BNDES (2008) - Bioetanol de cana-de-açúcar energia para o desenvolvimento.pdf

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  • B615b Bioetanol de cana-de-acar : energia para o desenvolvimento sustentvel / organizao BNDES e CGEE. Rio de Janeiro : BNDES, 2008.

    316 p.

    ISBN: 978-85-87545-24-4

    1. Bioenergia. 2. Biocombustvel. 3. Bioetanol. 4. Cana-de-acar. I. Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social. II. Centro de Gesto e Estudos Estratgicos.

    CDD 333.953

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  • Equipe TcnicaCoordenao BNDES e CGEE

    BNDESArmando Mariante Carvalho JuniorJlio Cesar Maciel Ramundo Carlos Eduardo de Siqueira Cavalcanti Paulo de S Campello Faveret Filho (superviso)Nelson Isaac Pfefer (superviso)Sergio Eduardo Silveira da Rosa Artur Yabe Milanez

    CGEEAntonio Carlos GalvoMarcelo Khaled Poppe

    Organizao e responsabilidade tcnicaLuiz Augusto Horta Nogueira Unifei

    Redao e consultoriaLuiz Augusto Horta Nogueira UnifeiJoaquim Eugnio Abel Seabra UnicampGustavo Best consultor FAO/CepalManoel Regis Lima Verde Leal CeneaMarcelo Khaled Poppe CGEE

    Colaborao institucional Cepal e FAO

    Cepal

    Adrin Rodrguez Jos Javier GmezJoseluis SamaniegoManlio CovielloMartine Dirven

    Agradecimentos

    Adhemar Altieri UnicaAlfred Szwarc Unica Aluysio Antonio da Motta Asti BNDESAndr Correa do Lago MREAntonio Barros de Castro BNDESAntonio Dias Leite consultorArnaldo Vieira de Carvalho BIDEdmar Fagundes de Almeida UFRJ

    FAO

    Alberto Saucedo Guilherme Schuetz

    Isaias de Carvalho Macedo UnicampJoo Carlos Ferraz BNDESLuis Augusto Barbosa Cortez UnicampMarcio Nappo UnicaRafael Capaz UnifeiRafael Pontes Feij BNDESRogrio Cezar de Cerqueira Leite UnicampTammy Klein IFQC

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  • Sumrio

    Prefcio 13

    Apresentao 17

    1 Bioenergia e biocombustveis 23

    1.1 Fundamentos da bioenergia 251.2 Evoluo da bioenergia e dos biocombustveis 32

    2 Etanol como combustvel veicular 39

    2.1 Dimenses tcnicas e ambientais do uso do etanol 412.2 Aspectos econmicos e institucionais do etanol combustvel 542.3 Cadeias logsticas para o etanol 60

    3 Produo de bioetanol 67

    3.1 Matrias-primas e tecnologias de produo do bioetanol 693.2 Bioetanol de cana-de-acar 723.3 Bioetanol de milho 833.4 Bioetanol de outras matrias-primas 893.5 Produtividade, emisses e balanos energticos 92

    4 Co-produtos do bioetanol de cana-de-acar 103

    4.1 Acar e derivados 1054.2 Bioeletricidade 1084.3 Outros co-produtos do bioetanol de cana-de-acar 118

    5 Tecnologias avanadas na agroindstria da cana-de-acar 123

    5.1 Hidrlise de resduos lignocelulsicos 1255.2 Gaseificao para produo de combustveis e eletricidade 1335.3 Uso de bioetanol como insumo petroqumico ou alcoolqumico 1405.4 Produo de plsticos biodegradveis 1435.5 Biorrefinaria: mltiplos produtos e uso integral da matria-prima 146

    6 Bioetanol de cana-de-acar no Brasil 151

    6.1 Evoluo do bioetanol combustvel no Brasil 1536.2 Agroindstria da cana-de-acar no Brasil 1626.3 Pesquisa e desenvolvimento tecnolgico 169

    7 Sustentabilidade do bioetanol de cana-de-acar: a experincia brasileira 179

    7.1 Ambiente e energia da cana-de-acar 1817.2 Uso do solo 196

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  • 7.3 Viabilidade econmica do bioetanol de cana-de-acar 2037.4 Gerao de emprego e renda na agroindstria do bioetanol 2097.5 Certificao e sustentabilidade na agroindstria do bioetanol 216

    8 Perspectivas para um mercado mundial de biocombustveis 221

    8.1 Potencial global para produo de biocombustveis 2238.2 Oferta e demanda de biocombustveis: quadro atual 2298.3 Projees para oferta e demanda de bioetanol em 20102015 2348.4 Polticas de suporte e fomento aos biocombustveis 2498.5 Conexes entre alimentos e bioenergia 2528.6 Fatores de induo para um mercado global de bioetanol 264

    9 Uma viso de futuro para o bioetanol combustvel 271

    Anexos 281

    Referncias 287

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  • ndice de boxes, figuras, grficos e tabelas

    Boxes

    O etanol em motores aeronuticos 53As possibilidades do acar orgnico 107Evoluo da produo de eletricidade em uma usina brasileira 115Primeiros passos da etanolqumica no Brasil 142Melhoramento gentico e disponibilidade de cultivares 171

    Figuras

    1 O processo de fotossntese 262 Pluviosidade mdia anual 283 Rotas tecnolgicas para produo de bioenergia 324 Solubilidade da gua em misturas gasolina/etanol 475 Modelo de produo, estoque e demanda de etanol 616 Logstica da gasolina e do etanol no Brasil 657 Rotas tecnolgicas para produo de etanol 708 Estrutura tpica da biomassa da cana 729 Distribuio das 350 usinas de processamento de cana-de-acar no Brasil 7710 Diagrama de fluxo da produo de acar e bioetanol de cana 7911 Estrutura tpica da biomassa do milho 8412 Distribuio da produo de milho nos Estados Unidos 8513 Diagrama de fluxo do processo via mida para a produo de bioetanol de milho 8714 Diagrama de fluxo do processo via seca para a produo de bioetanol de milho 8815 Diagrama do ciclo de vida de um biocombustvel 9316 Anlise de sensibilidade para o uso e a relao de energia para o bioetanol de cana-de-acar no cenrio atual (2005/2006) 9717 Anlise de sensibilidade para as emisses de GEE para o bioetanol de cana-de-acar no cenrio atual (2005/2006) 9818 Configurao usual do sistema de co-gerao na agroindstria canavieira 11019 Esquema do processo de produo de etanol por meio da hidrlise da biomassa 12620 Representao esquemtica de um sistema BIG/GT-CC 13521 Fluxograma geral para produo de metanol, hidrognio e diesel via gaseificao de biomassa (Fischer-Tropsch) 13722 Diagrama de fluxo da produo de PHB com base no acar da cana 14623 Ciclo integrado completo agri-biocombustvel-biomaterial-bioenergia para tecnologias sustentveis 147

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  • 24 Localizao das novas usinas de acar e etanol no Brasil 16525 Ocupao percentual das principais variedades de cana-de-acar no Brasil de 1984 a 2003 17226 Exemplo de imagem de satlite utilizada no monitoramento da cobertura vegetal 19327 Potencial para o cultivo da cana sem irrigao 20028 Potencial para o cultivo da cana com irrigao de salvao 20029 reas cultivadas na cultura da cana-de-acar 20230 Viso geral dos principais elementos usados na metodologia de avaliao do potencial bioenergtico 22431 Contribuio de bioenergia oferta primria e secundria de energia em 2007 230

    Grficos

    1 Usos da superfcie cultivvel na Terra 292 Participao da bioenergia na oferta interna de energia no Brasil 343 Contribuio da bioenergia em funo da renda per capita 364 Evoluo das emisses de veculos novos no Brasil 505 Preo de indiferena do etanol anidro em funo do preo do acar 556 Preo internacional do acar (Contrato no 11 NYBOT) 567 Preo de indiferena do etanol frente ao acar e preo internacional da gasolina 578 Produtividade mdia de etanol por rea para diferentes culturas 719 Distribuio da produo mundial de etanol em 2006 7110 Principais pases produtores de cana-de-acar em 2005 7311 Consumo de acar per capita em diversos pases 10812 Capacidade dos sistemas de co-gerao a serem instalados em usinas de acar e bioetanol no Estado de So Paulo nos prximos anos 11413 Valor do bagao utilizado para gerao de eletricidade 11414 Valor do bagao utilizado para produo de etanol 11615 Uso de energia (a) e emisses de GEE (b) para a produo de plsticos 14416 Evoluo da produo de cana-de-acar, etanol e acar no Brasil 15917 Teor mdio de etanol anidro na gasolina brasileira 16018 Evoluo da produo de veculos a etanol hidratado e de sua participao nas vendas de veculos novos 16019 Fontes primrias de energia utilizadas no Brasil em 2007 16120 Distribuio da capacidade anual de processamento das usinas de acar e etanol no Brasil 16321 Perfis de produo das usinas de acar e etanol no Brasil na safra 2006/2007 16422 Evoluo da produtividade agrcola, industrial e agroindustrial das usinas de acar e etanol no Brasil 16723 Evoluo dos preos pagos aos produtores de etanol no Brasil 168

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  • 24 Consumo de fertilizantes pelas principais culturas no Brasil 19025 Perdas de solo e gua das chuvas em algumas culturas no Brasil 19126 Desmatamento anual na Amaznia brasileira 19527 Uso da terra nas propriedades rurais no Brasil 19728 Evoluo da rea utilizada pelas principais culturas no Brasil 19829 Uso da terra no Brasil 19830 Evoluo dos preos pagos ao produtor, sem tributos, de gasolina nos EUA e de bioetanol de cana-de-acar no Brasil 20431 Estrutura dos preos ao consumidor da gasolina comum, bioetanol hidratado e leo diesel no Rio de Janeiro em maro de 2008 20532 Evoluo dos preos mdios ao consumidor do bioetanol hidratado e da gasolina comum e da relao entre esses preos no Brasil 20633 Estrutura dos custos de produo da cana-de-acar no Centro-Sul em 2005 20834 Estrutura do custo de operao e manuteno de uma destilaria autnoma para produo de bioetanol de cana-de-acar no Centro-Sul em 2005 20835 Produtividade mdia dos trabalhadores da agroindstria canavieira no Brasil 21136 Potencial energtico por tipo de biomassa 22537 Distribuio da produo de etanol em 2007 por regies 23438 Frao da demanda de bioetanol para agregar 10% gasolina passvel de ser produzida mediante a converso de mel residual disponvel na fabricao de acar 24139 Frao das reas cultivadas (total e em cana) necessria para produzir bioetanol requerido para agregar 10% gasolina, assumindo a converso de caldo direto 24240 Estimativas de oferta e demanda de bioetanol combustvel para 2010 e 2015 24841 ndices de preo para petrleo bruto e produtos agrcolas 26142 ndices de preo para petrleo bruto e produtos agrcolas associados ao bioetanol e ao biodiesel 26243 ndices de preo para petrleo bruto e produtos agrcolas associados ao bioetanol 263

