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ARTIGO ORIGINAL PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.15, N. 1, P. 13-47, JAN./JUN. 2010 13 DOI RAZÃO E SENSAÇÃO EM TEETETO 201 D -202 C . 1,2 Anderson de Paula Borges (UFG) 3 [email protected] Resumo: O objetivo do presente artigo é fazer uma breve discussão de três aspectos que caracterizam a teoria do sonho do Teeteto. Primeiro, comento a função do sonho no contexto da terceira definição de conhecimento. De- pois, me detenho no texto e examino algumas questões relacionadas ao conceito de logos de 201 d -202 c . Na última parte do artigo discuto o problema da percepção dos elementos. Nessa seção recuso a tese, defendida por alguns, de que Platão coloca os elementos na mesma condição perceptiva dos dados sensíveis, tal como estão descritos em Teeteto 184-6. Palavras-chave: razão, sensação, elementos, teoria do sonho. INTRODUÇÃO No Teeteto, em 201 d8 -202 c5 , Platão delineia uma teoria sobre a distinção entre itens primitivos de uma composição, con- siderados não cognoscíveis, e os “compostos” enquanto tais, que seriam objeto de opinião verdadeira e conhecimento. Essa teoria quer tornar plausível a tese de que o conceito de 1 Recebido: 10.08.2010/Aprovado: 15.09.2010/Publicado on-line: 13.03.2011. 2 Este artigo aproveita uma parte da tese de doutorado que apresentei no Departamento de Filo- sofia da Universidade de São Paulo, em setembro de 2009. Agradeço imensamente aos professores Marco Zingano, Roberto Bolzani, Lucas Angioni e Eliane Christina. Eles compuseram a banca e me concederam valiosos comentários sobre algumas das ideias que, digitadas às pressas, não ficaram tão claras à época, o que me dá a oportunidade de agora tentar aprimorar. Agradeço também as oportunas sugestões feitas por um “referee” da Philósophos. 3 Anderson de Paula Borges é Professor-adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Brasil.

BORGES, A. P. Razão e Sensação Em Teeteto 201d-202c

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    PHILSOPHOS, GOINIA, V.15, N. 1, P. 13-47, JAN./JUN. 2010 13

    DOI

    RAZO E SENSAO EM TEETETO

    201D

    -202C

    .1,2

    Anderson de Paula Borges (UFG)3

    [email protected]

    Resumo: O objetivo do presente artigo fazer uma breve discusso de trs aspectos que caracterizam a teoria do sonho do Teeteto. Primeiro, comento a funo do sonho no contexto da terceira definio de conhecimento. De-pois, me detenho no texto e examino algumas questes relacionadas ao conceito de logos de 201d-202c. Na ltima parte do artigo discuto o problema da percepo dos elementos. Nessa seo recuso a tese, defendida por alguns, de que Plato coloca os elementos na mesma condio perceptiva dos dados sensveis, tal como esto descritos em Teeteto 184-6.

    Palavras-chave: razo, sensao, elementos, teoria do sonho.

    INTRODUO

    No Teeteto, em 201d8-202c5, Plato delineia uma teoria sobre a distino entre itens primitivos de uma composio, con-siderados no cognoscveis, e os compostos enquanto tais, que seriam objeto de opinio verdadeira e conhecimento. Essa teoria quer tornar plausvel a tese de que o conceito de

    1 Recebido: 10.08.2010/Aprovado: 15.09.2010/Publicado on-line: 13.03.2011. 2 Este artigo aproveita uma parte da tese de doutorado que apresentei no Departamento de Filo-sofia da Universidade de So Paulo, em setembro de 2009. Agradeo imensamente aos professores Marco Zingano, Roberto Bolzani, Lucas Angioni e Eliane Christina. Eles compuseram a banca e me concederam valiosos comentrios sobre algumas das ideias que, digitadas s pressas, no ficaram to claras poca, o que me d a oportunidade de agora tentar aprimorar. Agradeo tambm as oportunas sugestes feitas por um referee da Philsophos. 3 Anderson de Paula Borges Professor-adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Gois, Goinia, Brasil.

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    epistm4 pode ser definido como opinio verdadeira a-companhada de logos. Em 201d8-202c5, o autor do Teeteto apresenta uma distino entre itens cognoscveis e itens in-cognoscveis como proposta de explicitao do sentido dessa definio de saber. Citada pela primeira vez em 201c, a terceira definio uma tese que tem no sonho, pode-se dizer, uma explicao suficiente, mas no podemos concluir que o sonho um caminho necessrio para fundament-la. O fato que a frmula poderia ser explicada por meio de outras propostas e o sonho no passa de uma hiptese de trabalho. Em apoio a isso se pode notar que a partir de 206c Scrates se afasta do sonho para examinar a definio em si mesma. Desta vez ele est interessado em definir qual con-ceito de logos teria a capacidade de explicar a passagem da opinio verdadeira para o conhecimento. A teoria do sonho no desempenha nenhuma funo a, embora haja uma cla-ra referncia a ela no segundo sentido de logos, discutido em 206e4-208b10. Note-se tambm que, enquanto a teoria do sonho explicitamente criticada e rejeitada, no claro se a terceira definio recebe um tratamento exaustivo5. 4 Para facilitar a leitura transliterei todas as citaes de termos ou frases do texto grego que men-cionei no corpo do texto. Na transliterao optei pela supresso dos acentos; o acento circunflexo usado em algumas transliteraes indica que ali esto as vogais ou . Nas notas, quando ne-cessrio, cito o texto grego do original. A edio grega do Teeteto usada de W. F. Hicken (DUKE, 1995). As tradues so minhas, mas usei com bastante proveito as seguintes verses do dilogo em lngua moderna: Nunes (2001), Nogueira e Boeri (2005), McDowell (1973), Dis (1924), Chappell (2004) e Melro (1990). 5 A questo do comprometimento ou no do autor do Teeteto com alguma frmula positiva da terceira definio um tema problemtico no Teeteto, mas poucos intrpretes arriscam investir na tese de que Plato estaria abandonando neste dilogo a crena de que o conhecimento possui uma relao necessria com o conceito de logos. Um aspecto que motiva essa resistncia, alm das ocorrncias de logos em outros dilogos, a frase de Teeteto 202d: Scrates pergunta o que poderia ser o conhecimento parte do logos e da opinio verdadeira? (

    ). Segundo Cornford (2003, p. 146), o criticismo do dilogo mostra que preciso provide o sentido correto de logos. Gail Fine (2003, p. 225-51) e Julia Annas (in SHOFIELD e NUSSBAUM, 1982, p. 102 et passim) apresentam anlises consistentes para arguir que o conceito platnico de logos no coincide com a frmula sugerida pela teoria do sonho. J Miller (1992,

