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Bolama

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BOLAMA

Em conversa com o meu conterrâneo Zeca Castro Fernandes, a cidade

de Bolama, banhada pelo rio Grande e

onde ambos vivemos na década de

cinquenta, voltou a ser recordada tendo,

num misto de pesar e surpresa, ambos

constatado que bem poucos eram os topónimos urba-

nos de que lembrávamos.

Para além da voragem do tempo, o certo é que, então,

não nos servíamos deles para identificar qualquer ponto da malha urbana. Entendi,

porém, que deveria conhecê-los e, como tal, meti-me a caminho...

Para tal, tive como base a Planta Topográfica da Cidade de Bolama, à escala 1/2.000,

levantada nos anos de 1920/21, pelo Cor. de Engenharia José Guedes Quinhones,

donde recolhi vários dados. Para além deles, vali-me dos esclarecedores textos do

Anuário da Guiné Portuguesa de 1946, organizado pelo Sr. Fausto Duarte (pai da

Mimela e do Zé Carlos Duarte), recorri a um ou outro antigo residente, socorri-me

das memórias que conservo há mais de meio século (1954/5) e elaborei um croqui, o

qual campeia estre meu passatempo e passo a descrever, admitindo que até os

eventuais erros, despertem, nos que o lerem, saudosas recordações dessa boa terra.

Ora vamos lá ver:

Em termos viários e tendo o rio Grande como referência, poder-se-á dizer que, salvo

ligeiros desvios, Bolama era uma cidade de malha ortogonal constituída por artérias

dispostas perpendicular e/ou paralelamente à frente marítima. Nesse conjunto,

considerei dois grandes eixos que, sensivelmente a meio, se cruzavam ge-

rando quatro setores, que, dispostos no sentido de circulação dos ponteiros

um relógio, identifiquei pelas letras A, B, C e D.

OS EIXOS

Comecemos pelo que se situava no enfiamento da ponte de cimento, com 105 m.

de comprimento e de cujos lados, em meados dos anos 50, vi atracar os navios

“Formosa” e “Corubal”, recém chegados à Guiné.

No prolongamento dessa ponte, ficava o, outrora,

Largo D. Luiz I e dele saía a autêntica espinha

vertebral das artéria citadinas, a qual se sub-

dividia, sendo à partida formada pela Rua Mar-

quês de Ávila e Bolama, a qual, à saída da ponte,

arrancava à cota de 6,65 m., perto do local onde

em 1941 foi decidido, por maioria da vereação

camarária, cortar para além dos belos coqueiros, os dois majestosos poilões, tal

qual sentinelas vigilantes cujas amplas frondes se cruzavam.

A B

C

D

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Trata-se de uma via inicialmente declivosa a que, no seu enfiamento e com ligeiro

diferencial de cota, se segue a Av. da República, a qual se estende até ao antigo

edifício do antigo Hospital Militar e Civil, onde atinge a cota de 21,23 m.

Perpendicular a este eixo, encontra-se o outro formado pela Rua Sá da Bandeira

que, partindo do Largo Gov. Carlos Pereira (o primeiro Governador da Guiné, no

período subsequente à implantação da República), situado em frente à porta de

armas do quartel, e se estende até à R. João Marques Barros, virada à Ilha das

Cobras.

Do Largo Gov. Carlos Pereira partiam, para além da R. Sá da Bandeira, as ruas

João Chagas, Gov. Albuquerque, Gov. Sequeira e ainda a Alferes Malheiro, esta a

caminho das Oficinas Navais, situadas para lá da antiga ponte de madeira destinada

a acolher os Clipper da Pan-American que, de 1940 a 1945, amararam no espelho

de água fluvial e cujos passageiros conferiam à cidade um apreciado toque de

internacionalidade. A talhe de foice, diga-se que a instalação das Oficinas Navais

nos barracões que haviam pertencido à Companhia Agrícola e Comercial dos

Bijagós, teve lugar no ano de 1908.