    Tabelas

    1 Parmetros de desempenho vegetal para os ciclos fotossintticos 302 Propriedades da gasolina e do bioetanol 413 Exigncias de alteraes em veculos para diferentes teores de bioetanol na gasolina 444 Efeito do bioetanol na octanagem da gasolina-base 455 Durabilidade de materiais plsticos em bioetanol 496 Quadro geral dos biocombustveis 697 Principais parmetros agrcolas da cana no Centro-Sul brasileiro 768 Demanda de energia no processamento da cana 829 Perdas e rendimentos mdios das usinas de cana 8310 Demanda de fertilizantes e defensivos para a produo de milho nos EUA 86

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  • 11 Rendimentos dos co-produtos na via mida 8812 Balano de energia na produo de bioetanol de cana 9513 Emisses na produo do bioetanol de cana 9614 Emisses lquidas na produo e no uso do bioetanol de cana 9615 Balano de energia e emisses de GEE para o bioetanol de milho nos EUA 10016 Comparao das diferentes matrias-primas para a produo de bioetanol 10117 Principais pases produtores e exportadores de acar para a safra 2006/2007 10518 Energia eltrica e bagao excedente em sistemas de co-gerao na agroindstria canavieira 11219 Novos produtos da agroindstria da cana-de-acar 12020 Processos para pr-tratamento da biomassa por hidrlise 12721 Comparao das diferentes opes para a hidrlise da celulose 12822 Comparao das estimativas de rendimentos e custos para produo de bioetanol por meio da hidrlise 13123 Comparao das estimativas de rendimento e custos dos sistemas BIG/GT-CC 13624 Comparao dos rendimentos e custos para a produo de combustveis de sntese 13925 Processos bsicos da indstria alcoolqumica 14126 Impacto da introduo de novas tecnologias na produo de bioetanol 17427 Expectativas de ganhos de eficincia em processos da produo da bioetanol 17428 Balano resumido das emisses de gs carbnico na agroindstria do bioetanol de cana-de-acar no Centro-Sul brasileiro 18229 Efluentes lquidos da agroindstria do bioetanol 18530 Uso de defensivos agrcolas nas principais culturas no Brasil 18731 Potencial para produo de cana-de-acar no Brasil 20132 Demanda de reas para produo de bioetanol visando o mercado global em 2025 20333 Empregos diretos formais por atividade e regio do setor sucroalcooleiro 21034 Impactos diretos, indiretos e induzidos do processamento de um milho de toneladas de cana-de-acar para a produo de lcool 21635 Potencial total tcnico de produo de bioenergia para diversas regies e cenrios produtivos em 2050 22636 Potencial de diversas matrias-primas e sistemas produtivos para bioenergia 22837 Biocombustveis na oferta total primria de energia 23238 Participao relativa dos biocombustveis na oferta total primria de energia 23339 Capacidade, produo e consumo de bioetanol na Unio Europia 23840 Principais objetivos para o desenvolvimento da bioenergia 25041 Principais instrumentos de polticas energticas relacionadas bioenergia 25142 Coeficientes de correlao simples entre os preos do petrleo e os preos dos produtos diretamente associados aos biocombustveis, entre janeiro de 1990 e maro de 2008 263

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    Pref

    cio Petrleo, gs natural e seus derivados representam

    55% do consumo mundial de energia. So esses combustveis que permitem a existncia dos meios de transporte rpidos e eficientes que temos hoje, bem como boa parte das atividades industriais. Lamentavelmente, eles no vo durar mais do que algumas dcadas: como combustveis fsseis, as suas reservas so finitas, a segurana de abastecimento problemtica para os muitos pases que os importam e o seu uso a principal fonte dos gases que esto provocando mudanas climticas e o aquecimento global.

    preciso, pois, encontrar substitutos para esses combustveis. Nada mais racional do que produzi-los com base em matria orgnica renovvel (biomassa), da qual, no passado distante, os combustveis fsseis foram produzidos pela natureza. Uma das opes o etanol, um excelente substituto para a gasolina, o principal combustvel usado em automveis no mundo.

    No Brasil, o etanol, produzido da cana-de-acar, j substitui hoje metade da gasolina que seria consumida e seu custo competitivo sem os subsdios que viabilizaram o programa no seu incio. Isso foi conseguido em cerca de 30 anos a partir da criao do Prolcool, programa lanado no pas em meados da dcada de 1970 para reduzir a dependncia da importao de petrleo. Consideraes econmicas da indstria do acar tambm pesaram no estabelecimento do programa, porm preocupaes de carter ambiental e social no tiveram um papel significativo na ocasio.

    Nos Estados Unidos, grande produtor mundial de etanol com base no milho, o programa mais recente e suas justificativas so a eliminao de aditivos na gasolina e a reduo das emisses de gases que provocam o aquecimento global. Nos pases da Europa Ocidental, o etanol produzido do trigo e da beterraba tambm usado. Nesses pases, o custo do etanol duas a quatro vezes mais

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    elevado do que no Brasil e subsdios internos e barreiras alfandegrias protegem as indstrias locais, impedindo a importao de etanol do Brasil.

    Isso tem criado resistncias de alguns grupos, que associam o etanol (e o biodiesel, produzido em quantidades menores) a um falso dilema, que o da produo de alimentos versus combustveis. Esse argumento no se sustenta quando nos damos conta de que a produo de etanol no mundo, de cerca de 50 bilhes de litros por ano, usa 15 milhes de hectares de rea, ou seja, 1% da rea em uso pela agricultura no mundo, que de 1,5 bilho de hectares.

    Argumentam esses grupos tambm que, na realidade, o uso de etanol no reduz as emisses de gases de efeito estufa, o que totalmente incorreto no que se refere ao etanol da cana-de-acar. Esse , de fato, praticamente renovvel, uma vez que o bagao da cana supre toda a energia necessria para a fase industrial da produo do etanol. A situao dos Estados Unidos menos confortvel porque a produo do etanol exige o uso de energia que vem quase toda do carvo. Pode-se dizer que o etanol do milho , na realidade, carvo convertido em etanol, ao passo que no Brasil ele quase inteiramente de energia solar.

    A expanso da cultura da cana-de-acar e do milho envolve mudanas no uso do solo, o que pode implicar a emisso de gases de efeito estufa se a expanso resultar em desmatamento, o que no o caso do Brasil, onde a expanso est ocorrendo sobre pastagens. De qualquer forma, esse um problema geral de agricultura em expanso e no um problema da produo de etanol (ou biodiesel). Se h, aqui, um dilema, ele poderia ser denominado de produo de alimentos versus mudanas climticas.

    O que se pode chamar de soluo brasileira para os problemas dos combustveis fsseis o uso do etanol de cana-de-acar para substituir a gasolina no exclusivo do nosso pas e est sendo adotado em outros pases produtores de cana-de-acar (dos quais existem quase cem no mundo), como Colmbia, Venezuela, Moambique e ilhas Maurcio.

    Essas e outras questes so analisadas a fundo neste livro, que descreve as caractersticas biolgicas da cana-de-acar como planta, as tcnicas de produo do lcool e os seus co-produtos, como bioeletricidade, apresentando o estado da arte do que chamado de tecnologias de primeira gerao.

    H, ainda, uma discusso das tecnologias de segunda gerao para a produo de etanol com base na celulose de quaisquer outros produtos agrcolas (inclusive de cana-de-acar), bem como tecnologias de gaseificao de biomassa. A sustentabilidade social e ambiental de produo do etanol tambm discutida.

    A leitura deste livro certamente dissipar vrios mitos que se formaram em torno do grande e promissor programa de etanol no Brasil e sua potencial expanso no mundo.

    Professor Jos GoldembergUniversidade de So Paulo

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    o O interesse mundial pelo desenvolvimento dos

    biocombustveis aumentou a partir de meados da presente dcada, em virtude de uma preocupao maior com o desenvolvimento de fontes energticas renovveis e mais limpas, que permitam avanar na superao do atual paradigma, baseado nos combustveis fsseis. Nesse cenrio, destaca-se o Brasil, cujo programa de bioetanol de cana-de-acar apresenta resultados interessantes, desde a pesquisa de variedades de cana de maior rendimento at a fabricao de motores que funcionam com qualquer mistura de gasolina e etanol.

    Compartilhar essa experincia e as lies dela derivadas com o resto do mundo especialmente com pases em desenvolvimento situados em zonas tropicais e subtropicais foi a principal motivao para que o presidente Luiz Incio Lula da Silva encomendasse ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social (BNDES) e ao Centro de Gesto e Estudos Estratgicos (CGEE) a elaborao deste livro. Um interesse similar motivou a colaborao da Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (Cepal) e do Escritrio Regional da Organizao das Naes Unidas para a Alimentao e a Agricultura (FAO) para a Amrica Latina e o Caribe.

    Com a elevao dos preos das matrias-primas agrcolas e dos alimentos nos ltimos anos, passou-se a questionar se uma das causas importantes para isso no seria a demanda de produtos agrcolas na fabricao de biocombustveis. Nesse sentido, crucial fazer a distino entre os diferentes sistemas de produo dos biocombustveis, considerando seus aspectos ambientais e energticos e os possveis trade-offs com a produo de alimentos. preciso compreender que os biocombustveis so bastante diferentes entre si quanto aos impactos e benefcios. Por exemplo, o bioetanol de cana-de-acar tem pouco a ver com o bioetanol de trigo ou de milho. Este livro tem como premissa tal distino e argumenta que, tanto em termos energticos

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    como de efeitos sobre a segurana alimentar, a produo de bioetanol de cana superior s demais alternativas.

    Composta de nove captulos, a obra procura cobrir de forma abrangente essa ampla temtica. O livro foi coordenado pelo BNDES e pelo CGEE, encarregados da produo dos captulos de 1 a 7 e do captulo 9. A Cepal e a FAO supervisionaram a produo do captulo 8 e forneceram feedback significativo a todos os demais captulos.

