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h PIERRE BOURDlEU JEAN-CLAUDE CHAMBOREDON JEAN-CLAUDE PASSERON A profissio de sociologo preliminares epistemologicas T r a d u ~ a o de Guilherme Joao de Freitas Teixeira 2' E d i ~ i i o iii EDITORA Y VOlES Petropolis 2000 4

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PIERRE BOURDlEU

JEAN-CLAUDE CHAMBOREDON

JEAN-CLAUDE PASSERON

A profissio de sociologopreliminares epistemologicas

T r a d u ~ a o de Guilherme Joao de Freitas Teixeira

2' E d i ~ i i o

iii EDITORA

Y VOlES

Petropolis2000

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SUMARIO

prefcicio da segunda edi¢o, 7

I N T R O D U ~ O : EPISTEMOLOGIA E METODOLOGIA, 9

PRIMElRA PARTE - A RUPTURA

1. 0 fato econquistado contra a ilusiio do saber imediato, 23

1.1. p r e n o ~ o e s e tecnicas de ruptura, 23

1.2. A ilusiio da transparencia e 0 principio da niio-consciencia, 25

1.3. Natureza e cultura: substdncia e sistema der e l a ~ o e s , 30

1.4. A sociologia espontdnea e os poderes da linguagem, 32

1.5. A t e n t a ~ i i o do profetismo, 36

1.6. Teoria e t r a d i ~ i i o teorica, 39

1.7. Teoria do conhecimento sociologico e teoria do sistema social, 42

SEGUNDA PARTE - A C O N S T R U ~ O DO OBjETO

2. 0 fato e construfdo: as formas da demissiio empirista, 45

2.1. "As a b d i c a ~ o e s do empirismo", 48

2.2. Hipoteses ou pressupostos, 52

2.3. Afalsa neutralidade das tecnicas: objeto construfdo ou artefato, 54

2.4. A analogia e a c o n s t r u ~ i i o das hipoteses, 64

2.5. Modelo e teoria, 68

..

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TERCEIRA PARTE - 0 RACIONALISMO APLICADO

3. 0 Jato econquistado, construido, constatado: a hierarquia dos atos episte-

mol6gicos, 73

3.1. A i m p l i c a ~ a o das o p e r a ~ 6 e s e a hierarquia dos atos epistemol6gicos, 73

3.2. Sistema de p r o p o s i ~ 6 e s e v e r i f i c a ~ a o sistematica, 80

3.3. Os pares epistemol6gicos, 83

CONCLUSAo: SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO E EPISTEMOLOGIA, 87

TEXTOS DE I L U S T R A ~ A o , 99

LISTA DOS TEXTOS, 289

LEITURAS COMPLEMENTARES, 297

iNDICES- Onomastico, 303

- Analitieo, 307

- Geral, 325

Os textos de i l u s t r a ~ i l o que se encontram no segundo bloco desta obra(p. 99-288) devem ser lidos paralelamente as analises no decorrer das quais siloutilizados ou explieados. AS chamadas para esses textos silo indicadas, ao longo

do primeiro bloeo do livro, por uma a n o t a ~ i l o em italico entre colchetes, quecompreende 0 nome do autor e 0 mimero do texto - Para identifica-Ios, pode-serecorrer a lista de textos p. 289s, ou ao indice geral, p. 325

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prefacio da segunda e d i ~ a o

A preparm;:Cio desta segunda edil;Cio resumida constituiu0

pretexto paramodificar 0 projeto inicial de dar continuidade ao volume dedicado as

Preliminares epistemol6gicas com urn segundo tomo que teria tratado da

c o n s t r u ~ C i o do objeto sociologico e com urn terceiro que teria apresentado

urn repertorio critico das ferramentas, tanto conceituais quanto tecnicas, da

pesquisa. No final de contas, pareceu-nos que nCio teriamos a possibilidade

de realizar nesses campos 0 equivalente do trabalho de c o n s t r u ~ C i o que setornou possivel e necessario pela inexistencia de uma epistemologia das

ciencias sociais: impossibilitados de nos limitarmos, em urn terreno tCio

manifestamente ocupado, ate mesmo atravancado, a opiniCio preconcebida

da ingenuidade, tambem nCiofoi possivel resignar-nos a discussCio moderada

das teorias e conceitos em vigor, cujat r a d i ~ C i o

universitaria estabelece ascondil;oes previas de qualquer discussao teorica.