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    Como Burnyeat6 e outros, penso que a teoria do sonho e a terceira definio so teses distintas. De certo modo, es-sa hiptese minimiza o papel do sonho na interpretao da terceira definio e permite um ganho em termos inter-pretativos, j que o nvel de ambiguidade de alguns aspectos da teoria tem tornado difcil sua anlise. Minha proposta l-la como uma discusso preliminar sobre as condies de possibilidade da terceira definio. A teoria est em um contexto de discusso sobre possveis candidatos ao papel de elemento modificador da opinio verdadeira em conhe-cimento. Nesse quadro, o autor do Teeteto sente necessidade de propor um exame em dois momentos. Antes de, a partir de 206c, fazer o escrutnio das acepes de logos que se candidatam quele papel transformador, ele investi-ga, na seo 201d-206b, a hiptese geral de que o conhecimento um estado da alma sobre determinado ar-ranjo de objetos7. Trata-se, claramente, de uma tese que passim) mais incisivo nos aspectos positivos da terceira definio. Ele prope que o logos platni-co deve ser identificado como um conceito capaz de preservar os trs sentidos propostos no dilogo: 206c-e, 206e-208b e 208b-210a. Contra: Robinson (1950) e Waterfield (2004, p. 230). Este ltimo v 202d como retorical. 6 Em certas partes do Teeteto (ver, por exemplo, 152c-186c) a relao entre as teses que articulam a discusso dos temas matria de disputa na literatura secundria. Tambm o caso aqui na ter-ceira parte. Burnyeat (1990, p. 129) no tem dvidas de que a terceira definio, citada em seu estudo como K (knowledge), logically independent do argumento do sonho. 7 Uso o termo objeto no contexto do Teeteto para designar um item que possui uma natureza passvel de ser analisada, conhecida ou percebida. Um objeto pode ser um indivduo, como S-crates, um item fsico, como carroa (cf. Teeteto 207a: ) ou um item abstrato, como 2 (Cf. MORTARI, 2001, p. 65-66). No h, no entanto, consenso na literatura sobre a forma como Plato est concebendo o conhecimento dos objetos no Teeteto. Os intrpretes divergem quanto a saber se o dilogo est buscando definir uma noo de conhecimento proposicional ou objectual. Concordo com aqueles que defendem a ideia de que na terceira definio Plato trata do conhe-cimento como uma relao entre a mente e os objetos (object-related, cf. WHITE, 1976, p. 179; BURNYEAT, 1990, p. 129-132; e CHAPPELL, 2004, p. 205-212). Nessa linha, conhecer ter uma disposio mental qualificada acerca de um item qualquer. Parece existir uma tenso entre essa alternativa e a tese de que o conhecimento uma relao entre um sujeito e sua cognio das estruturas proposicionais que permitem expressar o conhecimento. No entanto, como sustentam alguns, Plato parece assumir que, se um sujeito conhece x, em algum momento desse processo o sujeito esteve e ainda est no domnio de enunciados sobre as propriedades que se pode atri-

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    desperta seu interesse, mas Plato no parece contente com a premissa que a apoia: existem objetos primitivos despro-vidos de logos (202d10-e1)8.

    Meu exame concentrar-se- naquela primeira parte e se dividir em trs sees. Na primeira, comento o contexto da tese do sonho e proponho uma traduo para 201d8-202c5. Na segunda, examino o conceito de logos em 201d-202c e destaco que a teoria do sonho defende a tese de que a frmula de conhecimento a noo de logos como enu-merao de elementos. Em um terceiro momento, ofereo uma anlise do problema da perceptibilidade dos stoicheia. Comento a a hiptese de que a acepo de aisthta em 202b7 teria uma relao importante com o argumento sobre a capacidade cognitiva da sensao, discutido em 184-6. Es-sa hiptese mencionada em vrios estudos do Teeteto. Meu objetivo mostrar que ela no se sustenta.

    I

    Comeo pelo destaque a dois aspectos do contexto da teo-ria no dilogo. Primeiro, os leitores do Teeteto costumam nomear o trecho em 201d8-202c5 como teoria do sonho porque ele principia com a frase ouve, ento, um sonho

    buir a x ou sobre as relaes que podemos identificar a seu respeito. Isso significa que, para Pla-to, conhecer x e conhecer que isto ou aquilo o caso sobre x so estados cognitivos conversveis. Ver a respeito McDowell (1973, p. 115-116/192-193/195), que v nesse intercmbio um risco que o idioma platnico do conhecimento precisa evitar. Para a tese de que essa converso no pro-blemtica em Plato, ver Fine (2003, p. 225-251) e Burnyeat (1990, p. 132). 8 Seu ataque mira, sobretudo, o seguinte: o que me parece a assero mais engenhosa: que, de um lado, os elementos so incognoscveis e, de outro, a classe dos compostos cognoscvel [

    ]. Os detalhes dessa crtica teoria no so objeto do presente comentrio, cujo escopo limita-se ao texto da teoria do sonho e s teses ali propostas. Sobre o motivo de Plato recusar a premissa do sonho, veja-se Fine (2003, p. 225-251) e J. Annas (in SHOFIELD e NUSSBAUM, 1982, p. 96-114).

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    no lugar de outro (akoue d onar anti oneiratos). O sonho pode ser visto, de incio, como um argumento oferecido por Plato para elaborar o contedo daquela primeira lem-brana de Teeteto (201c8-9)9, mas essa no uma linha de anlise dominante, pois h disputa sobre o ponto. A prepo-sio anti (em troca, no lugar de) pode indicar duas coisas em 201d8: (i) ela pode estar se referindo a uma distino que ter na exposio de Scrates uma descrio idntica a que seria dada por Teeteto se, conforme sua prpria descri-o, ele tivesse condies de se recordar do assunto com preciso10. Essa linha de anlise pressupe um nico autor para as formulaes do sonho; (ii) de outro lado, talvez o re-ferente de anti seja uma descrio de Scrates para a mesma distino, mas no exatamente uma exposio que reproduz o pensamento de um autor especfico. Tratar-se-ia, neste caso, de uma tese corrente sobre cognoscveis e no cognoscveis, no sendo exclusiva do sonho de Teeteto. Penso que a liberdade criativa de Plato, comum nos dilo-gos, permite-nos crer que esse o caso. Qual ento o interesse de Scrates na tese? Ele parece interessado na dife-rena entre epistta e m epistta (cognoscveis e no cognoscveis, cf. 201d). Digamos, ex hypothesi, que se trata de uma tese conhecida em um mbito de pensadores cujo vn-culo a um autor j no faz mais sentido. A meno a to enupnion em 202c5 no desautoriza essa leitura, pois 202c5 no indicaria um sonho unitrio. Em 202c, Teeteto apenas

    9 Nesse ponto do texto Teeteto afirma que tinha se esquecido da definio, mas comea a recor-dar-se ( ). 10 Cf. nota anterior. No a primeira vez, no dilogo, que Teeteto alega no se recordar de uma questo. Em 197a-b, no contexto da discusso do modelo do avirio, o jovem matemtico diz que no se recorda da distino entre posse de conhecimento ( ) e ter ( ) conheci-mento. Scrates se encarrega de explicar a diferena por meio da analogia do avirio.

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    confirma que a verso de Scrates coincide com aquela que ele iria apresentar. Tudo nos levaria a crer, portanto, que a troca mencionada em 201d8 no uma parfrase do sonho original, mas uma exposio suplementar (BURNYEAT, 1970, p. 121), proposta por Scrates, com base naquela dis-tino entre cognoscveis e incognoscveis. Em ltima instncia, essa exposio deve ser considerada uma produ-o do autor do Teeteto. O objetivo de Plato, desse modo, usar a teoria como uma verso preliminar da tese de que o conhecimento opinio verdadeira acompanhada de logos (cf. BURNYEAT, 1970, p. 10-21; MILLER, 1992, p. 90).

    O segundo aspecto que quero por em relevo o contex-to imediato da teoria no dilogo. O sonho de Scrates surge como um passo posterior discusso do argumento do jri, em uma cena cuja propriedade dominante a busca de um critrio de diferenciao entre o estado mental ou dis-posio que se nomeia opinio verdadeira (doxa aleths) e o estado mental ou disposio que ser nomeado epistm11. No final do argumento do jri, Scrates e Teeteto j estabe-leceram que essa diferena deve ser investigada na sequncia. Eles concordam que h uma distino entre os dois componentes da segunda definio: (i) opinio verdadei-ra e (ii) conhecimento12. Quando Teeteto sugere, em 201c8-d1, que essa distino remete a uma frmula em que conheci-

    11 Para como estado mental (e no juzo) no Teeteto ver Crivelli (1998, p. 20-21). H dis-puta sobre como verter doxa na segunda parte. Uma alternativa proposta de Crivelli est em Woolf (2004, p. 574). 12 Ver Teeteto 200d5-201c6. Em 201c6 Scrates conclui: mas parece agora que as duas [conhecimen-to e opinio verdadeira] so diferentes ( ). A diferena entre opinio verdadeira e conhecimento um tema recorrente em Plato e a distino costuma ser ba-seada na tese de que a capacidade de expressar um logos no tem a mesma qualidade que a capacidade de emitir uma opinio verdadeira. Ver a respeito Mnon 98a, Banquete 202a, Fdon 76b/97d-99d.

