntaacuterios sadios ou-natildeo que tenham direta ou indiretamente dependecircncia ou subordinaccedilatildeo relativamente ao pesquisador 94 I1I3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias a) ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder a incertezas b) estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou em outros fatos cientiacuteficos c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio d) prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis e) obedecer a metodologia adequada Se houver necessidade de distribuiccedilatildeo aleatoacuteria dos sujeitos da pesquisa em grupos experimentais e de controle assegurar que apriori natildeo seja possiacutevel estabelecer as vantagens de um procedimento sobre outro atraveacutes de revisatildeo de literatura meacutetodos observacionais ou meacutetodos que natildeo envolvam seres humanos 0 ter plenamente justificada quando for o caso a utilizaccedilatildeo de placebo em termos de natildeo maleficecircncia e de necessidade metodoloacutegica g) contar com o consentimento livre e esclarecido do sujeito da pesquisa eou seu representante legal h) contar com os recursos humanos e materiais necessaacuterios que garantam o bem-

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5 Teleologia e legitimidade da pesquisa em seres humanos

Toda experimentaccedilatildeo em seres humanos possui um determinado objetivo o qual pode ou-natildeo estar vinculado ao bem estar proacuteprio da pessoa ou grupo observado

Essa situaccedilatildeo natildeo foi esquecida pela Declaraccedilatildeo de Helsinque cujo preacircmbulo afirma Wo campo cia pesquisa biomeacutedica uma distinccedilatildeo fundamental deve ser feita entre a pesquisa meacutedica na qual o objetivo eacute essencialmente o diagnoacutestico ou a terapecircutica para um paciente e a pesquisa meacutedica cujo objeto essencial eacute puramente cientiacutefico e sem um valor direto diagnoacutestico ou terapecircutico para a pessoa sujeita agrave

estar do sujeito da pesquisa devendo ainda haver adequaccedilatildeo entre a competecircncia do pesquisador e o projeto proposto i) prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade a proteccedilatildeo da imagem e a natildeo estigmatizaccedilatildeo garantindo a natildeo utilizaccedilatildeo das informaccedilotildees em prejuiacutezo das pessoas eou das comunidades inclusive em termos de auto-estima de prestiacutegio eou econocircmico - financeiro j) ser desenvolvida preferencialmente cm indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida 1) respeitar sempre os valores culturais sociais morais religiosos e eacuteticos bem como os haacutebitos e costumes quando as pesquisas envolverem comunidades m) garantir que as pesquisas em comunidades sempre que possiacutevel traduzir-se-atildeo em benefiacutecios cujos efeitos continuem a se fazer sentir apoacutes sua conclusatildeo O projeto deve analisar as necessidades de cada um dos membros da comunidade e analisar as diferenccedilas presentes entre eles explicitando como seraacute assegurado o respeito agraves mesmas n) garantir o retomo dos benefiacutecios obtidos atraveacutes das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas Quando no interesse da comunidade houver benefiacutecio real em incentivar ou estimular mudanccedilas de costumes ou comportamentos o protocolo de pesquisa deve incluir sempre que possiacutevel disposiccedilotildees para comunicar tal benefiacutecio agraves pessoas eou comunidades o) comunicar agraves autoridades sanitaacuterias os resultados da pesquisa sempre que os mesmos puderem contribuir para a melhoria das condiccedilotildees de sauacutede da coletividade preservando poreacutem a imagem e assegurando que os sujeitos da pesquisa natildeo sejam estigmatizados ou percam a auto-estima p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefiacutecios resultantes do projeto seja em termos de retorno social acesso aos procedimentos produtos ou agentes da pesquisa q)assegurar aos sujeitos da pesquisa as condiccedilotildees de acompanhamento tratamento ou de orientaccedilatildeo conforme o caso nas pesquisas de rastreamento demonstrar a preponderacircncia de benefiacutecios sobre riscos e custos r) assegurar a inexistecircncia de conflito de interesses entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa ou patrocinador do projeto s) comprovar nas pesquisas conduzidas do exterior ou com cooperaccedilatildeo estrangeira os compromissos e as vantagens para os sujeitos das pesquisas e para o Brasil decorrentes de sua realizaccedilatildeo Nestes casos deve ser identificado o pesquisador e a instituiccedilatildeo nacionais co-responsaacuteveis pela pesquisa O protocolo deveraacute observar as exigecircncias da Declaraccedilatildeo de Helsinque e incluir documento de aprovaccedilatildeo no paiacutes de origem entre os apresentados para avaliaccedilatildeo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa da instituiccedilatildeo brasileira que exigiraacute o cumprimento de seus proacuteprios referenciais eacuteticos Os estudos patrocinados do exterior tambeacutem devem responder agraves necessidades de treinamento de pessoal no Brasil para que o paiacutes possa desenvolver projetos similares de forma independente t) utilizar o material bioloacutegico e os dados obtidos na pesquisa exclusivamente para a finalidade prevista no seu protocolo u) levar em conta nas pesquisas realizadas em mulheres em idade feacutertil ou em mulheres graacutevidas a avaliaccedilatildeo de riscos e benefiacutecios e as eventuais interferecircncias sobre a fertilidade a gravidez o embriatildeo ou o feto o trabalho de parto o puerpeacuterio a lactaccedilatildeo e o receacutem-nascido v) considerar que as pesquisas em mulheres graacutevidas devem ser precedidas de pesquisas em mulheres fora do periacuteodo gestacional exceto quando a gravidez for o objetivo fundamental da pesquisa x) propiciar nos estudos multicecircntricos a participaccedilatildeo dos pesquisadores que desenvolveratildeo a pesquisa na elaboraccedilatildeo do delineamento geral do projeto e z) descontinuar o estudo somente apoacutes anaacutelise das razotildees da descontinuidade pelo CEP que a aprovou

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pesquisa Em outras palavras haacute experimentos em benefiacutecio do paciente e experimentos em benefiacutecio da ciecircncia Ainda no preacircmbulo da Declaraccedilatildeo de Helsinque encontramos que A finalidade da pesquisa meacutedica envolvendo seres humanos deve ser o aperfeiccediloamento do diagnoacutestico procedimentos terapecircuticos e profilaacuteticos e a compreensatildeo da etiologia e da patologia da doenccedila Conjugando essa afirmaccedilatildeo com a anterior podemos extrair que uma determinada pessoa ou populaccedilatildeo pode ser objeto de pesquisa para desvendar doenccedilas que a afligem ou para desnudar as razotildees pelas quais eacute menos suscetiacutevel ou-natildeo eacute atingida por determinada moleacutestia que afeta aos demais seres humanos

A partir dessas observaccedilotildees podemos considerar para os fins do nosso estudo que as experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas teleologicamente em dois grupos a) aquelas cujos objetivos possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas as quais chamaremos de pesquisas com justificativa intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de terceiros as quais denominaremos pesquisas com justificativa extrinseca Temos como exemplo na primeira situaccedilatildeo os experimentos cientiacuteficos para desvendar o porquecirc de uma determinada coletividade ser atingida por taxas elevadas de uma certa doenccedila e na segunda uma pesquisa para revelar as razotildees pelas quais certas pessoas natildeo desenvolvem uma moleacutestia com o objetivo de descobrir uma vacina ou um medicamento para os demais

Entretanto em todo experimento seraacute necessaacuterio averiguar se a justificativa - seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima Isso porque o fato de uma pesquisa ter por objetivo um tratamento mais eficiente ou a cura de certas doenccedilas natildeo legitima por si soacute a utilizaccedilatildeo de pessoas como sujeito de pesquisa mesmo que elas sofram da moleacutestia e possam vir a ser beneficiadas Natildeo se deve perder de vista aliaacutes que se o conhecimento puder ser obtido por outro meio a utilizaccedilatildeo de seres humanos justamente por ser desnecessaacuteria seraacute ilegiacutetima95 Ademais soacute pelo fato de ser intriacutenseca a justificativa natildeo seraacute necessariamente legiacutetima Por outro lado a circunstacircncia isoladamente considerada do eventual resultado da experimentaccedilatildeo ser absolutamente indiferente ao sujeito de pesquisa natildeo torna a sua participaccedilatildeo ilegiacutetima Em outras palavras a justificativa soacute por ser extrinseca natildeo seraacute necessariamente ilegiacutetima

Vale relembrar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 - A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio

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A razatildeo disso reside na afirmaccedilatildeo de que como se sabe desde Kant o Homem deve ser tratado como um fim em si mesmo e natildeo como instrumento De fato eacute em Kant que o Homem ganha status de valor absoluto manifesto no imperativo praacutetico expresso na maacutexima segundo a qual Ages de tal maneira que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio 96

Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

Quando se trata de experimentaccedilatildeo com justificativa intriacutenseca a razatildeo legitimadora pode estar no objetivo de beneficiar os proacuteprios sujeitos da pesquisa algueacutem se submete a uma experimentaccedilatildeo na tentativa de auferir uma vantagem em seu bem-estar fiacutesico ou mental

Jaacute no caso da justificativa extriacutenseca poder-se-ia objetar a realizaccedilatildeo da experimentaccedilatildeo com suposto fundamento na Resoluccedilatildeo 19696 cujo item III 1 letra d vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila Ora se em uma determinada situaccedilatildeo algueacutem participa do experimento sem que haja qualquer possibilidade de benefiacutecio fiacutesico ou mental para si a partir do resultado da pesquisa e considerando que a mesma Resoluccedilatildeo veda qualquer forma de remuneraccedilatildeo do sujeito da pesquisa (item 1110) qual a vantagem significativa que poderaacute essa pessoa auferir para justificar a sua participaccedilatildeo

Ao nosso ver a interpretaccedilatildeo desse ponto da Resoluccedilatildeo natildeo deve ser literal nem assistemaacutetica97 devendo ser considerada a incidecircncia de um outro princiacutepio ainda

Op cit p 69 Em comento a este imperativo Francesca Puigpclat Marti apregoa que La concepcioacuten liberal asocia a esta expresioacuten una idea comuacuten en Ia reflexioacuten eacutetica de raigambre kantiana el hombre es un fin en si mismo un sujeto y no un objeto Seguacuten Kant en el sistema de Ia natureza el hombre (homo phaenomenon animal rationale) es un ser de escasa importancia y tiene con los demaacutes animales en tanto que productos de Ia tierra un precio comuacuten () Ahora bien el hombre considerado como persona es dccir como sujeto de una razoacuten praacutetico-moral estaacute situado por encima de todo precio porque como tal (homo noumenon) no puede valorarse soacutelo como meacutedio para fines ajenos incluso para sus proprios fines sino como fin en siacute mismo es decir posee una dignidad(un valor interno absoluto) gracias a la cual infunde respeto haciacutea eacutel a todos los demaacutes seres racionales dei mundo puede medirse con cualquier otro de esta clase y valorarse en pie de igualdad En la medida en que seguacuten Kant el hombre existe como fin en siacute mismo y no soacutelo como meacutedio para usos cualesquiera de una u otra voluntad se puede formular el siguiente principio praacutetico supremo obra de tal modo que uses la humanidad tanto en tu persona como en la persona de cualquier otro siempre como un fin al mismo tiempo y nunca solamente como un meacutedio MARTIacute Francesca Puigpelat Clonacioacuten dignidad humana y constitucioacuten Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo ano II n 42 janmar p37-64 2003

Natildeo se interpreta o direito em tiras aos pedaccedilos () Um texto de direito isolado destacado desprendido do sistema juriacutedico natildeo expressa significado normativo algum Cf GRAU Eros Roberto Ensaio e

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1213

que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que eacute o da solidariedade Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita entendemos que a sua aplicaccedilatildeo eacute cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele dispositivo (item 1111 letra d da Resoluccedilatildeo 19696) afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria Aleacutem disso outros documentos de importacircncia para a Bioeacutetica fazem referecircncia agrave solidariedade98 De fato natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao respeito agrave dignidade da pessoa humana99

Logo no nosso pensar mesmo que natildeo haja nenhum benefiacutecio ou vantagem direta ao sujeito de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma justificativa eacutetica a qual pode ter como nuacutecleo a intenccedilatildeo solidaacuteria dessa pessoa e do pesquisador de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e consequumlentemente para todos os demais seres humanos

A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica100

Estas exigecircncias no acircmbito normativo brasileiro estatildeo listadas na Resoluccedilatildeo 19696 especialmente no item III3

Algumas delas satildeo puramente objetivas e uma vez desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca E o caso por exemplo da necessidade de consentimento preacutevio e informado

discurso sobre a interpretaccedilatildeoaplicaccedilatildeo do Direito Satildeo Paulo Malheiros Editores 2002 p 34 98

O art 1deg da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos proclama que todas pessoas devem agir em relaccedilatildeo umas agraves outras com espiacuterito de fraternidade Alem disso a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO em um dos seus considerandos observa que os seres humanos tecircm um papel importante na proteccedilatildeo um do outro tratando expressamente da solidariedade e cooperaccedilatildeo no seu art 13 segundo o qual A solidariedade entre os seres humanos e cooperaccedilatildeo internacional para este fim devem ser estimuladas 99 Ela [a solidariedade] eacute o fecho de aboacutebada do sistema de princiacutepios eacuteticos pois complementa e aperfeiccediloa a liberdade a igualdade e a seguranccedila () E um erro considerar que no mundo da natureza sobretudo no mundo animal natildeo exista solidariedade e que ela seja uma criaccedilatildeo poliacutetica Muito pelo contraacuterio pode-se dizer que a biosfera forma naturalmente um sistema solidaacuterio e que o rompimento desse sistema eacute sempre obra do homem O proacuteprio Darwin bem advertiu que a expressatildeo struggle for Existence fora por ele usada em sentido amplo e matafoacuterico incluindo a dependecircncia de um ser em relaccedilatildeo a outro bem como incluindo (o que eacute mais importante) natildeo apenas a vida do indiviacuteduo mas o ecircxito em deixar descendentes Os zooacutelogos jaacute observaram que o processo de seleccedilatildeo natural deu mais vantagens bioloacutegicas aos grupos que cuidavam de seus membros natildeo reprodutivos do que agravequeles que abandonavam ou matavam os anciatildeos pois a capacidade de reproduccedilatildeo global dos grupos altruiacutestas eacute assim singularmente reforccedilada Cf COMPARATO Faacutebio Konder Eacutetica direito moral e religiatildeo no mundo moderno Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 p 577578

100

Natildeo eacute agrave toa portanto que como jaacute visto a Resoluccedilatildeo 19696 vincula a eticidade na pesquisa aos princiacutepios da Bioeacutetica tanto no seu preacircmbulo como no seu item III 1

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1214 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

dos participantes - ou dos seus representantes se incapazes - 101 cuja ausecircncia macula o princiacutepio da autonomia Tambeacutem eacute objetiva a exigecircncia da pesquisa estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou outros fatos cientiacuteficos102 cuja inobservacircncia implica em ofensa agrave natildeo-maleficecircncia Nessas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou-natildeo vir a ter um benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

Outras exigecircncias entretanto possuem um certo grau de subjetividade em maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as circunstacircncias faacuteticas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo de valor iacutensito a cada um Desse tipo vg eacute a exigecircncia segundo a qual a pesquisa deve ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e ter possibilidades concretas de responder a incertezas103 A avaliaccedilatildeo quanto ao cumprimento ou-natildeo da exigecircncia e portanto quanto agrave legitimidade ou ilegitimidade da utilizaccedilatildeo de seres humanos tem um niacutetido caraacuteter subjetivo podendo variar de pessoa para pessoa

Quando tratamos de exigecircncias subjetivas haacute ainda um outro aspecto a ser apontado deveraacute ser levado em conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca Em outras palavras a circunstacircncia do sujeito de pesquisa poder vir a ser beneficiado ou-natildeo pelo resultado do experimento deve ser considerada na verificaccedilatildeo da legitimidade eacutetica quando da ponderaccedilatildeo sobre o cumprimento das exigecircncias subjetivas

Tomemos como exemplo a exigecircncia de que devem prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis104 Ora essa exigecircncia eacute subjetiva pois envolve uma ponderaccedilatildeo cujo resultado estaacute vinculado a um juiacutezo de valor sobre a natureza e a importacircncia ou peso de cada benefiacutecio ou risco provaacutevel Ao nosso entender quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal no resultado do experimento tratando-se portanto de justificativa extriacutenseca eacute oacutebvio que os riscos a que se submete devem ser considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o benefiacutecio esperado tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa submetida ao experimento

101 Item III3 letra g da Resoluccedilatildeo 19696 102 Item III3 letra b da Resoluccedilatildeo 19696 103 Item III3 letra a da Resoluccedilatildeo 19696 104 Item III3 letra d da Resoluccedilatildeo 19696

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1215

Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila105 Por outro lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

A proacutepria realizaccedilatildeo ou-natildeo da pesquisa pode depender dessa ponderaccedilatildeo jaacute que a Resoluccedilatildeo n 19696 prevecirc que havendo riscos potenciais as pesquisas envolvendo seres humanos poderatildeo ser admitidas quando oferecerem elevada possibilidade de gerar conhecimento para entender prevenir ou aliviar um problema que afete o bem-estar dos sujeitos da pesquisa e de outros indiviacuteduos 106

Aleacutem disso parece ser mais aceitaacutevel eticamente submeter o ser humano a riscos maiores quando a justificativa eacute intriacutenseca do que quando ela eacute extriacutenseca priorizando assim a sua preservaccedilatildeo Nesse sentido a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO estipula que uos interesses e o bem-estar do indiviacuteduo devem ter prioridade sobre o interesse exclusivo da ciecircncia ou da sociedade 107

Natildeo se pode esquecer ainda que por forccedila dos princiacutepios da beneficecircncia da natildeo-maleficecircncia e da justiccedila eacute preciso considerar na mediccedilatildeo da legitimidade as peculiaridades individuais ou coletivas dos sujeitos de pesquisa especialmente no que concerne agraves suas eventuais vulnerabilidades bem como cuidar para que natildeo lhes seja imposto um mal desnecessaacuterio ou desproporcional O princiacutepio da justiccedila como vimos implica necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa os quais sempre que possiacutevel devem ter garantido para si pelo pesquisador a fruiccedilatildeo dos benefiacutecios da experimentaccedilatildeo natildeo sendo equacircnime impor-Ihes ocircnus excessivos108 especialmente se vulneraacuteveis Natildeo eacute agrave toa portanto que pode

105 O princiacutepio da justiccedila implica atenccedilatildeo especial agraves regras de recrutamento de participantes de experimentos Natildeo se pode fazer experimentos apenas com determinados grupos - pacientes de enfermaria asilados prisioneiros - simplesmente porque eles estatildeo agrave disposiccedilatildeo e em situaccedilatildeo de dependecircncia Isso eacute injusto Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 Item Vl aliacutenea a

107 Art 3 aliacutenea b 108 bull

Consideramos que deva ser modificada a praacutetica muito comum em nosso paiacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de pesquisados provenientes das camadas mais desfavorecidas da sociedade ou de outros grupos vulneraacuteveis mas que posteriormente natildeo poderatildeo se beneficiar dos resultantes positivos das pesquisas em que tomaram parte mesmo tendo enfrentado riscos de danos psico-sociais As pesquisas realizadas nesses grupos devem poder lhes trazer benefiacutecios e os pesquisadores sempre que possiacutevel devem garantir retomo dos benefiacutecios resultados das pesquisas para os sujeitos individuais e coletivos que nelas participarem Cf FORTES Paulo Antonio de Carvalho As Pesquisas em Seres Humanos e o Principio Eacutetico da Justiccedila

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1216 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

haver exigecircncias eacuteticas especiacuteficas para pesquisas com serem humanos em situaccedilatildeo de vulnerabilidade109

Assim sempre seraacute preciso dosar a equaccedilatildeo riscobeneficio ponderando em cada caso concreto se os eventuais benefiacutecios satildeo suficientes para motivar a exposiccedilatildeo das pessoas ao processo de experimentaccedilatildeo Pode ser que diante de certas peculiaridades ou vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima110 Aliaacutes como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis justamente porque como jaacute dito o ser humano natildeo pode ser tratado como mero instrumento1

E natildeo eacute soacute Aleacutem disso em princiacutepio a pesquisa com pessoas ou grupos vulneraacuteveis deve ter uma justificativa intriacutenseca2 Entretanto sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas em experimentos extriacutensecos agrave luz da solidariedade como no caso do grupo vulneraacutevel ser imune a determinada moleacutestia por razatildeo ainda desconhecida o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias objetivas agrave risca deve ser ainda mais

