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As grutas da Columbeira
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COMMUNICAÇÕES
As grutas da Columbeira
POR SANTOS ROCHA
Em 7 d'ngosto ultimo partimos das Caldas da Rainha para explorar timasgrutas no sitio da Columbeira, concelho d'Obidos, que nos haviam sido indica-
das pelos nossos consócios srs. dr. Cymbron e José Henriques da Silva. O admi-nistrador do concelho d'Obidos, sr. Francisco Guilherme de Castro, conhecedordo sitio, tinha preparado tudo com muito acerto para facilitar-nos o trabalho,
incluindo pessoal, ferramentas, archotes, cabos, abertura de atalhos pela encosta
onde se acham as grutas, etc; e teve ainda a amabilidade de tomar parte naexcursão. Acompanhavam-nos tamDem os nossos consócios srs. Henriques daSilva e Arthur Salles Henriques, assim como o illustre clinico de Coimbra, s-".
dr. Vicente Rocha.Pelo caminho informou-nos o sr. Castro que a única gruta em que poderia
fazer se alguma investigação interessante, era a da Lapa do Suão; porque osnossos trabalhadores já alli haviam feito sondagens, e tinham encontrado n'essa
gruta um fragmento d'osso humano e dous fragmentos de cerâmica.Chegados ao sitio pelo fundo d'um valle denominado— do Rolo, vimos á
esquerda uma elevada e Íngreme encosta, no cimo da qual se ergue uma cruzde pedra, que assignala a batalha de Roliça, e á direita uma chapada de muirápido declive, quasi tão alta como a fronteira, formada por uma penha colossal
de calcareo jurássico Quasi a meia altura d'esta chapada descobria-se a LapaLarga, grande abrigo sob rocha, no fundo do qual se abre uma pequena gruta.
Perguntámos pela Lapa do Suão, resolvidos a marcharmos para ella im-mediatamente; e indicaram-nos um nivel muito mais alto do que o da LapaLarga, e em sitio onde o declive era verdadeiramente assustador.
Começámos a subir junto a uma penedia quasi vertical, passando pela^ruta do Palheiro e depois pela Lapa Larga; e em seguida, agarrando-nos ás
saliências da rocha e a alguns arbustos selvagens, fizemos a travessia de parte
da encosta até uns dez metros do ponto indicado e quasi ao nivel d"elle. A nos-
s,os pés abria-se então um abysmo de mais de 70 metros ! Não tendo o habito
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de semelhantes íiscensões e de ver grandes espaços abaixo de nós, sentimos
uma certa perturbação. Pareceu-nos que não poderíamos manter o equilíbrio
n'aquelle enorme plano inclinado; e resolvemos descer.
O sr. dr. V^icente Rocha, que caminhava adiante de nós, mais sej^uro dosseus nervos, aproximou-se da extremidade d'uma corda presa a uma saliência
da rocha, que nos encobria a gruta, e alou-se até lá. Foi elle que tomou a
direcção das pesquizas dentro d'aquelle recinto, com grande satisfação nossa,
attendendo á sua competência. Acompanharam-n'o os srs. Salles Henriques e
Castro, para o auxiliarem
Installando nos com o nosso consócio sr. Henriques da Silva na LapaLarga, fizemos sondagens no solo da pequena gruta que se abre ao fundo; masnada colhemos. Passámos á gruta do Palheiro, onde também nada encontrámos.Visitámos em seguida a caverna do Caixão, que pela sua disposição e e^-tado dopavimento nos pareceu absolutamente improductiva sob o ponto de vista archeo-iogico.
Mais feliz, o sr. dr Vicente Rocha, atacando o pavimento terroso da suagruta, recolhia novos vestígios dos cavernicolos da Columbeira. A sua attenção,
sendo fixada no fundo da gruta, onde esta baixava consideravelmente, alli tra-
balhou, deitado de bruços, durante mais d'uma hora; e afinal desceu, trazendo-
nos fragmentos d'ossos humanos, e alguns de animaes, uma valva de conchamarinha t Tapes Decussata, L.), restos de vasilhas de barro, carvões vegetaes e
um precioso objecto de calcareo, semelhante a outros já descobertos em esta-
ções prehistoricas de Portugal
Reunidos todos os excursionistas na gruta do Palheiro, passámos a exami-nar, peça por peça, os objectos da colheita, emquanto o sr. dr. Vicente Rochanos contava as circumstancias da exploração. A gruta apresenta a forma d'umagaleria, como a do Palheiro; e é espaçosa até uns lo metros da entrada. [V-âWi
por diante é tão baixa que só se torna accessivel, caminhando de rastos O pa-
vimento é íormado por terra vegetal, manifestamente levada de fora, e inclina-se
suavemente para o interior. Os objectos recolhidos estavam disseminados emtodos os níveis do solo.
Pela nossa parte o exame dos fragmentos cerâmicos provou nos que algunspertenciam a grandes vasos, e não representavam senão parcellas insignificantís-
simas d'elles.