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    mento opinio verdadeira acompanhada de logos (meta lo-gou alth doxan epistmn einai), ele tambm diz que o autor [dessa definio] defendeu a tese de que tn de alogon ektos epistms, algo como o que no possui logos desprovido de conhecimento. somente aps a meno a estas duas teses que Scrates pergunta: como ele distingue os cognoscveis dos incognoscveis? (201d4-5). Ao ouvir essa pergunta, Tee-teto diz que talvez no possa encontrar a articulao do ponto (ouk oida ei exeurs)13. por isso que Scrates descre-ve a teoria do sonho com a frase ouve, ento, um sonho no lugar de outro e assume, a partir da, a tarefa de expor a distino que lhe interessou.

    Os dois aspectos destacados so relevantes porque qua-lificam a funo da tese do sonho na problemtica do dilogo. H uma distino entre opinio e conhecimento que resultou da abordagem do argumento do jri e a teoria do sonho se oferece como proposta de explicitao dessa dis-tino. Por outro lado, a teoria exprime um problema que despertou o interesse de Plato: a viabilidade de uma dife-rena lgica entre itens que podem ser conhecidos e itens cuja natureza intrnseca no permite um conhecimento em sentido estrito. De que modo se poderia justificar essa dife-rena e por que ela seria importante para uma definio da ideia de conhecimento? Plato procura responder a primeira pergunta na exposio da teoria do sonho, em 201d-202c. A segunda pergunta tema do criticismo delineado em 202d-206c. O presente comentrio se detm predominantemente na estrutura de 201d-202c, no tendo, portanto, essa crtica como objeto imediato14.

    13 Para a traduo de em 201d7 ver Burnyeat (1970, p. 102, n. 3). 14 Tenciono examinar Teeteto 202d-206c (critica teoria do sonho) em outro momento.

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    A seguir apresento uma traduo do texto de 201d8-202c5. Propus uma diviso tpica em quatro partes para fa-cilitar a identificao da estrutura do texto. Em (a) temos a descrio dos elementos; em (b) a descrio das caractersti-cas dos compostos; em (c) uma retomada dos traos fundamentais de ambos e em (d) um comentrio sobre a distino entre opinio verdadeira e conhecimento meta logou (acompanhado de logos).

    (a) Ouve, ento, um sonho no lugar de outro. Pareceu-me tambm ouvir de alguns que os assim chamados [hoionpe-rei] elementos primitivos [prota stoicheia], a partir dos quais ns e tudo o mais somos compostos, no possuem logos [logon ouk echoi]; pois em si mesmo [auto gar kath hauto] cada elemento s pode ser nomeado (onomasai monon ei); no possvel expressar [proseipein] nada mais acerca dele, seja que [o elemento] [hs estin], seja que [o elemento] no [hs ouk estin]; dizer isso j seria adicio-nar [prostithesthai] ser ou no ser, mas no podemos atrelar nada [ouden prospherein] ao elemento se quisermos exprimi-lo em si, isoladamente [eiper auto ekeino monon tis erei]. No se deve usar, com efeito, expresses como mesmo [auto], aquilo [ekeino], cada um [hekaston], sozinho [monon], isto [touto] e nem outras de mesmo tipo [oudalla polla toiauta]. Tais expresses, medida que percorrem tudo, so empregadas para todo tipo de obje-tos, tornando-se diferentes das coisas a que se ajuntam, ao passo que se o item pudesse ser expresso [legesthai] e ter seu prprio logos [eichen oikeion autou logon], teria que ser nomeado parte de todo o resto. Mas, de fato, im-possvel que qualquer destes itens primitivos seja expresso num logos [rhthnai logi]; pois permitido ao

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    elemento ser apenas nomeado um nome tudo o que ele tem.

    (b) Quanto aos itens compostos destes [ek toutn], da mesma forma que os elementos so entrelaados tambm seus nomes se entrelaam e formam um logos; porque a essn-cia do logos ser um entrelaamento de nomes [onomatn gar symplokn einai logou ousian].

    (c) Desse modo, os elementos so inexprimveis [aloga] e in-cognoscveis [agnsta], mas sensveis [aisthta]; j os complexos [syllabas] so cognoscveis [gnstas], exprim-veis [rhtas] e objeto de opinio verdadeira.

    (d) Quando se apreende a opinio verdadeira, porm sem logos [aneu logos], a alma fica em um estado de verdade [altheuein] sobre o item, mas no o conhece [gignskein dou]; com efeito, quem no capaz de dar e receber um logos sobre algo no possui conhecimento do objeto [ane-pistmona einai peri toutou]; quando, porm, apreendeu o logos, ele capaz no apenas disso, mas tambm de ter conhecimento de modo completo [teleis].

    II Stoicheia e logos

    Para expressar a ideia de composio Plato usa, na teoria do sonho, o verbo synkeimai, que significa ser formado de, ser combinado. o mesmo verbo usado por Aristteles, em Me-tafsica Delta 3, quando prope explicar os usos do termo stoicheion. Nesse texto Aristteles define stoicheion como o

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    que dito o primeiro constituinte de algo composto, quan-to forma indivisvel em outra forma15. fcil notar que essa a caracterstica essencial dos stoicheia da teoria do so-nho16, mas Aristteles no diz nada em Delta 3 sobre a incognoscibilidade dos elementos. Como a teoria do sonho formula essa tese? Embora esteja implcito em 201d-202c que uma descrio detalhada dos elementos poderia violar a condio da incognoscibilidade, h um conjunto de afirma-es sobre os elementos que podemos examinar:

    (i) os elementos so inexprimveis (aloga); (ii) so incognoscveis [agnsta]; (iii) no possvel usarmos uma srie de palavras para

    expressar [proseipein] algo sobre os elementos. Nesse grupo de termos esto: ser-essncia [ousia], mesmo [auto], aquele [ekeino], cada [hekaston], sozinho [monon] e isto [touto];

    (iv) o elemento nomevel [onomaston]; (v) o elemento sensvel [aisthton].

    Podemos dizer que essas caractersticas so cinco condi-es cognitivas que a teoria impe aos elementos. Por condio cognitiva entenderei, daqui em diante, o modo como os elementos podem ser descritos do ponto de vista das propriedades que a teoria lhes reserva. importante en-fatizar que essa ideia de cognio no um trao do elemento, pois h uma doutrina bem estabelecida na teoria do sonho que assegura que o elemento em si est fora do

    15 Metafsica 1014a26-b15:

    . 16 Uma pesquisa de flego sobre o uso de em Plato est em Crowley (2005, p. 367-394).

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    campo do conhecimento. A cognio que pode ser pensada sobre ele certa conscincia e referncia que nosso interesse epistemolgico quer destacar. Procura-se, desse modo, obe-decer ideia de que eles esto desprovidos de vnculos em uma estrutura que represente algum conhecimento, sem ig-norar que as condies (iv) e (v) nos fornecem formas de mencion-los e identific-los. Pode-se objetar que o fato de todas as condies atribudas aos elementos serem conheci-das por ns ameaa a exigncia de que eles estejam em uma condio no cognitiva absoluta. A objeo seria vlida teoria do sonho se o elemento estivesse, de fato, nessa con-dio no cognitiva forte, mas ele no est. O terico do sonho17 afirma que h, pelo menos, duas aes que uma alma pode desempenhar sobre os elementos: nomear e perce-ber, o que implica que eles no so itens totalmente inacessveis ao entendimento.