Estariamos, de preferi'mcia, inclinados a submeter tais Preliminares epis

temol6gicas a uma revisao que visasse subordinar, de forma mais completa,

o discurso a i n t e n ~ a o pedagogica que, no estado atual da obra, estava bern

longe de te r sido a l c a n ~ a d a . Assim, cada urn dos principios teria sido trans

formado em preceitos ou, pelo menos, em exercicios de i n t e r i o r i z a ~ a o da

posturaj por exemplo, para colacar em evidencia todas as virtualidades

heuristicas que estCio implicadas em urn principio ta l como 0 do primado das

r e l a ~ o e s , ter ia side necessario demonstrar com trabalhos praticos - como e

possivel faze-Io em urn seininario, ou melhor, em urn grupo de pesquisa, ao

ser examinada a c o n s t r u ~ a o de uma amostra, a e l a b o r a ~ a o de urn questionario ou a analise de uma serie de quadros estatisticos - a maneira como

esse principio or ienta as escolhas tecnicas do trabalho de pesquisa (constru

I;ao de series de p o p u l a ~ o e s separadas por diferenl;as pertinentes no que diz

respeito as relal;oes consideradas, elaboral;ao das perguntas que, secundarias

para a sociografia da propria populal;ao, permitem situar 0 caso considerado

em urn sistema de casos em que 0 mesmoadquire todo seusentido, ou ainda,

mobilizal;Cio das tecnicas graficas e mecanograficas que permitam apreender,

de forma sinoptica e exaustiva, 0 sistema das relal;oes entre as r e l a ~ o e s reveladas por urn conjunto de quadros estatisticos). Entre outras razoes,

abandonamos 0 projeto com receio de que ta l esforl;o de c / a r i f i c a ~ a o peda-

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gogica levasse, em decorrencia dos limites da c o m u n i c a ~ a o por escrito, apropria n e g a ~ a o do ensino da pesquisa como pedagogia da i n v e n ~ a o , enco-

rajando a c a n o n i z a ~ a o dos preceitos banalizados de uma nova metodologia

ou, pior ainda, de uma nova tradi¢o teorica. 0 risco nao e Jicticio: a critica

do empirismo positivista e da a b s t r a ~ a o metodologica, considerada em seu

tempo como heretica, tern todas as possibilidades de ser, hoje, conJundida

com os discursos eternamente preliminares de uma nova vulgata que ainda

consegue diJerir a ciencia, substituindo a obsessao da impecabilidade meto-

dologica pelo ponto de honra da pureza teorica.

Setembro de 1972

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r

INTRODUC;Ao

EPISTEMOLOGIA EMETODOLOGIA

"0 metodo, escreve Auguste Comte, nao pode ser estudado separadamente das pesquisas nas quais e utilizadoj ou, pelo menos, nao passa de urnestudo morto, inca paz de fecundar 0 espirito que se entrega a ele. Tudo 0

que se pode dizer de real, quando 0 consideramos abstratamente, reduz-sea generalidades de tal forma imprecisas que estas nao poderiam exercerqualquer influEmcia sobre 0 regime intelectual. Quando estabelecemos firme-mente, como tese logica, que todos os nossos conhecimentos devem serbaseados na o b s e r v a ~ a o , que devemos proceder a partir dos fatos para chegaraos principios ou a partir dos principios pata chegar aos fatos, e alguns outros

aforismos semelhantes, ficamos conhecendo 0 metodo muito menos nitidamente do que aquele que, de maneira urn pouco aprofundada, estudou uma(mica ciencia positiva, mesmo sem inten¢o filosofica. Epor ter desconhecidoesse fato essencial que nossos psicologos sao levados a considerar seus deva-neios como ciencia, acreditando ter compreendido 0 metodo positivo por teremlido os preceitos de Bacon ou 0 Discours de Descartes. Ignoro se, mais tarde, serapossivel fazer a priori urn verdadeiro curso de metodo completamente inde-pendente do estudo filosofico das cienciasj mas, estou bern convencido de que,hoje, isso e inexeqiiivel, na medida em que os gran des procedimentos logicosainda nao podem ser explicados com a precisao suficiente, separadamente desuas a p l i c a ~ o e s . Alem disso, ouso acrescentar que, mesmo sendo possivel

realizar, posteriormente, tal empreendimento - 0 que, com efeito, e concebivelf_ e somente g r a ~ s ao estudo das a p l i c a ~ o e s regulares dos procedimentoscientificos que sera possivel chegar Ii forma¢o de urn born sistema de habitos

