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8/18/2019 Bobbio - Existe Uma Doutrina Marxista Do Estado http://slidepdf.com/reader/full/bobbio-existe-uma-doutrina-marxista-do-estado 1/19 Existe uma doutrina marxista do Estado?  Norberto Bobbio D e um ensaio de já há alguns anos, publicado sem editora e sem data (tanto que passou despercebido), peguei o tema de uma afirmação de Umberto Cerroni para fazer algumas considerações sobre a inexistência, ou insuficiência, ou deficiência, ou irrelevân- cia denunciada e deplorada de uma ciência política “marxística”, entendida como “falta de uma teoria do estado socialista ou de uma democracia socialista como alternativa à teoria, ou melhor, às teorias do Estado burguês, da democracia burguesa” Depois de alguns anos, dirseia que as coisas não mudaram muito se, na sua “conhecidíssima” entrevista, Lucio Colletti lamenta “a debilidade e o desenvolvimento fragmentário da teoria política no interior do marxismo”, concluindo “que ao marxismo falta uma teoria políti- ca própria e verdadeira” 2. 1. Democrazia socialista? in AA. W ., Omaggio a Nenni, publicado como editorial dos “Quaderni di Mondoperaio” , sem lugar de edição e sem data, mas 1973, p. 431. 2. L. Colletti, Entrevista poiíticofilosófica, Bari, Laterza, 1974. p. 30. 13

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Existe uma doutrina marxista do Estado?

 Norberto Bobbio

D e um ensaio de já há alguns anos, publicado sem editora esem data (tanto que passou despercebido), peguei o tema de umaafirmação de Umberto Cerroni para fazer algumas consideraçõessobre a inexistência, ou insuficiência, ou deficiência, ou irrelevân-cia denunciada e deplorada de uma ciência política “marxística”,entendida como “falta de uma teoria do estado socialista ou de

um a dem ocracia socialista como alternativa à teoria, ou m elhor, àsteorias do Estado burguês, da dem ocracia burgue sa” Depo is dealguns anos, dirseia que as coisas não mudaram muito se, na sua“conhecidíssima” entrevista, Lucio Colletti lamenta “a debilidadee o desenvolvimento fragmentário da teoria política no interior domarxismo”, concluindo “que ao marxismo falta uma teoria políti-ca própria e verdadeira” 2.

1. Dem ocrazia socialista? in AA . W ., O magg io a N enni, pub licado como editor ialdos “Q uade rni di M on do pe raio” , sem lugar de edição e sem data, m as 1973, p. 431.2. L. Colletti, Entrevista poiíticofilosófica, Bari, Laterza, 1974. p. 30.

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Para tentar explicar a situação, adotei no ensaio precedentedois argumentos: o interesse prevalecente, se não exclusivo, dosteóricos do socialismo pelo problema da conquista do poder, onde

o realce dado ao prob lem a do p artido mais do que ao do Estado, ea persistente convicção de que u m a vez con quistado o po der o Es-tado seria um fenômeno de “transição”, isto é, destinado maiscedo ou mais tarde a desaparecer, sendolhe portanto particular-mente adequ ada aquela forma de governo, dada sua natureza tran-sitória, que é a d itadu ra (no sentido original de governo ex traordi-nário po r tem pos e eventos extraordinários). Aq ui pretendo incluirum outro argumento cujo alcance, advirto logo, vai muito além do

tema específico. Atinge nada menos que o problema do modo deser ou n ão ser m arxista em um p eríod o h istórico no qual n ão existemais marxismo, mas existem tantos marxismos inimigos entre elese impulsionados, freqüentemente, um contra o outro por um ver-dadeiro e próprio furor teológico, ou, o que dá no mesmo, políti-cos e reagrupados. Quero dizer com isto “reclusos” em “escolas”(não temos mais nenhuma inibição em falar da “escola de Frank-furt” o u da “ escola de B udape ste” , isto é, usar um term o “ escola”no que se refere ao m arxismo pareceria em o utros tem pos insensa-

to e inconveniente)

Vitalidade do marxismo e disputas escolásticas

 N ão que, ta m bém em ou tras épocas, não tenham exis tido di-versos marxismos. Mas enquanto podese falar legitimamente de

um m arxismo d a Segunda e, com m aior razão, da Terceira Interna -cional, não teria nenhum sentido falar do marxismo dos anos cin-quenta, ou sessenta, ou setenta. Muitas outras são as razões desta

 proli feração, especia lm ente se com paradas àquelas que poderia mter sido ado tada s há um século atrás. A lgumas são de nature za m e-ram ente filosófica, com o a descob erta dos textos juvenis de M arx em geral inéditos que dividiram os intérpretes entre aqueles maisconsiderados, como a escola de Budapeste, e aqueles que o repu-

diam, como Althusser e sua escola, sobre a qual fundouse umacontraposição entre marxismo humaníst ico e nãohumaníst ico(teológico). O utra s são de na turez a gen uinam ente filosófica e se re-lacionam com a tendência antiga do marxismo, aliandose às filo-sofias emergentes de quando em vez, onde foram feitas as várias

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tentativas de coligação entre marxismo e existencialismo (Sartre);entre marxismo e fenomenologia (Paci na Itália, o grupo de “Te

los” nos Estados Unidos e ainda a escola de Budapeste); e entremarxismo e estruturalismo (Althusser e as várias ramificações).Compreendese que as ocasiões para esses enriquecimentos (ouconfusões, segundo o po nto de vista) aum entaram (no fim do sécu-lo e no início do novo as contaminações possíveis foram essencial-m ente duas, com o positivismo e o neok antism o). O utras são aindade natureza política, onde se distingue (o que era impossível antesdas revoluções socialistas) um marxismo ocidental de um marxis-mo soviético ou çhinês ou iugoslavo, quando falouse pela primei-ra vez de “neortíarxismo” em relação aos problemas do TerceiroMundo que o marxismo histórico nunca tinha enfrentado direta-mente. Não se pode pois esquecer que, entre os vários motivos dediscórdia no interior do marxismo contemporâneo, está também adiversa valorização da contribuição de Engels ao patrimônio co-mum: tra tase de um a discórdia que foi se exa cerband o nos últim osanos e era ignora da pelo m arxism o h istórico, ou, pelo menos, nun -ca atingira a intensidade atual ao p on to em que Engels, como cola-

 borador, tornouse para alguns apenas um vulgariz ador, ou pio r,um corruptor do pensamento de Marx. E se na teoria marxista háalgum a coisa fora de orde m , “ la faute est ,à Engels”