    No primeiro captulo, so apresentados os conceitos de bioenergia e so revisadas sua evoluo e a importncia na atualidade. O segundo captulo apresenta o etanol como um combustvel veicular e comenta suas propriedades e seu desempenho, alm de abordar aspectos econmicos e os requisitos de logstica para sua utilizao. No terceiro captulo, descrevem-se os diferentes processos de produo do bioetanol de vegetais que contm acares ou amilceos. So ainda detalhadas as rotas da cana-de-acar e do milho e apresentam-se os balanos de energia e as emisses de gases de efeito estufa (GEE) para cada caso. Os co-produtos do bioetanol no processamento da cana-de-acar, como o acar e a bioeletricidade, so analisados no quarto captulo, enquanto as rotas inovadoras, associadas hidrlise dos resduos e gaseificao, so tratadas no quinto captulo. At esse ponto, os temas so abordados de forma tcnica, passvel de ser aplicada em outros contextos, com referncias eventuais experincia brasileira. O programa brasileiro de bioetanol, implementado desde 1931 e reforado a partir de 1975, apresentado no sexto captulo, que revisa sua evoluo, seus indicadores e as perspectivas atuais. Por sua evidente importncia, a sustentabilidade da produo de bioetanol de cana-de-acar, em seus aspectos ambientais, econmicos e sociais, com nfase na experincia brasileira, analisada parte no captulo seguinte, incluindo comentrios sobre a certificao dos biocombustveis. No oitavo captulo, que contou com a superviso da Cepal e da FAO, apresenta-se o potencial global para a produo de biocombustveis e discutem-se as polticas adotadas para seu fomento, avaliando-se as perspectivas de formao de um mercado global para o bioetanol e suas implicaes sobre a oferta de alimentos. Finalmente, no nono captulo, procura-se apresentar uma sntese dos principais pontos estudados e oferecer algumas recomendaes.

    Por seu contedo, este livro pretende servir de base para um debate sobre o potencial e as limitaes da produo de etanol de cana-de-acar, especialmente nas regies onde atualmente sua cultura praticada. Neste marco, reconhece-se a importncia de polticas e incentivos que assegurem o desenvolvimento de um mercado competitivo para o etanol de cana-de-acar, mas sem comprometer a segurana alimentar nem os objetivos prioritrios de reduo da pobreza e fome e manejo sustentvel dos recursos naturais.

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    Nessa direo, importante constatar que muitos pases, especialmente aqueles localizados em pases tropicais e subtropicais, como boa parte da Amrica Latina e do Caribe, dispem das condies adequadas quanto a requerimentos de solo, gua, radiao solar e disponibilidade de terras para expandir a produo de cana-de-acar com fins energticos. Estudos recentes destacam a possibilidade de explorar essas vantagens comparativas em condies sustentveis, por meio de estratgias que promovam um balano dos custos e benefcios implicados, considerando suas dimenses econmicas, sociais, ambientais e estratgicas. Tais estratgias devem estar sujeitas a uma anlise cuidadosa de seus impactos sobre alguns fatores, como mudana do uso da terra, padres de investimento, emisses de gases de efeito estufa, fluxos de comrcio e segurana alimentar, como destacado em fruns internacionais recentes. O processo todo pode se beneficiar da experincia acumulada pelo Brasil, acervo de conhecimento que representa, sem dvida, um importante ativo para outros pases da regio, a ser potencializado mediante polticas adequadas de cooperao horizontal.

    Para potencializar as vantagens da produo de bioetanol de cana-de-acar, importante que haja maior integrao e coerncia das polticas em nveis nacional e internacional e entre as aes dos setores pblico e privado, para evitar mecanismos limitadores das legtimas vantagens comparativas que muitos pases detm para a produo desse biocombustvel. Assim, como discutido neste livro, particularmente relevante: (a) desenvolver metodologias comuns para a anlise do ciclo de vida das emisses de GEE, reconhecendo a importncia das emisses diretas e indiretas associadas mudana do uso da terra; (b) adotar padres no-distorsivos, acordados internacionalmente, para avaliar as possveis implicaes ambientais da produo de bioenergia; (c) estabelecer orientaes para a estimativa de emisses de GEE em pases desenvolvidos e em desenvolvimento, o cumprimento de regras no mbito da Organizao Mundial do Comrcio (OMC) e a preveno de barreiras comerciais; e (d) alcanar maior vnculo entre as polticas alimentares e energticas, de maneira que no seja comprometida a segurana alimentar nem sejam despojados os agricultores dos potenciais lucros que poderiam obter da produo de biocombustveis.

    A agenda do bioetanol se amplia a cada dia. Alguns temas ainda esto abertos a discusso, mas fogem ao escopo deste livro, devendo ser trabalhados em futuro prximo. Um destes temas a globalizao do bioetanol. Como no caso do petrleo, a criao de um mercado mundial de bioetanol implica a adoo de um conjunto de medidas, para ampliar a segurana no seu fornecimento e a construo de alianas e desenvolvimento de mercados consumidores, com regras claras nos mecanismos de formao de preos e na definio de especificaes de referncia.

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    Outros temas relevantes so a proteo intelectual do desenvolvimento biotecnolgico e do melhoramento das variedades de cana e as providncias para manter a atual vantagem competitiva dos produtores de bioetanol nos pases em desenvolvimento.

    Hoje em dia, est claro que as polticas relacionadas aos biocombustveis devem ser orientadas por quatro princpios fundamentais:

    a) orientao para o mercado, de forma a reduzir as distores nos mercados agrcola e de biocombustveis e evitar a introduo de novas restries;

    b) sustentabilidade ambiental, para buscar o desenvolvimento de biocombustveis com efeitos positivos lquidos em termos energticos e diminuio sensvel nas emisses de gases de efeito estufa, sob reduzido impacto ambiental no contexto de sua produo;

    c) promoo do desenvolvimento econmico, valorizando a pesquisa, o desenvolvimento e a inovao para melhorar a eficincia fsica e econmica da produo de matrias-primas e sua converso em biocombustveis; e

    d) proteo s populaes de baixa renda e melhora na segurana alimentar, a fim de corrigir os problemas criados pelo dficit de alimentos e pela dependncia de importaes de petrleo dos pases mais pobres e com maiores problemas de fome.

    Considerando essas orientaes fundamentais, as instituies envolvidas na preparao deste livro entendem que programas de produo e uso de etanol de cana-de-acar, adequadamente desenhados e bem conduzidos, podem contribuir para reforar positivamente as relaes entre os pases e promover de modo efetivo o desenvolvimento sustentvel em suas sociedades.

    Luciano CoutinhoPresidente, BNDES

    Lcia MeloPresidente, CGEE

    Alicia BrcenaSecretria executiva, Cepal

    Jos Graziano da SilvaRepresentante regional da FAO para Amrica Latina e Caribe

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  • Luz do solque a folha traga e traduz

    em verde novo,em folha, em graa,

    em vida, em fora, em luz...Luz do sol, Caetano Veloso

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  • Cap

    tulo

    1 Bioenergia e biocombustveisA converso da energia solar em energia qumica, que se realiza nos vegetais durante a fotossntese, um dos fenmenos mais fascinantes da natureza. Na planta iluminada pelo sol, a fugaz radiao solar se transforma em produtos estveis, absolutamente essenciais para a vida em nosso planeta. E, desde o incio da humanidade, foi a simbiose com o mundo vegetal que lhe garantiu o suprimento de alimentos, energia e matrias-primas de amplo uso, permitindo, ao longo de milnios, a evoluo dos padres de conforto e produtividade econmica. Depois de um breve interregno nos ltimos sculos, durante os quais a energia solar fossilizada passou a ser sofregamente explorada e utilizada, na forma de carvo, petrleo e gs natural, a energia fotossinttica volta, paulatinamente, frente do cenrio. Capaz de mitigar preocupantes problemas ambientais, a energia fotossinttica traz uma nova dinmica ao mundo agroindustrial e oferece uma alternativa necessria evoluo da sociedade industrial moderna para um contexto energtico mais sustentvel e racional. Sem pretender ser a soluo exclusiva, a captao e o armazenamento de energia solar nos vegetais podem cumprir um papel destacado no futuro energtico das naes. De fato, como j dizia Melvin Calvin Prmio Nobel de Qumica, em 1961, por suas descobertas sobre a fotossntese , as folhas so verdadeiras fbricas silenciosas.

    Este captulo inicial dedicado aos conceitos bsicos e evoluo da bioenergia, em especial para os biocombustveis, considerando-se uma viso de longo prazo. Posteriormente, sero abordadas em mais detalhes a expanso e as perspectivas atuais do mercado brasileiro de bioetanol e do mercado mundial de biocombustveis.

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    1.1 Fundamentos da bioenergia

    Em sua acepo mais rigorosa, energia a capacidade de promover mudanas, que se apre-senta em muitas formas, como a energia trmica, a energia eltrica e a energia qumica, sempre representando um potencial para causar transformaes, sejam naturais ou determinadas pelo homem. A energia qumica a forma de energia fornecida mediante reaes qumicas, em que acontece uma mudana de composio, por meio da qual reagentes se convertem em produtos, geralmente com liberao de calor. Por exemplo, a energia qumica se encontra disponvel nos alimentos e nos combustveis, sendo usada nos processos vitais dos animais e do homem e para mover veculos, entre outros fins.

    Um caso particular de energia qumica a bioenergia, que pode ser definida como toda e qualquer forma de energia associada a formas de energia qumica acumulada mediante pro-cessos fotossintticos recentes. Em geral, denomina-se biomassa os recursos naturais que dis-pem de bioenergia e que podem ser processados para fornecer formas bioenergticas mais elaboradas e adequadas para o uso final. Portanto, seriam exemplos de fontes de bioenergia a lenha e os resduos de serrarias, o carvo vegetal, o biogs resultante da decomposio anaerbia de lixo orgnico e outros resduos agropecurios, bem como os biocombustveis lquidos, como o bioetanol e o biodiesel, e a bioeletricidade, gerada pela queima de com-bustveis como o bagao e a lenha.

    No amplo contexto da bioenergia, a produo de biocombustveis lquidos tem sido consi-derada para atender particularmente s necessidades de transporte veicular. Para esses fins, alm dos biocombustveis, ainda no existem, na atualidade, outras alternativas renovveis com maturidade tecnolgica e viabilidade econmica suficientes. Os biocombustveis lqui-dos podem ser utilizados de forma bastante eficiente em motores de combusto interna que equipam os mais diversos veculos automotores e que se classificam basicamente em dois tipos, dependendo da maneira pela qual se inicia a combusto: motores do ciclo Otto, com ignio por centelha, para os quais o biocombustvel mais recomendado o bioetanol; e motores do ciclo Diesel, no qual a ignio conseguida por compresso e que podem uti-lizar com bom desempenho o biodiesel. Em ambas as situaes, os biocombustveis podem ser usados puros ou misturados com combustveis convencionais derivados de petrleo. interessante observar que, nos primeiros anos da indstria automobilstica, durante a segunda metade do sculo XIX, os biocombustveis representavam a fonte de energia preferencial para os motores de combusto interna, com a adoo do bioetanol, por Henry Ford, e do leo de amendoim, por Rudolf Diesel. Esses dois produtos foram substitudos, respectivamente, pela gasolina e pelo leo diesel medida que os combustveis derivados de petrleo passaram a ser abundantes e baratos, a partir do incio do sculo passado. Os aspectos tcnicos associa-dos ao uso de etanol em motores sero comentados no prximo captulo.