    Por outro lado, h uma relao entre os elementos e os compostos que tambm evita a total incognoscibilidade dos primeiros. Essa relao verificada no contraste que deter-mina o ncleo da teoria. Geralmente esse contraste mencionado na literatura como assimetria cognitiva, pois prope a no cognio dos elementos e a cognio dos compostos. Embora seja uma tese sobre a cognio presente em uma classe de itens e ausente em outra, o contraste que da resulta no pode ser interpretado como um contraste

    17 A questo da autoria da teoria do sonho, para alm da hiptese que defendi na primeira seo deste artigo, um tema difcil devido impossibilidade de se obter algum dado seguro. Ver Burn-yeat (1970), Hicken (1958) e Chappell (2005). No momento, minha posio que Plato trabalha os elementos de uma tese sobre o conhecimento e discute essa tese do ponto de vista de uma au-toria externa fictcia. Ele procede desse modo para preservar seu distanciamento crtico e isso que importa destacar. Portanto, podemos falar de um terico do sonho (como fao em vrios lugares do corpo do texto) que polemiza com o autor do Teeteto nesse contexto, mesmo que, como provvel, Plato esteja no comando de um e de outro em termos de produo.

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    entre duas entidades separadas, i.e., elementos de um lado, compostos de outro. Trata-se, antes, de uma diferena lgica do ponto de vista do acesso cognitivo que temos aos mesmos itens em situaes distintas. Em uma das vias, os elementos esto arranjados em gneros18 nos quais, conforme a teo-ria, reside o conhecimento genuno. Na outra via, o elemento considerado em si mesmo (auto kath hauto, cf. 201e3). Portanto, a primeira via no deve ser concebida co-mo uma categoria autnoma e discreta, sem relao alguma com o elemento. Na engenharia da teoria o composto um composto de elementos e as duas noes so, por conta disso, dependentes uma da outra. Conhecer o composto tem por consequncia, desse modo, um conhecimento sobre a con-dio dos elementos no composto.

    Uma das questes que surgem no exame do texto o problema de saber como aquelas cinco caractersticas se re-lacionam para apoiar a tese da assimetria, i.e., como elas se articulam para propor que s h conhecimento dos com-postos e nunca dos elementos? De acordo com o que est expresso no texto (a), a condio (i) que determina as de-mais e impe aos elementos restries quanto ao discurso. S possvel pensar o elemento, em sentido estrito, quando abstramos suas caractersticas exclusivas e ignoramos seu papel no composto. Quando fazemos essa anlise desco-brimos o que dito em 201e2-3: os prta stoicheia no possuem logos.

    Em contraste com as trs primeiras, as condies (iv) (nomeabilidade) e (v) (perceptibilidade) atribuem aos ele-mentos duas caractersticas positivas. Podemos conceder

    18 Cf. 202e1: gnero dos complexos ( ).

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    nomes aos itens primitivos e se pode ter alguma conscincia deles na percepo. Destas duas condies, somente (iv) tem, no texto, uma conexo explcita com (i). O texto afir-ma que os elementos no possuem logos porque19so unicamente nomeveis e, com isso, parece exprimir (em 201e3) que a nomeabilidade dos elementos o fator que torna o elemento um alogon. O contexto de 201e3, no en-tanto, no enfatiza exatamente isso. A teoria no defende uma tese sobre as propriedades intrnsecas e exclusivas de certos itens que nomeamos elementos. O escopo da teo-ria no ontolgico, epistemolgico. A teoria uma proposta de conhecimento baseada em uma concepo de logos como anlise ou decomposio: ao decompor os itens na anlise, chega-se aos itens primitivos e, nesse momento, s se pode indic-los e nome-los. A nomeabilidade, portan-to, no a causa da no cognoscibilidade, mas o resultado de uma restrio na capacidade de se expressar um elemen-to. Essa restrio quer indicar que, ao fornecer um nome aos elementos, no se est articulando uma forma de expli-cao, uma definio ou fazendo uso do elemento em uma frase que d a ele um atributo independente do que em si mesmo. provvel que, ao analisar o conjunto das condi-es citadas acima, o leitor queira ir alm e defender que o terico do sonho percebeu uma distino que Wittgenstein, aps Frege e outros, comentaria no pargrafo 49 das Investi-gaes Filosficas: dar nomes no implica expressar algo. Essa

    19 Ler a partcula como explicativa em 201e3 uma sugesto de um avaliador annimo da Philsophos. De fato ele parecer ter razo, mas em que muda o sentido de 201e3? No muda a nfa-se no contraste entre nomear e explicar que funda o ncleo da teoria. Vrias tradues do Teeteto ignoram a partcula nesse ponto (DIS, 1924; LEVETT apud BURNYEAT, 1990; MCDOWELL, 1973; CHAPPELL, 2004; NUNES, 2001; WATERFIELD, 1987). A exceo que conheo Fo-wler, na edio Loeb de 1921.

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    manobra no sem fundamento, mas preciso, antes, ana-lisar com mais ateno a concepo de logos do terico do sonho (cf. MCDOWELL, 1973, p. 233).

    A teoria do sonho tem claramente a pretenso de defi-nir logos como o que pode ser legeisthai (expresso, dito) por uma alma cognoscente. No fcil, porm, encontrar em portugus um termo que cubra as possibilidades que essa pretenso pode ter em termos semnticos. As ocorrncias de legein e seus cognatos, em (a), indicam que se trata de um sentido bsico de expresso de propriedades comuns, em oposio nomeao, algo que o verbo dizer, como tra-duo do grego legein, no expressa de modo satisfatrio20. McDowell traduz todos os casos de logos no texto pela par-frase to express in an account. H, contudo, pelo menos trs sentidos bsicos para legein e a questo verificar se essa parfrase os abriga: (i) enunciar; (ii) definir e (iii) explicar (Cf. BOSTOCK, 1988, p. 203). Os trs sentidos esto dis-ponveis nas opes fornecidas pela literatura secundria para traduzir as instncias do verbo citadas anteriormente. Nicholas White, por exemplo, no v razo para verter logos como sentena (ver adiante). Ele (1976, p. 177/194) de-fende enfaticamente a tese de que o sentido de logos em toda a teoria do sonho o de definio. Por outro lado, embora a expresso account tenha certa neutralidade no ingls, coincidindo, talvez, com (ii) e (iii), quando usamos em portugus o correlato explicao, precisamos enfatizar uma qualificao para dizer que se trata de uma explicao racional sob esta ou aquela forma.

    20 Note-se como Plato se move entre um termo e outro para exprimir instncias do uso da ideia de logos na teoria do sonho: 202a2 a b b . No necessrio buscar distines semnticas nesse uso.

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    Uma alternativa para quem no concorda com a tradu-o de logos como explicao ou definio seguir a sugesto de Gilbert Ryle, que prope sentena. Sua inter-pretao marca um dos momentos mais polmicos da literatura do Teeteto (RYLE, 1960, p. 431-451; 1990, p. 21-46)21. Ryle influenciou muitos autores (MCDOWELL, 1973; HICKEN, 1958; BURNYEAT, 1990; SAYRE, 1969) alguns dos quais iriam depois comentar o dilogo para se colocar em um ponto de maior ou menor divergncia com a leitura que ele props. Ele defendeu o seguinte: a teoria do sonho tem potencial para ser considerada uma verso rudimentar dos problemas filosficos discutidos no atomis-mo lgico, tanto o de Bertrand Russell, quanto o da verso wittgensteiniana, i.e., aquele que est nas pginas do Tracta-tus. Entre outras coisas, esses textos discutem uma distino importante da lgica moderna a partir de Frege: mencio-nar um item e exprimir predicados acerca das propriedades ou relaes do item so atividades logicamen-te distintas (cf. FREGE, 1951, p. 168-180)22.