Qu e existam tanto s m arxism os não é e que fique bem claro um escândalo. Pelo contrário, é um sinal de vitalidade, como foium sinal de vitalidade do cristianism o a m ultiplicação , na época da

R eforma . O “ neo” também é um bom sinal; desconfio dos sistemasfilosóficos que não renascem sob este sinal (existir uma neoCruzada, um neogentilismo?). Tivesse sobrado um único marxis-mo, poderseia pensar que está morto ou morrendo e, pessoal-mente, eu me m anteria afastado , acon selhand o àqueles que acredi-tam ainda na função crítica da razão a fazer o mesmo. Mas, não énecessário fechar os olhos perante algumas conseqüencias deste

 pluralism o; antes de mais nada, há um certo desperdíc io de energia

intelectual na controvérsia entre os vários caminhos, energia estaque seria melhor empregada ao estudar com maior empenho oscampos do saber que ficaram fora dos confins dos interesses dosfunda dq res e de seus discípulos mais diretos, bem com o de seus se-guidores e, o mais importante, a realidade sempre mais complexado mundo que nos circunda.

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 N ão estou plenam ente convencid o dando um exemplo ber-rante da utilidade da disputa que fervilha entre marxistas pró e

contra o historicismo. Aos olhos de alguns dos maiores filósofosmarxistas atuais (A lthusser na Fra nça e Luporini na Itália), conti-nu ar a dizer que o m arxismo é historicismo, com o foi afirm ado du -rante decênios na Itália e proclamado incautamente inclusiye porGramsci, significa desproverse. A filosofia de Marx, afirmase,não é o historicismo mas o estruturalismo . A ntes de mais nada, p a-receme que n ão se considera o q ua nto (eis aqui o ca ráter escolásti-co da dispu ta) tod os estes “ ismos” filosóficos já assum iram, no de-correr de suas multiformes utilizações, os mais diversos significa-dos, sendo e tiquetas aplicáveis a recipientes com os conteúd os m aisdiversos. Se é verdade que o “historicismo” foi freqüentementeagregado a filosofias reacionárias, o mesmo aconteceu com o “es-truturalismo” (que não é outra coisa senão “estruturalística” e,

 por essa razão, condenada com o a teoria daquele que os soció logos progressistas apontam com o dedo em riste , considerando com o prín cip e dos soció lo gos reacio nário s, T alco tt Parsons?) E, pergun-to, não era Nietzsche, filósofo da “reação” como tantos outros, se-

não do próprio imperialismo como o queria Lukàcs, um antihistoricista?

Em segundo lugar, não se pode fugir da consideração de queos “ismos” filosóficos valem mais por aquilo que negam do que

 pelo que afirm am . E que o “ historicism o” em particu lar sempreteve um significado polêmico enorme historicismo contra iluminismo, contra racionalismo abstrato, contra jusnaturalismo, e aconseqüente eternização da natureza hum ana c ontra qualquer con-

cessão teológica e providenc ialista da história um significado po-lêmico que o estruturalismo, até prova em contrário, não possui,quando seria dar prova de escassa sagacidade privar a filosofiam arxista que foi antiilum inista, antijusna turalista, antiteológica,etc.

Enfim, ainda deve ser dem onstrada toda a im portânc ia que es-tes debates in apicibus  têm para a solução dos progemas do nossotempo, onde o marxismo deveria, pelo contrário, nos oferecer umasolução. Coloco a questão em termos mais precisos: qual êxito político ou prático se re tém em gera l da tese de que M arx é maisum estruturalista do que um historiador? Esta pergunta não podeser colocada a propósito de Marx. Marx não é um Kant nem umLeibniz, para os quais uma discussão teórica permanente pode ser 

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também o seu próprio limite. Em uma discussão sobre Marx, o proble m a da teoria é in separável do da prática. Pois bem, o rela-

cionamento entre teoria e prática é muito mais complexo do queaquilo em que tenha sempre acreditado o puro racionalista, queafirma que uma certa prática pode ser deduzida de uma certa teo-ria, ficando talvez escandalizado se lhe dissesse que a maior partedas teorias são, em geral, racionalizações póstumas de práticas já passadas ou que se gostaria de concluir. É possível que Pareto, comsua teoria das derivações, tenha sido em vão, não atingindo a certe-za dos novos racionalistas que deduzem do historicismo uma práti-ca reacionária e do estruturalism o um a prática revolucionária? Emvez de utilizar Marx para disputas desta espécie, que deleitam os fi-lósofos e são obscuras para os profanos, os quais não suspeitamque para ser revolucionário é necessário não ser historicista, nãoseria mais sábio, como o fazem aliás os economistas e sociólogosque evocam o m arxismo, utilizar a ob ra de M arx para aquilo que éainda utilizável, com o objetivo de tirar proveito de instrumentosconceituais adequados à análise da sociedade contemporânea?