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    Automvel Ford Modelo A (1896) para etanol puro.

    Figura 1 O processo de fotossntese

    gua

    Energia solar

    O2CO2

    Fonte: Elaborao de Luiz Augusto Horta Nogueira.

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    A produo de biomassa, como resultado da reao de fotossntese, depende essencialmente da energia solar e da presena de gua e dixido de carbono (CO2), desenvolvendo-se nas clulas vegetais dos estmatos das folhas segundo complexos ciclos que podem ser represen-tados pela expresso a seguir, em que gua e gs carbnico se combinam para a formao de uma molcula de glicose, que um acar simples, e oxignio.

    6 H2O+6 CO

    2luz solar C

    6H

    12O

    6+6 O

    2 (1)

    Nessa reao, em termos energticos, a formao de 1 kg de acar corresponde fixao de cerca de 17,6 MJ (megajoules) de energia solar, equivalente a cerca de meio litro de gasolina. Pelo balano de massa dessa reao, tem-se que a sntese de 1 kg de glicose con-some cerca de 0,6 kg de gua e 1,4 kg de dixido de carbono, liberando para a atmosfera 1 kg de oxignio. Naturalmente, essa gua representa apenas a parcela utilizada na composio do acar, pois durante seu crescimento e, especialmente, durante a fotossntese, quando ocorre a evapotranspirao, o vegetal necessita de gua em volumes centenas de vezes acima da quantidade fixada no produto vegetal. Assim, a condio fundamental para a produo de biomassa e, conseqentemente, de bioenergia a disponibilidade de radiao solar, de gua e de dixido de carbono.

    Entre esses fatores de produo bsicos para a produo vegetal, o dixido de carbono o menos problemtico, pois encontra-se bem distribudo na atmosfera, em concentraes suficientes para as plantas. No entanto, relevante observar que sua concentrao tem mostrado, nas ltimas dcadas, um preocupante crescimento, principalmente associado ao uso intensivo de combustveis fsseis, capaz de promover o incremento do efeito estufa na atmosfera terrestre e o conseqente aquecimento global. Nesse sentido, os bio-combustveis apresentam duas importantes vantagens: seu uso permite reduzir a emisso de carbono para a atmosfera e, alm disso, a produo de biomassa potencialmente favorecida, dentro de limites e para algumas espcies, pela crescente disponibilidade de dixido de carbono na atmosfera.

    Com relao radiao solar, interessa conhecer qual a frao utilizada pelas plantas e como est disponvel no planeta. A fotossntese se realiza com absoro de luz pela clorofila em faixas especficas do espectro solar, especialmente para os comprimentos de onda entre 400 e 700 nm (nanmetro), regio da cor vermelha. Em fisiologia vegetal, essa faixa chama-da de radiao fotossinteticamente ativa (PAR, do ingls photosynthetically active radiation) e corresponde, aproximadamente, a 50% do total da radiao solar. Com relao disponibi-lidade da radiao solar, o fator primordial a latitude, que faz com que as regies tropicais recebam mais energia solar comparativamente s situadas em latitudes mais altas. De acordo com o Atlas Solarimtrico Brasileiro, uma rea de um metro quadrado, situada entre 10 e 15 de latitude sul, na Regio Norte do Brasil, recebe, em mdia, 18,0 MJ/dia, enquanto, para uma latitude entre 20 e 25, na Regio Sul, essa mesma rea recebe 16,6 MJ/dia, cerca de 8% menos energia [Cresesb/UFPE/Chesf (2000)]. Tambm associada latitude, a tempera-tura ambiente outro fator que influi diretamente na fotossntese. Dentro de limites, maiores

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    temperaturas favorecem a produo bioenergtica, reforando a vantagem das regies mais quentes do planeta nesse sentido.

    A gua, o ltimo dos fatores essenciais para a fotossntese, constitui, de fato, o grande limi-tante a considerar para a produo vegetal. A reduzida disponibilidade de recursos hdricos com adequada qualidade e sua heterognea distribuio sobre os continentes configuram um dos grandes desafios para o desenvolvimento de muitas naes. Extensas reas ensolara-das nas regies semi-ridas pouco podem contribuir como fonte de biomassa sem que sejam irrigadas com volumes significativos de gua, implicando custos sempre muito altos e, fre-qentemente, dispndios energticos que inviabilizam a produo bioenergtica. Em escala mundial, a irrigao, atualmente, j consome mais de 70% dos recursos hdricos disponveis e responde por cerca de 40% da produo agrcola, tornando o acesso gua um tema de enorme prioridade [Horta Nogueira (2008)]. Alm disso, os possveis cmbios climticos de-correntes do aumento do efeito estufa em nosso planeta tendem a alterar de forma preocu-pante os regimes pluviais e hdricos, ampliando os riscos de fenmenos crticos, como secas e enchentes, que, evidentemente, afetam a produo vegetal de modo negativo.

    Conforme representado na Figura 2, algumas regies tropicais, especialmente na Amrica do Sul e na frica, apresentam significativa disponibilidade pluvial. Somada maior incidncia de energia solar e s temperaturas adequadas, essa uma vantagem relevante, que configura, em tais regies, os contextos mais favorveis para a produo de bioenergia, a ser promovida, naturalmente, em harmonia com as exuberantes florestas e a agricultura a existentes.

    Figura 2 Pluviosidade mdia anual

    Fonte: FAO (1997).

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    Alm dos fatores bsicos (luz, gua e dixido de carbono), outros requisitos importantes para a produo bioenergtica so a fertilidade do solo e a topografia. Os principais nutrientes mi-nerais para o crescimento vegetal so nitrognio, fsforo e potssio, mas tambm decisiva a disponibilidade, em menores teores, de outros minerais, como boro, mangans e enxofre, assim como a presena de matria orgnica. Alm disso, um solo frtil caracteriza-se por sua adequada estrutura e porosidade. De modo geral, os cultivos bioenergticos exigem o empre-go regular de fertilizantes qumicos para alcanar nveis satisfatrios de produtividade, cuja manuteno depende ainda de um manejo correto dos solos, especialmente da mecanizao nas operaes agrcolas. Com relao topografia, a inclinao das reas de cultivo no deve ser muito grande, visando menor incidncia de processos erosivos, principalmente nos culti-vos de ciclo anual, bem como para facilitar as operaes de cultivo e colheita.

    A considerao conjunta de todos esses fatores delimita a rea potencialmente cultivvel, para bioenergia e todos os demais usos. Considerando todo o planeta, essa rea tem sido es-timada em 13,2 bilhes de hectares, dos quais so atualmente utilizados para a produo de alimentos para seres humanos e para animais cerca de 1,5 bilho de hectares, corresponden-tes a 11% do total [Hoogwijk et al. (2003)]. Adiantando um tema que ser analisado em mais detalhes no Captulo 8, o Grfico 1 mostra como se distribuem os usos da superfcie cultivvel entre todos os continentes, sinalizando a existncia de reas disponveis para a expanso das fronteiras agrcolas e a produo de bioenergia, em especial nos locais ainda pouco explora-dos ou utilizados de forma extensiva, como em pastagens de baixa produtividade.

    Grfico 1 Usos da superfcie cultivvel na Terra

    Fonte: Elaborado com base em Hoogwijk et al. (2003).

    Como um dos parmetros elementares em sistemas bioenergticos, relevante conhecer a eficincia dos cultivos nos processos de captao e armazenamento de energia solar. Ao determinar como e quanto da energia solar realmente convertida em bioenergia e ao com-preender como ocorrem as transformaes e perdas de energia, torna-se possvel obter as condies mais favorveis para o desempenho das plantas como coletoras de energia. Entre-

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    tanto, apenas nas ltimas dcadas tm sido elucidados os mecanismos bioqumicos que per-mitem ao vegetal sintetizar acares e outros produtos qumicos, sendo estabelecidas as rotas de fixao do carbono e identificadas suas diferentes fases, que se desenvolvem segundo uma seqncia complexa de reaes sucessivas, com diversas bifurcaes e compostos instveis, at a formao de substncias estveis, denominadas ciclos fotossintticos. Tal conhecimento descortina uma nova e importante fronteira de possibilidades para compreender o comporta-mento das plantas e incrementar a produtividade das espcies com potencial bioenergtico.

    Os ciclos fotossintticos de maior interesse so o ciclo de Calvin, ou ciclo C3, e o ciclo Hatch-Lack, ou ciclo C4, em que a molcula do primeiro produto estvel produzido apre-senta, respectivamente, trs carbonos (cido fosfoglicrico) ou quatro carbonos (produtos como oxaloacetato, malato e aspartato) [Hall e Rao (1999)]. Enquanto a maioria das plantas conhecidas utiliza o ciclo C3, em algumas gramneas tropicais, como cana-de-acar, ceva-da e sorgo, foi identificado o ciclo C4. Tal distino relevante para o desenvolvimento de sistemas bioenergticos, em funo da grande diferena de produtividade entre tais ciclos em favor do ciclo C4, que apresenta elevada taxa fotossinttica de saturao (absorve mais energia solar), ausncia de perdas por fotorrespirao, alta eficincia na utilizao da gua, maior tolerncia salina e baixo ponto de compensao para o CO2, ou seja, responde melhor sob menores concentraes desse gs. Em sntese, pode-se afirmar que os vegetais com ciclo C4 so os mais aptos produo bioenergtica. A Tabela 1 apresenta uma comparao de alguns parmetros de interesse para esses dois ciclos fotossintticos.

    Tabela 1 Parmetros de desempenho vegetal para os ciclos fotossintticos

    Caracterstica Espcies C3 Espcies C4

    Razo de transpirao (kg de gua evaporada por kg sintetizado)

    350 1000 150 300

    Temperatura tima para fotossntese (grau C) 15 a 25 25 a 35

    Local da fotossntese Toda a folha Parte externa da folha

    Resposta luz Saturada para radiaes mdias

    No-saturada sob radiaes elevadas

    Produtividade anual mdia (t/ha) ~ 40 60 a 80

    Aptido climtica Temperado a tropical Tropical

    Exemplos Arroz, trigo, soja, todas as frutferas, oleaginosas e a maioria dos vegetais conhecidos

    Milho, cana-de-acar, sorgo e outras gramneas tropicais

    Fonte: Janssens et al. (2007).