    Essa distino parece permear o texto que estamos ana-lisando, mas as coisas se tornam complexas quando exigimos um pouco mais de detalhes sobre esse paralelo. O prprio Ryle nunca defendeu que aquela distino est pos-ta de modo explcito no texto da teoria do sonho. Ryle notou, porm, que ao se cotejar a tenso entre itens de na-tureza simples, no sentido de no compostos (stoicheia), e itens de natureza composta (cf. ta de ek toutn d synkeime-

    21 A reconstruo de Burnyeat (1990, p. 148-164) complementa e esclarece muitos pontos que Ryle deixou sem comentrio. Ver tambm McDowell (1973, p. 231-240). 22 Um tratamento (acessvel em linguagem no formal) da importncia para a lgica da distino fregeana entre coisas, propriedades e relaes est em Mortari (2001, p. 69-97).

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    na em 202b3 e syllabas em b7/e1) com Sofista 261c6-262e2, temos ento condies de afirmar que Plato estaria se en-caminhando para a conscincia da distino lgica entre nomes e predicados. Ryle quer mostrar que o Teeteto um momento de apreenso filosfica dessa distino e isso no incompatvel com certa ambiguidade que preside o termo legein na teoria do sonho. Mais que isso. A percepo da-quela distino, associada ao fato de Plato ainda no saber como explic-la, constituem a ambiguidade. Para Ryle, essa situao compreensvel porque nessa fase Plato comea a pensar que a formulao da teoria das formas precisa de uma reforma. Um dos problemas certo eleatismo que re-veste a forma de excessiva perfeio. Quando esse eleatismo visto sob a perspectiva da separao das ideias do mundo sensvel, surge ento uma srie de dificuldades com as exi-gncias predicativas que o conhecimento das coisas do mundo exigir. Segundo Ryle, o que Plato est fazendo no Teeteto propor a investigao de um novo conceito de logos para dar conta de tais problemas.

    A anlise de Ryle foi severamente criticada (BOSTOCK, 1988, p. 204-211; FINE, 2003, p. 228-235; BURNYEAT, 1990, p. 149-164). H pelo menos um aspec-to dessa crtica que se impe. Ryle exibe um dos defeitos de certa literatura moderna de Plato: lendo seu texto se nota que a anlise tem mais cadncia quando trata dos proble-mas da filosofia da linguagem contempornea do que quando descreve os problemas discutidos nos dilogos de Plato (BURNYEAT, 1990, p. 164)23. Mas, por outro lado, 23 Isso no significa que esses problemas no se tocam. O que se deve evitar o voluntarismo de certas conexes entre Plato e os temas da lgica moderna, quase sempre em detrimento de uma anlise moderada dos textos. Vale notar que Christopher Shields (1999, p. 123) destacou o exces-so de conjecturas de algumas interpretaes da terceira definio. Por outro lado, Donald

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    no se pode negar certo paralelismo implcito entre os te-mas mencionados por Ryle no artigo de 195224 e o miolo da teoria do sonho. A questo depende, contudo, de como temperamos esse potencial da teoria com o tema proposto por Ryle. H alternativas em disputa. Uma dessas linhas de-fender, contra Ryle, que o argumento do sonho se aplica a uma categoria especfica de coisas que incluiria, exclusiva-mente, itens sensveis (cf. 202b7: os elementos so aisthta), apreendidos na percepo ordinria, tais como pessoas, ob-jetos e qualidades sensveis. Outra opo de leitura propor a possibilidade de se entender que o argumento do sonho tem chances de postular um conjunto maior de itens, con-junto este que incluiria tpicos abstratos como proposies, nmeros, relaes, propriedades, etc. Para Ryle, a ltima candidatura perfeitamente plausvel, embora no esteja explicitamente formulada no Teeteto. Plato teria optado por expor o tema de modo mais direto no Sofista (RYLE, 1990, p. 42ss).

    Do ponto de vista da traduo do texto de Plato, plausvel a tese de que a distino entre simples e com-plexo pode ser associada distino entre o que apenas nomevel e determinadas expresses sincategoremticas que operam nas sentenas, permitindo que se produzam propo-sies a partir da ligao entre verbos e nomes. No o caso, portanto, de nos alinharmos quela primeira alterna- Davidson, de um modo plausvel, recentemente recuperou a tese ryleana ao traar uma histria da teoria da predicao que comea, precisamente, em Plato (DAVIDSON, 2005, especialmente o cap. 4). Para uma anlise da posio de Plato sobre esse atomismo no plano metafsico, no que se poderia chamar de atomismo ontolgico, ver Scolnicov (2004). Recomendo tambm os captu-los 3-4 de Souza (2009). Por fim, Bostock (1988, p. 203-211) e Waterfield (2004, p. 218-225) so essenciais para os problemas da interpretao ryleana. 24 Foi nesse ano que Ryle leu seu Logical Atomism in Platos Theaetetus, no Magdalen Coledge, em Oxford, diante de figuras conhecidas como B. Russell, Miss Murdoch, Kneale, Price, Dodds e W. Hardie, entre outros.

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    tiva, em que os elementos seriam definidos como materi-ais. Ryle (1990, p. 30) foi categrico a respeito: it is not meant to be a sort of physical theory, e.g. an hypothesis about the composition of matter. It is a logicians theory, namely a theory about the composition of truhs and false-hoods. Notemos como o uso de legein no texto de Plato d crdito hiptese de Ryle. Ryle precisa encontrar no tex-to um sentido de logos que seja compatvel com a ideia de exprimvel. Formas anlogas a esse termo so encontradas em 202a9, 202b7, 205d9 e 205e7. O verbo expressar a verso em portugus do termo rhthnai, que por sua vez a forma passiva do verbo eir. O sentido deste ltimo verbo o mesmo de legein (falar, dizer algo: eirein ti (BAILLY, 1963)). Ryle traduz o adjetivo rhtos (202b7, 205d9 e 205e7), derivado de eir, como expressible. Ele tambm traduz o verbo lege-in por tell e logos por statement. Com base nisso, ele v na teoria o contraste entre nameable e stateable.

    Mas a constatao de certas convergncias no vocabul-rio ainda no suficiente para impor a interpretao ryleana. preciso dar conta do sentido de um termo capital teoria: o termo symplok, usado no texto em 202b5. Con-trariamente ao que Ryle sugere, o autor da teoria no parece to esclarecido sobre a vocao desse termo para ex-pressar um conceito genuno de logos no sentido sentencial. De acordo com 202b3, para um elemento possuir um logos no texto isso significa poder ser expresso por meio de ver-bos como proseipein e symplekein (cf. 201e4, 202b4-6) ele precisa perder sua condio de elemento e se tornar um i-tem conectado a outros em um composto.

    Examinemos de perto essa ideia de symplok. Trata-se de uma metfora, citada pela primeira vez em b4 e em b5 des-

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    crita como onomatn symplok25. Um detalhe muito in-teressante nessa metfora o fato de ser a proposta genuna da teoria do sonho para definir logos. Contrariamente ao que alguns defenderam, o argumento do sonho no prope um conceito dominante de logos como descrio peculi-ar26 de um item. Se o fizesse estaria admitindo que o oikeios model em a7 e a metfora da symplok em b5 esto expri-mindo o mesmo sentido de logos para elementos e compostos, o que destri a premissa nuclear da teoria: a as-simetria cognitiva. Quando o autor retoma essa premissa, em 202b5-7, fica claro que a noo de logos como oikeios no se adapta aos compostos. a metfora da symplok que pas-sa a ser a forma ideal de caracterizar o conceito de logos.