 Abuso do princípio de autoridade

Disse que para explicar a falta de uma teoria socialista do Es-tado, pretendo utilizar um novo argumento. Este, em poucas pala-vras, é o abuso do princípio de autoridade. Já explico. Diante dadeficiência constatada, estaríamos induzidos a pensar que o pri-

meiro passo a ser dado seria estudar com instrumentos cada vezmais perfeitos de análise a realidade p resente, tanto aque la dos Es-tados capitalistas como a dos Estados coletivistas, com o objetivode descobrir os defeitos de funcionamento, tendo bem claros namente os objetivos que se deseja alcançar. Ao contrário, ocorreainda muito amiúde que se considere como primeiro dever de ummarxista verificar o que disse Marx (e talvez também Engels e tal-vez também Lênin) e, portanto, tentar persuadir os incrédulos ouos mal informados de que, apesar de tudo, existe em Marx umateoria de Estado completa que até então não tinha sido compreen-dida, ou não tenha sido compreendido como um todo, ou injusta-mente desvalorizada. Não creio poder ser desmentido quando digoque, na falta declarada de uma teoria socialista do Estado, acredi-touse ser possível suprir com sáb ias e sutis inte rpretações de textos

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marxianos ou marxistas (que no fundo são sempre os mesmos) aoinvés de um estudo das instituições políticas dos Estados contem-

 porâneos, perpetuando um hábito , um vício, um a deform ação to-talmente acadêmica, (e assim pouco marxiana), que é a de tentarentender o Estado liberal clássico lendo Kant, ou a Restauraçãolendo Hegel, privilegiando a história das doutrinas políticas (maisfáceis par a es tudo) e não a das instituições. Po r esta razão é que te-mos ótimos livros sobre o que pensavam Marx, Lênin ou Gramsciem relação ao Estado (refirome ao livro, realmente excelente, deChristine B uciG lucksmann, Gramsci et 1’Ê tat, recentem ente edita-do), ou diretam ente sobre um arg um ento de tão escassa atualidade

tema oitocentista por excelência com o a extinção do E stado (re-firome ao livro cujos m éritos sou o prime iro a reconhecer, com o osabe o autor, D anilo Solo), mas não temos nem ótim os e nem pés-simos livros sobre sistemas políticos dos Estados que s.e autodefinem como socialistas e, muito menos, sobre o Estado alternativodo futuro, já que não se está satisfeito com os existentes.

To m o um a vez mais o princípio de C erroni, que é con sideradode form a ju sta um especialista, além do que é m elhor dizêlo logo

 porque as duas coisas nem sem pre coin cid em um estudioso comos papéis em dia. Em seu último livro de título repleto de promes-sas, Teoria política e socialismo , há um capítulo sobre “ dem ocraciae socialismo”, isto é, sobre o tema que não hesito em considerarcomo o problema dram ático e crucial de nosso tem po. D ramático, porque ninguém até hoje conseguiu resolvêlo senão em palavras(palavras, especialmente se ambíguas e adaptáveis aos mais diver-sos usos como são em geral as palavras de linguagem política, po-

dem resolver com incrível facilidade qualquer problema); crucial porque parece a m uitos que de sua solu ção dependa o destino deuma sociedade sempre mais necessitada de controle e cada vezmais incontrolável. Quem espera, através deste capítulo, uma ilu-m inação, de po nh a logo suas ilusões. O cap ítulo começa assim: “ Etempo de requalificar o lugar que no pensamento de Marx tem acrítica do Estado, etc.. .” Portanto, uma nova “leitura” (como sediz hoje em dia) de Marx. A finalidade de Cerroni é, de fato, de-m ons trar não só que em M arx há uma teoria política, mas tambémque a teo ria política a extrairse das o bras de M arx é, ape sar de to-das as degenerações de direita e esqu erda, a única teo ria que perm i-te dar uma solução para o problema do socialismo através da de-mocracia e da democracia no estado socialista. Não discuto se aanálise de Ce rroni é ou não correta, mesmo que e não é de hoje

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esteja convencido de que a supervalorização das escassas inddicações dadas por Marx sobre o Estado de transição, no comentário

sobre o episódio da Comuna, seja uma confirmação da escassez dedocum entação sobre o tema do E stado encon trada na tradição do pensam ento socialista que conta com obras com o as de Locke eKant, escritores como Constant e Tocqueville. Discuto quanto àsua u tilidade. O u seja, pergun tom e qual o benefício que dele pode -mos extrair para a solução dos problemas do nosso tempo nas in-findáveis explicações (mesmo se mais engenhosa, mais inteligente,mesmo se mais próxima ao espírito ou, literalmente do ator-m entadíssimo texto) a M arx, àqu elas vinte páginas de M arx, já vi-

radas e reviradas de todos os lados, isto é, de um autor que teve,certamen te, a m elhor das intenções em escrever também um a críti-ca da política paralela à crítica da economia; apenas que, na reali-dade, jam ais a escreveu; pe rgun tom e se, talvez, não seria m ais útilhoje em dia aplicarse aos estudos de ciência política e social, tão

 pouco ad ian tados em nosso país com rela ção aos do m arxism o.

 Marx e Hegel 

Perguntome até se, de certa forma, não seria também nocivoo fato de con tinu arm os a ler e a reler M arx o que nos hab itua a crerque uma boa leitura, aliás, uma leitura melhor (mas qual é o crité-rio para que se julgue qual seja a boa e a má leitura?) nos livre docansaço de termos de pensar. Não me refiro ao marxismo maltra-

tado que se espalha em nossas universidade, um marxismo que fre-qüentem ente serve como pretexto e desculpa à pró pria ignorância,obstinada e persistente, favorecendo a preguiça com uma boa dosede presunção e às vezes também de oportunismo (as provas pioressão freqüentemente dos que “trazem” Marx). Falo dos marxistassérios. U m a de m inhas frases preferidas é que hoje não se pod e serum bom m arxista sendo apenas m arxista. M as o marxista tem um atendência irresistível a ser apenas... marxista. Ele tende a isolar

Marx e o marxismo do resto do mundo bem como a isolarse a si p róprio . C om enta M arx com M arx ou com alguns escritores au to-rizados (Engels, Lênin, Lukàcs, Korsch, Rosa Luxem burg, G ram sci, c itando alguns nom es ao acaso), isto é, com escritores que certa-mente pertencem distraidamente, ou fugidiamente, ou até suspeito