Saindo do quartel pela porta de armas tínhamos

à esquerda a R. Sá da Bandeira e, seguindo-se

por ela, deparávamos, à direita, com um o

grande edifício de 1º andar, vulgo denominado

“sobrado”, em que existiam quatro moradias

destinadas a destacados quadros do funciona-

lismo público. No largo em frente ao referido

edifício foi colocada, no início dos anos 60, a

estátua do 18º presidente dos Estados Unidos, Ulysses Simpson Grant, que viveu

de 1822 a 1885 e que a 21.04.1870 arbitrou favorável a Portugal o litígio luso-

britânico referente à posse da Ilha de Bolama. De recordar que a defesa nacional

esteve a cargo do diplomata António José de Ávila, Conde de Ávila e que, por

decreto de 24.05.1870, ascendeu a Marquês de Ávila e ao título nobiliário

adicionou, então, a designação de Bolama.

Passado o já mencionado eixo viário que

sai da ponte cais, a rua começa a perder

cota.

À sua esquerda, deparávamos com o edi-

fício da Escola de S. José, integrado na

rede de estabelecimentos geridos pelas

Missões Católicas, seguia-se a Rua Lati-

no Coelho, as instalações da Polícia de Segurança Pública (PSP), bem como as da

outrora Repartição do Fomento e que deram lugar às Obras Públicas. Estas já eram

voltadas para a grande Praça, que oficialmente dava pelo nome de Infante D.

Henrique, mas que, em voz corrente, era conhecida por Praça Maria da Fonte,

designação decorrente do facto de no centro estar um fontenário de cuja torre,

outrora, caía água em cascata.

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Do lado direito da R. Sá da Bandeira deparámos, em frente à PSP, com as, então,

instalações do Sport Lisboa e Bolama, filial do Sport Lisboa e Benfica, mesmo na

esquina da Praça, seguindo-se, do outro lado destas, a Cervejaria pertencente a

Alfredo Mateus dos Santos, que, por anúncio publicado no Anuário de 1946 da

Guiné, informava que produzia gelo, material que à época era raro e cobiçado.

Ao fundo da Rua era o lugar conhecido por Gam Crioulo, onde se situava a casa do

rico e respeitado comerciante guineense António dos Santos Teixeira, um dos

resistentes que, pouco antes da derradeira arrancada da denominada “guerra

pacificação”, da ilha de Bissau, sofreu na pele o autoritarismo do Major João

Teixeira Pinto, de que, mais tarde, buscaria desagravo em tribunal...

OS SETORES

Descritos os dois grandes eixos viários, apreciemos os quatro setores.

Comecemos por descrever aquele a que atribui a

letra A e fica à esquerda de quem sai do Hospital

e segue pela Av. da República, até a Rua Sá de

Bandeira. Era, pois, delimitado pela Av. da Re-

pública, onde se situava a antiga e bela agência

do Banco Nacional Ultramarino (BNU), estabele-

cida em 1903, a zona inclinada da R. Sá da

Bandeira, virando à esquerda para a R. João

Marques de Barros e desta voltando, de novo à esquerda para o ponto de partida

pela R. 5 de Outubro.

Tendo em conta que as artérias paralelas à frente marítima são as transversais,

aquela com que primeiro nos damos é, justamente, a Rua 5 de Outubro que saindo

da Praça ajardinada Gov. Sousa Guerra, mais tarde deno-

minada Teixeira Pinto, onde existiu um monumento ---

evocativo desse militar nascido em Moçâmedes esteve na

Guiné e viria a morrer em Moçambique --- em forma de

pirâmide. A rua arrancava em frente a igreja, passava à frente

do edifício, de traço helé-

nico, de autoria do já men-

cionado Cor. Quinhones e construído em 1927,

que abrigava a Administração e a Câmara Mu-

nicipal, atravessava a Av. da República, a R.

Latino Coelho e chegava à R. Teófilo de Braga.

A R. Latino Coelho corria paralela à Av. da

República e passava nas traseiras do majestoso

edifício do Banco Nacional Ultramarino (BNU) --- cuja agência funcionou até

15.06.1942 e que, anos mais tarde, num sopro de revitalização, sofreu

beneficiações para acolher o Hotel Turismo --- e em frente à Escola Primária

“Nuno Tristão”, vindo a acabar na R. Sá da Bandeira, entre as instalações da

Polícia e da Escola das Missões.