Cadernos de Eacutetica em Pesquisa Ano 1 n 2 p 22-23 nov 1998 109

A tiacutetulo de exemplo a Resoluccedilatildeo 19696 traz alguns requisitos especiacuteficos para o consentimento livre e esclarecido de pessoas ou populaccedilotildees vulneraacuteveis no item IV3

110 Um caso de niacutetida violaccedilatildeo aos princiacutepios bioeacuteticos em pesquisas envolvendo grupo vulneraacutevel foi o jaacute mencionado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm Conforme um dos colaboradores da pesquisa utilizar doentes mentais ainda que natildeo voluntaacuterios foi a melhor opccedilatildeo diante do fato de que o principal problema da sauacutede puacuteblica era justamente o das doenccedilas dentaacuterias razatildeo pela qual os fins justificariam os meios ainda mais considerando que o estudo foi utilizado em todo o mundo (Krasse B Sueacutecia usou deficiente mental como cobaia Folha de Satildeo Paulo 23 Set 1997 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas cliacutenicas sobre seus direitos 2005 p 61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo) sendo faacutecil criticar o fato depois de consumado (Krasse B The Vipeholm dental caries study recollections and reflections 50 years later J Dent Res 2001 80(9) 1785-8 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu op cit p 61) Mais uma vez cabiacutevel rememorar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () j) ser desenvolvida preferencialmente em indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida

112 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO eacute clara ao afirmar em seu art 7 aliacutenea b no que diz respeito a indiviacuteduos sem a capacidade para fornecer consentimento que a pesquisa soacute deve ser realizada para o beneficio direto agrave sauacutede do indiviacuteduo envolvido estando sujeita agrave autorizaccedilatildeo e agraves condiccedilotildees de proteccedilatildeo prescritas pela legislaccedilatildeo e caso natildeo haja nenhuma alternativa de pesquisa de eficaacutecia comparaacutevel que possa incluir sujeitos de pesquisa com capacidade para fornecer consentimento

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1217

rigoroso na ponderaccedilatildeo do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da autonomia e justiccedila expondo tais pessoas a riscos miacutenimos menores ateacute do que aqueles normalmente empregados em pesquisas com justificativa intriacutenseca3

Se essas diretrizes natildeo forem observadas teremos uma pesquisa carente de justificativa eacutetica e de legitimidade

6 Conclusotildees

Em virtude dos limites inerentes agrave nossa abordagem nessas consideraccedilotildees finais natildeo apresentaremos verdades irrefutaacuteveis e definitivas sobre um tema que ainda carece de um importante debate acadecircmico e normativo Com efeito o que pretendemos modestamente foi evidenciar alguns paradigmas que possam ensejar a conciliaccedilatildeo da dignidade da pessoa humana com a continuidade dos processos de investigaccedilatildeo cientiacuteficos realizados em seres humanos Para tanto podemos sintetizar nosso pensamento nas seguintes conclusotildees

a) O desenvolvimento da ciecircncia mormente em aacutereas afeitas agrave vida e a ocorrecircncia de pesquisas francamente contraacuterias agrave dignidade humana como ocorrido em vaacuterias passagens da Segunda Guerra ensejaram o surgimento da Bioeacutetica como um novo ramo do conhecimento

b) Deve-se limitar a atuaccedilatildeo da Bioeacutetica aos casos em que haacute conflito de valores quando dois princiacutepios eacutetica e moralmente admissiacuteveis natildeo podem coexistir

c) Haacute iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica Autonomia Beneficecircncia e Justiccedila aleacutem da Natildeo-Maleficecircncia - e as pesquisas em seres humanos

113 Ainda conforme o art 7 aliacutenea b da Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO quando se trata de pessoas incapazes Pesquisas sem potencial beneficio direto agrave sauacutede soacute devem ser realizadas excepcionalmente com a maior restriccedilatildeo expondo o indiviacuteduo apenas a risco e desconforto miacutenimos e quando se espera que a pesquisa contribua com o benefiacutecio agrave sauacutede de outros indiviacuteduos na mesma categoria sendo sujeitas agraves condiccedilotildees prescritas por lei e compatiacuteveis com a proteccedilatildeo dos direitos humanos do indiviacuteduo A recusa de tais indiviacuteduos em participar de pesquisas deve ser respeitada

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1218 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

d) Os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica

pluralista aberta e receptiva e satildeo um poderoso instrumento

para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

razotildees pelas quais eacute descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos

debates bioeacuteticos

e) O avanccedilo tecnoloacutegico traz cada vez mais a diminuiccedilatildeo de

limites teacutecnicos ao ser humano o que conduz ao debate sobre a

necessidade de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees para

evitar eventuais abusos especialmente na aacuterea biomeacutedica

elevando a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que

demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave

vida

0 A concretizaccedilatildeo dos objetivos atuais da humanidade

especialmente em relaccedilatildeo agrave expectativa de vida depende

dentre outros fatores da pesquisa cientiacutefica e da

experimentaccedilatildeo em seres humanos Poreacutem eacute preciso tomar o

Homem como sujeito de pesquisa sem trataacute-lo como mero

instrumento mas como um fim em si mesmo

g) A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do

interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda

Guerra trouxeram agrave tona a questatildeo da eacutetica na pesquisa

evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana e

de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa

em seres humanos gerando uma seacuterie de normas internacionais

e nacionais a exemplo do Coacutedigo de Nuremberg da

Declaraccedilatildeo de Helsinque e no Brasil da Resoluccedilatildeo n 19696

do Conselho Nacional de Sauacutede

h) Dentre os principais aspectos da Resoluccedilatildeo n 19696 do

Conselho Nacional de Sauacutede encontramos a vinculaccedilatildeo da

experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da

principiologia da Bioeacutetica a explicitaccedilatildeo de um rol de

exigecircncias para a eticidade na pesquisa as definiccedilotildees de

diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica como o

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1219

consentimento livre e esclarecido a vulnerabilidade e a

incapacidade a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em

Pesquisa -CONEP e a regulamentaccedilatildeo dos Comitecircs de Eacutetica e

Pesquisa - CEPs

i) O consentimento livre e esclarecido decorre da adoccedilatildeo do

princiacutepio da autonomia e pressupotildee dentre outras premissas a

capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os

aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos

possiacuteveis

j) A vulnerabilidade natildeo pode ser desconsiderada pelo

pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais ocorrendo

quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de

estudo por quaisquer motivos possuem a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto agrave

compreensatildeo sobre o experimento e a possibilidade de

livremente consentir com a pesquisa e dela desistir

k) A incapacidade ocorre quando as pessoas que seratildeo estudadas

na pesquisa natildeo possuem capacidade civil para dar o seu

consentimento soacute podendo ser levada adiante a pesquisa com a

intervenccedilatildeo de seus representantes legais implicando tambeacutem

no dever do pesquisador de cercar-se de cautelas eacuteticas

redobradas

1) As experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas

teleologicamcnte em dois grupos a) aquelas cujos objetivos

possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas

observadas as quais chamamos de pesquisas com justificativa

intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo

direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de

terceiros as quais denominamos pesquisas com justificativa

extrinseca

m) Em todo experimento eacute necessaacuterio averiguar se a justificativa -

seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1220 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima jaacute que a

justificativa soacute pelo fato de ser intriacutenseca natildeo seraacute

necessariamente legiacutetima nem tampouco soacute por ser extriacutenseca

seraacute necessariamente ilegiacutetima

n) Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a

realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser

encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca

como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

o) A interpretaccedilatildeo do item III1 letra d da Resoluccedilatildeo n 19696

que vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens

significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de

infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila natildeo deve ser literal nem

assistemaacutetica devendo ser considerada a incidecircncia de um

outro principio ainda que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que

eacute o da solidariedade

p) Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita ao princiacutepio da

solidariedade na Resoluccedilatildeo n 19696 a sua aplicaccedilatildeo eacute

cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele

texto afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua

relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-

humanitaacuteria

q) Logo mesmo que natildeo haja nenhum beneficio direto ao sujeito

de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma

justificativa a qual pode ser a intenccedilatildeo sua e do pesquisador

de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e

consequumlentemente para todos os demais seres humanos Aleacutem

disso natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica

sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao

respeito agrave dignidade da pessoa humana

r) A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em

seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade

poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1221

diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica listadas na

Resoluccedilatildeo n 19696 especialmente no item III3

s) Algumas exigecircncias satildeo puramente objetivas e uma vez

desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da

justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca

t) Nas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa

ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou natildeo vir a ter um

benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

u) Outras exigecircncias possuem um certo grau de subjetividade em

maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da

pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo

exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as

circunstacircncias faacutetiacutecas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo

de valor iacutensito a cada um

v) Quando se tratar de exigecircncias subjetivas deveraacute ser levado em

conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma

justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca

w) Quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou

sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal

no resultado do experimento tratando-se portanto de

justificativa extriacutenseca os riscos a que se submete devem ser

considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a

justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o beneficio esperado

tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa

submetida ao experimento

x) Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do

sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero

instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila e por outro

lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute

menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa

consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1222 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a

algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

y) Pode ser que diante de certas peculiaridades ou

vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo

considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa

em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua

realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo

eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima

z) Como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras

pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis

mas sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas agrave luz da

solidariedade o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias

objetivas agrave risca deve ser ainda mais rigoroso na ponderaccedilatildeo

do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave

observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da

autonomia e justiccedila

Satildeo Paulo novembro de 2006

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ALEMANHA Rodrigo Resende da Doutores da agonia Revista Superinteressante ed 225 p

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Page 15: BIOÉTICA E PESQUISAS EM SERES HUMANOS

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1201

direitos que natildeo podem ser olvidados quando da experimentaccedilatildeo com seres humanos a exemplo da dignidade da igualdade e da liberdade Aleacutem disso haacute diversas ligaccedilotildees entre a Declaraccedilatildeo e os princiacutepios da Bioeacutetica51

Assim como a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos o Coacutedigo de Nuremberg proclama criteacuterios princiacutepios miacutenimos e irredutiacuteveis para eticidade da pesquisa em seres humanos Ambas as declaraccedilotildees embora de grande importacircncia para a Bioeacutetica satildeo normalmente entendidas como desprovidas de instrumentos adequados de obrigatoriedade52 e de mecanismos sancionatoacuterios de modo que sua infraccedilatildeo na maioria dos casos tem gerado apenas sanccedilotildees morais

Natildeo-obstante o estabelecido no Coacutedigo de Nuremberg - e na Declaraccedilatildeo Universal - as violaccedilotildees continuaram a ocorrer inclusive nos paiacuteses signataacuterios De fato por exemplo nos Estados Unidos teve continuidade como se nada houvesse acontecido a famosa pesquisa sobre siacutefilis em Tuskegee no condado de Macon Alabama financiada com recursos federais onde especialmente negros e pobres acreditavam que estavam se submetendo a um tratamento especial gratuito quando na verdade nada recebiam embora jaacute houvesse medicamentos disponiacuteveis servindo como verdadeiras cobaias entre 1932 e 1973 para que os pesquisadores pudessem acompanhar o desenvolvimento da doenccedila1 Ainda exemplificativamente foi iniciado em 1946 o chamado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm um dos mais famosos e importantes estudos de odontologia jaacute realizados no qual mais de 436 deficientes mentais crocircnicos internos da cidade de Lund no sul da Sueacutecia que natildeo tinham sequer a menor consciecircncia do que ocorria foram submetidos ateacute 1951 a uma dieta especial rica em accediluacutecar para provar que esta substacircncia provocava caacuteries sem que lhes fosse dado qualquer tratamento54

Por exemplo ao afirmar no seu art 1deg que todas pessoas satildeo dotadas de razatildeo e consciecircncia o documento da ONU reforccedila a ideacuteia de autonomia

52 Em relaccedilatildeo agrave Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Faacutebio Konder Comparato afirma que embora seja tecnicamente apenas uma recomendaccedilatildeo da ONU a seus membros os direitos ali definidos correspondem integralmente ao que o costume e os princiacutepios juriacutedicos internacionais reconhecem hoje como normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens) como a proacutepria Corte Internacional de Justiccedila tem entendido COMPARATO Faacutebio Konder A afirmaccedilatildeo histoacuterica dos Direitos Humanos 4 ed rev e atual Satildeo Paulo Saraiva 2005 p 223-224

53 Vide vg a respeito REVERBY S M More than Fact and Fiction Cultural Memory and the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 31 p 22-28 2001 BRANDT A M Racism and Research The Case of the Tuskegee Syphilis Study Hastings Center Report n 8 p 21-29 1978 BEECHER H K Ethics and Clinicai Research New England Journal of Medicine n 274 p 1354-1360 1966

54 Cf SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas clinicas sobre seus direitos 2005 p 55-61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

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1202 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

Os avanccedilos tecnoloacutegicos cada vez mais raacutepidos reverberaram nas questotildees eacuteticas forccedilando novas e perioacutedicas revisotildees Necessaacuterio se fez portanto a rediscussatildeo do tema e o aprimoramento do sistema normativo Assim sobreveio a Declaraccedilatildeo de Helsinque elaborada pela Associaccedilatildeo Meacutedica Mundial em 1964 texto que foi revisto e ampliado em 1975 (Toacutequio)55 1983 (Veneza) 1989 (Hong Kong) 1996 (Somerset) e 2000 (Edimburgo) com o que foram incorporadas vaacuterias inovaccedilotildees Por exemplo a disposiccedilatildeo no sentido de que No final do estudo todos os pacientes participantes devem ter assegurado o acesso aos melhores meacutetodos comprovados profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos identificados pelo estudo E no atinente ao uso de placebo que Os benefiacutecios riscos dificuldades e efetividade de um novo meacutetodo devem ser testados comparando-os com os melhores meacutetodos profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos atuais Isto natildeo exclui o uso de placebo ou nenhum tratamento em estudo onde existam meacutetodos provados de profiacutelaxia diagnoacutestico e tratamento 56 Foi tambeacutem reforccedilada a recomendaccedilatildeo do Coacutedigo de Nuremberg sobre a necessidade de submissatildeo do protocolo de pesquisa agrave anaacutelise por um Comitecirc de Eacutetica independente do pesquisador

Outros textos e documentos que tratam da pesquisa merecem referecircncia como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos de 196657 o intitulado Diretrizes Internacionais para a pesquisa biomeacutedica em seres humanos elaborado conjuntamente pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e pelo Council for International Organizations of Medicai Sciences (1993) a Declaraccedilatildeo de Manila (1981) a Declaraccedilatildeo de Princiacutepios Eacuteticos dos Meacutedicos do Mercosul (1996) a Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten (2000) e a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da Unesco (2005)

Em que pese o entendimento de que haacute carecircncia de instrumentos imperativos que garantam a exigibilidade dos referidos documentos sem duacutevida eles

A respeito Leo Pessini e Christian de Paul Barehifontaine ensinam que Tal modificaccedilatildeo fieou conhecida como Helsinque II Entre outros pontos importantes foram incluiacutedos nesta revisatildeo os seguintes aspectos I) Exigecircncia de que o protocolo experimental seja aprovado por uma comissatildeo independente para efeito de apreciaccedilatildeo comentaacuterios e orientaccedilatildeo (item I 2) 2) Que os seres humanos natildeo sejam utilizados em pesquisas a menos que o consentimento consciente do paciente dado livremente tenha sido obtido depois do mesmo ter sido adequadamente informado sobre os objetivos meacutetodos benefiacutecios esperados riscos potenciais e inconvenientes da experimentaccedilatildeo e que ele tenha liberdade de se abster e de cancelar sua participaccedilatildeo a qualquer momento (art I 9) 3) Que o protocolo contenha embasamento eacutetico da pesquisa e a referecircncia de que foram obedecidos os princiacutepios da Declaraccedilatildeo de Helsinque (item I 12) 4) Que os interesses da ciecircncia e da sociedade jamais tenham precedecircncia sobre o bem-estar do indiviacuteduo (item III 4) PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Problemas aluais de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1994 p 131

56 GRECO Dirceu B Poder e injusticcedila na pesquisa envolvendo seres humanos In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 264

57 De acordo com o seu art 7o Ningueacutem poderaacute ser submetido a tortura nem a penas ou tratamentos crueacuteis desumanos ou degradantes Seraacute proibido sobretudo submeter uma pessoa sem seu livre consentimento a experiecircncias meacutedicas ou cientiacuteficas

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1203

contribuiacuteram e contribuem significativamente na proteccedilatildeo ao ser humano objeto de pesquisa pois influenciaram a elaboraccedilatildeo de diretrizes vinculantes no plano individual de cada Estado a exemplo do Brasil como a seguir veremos Por outro lado importante anotar que uma harmonia consensual e global no atinente agrave pesquisa parece impossiacutevel tendo em conta que a cultura os objetivos e as condiccedilotildees cientiacuteficas dos diversos paiacuteses satildeo naturalmente diversificados58 Aliaacutes haacute quem chegue a afirmar que o pluralismo eacutetico em vigor nos dias de hoje natildeo nos permite mais falar em moral universal59

No Brasil a normatizaccedilatildeo se daacute principalmente atraveacutes de resoluccedilotildees do Conselho Federal de Medicina60 e do Conselho Nacional de Sauacutede Aliaacutes a primeira resoluccedilatildeo deste uacuteltimo oacutergatildeo - Resoluccedilatildeo n 01 de 13 de junho de 1988 - tratou justamente de normas de pesquisa em sauacutede tendo dedicado o seu Capiacutetulo II arts 4o a 16 aos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos Esse diploma legal foi posteriormente revogado pela Resoluccedilatildeo n 196 de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Sauacutede que eacute atualmente a base regulamentar da pesquisa no Brasil tratando das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos Esta Resoluccedilatildeo eacute na verdade uma revisatildeo da anterior tendo sido precedida de diaacutelogo entre governo e sociedade civil61

A Resoluccedilatildeo atual afirma jaacute em seu preacircmbulo a sua fundamentaccedilatildeo nos principais documentos internacionais que emanaram declaraccedilotildees e diretrizes sobre

58 Nesse contexto por tanto deve ser considerada a questatildeo do multicuturalismo Como bem ensinam Joseacute A Mainetti Joseacute L Mainettil Existen dificultades en la aplicacioacuten de los principos elaborados por los paiacuteses centrales y es una evidencia por ejemplo que resulta inapropiada la visioacuten estrccha de la autonomia y la aplicacioacuten riacutegida dei requisito dei consentimento informado al modo norteamericano en determinadas circunstancias y comunidades Es preciso entoces reconocer Ias diferenccedilas culturales y en base a eacutestas aplicar los princiacutepios sin renunciar a cllos en formas maacutes adecuadas al ethos particular MAINETTI Joseacute A MAINETTI Joseacute L Bioeacutetica y la experimentacioacuten humana In SOROKIN Patriacutecia (Coord) Bioeacutelica entre utopias y desarraigos Buenos Aires Ad-Hoc Villela 2002 p 190

59 Cf ENGELHARDT JUacuteNIOR Tristam apuei BAUZON Steacutephane La personne biojuridique Paris Press Universitaires de France 2006 p 63

60 Vide como exemplo a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro o qual no seu Capiacutetulo XII trata especificamente da pesquisa meacutedica

61 Cf FREITAS Corina Bontempo Duca de Eacutetica na pesquisa com seres humanos A experiecircncia brasileira In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutelica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 307

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1204 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

pesquisas que envolvem seres humanos62 e que visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito agrave comunidade cientiacutefica aos sujeitos da pesquisa e ao Estado

Aleacutem disso vinculou a experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da principiologia da Bioeacutetica seja no preacircmbulo onde afirma que incorpora sob a oacutetica do indiviacuteduo e das coletividades os quatro referenciais baacutesicos da Bioeacutetica autonomia natildeo-maleficecircncia beneficecircncia e justiccedila entre outros seja no seu item III 1 que versa sobre a eticidade na pesquisa63

Entre as suas disposiccedilotildees encontramos definiccedilotildees de diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica pesquisa64 pesquisa envolvendo seres humanos65

protocolo de pesquisa66 pesquisador responsaacutevel67 instituiccedilatildeo de pesquisa68 promotor69

patrocinador70 risco da pesquisa71 dano associado ou decorrente da pesquisa72 sujeito da