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samente, à cultura nãomarxista, denominada, a grosso modo, de“burguesa” ou prémarxista (o “pré” tem sempre uma conotaçãolevemente pejorativa, como “précristão, “préindustrial”, “préclássico” e, naturalmente, “préhistórico”). Quando lhe lançamosum olhar atento encheSe de condescendência, não diferindo emnad a dos nossos idealistas que sabiam , desde o princípio, que aqui-lo que não se enquadrava nos seus esquemas estava errado, ocu-

 pandose deles som ente para exib ir sua superiorid ade. Percebo per-feitamente ter exagerado e traçado um retrato com riscos tão gros-seiros que ninguém gostará de se reconhecer nele. Mas, dou umexemplo que, espero, será convincente (e reconheçase nele quem

quiser!): as interpretações marxistas de Hegel. Todas elas são, emmaior ou menor grau, interpretações deformantes. E são deformantes seja porque tendem a reduzir as distâncias entre ambos, ou“marxistizando” Hegel ou “hegelianizando” Marx, seja porqueconsideram , ao co ntrário , M arx com o o inversor de Hegel e Hegelo grand e invertido (com a cabeça no lugar dos pés). P orque alémdo fato de que, se puder ser de alguma utilidade (a meu ver, muitoexagerada) estudar bem Hegel para com preender m elhor M arx (i.e., o que veio depois com o que veio antes), muito mais duvidoso ediscutível é que para compreender Hegel devase estudar Marx (oque vem antes com o que virá depois) ler uma obra de complexi-dade Welt historisch  como a hegeliana, através apenas de um deseus com entaristas e críticos, é efetua r um a op eração historiográfica ap rioristicam ente red utiva e impedir a única possibilidade de fa-zer historiografia filosófica séria, ou seja, começar a interpretarHegel com Hegel.

Destas deformações, duas parecemme bastante graves: a)dado que Marx e Engels utilizam a expressão “sociedade civil” nosentido forte da esfera das relações econômicas, contrapondoa àesfera das relações políticas, é comum entre os marxistas limitar aconsideração da “sociedade civil” em Hegel no momento do “sis-tema das necessidades, onde Hegel efetivamente trata de alguns

 problem as fundam entais da econom ia política. Portan to , to dos osnão ma rxistas sabem que o sistema das necessidades é apenas o iní-cio da sociedade civil, abrangendo também os dois momentos da

adm inistração da justiça e do Estado de polícia. Sabem , portan to,que a “sociedade civil” na Filosofia do direito de Hegel não signifi-ca absolutamente uma sociedade econômica contraposta ao Esta-do, mas sim uma primeira manifestação do Estado, que o próprioHegel denom ina “ Estado do intelecto ou da necessidade” . Quem

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reduz a sociedade civil hegeliana à esfera das necessidades foge auma das características mais originais e problemáticas da teoria doEstado de Hegel. Por que uma das três funções fundamentais doEstado , a ad m inistraçã o da justiça, está destina da à sociedade civile não ao Estado propriamente dito?

Existe um a resposta; e que só pode ser dada co nfro ntan do H e-gel com Locke (certam ente não com M arx) e que, de qualquer m a-neira, requer a consciência de que a sociedade civil não é a esferados negócios, mas, em conformidade portanto com a compreensãocomum das expressões dos filósofos imediatamente precedentes

como Kant e Fichte, já é o Estado, mesmo se em sua forma infe-rior; b) posto que Marx criticou a teoria do Estado de Hegel, eMarx é um crítico da sociedade e dos Estados burgueses, logo He-gel é, deve ser, o maior representante da teoria burguesa do Esta-do. O silogismo é perfeito, mas a con clusão está completam ente er-rada. Que o Hegel da Filosofia do Direito  seja o maior teórico doEstado burguês, é uma afirmação que não cabe nem no céu nem naterra. Por si só, já suscita algumas suspeitas o fato da teoria bur-guesa da economia, seja inglesa ou francesa (ao invés da teoria polí tica alemã), po rtan to o fato da burguesia inglesa (e francesa),ter elaborado uma teoria econômica correspondente aos seusideais, vulgo aos seus interesses, e ter dado por procuração o ofíciode elaborar a teoria do Estado a um professor de Berlim, isto é, deum Estado economicamente e socialmente atrasado em relação àInglaterra e à França. Marx sabia muitíssimo bem o que não sa- bem mais certos m arxis tas, ou seja, que a filosofia da burguesia erao utilitarism o e não o idealismo (em O Capital,  o alvo é Bentham e

não Hegel), e que um dos traços fundamentais e verdadeiramenteinovadores da revolução francesa era a proclamação da igualdade

 juríd ica ou ig ualdade diante da lei, a cham ada ig uald ade formal (a“ em ancipação po lítica” !): princípio incompatível com aquele Esta-do de classes que sobrevive ainda em parte, em Hegel, onde os in-divíduos valem politicamente, não como Uti singuli,  mas comomembros de uma corporação. Na base do princípio da igualdadeformal havia uma teoria individualista, atomista, da sociedade,

que Hegel rejeita explicitamente, como rejeita as teses principais do“modelo jusnaturalista”, a começar pelo contratualismo, nasquais se haviam inspirado as reformas políticas “burguesas”.

Desagradame ter de repetir coisas que em outros ambientesculturais menos saturados, como é o nosso, de Hegelmarxismo.

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são elementares. Mas a teoria liberalburguesa do Estado, traçadaem uma famosa passagem de Adam Smith sobre os limites do po-der do Estado, é a exata antítese da conceituação hegeliana do Es-

tado ético. Neste erro de compreensão o marxismo italiano de hojeé pura e simplesm ente o herdeiro do hegelianismo n apo litano , parao qual a grande filosofia política inglesa nunca existiu e o teóricomáximo do Estado liberal foi Hegel. Mas qualquer um que tenhalido alguns dos escritores da tradição liberal, que vai de Lock aSpencer, ou os grandes liberais italianos, desde Cattaneo até Einaudi, sabe que as suas principais preocupações sempre foram tercuidados com o Estado e salvar a sociedade civil (no sentido marxiano da palavra) da excessiva intromissão do Estado.