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    Da radiao solar incidente sobre a Terra, de 178 mil TW (terawatt ou bilho de quilowatts), estima-se que cerca de 180 TW, ou 0,1%, so utilizados nos processos fotossintticos, natu-rais ou promovidos pelo homem. Desse modo, em todo o planeta, so produzidos, anual-mente, cerca de 114 bilhes de toneladas de biomassa, em base seca, correspondendo a, aproximadamente, 1,97 bilho de TJ (terajoule ou bilho de quilojoules), equivalentes a 314 trilhes de barris de petrleo, cerca de dez mil vezes o atual consumo mundial desse com-bustvel fssil. Nesse contexto, a eficincia mdia de assimilao da energia solar inferior a 1%, embora vegetais de maior desempenho, como a cana-de-acar, possam atingir 2,5% em mdia anual [Smil (1991)]. Naturalmente, esses valores servem apenas como referncia para a compreenso da magnitude energtica da fotossntese, no havendo sentido em ima-ginar a bioenergia como substituta de todas as formas fsseis de suprimento energtico, prin-cipalmente nos pases de elevada demanda. Esse crescimento vegetal ocorre, como visto, so-bretudo em formaes nativas das regies tropicais, estimando-se que as atividades agrcolas correspondem a cerca de 6% desse total.

    interessante observar que, dependendo do vegetal, a energia solar fixada em diferentes substncias e rgos de acumulao, que determinam as rotas tecnolgicas passveis de se-rem adotadas para sua converso em biocombustveis para uso final. Na cana-de-acar, por exemplo, as reservas energticas se localizam principalmente nos colmos, como sacarose, celulose e lignina, sendo tradicionalmente empregadas na produo de bioetanol e baga-o, mas tambm as pontas e folhas da cana apresentam crescente interesse, medida que se desenvolvem processos para a utilizao de seu substrato lignocelulsico. Por sua vez, nas rvores e outras espcies lenhosas, o contedo energtico est essencialmente no fuste (tronco mais galhos), na forma de celulose e lignina, sendo empregado basicamente como lenha. As razes e tubrculos de plantas como a mandioca e a beterraba acumulam amido e sa carose, enquanto os frutos e as sementes, como o dend e o milho, acumulam geralmente amido, acar e leos vegetais, de acordo com cada espcie.

    Alm de definirem as rotas tecnolgicas mais adequadas para converso da biomassa em bio-combustveis, esses aspectos so relevantes para a eficincia global de captao e utilizao de energia solar: para a sntese de carboidratos (como celulose e sacarose), o vegetal requer cerca de 60% menos energia do que para a sntese de gorduras ou lipdios [Demeyer et al. (1985)], por unidade de massa de produto final, o que, em princpio, torna as rotas associa-das ao biodiesel comparativamente menos eficientes do que as rotas do bioetanol, com base na sacarose ou na celulose.

    A Figura 3 apresenta uma sntese das diversas rotas de converso que podem ser aplicadas para transformar a biomassa em biocombustveis e calor til. Alm dos processos fsicos, pu-ramente mecnicos, para concentrao, reduo granulomtrica, compactao ou reduo da umidade da biomassa, so utilizados dois grupos de tecnologias qumicas, que alteram a composio da matria-prima para fornecer produtos mais compatveis com os usos finais: processos termoqumicos, que empregam matrias-primas com baixa umidade e temperatu-ras elevadas; e processos bioqumicos, desenvolvidos em meios com elevado teor de gua e temperaturas prximas condio ambiente.

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    Figura 3 Rotas tecnolgicas para produo de bioenergia

    Combusto

    Vapor Gs Gs leo Carvo Biogs

    Turbinaa vapor

    Cicloscombinados,

    motores

    Sntese Refino Motor a gs Destilao Esterificao

    Clulas acombustvel Diesel Etanol Biodiesel

    Gaseificao Digesto FermentaoPirlise

    LiquefaoHT

    Extrao(oleaginosas)

    Converso termoqumica

    CALOR ELETRICIDADE COMBUSTVEL

    Converso bioqumica

    Fonte: Elaborado com base em Turkenburg et al. (2000), apud Seabra (2008).

    1.2 Evoluo da bioenergia e dos biocombustveis

    A bioenergia, em suas diferentes formas, foi a principal e, em algumas situaes, a nica for-ma de suprimento energtico exgeno utilizada pelo homem ao longo de sua histria. Desde as primitivas fogueiras h mais de 500 mil anos, a biomassa lenhosa foi a fonte energtica por excelncia e cobria as necessidades domsticas de energia para coco e aquecimento, alm de suprir os primitivos sistemas de iluminao, que empregavam gorduras vegetais e animais em candeeiros e velas. Posteriormente e durante milnios, a produo cermica e metalr-gica passou a representar uma demanda importante de bioenergia, consumida em fornos e forjas. Apenas a partir do sculo XVIII, ocorreu a exausto das reservas de lenha disponveis em boa parte da Europa Ocidental e, principalmente, na Inglaterra, um fator determinante para o incio da explorao do carvo mineral e que, junto com a mquina a vapor, tornou-se um dos fatos desencadeadores da Revoluo Industrial. No houvesse sido introduzida a energia fssil, na forma de carvo mineral, disponvel em quantidade abundante e com acesso relati-vamente fcil na poca, a histria moderna certamente teria tido outro percurso.

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    Do Brasil colonial, temos o registro interessante de um processo agroindustrial relevante eco-nomicamente, suprido pela energia da biomassa. Conforme relata Antonil (1982), os enge-nhos de acar do Recncavo Baiano, durante o sculo XVII, possuam

    as fornalhas, que por sete meses ardem dia e noite, querem muita lenha... (pois) o alimento do fogo a lenha, e s o Brasil, com a imensidade dos matos que tem, podia fartar, como fartou por tantos anos, e fartar nos tempos vindouros, a tantas fornalhas, quantas so as que se contam nos engenhos da Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro...

    curioso imaginar o que tais engenhos faziam, ento, com o bagao das canas processadas se o empregavam para alimentao dos bois de carro ou o destinavam a outros fins , pois esse subproduto poderia constituir a fonte de energia bsica para o processo produtivo, como acontece nas usinas de acar e bioetanol de hoje em dia, que no usam lenha e ainda pro-duzem excedentes considerveis de energia exportvel na forma de bagao e eletricidade.

    Como em outros pases em desenvolvimento situados em regies tropicais, a amplitude dos recursos bioenergticos no Brasil ajuda a entender por que, apenas depois de 1915, os com-bustveis fsseis passaram a ser utilizados com alguma relevncia no pas, onde a lenha per-maneceu mais importante do que o petrleo no suprimento energtico at 1964 [Dias Leite (2007)]. Com efeito, em muitas estradas de ferro brasileiras, que eram quase a nica forma de transporte de carga a mdias distncias, assim como nas embarcaes da Amaznia e nas gaiolas do rio So Francisco e mesmo para a gerao de energia eltrica em sistemas isolados utilizando locomveis (conjuntos de mquinas a vapor simples e caldeiras de pequeno por-te), a lenha era o nico combustvel empregado at meados do sculo XX. O Grfico 2 mostra como evoluiu a oferta interna de energia no Brasil nas ltimas dcadas e qual a contribuio da bioenergia, separando-se as parcelas devidas cana e lenha. Em 2007, essas fontes de bioenergia corresponderam, respectivamente, a 16,0% e 12,5% do consumo total de energia no pas [MME (2008)].

    Os dados referentes bioenergia e, particularmente, parcela da lenha nas estatsticas ener-gticas so, para a maioria dos setores, determinados de forma indireta, com base em indi-cadores como a produo da indstria de papel e celulose e o nmero de foges a lenha. Recentemente, a Empresa de Pesquisa Energtica (EPE) passou a rever essa metodologia, visando melhorar a consistncia dessas informaes no caso brasileiro. De todo modo, le-vantamentos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) tm demonstrado que a lenha permanece como um combustvel importante em nvel domstico. Nas mais de 50 milhes de residncias brasileiras, cerca de 3,5% cozinham apenas com biomassa e mais de 14% fazem uso simultneo de lenha e gs liquefeito de petrleo [IBGE (2005)]. Na agroinds-tria (laticnios, carnes, doces), em geral, e na indstria cermica, especialmente de pequeno e mdio portes, a lenha o principal energtico, cada vez mais produzida com base na silvi-cultura, em uma cadeia energtica que amplia a gerao de valor no meio rural.

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    Grfico 2 Participao da bioenergia na oferta interna de energia no Brasil

    Fonte: MME (2008).

    Estima-se que as florestas plantadas para fins econmicos no Brasil cubram 4,1 milhes de hectares, dos quais cerca da metade destinada a fins energticos, principalmente para a produo de carvo vegetal [FAO (2006)]. Essa superfcie reflorestada vem se expandindo, anualmente, em cerca de 250 mil hectares e apresenta produtividades energticas interes-santes, associadas a um significativo desenvolvimento das tecnologias em silvicultura. Embora uma parcela relevante da produo de carvo vegetal, efetuada principalmente na Amaznia oriental, e uma parte da demanda industrial no semi-rido nordestino ainda permaneam ba-seadas no desmatamento e na explorao predatria de formaes nativas, de uma maneira geral, o uso de lenha no Brasil apresenta bons indicadores de sustentabilidade em suas vrias vertentes [FAO (2007a)].

    Em termos globais e atualizando os dados da Agncia Internacional de Energia (AIE), a de-manda de energia comercial (isto , que passou pelos mercados energticos), em 2007, foi de 470 milhes de GJ, correspondendo a cerca de 82 bilhes de barris de petrleo em um ano [Best et al. (2008)]. Desse consumo total, aproximadamente 88% foram obtidos de recursos fsseis, especialmente carvo mineral e petrleo. O restante foi conseguido mediante bioe-nergia, energia hidreltrica, energia nuclear e, em menor grau, outras fontes, como energia geotrmica e energia elica (com destaque para a bioenergia, a mais importante entre as energias renovveis). A bioenergia, cujo aporte anual (comercial e no-comercial) estimado em 45 milhes de GJ [Best et al. (2008)], pode ser encontrada em uso nos foges a lenha de grande parte das moradias de todo o mundo, nos fornos e fornalhas de caldeiras de muitas agroindstrias e nos tanques de combustvel de um nmero crescente de veculos, sobretudo nos pases industrializados.