Estes factos e as circumstancias da jazida dos objectos desde 1-^go nosdenunciaram que o solo da gruta já tinha sido remexido anteriormente. Porquem, e em que epocha ? O regedor da freguezia, sr. Pacheco, que se achavapresente, deu nos a este respeito uma noticia interessante. Haveria vinte a.inos,
disse elle, três homens vieram explorar todas estas grutas. A ultima, única queparece ter dado algum proveito, foi a Lapa do Suão; mas alli a exploração nãopassou da parte do solo mais próxima da entrada, porque os exploradores foramchamados para outro logar em serviço do governo. Recolheram n'ella muitaslouças e outros objectos, que fizeram encaixotar e expedir para Lisboa.
O pensamento que então nos occorreu, foi que um d'esses homens deviater sido Carlos Ribeiro: e consultando, dias depois, n'esta cidade, o nosso res-
peitável mestre e consócio honorário sr. Joaquim Filippe Nery Delgado, este nãosó reputou a hypothese muito verosimil, mas disse-nos que a exploração teria
provavelmente sido feita por occasião do Congresso Internacional de 1880, por-que então alguns congressistas fizeram com Carlos Ribeiro varias excursõesscientiricas pelo paiz.
Prometteu-nos entretanto o sr. Nery Delgado mais amplas informações,quando voltasse a Lisboa; e de facto, decorridos alguns dias, declarou nos que.
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percorrendo as vitrinas do Museu da Direcção dos Serviços Geológicos, encon-trara uma com a legenda— Coliimbeira, contendo muitos fragmentos de louça,
machados de pedra, pontas de lança e de setta e facas de silex, um núcleo dequartzo hyalino, ossos de animacs, fragmentos d'ossos humanos, uns queimadose outros não, e emfim um fuso de cobre, tendo na parte superior uma caneluracm espiral para receber o fio, com a seguinte nota por elle escripta:— «Profun-didade o™,3o. Próximo da bocca. Esta gruta tinha sido remexida. Haste d'umfuso». O illustre geólogo repetiu-nos que todo este mobiliário podia ter sido col-
ligido pelo seu fallecido collega Carlos Ribeiro.
Tratando se d'uma gruta da Columbeira, e não nos tendo dado o regedornoticia de se haver recolhido mobiliário em outra gruta além da Lapa do Suão,pareceu nos muito provável que fosse esta a própria gruta de que provieram os
objectos existentes no referido Museu; o que se confirma não só pelo estado
análogo dos ossos humanos, mas até pela relação que deve existir entre o fuso
de cobre e um dos fragmentos de louça recolhidos pelo sr. dr. Vicente Rocha,como adiante diremos.
E' deplorável que das explorações, que attribuimos a Carlos Ribeiro, nãoexista relatório algum. Entretanto um facto importante ficou assignalado na notei
escripta que acompanha o fuso: e é que essas ex-
plorações encontraram a gruta remexida.Em que epocha e com que fim teria sido
feito este remeximento anterior? O problema é
de difficil solução.
Examinemos o nosso mobiliário.
A peça de calcareo brando, muito deterio-
rada, com a forma do pé humano, apresentando
vestígios de fractura em a o. b^ figura i, pertence
indubitavelmente ao t3/po já conhecido pelas explo-
rações de Carlos Ribeiro no dolmen da Estria (O,
e mais recentemente pelos trabalhos do sr Maxi- tís.i
miano Apollinario na necrcpole neolithica do valle de S. Martinho (-). Kllc appa-
receu também nas grutas de Cascaes (^), que, como é sabido, pertencem á epo-
cha cupro-liihica. O sr. Cartaiihac, fundando-se em razões archeologicas e naethnographia comparada, demonstrou que semelhantes objectos representam a
hermineiie encabada ('j; e esta opinião do sábio francez ainda não teve refutação.
E', a nosso ver, um symbolo da hacha, que, pelo facto de apparecer emlogares de sepultura, devia ter um caracter funerário e religioso, a semelhança
do que se tem encontrado em estações prehistoricas de ouiros paizes {•'), e até
entre povos selvagens da actualidade (''). A ditíerença está apenas em que nonosso paiz, onde abundam as hermiuettes, o symbolo tomou por vezes a formail'estas.
Os fragmentos cerâmicos, com excepção d'um, são de pasta mui grosseira.
(*) Noticia (Valgttmas estações e monumentos preMstoricos, pag. fif!, o est. vii, fig.* 1.
(-) O Archeologo Português, vol. ii, pag. 219-220.(f) Ibid.
(*) Les ages prehislorirjues fie VEspagíie et du Portugal, pag. iOS-lOÍ).