 As “ Duras Réplicas" da História.

Uma primeira conseqüência do abuso do princípio de autori-dade é sempre o embotamento do espírito crítico. Se uma coisa foidita por Marx, ou é extraída do que disse Marx, ou um seu intér-

 prete au torizado, é tom ada com o certa ; não se vai ao ponto de ju l-gála e colocála dentro dos valores reais. Assim é que a obra deMarx, ao invés de ser como poderia ser (a grandeza de Marx comocrítico da economia clássica, como historiador como filósofo, emgeral como cientista, está absolutamente fora de cogitações), uminstrumento de primeira qualidade para compreender a realidade,inclusive a de hoje, torna se um impecilho entrep osto entre a reali-dade e o pesquisador e, portanto, não um subsídio mas um obstá-

culo. Se isto não acontecesse, não se explicaria a incrível (insistosobre o “incrível”) disputa entre dois marxistas, como John Lewise Louis Althusser, sobre um problema deste tipo: se seriam os ho-mens ou as massas que fazem a história. Lewis escreveu que “ o ho-mem faz a história”. Althusser atiralhe em cima um panfleto sus-ten tan do que não: “ Ce sont les masses qui font 1’histoire”  \   Desa-fio a encontrar um cientista social fora do campo marxista que

 possa colo carse com seriedade um proble m a desta espécie. Digo,entre parênteses, que das duas afirmações a de Lewis tem pelo me-

3 L. AL TH US SE R,  R éponse a John Lewis ,  Pa ris, M as pe ro , 1973, p. 24 e ss.

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nos o valor de ser clara, apesar de genérica, e de ter um significado polêmico preciso (que a história seja feita pelos hom ens significaque não é feita por Deus, pela providência divina etc.) A de Althusser, pelo c on trário, é desesperad a desde o início, visto ter a preten -são de contraporse à outra com uma proposição científica tão ge-nérica; além disso não é clara; ao contrário, não é necessário serum fanático de filosofia analítica para considerála uma proposi-ção sem nenhum sentido, porque, para darlhe um sentido seria preciso definir o qüe são as massas, o que significa “ fazer” e o queé a história, compreendida como um empreendimento.

Dou outro exemplo estreitamente relacionado ao problemado Estado. Sabemos todos o quanto seja, hoje em dia, questão devida ou morte para o futuro do socialismo, a recuperação da ins-tância dem ocrática, no único sentido em que se pode razo avelmen-te falar de dem ocracia sem en gan arm onos de vez em qu and o, istoé, de um sistema no qual vigorem e sejam respeitadas algumas re-gras que permitam ao m aior núm ero de cidadãos participar direta-mente ou indiretamente das deliberações que, em diversos níveis(local, regional, nacion al) e nos mais diversos setores (da escola, dotraba lho etc.), interessam a coletividade. Co m o por ou tro lado Lênin (e aliás não ape nas Lênin) afirm ou que a repúb lica dem ocráticaé o “melhor invólucro do capitalismo”, muitos continuam sentin-dose obrigados a sustentar que a república democrática não podeser o invólucro de um Estado Socialista. Com uma afirmação destetipo, acreditam que fazem uma injustiça à república democrática,mas (ai de mim!) acab am po r fazer um ótim o trabalho pa ra o capi-talismo (e um péssimo para o socialismo). Na verdade, ocorre per-

guntar: qual seria o melhor invólucro do socialismo? A ditadura?(M e vem à m ente um a frase de Go be tt que não perdeu nad a do seuvigor polêmico: “O regime representativo não tem mais a aprova-ção popular. Mas com o quê querem substituílo? Com a teocra-cia?”) 4

Desgostoume ter encontrado este conceito de Lênin recente-mente repetido sem nenhuma suspeita, e sem a menor reserva, porum estudioso, a quem devemos um livro do maior interesse sobre

4 P. G OB ET TI,  La nostra fed e ,   em “ En ergie No ve ” , serie II, n* 1, 5 de m aio de1919, hoje em Scritti politici,  Turim, Einaudi, 1960, p. 76.

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as instituições da economia capitalista. Este, tendo que explicarcomo dentro deste sistema que tinha nascido de um sufrágio limi-tadíssimo tenhase chegado ao sufrágio universal, à instituição do

qual não p arece que os capitalistas tenham contribuído com todasas suas energias, não encontra nada melhor que recorrer à argu-m entação “ da ra posa ” (segundo a fábula a raposa converte a der-rota em um a ação de suprema sabedoria) do “ desafio calculado” . 5(Dános vontade de dizer: deixemno ao menos dizêlo à raposa.Ou vocês se tornaram amigos... da raposa?) A conseqüência deuma historiografia deste gênero, que por não ser ingênua acaba

 por render ao adversário honras in devid as, é que todas as conquis-tas que custaram lágrimas e sangue ao m ovimento o perário, desdeo d ireito de grave ao sufrág io un iversal, desde a legislação social aoestatuto dos trabalhadores, são interpretadas como hábeis movi-mentos dos capitalistas para conservar o poder. Em cada derrotaos facistas falavam de “retiradas estratégicas”, e foi assim que àforça de retiradas e estratégias os aliados chegaram na Sicília: maseram eles que falavam e não os seus adversários. Lênin p odia zom - bar da dem ocracia representativa e tom ar a defesa da m aior e mais perfeita dem ocracia, aquela que Bernstein realistic am ente cham ou

de “doutrinária” ou “primitiva”, porque talvez acreditasse de boafé que revoluçã o p roletária e nov a de m ocracia fossem as dua s facesda mesma moeda. Hoje nós não podemos mais permitirnos ilu-sões e defesas semelhantes devido ao que aconteceu... depois de Lê-nin. Não podemos permitirnos antepor a autoridade até mesmode um Lênin às “ du ras réplicas” da história, como teria dito Hegel.