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    Desse modo, os sistemas bioenergticos apresentam uma marcada dicotomia entre dois gran-des e diferenciados paradigmas. No primeiro caso, encontram-se os sistemas tradicionais, praticados h milhares de anos, nos quais a explorao dos recursos de biomassa se faz em bases extrativistas, sem adequada valorao econmica dos produtos e, em geral, por meio de sistemas de baixa eficincia e menor produtividade, atendendo a necessidades residen-ciais e de indstrias tradicionais. Como exemplos desse quadro, tm-se a utilizao de lenha para a coco domstica no meio rural, prtica comum e sem impactos notveis, e a danosa produo de carvo vegetal associada ao desmatamento, fadada a desaparecer. Como se-gundo paradigma, encontram-se os sistemas inovadores e modernos de bioenergia, em que a produo ocorre quase sempre em bases comerciais, por meio de tecnologias eficientes, mesmo do ponto de vista ambiental, visando atender s necessidades de energia da moder-na indstria, do setor de transporte e na gerao de eletricidade. Para esse caso, podem ser citadas como exemplos as cadeias bioenergticas do bioetanol de cana-de-acar, do bio-diesel de palma ou de sebo, da bioeletricidade produzida com bagao, licor negro ou lixvia celulsica, entre outras.

    Essa dupla realidade fica evidenciada no Grfico 3, em que se relaciona o consumo bioener-gtico (essencialmente com base em recursos lenhosos) per capita com a renda per capita para diversos pases. Se tomados apenas os pontos claros, correspondentes aos pases em de-senvolvimento, onde predominam as formas tradicionais de bioenergia, pode-se afirmar que o crescimento da renda conduz a uma reduo da demanda bioenergtica ou, dito de outra forma, que o uso da bioenergia uma caracterstica das naes pobres. Contudo, tal hiptese no se confirma quando se incluem na anlise os pases industrializados, correspondentes aos pontos escuros, onde, mesmo para rendas elevadas, a demanda de bioenergia pode ser relevante, alcanando nveis superiores aos demais pases.

    Como exemplos notveis de pases de elevado consumo energtico e situados em regies frias, de baixa insolao e, portanto, de baixa produtividade fotossinttica, mas que conse-guem produzir sustentavelmente volumes importantes de bioenergia, a Sucia e a Finlndia obtm da fotossntese, respectivamente, 19% e 20% de sua demanda energtica total [Hall et al. (2005)]. Como outro exemplo notvel, estudos dos Departamentos de Energia e Agri-cultura dos Estados Unidos indicam para 2030 uma produo anual de biomassa para fins energticos e industriais de um bilho de toneladas (base seca), capaz de reduzir em 30% a demanda prevista de petrleo [DOE/USDA (2005)]. Nesses casos, como na moderna produ-o de biocombustveis, a bioenergia concebida sob modernas tecnologias de produo e converso, atendendo aos pressupostos de sustentabilidade e sendo reconhecida como uma forma renovvel de suprimento energtico [FAO (2001)].

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    Grfico 3 Contribuio da bioenergia em funo da renda per capita

    Fonte: FAO (1998).

    Sob tais acepes, cada vez mais a evoluo da bioenergia, em escala mundial, aponta para a reduo da contribuio das bioenergias tradicionais, a serem mantidas circunscritas s situaes de menor impacto, enquanto as bioenergias modernas se expandem, ocupando o espao das fontes energticas fsseis. Dessa forma, a bioenergia, progressivamente, deixa de ser considerada uma energia antiga e passa a ser reconhecida como uma forma energtica moderna, competitiva e adequada, em condies de proporcionar uma nova revoluo tec-nolgica. Como profetiza Sachs (2007):

    A bioenergia apenas uma parte de um conceito mais amplo do que se chama desenvolvimento sustentado, um conceito que se baseia no trip biodiversidade, biomassa e biotecnologia e que pode servir de alavanca para o lugar que a bio-massa poder representar nas prximas dcadas.

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  • Cap

    tulo

    2 Etanol como combustvel veicularQualquer que seja sua origem biomassa ou processos petroqumicos e carboqumicos , o etanol um combustvel, ou seja, libera significativas quantidades de calor ao se queimar. Contudo, o etanol apresenta algumas diferenas importantes em relao aos combustveis convencionais derivados de petrleo. A principal delas o elevado teor de oxignio, que constitui cerca de 35% em massa do etanol. As caractersticas do etanol possibilitam a combusto mais limpa e o melhor desempenho dos motores, o que contribui para reduzir as emisses poluidoras, mesmo quando misturado gasolina. Nesses casos, comporta-se como um verdadeiro aditivo para o combustvel normal, melhorando suas propriedades. Mas, apesar da longa experincia com o etanol como combustvel em alguns pases, em particular o Brasil, notvel como, em diversos pases onde o etanol ainda no utilizado regularmente, subsistem preconceitos e desinformaes sobre as reais condies de uso e as vantagens que devem ser associadas a esse combustvel e aditivo.

    O presente captulo busca apresentar aspectos tcnicos, econmicos e ambientais importantes sobre etanol como combustvel em motores de combusto interna, seja em misturas com gasolina (etanol anidro, isto , sem gua) ou puro (etanol hidratado). Comentam-se, aqui, as principais caractersticas fsicas e qumicas que definem sua especificao e so revisadas sua adequao e sua compatibilidade com os elastmeros e metais de maior uso em motores, destacando a viso da indstria automobilstica quanto ao seu uso. Tambm so analisadas as emisses atmosfricas associadas ao uso do etanol, comparativamente gasolina. Igualmente de interesse para os contextos nacionais que pretendem adotar o etanol como combustvel, comentam-se o marco legal genrico para o emprego de etanol para fins veiculares, algumas particularidades econmicas como a formao de preos no mercado de combustveis com etanol e os mecanismos tributrios associados e aspectos da logstica do mercado de combustvel, considerando a adoo de etanol.

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    2.1 Dimenses tcnicas e ambientais do uso do etanol

    O etanol, ou lcool etlico, uma substncia com frmula molecular C2H6O, que pode ser utilizada como combustvel em motores de combusto interna com ignio por centelha (ciclo Otto) de duas maneiras, basicamente: 1) em misturas de gasolina e etanol anidro; ou 2) como etanol puro, geralmente hidratado. A Tabela 2 sintetiza as principais caractersticas do etanol e de uma gasolina tpica. Vale observar que essas propriedades no se referem a uma especificao formal, que inclui diversas outras propriedades e parmetros associados segurana, ao desempenho, contaminao e agressividade qumica. No caso brasileiro, as especificaes, que devem ser atendidas pelos produtores e respeitadas por toda a cadeia de comercializao, so definidas pela Portaria ANP 309/2001, para a gasolina com etanol anidro, e pela Resoluo ANP 36/2005, para o etanol anidro e hidratado, denominados, res-pectivamente, lcool etlico anidro combustvel (AEAC) e lcool etlico hidratado combustvel (AEHC), na legislao brasileira. Segundo essa legislao, considerando teores em massa, o etanol anidro deve conter menos 0,6% de gua, enquanto que, para o etanol hidratado, esse teor deve estar entre 6,2% e 7,4%. Expressos como proporo em volume a 20 C, esses va-lores correspondem, respectivamente, a um teor mximo de 0,48% para o etanol anidro e a uma faixa de 4,02% a 4,87% para o etanol hidratado.

    Tabela 2 Propriedades da gasolina e do bioetanol

    Parmetro Unidade Gasolina Etanol

    Poder calorfico inferior kJ/kg 43.500 28.225

    kJ/litro 32.180 22.350

    Densidade kg/litro 0,72 0,78 0,792

    Octanagem RON (Research Octane Number) 90 100 102 130

    Octanagem MON (Motor Octane Number) 80 92 89 96

    Calor latente de vaporizao kJ/kg 330 400 842 930

    Relao ar/combustvel estequiomtrica 14,5 9,0

    Presso de vapor kPa 40 65 15 17

    Temperatura de ignio grau C 220 420

    Solubilidade em gua % em volume ~ 0 100

    Fonte: API (1998) e Goldemberg e Macedo (1994).

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    No Brasil, h vrias dcadas, os nicos combustveis encontrados em todos os postos de ga-solina para motores de ignio por centelha so:

    gasolinas regular e premium, com octanagem mdia (entre os mtodos RON e MON) mnima de 87 e 91, respectivamente, ambas sempre com um teor de etanol anidro estabelecido entre 20% e 25%, conforme deciso do governo federal, em-pregadas nos veculos nacionais e importados com motores a gasolina, inclusive os modelos de luxo.

    etanol hidratado, com uma octanagem mdia superior a 110, usado em veculos aptos para seu uso, que podem usar motores prprios para esse combustvel ou motores flex-fuel, capazes de usar quaisquer misturas de etanol hidratado e gasolina (com 20% a 25% de etanol).

    O etanol hidratado puro deve ser usado em motores fabricados ou adaptados especifica-mente para esse fim, em particular com a adoo de taxas de compresso mais elevadas, visando utilizar adequadamente a octanagem mais alta do etanol frente gasolina e obter ganhos de eficincia de 10%. Em outras palavras, a maior octanagem do etanol permite que os motores obtenham mais energia til do calor do combustvel, comparativamente gaso-lina. Outras modificaes devem ser efetuadas no sistema de alimentao de combustvel e na ignio, para compensar as diferenas na relao ar-combustvel e outras propriedades. Alm disso, so requeridas modificaes em alguns materiais em contato com o combustvel, como tratamento anticorrosivo das superfcies metlicas dos tanques, filtros e bombas de combustvel e substituio de tubulaes ou adoo de materiais mais compatveis com o etanol. Atualmente, aps dcadas de aperfeioamento de motores especialmente fabricados para etanol, a tecnologia automotiva est suficientemente desenvolvida para permitir que veculos a etanol puro hidratado tenham desempenho, dirigibilidade, condies de partida a frio e durabilidade absolutamente similares aos motores a gasolina, especialmente em pases com invernos moderados.

    Com a intensa utilizao da eletrnica embarcada em sistemas avanados de controle de mistura e de ignio, a partir de 2003 foram lanados comercialmente, no Brasil, veculos com os motores flexveis (flex-fuel), capazes de utilizar, sem qualquer interferncia do moto-rista, gasolina (com 20% a 25% de etanol), etanol hidratado puro ou ainda misturas desses dois combustveis em qualquer proporo, de acordo com os requisitos de eficincia e di-rigibilidade e atendendo aos limites legais de emisses de gases de escapamento [Joseph Jr. (2007)]. Os veculos equipados com esses motores tm representado a maioria dos veculos novos vendidos no Brasil a partir de 2005 e, desde ento, vm se aperfeioando, em termos de desempenho e funcionalidade dos sistemas de partida a frio. Atualmente, existem mais de 60 modelos diferentes, fabricados por dez montadoras de origem americana, europia e japonesa, instaladas no pas. Essa concepo de veculo flexvel adotada no Brasil permite ao usurio escolher, de acordo com sua convenincia, o combustvel que vai usar, desde 100% de etanol hidratado at uma gasolina com 20% a 25% de etanol. Nos Estados Unidos, no

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    Canad e na Sucia, tambm so comercializados veculos com motores flexveis, mas sob outro conceito, operando em uma faixa de teores de etanol que vai da gasolina pura, sem etanol, at uma mescla com 85% de etanol anidro e 15% de gasolina, produto disponvel em uma quantidade crescente, mas ainda limitada, de postos, sob a sigla E85.