62 Cila a Resoluccedilatildeo os seguintes documentos o Coacutedigo de Nuremberg (1947) a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem (1948) a Declaraccedilatildeo de Helsinque (1964 e suas versotildees posteriores de 1975 1983 e 1989) o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Poliacuteticos (ONU 1966 aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1992) as Propostas de Diretrizes Eacuteticas Internacionais para Pesquisas Biomeacutedicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMSOMS 1982 e 1993) e as Diretrizes Internacionais para Revisatildeo Eacutetica de Estudos Epidemioloacutegicos (C10MS 1991) III1 - A eticidade da pesquisa implica em a) consentimento livre e esclarecido dos indiviacuteduos-alvo e a proteccedilatildeo a grupos vulneraacuteveis e aos legalmente incapazes (autonomia) Neste sentido a pesquisa envolvendo seres humanos deveraacute sempre trataacute-los em sua dignidade respeitaacute-los em sua autonomia e defendecirc-los em sua vulnerabilidade b) ponderaccedilatildeo entre riscos e benefiacutecios tanto atuais como potenciais individuais ou coletivos (beneficecircncia) comprometendo-se com o maacuteximo de benefiacutecios e o miacutenimo de danos e riscos c) garantia de que danos previsiacuteveis seratildeo evitados (natildeo maleficecircncia)- d) relevacircncia social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimizaccedilatildeo do ocircnus para os sujeitos vulneraacuteveis o que garante a igual consideraccedilatildeo dos interesses envolvidos natildeo perdendo o sentido de sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria (justiccedila e equumlidade) (negritos originais)

64 111 Pesquisa classe de atividades cujo objetivo eacute desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizaacutevel O conhecimento generalizaacutevel consiste em teorias relaccedilotildees ou princiacutepios ou no acuacutemulo de informaccedilotildees sobre as quais estatildeo baseados que possam ser corroborados por meacutetodos cientiacuteficos aceitos de observaccedilatildeo e infercncia

65 112 Pesquisa envolvendo seres humanos pesquisa que individual ou coletivamente envolva o ser humano de forma direta ou indireta em sua totalidade ou partes dele incluindo o manejo de informaccedilotildees ou materiais

66 II3 Protocolo de Pesquisa Documento contemplando a descriccedilatildeo da pesquisa em seus aspectos fundamentais informaccedilotildees relativas ao sujeito da pesquisa agrave qualificaccedilatildeo dos pesquisadores e a todas as instacircncias responsaacuteveis

67 II-4 Pesquisador responsaacutevel pessoa responsaacutevel pela coordenaccedilatildeo e realizaccedilatildeo da pesquisa e pela integridade e bem-estar dos sujeitos da pesquisa

68 II5 - Instituiccedilatildeo de pesquisa - organizaccedilatildeo puacuteblica ou privada legitimamente constituiacuteda e habilitada na qual satildeo realizadas investigaccedilotildees cientiacuteficas

69 116 - Promotor - indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo responsaacutevel pela promoccedilatildeo da pesquisa 70 II7 - Patrocinador - pessoa fiacutesica ou juriacutedica que apoia financeiramente a pesquisa 71 II8 Risco da pesquisa - possibilidade de danos agrave dimensatildeo fiacutesica psiacutequica moral intelectual social

cultural ou espiritual do ser humano em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente II9 Dano associado ou decorrente da pesquisa agravo imediato ou tardio ao indiviacuteduo ou agrave coletividade com nexo causai comprovado direto ou indireto decorrente do estudo cientiacutefico

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1205

pesquisa73 consentimento livre e esclarecido74 indenizaccedilatildeo75 ressarcimento6 Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (CEP)77 vulnerabilidade78 e incapacidade79

A Resoluccedilatildeo regulamentou os Comitecircs de Eacutetica e Pesquisa - CEPs80 em cujas funccedilotildees81 destaca-se a apreciaccedilatildeo do protocolo da pesquisa em todas as suas especificidades o que foi um grande passo no sentido da construccedilatildeo de padrotildees eacuteticos82

Haacute requisitos para a instituiccedilatildeo dos Comitecircs principalmente no atinente agrave sua composiccedilatildeo83

1110 Sujeito da pesquisa eacute o(a) participante pesquisado(a) individual ou coletivamente de caraacuteter voluntaacuterio vedada qualquer forma de remuneraccedilatildeo IIII Consentimento livre e esclarecido anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal livre de viacutecios (simulaccedilatildeo fraude ou erro) dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar formulada em um termo de consentimento autorizando sua participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa 1112 - Indenizaccedilatildeo - cobertura material em reparaccedilatildeo a dano imediato ou tardio causado pela pesquisa ao ser humano a ela submetida 1113 Ressarcimento - cobertura em compensaccedilatildeo exclusiva de despesas decorrentes da participaccedilatildeo do sujeito na pesquisa 1114 - Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa-CEP - colegiados interdisciplinares e independentes com munus puacuteblico de caraacuteter consultivo deliberativo e educativo criados para defender os interesses dos sujeitos da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrotildees eacuteticos 1115 Vulnerabilidade refere-se a estado de pessoas ou grupos que por quaisquer razotildees ou motivos tenham a sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido 1116 - Incapacidade - Refere-se ao possiacutevel sujeito da pesquisa que natildeo tenha capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido devendo ser assistido ou representado de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira vigente O CEP pode ser entendido como um oacutergatildeo controlador da pesquisa por um lado mas por outro eacute tambeacutem um oacutergatildeo que ajuda a harmonizar diversos interesses que como vimos podem ser os mais diversos e agraves vezes ateacute conflitantes Cf PALAacuteCIOS Marisa Eacutetica na pesquisa - 1 Eacutetica em pesquisa em seres humanos In PALAacuteCIOS Marisa MARTINS Andreacute PEGORARO Olinto A (Orgs) Eacutetica ciecircncia e sauacutede humana Petroacutepolis Vozes 2001 p 74 Satildeo atribuiccedilotildees conferidas pela Resoluccedilatildeo aos CEPs a) revisar todos os protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos b) emitir parecer consubstanciado por escrito c) manter a guarda confidencial de todos os dados obtidos na execuccedilatildeo de sua tarefa e arquivamento do protocolo completo que ficaraacute agrave disposiccedilatildeo das autoridades sanitaacuterias d) acompanhar o desenvolvimento dos projetos atraveacutes de relatoacuterios anuais dos pesquisadores e) desempenhar papel consultivo e educativo 0 receber dos sujeitos da pesquisa ou de qualquer outra parte denuacutencias de abusos ou notificaccedilatildeo sobre fatos adversos que possam alterar o curso normal do estudo decidindo pela continuidade modificaccedilatildeo ou suspensatildeo da pesquisa devendo se necessaacuterio adequar o termo de consentimento considerando-se anti-eacutetica a pesquisa descontinuada sem justificativa aceita pelo CEP que a aprovou g) requerer instauraccedilatildeo de sindicacircncia agrave direccedilatildeo da instituiccedilatildeo em caso de denuacutencias de irregularidades de natureza eacutetica nas pesquisas e em havendo comprovaccedilatildeo comunicar agrave Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa CONEPMS e no que couber a outras instacircncias e h) manter comunicaccedilatildeo regular e permanente com a CONEPMS A existecircncia de oacutergatildeos com a funccedilatildeo de aprovar e acompanhar pesquisas jaacute era preconizada por exemplo pelo Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988) cujo art 127 veda ao

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Foi mais aleacutem a Resoluccedilatildeo que de modo inovador reforccedilou o controle eacutetico e a defesa da dignidade da pessoa humana com a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa - CONEP84 que atua na direccedilatildeo e orientaccedilatildeo dos comitecircs8S A comissatildeo de acordo com a Resoluccedilatildeo eacute uma instacircncia colegiada de natureza consultiva deliberativa normativa independente vinculada ao Conselho Nacional de Sauacutede86 Essa vinculaccedilatildeo eacute bastante positiva posto que a alternativa de submetecirc-la a outros oacutergatildeos poderia dar ensejo a uma indesejada politizaccedilatildeo dos seus membros o que seria capaz de terminar por afetar a sua autonomia

meacutedico Realizar pesquisa meacutedica em ser humano sem submeter o protocolo a aprovaccedilatildeo e acompanhamento de comissatildeo isenta de qualquer dependecircncia em relaccedilatildeo ao pesquisador O colegiado com nuacutemero natildeo inferior a 7 (sete) membros deve ser multidisciplinar abrangendo profissionais idocircneos e de distinta formaccedilatildeo da aacuterea de sauacutede e das ciecircncias exatas sociais e humanas incluindo por exemplo juristas teoacutelogos socioacutelogos filoacutesofos bioeticistas aleacutem de membros da sociedade e obrigatoriamente pelo menos um membro representando os usuaacuterios Se a pesquisa envolver grupos vulneraacuteveis comunidades e coletividades um dos seus representantes deveraacute ser convidado para participar como membro ad hoc do CEP da anaacutelise do projeto especiacutefico Assim o CEP ainda segundo a Resoluccedilatildeo teraacute sempre um caraacuteter multi e transdisciplinar sendo vedado que mais que metade de seus membros pertenccedilam a uma mesma categoria profissional devendo ainda participarem pessoas dos dois sexos Satildeo permitidos consultores ad hoc pessoas que pertencem ou natildeo aacute instituiccedilatildeo com o objetivo de fornecer subsiacutedios teacutecnicos Merece ainda atenccedilatildeo especial a autonomia do comitecirc cuja manifestaccedilatildeo deve ser totalmente autocircnoma e imaculada de coaccedilotildees ou pressotildees dos interessados A autonomia e a independecircncia satildeo condiccedilotildees sine qua non para a desejada eficaacutecia dos comitecircs que felizmente estatildeo se proliferando em nosso paiacutes Conforme informaccedilotildees do site da CONEP satildeo 446 CEPs aprovados no Brasil ateacute janeiro de 2006 Disponiacutevel em lthttpoonselhosaudegovbrcomissaoconep2006ceps20APROVADOSxlsgt Acessado em 04 jun 2006 A Comissatildeo tem 13 membros titulares e o mesmo nuacutemero de suplentes em uma composiccedilatildeo que tambeacutem deveraacute ser multi e transdisciplinar com pessoas de ambos os sexos Dentre os seus membros 05 (cinco) devem ser personalidades destacadas no campo da eacutetica na pesquisa e na sauacutede e 08 (oito) devem ser personalidades com destacada atuaccedilatildeo nos campos teoloacutegico juriacutedico e outros assegurando-se que pelo menos um seja da aacuterea de gestatildeo da sauacutede Embora natildeo desconheccedilamos a importacircncia das religiotildees na formaccedilatildeo do pensamento eacutetico humano e sem querer desmerecer as pessoas que nelas militam no mais das vezes com accedilotildees de destacada importacircncia pensamos que eacute inadequada em um Estado laico como o nosso a destinaccedilacirco de vaga ou de vagas especificamente a pessoas do campo teleoloacutegico Essa observaccedilatildeo imperioso demarcar natildeo eacute no sentido de entender que a contribuiccedilatildeo dessas pessoas eacute desnecessaacuteria ou inconveniente Pelo contraacuterio Poreacutem a desejada participaccedilatildeo jaacute poderia ser levada a efeito incluindo-as no grupo de personalidades com atuaccedilatildeo de destaque na esfera da eacutetica na pesquisa e na sauacutede sem necessidade de vinculaccedilatildeo necessaacuteria ao pensamento religioso Isso ateacute mesmo para preservar o pluralismo e a igualdade jaacute que obviamente natildeo seraacute possiacutevel oferecer a cada religiatildeo uma vaga Os membros da Comissatildeo satildeo recrutados a partir de indicaccedilotildees contidas em listas elaboradas pelas instituiccedilotildees que possuem CEP registrado na CONEP sendo que 07 (sete) satildeo escolhidos pelo Conselho Nacional de Sauacutede e 06 (seis) satildeo definidos por sorteio Tambeacutem pode contar com consultores e membros ad hoc sendo assegurada a representaccedilatildeo dos usuaacuterios O mandato eacute de quatro anos com renovaccedilatildeo alternada a cada dois anos de sete ou seis de seus membros A CONEP tem tambeacutem um papel coordenador da rede de Comitecircs institucionais aleacutem de se constituir em oacutergatildeo consultor na aacuterea eacutetica em pesquisa Num primeiro momento tem ainda a atribuiccedilatildeo de apreciar os projetos de pesquisas de aacutereas temaacuteticas especiais enviadas pelos CFPs ou seja projetos que contemplam aacutereas com maiores dilemas eacuteticos e grande repercussatildeo social ateacute que se acumulem experiecircncias para elaboraccedilatildeo de normas especiacuteficas complementares agraves existentes Cf FREITAS Carolina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA

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Outros aspectos da Resoluccedilatildeo que merecem especial destaque para o nosso estudo satildeo os relativos ao consentimento livre e esclarecido agrave vulnerabilidade e agrave incapacidade

Como jaacute dito um dos principais pontos da Declaraccedilatildeo de Nuremberg foi o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias A Resoluccedilatildeo tratou do tema exigindo a anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar87 A anuecircncia deve ser expressa atraveacutes de

Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 202

S6 Segundo a Resoluccedilatildeo compete agrave CONEP examinar os aspectos eacuteticos da pesquisa envolvendo seres humanos assim como a adequaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo das normas atinentes consultando a sociedade sempre que julgar necessaacuterio cabendo-lhe entre outras as seguintes atribuiccedilotildees a) estimular a criaccedilatildeo de CEPs institucionais e de outras instacircncias b) registrar os CEPs institucionais e de outras instacircncias c) aprovar no prazo de 60 dias e acompanhar os protocolos de pesquisa em aacutereas temaacuteticas especiais tais como geneacutetica humana reproduccedilatildeo humana faacutermacos medicamentos vacinas e testes diagnoacutesticos novos (fases I II e III) ou natildeo registrados no pais (ainda que fase IV) ou quando a pesquisa for referente a seu uso com modalidades indicaccedilotildees doses ou vias de administraccedilatildeo diferentes daquelas estabelecidas incluindo seu emprego em combinaccedilotildees equipamentos insumos e dispositivos para a sauacutede novos ou natildeo registrados no paiacutes novos procedimentos ainda natildeo consagrados na literatura populaccedilotildees indiacutegenas projetos que envolvam aspectos de biosseguranccedila pesquisas coordenadas do exterior ou com participaccedilatildeo estrangeira c pesquisas que envolvam remessa de material bioloacutegico para o exterior e projetos que a criteacuterio do CEP devidamente justificado sejam julgados merecedores de anaacutelise pela CONEP d) prover normas especiacuteficas no campo da eacutetica em pesquisa inclusive nas aacutereas temaacuteticas especiais bem como recomendaccedilotildees para aplicaccedilatildeo das mesmas e) funcionar como instacircncia final de recursos a partir de informaccedilotildees fornecidas sistematicamente em caraacuteter ex-ofiacutecio ou a partir de denuacutencias ou de solicitaccedilatildeo de partes interessadas devendo manifestar-se em um prazo natildeo superior a 60 (sessenta) dias 0 rever responsabilidades proibir ou interromper pesquisas definitiva ou temporariamente podendo requisitar protocolos para revisatildeo eacutetica inclusive os jaacute aprovados pelo CEP g) constituir um sistema de informaccedilatildeo e acompanhamento dos aspectos eacuteticos das pesquisas envolvendo seres humanos em todo o territoacuterio nacional mantendo atualizados os bancos de dados h) informar e assessorar o MS o CNS e outras instacircncias do SUS bem como do governo e da sociedade sobre questotildees eacuteticas relativas agrave pesquisa em seres humanos i) divulgar esta e outras normas relativas agrave eacutetica em pesquisa envolvendo seres humanos j) juntamente com outros setores do Ministeacuterio da Sauacutede estabelecer normas e criteacuterios para o credenciamento de Centros de Pesquisa e I) estabelecer suas proacuteprias normas de funcionamento

87 No que concerne agrave pesquisa meacutedica a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro estipula no seu art 123 que eacute vedado ao meacutedico Realizar pesquisa em ser humano sem que este tenha dado consentimento por escrito apoacutes devidamente esclarecido sobre a natureza e consequumlecircncia da pesquisa e que Caso o paciente natildeo tenha condiccedilotildees de dar seu livre consentimento a pesquisa somente poderaacute se realizada em seu proacuteprio beneficio apoacutes expressa autorizaccedilatildeo de seu responsaacutevel legal Jaacute a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO no seu art 6 aliacutenea b estabelece que A pesquisa cientiacutefica soacute deve ser realizada com o preacutevio livre expresso e esclarecido consentimento do indiviacuteduo envolvido A informaccedilatildeo deve ser adequada fornecida de uma forma compreensiacutevel e incluir os procedimentos para a retirada do consentimento O consentimento pode ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer hora e por qualquer razatildeo sem acarretar qualquer desvantagem ou preconceito Exceccedilotildees a este princiacutepio somente devem ocorrer quando em conformidade com os padrotildees eacuteticos e legais adotados pelos Estados consistentes com as provisotildees da presente Declaraccedilatildeo particularmente com o art 27 e com os direitos humanos

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em um termo de consentimento onde eacute autorizada a participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa Aleacutem disso natildeo pode estar viciada por simulaccedilatildeo fraude ou erro nem tampouco pode ser obtida por forccedila de uma situaccedilatildeo de dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo

Trata-se de disposiccedilatildeo decorrente da adoccedilatildeo do princiacutepio da autonomia jaacute abordado que se vincula agrave capacidade de autodeterminaccedilatildeo e auto-escolha e pressupotildee dentre outras premissas a capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos possiacuteveis18

Quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de estudo possuem a capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto ao consentimento livre e esclarecido por quaisquer motivos verifica-se uma situaccedilatildeo de vulnerabilidade que natildeo pode ser desconsiderada pelo pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais A preocupaccedilatildeo com a vulnerabilidade dos sujeitos encontra supedacircneo no Coacutedigo de Nuremberg na Declaraccedilatildeo de Helsinque nas Diretrizes Internacionais para Pesquisa Biomeacutedica envolvendo Seres Humanos89 e tambeacutem como jaacute dito na Resoluccedilatildeo 19696 A dificuldade central relacionada a indiviacuteduos e comunidades vulneraacuteveis eacute com a sua capacidade de compreensatildeo (autonomia plena) sobre o experimento e possibilidade de livremente consentir com a pesquisa e quando quiser dela desistir o que justifica todas as preocupaccedilotildees nesse sentido90

Cabe trazer a lume os ensinamentos do professor chileno Fernando Lolas O respeito pela autonomia das pessoas como agentes morais capazes de decisotildees informadas eacute central no diaacutelogo bioeacutetico Somente a permissatildeo outorgada por uma pessoa pode legitimar uma accedilatildeo que a envolva O valor das pessoas eacute incondicional o que obriga a consideraacute-las fins natildeo meios com a liberdade de viver e a de decidir livres de interferecircncias LOLAS Fernando Bioeacutetica o que eacute como se faz Traduccedilatildeo Milton Camargo Mota Satildeo Paulo Loyola 2001 p 63 A Diretriz Internacional para Pesquisa Biomeacutedica afirma Pesquisa envolvendo indiviacuteduos de comunidades sub-desenvolvidas Antes de iniciar a pesquisa em indiviacuteduos de comunidades subdesenvolvidas seja em paiacuteses desenvolvidos ou em desenvolvimento o pesquisador deve estar seguro que As pessoas da comunidade subdesenvolvida natildeo seratildeo ordinariamente envolvidas na pesquisa que possa ser realizada de forma adequada em comunidades desenvolvidas A pesquisa eacute uma resposta agraves necessidades de sauacutede e agraves prioridades da comunidade na qual seraacute realizada todos os esforccedilos seratildeo tomados no sentido de assegurar o imperativo eacutetico de que o consentimento individual dos sujeitos seraacute informado e Os projetos para a pesquisa foram revisados e aprovados por um comitecirc de eacutetica que tenha entre os seus membros ou consultores pessoas que tenham familiaridade com os costumes e tradiccedilotildees da comunidade Em comentaacuterio agraves diretrizes acima Leo Pessini e Christian Paul de Barchifontaine entendem que Quando a experimentaccedilatildeo visa ao estudo de determinadas condiccedilotildees moacuterbidas tais como doenccedilas endecircmicas em comunidades de baixo niacutevel socioeconocircmico eou cultural incapazes de terem uma consciecircncia clara e apropriada das implicaccedilotildees de sua participaccedilatildeo na experiecircncia eacute de bom alvitre que seja obtida a interveniecircncia de um liacuteder em que a coletividade confia Esse intermediaacuterio dever deixar claro que a participaccedilatildeo eacute voluntaacuteria e que qualquer participante tem a liberdade de natildeo aceitar ou abandonar a experiecircncia a qualquer momento op cit p 133