 Marx e Weber

A segunda conseqüência poderia chamarse, contrariamente,de excesso de espírito crítico. Posto que Marx tem sempre razão, osadversários ou simplesmente aqueles que fizeram afirmações quenão coincidem com as de Marx ou dos seus intérpretes autoriza-dos, estão sempre errados.

5 Ref irome ao ar tigo de F. G A LD A N O , Cap italismo di stato e dem ocrazia rappre- sentaliva  no “ II M ulino” , XX III, n’ 236, novem brodezem bro de 1974, p. 880. (Oartigo reproduz páginas do livro  L e is ti lu iz ioni d e i i economia capilalislica. Socie-  là per azioni, stato e classi sociali,   Bo lonha, Z anichelli 1974, qu e já suscitou im - p o rtan te debate em “ Socio lo gia dei d irit to” , II, n? 1, 1975, p. 143 e ss).

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Que me perdoe Cerroni, se o tomo ainda como exemplo, masconfesso que ter lido em um dos seus livros, apesar de não ser mar-

xista esquemático e dogmático, que Max Weber é somente um“pesquisador atento” da burocracia e Wright Wills um “grandesociólogo” 6, fezme estremecer. Uma falta, tão visível a olho nú,do sentido de proporções, é por si mesma uma espiã de um julga-mento preconstituído, fundada unicamente sobre a maior ou me-nor distância de um e do ou tro de M arx. Só assim se explica que al-gumas páginas, inegavelmente agudas e tocantes, escritas pelo jo-vem Marx criticando a burocracia, por outro lado não dissociáveisdo contexto no qual são inseridas que é a crítica à classe universal 

de Hegel, possam ser elevadas à verdadeira e própria teoria da bu-rocrac ia de co ntra po r e, o que é mais grave, de antepo r, àquela we beria na. Vejase o parágrafo  Duas análises da burocracia',  destas,uma é a gigantesca e, momentaneamente sob muitos aspectos, insuperada obra de Weber, a outra são as poucas páginas tiradas deum daqueles trabalho s juvenis que M arx tinha ab and ona do de

 bom grado à crítica corrosiv a. M esmo prescin din do da observaçãode que nesta obra juvenil Marx critica, na Filosofia do Direito  de

Hegel, sobretudo a identificação do po der governante com a b uro -cracia, resolução que ele aceitará e ilustrará realisticamente na lúci-da e desapiedad a análise das conseqüências constitucionais do gol-

 pe de Estado de Luiz Bonaparte , hoje, ninguém, ninguém mesmo,está ainda disposto a crer, menos ainda Max Weber, naquilo emque acreditava Hegel, isto é, que os funcionários constituíssem a“classe universal” ; po rtan to ninguém m ais deveria ficar tão im pres-sionado com frases de efeito no estilo jovemhegeliano, tão carac-terístico do jovem M arx, como: “ as corpo rações são o ma terialis-mo da burocracia e a burocracia é o espiritualismo das corpora-ções” . A im portân cia das considerações de M arx sobre a bu roc ra-cia, que são bem extensas para serem negadas, deve ser pesquisada,talvez alhures, nos escritos sobre o 18 brumário, mas tornase difí-cil para mim compreender porque estas páginas onde se lê que oaparato burocrático formado com a monarquia absoluta foi refor-çado pela burguesia nascente, e tornouse po rtanto um instrume n-to de dom ínio da classe burguesa no vértice de sua potência, cons-

tituam uma análise “alternativa” com respeito à de Weber. E

6 U . C E R R O N I ,  La liber ta dei moderni,   Bari, De Donato, 1968, p. 191 e p. 202.

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sobretudo me preocupam as conseqüências que delas devemse ti-rar, inevitavelmente: se, verdadeiramente, a análise weberiana da burocracia é “ de todo oposta” à de M arx, o bom m arxista não

deve absolutamente levála em consideração. Mas não seria esta am aneira para torn ar a imensa obra de Marx em um a espécie de an-tolho, isto é, um instrumento para olhar numa só direção?

Além de tudo , sob a diretriz de um a frase do jovem M arx queexplica (mas tratase de um a exp licação que necessitaria de muitoscom entários) a criação do Estado bu rocrático com o efeito da sepa-ração entre Estado e sociedade, característica da sociedade burgu e-sa, Cerroni parece relembrar com saudade a idade na qual podereconôm ico e po der político, po de r privado e pod er público, não es-tavam ainda separados, e não se dá conta da enorme importânciahistórica que teve, e tem ainda hoje, o processo (creio, ou temo, ir-reversível) que vai do poder tradicional fundado sobre as relações pessoais (cujo péssimo resíd uo histórico é a relação de clientela ) ao poder legal racio nal que perm ite a in stitu ição das relações impes-soais entre cidadão e funcionário; a menos que se acredite ainda,seriamente, que em um Estado cad a vez mais m astodô ntico e cada

vez mais sobrecarregado de funções (necessárias) o problema daseparação entre público e privado possa ser resolvido com a insti-tuição da pequena sociedade arcaica, ou da confraria, ou da comu -nidade de utopistas, do cidadãofuncionário, preconizado nas no-tas sobre a Com una de M arx, predita po r Lênin nos escritos incan-descentes do tempo da Revolução.