    Entretanto, a maneira mais simples, freqente e imediata para utilizar o etanol como combus-tvel mediante o uso de misturas com gasolina nos veculos j existentes no pas, sem neces-sidade de efetuar modificaes nos motores. Essa a situao de maior interesse, tanto para os pases em desenvolvimento que podem produzir etanol e dependem de importaes de combustveis para seu abastecimento, a custo cada vez mais elevado, quanto para os pases industrializados que tm, atualmente, um potencial limitado de produo interna de etanol, mas que podem diversificar sua matriz de combustveis lquidos, agregando produo local o etanol importado de regies com condies favorveis para a produo desse biocombus-tvel. Nesse sentido, cabe verificar as implicaes da adoo de misturas de etanol e gasolina sobre o desempenho dos motores, a dirigibilidade e a durabilidade dos veculos e o impacto ambiental associado.

    No Brasil, desde a dcada de 1980, o teor de etanol anidro em toda a gasolina comercializada nos postos revendedores esteve acima de 20%. Nos Estados Unidos, pas que tambm passou a utilizar misturas etanol-gasolina naquela dcada, esse teor ficou limitado a 10%, tambm conhecido como E10, e passou a ser considerado pela indstria automobilstica padro m-ximo para adoo da mistura sem necessidade de alteraes de materiais, componentes ou recalibraes de motor. Em anos recentes, diversos pases, como China, Tailndia, Austrlia e Colmbia, adotaram o E10 como ponto de partida para a introduo do uso do etanol em seus mercados. Em teores dessa ordem, o etanol atua como aditivo melhorador da qualidade da gasolina (octane booster) e redutor de emisses poluentes, substituindo o chumbo tetra-etila e outros aditivos oxigenantes que apresentam restrio ambiental, como o MTBE, e vm tendo seu uso banido em muitos pases. A experincia de diversos pases com o E10 permite afirmar que essa mistura pode ser introduzida para abastecer o parque veicular exis-tente sem maiores alteraes.

    A Tabela 3 mostra como variam as exigncias de alteraes nos veculos em funo do teor de etanol na gasolina [Joseph Jr. (2005)]. Observe-se que os veculos a gasolina utilizados no Brasil (fabricados localmente ou importados) esto preparados para utilizar teores mdios de etanol e j contam com algumas modificaes em relao a um veculo para gasolina pura. No caso dos motores flexveis, verifica-se que a concepo norte-americana, que utiliza mis-turas com at 85% de etanol na gasolina, mais simples do que a brasileira, pois no vem equipada com o sistema auxiliar de partida a frio, mas no permite aos motores operar at com etanol puro. Entretanto, com o desenvolvimento de sistemas de injeo mais avanados, em futuro prximo no haver necessidade desses sistemas auxiliares, e a configurao ado-tada no Brasil poder ser simplificada.

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    Quando o etanol misturado gasolina, resulta um novo combustvel, com algumas carac-tersticas distintas do valor determinado pela ponderao direta das propriedades de cada componente, por causa do comportamento no-linear de certas propriedades.

    Tabela 3 Exigncias de alteraes em veculos para diferentes teores de bioetanol na gasolina

    % de bioetanol

    na gasolina

    Modificaes em um veculo a gasolina pura

    Car

    bura

    dor

    Inje

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    de c

    ombu

    stv

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    Bom

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    artid

    a a

    frio

    5% Para qualquer veculo

    10% Para veculo produzido a partir de 1990

    25% Veculo a gasolina brasileiro

    85% Veculo flexvel utilizado nos EUA e no Canad

    85% Veculo flexvel utilizado no Brasil

    No so necessrias alteraes Provavelmente so necessrias alteraes

    Fonte: Elaborado com base em Joseph Jr. (2005).

    preciso recordar que, enquanto o etanol uma substncia qumica simples, a gasolina sempre uma mistura com mais de 200 diferentes espcies de hidrocarbonetos derivadas do petrleo. So comentadas, a seguir, as principais propriedades das misturas gasolina/etanol e seu comportamento em aspectos ambientais.

    Octanagem

    Octanagem a medida de resistncia de um combustvel auto-ignio e detonao, avaliada pelos mtodos Motor (MON) e Research (RON), que permite inferir o compor-tamento de um motor alimentado com esse combustvel, respectivamente, em condies de carga elevada ou carga constante. O etanol , reconhecidamente, um excelente aditivo antidetonante e melhora a octanagem da gasolina-base de modo sensvel. Exatamente por ter toda a gasolina aditivada com etanol, o Brasil foi um dos primeiros pases do mundo a abolir

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    totalmente o chumbo tetraetila e somente adotou o MTBE de modo episdico e localizado, durante os anos 1990. Esses aditivos antidetonantes ainda so empregados em alguns pases, mas acarretam problemas ambientais e esto em progressivo desuso. Como se pode observar pelos valores apresentados na Tabela 4, a adio de etanol afeta mais a octanagem RON do que a MON e constata-se, ainda, uma grande influncia da composio da gasolina-base e, portanto, de sua octanagem original sobre o incremento da octanagem, devido ao etanol. Como regra geral e de clara importncia, quanto mais baixa a octanagem da gasolina-base, mais significativo o ganho devido ao etanol.

    Tabela 4 Efeito do bioetanol na octanagem da gasolina-base

    Composio da gasolina-baseIncremento da octanagem com:

    5% de bioetanol

    10% de bioetanol

    15% de bioetanol

    20% de bioetanol

    Aromticos Olefnicos Saturados MON RON MON RON MON RON MON RON

    50 15 35 0,1 0,7 0,3 1,4 0,5 2,2 0,6 2,9

    25 25 50 0,4 1,0 0,9 2,1 1,3 3,1 1,8 4,1

    15 12 73 1,8 2,3 3,5 4,4 5,1 6,6 6,6 8,6

    11 7 82 2,4 2,8 4,6 5,5 6,8 8,1 8,8 10,6Fonte: Carvalho (2003).

    Volatilidade

    Para que um combustvel queime corretamente, necessrio que esteja bem misturado com o ar. Portanto, a facilidade de um combustvel lquido em vaporizar-se uma propriedade importante, que afeta diretamente diversos parmetros de desempenho do veculo, como condies de partidas a frio ou a quente, acelerao, economia de combustvel e diluio do leo lubrificante. Exatamente por isso, os combustveis derivados de petrleo devem apre-sentar uma composio equilibrada entre fraes leves e pesadas, de modo a produzir uma curva de destilao, segundo a qual o produto comea a se vaporizar a temperaturas rela-tivamente mais baixas e termina a temperaturas bem mais elevadas do que a temperatura ambiente. A adio de etanol tende a baixar a curva de destilao, especialmente em sua primeira metade, afetando a chamada temperatura T50, correspondente a 50% da massa evaporada, embora as temperaturas inicial e final de destilao sejam pouco afetadas. Nesse sentido, a adio de etanol de reduzida importncia para o comportamento dos motores.

    Entretanto, uma propriedade importante e relacionada com a volatilidade a presso de vapor significativamente afetada pela adio de etanol. A presso de vapor determina o nvel das emisses evaporativas e a possibilidade de ocorrer formao de vapor nas linhas de alimentao de combustvel, um problema minorado com a atual adoo de bombas de combustvel no tanque, como ocorre na grande maioria dos veculos modernos. interessan-te constatar que, embora a presso de vapor da gasolina pura seja superior do etanol puro,

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    como apresentado na Tabela 2, a adio de etanol gasolina eleva a presso de vapor da mistura. Esse incremento, tipicamente, apresenta um mximo em torno de 5% em volume de etanol na gasolina, reduzindo-se lentamente medida que cresce o teor de etanol. A ttulo ilustrativo, pode-se citar o exemplo de uma dada composio de gasolina que, recebendo 5% de etanol, tem sua presso de vapor elevada para 7 kPa, enquanto, com 10% em volume, essa presso vai a 6,5 kPa [Furey (1985)]. Esse efeito pode ser corrigido sem dificuldades, ajustando a composio da gasolina-base, de modo a garantir que a mistura cumpra com as especificaes. No Brasil e em outros pases que tm introduzido etanol na gasolina, a pres-so de vapor tem sido especificada em nveis similares gasolina pura. Em poucas palavras, o efeito do etanol sobre a presso de vapor pode ser controlado sem maiores dificuldades.

    DesempenhoComo as misturas gasolina/etanol podem ser adequadamente ajustadas para atender s espe-cificaes tpicas de uma gasolina pura, no existem, necessariamente, problemas de desem-penho e dirigibilidade, desde que se cumpram os requisitos de qualidade especificados para os combustveis. No entanto, comparado gasolina pura, uma gasolina com 10% de etanol necessita de 16,5% mais calor para vaporizar-se totalmente, o que pode ser uma dificuldade real em temperaturas muito baixas [TSB (1998)]. Por outro lado, o maior calor de vaporizao da gasolina aditivada com etanol uma das razes principais para que a eficincia de um motor que utiliza esse combustvel aumente entre 1% e 2% em relao ao desempenho com gasolina pura. Desse modo, mesmo que uma gasolina com 10% de etanol contenha 3,3% menos energia por unidade de volume, o efeito final sobre o consumo de combustvel me-nor e depende das condies particulares de uso [Orbital (2002)].

    Esse ponto relevante: em teores de at 10%, o efeito da adio de etanol sobre o consumo dos veculos inferior variao de consumo observada entre diferentes motoristas e, para efeitos prticos, um litro de gasolina aditivada com etanol produz praticamente os mesmos efeitos que um litro de gasolina pura [Salih e Andrews (1992) e Brusstar e Bakenhus (2005)]. J para teores mais elevados, como 25% de etanol, correspondendo a um contedo energtico em volume 10% inferior, observa-se um aumento mdio no consumo da ordem de 3% a 5% sobre a gasolina pura. Esses resultados, confirmados em muitos ensaios de campo, indicam como o etanol, embora apresente menor poder calorfico, permite melhorar a eficincia do motor, graas menor temperatura na admisso e ao maior volume dos produtos de com-busto. Com o etanol puro hidratado, esse efeito ainda mais sensvel, desde que o motor seja corretamente adaptado para esse combustvel, incrementando sua taxa de compresso: embora apresente um poder calorfico cerca de 40% inferior ao da gasolina, o efeito final nos motores atuais um consumo de 25% a 30% mais elevado do que a gasolina.