Conforme Marisa Palaacutecios Quando a autonomia dos sujeitos natildeo eacute plena ou seja quando a capacidade de entender as situaccedilotildees que se apresentam ao sujeito e de autodeterminar-se segundo este entendimento estaacute de alguma forma limitada eacute preciso tomar cuidado especial Eacute o caso dos grupos vulneraacuteveis os iacutendios que tecircm a capacidade de entendimento das situaccedilotildees diminuiacuteda uma vez que compotildeem sociedades

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A vulnerabilidade pode assumir as mais variadas vertentes bem como atingir uma determinada pessoa ou um grupo de seres humanos com peculiaridades comuns tais como crianccedilas idosos iacutendios pacientes terminais desempregados deficientes91 presidiaacuterios92 ou outras situaccedilotildees de dependecircncia93

Pode ocorrer que as pessoas que seratildeo estudadas na pesquisa natildeo tenham capacidade civil para dar o seu consentimento Nesse caso se encontram em situaccedilatildeo de incapacidade e a pesquisa soacute pode ser levada adiante com a intervenccedilatildeo de seus representantes legais que de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira deveratildeo assistir ou representar os incapazes Tambeacutem aqui deve o pesquisador cercar-se de cautelas eacuteticas redobradas

Finalmente deve-se louvar a Resoluccedilatildeo por ter explicitado no seu item III3 um rol de 23 (vinte e trecircs) exigecircncias eacuteticas para a pesquisa de qualquer aacuterea do conhecimento que envolva seres humanos94

culturalmente diversas[] Estas para citar algumas populaccedilotildees caracteriacutesticas Satildeo populaccedilotildees que precisam ser especialmente protegidas dada a proacutepria condiccedilatildeo de vulnerabilidade Maria Carolina S Guimaratildees e Sylvia Caiuby Novaes com alento em Hannah Arendt e Cardia definem o ser vulneraacutevel como Algueacutem que possui cidadania fraacutegil que ignora a relevacircncia do direito agrave integridade fiacutesica como condiccedilatildeo de acesso aos direitos sociais econocircmicos poliacuteticos e trabalhistas Dito assim o que parece a primeira condiccedilatildeo para que um ser vulneraacutevel perca tal situaccedilatildeo eacute o investimento do Estado naquilo que constroacutei e constitui a cidadania naqueles atributos que transformam o indiviacuteduo em cidadatildeo que transformam o animal laborans em homem poliacutetico Essa transformaccedilatildeo eacute no dizer de Hannah Arendt um pressuposto da democracia pois permite ao animal laborans ir do reino da necessidade para o reino da liberdade GUIMARAtildeES Maria Carolina S NOVAES Sylvia Caiuby Autonomia reduzida e vulnerabilidade liberdade de decisatildeo diferenccedila e desigualdade Revista Bioeacutetica Brasiacutelia v 7 n 1 p 23 1999

91 Sobre o tema vide COHEN Claacuteudio Bioeacutetica Pesquisa e Deficiecircncia In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 55-62 92 Nem todo ser humano eacute no entanto capaz de autodeterminaccedilatildeo A capacidade de autodeterminaccedilatildeo amadurece ao longo da vida mas pode ser perdida total ou parcialmente por doenccedila velhice ou situaccedilatildeo de restriccedilatildeo severa como a prisatildeo Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 93 O Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de janeiro de 1988) veda ao meacutedico no seu art 128 Realizar pesquisa meacutedica em voluntaacuterios sadios ou-natildeo que tenham direta ou indiretamente dependecircncia ou subordinaccedilatildeo relativamente ao pesquisador 94 I1I3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias a) ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder a incertezas b) estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou em outros fatos cientiacuteficos c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio d) prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis e) obedecer a metodologia adequada Se houver necessidade de distribuiccedilatildeo aleatoacuteria dos sujeitos da pesquisa em grupos experimentais e de controle assegurar que apriori natildeo seja possiacutevel estabelecer as vantagens de um procedimento sobre outro atraveacutes de revisatildeo de literatura meacutetodos observacionais ou meacutetodos que natildeo envolvam seres humanos 0 ter plenamente justificada quando for o caso a utilizaccedilatildeo de placebo em termos de natildeo maleficecircncia e de necessidade metodoloacutegica g) contar com o consentimento livre e esclarecido do sujeito da pesquisa eou seu representante legal h) contar com os recursos humanos e materiais necessaacuterios que garantam o bem-

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5 Teleologia e legitimidade da pesquisa em seres humanos

Toda experimentaccedilatildeo em seres humanos possui um determinado objetivo o qual pode ou-natildeo estar vinculado ao bem estar proacuteprio da pessoa ou grupo observado

Essa situaccedilatildeo natildeo foi esquecida pela Declaraccedilatildeo de Helsinque cujo preacircmbulo afirma Wo campo cia pesquisa biomeacutedica uma distinccedilatildeo fundamental deve ser feita entre a pesquisa meacutedica na qual o objetivo eacute essencialmente o diagnoacutestico ou a terapecircutica para um paciente e a pesquisa meacutedica cujo objeto essencial eacute puramente cientiacutefico e sem um valor direto diagnoacutestico ou terapecircutico para a pessoa sujeita agrave

estar do sujeito da pesquisa devendo ainda haver adequaccedilatildeo entre a competecircncia do pesquisador e o projeto proposto i) prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade a proteccedilatildeo da imagem e a natildeo estigmatizaccedilatildeo garantindo a natildeo utilizaccedilatildeo das informaccedilotildees em prejuiacutezo das pessoas eou das comunidades inclusive em termos de auto-estima de prestiacutegio eou econocircmico - financeiro j) ser desenvolvida preferencialmente cm indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida 1) respeitar sempre os valores culturais sociais morais religiosos e eacuteticos bem como os haacutebitos e costumes quando as pesquisas envolverem comunidades m) garantir que as pesquisas em comunidades sempre que possiacutevel traduzir-se-atildeo em benefiacutecios cujos efeitos continuem a se fazer sentir apoacutes sua conclusatildeo O projeto deve analisar as necessidades de cada um dos membros da comunidade e analisar as diferenccedilas presentes entre eles explicitando como seraacute assegurado o respeito agraves mesmas n) garantir o retomo dos benefiacutecios obtidos atraveacutes das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas Quando no interesse da comunidade houver benefiacutecio real em incentivar ou estimular mudanccedilas de costumes ou comportamentos o protocolo de pesquisa deve incluir sempre que possiacutevel disposiccedilotildees para comunicar tal benefiacutecio agraves pessoas eou comunidades o) comunicar agraves autoridades sanitaacuterias os resultados da pesquisa sempre que os mesmos puderem contribuir para a melhoria das condiccedilotildees de sauacutede da coletividade preservando poreacutem a imagem e assegurando que os sujeitos da pesquisa natildeo sejam estigmatizados ou percam a auto-estima p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefiacutecios resultantes do projeto seja em termos de retorno social acesso aos procedimentos produtos ou agentes da pesquisa q)assegurar aos sujeitos da pesquisa as condiccedilotildees de acompanhamento tratamento ou de orientaccedilatildeo conforme o caso nas pesquisas de rastreamento demonstrar a preponderacircncia de benefiacutecios sobre riscos e custos r) assegurar a inexistecircncia de conflito de interesses entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa ou patrocinador do projeto s) comprovar nas pesquisas conduzidas do exterior ou com cooperaccedilatildeo estrangeira os compromissos e as vantagens para os sujeitos das pesquisas e para o Brasil decorrentes de sua realizaccedilatildeo Nestes casos deve ser identificado o pesquisador e a instituiccedilatildeo nacionais co-responsaacuteveis pela pesquisa O protocolo deveraacute observar as exigecircncias da Declaraccedilatildeo de Helsinque e incluir documento de aprovaccedilatildeo no paiacutes de origem entre os apresentados para avaliaccedilatildeo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa da instituiccedilatildeo brasileira que exigiraacute o cumprimento de seus proacuteprios referenciais eacuteticos Os estudos patrocinados do exterior tambeacutem devem responder agraves necessidades de treinamento de pessoal no Brasil para que o paiacutes possa desenvolver projetos similares de forma independente t) utilizar o material bioloacutegico e os dados obtidos na pesquisa exclusivamente para a finalidade prevista no seu protocolo u) levar em conta nas pesquisas realizadas em mulheres em idade feacutertil ou em mulheres graacutevidas a avaliaccedilatildeo de riscos e benefiacutecios e as eventuais interferecircncias sobre a fertilidade a gravidez o embriatildeo ou o feto o trabalho de parto o puerpeacuterio a lactaccedilatildeo e o receacutem-nascido v) considerar que as pesquisas em mulheres graacutevidas devem ser precedidas de pesquisas em mulheres fora do periacuteodo gestacional exceto quando a gravidez for o objetivo fundamental da pesquisa x) propiciar nos estudos multicecircntricos a participaccedilatildeo dos pesquisadores que desenvolveratildeo a pesquisa na elaboraccedilatildeo do delineamento geral do projeto e z) descontinuar o estudo somente apoacutes anaacutelise das razotildees da descontinuidade pelo CEP que a aprovou

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pesquisa Em outras palavras haacute experimentos em benefiacutecio do paciente e experimentos em benefiacutecio da ciecircncia Ainda no preacircmbulo da Declaraccedilatildeo de Helsinque encontramos que A finalidade da pesquisa meacutedica envolvendo seres humanos deve ser o aperfeiccediloamento do diagnoacutestico procedimentos terapecircuticos e profilaacuteticos e a compreensatildeo da etiologia e da patologia da doenccedila Conjugando essa afirmaccedilatildeo com a anterior podemos extrair que uma determinada pessoa ou populaccedilatildeo pode ser objeto de pesquisa para desvendar doenccedilas que a afligem ou para desnudar as razotildees pelas quais eacute menos suscetiacutevel ou-natildeo eacute atingida por determinada moleacutestia que afeta aos demais seres humanos

A partir dessas observaccedilotildees podemos considerar para os fins do nosso estudo que as experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas teleologicamente em dois grupos a) aquelas cujos objetivos possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas as quais chamaremos de pesquisas com justificativa intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de terceiros as quais denominaremos pesquisas com justificativa extrinseca Temos como exemplo na primeira situaccedilatildeo os experimentos cientiacuteficos para desvendar o porquecirc de uma determinada coletividade ser atingida por taxas elevadas de uma certa doenccedila e na segunda uma pesquisa para revelar as razotildees pelas quais certas pessoas natildeo desenvolvem uma moleacutestia com o objetivo de descobrir uma vacina ou um medicamento para os demais

Entretanto em todo experimento seraacute necessaacuterio averiguar se a justificativa - seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima Isso porque o fato de uma pesquisa ter por objetivo um tratamento mais eficiente ou a cura de certas doenccedilas natildeo legitima por si soacute a utilizaccedilatildeo de pessoas como sujeito de pesquisa mesmo que elas sofram da moleacutestia e possam vir a ser beneficiadas Natildeo se deve perder de vista aliaacutes que se o conhecimento puder ser obtido por outro meio a utilizaccedilatildeo de seres humanos justamente por ser desnecessaacuteria seraacute ilegiacutetima95 Ademais soacute pelo fato de ser intriacutenseca a justificativa natildeo seraacute necessariamente legiacutetima Por outro lado a circunstacircncia isoladamente considerada do eventual resultado da experimentaccedilatildeo ser absolutamente indiferente ao sujeito de pesquisa natildeo torna a sua participaccedilatildeo ilegiacutetima Em outras palavras a justificativa soacute por ser extrinseca natildeo seraacute necessariamente ilegiacutetima

Vale relembrar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 - A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio

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A razatildeo disso reside na afirmaccedilatildeo de que como se sabe desde Kant o Homem deve ser tratado como um fim em si mesmo e natildeo como instrumento De fato eacute em Kant que o Homem ganha status de valor absoluto manifesto no imperativo praacutetico expresso na maacutexima segundo a qual Ages de tal maneira que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio 96

Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

Quando se trata de experimentaccedilatildeo com justificativa intriacutenseca a razatildeo legitimadora pode estar no objetivo de beneficiar os proacuteprios sujeitos da pesquisa algueacutem se submete a uma experimentaccedilatildeo na tentativa de auferir uma vantagem em seu bem-estar fiacutesico ou mental

Jaacute no caso da justificativa extriacutenseca poder-se-ia objetar a realizaccedilatildeo da experimentaccedilatildeo com suposto fundamento na Resoluccedilatildeo 19696 cujo item III 1 letra d vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila Ora se em uma determinada situaccedilatildeo algueacutem participa do experimento sem que haja qualquer possibilidade de benefiacutecio fiacutesico ou mental para si a partir do resultado da pesquisa e considerando que a mesma Resoluccedilatildeo veda qualquer forma de remuneraccedilatildeo do sujeito da pesquisa (item 1110) qual a vantagem significativa que poderaacute essa pessoa auferir para justificar a sua participaccedilatildeo

Ao nosso ver a interpretaccedilatildeo desse ponto da Resoluccedilatildeo natildeo deve ser literal nem assistemaacutetica97 devendo ser considerada a incidecircncia de um outro princiacutepio ainda

Op cit p 69 Em comento a este imperativo Francesca Puigpclat Marti apregoa que La concepcioacuten liberal asocia a esta expresioacuten una idea comuacuten en Ia reflexioacuten eacutetica de raigambre kantiana el hombre es un fin en si mismo un sujeto y no un objeto Seguacuten Kant en el sistema de Ia natureza el hombre (homo phaenomenon animal rationale) es un ser de escasa importancia y tiene con los demaacutes animales en tanto que productos de Ia tierra un precio comuacuten () Ahora bien el hombre considerado como persona es dccir como sujeto de una razoacuten praacutetico-moral estaacute situado por encima de todo precio porque como tal (homo noumenon) no puede valorarse soacutelo como meacutedio para fines ajenos incluso para sus proprios fines sino como fin en siacute mismo es decir posee una dignidad(un valor interno absoluto) gracias a la cual infunde respeto haciacutea eacutel a todos los demaacutes seres racionales dei mundo puede medirse con cualquier otro de esta clase y valorarse en pie de igualdad En la medida en que seguacuten Kant el hombre existe como fin en siacute mismo y no soacutelo como meacutedio para usos cualesquiera de una u otra voluntad se puede formular el siguiente principio praacutetico supremo obra de tal modo que uses la humanidad tanto en tu persona como en la persona de cualquier otro siempre como un fin al mismo tiempo y nunca solamente como un meacutedio MARTIacute Francesca Puigpelat Clonacioacuten dignidad humana y constitucioacuten Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo ano II n 42 janmar p37-64 2003

Natildeo se interpreta o direito em tiras aos pedaccedilos () Um texto de direito isolado destacado desprendido do sistema juriacutedico natildeo expressa significado normativo algum Cf GRAU Eros Roberto Ensaio e

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1213

que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que eacute o da solidariedade Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita entendemos que a sua aplicaccedilatildeo eacute cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele dispositivo (item 1111 letra d da Resoluccedilatildeo 19696) afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria Aleacutem disso outros documentos de importacircncia para a Bioeacutetica fazem referecircncia agrave solidariedade98 De fato natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao respeito agrave dignidade da pessoa humana99

Logo no nosso pensar mesmo que natildeo haja nenhum benefiacutecio ou vantagem direta ao sujeito de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma justificativa eacutetica a qual pode ter como nuacutecleo a intenccedilatildeo solidaacuteria dessa pessoa e do pesquisador de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e consequumlentemente para todos os demais seres humanos

A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica100

Estas exigecircncias no acircmbito normativo brasileiro estatildeo listadas na Resoluccedilatildeo 19696 especialmente no item III3

Algumas delas satildeo puramente objetivas e uma vez desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca E o caso por exemplo da necessidade de consentimento preacutevio e informado

discurso sobre a interpretaccedilatildeoaplicaccedilatildeo do Direito Satildeo Paulo Malheiros Editores 2002 p 34 98

O art 1deg da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos proclama que todas pessoas devem agir em relaccedilatildeo umas agraves outras com espiacuterito de fraternidade Alem disso a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO em um dos seus considerandos observa que os seres humanos tecircm um papel importante na proteccedilatildeo um do outro tratando expressamente da solidariedade e cooperaccedilatildeo no seu art 13 segundo o qual A solidariedade entre os seres humanos e cooperaccedilatildeo internacional para este fim devem ser estimuladas 99 Ela [a solidariedade] eacute o fecho de aboacutebada do sistema de princiacutepios eacuteticos pois complementa e aperfeiccediloa a liberdade a igualdade e a seguranccedila () E um erro considerar que no mundo da natureza sobretudo no mundo animal natildeo exista solidariedade e que ela seja uma criaccedilatildeo poliacutetica Muito pelo contraacuterio pode-se dizer que a biosfera forma naturalmente um sistema solidaacuterio e que o rompimento desse sistema eacute sempre obra do homem O proacuteprio Darwin bem advertiu que a expressatildeo struggle for Existence fora por ele usada em sentido amplo e matafoacuterico incluindo a dependecircncia de um ser em relaccedilatildeo a outro bem como incluindo (o que eacute mais importante) natildeo apenas a vida do indiviacuteduo mas o ecircxito em deixar descendentes Os zooacutelogos jaacute observaram que o processo de seleccedilatildeo natural deu mais vantagens bioloacutegicas aos grupos que cuidavam de seus membros natildeo reprodutivos do que agravequeles que abandonavam ou matavam os anciatildeos pois a capacidade de reproduccedilatildeo global dos grupos altruiacutestas eacute assim singularmente reforccedilada Cf COMPARATO Faacutebio Konder Eacutetica direito moral e religiatildeo no mundo moderno Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 p 577578

100

Natildeo eacute agrave toa portanto que como jaacute visto a Resoluccedilatildeo 19696 vincula a eticidade na pesquisa aos princiacutepios da Bioeacutetica tanto no seu preacircmbulo como no seu item III 1

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1214 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

dos participantes - ou dos seus representantes se incapazes - 101 cuja ausecircncia macula o princiacutepio da autonomia Tambeacutem eacute objetiva a exigecircncia da pesquisa estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou outros fatos cientiacuteficos102 cuja inobservacircncia implica em ofensa agrave natildeo-maleficecircncia Nessas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou-natildeo vir a ter um benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

Outras exigecircncias entretanto possuem um certo grau de subjetividade em maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as circunstacircncias faacuteticas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo de valor iacutensito a cada um Desse tipo vg eacute a exigecircncia segundo a qual a pesquisa deve ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e ter possibilidades concretas de responder a incertezas103 A avaliaccedilatildeo quanto ao cumprimento ou-natildeo da exigecircncia e portanto quanto agrave legitimidade ou ilegitimidade da utilizaccedilatildeo de seres humanos tem um niacutetido caraacuteter subjetivo podendo variar de pessoa para pessoa

Quando tratamos de exigecircncias subjetivas haacute ainda um outro aspecto a ser apontado deveraacute ser levado em conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca Em outras palavras a circunstacircncia do sujeito de pesquisa poder vir a ser beneficiado ou-natildeo pelo resultado do experimento deve ser considerada na verificaccedilatildeo da legitimidade eacutetica quando da ponderaccedilatildeo sobre o cumprimento das exigecircncias subjetivas

Tomemos como exemplo a exigecircncia de que devem prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis104 Ora essa exigecircncia eacute subjetiva pois envolve uma ponderaccedilatildeo cujo resultado estaacute vinculado a um juiacutezo de valor sobre a natureza e a importacircncia ou peso de cada benefiacutecio ou risco provaacutevel Ao nosso entender quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal no resultado do experimento tratando-se portanto de justificativa extriacutenseca eacute oacutebvio que os riscos a que se submete devem ser considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o benefiacutecio esperado tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa submetida ao experimento

101 Item III3 letra g da Resoluccedilatildeo 19696 102 Item III3 letra b da Resoluccedilatildeo 19696 103 Item III3 letra a da Resoluccedilatildeo 19696 104 Item III3 letra d da Resoluccedilatildeo 19696

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1215

Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila105 Por outro lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

A proacutepria realizaccedilatildeo ou-natildeo da pesquisa pode depender dessa ponderaccedilatildeo jaacute que a Resoluccedilatildeo n 19696 prevecirc que havendo riscos potenciais as pesquisas envolvendo seres humanos poderatildeo ser admitidas quando oferecerem elevada possibilidade de gerar conhecimento para entender prevenir ou aliviar um problema que afete o bem-estar dos sujeitos da pesquisa e de outros indiviacuteduos 106