(•<) Vej. JjPs iewpts préltistoriques eu Svéde, })()r O. Montcliii.«. jiag. Hí) e 97, trad. de S. Rei-
iiach; L'Arclieologie Prehisiorique. do .^r. J. d<' Rave, pag. 9õ, 97 c 98-I0.Õ; Musé Prehistoriquerdos .sr.s. de IMoitiilet, est. 48, íig.=* 4i2. e est. (iO, íig."» 580; obra cit. do sr. Cartaiihac, pag. 110-1.12^
Tm France Prehist., do mesmo auclor, pag. J()0, 28(i e segg.
(^1 Jievue de Vécole d'anthropologie de Paris, 10." année, x-xi. 1900, pag. H9I.
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negra, parda, castanha escura ou vermelha, misturada em alguns exemplarescom grãos de quartzo, e trabalhada á mão, e apresentam ás vezes na superfície
externa esse lustro tão frequente nas louças neolithicas, mas sem ornato algum.Alguns pertencem a pequenos vasos hemisphericos de bordo vertical, que sãocommuns nos dolmens das visinhanças da Figueira, e outros indicam, pela suaespessura, que pertenciam a grandes vasos bojudos, como os que nos foram in-
dicados em certos fragmentos descobertos nos dolmens de Alcalar (Algarve) (').
Para nós esta cerâmica é neolithica ou cupro-lithica, e devia pertencer a mais desete vasos.
Devemos notar também que ha fragmentos cujas fracturas estão cobertaspela stalagmite; prova manifesta de que os vasos foram quebrados em epochabastante remota.
Um único exemplar foi trabalhado á roda; e tem ornamentação na facesuperior do bordo, que é sensivelmente horisontal e projectado para fora. Essaornamentação consiste em uma linha ondulada e interrompida, traçada na pastaainda fresca. Esta é áspera, vermelha nas superfícies e cinzenta na massa interna.
Fundando-nos em critérios que temos adquirido nas explorações da nossaregião, esta cerâmica trabalhada á roda pode ter pertencido á segunda idade doferro. Foi já n'esta idade, durante o periodo da influencia carthagineza, periodoem cujo mobiliário se notam caracteres marneanos, que o lusitano de SantaOlaya, do Crasto e dos Chões, começou a usar da roda do oleiro. Nós vemosn'estas estações, ao lado das louças mais communs, de pasta primitiva, impurae misturada com spatho calcareo ou grãos de quartzo, trabalhadas á mão, outras,
menos abundantes, em que a mesma pasta é trabalhada á roda. Dir-se-iam osprimeiros ensaios imitando o fabrico da cerâmica importada. Vemos também alli
exemplares em que a pasta se torna mais pura e se imitam as próprias formasimportadas. E' manifestamente um periodo de aprendizagem e de começo detransformação na industria cerâmica. Por outro lado os vasos tronconicos e debordo horisontal, que nos são indicados pelo fragmento da Lapa do Suão, appa-recém frequentemente nas mesmas estações.
Mas se por ventura não alcança a segunda idade do ferro, também não é
posterior á epocha romana: nós temos recolhido em estações romanas do Algarvelouças com pa.^ta muito semelhante.
Assim a gruta teria sido uiilisnda em epochas muito diversas.
Quanto aos fragmentos d ossos humanos, uns não têem vestígios de fogo,
e são muito frágeis, apresentando o aspecto de pedaços de madeira podre; e
outros estão queimados. N'estes últimos importa distinguir os que se achamsimplesmente carbonisados, apresentando uma côr negra lustrosa, e os que se
acham calcinados, apresentando uma côr branca.
Em estados semelhantes foram encontrados os ossos humanos das grutasde Cascaes; e o sr. Cartailhac pensou na h^-pothese da incineração dos corpos (-).
Nós também pensamos que a calcinação dos ossos exige um fogo violento,
tal como devia ser feito para a cremação dos corpos, e não como o que foi feito
nos dolmens da nossa região, para desinfecção das cryptas ou algum rito fúne-
bre, e que apenas chegou a produzir a carbonisação (^;.
Estamos, porém, longe de attribuir estes vestígios de cremação ao primeiroperiodo de utilisação da gruta. Bastaria a presença da cerâmica trabalhada á
(') Vej. o nosso relatório sobre estos monumentos, apresentado na (i.^ sessão da Sociedade.(^) Obr. cit., pag. I 11-112.
(^) Vej. Antiguidades prehisforiças do concelho da Figueira, pag. 170 e 257,
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roda para pôr em duvida semelhante facto; mas ha ainda o fuso de cobre, de
que nos deu noticia o sr. Nery Delgado, para apoiar a nossa hesitação. Este
objecto não pertence á idade do cobre. As sepulturas d'esta idade não fornece-
ram cousa semelhante; e ainda ao tempo das estações de Santa Olaya, do Crasto
e dos Chões os habitantes do valle do Mondego empregavam largamente a
fusaióla. .
Relacionando todos estes factos, concluímos que a gruta poderia ter rece-
bido sepulturas por incineração na idade do ferro e até na epocha romana; o
que explicaria o remeximento dos depósitos mortuários anteriores.