Lintelectuaisj alias, esse e 0 objetivo essencial do metodo"'.

t. A. Camte, Cours de philosophie positive, t.I, Bachelier, Paris, 1830 (titado a panir da edic;ao Gamier, 1926,p. 71-72) [N.T.: ct. A. Camte, Curso de filosofia positiva, trad. de Jose Arthur Giannotti, col. "OS

Pensadores b, Abril Cultural, sao paulo, 1978, p. 151. Com G. canguilhem, poderiamos observar que nao

e facil superar as solidtac;6es do vocabuUtrio que "nos levam, incessantemente, a conceber a metodacomo suscetivel de seT separado das pesquisas em que estil em ac;ao: lA. Camte1 ensina na primeira

Jic;ao do Cours de philosophie positive que '0 metoda nao pode ser estudado separadamente das pes-

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Nada have ria a acrescentar a esse texto que, recusando estabelecer umadissocia¢o entre metodo e pratica, rejeita de antemao todos os discursosdo metodo, se nao ja existisse urn verdadeiro discurso em volta do metodoque, na falta de c o n t e s t a ~ a o seria, a m e a ~ a impor aos pesquisadores umaimagem desdobrada do trabalho cientifico. Como profetas que invectivam aimpureza original da empiria - mas nao se sabe se consideram as mesquinharias da rotina cientifica como atentados a dignidade do objeto que pretendem abordar ou do sujeito cientifico que pretendem encarnar - ou sumos

sacerdotes do metodo que, naturalmente, levariam todos os pesquisadores,durante a vida, a ficar presos aos bancos do catecismo metodologico, os quedissertam sobre a arte de ser sociologo ou a marie ira cientifica de fazer aciencia sociologica tern em comum, muitas vezes, a caracteristica de estab'elecer a d i s s o c i a ~ a o entre 0 metoda, ou a teoria, e as o p e r a ~ o e s da pesquisa,quando nao e entre a teoria e 0 metoda ou entre a teoria e a teoria. Surgidoda experiencia da pesquisa e de suas dificuldades cotidianas, nosso objetivolimita-se a explicitar, como prova, urn "sistema de habitos intelectuais":destina-se aqueles que, "tendo embarcado" na pratica da sociologia empiricae nao precisando que Ihes seja lembrada a necessidade da medida e de toctaa sua parafernalia teorica e tecnica, concordam, de imediato, conosco sobre

aquilo em que estamos de acordo - porque isso e evidente - por exemplo,na necessidade de levar em c o n s i d e r a ~ a o todas as ferramentas conceituaisou tecnicas que permitem dar todo 0 seu vigor e toda a sua f o r ~ a a v e r i f i c a ~ a o experimental. Somente aqueles que nao tern ou nao pretendem fazer aexperiencia da pesquisa poderao ver nesta obra, que visa colocar a prilticasociologica em questao, urn questionamento da sociologia empirica 2

Se e verdade que 0 ensino da pesquisa requer - tanto dos seus idealizadores, quanto dos seus receptores - uma referencia direta e constante a

quisas nas quais e utiJizado', a Que subentende Que a u t i l i z a ~ o de urn metoda pressupoe que este seja,

previamente, conhecido" (G. canguilhem, Theorie et technique de "experimentation chez Claude

Bernard, Colloque du centenaire de la publication de I'Introduction a "etude de la medecine experimen

tale, Masson, paris, 1967, p. 24).

2. A divisao do campo epistemolOgica, segundo a 1000ca dos pares (cf. 3! parte), e as t r a d i ~ o e s intelectuaisque, identificando tada reflexao com pura e s p e c u l a ~ o , impedem a percep¢o da f u n ~ o tecnica de

urna refJexao sabre a r e l a ~ o as tecnicas e conferem ao mal-entendido, contra 0 Qual tentamos 3qui

nos precaver, urna probabilidade muito forte: com efeito, nessa o r g a n i z a ~ o dualista das posic;oes

epistemologicas, qualquer tentativa feita no sentido de reinserlr as operac;oes tecnicas na hierarquiados atos epistemologicos sera, quase inevitavelmente, interpretada como uma a c u s a ~ o contra a ecnicae os tecnicosj a despeito do que tern sido nossa postura e reconhecerrnos, aqui, a contribuic;ao capital

dos metodologos - e, em particular, Paul F. Lazarsfeld - no sentido da racionalizac;a,o da praticasociologica, sabemos que corremos 0 risco de sermos classificados ao lado de Fads and Foibles oj

American Sociology e mio ao lado de The language oj Social Research.