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(a) Casa de Lourenço Marques Duarte (a), “A

Competidora” de António de Almeida (b),

prédio da Casa Gouveia (c) e Garagem dos Bombeiros Voluntários de Bolama (d).

Fotos recentes do Google Earth com um grande prédio foi intercetada a sua ligação

à R. Sá da Bandeira.

Entre a R. Latino Coelho e a R. João Marques Barros, ficava a R. Teófilo de Braga

cujo paralelismo se não verificava. Nela residiam, entre outras, a grande família

Nunes Correia, assim como a de Jorge Reviére, existindo os estabelecimentos de

Manuel Simões Marcelino (MSM) e de Santos Marques. E, por fim, vamo-nos

referir à R. João Marques de Barros, evocativa de um grande guineense do séc.

XIX, a qual, em grande parte da sua extensão delimitava o setor A nela sendo de

realçar o grande “sobrado”, mandado construir pelo conhecido comerciante e

grande agricultor Manuel Pinho Brandão, em cujo rés do chão se situava a loja de

Júlio Lopes Pereira, respeitável cidadão que conheci e era referência viva da

cidade, tendo presidido à edilidade Bolamense, nomeadamente aquando da visita

do Presidencial de 1955, no mandato do General Francisco Higino Craveiro Lopes.

Passemos a descrever o setor B, que ficava à direita de

quem sobe a R. Marquês de Ávila e Bolama, nele se

integrando o antigo Palácio do Governador e que, após

1941, com a mudança da capital para Bissau, passou a

ser residência do Administrador. Nele ficou alojado,

em Maio de 1955 o Presidente Craveiro Lopes e o Ministro do Ultramar que, à

data, era o Comand. Sarmento Rodrigues, aquando da visita à Guiné.

À sua frente havia a Av. Almirante Cândido dos Reis assim como, até à

implantação da República, o Largo D. Luiz I. Nesse

Largo --- na sequência do desastre ocorrido em 06 de

Janeiro de 1931, com 2 hidroaviões que integravam a

esquadrilha italiana, de 14 aparelhos, sob o comando de

Ítalo Barbo e com o objetivo de, em formação, efetua-

rem a primeira travessia do Atlântico Sul --- foi em

Outubro desse ano erigido um monumento evocativo ao acidente, sendo o único do

período do fascismo, em África.

Continuando a subir a R. Marquês de Ávila e

Bolama tínhamos à direita a dependência da

Casa Soller, firma belga, delimitada pela

continuação da R. Machado dos Santos.

Prosseguindo surgiam, nos extremos do pró-

ximo quarteirão, dois sobrados, sendo o pri-

meiro de Lourenço Marques Duarte (a) e, na

esquina de cima, o da firma “A Competidora”

de António de Almeida (b), posto que se

deparava com a continuidade da R. João

Chagas. Subindo a Rua surgia outro grande sobrado (c) pertencente a Casa

Gouveia.

Como se pode ver na foto supra, esta artéria teve um separado central, que até lhe

conferia uma certa elegância.

a b

c

d

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O sobrado dos Bombeiros Voluntários

de Bolama, situado no cruzamento da R.

Machado dos Santos e Gov. Albuquer-

que, que se vê na foto.

Voltemos à R. João Chagas que, passada a R. Marquês de Ávila e Bolama,

atravessava por entre os sobrados da casa

comercial “A Competidora”, como referi de

António de Almeida, na principal artéria, e o

da poderosa empresa de António da Silva

Gouveia (ASG), vulgo casa Gouveia, se-

guindo-se a face lateral da Imprensa Nacio-

nal, posto que passava a Praça do Infante D.

Henrique numa das suas cabeceiras, do lado

em que ficava a principal porta o Mercado de Bolama, indo acabar na R. João

Marques de Barros.