Aleacutem disso parece ser mais aceitaacutevel eticamente submeter o ser humano a riscos maiores quando a justificativa eacute intriacutenseca do que quando ela eacute extriacutenseca priorizando assim a sua preservaccedilatildeo Nesse sentido a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO estipula que uos interesses e o bem-estar do indiviacuteduo devem ter prioridade sobre o interesse exclusivo da ciecircncia ou da sociedade 107

Natildeo se pode esquecer ainda que por forccedila dos princiacutepios da beneficecircncia da natildeo-maleficecircncia e da justiccedila eacute preciso considerar na mediccedilatildeo da legitimidade as peculiaridades individuais ou coletivas dos sujeitos de pesquisa especialmente no que concerne agraves suas eventuais vulnerabilidades bem como cuidar para que natildeo lhes seja imposto um mal desnecessaacuterio ou desproporcional O princiacutepio da justiccedila como vimos implica necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa os quais sempre que possiacutevel devem ter garantido para si pelo pesquisador a fruiccedilatildeo dos benefiacutecios da experimentaccedilatildeo natildeo sendo equacircnime impor-Ihes ocircnus excessivos108 especialmente se vulneraacuteveis Natildeo eacute agrave toa portanto que pode

105 O princiacutepio da justiccedila implica atenccedilatildeo especial agraves regras de recrutamento de participantes de experimentos Natildeo se pode fazer experimentos apenas com determinados grupos - pacientes de enfermaria asilados prisioneiros - simplesmente porque eles estatildeo agrave disposiccedilatildeo e em situaccedilatildeo de dependecircncia Isso eacute injusto Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 Item Vl aliacutenea a

107 Art 3 aliacutenea b 108 bull

Consideramos que deva ser modificada a praacutetica muito comum em nosso paiacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de pesquisados provenientes das camadas mais desfavorecidas da sociedade ou de outros grupos vulneraacuteveis mas que posteriormente natildeo poderatildeo se beneficiar dos resultantes positivos das pesquisas em que tomaram parte mesmo tendo enfrentado riscos de danos psico-sociais As pesquisas realizadas nesses grupos devem poder lhes trazer benefiacutecios e os pesquisadores sempre que possiacutevel devem garantir retomo dos benefiacutecios resultados das pesquisas para os sujeitos individuais e coletivos que nelas participarem Cf FORTES Paulo Antonio de Carvalho As Pesquisas em Seres Humanos e o Principio Eacutetico da Justiccedila

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1216 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

haver exigecircncias eacuteticas especiacuteficas para pesquisas com serem humanos em situaccedilatildeo de vulnerabilidade109

Assim sempre seraacute preciso dosar a equaccedilatildeo riscobeneficio ponderando em cada caso concreto se os eventuais benefiacutecios satildeo suficientes para motivar a exposiccedilatildeo das pessoas ao processo de experimentaccedilatildeo Pode ser que diante de certas peculiaridades ou vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima110 Aliaacutes como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis justamente porque como jaacute dito o ser humano natildeo pode ser tratado como mero instrumento1

E natildeo eacute soacute Aleacutem disso em princiacutepio a pesquisa com pessoas ou grupos vulneraacuteveis deve ter uma justificativa intriacutenseca2 Entretanto sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas em experimentos extriacutensecos agrave luz da solidariedade como no caso do grupo vulneraacutevel ser imune a determinada moleacutestia por razatildeo ainda desconhecida o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias objetivas agrave risca deve ser ainda mais

Cadernos de Eacutetica em Pesquisa Ano 1 n 2 p 22-23 nov 1998 109

A tiacutetulo de exemplo a Resoluccedilatildeo 19696 traz alguns requisitos especiacuteficos para o consentimento livre e esclarecido de pessoas ou populaccedilotildees vulneraacuteveis no item IV3

110 Um caso de niacutetida violaccedilatildeo aos princiacutepios bioeacuteticos em pesquisas envolvendo grupo vulneraacutevel foi o jaacute mencionado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm Conforme um dos colaboradores da pesquisa utilizar doentes mentais ainda que natildeo voluntaacuterios foi a melhor opccedilatildeo diante do fato de que o principal problema da sauacutede puacuteblica era justamente o das doenccedilas dentaacuterias razatildeo pela qual os fins justificariam os meios ainda mais considerando que o estudo foi utilizado em todo o mundo (Krasse B Sueacutecia usou deficiente mental como cobaia Folha de Satildeo Paulo 23 Set 1997 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas cliacutenicas sobre seus direitos 2005 p 61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo) sendo faacutecil criticar o fato depois de consumado (Krasse B The Vipeholm dental caries study recollections and reflections 50 years later J Dent Res 2001 80(9) 1785-8 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu op cit p 61) Mais uma vez cabiacutevel rememorar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () j) ser desenvolvida preferencialmente em indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida

112 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO eacute clara ao afirmar em seu art 7 aliacutenea b no que diz respeito a indiviacuteduos sem a capacidade para fornecer consentimento que a pesquisa soacute deve ser realizada para o beneficio direto agrave sauacutede do indiviacuteduo envolvido estando sujeita agrave autorizaccedilatildeo e agraves condiccedilotildees de proteccedilatildeo prescritas pela legislaccedilatildeo e caso natildeo haja nenhuma alternativa de pesquisa de eficaacutecia comparaacutevel que possa incluir sujeitos de pesquisa com capacidade para fornecer consentimento

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1217

rigoroso na ponderaccedilatildeo do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da autonomia e justiccedila expondo tais pessoas a riscos miacutenimos menores ateacute do que aqueles normalmente empregados em pesquisas com justificativa intriacutenseca3

Se essas diretrizes natildeo forem observadas teremos uma pesquisa carente de justificativa eacutetica e de legitimidade

6 Conclusotildees

Em virtude dos limites inerentes agrave nossa abordagem nessas consideraccedilotildees finais natildeo apresentaremos verdades irrefutaacuteveis e definitivas sobre um tema que ainda carece de um importante debate acadecircmico e normativo Com efeito o que pretendemos modestamente foi evidenciar alguns paradigmas que possam ensejar a conciliaccedilatildeo da dignidade da pessoa humana com a continuidade dos processos de investigaccedilatildeo cientiacuteficos realizados em seres humanos Para tanto podemos sintetizar nosso pensamento nas seguintes conclusotildees

a) O desenvolvimento da ciecircncia mormente em aacutereas afeitas agrave vida e a ocorrecircncia de pesquisas francamente contraacuterias agrave dignidade humana como ocorrido em vaacuterias passagens da Segunda Guerra ensejaram o surgimento da Bioeacutetica como um novo ramo do conhecimento

b) Deve-se limitar a atuaccedilatildeo da Bioeacutetica aos casos em que haacute conflito de valores quando dois princiacutepios eacutetica e moralmente admissiacuteveis natildeo podem coexistir

c) Haacute iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica Autonomia Beneficecircncia e Justiccedila aleacutem da Natildeo-Maleficecircncia - e as pesquisas em seres humanos

113 Ainda conforme o art 7 aliacutenea b da Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO quando se trata de pessoas incapazes Pesquisas sem potencial beneficio direto agrave sauacutede soacute devem ser realizadas excepcionalmente com a maior restriccedilatildeo expondo o indiviacuteduo apenas a risco e desconforto miacutenimos e quando se espera que a pesquisa contribua com o benefiacutecio agrave sauacutede de outros indiviacuteduos na mesma categoria sendo sujeitas agraves condiccedilotildees prescritas por lei e compatiacuteveis com a proteccedilatildeo dos direitos humanos do indiviacuteduo A recusa de tais indiviacuteduos em participar de pesquisas deve ser respeitada

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1218 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

d) Os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica

pluralista aberta e receptiva e satildeo um poderoso instrumento

para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

razotildees pelas quais eacute descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos

debates bioeacuteticos

e) O avanccedilo tecnoloacutegico traz cada vez mais a diminuiccedilatildeo de

limites teacutecnicos ao ser humano o que conduz ao debate sobre a

necessidade de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees para

evitar eventuais abusos especialmente na aacuterea biomeacutedica

elevando a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que

demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave

vida

0 A concretizaccedilatildeo dos objetivos atuais da humanidade

especialmente em relaccedilatildeo agrave expectativa de vida depende

dentre outros fatores da pesquisa cientiacutefica e da

experimentaccedilatildeo em seres humanos Poreacutem eacute preciso tomar o

Homem como sujeito de pesquisa sem trataacute-lo como mero

instrumento mas como um fim em si mesmo

g) A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do

interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda

Guerra trouxeram agrave tona a questatildeo da eacutetica na pesquisa

evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana e

de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa

em seres humanos gerando uma seacuterie de normas internacionais

e nacionais a exemplo do Coacutedigo de Nuremberg da

Declaraccedilatildeo de Helsinque e no Brasil da Resoluccedilatildeo n 19696

do Conselho Nacional de Sauacutede

h) Dentre os principais aspectos da Resoluccedilatildeo n 19696 do

Conselho Nacional de Sauacutede encontramos a vinculaccedilatildeo da

experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da

principiologia da Bioeacutetica a explicitaccedilatildeo de um rol de

exigecircncias para a eticidade na pesquisa as definiccedilotildees de

diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica como o

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1219

consentimento livre e esclarecido a vulnerabilidade e a

incapacidade a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em

Pesquisa -CONEP e a regulamentaccedilatildeo dos Comitecircs de Eacutetica e

Pesquisa - CEPs

i) O consentimento livre e esclarecido decorre da adoccedilatildeo do

princiacutepio da autonomia e pressupotildee dentre outras premissas a

capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os

aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos

possiacuteveis

j) A vulnerabilidade natildeo pode ser desconsiderada pelo

pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais ocorrendo

quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de

estudo por quaisquer motivos possuem a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto agrave

compreensatildeo sobre o experimento e a possibilidade de

livremente consentir com a pesquisa e dela desistir

k) A incapacidade ocorre quando as pessoas que seratildeo estudadas

na pesquisa natildeo possuem capacidade civil para dar o seu

consentimento soacute podendo ser levada adiante a pesquisa com a

intervenccedilatildeo de seus representantes legais implicando tambeacutem

no dever do pesquisador de cercar-se de cautelas eacuteticas

redobradas

1) As experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas

teleologicamcnte em dois grupos a) aquelas cujos objetivos

possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas

observadas as quais chamamos de pesquisas com justificativa

intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo

direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de

terceiros as quais denominamos pesquisas com justificativa

extrinseca

m) Em todo experimento eacute necessaacuterio averiguar se a justificativa -

seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1220 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima jaacute que a

justificativa soacute pelo fato de ser intriacutenseca natildeo seraacute

necessariamente legiacutetima nem tampouco soacute por ser extriacutenseca

seraacute necessariamente ilegiacutetima

n) Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a

realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser

encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca

como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

o) A interpretaccedilatildeo do item III1 letra d da Resoluccedilatildeo n 19696

que vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens

significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de

infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila natildeo deve ser literal nem

assistemaacutetica devendo ser considerada a incidecircncia de um

outro principio ainda que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que

eacute o da solidariedade

p) Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita ao princiacutepio da

solidariedade na Resoluccedilatildeo n 19696 a sua aplicaccedilatildeo eacute

cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele

texto afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua

relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-

humanitaacuteria

q) Logo mesmo que natildeo haja nenhum beneficio direto ao sujeito

de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma

justificativa a qual pode ser a intenccedilatildeo sua e do pesquisador

de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e

consequumlentemente para todos os demais seres humanos Aleacutem

disso natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica

sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao

respeito agrave dignidade da pessoa humana

r) A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em

seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade

poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1221

diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica listadas na

Resoluccedilatildeo n 19696 especialmente no item III3

s) Algumas exigecircncias satildeo puramente objetivas e uma vez

desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da

justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca

t) Nas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa

ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou natildeo vir a ter um

benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

u) Outras exigecircncias possuem um certo grau de subjetividade em

maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da

pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo

exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as

circunstacircncias faacutetiacutecas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo

de valor iacutensito a cada um

v) Quando se tratar de exigecircncias subjetivas deveraacute ser levado em

conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma

justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca

w) Quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou

sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal

no resultado do experimento tratando-se portanto de

justificativa extriacutenseca os riscos a que se submete devem ser

considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a

justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o beneficio esperado

tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa

submetida ao experimento

x) Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do

sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero

instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila e por outro

lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute

menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa

consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1222 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a

algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

y) Pode ser que diante de certas peculiaridades ou

vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo

considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa

em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua

realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo

eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima

z) Como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras

pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis

mas sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas agrave luz da

solidariedade o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias

objetivas agrave risca deve ser ainda mais rigoroso na ponderaccedilatildeo

do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave

observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da

autonomia e justiccedila

Satildeo Paulo novembro de 2006

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ALEMANHA Rodrigo Resende da Doutores da agonia Revista Superinteressante ed 225 p

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Page 16: BIOÉTICA E PESQUISAS EM SERES HUMANOS

1202 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

Os avanccedilos tecnoloacutegicos cada vez mais raacutepidos reverberaram nas questotildees eacuteticas forccedilando novas e perioacutedicas revisotildees Necessaacuterio se fez portanto a rediscussatildeo do tema e o aprimoramento do sistema normativo Assim sobreveio a Declaraccedilatildeo de Helsinque elaborada pela Associaccedilatildeo Meacutedica Mundial em 1964 texto que foi revisto e ampliado em 1975 (Toacutequio)55 1983 (Veneza) 1989 (Hong Kong) 1996 (Somerset) e 2000 (Edimburgo) com o que foram incorporadas vaacuterias inovaccedilotildees Por exemplo a disposiccedilatildeo no sentido de que No final do estudo todos os pacientes participantes devem ter assegurado o acesso aos melhores meacutetodos comprovados profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos identificados pelo estudo E no atinente ao uso de placebo que Os benefiacutecios riscos dificuldades e efetividade de um novo meacutetodo devem ser testados comparando-os com os melhores meacutetodos profilaacuteticos diagnoacutesticos e terapecircuticos atuais Isto natildeo exclui o uso de placebo ou nenhum tratamento em estudo onde existam meacutetodos provados de profiacutelaxia diagnoacutestico e tratamento 56 Foi tambeacutem reforccedilada a recomendaccedilatildeo do Coacutedigo de Nuremberg sobre a necessidade de submissatildeo do protocolo de pesquisa agrave anaacutelise por um Comitecirc de Eacutetica independente do pesquisador

Outros textos e documentos que tratam da pesquisa merecem referecircncia como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos de 196657 o intitulado Diretrizes Internacionais para a pesquisa biomeacutedica em seres humanos elaborado conjuntamente pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede e pelo Council for International Organizations of Medicai Sciences (1993) a Declaraccedilatildeo de Manila (1981) a Declaraccedilatildeo de Princiacutepios Eacuteticos dos Meacutedicos do Mercosul (1996) a Declaraccedilatildeo Bioeacutetica de Gijoacuten (2000) e a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da Unesco (2005)

Em que pese o entendimento de que haacute carecircncia de instrumentos imperativos que garantam a exigibilidade dos referidos documentos sem duacutevida eles

A respeito Leo Pessini e Christian de Paul Barehifontaine ensinam que Tal modificaccedilatildeo fieou conhecida como Helsinque II Entre outros pontos importantes foram incluiacutedos nesta revisatildeo os seguintes aspectos I) Exigecircncia de que o protocolo experimental seja aprovado por uma comissatildeo independente para efeito de apreciaccedilatildeo comentaacuterios e orientaccedilatildeo (item I 2) 2) Que os seres humanos natildeo sejam utilizados em pesquisas a menos que o consentimento consciente do paciente dado livremente tenha sido obtido depois do mesmo ter sido adequadamente informado sobre os objetivos meacutetodos benefiacutecios esperados riscos potenciais e inconvenientes da experimentaccedilatildeo e que ele tenha liberdade de se abster e de cancelar sua participaccedilatildeo a qualquer momento (art I 9) 3) Que o protocolo contenha embasamento eacutetico da pesquisa e a referecircncia de que foram obedecidos os princiacutepios da Declaraccedilatildeo de Helsinque (item I 12) 4) Que os interesses da ciecircncia e da sociedade jamais tenham precedecircncia sobre o bem-estar do indiviacuteduo (item III 4) PESSINI Leo BARCHIFONTAINE Christian de Paul Problemas aluais de Bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 1994 p 131

56 GRECO Dirceu B Poder e injusticcedila na pesquisa envolvendo seres humanos In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 264

57 De acordo com o seu art 7o Ningueacutem poderaacute ser submetido a tortura nem a penas ou tratamentos crueacuteis desumanos ou degradantes Seraacute proibido sobretudo submeter uma pessoa sem seu livre consentimento a experiecircncias meacutedicas ou cientiacuteficas

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1203

contribuiacuteram e contribuem significativamente na proteccedilatildeo ao ser humano objeto de pesquisa pois influenciaram a elaboraccedilatildeo de diretrizes vinculantes no plano individual de cada Estado a exemplo do Brasil como a seguir veremos Por outro lado importante anotar que uma harmonia consensual e global no atinente agrave pesquisa parece impossiacutevel tendo em conta que a cultura os objetivos e as condiccedilotildees cientiacuteficas dos diversos paiacuteses satildeo naturalmente diversificados58 Aliaacutes haacute quem chegue a afirmar que o pluralismo eacutetico em vigor nos dias de hoje natildeo nos permite mais falar em moral universal59

No Brasil a normatizaccedilatildeo se daacute principalmente atraveacutes de resoluccedilotildees do Conselho Federal de Medicina60 e do Conselho Nacional de Sauacutede Aliaacutes a primeira resoluccedilatildeo deste uacuteltimo oacutergatildeo - Resoluccedilatildeo n 01 de 13 de junho de 1988 - tratou justamente de normas de pesquisa em sauacutede tendo dedicado o seu Capiacutetulo II arts 4o a 16 aos aspectos eacuteticos da pesquisa em seres humanos Esse diploma legal foi posteriormente revogado pela Resoluccedilatildeo n 196 de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Sauacutede que eacute atualmente a base regulamentar da pesquisa no Brasil tratando das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos Esta Resoluccedilatildeo eacute na verdade uma revisatildeo da anterior tendo sido precedida de diaacutelogo entre governo e sociedade civil61

A Resoluccedilatildeo atual afirma jaacute em seu preacircmbulo a sua fundamentaccedilatildeo nos principais documentos internacionais que emanaram declaraccedilotildees e diretrizes sobre

58 Nesse contexto por tanto deve ser considerada a questatildeo do multicuturalismo Como bem ensinam Joseacute A Mainetti Joseacute L Mainettil Existen dificultades en la aplicacioacuten de los principos elaborados por los paiacuteses centrales y es una evidencia por ejemplo que resulta inapropiada la visioacuten estrccha de la autonomia y la aplicacioacuten riacutegida dei requisito dei consentimento informado al modo norteamericano en determinadas circunstancias y comunidades Es preciso entoces reconocer Ias diferenccedilas culturales y en base a eacutestas aplicar los princiacutepios sin renunciar a cllos en formas maacutes adecuadas al ethos particular MAINETTI Joseacute A MAINETTI Joseacute L Bioeacutetica y la experimentacioacuten humana In SOROKIN Patriacutecia (Coord) Bioeacutelica entre utopias y desarraigos Buenos Aires Ad-Hoc Villela 2002 p 190

59 Cf ENGELHARDT JUacuteNIOR Tristam apuei BAUZON Steacutephane La personne biojuridique Paris Press Universitaires de France 2006 p 63

60 Vide como exemplo a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro o qual no seu Capiacutetulo XII trata especificamente da pesquisa meacutedica

61 Cf FREITAS Corina Bontempo Duca de Eacutetica na pesquisa com seres humanos A experiecircncia brasileira In GARRAFA Volnei PESSINI Leo (Orgs) Bioeacutelica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p 307

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1204 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

pesquisas que envolvem seres humanos62 e que visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito agrave comunidade cientiacutefica aos sujeitos da pesquisa e ao Estado

Aleacutem disso vinculou a experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da principiologia da Bioeacutetica seja no preacircmbulo onde afirma que incorpora sob a oacutetica do indiviacuteduo e das coletividades os quatro referenciais baacutesicos da Bioeacutetica autonomia natildeo-maleficecircncia beneficecircncia e justiccedila entre outros seja no seu item III 1 que versa sobre a eticidade na pesquisa63

