Boletim Bibliográfico - Vergílio Ferreira

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  • 7/25/2019 Boletim Bibliogrfico - Verglio Ferreira

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    - Boletim Bibliogrfico 10 - O Escritor do ms - janeiro de 2016 - Verglio Ferreira -

    Os limites da nossa condio Como espantosa a sua descoberta! Ela paralela da morte daquiloque descobrimos: s depois da falncia das nossas invenes nos descobrimos ns, os inventores. Ja-mais o homem ter atingido os seus limites, porque jamais ter deixado de ser tudo aquilo em queexistia. O fascinante milagre que o sabermo-nos vivos, o conhecermos esta incrvel iluminao de nsprprios, de ns ao universo, s agora nos perturba, s agora alucinante, porque s agora gratuita.Vivemos em ns; a dimenso de in nitude que nos habita, este poder incrvel de sabermo-nos, de ser-mos uma pessoa, em ns que se limita e torna espessamente absurdo o desa o que nos lana a con-tingncia e a morte. A experincia de ns prprios, do inverosmil milagre do que somos, extraordi-nariamente difcil, meu amigo, e de si mesma miraculosa. Habita-nos um poder brutal de uma evidn-cia fechada, de uma irredutvel necessidade que nos vem deste sentirmo-nos um indivduo, uma intei-reza sem trao de unio, um absoluto de presena que recusa a contingncia, a ligao com tudo o quenos rodeia, a dependncia da fatalidade. E todavia, sabemos que a fatalidade existe. Como possvel? (Verglio Ferreira,Carta ao Futuro).

    O sculo XX deu-nos um edifcio complexo, amargo e isolado dos valores referenciais de perodosanteriores. Nietzsche tinha proclamado, na viragem do sculo, a morte de Deus- e desse abando-no nasceu uma desorientao que se manifestou numa crise cultural e de valores, uma crise da pr-pria civilizao. Neste quadro, encontramos um movimento los co que in uenciar as ideias e asopes de artistas e criadores, o Existencialismo. Esta corrente do pensamento procura compreen-der os principais problemas que se colocam ao homem durante a sua existncia. Tenta de nir comoobjeto da sua anlise uma loso a do Homem, aquele ser individual que em cada dia se confrontacom uma sociedade e um mundo que muitas vezes no compreende e que ele experiencia comosensaes de vazio, de absurdo e de inutilidade. O Existencialismo conduz-nos, pois, indagao dosigni cado da existncia humana. As guras mais importantes desta corrente los ca foram So-ren Kierkegaard, ainda dentro de uma abordagem de um existencialismo mstico (separao doHomem da sociedade); Martin Heidegger, que destaca a dimenso solitria do homem (o homemcomo ser-no-mundo), e Jean Paul-Sartre que, em O Existencialismo um Humanismo, de niu o es-sencial desta corrente los ca. Nesta obra, o Homem de ne -se pela sua existncia e no pela suaessncia. S depois de existir que o Homem se pode de nir. o que o Homem realiza que lhe d asua natureza prpria. O projeto de vida de cada pessoa uma experincia subjetiva que se formali-za numa existncia e que se manifesta em condies originais e espontneas que superam a sim-ples vontade. O existencialismo in uenciou muitos criadores, suscitou muitas questes e acaboupor aproximar pelo processo de a nidade lsofos e escritores. Verglio Ferreira construiu umaobra literria e los ca na qual as temticas do existencialismo esto presentes. A efemeridade doHomem, o seu corpo como forma substantiva de existncia, a cintilao de luz a que ca reduzida asua vida, a angstia do pensamento que se extingue no nada, no tempo de eternidade em que cadavoz se perdeu, so temas recorrentes da sua obra. Mudana, de 1949, inicia a sua fase literria, emque se desvincula das ideias do neorrealismo e se abre mais a uma temtica existencialista. ManhSubmersa (1953), Apario (1959), Alegria Breve (1965), Para Sempre (1983), At ao Fim (1987), EmNome da Terra (1990) so as suas principais obras no campo da co. No domnio dos ensaios,podemos destacar Carta ao Futuro (1953), Da Fenomenologia a Sartre (1963), Invocao do MeuCorpo (1963), Arte Tempo (1988). Verglio Ferreira deixou-nos igualmente um registo em forma dedirio, a que deu o nome de Conta- Corrente (1980-1994).Verglio Ferreira foi muito in uenciado pelo Existencialismo, mas teve outras referncias que mar-caram a sua obra. A cultura clssica foi marcante nas referncias literrias de um tempo que procu-rava interrogar-se sobre a inteligibilidade do universo. Andr Malraux foi um dos autores que mar-cou a sua obra de um modo muito signi cativo. Andr Malraux escreveu um livro marcante para aHistria cultural do sculo XX, A Condio Humana. Verglio Ferreira dedicou-lhe um livro, Interroga-o ao Destino, Malraux, (1963) e reviu-se nele como uma trajetria de vida, onde so substantivose vivos os sonhos, a ambio como forma de exprimir a dignidade humana. A interrogao sobre acondio humana um ponto comum entre Verglio Ferreira e Andr Malraux. Verglio Ferreira viaessa interrogao no como um percurso de existncia caracterizado por uma ideia de vidaaventureira ou sonhadora de utopias irrealizveis, mas procurava antes, interrogar o destino dohomem. A inquietao de Verglio Ferreira foi semelhante de Malraux- procurar compreender oque se encontra na existncia como sendo injusto e absurdo. Em Malraux, Verglio Ferreira viu umaao que procura determinar um caminho de maior justia, de mais sentido. Assim, a vida comoexistncia aparece-nos como uma redeno que procura encontrar um sentido que se adeque pura irrealidade. A vida como existncia conduz-se para uma forma prometida da vivncia do ho-mem, essa dimenso do no-ser que apenas ser uma certeza do tempo-uma apario.