A bem dizer, o centro da cidade era o Mercado. Em seu redor, para além do edif.

da Imprensa Nacional, encontravam-se as casas comerciais Ligeiro, Borda, bem

como a do libanês Said Saad, esta já voltada à Rua Machado dos Santos, tal como

a do português Ernesto Gonçalves de Carvalho, vulgarmente designado por

“Pintosinho”, assim como, pegando com o sobrado da casa comercial Duarte, a

antiga Casa Guedes que nos finais dos anos cinquenta foi absorvida pela Sociedade

Comercial Ultramarina (SCU).

A Rua Machado dos Santos nascia na R. Alferes

Malheiro e era paralela à frente marginal.

Atravessava a Rua Gov. Sequeira, passava pelo

belo sobrado dos Bombeiros Voluntários de

Bolama, em cujo primeiro andar havia um salão

que acolhia um pequeno teatro onde no início dos

anos 50 atuou um grupo de antigos estudantes de

Coimbra em digressão pela Guiné. Em frente e já

na esquina com a R. Gov. Albuquerque era a casa

comercial Fernandes (do Jaime, Maria e João).

Depois, atravessava a R. Gov. Albuquerque, indo em frente neste setor até à Rua

Marquês de Ávila e Bolama. Das traseiras do Mercado, descia-se para a Av.

Almirante Cândido dos Reis pela denominada Travessa do Mercado ficando à

esquerda o grande quarteirão ocupado por armazéns da Casa Gouveia, cuja fachada

era voltada à frente marítima. Contornando-a entrava-se na R. João Marques de

Barros onde, por altura do término da R. Machado dos Santos, se encontrava a casa

comercial de Carlos Gomes, vulgo “Cadogo”.

Passemos ao setor C cujos limites são definidos pelo

troço plano da R. Sá da Bandeira, a R. Marquês de

Ávila e Bolama, parte da frente marítima, em que, por

sinal, se encontravam as duas pontes --- a de cimento

e a madeira, de maior comprimento, com rampa bas-

culante ligada a uma jangada e destinada a apoiar as

ligações aéreas dos célebres Clippers da Pan-American, que operaram de 1940 a

1945, facilitando as saídas e entradas de passageiros.

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Volvia-se à direita para as instalações das Oficinas Navais, a partir das quais se

acedia pelas Ruas Alferes Malheiro, Gov. Sequeira e

Gov. Albuquerque, ao Largo Gov. Carlos Pereira para

onde, como disse, dava a porta de armas do quartel.

Neste setor, para além de uma travessa que separava

as instalações do Cinema do grande edifício que

albergava as repartições dos Correios, das Finanças,

bem como a Delegacia Marítima e ainda a Repartição

de Finanças. Duas ruas atravessavam o eixo cons-

tituído pela R. Marquês de Ávila e Bolama que era a

linha de charneira setorial.

Uma das artérias, de projeção oblíqua, era a Rua

João Chagas. A outra, de sentido ortogonal, era a R.

Machado dos Santos. No limite deste setor, definido

pela R. Marquês de Ávila e Bolama só havia habi-

tações deste o encontro com a R. Sá da Bandeira até à garagem dos Bombeiros

Voluntários que pegava com as instalações do Cinema as quais, mais tarde, foram

bastante beneficiadas.

Por fim entremos no setor D o qual partia da frontaria da igreja e se estendia ao

longo da extensão do Quartel, cujos pavi-

lhões eram de estrutura metálica assentes em

pilares de ferro elevados cerca de um metro

acima do solo, o que para além de assegurar

excelente ventilação reduzia, de sobrema-

neira, a humidade no interior das dependên-

cias. Era limitado por parte da Rua 5 de Outubro, a

Av. da República e a parte plana da R. Sá da Bandeira.

Este setor era, essencialmente, composto por equipa-

mentos públicos como, por exemplo, um grande espa-

ço ajardinado fronteiro à Câmara e à Igreja paroquial,

o Parque Infantil com diversificado equipamento, o

Coreto na sua retaguarda e nele foi erguida a estátua

ao presidente americano Ulysses S. Grant.

Meus Caros. Isto foi o que eu consegui escrever sobre a velha capital cuja memória tão fundo me toca. Estou certo que, por certo, outros mais conhecedores, melhor habilitados com facilidade e sem erros saberão ir muito mais longe.

António Júlio E. Estácio

10.04.2012

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