Entre as suas disposiccedilotildees encontramos definiccedilotildees de diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica pesquisa64 pesquisa envolvendo seres humanos65

protocolo de pesquisa66 pesquisador responsaacutevel67 instituiccedilatildeo de pesquisa68 promotor69

patrocinador70 risco da pesquisa71 dano associado ou decorrente da pesquisa72 sujeito da

62 Cila a Resoluccedilatildeo os seguintes documentos o Coacutedigo de Nuremberg (1947) a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem (1948) a Declaraccedilatildeo de Helsinque (1964 e suas versotildees posteriores de 1975 1983 e 1989) o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Poliacuteticos (ONU 1966 aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1992) as Propostas de Diretrizes Eacuteticas Internacionais para Pesquisas Biomeacutedicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMSOMS 1982 e 1993) e as Diretrizes Internacionais para Revisatildeo Eacutetica de Estudos Epidemioloacutegicos (C10MS 1991) III1 - A eticidade da pesquisa implica em a) consentimento livre e esclarecido dos indiviacuteduos-alvo e a proteccedilatildeo a grupos vulneraacuteveis e aos legalmente incapazes (autonomia) Neste sentido a pesquisa envolvendo seres humanos deveraacute sempre trataacute-los em sua dignidade respeitaacute-los em sua autonomia e defendecirc-los em sua vulnerabilidade b) ponderaccedilatildeo entre riscos e benefiacutecios tanto atuais como potenciais individuais ou coletivos (beneficecircncia) comprometendo-se com o maacuteximo de benefiacutecios e o miacutenimo de danos e riscos c) garantia de que danos previsiacuteveis seratildeo evitados (natildeo maleficecircncia)- d) relevacircncia social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimizaccedilatildeo do ocircnus para os sujeitos vulneraacuteveis o que garante a igual consideraccedilatildeo dos interesses envolvidos natildeo perdendo o sentido de sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria (justiccedila e equumlidade) (negritos originais)

64 111 Pesquisa classe de atividades cujo objetivo eacute desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizaacutevel O conhecimento generalizaacutevel consiste em teorias relaccedilotildees ou princiacutepios ou no acuacutemulo de informaccedilotildees sobre as quais estatildeo baseados que possam ser corroborados por meacutetodos cientiacuteficos aceitos de observaccedilatildeo e infercncia

65 112 Pesquisa envolvendo seres humanos pesquisa que individual ou coletivamente envolva o ser humano de forma direta ou indireta em sua totalidade ou partes dele incluindo o manejo de informaccedilotildees ou materiais

66 II3 Protocolo de Pesquisa Documento contemplando a descriccedilatildeo da pesquisa em seus aspectos fundamentais informaccedilotildees relativas ao sujeito da pesquisa agrave qualificaccedilatildeo dos pesquisadores e a todas as instacircncias responsaacuteveis

67 II-4 Pesquisador responsaacutevel pessoa responsaacutevel pela coordenaccedilatildeo e realizaccedilatildeo da pesquisa e pela integridade e bem-estar dos sujeitos da pesquisa

68 II5 - Instituiccedilatildeo de pesquisa - organizaccedilatildeo puacuteblica ou privada legitimamente constituiacuteda e habilitada na qual satildeo realizadas investigaccedilotildees cientiacuteficas

69 116 - Promotor - indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo responsaacutevel pela promoccedilatildeo da pesquisa 70 II7 - Patrocinador - pessoa fiacutesica ou juriacutedica que apoia financeiramente a pesquisa 71 II8 Risco da pesquisa - possibilidade de danos agrave dimensatildeo fiacutesica psiacutequica moral intelectual social

cultural ou espiritual do ser humano em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente II9 Dano associado ou decorrente da pesquisa agravo imediato ou tardio ao indiviacuteduo ou agrave coletividade com nexo causai comprovado direto ou indireto decorrente do estudo cientiacutefico

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pesquisa73 consentimento livre e esclarecido74 indenizaccedilatildeo75 ressarcimento6 Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (CEP)77 vulnerabilidade78 e incapacidade79

A Resoluccedilatildeo regulamentou os Comitecircs de Eacutetica e Pesquisa - CEPs80 em cujas funccedilotildees81 destaca-se a apreciaccedilatildeo do protocolo da pesquisa em todas as suas especificidades o que foi um grande passo no sentido da construccedilatildeo de padrotildees eacuteticos82

Haacute requisitos para a instituiccedilatildeo dos Comitecircs principalmente no atinente agrave sua composiccedilatildeo83

1110 Sujeito da pesquisa eacute o(a) participante pesquisado(a) individual ou coletivamente de caraacuteter voluntaacuterio vedada qualquer forma de remuneraccedilatildeo IIII Consentimento livre e esclarecido anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal livre de viacutecios (simulaccedilatildeo fraude ou erro) dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar formulada em um termo de consentimento autorizando sua participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa 1112 - Indenizaccedilatildeo - cobertura material em reparaccedilatildeo a dano imediato ou tardio causado pela pesquisa ao ser humano a ela submetida 1113 Ressarcimento - cobertura em compensaccedilatildeo exclusiva de despesas decorrentes da participaccedilatildeo do sujeito na pesquisa 1114 - Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa-CEP - colegiados interdisciplinares e independentes com munus puacuteblico de caraacuteter consultivo deliberativo e educativo criados para defender os interesses dos sujeitos da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrotildees eacuteticos 1115 Vulnerabilidade refere-se a estado de pessoas ou grupos que por quaisquer razotildees ou motivos tenham a sua capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido 1116 - Incapacidade - Refere-se ao possiacutevel sujeito da pesquisa que natildeo tenha capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido devendo ser assistido ou representado de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira vigente O CEP pode ser entendido como um oacutergatildeo controlador da pesquisa por um lado mas por outro eacute tambeacutem um oacutergatildeo que ajuda a harmonizar diversos interesses que como vimos podem ser os mais diversos e agraves vezes ateacute conflitantes Cf PALAacuteCIOS Marisa Eacutetica na pesquisa - 1 Eacutetica em pesquisa em seres humanos In PALAacuteCIOS Marisa MARTINS Andreacute PEGORARO Olinto A (Orgs) Eacutetica ciecircncia e sauacutede humana Petroacutepolis Vozes 2001 p 74 Satildeo atribuiccedilotildees conferidas pela Resoluccedilatildeo aos CEPs a) revisar todos os protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos b) emitir parecer consubstanciado por escrito c) manter a guarda confidencial de todos os dados obtidos na execuccedilatildeo de sua tarefa e arquivamento do protocolo completo que ficaraacute agrave disposiccedilatildeo das autoridades sanitaacuterias d) acompanhar o desenvolvimento dos projetos atraveacutes de relatoacuterios anuais dos pesquisadores e) desempenhar papel consultivo e educativo 0 receber dos sujeitos da pesquisa ou de qualquer outra parte denuacutencias de abusos ou notificaccedilatildeo sobre fatos adversos que possam alterar o curso normal do estudo decidindo pela continuidade modificaccedilatildeo ou suspensatildeo da pesquisa devendo se necessaacuterio adequar o termo de consentimento considerando-se anti-eacutetica a pesquisa descontinuada sem justificativa aceita pelo CEP que a aprovou g) requerer instauraccedilatildeo de sindicacircncia agrave direccedilatildeo da instituiccedilatildeo em caso de denuacutencias de irregularidades de natureza eacutetica nas pesquisas e em havendo comprovaccedilatildeo comunicar agrave Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa CONEPMS e no que couber a outras instacircncias e h) manter comunicaccedilatildeo regular e permanente com a CONEPMS A existecircncia de oacutergatildeos com a funccedilatildeo de aprovar e acompanhar pesquisas jaacute era preconizada por exemplo pelo Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988) cujo art 127 veda ao

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Foi mais aleacutem a Resoluccedilatildeo que de modo inovador reforccedilou o controle eacutetico e a defesa da dignidade da pessoa humana com a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em Pesquisa - CONEP84 que atua na direccedilatildeo e orientaccedilatildeo dos comitecircs8S A comissatildeo de acordo com a Resoluccedilatildeo eacute uma instacircncia colegiada de natureza consultiva deliberativa normativa independente vinculada ao Conselho Nacional de Sauacutede86 Essa vinculaccedilatildeo eacute bastante positiva posto que a alternativa de submetecirc-la a outros oacutergatildeos poderia dar ensejo a uma indesejada politizaccedilatildeo dos seus membros o que seria capaz de terminar por afetar a sua autonomia

meacutedico Realizar pesquisa meacutedica em ser humano sem submeter o protocolo a aprovaccedilatildeo e acompanhamento de comissatildeo isenta de qualquer dependecircncia em relaccedilatildeo ao pesquisador O colegiado com nuacutemero natildeo inferior a 7 (sete) membros deve ser multidisciplinar abrangendo profissionais idocircneos e de distinta formaccedilatildeo da aacuterea de sauacutede e das ciecircncias exatas sociais e humanas incluindo por exemplo juristas teoacutelogos socioacutelogos filoacutesofos bioeticistas aleacutem de membros da sociedade e obrigatoriamente pelo menos um membro representando os usuaacuterios Se a pesquisa envolver grupos vulneraacuteveis comunidades e coletividades um dos seus representantes deveraacute ser convidado para participar como membro ad hoc do CEP da anaacutelise do projeto especiacutefico Assim o CEP ainda segundo a Resoluccedilatildeo teraacute sempre um caraacuteter multi e transdisciplinar sendo vedado que mais que metade de seus membros pertenccedilam a uma mesma categoria profissional devendo ainda participarem pessoas dos dois sexos Satildeo permitidos consultores ad hoc pessoas que pertencem ou natildeo aacute instituiccedilatildeo com o objetivo de fornecer subsiacutedios teacutecnicos Merece ainda atenccedilatildeo especial a autonomia do comitecirc cuja manifestaccedilatildeo deve ser totalmente autocircnoma e imaculada de coaccedilotildees ou pressotildees dos interessados A autonomia e a independecircncia satildeo condiccedilotildees sine qua non para a desejada eficaacutecia dos comitecircs que felizmente estatildeo se proliferando em nosso paiacutes Conforme informaccedilotildees do site da CONEP satildeo 446 CEPs aprovados no Brasil ateacute janeiro de 2006 Disponiacutevel em lthttpoonselhosaudegovbrcomissaoconep2006ceps20APROVADOSxlsgt Acessado em 04 jun 2006 A Comissatildeo tem 13 membros titulares e o mesmo nuacutemero de suplentes em uma composiccedilatildeo que tambeacutem deveraacute ser multi e transdisciplinar com pessoas de ambos os sexos Dentre os seus membros 05 (cinco) devem ser personalidades destacadas no campo da eacutetica na pesquisa e na sauacutede e 08 (oito) devem ser personalidades com destacada atuaccedilatildeo nos campos teoloacutegico juriacutedico e outros assegurando-se que pelo menos um seja da aacuterea de gestatildeo da sauacutede Embora natildeo desconheccedilamos a importacircncia das religiotildees na formaccedilatildeo do pensamento eacutetico humano e sem querer desmerecer as pessoas que nelas militam no mais das vezes com accedilotildees de destacada importacircncia pensamos que eacute inadequada em um Estado laico como o nosso a destinaccedilacirco de vaga ou de vagas especificamente a pessoas do campo teleoloacutegico Essa observaccedilatildeo imperioso demarcar natildeo eacute no sentido de entender que a contribuiccedilatildeo dessas pessoas eacute desnecessaacuteria ou inconveniente Pelo contraacuterio Poreacutem a desejada participaccedilatildeo jaacute poderia ser levada a efeito incluindo-as no grupo de personalidades com atuaccedilatildeo de destaque na esfera da eacutetica na pesquisa e na sauacutede sem necessidade de vinculaccedilatildeo necessaacuteria ao pensamento religioso Isso ateacute mesmo para preservar o pluralismo e a igualdade jaacute que obviamente natildeo seraacute possiacutevel oferecer a cada religiatildeo uma vaga Os membros da Comissatildeo satildeo recrutados a partir de indicaccedilotildees contidas em listas elaboradas pelas instituiccedilotildees que possuem CEP registrado na CONEP sendo que 07 (sete) satildeo escolhidos pelo Conselho Nacional de Sauacutede e 06 (seis) satildeo definidos por sorteio Tambeacutem pode contar com consultores e membros ad hoc sendo assegurada a representaccedilatildeo dos usuaacuterios O mandato eacute de quatro anos com renovaccedilatildeo alternada a cada dois anos de sete ou seis de seus membros A CONEP tem tambeacutem um papel coordenador da rede de Comitecircs institucionais aleacutem de se constituir em oacutergatildeo consultor na aacuterea eacutetica em pesquisa Num primeiro momento tem ainda a atribuiccedilatildeo de apreciar os projetos de pesquisas de aacutereas temaacuteticas especiais enviadas pelos CFPs ou seja projetos que contemplam aacutereas com maiores dilemas eacuteticos e grande repercussatildeo social ateacute que se acumulem experiecircncias para elaboraccedilatildeo de normas especiacuteficas complementares agraves existentes Cf FREITAS Carolina Bontempo D HOSSNE William Saad Pesquisa em seres humanos COSTA Seacutergio Ibiapina Ferreira OSELKA

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Outros aspectos da Resoluccedilatildeo que merecem especial destaque para o nosso estudo satildeo os relativos ao consentimento livre e esclarecido agrave vulnerabilidade e agrave incapacidade

Como jaacute dito um dos principais pontos da Declaraccedilatildeo de Nuremberg foi o reconhecimento do direito do sujeito de pesquisa de ser devidamente informado de todas as consequumlecircncias A Resoluccedilatildeo tratou do tema exigindo a anuecircncia do sujeito da pesquisa eou de seu representante legal apoacutes explicaccedilatildeo completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa seus objetivos meacutetodos benefiacutecios previstos potenciais riscos e o incocircmodo que esta possa acarretar87 A anuecircncia deve ser expressa atraveacutes de

Gabriel GARRAFA Volnei (Coords) Iniciaccedilatildeo agrave Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina 1998 p 202

S6 Segundo a Resoluccedilatildeo compete agrave CONEP examinar os aspectos eacuteticos da pesquisa envolvendo seres humanos assim como a adequaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo das normas atinentes consultando a sociedade sempre que julgar necessaacuterio cabendo-lhe entre outras as seguintes atribuiccedilotildees a) estimular a criaccedilatildeo de CEPs institucionais e de outras instacircncias b) registrar os CEPs institucionais e de outras instacircncias c) aprovar no prazo de 60 dias e acompanhar os protocolos de pesquisa em aacutereas temaacuteticas especiais tais como geneacutetica humana reproduccedilatildeo humana faacutermacos medicamentos vacinas e testes diagnoacutesticos novos (fases I II e III) ou natildeo registrados no pais (ainda que fase IV) ou quando a pesquisa for referente a seu uso com modalidades indicaccedilotildees doses ou vias de administraccedilatildeo diferentes daquelas estabelecidas incluindo seu emprego em combinaccedilotildees equipamentos insumos e dispositivos para a sauacutede novos ou natildeo registrados no paiacutes novos procedimentos ainda natildeo consagrados na literatura populaccedilotildees indiacutegenas projetos que envolvam aspectos de biosseguranccedila pesquisas coordenadas do exterior ou com participaccedilatildeo estrangeira c pesquisas que envolvam remessa de material bioloacutegico para o exterior e projetos que a criteacuterio do CEP devidamente justificado sejam julgados merecedores de anaacutelise pela CONEP d) prover normas especiacuteficas no campo da eacutetica em pesquisa inclusive nas aacutereas temaacuteticas especiais bem como recomendaccedilotildees para aplicaccedilatildeo das mesmas e) funcionar como instacircncia final de recursos a partir de informaccedilotildees fornecidas sistematicamente em caraacuteter ex-ofiacutecio ou a partir de denuacutencias ou de solicitaccedilatildeo de partes interessadas devendo manifestar-se em um prazo natildeo superior a 60 (sessenta) dias 0 rever responsabilidades proibir ou interromper pesquisas definitiva ou temporariamente podendo requisitar protocolos para revisatildeo eacutetica inclusive os jaacute aprovados pelo CEP g) constituir um sistema de informaccedilatildeo e acompanhamento dos aspectos eacuteticos das pesquisas envolvendo seres humanos em todo o territoacuterio nacional mantendo atualizados os bancos de dados h) informar e assessorar o MS o CNS e outras instacircncias do SUS bem como do governo e da sociedade sobre questotildees eacuteticas relativas agrave pesquisa em seres humanos i) divulgar esta e outras normas relativas agrave eacutetica em pesquisa envolvendo seres humanos j) juntamente com outros setores do Ministeacuterio da Sauacutede estabelecer normas e criteacuterios para o credenciamento de Centros de Pesquisa e I) estabelecer suas proacuteprias normas de funcionamento

87 No que concerne agrave pesquisa meacutedica a Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de Janeiro de 1988 que aprovou o Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro estipula no seu art 123 que eacute vedado ao meacutedico Realizar pesquisa em ser humano sem que este tenha dado consentimento por escrito apoacutes devidamente esclarecido sobre a natureza e consequumlecircncia da pesquisa e que Caso o paciente natildeo tenha condiccedilotildees de dar seu livre consentimento a pesquisa somente poderaacute se realizada em seu proacuteprio beneficio apoacutes expressa autorizaccedilatildeo de seu responsaacutevel legal Jaacute a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO no seu art 6 aliacutenea b estabelece que A pesquisa cientiacutefica soacute deve ser realizada com o preacutevio livre expresso e esclarecido consentimento do indiviacuteduo envolvido A informaccedilatildeo deve ser adequada fornecida de uma forma compreensiacutevel e incluir os procedimentos para a retirada do consentimento O consentimento pode ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer hora e por qualquer razatildeo sem acarretar qualquer desvantagem ou preconceito Exceccedilotildees a este princiacutepio somente devem ocorrer quando em conformidade com os padrotildees eacuteticos e legais adotados pelos Estados consistentes com as provisotildees da presente Declaraccedilatildeo particularmente com o art 27 e com os direitos humanos

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em um termo de consentimento onde eacute autorizada a participaccedilatildeo voluntaacuteria na pesquisa Aleacutem disso natildeo pode estar viciada por simulaccedilatildeo fraude ou erro nem tampouco pode ser obtida por forccedila de uma situaccedilatildeo de dependecircncia subordinaccedilatildeo ou intimidaccedilatildeo

Trata-se de disposiccedilatildeo decorrente da adoccedilatildeo do princiacutepio da autonomia jaacute abordado que se vincula agrave capacidade de autodeterminaccedilatildeo e auto-escolha e pressupotildee dentre outras premissas a capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos possiacuteveis18

Quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de estudo possuem a capacidade de autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto ao consentimento livre e esclarecido por quaisquer motivos verifica-se uma situaccedilatildeo de vulnerabilidade que natildeo pode ser desconsiderada pelo pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais A preocupaccedilatildeo com a vulnerabilidade dos sujeitos encontra supedacircneo no Coacutedigo de Nuremberg na Declaraccedilatildeo de Helsinque nas Diretrizes Internacionais para Pesquisa Biomeacutedica envolvendo Seres Humanos89 e tambeacutem como jaacute dito na Resoluccedilatildeo 19696 A dificuldade central relacionada a indiviacuteduos e comunidades vulneraacuteveis eacute com a sua capacidade de compreensatildeo (autonomia plena) sobre o experimento e possibilidade de livremente consentir com a pesquisa e quando quiser dela desistir o que justifica todas as preocupaccedilotildees nesse sentido90