    A mdio prazo, a adoo de conceitos mais avanados de engenharia de motores, como a inje-o direta de combustvel, taxas de compresso mais elevadas e sistemas de turboalimentao inteligentes, poder trazer ganhos expressivos de consumo especfico nos motores a etanol hidra-tado, at mesmo superando os valores obtidos com gasolina pura [Szwarc (2008)].

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    Separao de fasesA possibilidade de ocorrer uma separao de fases aquosas em uma mistura etanol/gasolina , fre-qentemente, mencionada como um problema para a adoo de etanol combustvel. Existe um temor de que, de algum modo, a gua seja introduzida com o etanol ou se condense no tanque de combustvel de um veculo, ficando separada no fundo e causando problemas para o funcio-namento normal do motor. A rigor, esse problema tende a ser tanto menor quanto maior for a adio de etanol gasolina. Enquanto a gasolina pura praticamente no absorve gua, o etanol anidro tem total afinidade com a gua, fazendo com que as misturas gasolina/etanol apresentem uma capacidade de dissolver gua diretamente proporcional ao teor alcolico, como indicado no diagrama ternrio apresentado na Figura 4. Quanto mais elevado o teor de etanol na gasolina, mais larga a faixa que define a regio na qual ocorre total solubilidade, como se observa na parte superior do diagrama. Sob temperaturas muito baixas, esse efeito menos pronunciado, mas, de todo modo, o etanol sempre atua como um co-solvente entre a gasolina e a gua, reduzindo os riscos de separao da fase aquosa da gasolina.

    Figura 4 Solubilidade da gua em misturas gasolina/etanol

    Etanol 100% Vol.

    Gasolina 100% Vol. gua 100% Vol.(% de Volume a 24 C)

    90

    80

    70

    60

    60

    60

    70

    80

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    10

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    20

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    20

    30

    30

    30

    40

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    50

    4

    REGIO DE 2 FASES

    Fonte: CTC (1998).

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    A possibilidade de a gasolina com etanol apresentar uma solubilidade razovel para a gua e o fato de termos temperaturas amenas no pas explicam como funcionam sem problemas os veculos flexveis no Brasil, onde podem ser abastecidos com qualquer mistura de gasolina (com 20% a 25% de etanol) e etanol hidratado, cuja gua no se separa, exatamente, graas ao lcool previamente contido na gasolina. Caso a gasolina brasileira no contivesse um teor elevado de etanol anidro, sua mistura com etanol hidratado provavelmente levaria a uma separao de fases, especialmente em condies com temperaturas inferiores a 18 C. Por-tanto, no faz sentido imaginar que a adio de etanol anidro gasolina cause problemas de separao de fases na verdade, ela reduz tais problemas.

    Compatibilidade de materiais

    Alguns materiais plsticos mais antigos, utilizados em vedaes, mangueiras e filtros, como a borracha natural e a borracha sinttica butlica, tendem a se degradar mais rapidamente na presena de etanol. Entretanto, desde 1980, esses materiais tm sido substitudos por elast-meros fluorados, o que resolveu esse problema. A Tabela 5 apresenta os resultados de testes de durabilidade conduzidos pelo exrcito britnico [Orbital (2002)], confirmando a adequa-o ao etanol da maioria dos plsticos usados atualmente. Ainda nesse sentido, uma empresa de petrleo apresenta os seguintes comentrios aos seus consumidores:

    De acordo com a nossa experincia no h um problema significativo de compa-tibilidade de gasolinas com oxigenados e elastmeros em carros mais antigos. No houve um aumento nos problemas quando gasolina com etanol ou MTBE foram introduzidos em reas metropolitanas em 1992, inclusive nas regies com maiores propores de carros antigos na frota [Chevron (2006)].

    Com relao aos metais, em condies normais de uso, esses materiais esto sempre sujeitos corroso, sendo necessrio sua adequada seleo e, eventualmente, o emprego de revesti-mentos protetores. Os metais considerados de baixa resistncia ao etanol e suas misturas so as ligas para fundio por presso (tipo Zamac) e algumas ligas de alumnio [Owen e Coley (1995)]. A agressividade do etanol depende do teor alcolico na gasolina e est associada, particularmente, presena de gua, cidos orgnicos e contaminantes. Para misturas de gasolina com 10% de etanol, o desgaste de componentes metlicos foi bastante estudado e considerado irrelevante, comparado gasolina normal. Em teores mais elevados, h um efetivo receio de problemas de compatibilidade e corroso. Isso explica por que, durante os anos 1970, quando a gasolina brasileira passou a incorporar etanol em nveis mais elevados, introduziram-se, paulatinamente, diversas modificaes nos sistemas de combustvel dos ve-culos. Processos de recobrimento metlico e de proteo como niquelagem e cromao so comuns nos tanques de combustvel dos automveis brasileiros, sendo tambm crescente o uso de materiais plsticos para esses componentes.

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    Tabela 5 Durabilidade de materiais plsticos em bioetanol

    Plstico Durabilidade

    Polietileno convencional Aceitvel

    Polipropileno Aceitvel

    Polimetilpenteno (PMP) Aceitvel

    Policarbonato Aceitvel

    Cloreto de vinila (PVC) Aceitvel

    Polietileno de alta densidade Excelente

    Politetrafluoretileno (Teflon) ExcelenteFonte: Orbital (2002).

    A maneira mais eficaz de reduzir os eventuais problemas de compatibilidade de materiais com etanol mediante sua adequada especificao, estabelecendo nveis mximos de acidez total, pH, condutividade eltrica, bem como limites para alguns ons (cloretos, sulfatos, ferro, sdio e cobre). Por isso mesmo, so essenciais para o sucesso de um programa de etanol combustvel a correta definio e a estrita observao da especificao desse biocombustvel. Nesse sentido, relevante a iniciativa de harmonizar as especificaes do etanol combustvel, como vem sendo conduzida por um esforo conjunto de Brasil, Unio Europia e Estados Unidos, com bons resultados [Gazeta Mercantil (2008)].

    Emisses de gases de escape

    Como conseqncia de sua composio, comparativamente s gasolinas tpicas, a combusto da gasolina com etanol e do etanol puro em motores produz menores emisses de monxido de carbono (CO), xidos de enxofre (SOx), hidrocarbonetos e outros compostos poluentes. Ao mesmo tempo, elevam-se os aldedos (compostos do tipo R-CHO) e, dependendo das caractersticas do motor, os xidos de nitrognio (NOx). Normalmente, os limites legais de emisso para veculos so atendidos em sua plenitude, sendo os benefcios resultantes do uso do etanol fato bastante conhecido.

    interessante observar que a motivao bsica para a adio de etanol na gasolina de diversas regies dos Estados Unidos, a partir dos anos 1990, foi exatamente a melhoria da qualidade do ar, associada oxigenao promovida pelo etanol [Yacobucci e Womach (2002)]. Como os modelos mais antigos so mais poluentes, quanto mais antigo o motor (isto , com carburador e sem catali-sador), mais significativo o potencial de vantagens ambientais proporcionadas pelo etanol frente gasolina. Alm disso, o etanol danifica menos o catalisador, em comparao com a gasolina, principalmente pelo fato de conter menos contaminantes, como o enxofre. No Grfico 4, mostra-se como a emisso dos veculos produzidos no Brasil se reduziu ao longo das ltimas dcadas, por conta do desenvolvimento tecnolgico dos motores e da introduo do etanol [Ibama (2006)]. Nesse grfico, deve ser observado que os valores para os aldedos esto multiplicados por 100, por serem bastante reduzidos.

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    Grfico 4 Evoluo das emisses de veculos novos no Brasil

    Fonte: Elaborado com base em Ibama (2006).

    Em alguns estudos, sinaliza-se uma preocupao especial com as emisses de aldedos asso-ciadas ao uso de etanol. Com efeito, essas substncias apresentam potencial cancergeno e podem se apresentar em teores mais elevados no escapamento dos motores que utilizam eta-nol do que naqueles a gasolina pura. Entretanto, os catalisadores equipamentos instalados nos veculos norte-americanos a partir de 1975 e que passaram a ser progressivamente utili-zados em todos os veculos comercializados em outras regies do mundo e no Brasil a par tir de 1997 reduzem esses poluentes a nveis tolerveis, sem agravantes. Atualmente, a emisso mdia de aldedos nos veculos novos brasileiros de 0,014 g/km para os veculos a etanol e 0,002 g/km para os veculos a gasolina (a gasolina de referncia para os testes de emisso contm 22% de etanol anidro), ndices inferiores ao atual limite de 0,030 g/km estabelecido pela legislao ambiental brasileira, bem como ao futuro limite de 0,020 g/km, que passar a valer em 2009 [Ibama (2006)]. Diversas medies em cidades americanas, comparando a qualidade do ar antes e aps a introduo mais massiva de 10% de etanol na gasolina, no indicaram qualquer incremento significativo na concentrao atmosfrica de aldedos [An-dersson e Victorinn (1996)]. A rigor, a maior fonte de aldedos nos contextos urbanos tm sido os motores diesel [Abrantes et al. (2002)] e parecem ser bastante conclusivas as observaes de um abrangente estudo desenvolvido na Austrlia, segundo o qual a adoo de 10% de etanol na gasolina permite decrescer em 32% as emisses de CO, em 12% as emisses de hidrocarbonetos e em mais de 27% as emisses de aromticos, reduzindo o risco carcinog-nico em 24% [Apace (1998)].

    Uso do etanol em motores diesel

    Com relao ao uso de etanol em caminhes e nibus, interessante observar que os mesmos fatores que tornam o etanol especialmente apto a ser utilizado em motores com ignio por

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    centelha o fazem pouco atrativo para os motores com ignio por compresso (ciclo Diesel), geralmente empregados nesses veculos. Nesse caso, necessrio aditivar o etanol de forma intensa, para reduzir sua octanagem, ampliar sua cetanagem e seu poder lubrificante e, even-tualmente, utilizar co-solventes, o que tem se mostrado pouco vivel em termos econmicos. No obstante, graas aos efeitos ambientais positivos, o uso de etanol em motores diesel oti-mizados para esse biocombustvel j uma realidade, em particular na Sucia, onde, h mais de 18 anos, diversos nibus em uso regular em Estocolmo vm utilizando etanol hidratado com cerca de 5% de aditivo em motores diesel [Ethanolbus (2008)]. Os resultados mostrados pelos 600 nibus operando em oito cidades suecas tm sido estimulantes. Recentemente, foi lanada uma terceira gerao de motores comerciais a etanol com 9 litros de deslocamento, 270 CV de potncia e uma elevada taxa de compresso (28:1), atendendo s novas normas europias de emi