    Qual , ento, o problema do conceito de logos no re-gime da symplok? Por um lado, esse conceito parece ser 25 A metfora permite extraordinria liberdade na traduo dessa frase na literature recente. Entre as tradues divergentes que encontrei para (b5-6) esto: a complex of names is what a rational account is (CHAPELL, 2004); car des mots tisss essemble, cest ce quest une definition (NARCY, 1994); for a weaving together of names is just what a logos is (BOSTOCK, 1988); for the plaiting of names is the being of speech (BENARDETE, 1984); a weaving together of names is the being of an account (MCDOWELL, 1973); car la combinaison dont les noms sont forms est lessence de leur definition (CHAMBRY, 1967); a description being precisely a combination of names (CORNFORD, 2003 [1957]). 26 Cf. 202b3: ; b7: . O isolamento ao qual o elemento confinado, em con-traste com seu papel no composto, levou, de fato, alguns leitores tese de que h um conceito evidente de logos como expresso peculiar de um item. Trata-se da concepo de logos como oikei-os model (logos peculiar, privado) que se ampararia no que dito em 202a7. Essa a proposta de Fine (2003, p. 240), Bostock (1988, 206ss) e Lee (in FINE, 2008, p. 425), entre outros. Segundo Bostock: the theory very clearly implies that if a thing has a logos (in the relevant sense) then that logos is peculiar to it (202a5-8) (BOSTOCK, 1988, p. 206). O problema dessa afirmao que, implicitamente, ela sugere que o conceito de logos que predomina na teoria logos como oikeios. Mas em 202b3 (nosso texto b), no qual Scrates conclui a exposio dos traos dos elementos e comea a explicar como o autor da teoria entende composto, o texto parece arguir que logos de-ve ser definido sob a forma da metfora da symplok. Embora Bostock reconhea que o oikeios logos um aspecto sem importncia, ele no parecer notar que, ao se falar em logos como oikeios, esta-mos perigosamente deixando em segundo plano a metfora da symplok. Penso que a teoria do sonho est apenas parcialmente comprometida com o oikeios logos. Essa perspectiva relevante so-mente quando se quer pensar no elemento isoladamente. Quando pensarmos nos compostos devemos nos apoiar no conceito de logos sugerido na metfora da symplok.

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    vlido, pois perfaz exatamente aquilo que o autor da teoria pretendia, uma distino entre elementos e compostos do ponto de vista da cognio dos ltimos e da no cognio dos primeiros. O problema o seguinte: a symplok um conceito definido pelo contraste com a condio da nome-ao dos elementos, mas no parece superar o nvel classificatrio dos elementos (cf. 202a6-7). Como notam Kahn (2007, p. 42-43) e Fine (2003, p. 235), esse modelo de symplok da teoria imperfeito. Se, de um lado, ele mais geral que o oikeios model, por outro ele ainda no exibe a complexidade que permite dar conta da predicao. A defi-cincia do conceito permanecer no nvel das relaes entre palavras. A symplok, na teoria do sonho, no uma symplok platnica, pois esta costuma ser descrita segundo o regime de um procedimento kateid. Trata-se, antes, de uma symplok kata to onoma (cf. MOLINE, 1981, p. 41).

    Alguns comentadores notam que o problema reside no fato de que a teoria do sonho tem um conceito muito res-trito de logos: [it is] a very specific application of the definition one: to indicate an account which analyses a thing by listing its elements (SEDLEY, 2004, p. 153)27. H duas possibilidades para o significado dessa concepo de logos como listagem na teoria do sonho: 1) anlise de i-tens materiais como barro e carroa (cf. 147a, 206e-208b) em seus componentes bsicos; 2) anlise de itens logicamente primitivos em temas formais como nmeros, palavras, msica e assim por diante. Burnyeat nomeia tais opes de anlise concreta e anlise abstrata. Os dois tipos de anlise esto

    27 Uma indicao de que, de fato, o terico do sonho entende anlise como enumerao de i-tens est em 206e, quando Scrates explicitamente vincula a segunda definio de logos ali discutida com o logos da teoria do sonho.

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    presentes no texto, mas no na mesma proporo. H uma distribuio desigual de exemplos que se enquadram nos dois casos. Como argumenta Chappell (2004, p. 219), em 202a-206c Plato fornece cinco exemplos de uma relao do tipo complexo-simples:

    In 202a-206c Plato gives five examples of the complex/simple rela-tion. One of Platos examples does concern relation between concrete individual things (viz the regiment/soldier relation). The other four examples are the syllable/letter relation, the numerical sum/part relation, the musical chord/note relation and the geome-trical acre/square foot relation. These examples cannot possibly be taken as concerned with relation between concrete individual things. Syllables and letters, sums and parts, chords and notes, acres and square feet are all types, not concrete particulars. Certainly any instance of these types is a concrete particular, but that is another matter.

    No contexto em que tais exemplos so citados, Scrates est interpretando o conceito de logos da teoria do sonho como enumerao de elementos, o que destaca o fato de que esse conceito um conceito geral. Contudo, o que parece pre-dominar a enumerao de itens abstratos. Como nota Bostock (1988, p. 242): [...] in all the subsequent illustra-tions and applications of this theory it is knowledge of a general type, and not a particular individual, that is being discussed (cf. tambm BURNYEAT, 1990, p. 84-85; CHAPPELL, 2005, p. 219). Embora na literatura da teoria do sonho haja muita disputa sobre qual destes sentidos de anlise se abstrata ou material est em jogo no texto, no estou convencido de que o autor da teoria veria ambas como duas espcies distintas de anlise. Creio que ele as v como casos de um padro de explicao que possui, como trao essencial, a enumerao de componentes primitivos, sejam formais ou materiais. O que de fato importa salientar que

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    o autor da teoria no possui uma distino entre o ato de listar nomes e o ato cognitivo de identificar aspectos, rela-es e pertencimentos. Tudo interpretado sob a perspectiva geral de anlise enquanto entrelaamento de no-mes, mas no claro o modo como se deve fazer isso. Apesar de se tratar de uma proposta de conhecimento co-mo anlise decomposicional, podendo, portanto, ser aplicada tanto explicao da estrutura de coisas fsicas quanto explanao da formao de itens abstratos, a me-tfora da sumplok por si s no capaz de manifestar o que essencial nesse conceito de anlise: uma capacidade expla-natria.

    Quando critica a teoria do sonho, Plato faz uso de um dilema que explora a deficincia destacada acima (203a-206c). O dilema propor que o composto, representado pe-la slaba, deve ser entendido sob dois regimes exaustivos: (i) seus membros so meros agregados de elementos (S + O); ou (ii) o composto uma ideia nica. No primeiro ca-so, ser um composto ser nada mais que uma reunio de elementos, sem nada que os articule ou ordene. No outro, ser um composto ser uma unidade singular, indivisvel. A concluso do dilema a seguinte: como no h nenhum critrio que permita ao todo (leia-se: slaba) distinguir-se da soma de suas partes (letras), mutatis mutandis, o comple-xo28, que no texto da teoria do sonho o locus por excelncia do conhecimento, no poder se distinguir dos 28 Essa referncia ao complexo que estou fazendo decorre do papel da slaba no dilema: servir de analogia para o modo como a tese da teoria do sonho funciona. O que Scrates conclui da slaba por meio da tese, atribuda ao terico do sonho, de que toda composio uma identidade deve ser entendido como referncia tese da assimetria e ao contraste elemento-complexo (Cf. BURNYEAT, 1990, p. 196ss). O argumento de Scrates em Teeteto 203a-206c se vale do fato que os pares letra-slaba e elemento-complexo traduzem os mesmos termos do grego: .

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    elementos. Portanto, o argumento de Plato no dilema con-siste em mostrar que se a teoria do sonho concebe a estrutura do complexo de modo anlogo slaba, e a slaba nada mais que a soma de duas ou mais letras, ento a teo-ria do sonho no tem um critrio formal para diferenciar elemento e complexo. Sem o critrio de diferenciao, a te-oria no vai alm de uma definio aglomerativa (DENYER, 1991, p. 117-127) dos complexos. Nesse pano-rama, a tese da assimetria epistemolgica desmorona. A alternativa unitria do dilema tambm atingida, i.e., a hi-ptese de que a slaba uma forma singular (203c4-6; 203e4; 204a). Posta na mesma condio dos elementos (cf. 205e2-4), a concluso que nessa acepo a slaba no teria comple-xidade, sendo to incognoscvel quanto o elemento. A funo do dilema, como se v, mostrar que a teoria do sonho no obter um conceito adequado de logos se no a-bandonar essa concepo aglomerativa de complexo/composto.