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f

,

experiencia na primeira pessoa, "a metodologia em moda que multiplica osprogramas em favor de uma pesquisa sofisticada, mas hipotetica, os examescriticos de pesquisas feitas por outros [...Jou os veredictos metodologicos,,3,nao poderia tomar 0 lugar de uma reflexao sobre a justa r e l a ~ a o as tecnicase de urn e s f o r ~ o , ate mesmo arriscado, para transmitir principios que naopodem se apresentar como simples verdades de principio porque sao 0

principio da busca das verdades. Alem disso, se e verdade que os metodosse distinguem das tecnicas, pelo menos, no sentido em que sao "bastante

gerais para terem valor em todas as ciencias ou em uma parte importantedelas"', essa reflexao sobre 0 metoda ainda deve assumir 0 risco de encontrar, de novo, as rna is c1assicas analises da epistemologia das ciencias danatureza; no entanto, talvez seja necessario que os sociologos estejam deacordo a respeito dos principios elementares que sao considerados truismospelos especialistas das ciencias da natureza ou da filosofia das ciencias paraabandonar a anarquia conceitual a qual sao condenados por sua i n d i f e r e n ~ a em r e l a ~ a o a reflexao epistemologica. Na realidade, 0 e s f o r ~ o para interrogaruma ciencia particular com a ajuda dos principios gerais, fornecidos por essesaber epistemologico, justifica-se e impoe-se, em particular, no caso da sociologia: aqui, tudo se inclina, com efeito, para ignorar tal conhecimento

adquirido, desde0

estereotipo humanista da irredutibilidade das cienciashumanas ate as caracteristicas do recrutamento e f o r m a ~ a o dos pesquisadores, passando pela existencia de urn conjunto de metodologos especializadosna r e i n t e r p r e t a ~ a o seletiva do saber das outras ciencias. Portanto, e necessario submeter as o p e r a ~ o e s da pratica sociologica a polemica da razaoepistemologica para definir e, se possivel, inculcar uma atitude de vigilanciaque encontre no conhecimento adequado do erro e dos mecanismos capazesde engendra-Io urn dos meios de supera-Io. A i n t e n ~ a o de dar ao pesquisadoros meios de assumir por si proprio a vigilancia de seu trabalho cientificoopoe-se as chamadas a ordem dos censores, cujo negativismo peremptorioso pode suscitar 0 terror em r e l a ~ a o ao erro e 0 recurso resignado a uma

tecnologia investida daf u n ~ a o

de exorcismo.

3. R. Needham, Structure and Sentiment A T e s t ~ c a s e in Social Anthropology, University of Chicago press,

Chicago, Londres, 1962, p. VII.

4. A. Kaplan, The Conduct of Inquiry, Methodology of Behavioral Science, Chandler Publishing Company,

San Francisco, 1964, p. 23 [N.T.: A. Kaplan, A conduto no pesquisa, MetodoJogia para as ciencias do

comportamento, tTad. de LeOnidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota, Editora Herder I Editora da

Universidade de Sao paulo, Sao Paulo, 1972]. 0 mesmo autar deplora que 0 terma Utecnologia" ja tenha

recebido urn sentido especializado, observando que 0 mesmo se aplicaria com exatidao a inumerosestudos ditos Qmetodol6gicosn (ibid., p. 19).

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--rr Como mostra toda a obra de Gaston Bachelard, a epistemologia distingue-se de uma metodologia abstrata por se e s f o r ~ a r em apreender a logicado erro para construir a logica da descoberta da verdade como polemicacontra 0 erro e como e s f o r ~ o para sub meter as verda des proximas da cienciae os metodos que ela utiliza a uma r e t i f i c a ~ a o metodica e permanente [G.