Cabe trazer a lume os ensinamentos do professor chileno Fernando Lolas O respeito pela autonomia das pessoas como agentes morais capazes de decisotildees informadas eacute central no diaacutelogo bioeacutetico Somente a permissatildeo outorgada por uma pessoa pode legitimar uma accedilatildeo que a envolva O valor das pessoas eacute incondicional o que obriga a consideraacute-las fins natildeo meios com a liberdade de viver e a de decidir livres de interferecircncias LOLAS Fernando Bioeacutetica o que eacute como se faz Traduccedilatildeo Milton Camargo Mota Satildeo Paulo Loyola 2001 p 63 A Diretriz Internacional para Pesquisa Biomeacutedica afirma Pesquisa envolvendo indiviacuteduos de comunidades sub-desenvolvidas Antes de iniciar a pesquisa em indiviacuteduos de comunidades subdesenvolvidas seja em paiacuteses desenvolvidos ou em desenvolvimento o pesquisador deve estar seguro que As pessoas da comunidade subdesenvolvida natildeo seratildeo ordinariamente envolvidas na pesquisa que possa ser realizada de forma adequada em comunidades desenvolvidas A pesquisa eacute uma resposta agraves necessidades de sauacutede e agraves prioridades da comunidade na qual seraacute realizada todos os esforccedilos seratildeo tomados no sentido de assegurar o imperativo eacutetico de que o consentimento individual dos sujeitos seraacute informado e Os projetos para a pesquisa foram revisados e aprovados por um comitecirc de eacutetica que tenha entre os seus membros ou consultores pessoas que tenham familiaridade com os costumes e tradiccedilotildees da comunidade Em comentaacuterio agraves diretrizes acima Leo Pessini e Christian Paul de Barchifontaine entendem que Quando a experimentaccedilatildeo visa ao estudo de determinadas condiccedilotildees moacuterbidas tais como doenccedilas endecircmicas em comunidades de baixo niacutevel socioeconocircmico eou cultural incapazes de terem uma consciecircncia clara e apropriada das implicaccedilotildees de sua participaccedilatildeo na experiecircncia eacute de bom alvitre que seja obtida a interveniecircncia de um liacuteder em que a coletividade confia Esse intermediaacuterio dever deixar claro que a participaccedilatildeo eacute voluntaacuteria e que qualquer participante tem a liberdade de natildeo aceitar ou abandonar a experiecircncia a qualquer momento op cit p 133

Conforme Marisa Palaacutecios Quando a autonomia dos sujeitos natildeo eacute plena ou seja quando a capacidade de entender as situaccedilotildees que se apresentam ao sujeito e de autodeterminar-se segundo este entendimento estaacute de alguma forma limitada eacute preciso tomar cuidado especial Eacute o caso dos grupos vulneraacuteveis os iacutendios que tecircm a capacidade de entendimento das situaccedilotildees diminuiacuteda uma vez que compotildeem sociedades

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A vulnerabilidade pode assumir as mais variadas vertentes bem como atingir uma determinada pessoa ou um grupo de seres humanos com peculiaridades comuns tais como crianccedilas idosos iacutendios pacientes terminais desempregados deficientes91 presidiaacuterios92 ou outras situaccedilotildees de dependecircncia93

Pode ocorrer que as pessoas que seratildeo estudadas na pesquisa natildeo tenham capacidade civil para dar o seu consentimento Nesse caso se encontram em situaccedilatildeo de incapacidade e a pesquisa soacute pode ser levada adiante com a intervenccedilatildeo de seus representantes legais que de acordo com a legislaccedilatildeo brasileira deveratildeo assistir ou representar os incapazes Tambeacutem aqui deve o pesquisador cercar-se de cautelas eacuteticas redobradas

Finalmente deve-se louvar a Resoluccedilatildeo por ter explicitado no seu item III3 um rol de 23 (vinte e trecircs) exigecircncias eacuteticas para a pesquisa de qualquer aacuterea do conhecimento que envolva seres humanos94

culturalmente diversas[] Estas para citar algumas populaccedilotildees caracteriacutesticas Satildeo populaccedilotildees que precisam ser especialmente protegidas dada a proacutepria condiccedilatildeo de vulnerabilidade Maria Carolina S Guimaratildees e Sylvia Caiuby Novaes com alento em Hannah Arendt e Cardia definem o ser vulneraacutevel como Algueacutem que possui cidadania fraacutegil que ignora a relevacircncia do direito agrave integridade fiacutesica como condiccedilatildeo de acesso aos direitos sociais econocircmicos poliacuteticos e trabalhistas Dito assim o que parece a primeira condiccedilatildeo para que um ser vulneraacutevel perca tal situaccedilatildeo eacute o investimento do Estado naquilo que constroacutei e constitui a cidadania naqueles atributos que transformam o indiviacuteduo em cidadatildeo que transformam o animal laborans em homem poliacutetico Essa transformaccedilatildeo eacute no dizer de Hannah Arendt um pressuposto da democracia pois permite ao animal laborans ir do reino da necessidade para o reino da liberdade GUIMARAtildeES Maria Carolina S NOVAES Sylvia Caiuby Autonomia reduzida e vulnerabilidade liberdade de decisatildeo diferenccedila e desigualdade Revista Bioeacutetica Brasiacutelia v 7 n 1 p 23 1999

91 Sobre o tema vide COHEN Claacuteudio Bioeacutetica Pesquisa e Deficiecircncia In SEGRE Marco COHEN Claacuteudio (Orgs) SEGRE Marcos COHEN Claacuteudio (Orgs) Bioeacutetica 3 ed rev e ampl Satildeo Paulo Edusp 2002 p 55-62 92 Nem todo ser humano eacute no entanto capaz de autodeterminaccedilatildeo A capacidade de autodeterminaccedilatildeo amadurece ao longo da vida mas pode ser perdida total ou parcialmente por doenccedila velhice ou situaccedilatildeo de restriccedilatildeo severa como a prisatildeo Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 93 O Coacutedigo de Eacutetica Meacutedica Brasileiro (Resoluccedilatildeo CFM n 1246 de 08 de janeiro de 1988) veda ao meacutedico no seu art 128 Realizar pesquisa meacutedica em voluntaacuterios sadios ou-natildeo que tenham direta ou indiretamente dependecircncia ou subordinaccedilatildeo relativamente ao pesquisador 94 I1I3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias a) ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder a incertezas b) estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou em outros fatos cientiacuteficos c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio d) prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis e) obedecer a metodologia adequada Se houver necessidade de distribuiccedilatildeo aleatoacuteria dos sujeitos da pesquisa em grupos experimentais e de controle assegurar que apriori natildeo seja possiacutevel estabelecer as vantagens de um procedimento sobre outro atraveacutes de revisatildeo de literatura meacutetodos observacionais ou meacutetodos que natildeo envolvam seres humanos 0 ter plenamente justificada quando for o caso a utilizaccedilatildeo de placebo em termos de natildeo maleficecircncia e de necessidade metodoloacutegica g) contar com o consentimento livre e esclarecido do sujeito da pesquisa eou seu representante legal h) contar com os recursos humanos e materiais necessaacuterios que garantam o bem-

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5 Teleologia e legitimidade da pesquisa em seres humanos

Toda experimentaccedilatildeo em seres humanos possui um determinado objetivo o qual pode ou-natildeo estar vinculado ao bem estar proacuteprio da pessoa ou grupo observado

Essa situaccedilatildeo natildeo foi esquecida pela Declaraccedilatildeo de Helsinque cujo preacircmbulo afirma Wo campo cia pesquisa biomeacutedica uma distinccedilatildeo fundamental deve ser feita entre a pesquisa meacutedica na qual o objetivo eacute essencialmente o diagnoacutestico ou a terapecircutica para um paciente e a pesquisa meacutedica cujo objeto essencial eacute puramente cientiacutefico e sem um valor direto diagnoacutestico ou terapecircutico para a pessoa sujeita agrave

estar do sujeito da pesquisa devendo ainda haver adequaccedilatildeo entre a competecircncia do pesquisador e o projeto proposto i) prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade a proteccedilatildeo da imagem e a natildeo estigmatizaccedilatildeo garantindo a natildeo utilizaccedilatildeo das informaccedilotildees em prejuiacutezo das pessoas eou das comunidades inclusive em termos de auto-estima de prestiacutegio eou econocircmico - financeiro j) ser desenvolvida preferencialmente cm indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida 1) respeitar sempre os valores culturais sociais morais religiosos e eacuteticos bem como os haacutebitos e costumes quando as pesquisas envolverem comunidades m) garantir que as pesquisas em comunidades sempre que possiacutevel traduzir-se-atildeo em benefiacutecios cujos efeitos continuem a se fazer sentir apoacutes sua conclusatildeo O projeto deve analisar as necessidades de cada um dos membros da comunidade e analisar as diferenccedilas presentes entre eles explicitando como seraacute assegurado o respeito agraves mesmas n) garantir o retomo dos benefiacutecios obtidos atraveacutes das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas Quando no interesse da comunidade houver benefiacutecio real em incentivar ou estimular mudanccedilas de costumes ou comportamentos o protocolo de pesquisa deve incluir sempre que possiacutevel disposiccedilotildees para comunicar tal benefiacutecio agraves pessoas eou comunidades o) comunicar agraves autoridades sanitaacuterias os resultados da pesquisa sempre que os mesmos puderem contribuir para a melhoria das condiccedilotildees de sauacutede da coletividade preservando poreacutem a imagem e assegurando que os sujeitos da pesquisa natildeo sejam estigmatizados ou percam a auto-estima p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefiacutecios resultantes do projeto seja em termos de retorno social acesso aos procedimentos produtos ou agentes da pesquisa q)assegurar aos sujeitos da pesquisa as condiccedilotildees de acompanhamento tratamento ou de orientaccedilatildeo conforme o caso nas pesquisas de rastreamento demonstrar a preponderacircncia de benefiacutecios sobre riscos e custos r) assegurar a inexistecircncia de conflito de interesses entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa ou patrocinador do projeto s) comprovar nas pesquisas conduzidas do exterior ou com cooperaccedilatildeo estrangeira os compromissos e as vantagens para os sujeitos das pesquisas e para o Brasil decorrentes de sua realizaccedilatildeo Nestes casos deve ser identificado o pesquisador e a instituiccedilatildeo nacionais co-responsaacuteveis pela pesquisa O protocolo deveraacute observar as exigecircncias da Declaraccedilatildeo de Helsinque e incluir documento de aprovaccedilatildeo no paiacutes de origem entre os apresentados para avaliaccedilatildeo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa da instituiccedilatildeo brasileira que exigiraacute o cumprimento de seus proacuteprios referenciais eacuteticos Os estudos patrocinados do exterior tambeacutem devem responder agraves necessidades de treinamento de pessoal no Brasil para que o paiacutes possa desenvolver projetos similares de forma independente t) utilizar o material bioloacutegico e os dados obtidos na pesquisa exclusivamente para a finalidade prevista no seu protocolo u) levar em conta nas pesquisas realizadas em mulheres em idade feacutertil ou em mulheres graacutevidas a avaliaccedilatildeo de riscos e benefiacutecios e as eventuais interferecircncias sobre a fertilidade a gravidez o embriatildeo ou o feto o trabalho de parto o puerpeacuterio a lactaccedilatildeo e o receacutem-nascido v) considerar que as pesquisas em mulheres graacutevidas devem ser precedidas de pesquisas em mulheres fora do periacuteodo gestacional exceto quando a gravidez for o objetivo fundamental da pesquisa x) propiciar nos estudos multicecircntricos a participaccedilatildeo dos pesquisadores que desenvolveratildeo a pesquisa na elaboraccedilatildeo do delineamento geral do projeto e z) descontinuar o estudo somente apoacutes anaacutelise das razotildees da descontinuidade pelo CEP que a aprovou

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pesquisa Em outras palavras haacute experimentos em benefiacutecio do paciente e experimentos em benefiacutecio da ciecircncia Ainda no preacircmbulo da Declaraccedilatildeo de Helsinque encontramos que A finalidade da pesquisa meacutedica envolvendo seres humanos deve ser o aperfeiccediloamento do diagnoacutestico procedimentos terapecircuticos e profilaacuteticos e a compreensatildeo da etiologia e da patologia da doenccedila Conjugando essa afirmaccedilatildeo com a anterior podemos extrair que uma determinada pessoa ou populaccedilatildeo pode ser objeto de pesquisa para desvendar doenccedilas que a afligem ou para desnudar as razotildees pelas quais eacute menos suscetiacutevel ou-natildeo eacute atingida por determinada moleacutestia que afeta aos demais seres humanos

A partir dessas observaccedilotildees podemos considerar para os fins do nosso estudo que as experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas teleologicamente em dois grupos a) aquelas cujos objetivos possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas as quais chamaremos de pesquisas com justificativa intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de terceiros as quais denominaremos pesquisas com justificativa extrinseca Temos como exemplo na primeira situaccedilatildeo os experimentos cientiacuteficos para desvendar o porquecirc de uma determinada coletividade ser atingida por taxas elevadas de uma certa doenccedila e na segunda uma pesquisa para revelar as razotildees pelas quais certas pessoas natildeo desenvolvem uma moleacutestia com o objetivo de descobrir uma vacina ou um medicamento para os demais

Entretanto em todo experimento seraacute necessaacuterio averiguar se a justificativa - seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima Isso porque o fato de uma pesquisa ter por objetivo um tratamento mais eficiente ou a cura de certas doenccedilas natildeo legitima por si soacute a utilizaccedilatildeo de pessoas como sujeito de pesquisa mesmo que elas sofram da moleacutestia e possam vir a ser beneficiadas Natildeo se deve perder de vista aliaacutes que se o conhecimento puder ser obtido por outro meio a utilizaccedilatildeo de seres humanos justamente por ser desnecessaacuteria seraacute ilegiacutetima95 Ademais soacute pelo fato de ser intriacutenseca a justificativa natildeo seraacute necessariamente legiacutetima Por outro lado a circunstacircncia isoladamente considerada do eventual resultado da experimentaccedilatildeo ser absolutamente indiferente ao sujeito de pesquisa natildeo torna a sua participaccedilatildeo ilegiacutetima Em outras palavras a justificativa soacute por ser extrinseca natildeo seraacute necessariamente ilegiacutetima

Vale relembrar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 - A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter natildeo possa ser obtido por outro meio

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A razatildeo disso reside na afirmaccedilatildeo de que como se sabe desde Kant o Homem deve ser tratado como um fim em si mesmo e natildeo como instrumento De fato eacute em Kant que o Homem ganha status de valor absoluto manifesto no imperativo praacutetico expresso na maacutexima segundo a qual Ages de tal maneira que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio 96

Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

Quando se trata de experimentaccedilatildeo com justificativa intriacutenseca a razatildeo legitimadora pode estar no objetivo de beneficiar os proacuteprios sujeitos da pesquisa algueacutem se submete a uma experimentaccedilatildeo na tentativa de auferir uma vantagem em seu bem-estar fiacutesico ou mental

Jaacute no caso da justificativa extriacutenseca poder-se-ia objetar a realizaccedilatildeo da experimentaccedilatildeo com suposto fundamento na Resoluccedilatildeo 19696 cujo item III 1 letra d vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila Ora se em uma determinada situaccedilatildeo algueacutem participa do experimento sem que haja qualquer possibilidade de benefiacutecio fiacutesico ou mental para si a partir do resultado da pesquisa e considerando que a mesma Resoluccedilatildeo veda qualquer forma de remuneraccedilatildeo do sujeito da pesquisa (item 1110) qual a vantagem significativa que poderaacute essa pessoa auferir para justificar a sua participaccedilatildeo

Ao nosso ver a interpretaccedilatildeo desse ponto da Resoluccedilatildeo natildeo deve ser literal nem assistemaacutetica97 devendo ser considerada a incidecircncia de um outro princiacutepio ainda

Op cit p 69 Em comento a este imperativo Francesca Puigpclat Marti apregoa que La concepcioacuten liberal asocia a esta expresioacuten una idea comuacuten en Ia reflexioacuten eacutetica de raigambre kantiana el hombre es un fin en si mismo un sujeto y no un objeto Seguacuten Kant en el sistema de Ia natureza el hombre (homo phaenomenon animal rationale) es un ser de escasa importancia y tiene con los demaacutes animales en tanto que productos de Ia tierra un precio comuacuten () Ahora bien el hombre considerado como persona es dccir como sujeto de una razoacuten praacutetico-moral estaacute situado por encima de todo precio porque como tal (homo noumenon) no puede valorarse soacutelo como meacutedio para fines ajenos incluso para sus proprios fines sino como fin en siacute mismo es decir posee una dignidad(un valor interno absoluto) gracias a la cual infunde respeto haciacutea eacutel a todos los demaacutes seres racionales dei mundo puede medirse con cualquier otro de esta clase y valorarse en pie de igualdad En la medida en que seguacuten Kant el hombre existe como fin en siacute mismo y no soacutelo como meacutedio para usos cualesquiera de una u otra voluntad se puede formular el siguiente principio praacutetico supremo obra de tal modo que uses la humanidad tanto en tu persona como en la persona de cualquier otro siempre como un fin al mismo tiempo y nunca solamente como un meacutedio MARTIacute Francesca Puigpelat Clonacioacuten dignidad humana y constitucioacuten Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo ano II n 42 janmar p37-64 2003

Natildeo se interpreta o direito em tiras aos pedaccedilos () Um texto de direito isolado destacado desprendido do sistema juriacutedico natildeo expressa significado normativo algum Cf GRAU Eros Roberto Ensaio e

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que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que eacute o da solidariedade Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita entendemos que a sua aplicaccedilatildeo eacute cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele dispositivo (item 1111 letra d da Resoluccedilatildeo 19696) afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-humanitaacuteria Aleacutem disso outros documentos de importacircncia para a Bioeacutetica fazem referecircncia agrave solidariedade98 De fato natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao respeito agrave dignidade da pessoa humana99

Logo no nosso pensar mesmo que natildeo haja nenhum benefiacutecio ou vantagem direta ao sujeito de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma justificativa eacutetica a qual pode ter como nuacutecleo a intenccedilatildeo solidaacuteria dessa pessoa e do pesquisador de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e consequumlentemente para todos os demais seres humanos

A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica100

Estas exigecircncias no acircmbito normativo brasileiro estatildeo listadas na Resoluccedilatildeo 19696 especialmente no item III3

Algumas delas satildeo puramente objetivas e uma vez desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca E o caso por exemplo da necessidade de consentimento preacutevio e informado

discurso sobre a interpretaccedilatildeoaplicaccedilatildeo do Direito Satildeo Paulo Malheiros Editores 2002 p 34 98

O art 1deg da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos proclama que todas pessoas devem agir em relaccedilatildeo umas agraves outras com espiacuterito de fraternidade Alem disso a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO em um dos seus considerandos observa que os seres humanos tecircm um papel importante na proteccedilatildeo um do outro tratando expressamente da solidariedade e cooperaccedilatildeo no seu art 13 segundo o qual A solidariedade entre os seres humanos e cooperaccedilatildeo internacional para este fim devem ser estimuladas 99 Ela [a solidariedade] eacute o fecho de aboacutebada do sistema de princiacutepios eacuteticos pois complementa e aperfeiccediloa a liberdade a igualdade e a seguranccedila () E um erro considerar que no mundo da natureza sobretudo no mundo animal natildeo exista solidariedade e que ela seja uma criaccedilatildeo poliacutetica Muito pelo contraacuterio pode-se dizer que a biosfera forma naturalmente um sistema solidaacuterio e que o rompimento desse sistema eacute sempre obra do homem O proacuteprio Darwin bem advertiu que a expressatildeo struggle for Existence fora por ele usada em sentido amplo e matafoacuterico incluindo a dependecircncia de um ser em relaccedilatildeo a outro bem como incluindo (o que eacute mais importante) natildeo apenas a vida do indiviacuteduo mas o ecircxito em deixar descendentes Os zooacutelogos jaacute observaram que o processo de seleccedilatildeo natural deu mais vantagens bioloacutegicas aos grupos que cuidavam de seus membros natildeo reprodutivos do que agravequeles que abandonavam ou matavam os anciatildeos pois a capacidade de reproduccedilatildeo global dos grupos altruiacutestas eacute assim singularmente reforccedilada Cf COMPARATO Faacutebio Konder Eacutetica direito moral e religiatildeo no mundo moderno Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 p 577578

100

Natildeo eacute agrave toa portanto que como jaacute visto a Resoluccedilatildeo 19696 vincula a eticidade na pesquisa aos princiacutepios da Bioeacutetica tanto no seu preacircmbulo como no seu item III 1

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1214 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

dos participantes - ou dos seus representantes se incapazes - 101 cuja ausecircncia macula o princiacutepio da autonomia Tambeacutem eacute objetiva a exigecircncia da pesquisa estar fundamentada na experimentaccedilatildeo preacutevia realizada em laboratoacuterios animais ou outros fatos cientiacuteficos102 cuja inobservacircncia implica em ofensa agrave natildeo-maleficecircncia Nessas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou-natildeo vir a ter um benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

Outras exigecircncias entretanto possuem um certo grau de subjetividade em maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as circunstacircncias faacuteticas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo de valor iacutensito a cada um Desse tipo vg eacute a exigecircncia segundo a qual a pesquisa deve ser adequada aos princiacutepios cientiacuteficos que a justifiquem e ter possibilidades concretas de responder a incertezas103 A avaliaccedilatildeo quanto ao cumprimento ou-natildeo da exigecircncia e portanto quanto agrave legitimidade ou ilegitimidade da utilizaccedilatildeo de seres humanos tem um niacutetido caraacuteter subjetivo podendo variar de pessoa para pessoa