    III

    Tendo estabelecido que a teoria do sonho prope um sen-tido de logos como um tipo de anlise enumerativa ou, como prefere Nicholas Denyer, uma anlise aglomerativa, podemos agora nos deter naquela quinta caracterstica dos elementos: a condio da perceptibilidade. Para os intrpre-tes, o problema toma corpo quando o autor da teoria diz que os elementos esto em uma condio de percepo: eles so sensveis (202b7: aisthta). De 202b7 at o final do di-logo essa condio no mais citada. Em contraste com as

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    demais condies, a perceptibilidade no parece ter um vnculo com as outras caractersticas dos elementos29. No claro o que o termo aisthton significa quando aplicado aos elementos da teoria do sonho. Mesmo reconhecendo a dificuldade de interpretar essa condio, em geral os intr-pretes torcem o nariz para o problema. Gail Fine, por exemplo, se refere perceptibilidade dos elementos como lame concession e Bostock a considera inessential. Burnyeat, por outro lado, sugere, mas sem se comprometer com essa interpretao, que a perceptibilidade pode ser uma forma de garantir um acesso epistmico mnimo aos elementos. (FINE, 2003, p. 236; BOSTOCK, 1988, p. 210; BURNYEAT, 1990, p. 174-175/182).

    A questo passa pelo problema de definir uma forma de acesso que a alma teria, pela via da percepo, a um item cuja caracterstica bsica no estar conectado ou relacio-nado a nenhum outro. Quando prope que os elementos so nomeveis, ns sabemos que o autor da teoria est ten-tando garantir aos elementos um aspecto positivo. A proposta evitar que esse trao viole a restrio quanto ao uso de expresses comuns para os elementos, tais como verbos (proseipein e legesthai), gneros (ousia) e pronomes (e-keino, touto), etc. Quando menciona essa restrio, o autor da teoria parece ver um contraste entre palavras que usamos para descrever vrios itens entre os quais sujeitos e pro-priedades e palavras que pertenceriam unicamente quele elemento particular. uma restrio plausvel se aceitarmos a tese da assimetria, mas por que propor a perceptibilidade? Considerando, de um lado, que o autor da teoria tem uma concepo geral de logos como enumerao e que, de ou- 29 Ver as cinco condies dos elementos que elencamos na seo II.

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    tro, no todo elemento que se oferece percepo ordin-ria (tomos estariam descartados, por exemplo), ser que devemos entender que a perceptibilidade no uma condio para todos os tipos de elementos, mas apenas para os de na-tureza fsica? Seria uma tese razovel. O problema que 202b7 no oferece nenhum sinal de que se trata de uma a-firmao restrita a uma classe especfica. Por outro lado, se o autor da teoria defende a perceptibilidade como trao es-sencial de qualquer elemento, ele tem que admitir que a percepo no se limita aos compostos fsicos, mas uma condio geral de elementos fsicos e abstratos (BURNYEAT, 1990, p. 184). Como condio geral, agora nosso problema o seguinte: a perceptibilidade uma con-dio do elemento somente quando tal elemento no tem nenhuma funo em um composto? Sendo a perceptibili-dade uma condio restritiva dos elementos, podemos supor que a resposta do autor da teoria afirmativa (BURNYEAT, 1990, p. 182). Mas, nesse caso, o que dizer da ocorrncia simultnea da percepo de um item e da vi-so de sua pertena a uma estrutura? Os elementos podem ser, concomitantemente, membros de um composto e per-ceptveis, como as partes de uma carroa, no exemplo examinado por Scrates em 206e-207e30. Do ponto de vista de uma pessoa que conhece o que uma carroa (Teeteto, 207), ter tal conhecimento saber ver claramente como as partes se organizam para formar a estrutura da carroa (HARING, 1982, p. 520). um cenrio fcil de imaginar se pensarmos no conhecimento de um fazendeiro ou de um vendedor de peas. Para tais pessoas os materiais que inte-

    30 Esse aspecto explorado por Burnyeat (1990) e Fine (2003).

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    gram o objeto de seu trabalho possuem uma organizao in-terna, cujos traos eles conhecem bem, e nada impede que os componentes destes objetos estejam sempre l para se-rem observados, da perspectiva dessa organizao. O que estou argumentando que difcil imaginar uma situao em que itens pertencentes a uma estrutura sejam percebi-dos exclusivamente na condio em que esto fora dessa estrutura. Se o autor da teoria argumenta em favor da per-ceptibilidade como trao de um elemento isolado ele est, portanto, equivocado, pois no h, a priori, contraste entre percepo e composio. Obviamente, essa objeo teoria do sonho s vlida no caso de seu autor insistir que a percep-o, como a nomeao, uma condio do elemento em si, no nvel do logos peculiar (oikeios logos), ao mesmo tempo em que a nega no nvel da symplok, pois se ele a expande no haveria problema na concomitncia entre perceptibili-dade e pertena ao composto. Dada a indeterminao do texto da teoria do sonho sobre esse ponto, no creio que possamos avanar e propor algo menos problemtico que as sentenas que acabei de exprimir.

    Quero examinar outro tpico que me parece mais rele-vante no campo das teses platnicas sobre a percepo. Alguns intrpretes costumam supor que Plato tem uma ra-zo epistemolgica para impor a perceptibilidade aos elementos. Ele estaria interessado em colocar os elementos em uma situao cognitiva anloga a de todos os objetos que se oferecem percepo e que so vistos sob a perspec-tiva exclusiva da sensao. Considerando o interesse de Plato em querer mostrar, em qualquer argumento episte-molgico, que a sensao no produz nada de acurado ( , Fdon 65b5), alguns suspeitaram que essa posio ronda tambm a descrio dos elementos. Foi por isso que

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    David Sedley argumentou, recentemente, que o autor da teoria do sonho concebe a percepo dos elementos como trao de uma classe de coisas fsicas. Para Sedley isso remete ao argumento de Plato sobre o papel cognitivo das sensa-es, em 184-6. Segundo Sedley, os elementos e os sensveis da primeira parte partilham a mesma condio cognitiva. Am-bos esto confinados em uma noo extremamente limitada de conscincia e por isso partilham um trao comum: so itens no-cognoscveis31:

    It is a commonplace of Platonic thought that what is accessible to the senses is limited to particulars and their properties, while univer-sals, whether at the level of species or genera, are accessible only to the intellect. (SEDLEY, 2004, p. 156)

    A descrio do conceito platnico de universal feita por Sedley est fundamentalmente correta. um patrimnio da epistemologia platnica a defesa de um contraste entre par-ticulares e universais. Mas a tese de Sedley mais ambiciosa. Ele quer mostrar que Plato descreve na teoria do sonho um contraste que exprime o mesmo contraste de 184-6. No nos parece que seja este o caso. Sedley prope que h um paralelo entre os seguintes argumentos:

    (i) se x perceptvel, x um item acessvel aos senti-dos. Logo, trata-se de um item particular, no um universal (cf. Teeteto 184-6);

    (ii) se os elementos da teoria do sonho so percept-veis, eles no podem ser itens abstratos ou itens

    31 Essa conexo entre a primeira parte do dilogo e o texto da teoria do sonho no nova. Ela foi sugerida nos seguintes trabalhos, entre outros: Cornford (2004 [1957]), Ryle (1990 [1952]), Meye-rhoff (1958), McDowel (1973). Mais recentemente, de modo incisivo, ela foi proposta por Chappell (2004) e David Sedley (2004). Neste trabalho, examino a leitura de David Sedley por ser a defesa mais detalhada dessa interpretao.

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    gerais.