Q ue no fu ror da luta pela conq uista do pod er Lênin tivesse es-crito o conceito do cidadãofuncionário sobre a sua bandeira (de

resto, criado à imagem e semelhança do conceito, também este deorigem revolucionária, do cidadãosoldado), vá lá (mas o próprioLênin teve mais tarde que se retificar). Que isto se repita hoje emdia, depois de toda água (e todo sangue) passada sob as pontes dahistória, é im perdoável. E ntre o utras coisas, da imp ostação erradado problem a, isto é, d a falsa crença de que o Estado bu rocrático te-nha nascido (ao invés do aumento, e do se complicar, e da tecnização dos deveres do Estado) da assim cham ada “ separação ” entre asociedade civil e a esfera política, após a ascenção da classe mer-cantil burguesa, deduzse que é suficiente eliminar o Estado bur-guês para eliminar o Estado burocrático (o que, como todos sa- bem, foi o que aconteceu, ou está acontecendo, nos Estados socia-listas).

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 N aturalm ente , tom o m uito cuidado em suprim ir de um a sóvez tod as as diferenças entre W eber e M arx (sobre o que, de resto,

foram escritas bibliotecas inteiras). M arx e W eber divergiam, isto écerto, com relação à previsão acerca do futuro do Estado b uro crá-tico. Marx acreditava que o Estado socialista terseia pouco a pouco afastado do Estado burocrático. W eber acreditava, ao con-trário, q ue o futu ro E stado socialista, do qual assistiu apenas o iní-cio e não seus desenvolvimentos, teria sido tão burocrático quanto ou até mais burocrático o Estado capitalista. Qual dos doisestava com a razão, deixaremos aos “pósteros” a árdua sentença(mas é afinal tão árdua?).

 A Descoberta do Óbvio

Vejo uma terceira conseqüência do abuso do princípio de au-toridade naquele fenômeno que eu chamaria, de bom grado, de adescoberta do óbvio. Quem lê e relê sempre os mesmos livros, aca- ba por sofrer um certo re tardam ento em perceber as m udanças.Q uan do as percebe, crê ter feito um a descoberta. Mas é a descober-ta do óbvio. Ou melhor, existem os marxistas que não têm crises eque conseguem sempre encontrar uma frase de Marx ou de Engelsou de Lênin (em certa época também de Stalin) para encaixar a re- belde realidade com a dócil teoria . Mas ex istem ta m bém os que en-tram em crise. Esta crise resolvese sempre em uma descoberta,anunciada além do mais com certo ar de triunfo. Ora, estas desco-

 bertas são freqüentemente , um a recuperação de coisas que o nãomarxista conhecia de há muito e pasmavase com que os marxistasnão as soubessem.

U m a dessas descobertas realmente extraordinárias, que desde pelo menos há vinte anos m udou m uitas coisas no mundo, do m ar-xismo teórico, é que o poder qua ndo é descon trolado pode degene-rar, e que co ntra as possíveis degenerações do p od er oco rre predis-

 por rem édios, enaltecer barreiras, erguer defesas eficazes com o o

controle democrático, a proteção de algumas liberdades civis, in  prim is  a de expressar a próp ria opinião, um a agon izante pluralida-de das forças sociais e das organ izações , etc... M as é uma descob er-ta que não d escobre nada . To da a história do pensam ento políticoé dominada por este problema, tanto que pode ser considerada

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como uma interpretação, ora amarga ora confiante, ora resignadaora combativa, do problema do poder e da sua possível degenera-ção. Um dos tipos humanos cuja figura foi o maior número de ve-zes descrita é a do tirano: e como todos se assemelhavam! Que osdois fundadores do materialismo histórico ou da filosofia dos cos-tumes não se tenha m nunc a interessado a fundo p or este problema,não é uma boa razão para se ignorar que o problema é tão antigoqua nto o m undo, mesmo que possa ser um a boa explicação para ofato de que os marxistas o tenham ignorado como problema irrele-vante. Marx e Engels (e sobre sua linha, um chefe revolucionáriocom o Lênin), convencidos com o estavam de que a esfera da políti-

ca fosse a esfera da força (e nisto tinham perfeitamente razão), colocaramse sempre o problem a do argu m ento histórico desta força,individualizado na classe dominante de tempos em tempos, ao in-vés do problema dos diversos modos com o qual esta força possaser exercitada (que é o problema das instituições).

Q ualqu er um que tenha u m a certa fam iliaridade com os clássi-cos do pen samen to político sabe bem que os problemas fun dam en-

tais de cada teoria política foram sempre dois: o problema de“quem” governa (base na qual a tipologia das três formas de go-verno, de um, dos poucos e dos muitos, percorreu os séculos) e o

 problem a de “ com o” (segundo o qual a classificação m eram entedescritiva das formas de governo se sobrepôs àquela prescritiva dasformas boas e das formas más). E não há dúvidas sobre o fato deque dos dois problemas o mais importante tenha sido sempre o se-gund o, n ão o primeiro. Certam ente M arx e Engels tinham suas ra-zões para sustentar o contrário. Tendo uma concepção negativa da

 política, achavam que todas as form as de governo, enquanto polí-ticas, pelo fato de serem políticas, eram más. Uma vez definido oEstado como o instrumento de domínio da classe dominante, nãofaziam outra coisa que extrair a conseqüência lógica das suas pre-missas: de fato o critério funda m ental, com base no qual a tradiçã o

 precedente havia dis tinguid o as form as boas das form as más, era seos detentores do pod er governassem pa ra o bem de todo s ou pa ra o

 próprio bem. Se cada governo está sempre voltado para o in teresse

da classe dominante, é (baseado no tradicional critério de distin-ção) mau, ou pelo menos, cai por terra toda a possibilidade de dis-tinguir um bom governo de um que não o é. De resto, por estas ra-zões, pa ra M arx e Engels o prob lem a do bom gov erno não se resol-via com a substi tuição por uma forma “boa” uma forma “má”,

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mas sim com a eliminação de toda forma de governo político (istoé, com a extinção do Estado e com o fim da política).