    O que certo e imediato, o que me vem boca e tem nome, oque exacto e mensurvel, refugia-se na timidez da penumbra edo silncio, porque a voz obscura que me fala transcende o passa-do e o futuro, vibra verticalmente desde as minhas razes at aoslimites do universo, a onde a lembrana s pura expectativadespojada do seu contorno, s pura interrogao. Nesta horaabsoluta, conheo a vertigem da in nitude, o halo mais distante daminha presena no mundo Verglio Ferreira. (2010). Carta ao futuro.Lisboa: Quetzal.

    Mas a vida est cheia do seu dom original e s espera de ns um pouco de atenoou no bem deateno, no bem de ateno: um pouco de humildade, de uma ntima nudez. Eu o reconheo denovo, a esse dom, nesta hora de chuva em que escrevo. Na rua deserta, oua-a cair, expulsar da cida-

    de os robs da iluso, a grandes brados de um vento sideral. Dirs tu, meu amigo, ou algum ao pde ti, que so eles precisamente quem me constri o mundo onde a apario possvel, este mun-do de conforto de um fogo que me aquece, de um telhado que me abriga. Tambm tenho a minhaparte de rob e no a nego. Mas sei que h outra coisa minha espera e que s depois dessa queno h mais nenhuma. Tenho apenas esta vida para viver, e seria quase uma traio que eu faltasse sua entrevistaessa entrevista combinada desde toda a eternidade..Verglio Ferreira. (2010). Carta ao futuro. Lisboa: Quetzal, pginas 15 -16.

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    Ficha Tcnica Redao: Equipa da Biblioteca Biblioteca: Escola Secundria Rainha Dona Amlia Periodicidade: Mensal (janeiro) Distribuio/Publicitao:

    (A xao na Biblioteca / Plataformas digitais )

    - Boletim Bibliogrfico 10 - O Escritor do ms - janeiro de 2016 - Verglio Ferreira -

    O mais forte em ns esta voz mineral, de fsseis, de pedras, de esquecimento. Ela ger-mina no homem e faz-lhe pedras de tudo. Assim, quando procuro em mim a face originalda minha presena no mundo, o que descubro no o alarme da evidncia, o prodgioangustioso da minha condio: o que descubro quase sempre a indiferena bruta deuma coisa entre coisas.Eis-me aqui escrevendo pela noite fora, devastado de Inverno. Eis-me procurando a verda-de primitiva em mim, verdade no contaminada ainda da indiferena. ()Nesta cadeia de bilies e bilies de acasos, eis que um homem surge face da Terra, eloperdido entre a in nidade de elos, de encruzilhadas- e esse homem sou eu E, todavia, agora que me descubro vivo, agora que me penso, me sinto, me projeto nestanoite de vento, de estrelas, agora que me sei desde uma distncia in nita, me reconheono limitado por nada mas presente a mim prprio como se fosse o prprio mundo quesou eu, agora nada entendo da minha contingncia. ()