    A anlise de Sedley defende que o autor da teoria exprime (ii) porque Plato defende a verdade de (i). Se Sedley est certo, o autor da teoria est arguindo que no h acesso cognitivo s instncias do vermelho, s partes da carroa ou aos sintomas de uma febre particular. Dada a tese da assi-metria, onde os elementos so vistos sob duas condies cognitivas bem distintas, deve-se, ento, concluir que no n-vel dos elementos o que uma alma percebe o que se chama na literatura de tokens, ocorrncias especficas em oposio ao que comum nas ocorrncias (types). Essa an-lise tem certo charme, sobretudo porque examina a teoria do sonho a partir de um argumento (184-6) que mais cla-ro que o de 201d-202c. Apesar de persistirem divergncias na interpretao de 184-6, na literatura, todos concordam que h ali um argumento platnico sobre a natureza do co-nhecimento. O trao fundamental desse argumento a proposta de que epistm um estado mental essencialmen-te distinto do ato de perceber.

    Contudo, a tese de que aquelas duas passagens parti-lham o mesmo conceito de sensao no se mantm de p. Antes de qualquer coisa, a anlise de Sedley d como plau-svel32 que a concepo de elementos propostas no texto a ideia de elementos de coisas fsicas, i.e., so os elementos i-dentificados nos compostos materiais, mas ns j vimos que no h razes suficientes para mantermos essa restrio. Outro problema o fato de 184-6 ser um argumento plat-nico, enquanto que a teoria do sonho expe a tese de um

    32 Ver Sedley (2004, p. 155-162). A interpretao materialista dos elementos proposta pelo autor se articula a partir de fontes externas ao Teeteto.

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    autor. Sedley parece assumir que Plato referenda o ar-gumento do sonho. Provavelmente todos concordam que Plato aceita (i) porque ele defende em 184-6 a tese de que a sensao bruta no envolve a apreenso de aspectos gerais. O terico do sonho poderia estar pensando nisso quando disse que os elementos so sensveis, mas da a afirmar que Plato que est argumentando o paralelo um passo que a anlise de Sedley no consegue justificar. Penso que o fato de o autor do sonho argumentar que podemos perceber um elemento, enquanto que o acesso cognitivo implica lidar com conexes, no suficiente para mostrar que Plato quer destacar o mesmo tipo de contraste nos dois trechos mencionados.

    Para apoiar essa concluso notemos, ainda, que o con-traste entre razo e sensao na teoria do sonho depende diretamente da tese da assimetria, e essa tese no est em 184-6. Nesse ltimo argumento o contraste entre a im-presso bruta e o conhecimento da impresso (ou de temas abstratos) a partir dos recursos que uma alma capaz de u-sar (em 184-6 trata-se de categorias comuns como ser, essncia, identidade, diferena, etc.). J na teoria do sonho, o contraste se funda na diferena entre itens sobre os quais no h logos/conexo (elementos) e itens sobre os quais h logos/conexo (compostos). Se h, portanto, um paralelismo implcito entre 184-6 e 201d-202c, temos que encontrar em 184-6 a tese da assimetria e verificar como ela se adapta ao argumento dessa parte do Teeteto. Dessa pers-pectiva, temos que encontrar em 184-6 a proposio de que os sensveis so tomos singulares desprovidos de logos, ao passo que os gneros que mencionamos h pouco so for-mas de logos. O que encontramos em 184-6, porm, diferente. Plato no exprime ali uma tese sobre a incog-

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    noscibilidade dos sensveis. Sua preocupao , fundamen-talmente, a refutao de uma identidade entre sensao e conhecimento, a qual foi proposta na parte inicial do dilo-go. Quando o texto chega naquele ponto, embora j tenham sido refutadas algumas associaes que se vincula-ram a essa proposta, continua de p a tese de que o processo sensvel enquanto tal pode ser cognitivo e infor-mativo. O autor do Teeteto mobiliza em 184-6 uma srie de distines que visam refutar essa tese de modo direto, i.e., sem o acrscimo de premissas adicionais, como aconteceu na poro do texto anterior a 184.

    Examinemos agora o paralelo sob outro aspecto. A tese da assimetria reza que o elemento no apenas incognosc-vel, mas tambm simples, no sentido de indivisvel. Mas em 184-6 no to claro se os sensveis so simples nessa ltima acepo. A tese da simplicidade uma consequncia das restries cognitivas impostas aos elementos. Quando no mais possvel limitar o ncleo primitivo de um com-posto, estamos na categoria dos elementos. H basicamente trs categorias de palavras que a teoria do sonho exclui da referncia aos elementos para chegar na simplicidade: gne-ros, verbos e pronomes. Em 184-6, por outro lado, Plato conclui:

    No naquelas impresses fsicas, portanto, que reside o conheci-mento, mas em nosso raciocnio a seu respeito; porque possvel, ao que parece, atingir o ser e a verdade no raciocnio, mas no poss-vel naquelas impresses.33

    O que est sendo proposto nesse texto a concluso de uma anlise cujo mrito foi o de mostrar que existem aspec-

    33 [

    ]

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    tos ou propriedades no mundo que podemos acessar por meio dos sentidos, como os sons particulares e as cores par-ticulares, mencionadas em 185b9-c2, mas h muitas outras coisas que a sensao no pode apreender. Certos atributos que vinculamos s coisas percebidas, como sua identidade, diferena, oposio (cf. 185c-d), etc., no podem ser pensados no nvel da capacidade perceptiva. Podemos dizer que a mente tem acesso aos particulares quando se exime de pen-sar sobre seus aspectos universais e aqui, claro, h um paralelismo com a condio dos elementos. Mas s. Esse paralelo no suficiente para provar que em 184-6 o dado sensvel um dado no-composto. Em 184-6 Scrates no precisa identificar esse trao nos sensveis para exprimir sua tese. Tudo o que se requer a tese de que para se pensar, articular ou expressar propriedades necessrio um traba-lho intelectual da alma e a sensao no capaz de faz-lo. Isso equivale a dizer que se o caso de pensarmos acerca do sensvel isto ou aquilo, ento tambm o caso de j no po-dermos t-los na alma sob a perspectiva da percepo bruta. Devemos concluir, desse modo, que as duas passagens pos-suem noes distintas de no cognoscibilidade e no partilham a mesma noo de alogon (sensvel).

    Essa heterogeneidade entre elementos e sensveis pode ser explicada na hiptese de que os elementos da teoria do sonho no so exclusivamente itens sensveis. Eles parecem estar em uma condio de generalidade: podem ser itens distintos como letras, peas mecnicas, elementos da natu-reza, soldados, nmeros, etc. Plato teria pensado em uma forma de perceptibilidade que compreende a percepo f-sica, sem descartar outras formas de percepo. Esclarecer essa noo no to crucial e creio que aqueles intrpretes (BURNYEAT, 1990; FINE, 2003; BOSTOCK, 1988) que

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    alertaram para certa irrelevncia desse aspecto podem ter razo. Ao postular essa condio, talvez o autor da teoria es-teja pensando em uma forma de preservar uma caracterstica positiva dos elementos, mas no quer se en-volver com determinadas consequncias. Seja como for, preciso avanar no exame da teoria do sonho e no deixar que esse detalhe anuvie a percepo do trao fundamental da terceira parte do dilogo: a crtica tese da assimetria cognitiva. Esse assunto, no entanto, matria para outro momento.

    Abstract: The aim of this paper is to make a brief discussion about three as-pects that characterize the Socratess Dream in the Theaetetus. First, I comment the function of the Dream in the context of the third definition of knowledge. Them I move on the text and examine some questions concern-ing the notion of logos in 201d-202c. In the last section I discuss the problem of perception of the stoicheia. At this point I refuse the thesis, defended by some interpreters, that Plato puts the stoicheia in the same perceptual condi-tion of the sensibles as they are described in the Theaetetus 184-6.

    Keywords: reason, sensation, elements, Dream Theory.

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