Repito que Marx e Engels, e com maior razão um chefe revo-lucionário como Lênin, possuíam seus bons motivos históricos

 para dar mais im portância ao problem a dos argum ento s do que aodas instituições. M as isto não nos exime de tom ar conhec imento deque suas indicações sobre o problema das instituições foram sem-

 pre genéricas, sum ária s, e o que é mais grave, irreais , e que portan-to sua teoria do Estado é incom pleta, faltandolhe justame nteaquela parte que induz a muitos reconhecer, com razão, que umaverdadeira e própria teoria socialista do Estado não existe.

O pensamento político de Marx

A fim de evitar equívocos, tão fáceis em u m a m atéria tão fusti-gada ao vento das paixões quanto esta, quando digo que uma dasrazões do atraso de uma teoria socialista do Estado é “também o

excessivo crédito d ad o ao s escritos políticos de M arx, de Engels oude Lênin, nos quais quisse procurar aquilo que não existe e queaqueles escritores não hav iam escrito, não tenh o, de forma alguma,a intenção de negar a importância de Marx, sobretudo Marx, nahistória do pensam ento político. Falei de “ abu so” . N ão excluí o

 bom uso. Existem, a meu ver, pelo menos dois aspectos da idéia polít ic a de M arx que merecem a m áxim a atenção.

O p ensam ento político de M arx registrase na grande correntedo realismo po lítico que despe o Estado de seus atributo s divinos econsiderao como organização de força, do máximo de força dis,

 ponível e exercitável em um determ inado grupo social. Com respei-to ao seu grande predecessor imediato, Marx tem uma concepçãoinstrum ental do Estado o Estado com o a pa rato a serviço da clas-se dom inante que é a virada radical da concepção ética segundo aqual a força do Estad o é antes de tud o um a força m oral e espiritual

(o antihegelismo do jovem Marx está fora de discussão). A origi-nalidade de Marx consiste no fato de que ele é, talvez, o primeiroescritor político que une uma concepção realista do Estado a umateoria revolucionária da sociedade. Freqüentemente, os realistasforam uns conservadores que justificaram um Estadoforça como

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um mal necessário, partindo de uma concepção pessimista do ho-mem. Os dois maiores escritores políticos do Renascimento, Maquiavel e Lutero, são realistas e pessimistas: o Estado não pode dei-

xar de ser fundado sobre a força (ou sobre o engano) porque temque lidar com súditos indóceis e capciosos. Marx é realista: parti-lha com os escritores realistas a idéia de que o Estado é o domínioda força, mas não tem uma concepção pessimista da natureza hu-mana ou da história. Que o Estado seja bom ou mau dep'ende dequem tem as rédeas na m ão. P or isso pôde fazer de um a concepçãorealista do Estado (o Estado como um mal necessário) uma dasalavancas de uma teoria revolucionária da sociedade.

Em segundo lugar, Marx é o único escritor realista que con-duz a concepção realista do Estado até as últimas conseqüências,com um conhecimento que o torn a o con tinuad or e, em certo senti-do, o desmentidor de Maquiavel. A idéia do Estadoforça nuncafoi separada da idéia de que de qualquer maneira esta força fossedestinada a prom over o “ bem com um ” , o “interesse geral”, a “jus -tiça” e assim por diante, e de que um Estado que não perseguisseesses nobres fins seria um Estado corrupto, não seria um “verda-

deiro” Estado etc... Pela prim eira vez M arx denu ncia com extremaclareza o aspecto ideológico desta presumível teoria: o Estado nãoé apenas um instrumento, um aparato, um conjunto de aparatos,dos quais o principal é aquele q ue serve ao exercício da força m o-no po lizado ra, m as é um ins trum en to que serve à realização de inte-resses não gerais, mas particulares (de classe). Marx chega a estaconclusão qu an do revira a concepção precedente das relações entresociedade e Estado. Desde Hobbes até Hegel a sociedade préestatal (seja ela conside rada co m o estado n atura l ou como socieda-

de civil), considerada com o o po nto do desencadeamen to das pai-xões ou dos interesses, resolvese, deve resolverse, toda ela, no Es-tado elevado ao posto da mais alta forma de convivência racionalentre os homens (o Estado como “domínio da razão” de Hobbesou com o “ o racional de si po r si” de Hegel). Para M arx, ao co ntrá -rio, o Estad o, longe de ser a supe ração do estado natu ral, seria emum certo sentido a sua perpetuação , enqu anto é como o estado na-tural, o pomo de um antagonismo permanente e insolúvel. (Daí aconseqüência de que, por ser radical demais, transformase em um

 pulo além da realid ade quando o radical não pára em tem po to r-nase um utop ista : pa ra abo lir verdadeiramente o estado n aturalé preciso abolílo, e não aperfeiçoálo).

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D istinguind o estes dois aspectos salientes do pe nsam ento polí-tico de Marx, acho lícito dizer que mesmo se Marx não tivesse es-crito uma crítica da economia, a sua teoria política constitui umaetapa ob rigatória na história da teoria do Estado mo derno. Depoisdo que devo dizer, com m ais do que franqueza, que nunca me pa re-ceram de igual importância as famosas, as por demais famosas, in-dicações que M arx tirou da experiência da C om una e que tiverama ventura de serem exaltadas (mas jamais atenuadas) por Lênin.(Hoje ainda são repetidas “p apagaiadam ente” pelo m arxismo des-regra do do qual falei antes, mas infelizmente não apenas po r este.)A verdade é que M arx não tinh a n enhu m a intenção de dar receitas,

com aquelas poucas fórmulas, para o futuro, e apenas o abuso do princíp io de autoridade, do qual tire i o. in ício , transform ou cincoou seis teses em um trata do de direito público. Com a agrav ante deque, mais um a vez, M arx não teve nenhu m a culpa de que nestes úl-timos cem anos os problemas do Estado, sobretudo o problema darelação entre organização do Estado e democracia, tenham se tor-nado cada vez mais complexos, e portanto cada vez mais refratários a serem contidos em fórmu las de efeito com o “ dem ocracia di-

reta”, “autogoverno dos produtores”, e similares. (Mas isto fica para um a próxim a vez).

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