Quando tratamos de exigecircncias subjetivas haacute ainda um outro aspecto a ser apontado deveraacute ser levado em conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca Em outras palavras a circunstacircncia do sujeito de pesquisa poder vir a ser beneficiado ou-natildeo pelo resultado do experimento deve ser considerada na verificaccedilatildeo da legitimidade eacutetica quando da ponderaccedilatildeo sobre o cumprimento das exigecircncias subjetivas

Tomemos como exemplo a exigecircncia de que devem prevalecer sempre as probabilidades dos benefiacutecios esperados sobre os riscos previsiacuteveis104 Ora essa exigecircncia eacute subjetiva pois envolve uma ponderaccedilatildeo cujo resultado estaacute vinculado a um juiacutezo de valor sobre a natureza e a importacircncia ou peso de cada benefiacutecio ou risco provaacutevel Ao nosso entender quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal no resultado do experimento tratando-se portanto de justificativa extriacutenseca eacute oacutebvio que os riscos a que se submete devem ser considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o benefiacutecio esperado tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa submetida ao experimento

101 Item III3 letra g da Resoluccedilatildeo 19696 102 Item III3 letra b da Resoluccedilatildeo 19696 103 Item III3 letra a da Resoluccedilatildeo 19696 104 Item III3 letra d da Resoluccedilatildeo 19696

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Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1215

Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila105 Por outro lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

A proacutepria realizaccedilatildeo ou-natildeo da pesquisa pode depender dessa ponderaccedilatildeo jaacute que a Resoluccedilatildeo n 19696 prevecirc que havendo riscos potenciais as pesquisas envolvendo seres humanos poderatildeo ser admitidas quando oferecerem elevada possibilidade de gerar conhecimento para entender prevenir ou aliviar um problema que afete o bem-estar dos sujeitos da pesquisa e de outros indiviacuteduos 106

Aleacutem disso parece ser mais aceitaacutevel eticamente submeter o ser humano a riscos maiores quando a justificativa eacute intriacutenseca do que quando ela eacute extriacutenseca priorizando assim a sua preservaccedilatildeo Nesse sentido a Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO estipula que uos interesses e o bem-estar do indiviacuteduo devem ter prioridade sobre o interesse exclusivo da ciecircncia ou da sociedade 107

Natildeo se pode esquecer ainda que por forccedila dos princiacutepios da beneficecircncia da natildeo-maleficecircncia e da justiccedila eacute preciso considerar na mediccedilatildeo da legitimidade as peculiaridades individuais ou coletivas dos sujeitos de pesquisa especialmente no que concerne agraves suas eventuais vulnerabilidades bem como cuidar para que natildeo lhes seja imposto um mal desnecessaacuterio ou desproporcional O princiacutepio da justiccedila como vimos implica necessariamente em uma acurada atenccedilatildeo no recrutamento daqueles que seratildeo sujeitos da pesquisa os quais sempre que possiacutevel devem ter garantido para si pelo pesquisador a fruiccedilatildeo dos benefiacutecios da experimentaccedilatildeo natildeo sendo equacircnime impor-Ihes ocircnus excessivos108 especialmente se vulneraacuteveis Natildeo eacute agrave toa portanto que pode

105 O princiacutepio da justiccedila implica atenccedilatildeo especial agraves regras de recrutamento de participantes de experimentos Natildeo se pode fazer experimentos apenas com determinados grupos - pacientes de enfermaria asilados prisioneiros - simplesmente porque eles estatildeo agrave disposiccedilatildeo e em situaccedilatildeo de dependecircncia Isso eacute injusto Cf VIEIRA Socircnia HOSSNE William Saad Experimentaccedilatildeo cm seres humanos Revista Ciecircncia e Ensino n 2 junho 1997 p 7-9 Item Vl aliacutenea a

107 Art 3 aliacutenea b 108 bull

Consideramos que deva ser modificada a praacutetica muito comum em nosso paiacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de pesquisados provenientes das camadas mais desfavorecidas da sociedade ou de outros grupos vulneraacuteveis mas que posteriormente natildeo poderatildeo se beneficiar dos resultantes positivos das pesquisas em que tomaram parte mesmo tendo enfrentado riscos de danos psico-sociais As pesquisas realizadas nesses grupos devem poder lhes trazer benefiacutecios e os pesquisadores sempre que possiacutevel devem garantir retomo dos benefiacutecios resultados das pesquisas para os sujeitos individuais e coletivos que nelas participarem Cf FORTES Paulo Antonio de Carvalho As Pesquisas em Seres Humanos e o Principio Eacutetico da Justiccedila

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1216 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

haver exigecircncias eacuteticas especiacuteficas para pesquisas com serem humanos em situaccedilatildeo de vulnerabilidade109

Assim sempre seraacute preciso dosar a equaccedilatildeo riscobeneficio ponderando em cada caso concreto se os eventuais benefiacutecios satildeo suficientes para motivar a exposiccedilatildeo das pessoas ao processo de experimentaccedilatildeo Pode ser que diante de certas peculiaridades ou vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima110 Aliaacutes como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis justamente porque como jaacute dito o ser humano natildeo pode ser tratado como mero instrumento1

E natildeo eacute soacute Aleacutem disso em princiacutepio a pesquisa com pessoas ou grupos vulneraacuteveis deve ter uma justificativa intriacutenseca2 Entretanto sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas em experimentos extriacutensecos agrave luz da solidariedade como no caso do grupo vulneraacutevel ser imune a determinada moleacutestia por razatildeo ainda desconhecida o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias objetivas agrave risca deve ser ainda mais

Cadernos de Eacutetica em Pesquisa Ano 1 n 2 p 22-23 nov 1998 109

A tiacutetulo de exemplo a Resoluccedilatildeo 19696 traz alguns requisitos especiacuteficos para o consentimento livre e esclarecido de pessoas ou populaccedilotildees vulneraacuteveis no item IV3

110 Um caso de niacutetida violaccedilatildeo aos princiacutepios bioeacuteticos em pesquisas envolvendo grupo vulneraacutevel foi o jaacute mencionado Estudo da caacuterie dental de Vipeholm Conforme um dos colaboradores da pesquisa utilizar doentes mentais ainda que natildeo voluntaacuterios foi a melhor opccedilatildeo diante do fato de que o principal problema da sauacutede puacuteblica era justamente o das doenccedilas dentaacuterias razatildeo pela qual os fins justificariam os meios ainda mais considerando que o estudo foi utilizado em todo o mundo (Krasse B Sueacutecia usou deficiente mental como cobaia Folha de Satildeo Paulo 23 Set 1997 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu O conhecimento de usuaacuterios de serviccedilos puacuteblicos de sauacutede envolvidos em pesquisas cliacutenicas sobre seus direitos 2005 p 61 Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Faculdade de Odontologia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo) sendo faacutecil criticar o fato depois de consumado (Krasse B The Vipeholm dental caries study recollections and reflections 50 years later J Dent Res 2001 80(9) 1785-8 Apud SAKAGUTI Nelson Massanobu op cit p 61) Mais uma vez cabiacutevel rememorar a Resoluccedilatildeo 19696 III3 A pesquisa em qualquer aacuterea do conhecimento envolvendo seres humanos deveraacute observar as seguintes exigecircncias () j) ser desenvolvida preferencialmente em indiviacuteduos com autonomia plena Indiviacuteduos ou grupos vulneraacuteveis natildeo devem ser sujeitos de pesquisa quando a informaccedilatildeo desejada possa ser obtida atraveacutes de sujeitos com plena autonomia a menos que a investigaccedilatildeo possa trazer benefiacutecios diretos aos vulneraacuteveis Nestes casos o direito dos indiviacuteduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado desde que seja garantida a proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida

112 A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO eacute clara ao afirmar em seu art 7 aliacutenea b no que diz respeito a indiviacuteduos sem a capacidade para fornecer consentimento que a pesquisa soacute deve ser realizada para o beneficio direto agrave sauacutede do indiviacuteduo envolvido estando sujeita agrave autorizaccedilatildeo e agraves condiccedilotildees de proteccedilatildeo prescritas pela legislaccedilatildeo e caso natildeo haja nenhuma alternativa de pesquisa de eficaacutecia comparaacutevel que possa incluir sujeitos de pesquisa com capacidade para fornecer consentimento

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1217

rigoroso na ponderaccedilatildeo do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da autonomia e justiccedila expondo tais pessoas a riscos miacutenimos menores ateacute do que aqueles normalmente empregados em pesquisas com justificativa intriacutenseca3

Se essas diretrizes natildeo forem observadas teremos uma pesquisa carente de justificativa eacutetica e de legitimidade

6 Conclusotildees

Em virtude dos limites inerentes agrave nossa abordagem nessas consideraccedilotildees finais natildeo apresentaremos verdades irrefutaacuteveis e definitivas sobre um tema que ainda carece de um importante debate acadecircmico e normativo Com efeito o que pretendemos modestamente foi evidenciar alguns paradigmas que possam ensejar a conciliaccedilatildeo da dignidade da pessoa humana com a continuidade dos processos de investigaccedilatildeo cientiacuteficos realizados em seres humanos Para tanto podemos sintetizar nosso pensamento nas seguintes conclusotildees

a) O desenvolvimento da ciecircncia mormente em aacutereas afeitas agrave vida e a ocorrecircncia de pesquisas francamente contraacuterias agrave dignidade humana como ocorrido em vaacuterias passagens da Segunda Guerra ensejaram o surgimento da Bioeacutetica como um novo ramo do conhecimento

b) Deve-se limitar a atuaccedilatildeo da Bioeacutetica aos casos em que haacute conflito de valores quando dois princiacutepios eacutetica e moralmente admissiacuteveis natildeo podem coexistir

c) Haacute iacutentima correlaccedilatildeo entre os princiacutepios gerais da Bioeacutetica Autonomia Beneficecircncia e Justiccedila aleacutem da Natildeo-Maleficecircncia - e as pesquisas em seres humanos

113 Ainda conforme o art 7 aliacutenea b da Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO quando se trata de pessoas incapazes Pesquisas sem potencial beneficio direto agrave sauacutede soacute devem ser realizadas excepcionalmente com a maior restriccedilatildeo expondo o indiviacuteduo apenas a risco e desconforto miacutenimos e quando se espera que a pesquisa contribua com o benefiacutecio agrave sauacutede de outros indiviacuteduos na mesma categoria sendo sujeitas agraves condiccedilotildees prescritas por lei e compatiacuteveis com a proteccedilatildeo dos direitos humanos do indiviacuteduo A recusa de tais indiviacuteduos em participar de pesquisas deve ser respeitada

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1218 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

d) Os princiacutepios contribuem para a concepccedilatildeo de uma Bioeacutetica

pluralista aberta e receptiva e satildeo um poderoso instrumento

para direcionar as decisotildees a um vieacutes eticamente ajustado

razotildees pelas quais eacute descabida a pretensatildeo de afastaacute-los dos

debates bioeacuteticos

e) O avanccedilo tecnoloacutegico traz cada vez mais a diminuiccedilatildeo de

limites teacutecnicos ao ser humano o que conduz ao debate sobre a

necessidade de imposiccedilatildeo de outros tipos de limitaccedilotildees para

evitar eventuais abusos especialmente na aacuterea biomeacutedica

elevando a influecircncia da Bioeacutetica pois eacute atraveacutes dela que

demarcaremos os limites do agir humano nas ciecircncias ligadas agrave

vida

0 A concretizaccedilatildeo dos objetivos atuais da humanidade

especialmente em relaccedilatildeo agrave expectativa de vida depende

dentre outros fatores da pesquisa cientiacutefica e da

experimentaccedilatildeo em seres humanos Poreacutem eacute preciso tomar o

Homem como sujeito de pesquisa sem trataacute-lo como mero

instrumento mas como um fim em si mesmo

g) A praacutetica de inuacutemeras violaccedilotildees ao ser humano sob o aacutelibi do

interesse cientiacutefico levadas a cabo no periacuteodo da Segunda

Guerra trouxeram agrave tona a questatildeo da eacutetica na pesquisa

evidenciando a necessidade de priorizar a dignidade humana e

de refletir acerca da regulamentaccedilatildeo e dos limites da pesquisa

em seres humanos gerando uma seacuterie de normas internacionais

e nacionais a exemplo do Coacutedigo de Nuremberg da

Declaraccedilatildeo de Helsinque e no Brasil da Resoluccedilatildeo n 19696

do Conselho Nacional de Sauacutede

h) Dentre os principais aspectos da Resoluccedilatildeo n 19696 do

Conselho Nacional de Sauacutede encontramos a vinculaccedilatildeo da

experimentaccedilatildeo em seres humanos agrave observacircncia da

principiologia da Bioeacutetica a explicitaccedilatildeo de um rol de

exigecircncias para a eticidade na pesquisa as definiccedilotildees de

diversos termos e conceitos indispensaacuteveis agrave Bioeacutetica como o

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1219

consentimento livre e esclarecido a vulnerabilidade e a

incapacidade a criaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional de Eacutetica em

Pesquisa -CONEP e a regulamentaccedilatildeo dos Comitecircs de Eacutetica e

Pesquisa - CEPs

i) O consentimento livre e esclarecido decorre da adoccedilatildeo do

princiacutepio da autonomia e pressupotildee dentre outras premissas a

capacidade do sujeito da pesquisa compreender todos os

aspectos envolvidos principalmente os riscos e os danos

possiacuteveis

j) A vulnerabilidade natildeo pode ser desconsiderada pelo

pesquisador e lhe impotildee cuidados eacuteticos adicionais ocorrendo

quando as pessoas ou grupos que satildeo tomados por objeto de

estudo por quaisquer motivos possuem a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo reduzida especialmente quanto agrave

compreensatildeo sobre o experimento e a possibilidade de

livremente consentir com a pesquisa e dela desistir

k) A incapacidade ocorre quando as pessoas que seratildeo estudadas

na pesquisa natildeo possuem capacidade civil para dar o seu

consentimento soacute podendo ser levada adiante a pesquisa com a

intervenccedilatildeo de seus representantes legais implicando tambeacutem

no dever do pesquisador de cercar-se de cautelas eacuteticas

redobradas

1) As experimentaccedilotildees em seres humanos podem ser divididas

teleologicamcnte em dois grupos a) aquelas cujos objetivos

possuem ligaccedilatildeo direta com o bem-estar das pessoas

observadas as quais chamamos de pesquisas com justificativa

intriacutenseca e b) aquelas cujos objetivos natildeo possuem ligaccedilatildeo

direta com o bem-estar das pessoas observadas mas sim de

terceiros as quais denominamos pesquisas com justificativa

extrinseca

m) Em todo experimento eacute necessaacuterio averiguar se a justificativa -

seja ela intriacutenseca ou extrinseca - para a utilizaccedilatildeo de seres

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1220 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

humanos como objeto de pesquisa eacute ou-natildeo legiacutetima jaacute que a

justificativa soacute pelo fato de ser intriacutenseca natildeo seraacute

necessariamente legiacutetima nem tampouco soacute por ser extriacutenseca

seraacute necessariamente ilegiacutetima

n) Uma razatildeo eacutetica e moralmente aceitaacutevel que legitima a

realizaccedilatildeo de experimentos em seres humanos pode ser

encontrada tanto nas pesquisas com justificativa intriacutenseca

como nas pesquisas com justificativa extriacutenseca

o) A interpretaccedilatildeo do item III1 letra d da Resoluccedilatildeo n 19696

que vincula a eticidade da pesquisa agrave existecircncia de vantagens

significativas para os sujeitos da pesquisa sob pena de

infraccedilatildeo ao princiacutepio da justiccedila natildeo deve ser literal nem

assistemaacutetica devendo ser considerada a incidecircncia de um

outro principio ainda que natildeo seja especiacutefico da Bioeacutetica que

eacute o da solidariedade

p) Embora natildeo haja menccedilatildeo expliacutecita ao princiacutepio da

solidariedade na Resoluccedilatildeo n 19696 a sua aplicaccedilatildeo eacute

cabiacutevel pois o mesmo se encontra impliacutecito quando aquele

texto afirma que a eticidade da pesquisa implica em sua

relevacircncia social e na manutenccedilatildeo da sua destinaccedilatildeo soacutecio-

humanitaacuteria

q) Logo mesmo que natildeo haja nenhum beneficio direto ao sujeito

de pesquisa a sua participaccedilatildeo no experimento poderaacute ter uma

justificativa a qual pode ser a intenccedilatildeo sua e do pesquisador

de promover benefiacutecios para a ciecircncia em geral e

consequumlentemente para todos os demais seres humanos Aleacutem

disso natildeo eacute possiacutevel discutir temas como vida natureza e eacutetica

sem passar pela questatildeo da solidariedade que eacute inerente ao

respeito agrave dignidade da pessoa humana

r) A legitimidade da justificativa da realizaccedilatildeo de pesquisas em

seres humanos entretanto ainda que presente a solidariedade

poderaacute ser afastada se natildeo forem observadas certas exigecircncias

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

Bioeacutetica e Pesquisas em Seres Humanos 1221

diretamente ligadas aos princiacutepios da Bioeacutetica listadas na

Resoluccedilatildeo n 19696 especialmente no item III3

s) Algumas exigecircncias satildeo puramente objetivas e uma vez

desatendidas levam em qualquer caso agrave ilegitimidade da

justificativa natildeo importando se intriacutenseca ou extriacutenseca

t) Nas hipoacuteteses de exigecircncias objetivas eacute indiferente se a pessoa

ou populaccedilatildeo sujeito de pesquisa pode ou natildeo vir a ter um

benefiacutecio proacuteprio com o resultado da experimentaccedilatildeo

u) Outras exigecircncias possuem um certo grau de subjetividade em

maior ou menor escala por estar a legitimidade eacutetica da

pesquisa vinculada a uma ponderaccedilatildeo insuscetiacutevel de afericcedilatildeo

exata e imediata e cujo resultado pode variar de acordo com as

circunstacircncias faacutetiacutecas especiacuteficas de cada caso ou com o juiacutezo

de valor iacutensito a cada um

v) Quando se tratar de exigecircncias subjetivas deveraacute ser levado em

conta no momento da ponderaccedilatildeo o fato da pesquisa ter uma

justificativa intriacutenseca ou extriacutenseca

w) Quando o sujeito de pesquisa participa por solidariedade ou

sentimento humanitaacuterio sem qualquer outro interesse pessoal

no resultado do experimento tratando-se portanto de

justificativa extriacutenseca os riscos a que se submete devem ser

considerados com intensidade diferente daquela que teriam se a

justificativa fosse intriacutenseca ou seja se o beneficio esperado

tivesse vinculaccedilatildeo direta com o bem-estar proacuteprio da pessoa

submetida ao experimento

x) Quanto mais extriacutenseca for a justificativa maior o risco do

sujeito de pesquisa terminar servindo apenas como mero

instrumento o que violaria o princiacutepio da justiccedila e por outro

lado quando um experimento possui justificativa intriacutenseca eacute

menos provaacutevel que a participaccedilatildeo do sujeito de pesquisa

consubstancie uma utilizaccedilatildeo de um ser humano encarado

Revisla da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 101 p 1187 - 1227 jandez 2006

1222 Paulo Henrique de Oliveira ltpound Roberio Nunes dos Anjos Filho

somente como simples objeto jaacute que o trabalho eacute dirigido a

algo que poderaacute lhe beneficiar diretamente

y) Pode ser que diante de certas peculiaridades ou

vulnerabilidades do sujeito de pesquisa ou mesmo

considerando certas caracteriacutesticas do experimento a pesquisa

em si mesma consubstancie um malefiacutecio tatildeo grande que a sua

realizaccedilatildeo com aquelas pessoas venha a carecer de uma razatildeo

eacutetica e moralmente aceitaacutevel sendo ilegiacutetima

z) Como regra geral se a pesquisa puder ser realizada com outras

pessoas natildeo se deve trabalhar com populaccedilotildees vulneraacuteveis

mas sendo imprescindiacutevel a participaccedilatildeo delas agrave luz da

solidariedade o pesquisador aleacutem de cumprir as exigecircncias

objetivas agrave risca deve ser ainda mais rigoroso na ponderaccedilatildeo

do cumprimento das exigecircncias subjetivas ligadas agrave

observacircncia dos princiacutepios da Bioeacutetica especialmente os da

autonomia e justiccedila

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