    A minha vida eterna porque s a presena dela a si prpria, a sua evidente necessida-de, ser eu, Eu, esta brutal iluminao de mim e do mundo, puro acto de me ver em mim,este ser que irradia desde o seu mais longnquo jacto de apario, este Ser- Ser que mefascina e s vezes me angustia de terror E todavia eu sei que isto nasceu para o siln-cio sem m. Verglio Ferreira. (1990). Apario. Lisboa: Bertrand, pginas 49 -50.

    "A Primavera, o fresco. Ou talvez a deusa Flora para ser mais corp-rea contigo. Mas um corpo transcendente at sublimidade. Tutinhas mais peso do que isso, querida. Mas eu preciso agora tantode seres divina. Transcendente irreal. Dissolvel e v deixa-me serinfantil. Mesmo o amor s comea a existir assim, dos livros. Me-tafsico disparatado. Abaixo disso tem j outro nome que vem nasiologia. Preciso ardentemente de irradiar o teu corpo a tudoquanto baste para ser divino. Vou construir uma religio que noh. Vou ser sublime e atrasado mental. Um corpo. Minha queridaMnica, o corpo ainda no existe e preciso empenharmo-nos to-dos com ardor para que exista. Porque o que existe s a porcaria de um bocado de carneque deve vender -se nos talhos dos antropfagos. Ou ento existe s o que nele no existee se transaciona nas sacristias da provncia. Meu amor, deixa-me dizer -te. Agora que estsmorta e como tudo foi longo. Agora que arrumaste as coisas. uma deusa linda numinstante do seu movimento leve, mas no se lhe v a face. Porque a beleza no dela masda leveza do seu passar. V-se de costas, a face um pouco voltada s at visibilidade doseu contorno doce. Colhe passagem uma or sem se deter, no ondeado da aragem que aleva. E na outra mo segura contra o peito um aafate de mais ores. Mas tudo nela a-reo e dcil. A tnica cor de argila, ondeante at mobilidade subtil dos seus ps nus, umaala descada no ombro direito. Um manto branco tombado dos braos para as costasnum suporte negligente. O cabelo apanhado na nuca, a zona mais delicada para a ternurade um homem. E uma ta com aurola a segur-lo. E o impondervel de todo o seu ser depassagem. Mas era o que sobretudo eu gostaria de te dizer desta deusa grave e area.No bem o seu corpo esbelto como um voo de ave, mas s esse voo. No bem a sua juven-tude eterna mas a eternidade. No o gracioso dela mas a graa. Olho-a in nitamente paratu l estares e ouo-te rir porque no estarias nunca. Fito-o e ltro -o para car comigo oseu impassvel at morte. O jeito breve dos ps que no pisam. Os dois dedos subtis que

    colhem a or sem a colherem e so nela h dois mil anos a or que no colheram. A ancadoce em movimento, o etreo da sua divindade. A moldagem do seu corpo vaporoso peloz ro que a leva. O deslizar do manto e da tnica que no deslizam, para a nudez no serde mais. E a espdua nua para se comear a sab-la e ela ir existir numa avidez assustada.E o cabaz de ores com que leva a alegria consigo. E o espao verde e vazio para que nadamais acontea alm de si. Olho-a ainda, olho-a sempre. Passa area e de costas. E assim asua beleza invisvel, no anncio do que jamais poderemos ver. Assim a sua beleza amais bela porque est perto e longe, na realidade tangvel e intocvel de sempre. Na faceoblqua do que jamais saberemos a face. No olhar que inunda todo o corpo como pr-prio de todo o olhar mas de que jamais saberemos os olhos donde vem a torrente. No seucorpo de deusa e no enleio do seu movimento que jamais saberemos ter nas mos porquea sua realidade o passar. Nas ores que leva e colhe e jamais colherei nas minhas mos grossas e mortais. Tenho de deixar de olhar esta deusa efmera no breve instante de serdeusa, tenho de ir ter contigo ao fundo do corredor talvez, Verglio Ferreira. (1990). Em nome da terra. Lisboa: Bertrand, pginas 127 -128. Ima-gem: : Deusa Flora Representao de um fresco de Pompeia.