canguilhem, texto n° 1]. No entanto, nao seria possivel dar toda a f o r ~ a aa ~ a o polemica da razao cientifica sem prolongar a "psicanillise do espiritocientifico" por uma am'ilise das c o n d i ~ o e s sociais nas quais sao produzidas asobras sociologicas: 0 sociologo pode encontrar urn instrumento privilegiadoda vigilimcia epistemologica na sociologia do conhecimento, meio de aumenta r e dar maior precisao ao conhecimento do erro e das c o n d i ~ o e s que 0

tornam possivel e, por vezes, inevitavel [G. Bache/arel, texto n° 2]. Na

seqiiencia, 0 que pode sobrar aqui das aparencias de uma polemica adhominem tern aver unicamente com os Iimites da compreensao sociologicadas c o n d i ~ o e s do erro: uma epistemologia que faz apelo a uma sociologia do

conhecimento tern menos c o n d i ~ o e s do que qualquer outra para atribuir os

erros a sujeitos que nunca sao totalmente seus autores. Se, para parafrasearurn celebre texto de Marx, "nao pintamos de cor-de-rosa" 0 empirista, 0

intuicionista ou 0 metodologo, tambem nunca pensamos nas "pessoas a naoser pelo fato de que sao a p e r s o n i f i c a ~ o " de p o s i ~ o e s epistemologicas quese deixam compreender completamente apenas no campo social no qual elasse afirmam.

A pedagogia do pesquisa

o objetivo desta obra e exatamente definir sua forma e conteudo. Urn

ensino da pesquisa que tenha como projeto expor os principios de umapn'itica profissional e inculcar, simultaneamente, uma certa atitude emr e l a ~ a o a essa pratica, isto e, fornecer os instrumentos indispensaveis aotratamento sociologico do objeto e, ao mesmo tempo, uma d i s p o s i ~ a o ativa

para utiliza-Ios de forma adequada, deve romper com as rotinas do discursopedagogico para restituir a f o r ~ a heuristica aos conceitos e o p e r a ~ o e s maiscompletamente "neutralizados" pelo ritual da a p r e s e n t a ~ a o canonica. E arazao pela qual esta obra que visa ensinar os atos mais praticos da praticasociologica c o m e ~ a com uma reflexao que se e s f o r ~ a por lembrar, sistematizan do-as, as i m p l i c a ~ o e s de qualquer pratica, boa ou rna, e especificar empreceitos praticos 0 principio da vigilancia epistemologica (Primeiro Livro)'.

5. Cf. supra, 0 prefacio da segunda edi¢o.

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r

,

Em seguida, poderemos tentar definir a f u n ~ a o e as c o n d i ~ o e s de a p l i c a ~ a o dos esquemas teoricos aos quais deve recorrer a sociologia para construirseu objeto sem pretender apresentar esses primeiros principios da interrog a ~ a o propriamente sociologica como uma teoria acabada do conhecimentodo objeto sociologico e, menos ainda, como uma teoria geral e universal dosistema social (Segundo Livro)". Apesquisa empirica nao tern necessidade deinvestir em tal teoria para escapar ao empirismo, com a c o n d i ~ a o de realizarefetivamente, em cada uma de suas o p e r a ~ o e s , os principios que a consti

tuem como ciencia, dando-Ihe urn objeto dotado de urn minimo de coerenciateo rica. Com tal c o n d i ~ a o , os conceitos ou metodos poderao ser tratadoscomo Jerramentas que, arrancados de seu contexto original, se oferecernpara novas u t i l i z a ~ o e s (Terceiro Livro)7. Ao associar a apresenta¢o de cadainstrumento intelectual a exemplos de sua u t i l i z a ~ a o , empenhar-nos-emosem evitar que 0 saber sociologico possa aparecer como uma soma detecnicas ou como urn capital de conceitos, separados ou separaveis de suau t i l i z a ~ a o na pesquisa.

Se decidimos extrair da ordem das razoes na qual os principios teoricos,assim como os procedimentos tecnicos legados pela historia da cienciasociologica, se encontravam inseridos, nao foi somente para quebrar os

encadeamentos de natureza didatica que so renunciam a complacenciaerudita em r e l a ~ a o com a historia das doutrinas ou dos conceitos para sesubmeterem ao reconhecimento diplomatico dos valores consagrados pelat r a d i ~ a o ou sagrados pela moda, nem tampouco para Iiberar virtualidadesheuristicas, quase sempre, mais numerosas do que poderiam levar a acreditaros costumes academicosj mas, antes de tUdo, em nome de uma c o n c e p ~ i i o da teoria do conhecimento sociologico que a transforma no sistema dosprincipios que definem as c o n d i ~ o e s de possibilidade de todos os atos e <Ie

todos os discursos propriamente sociologicos e somente destes, sejam quaisforem as teorias do sistema social peculiares dos que produzem ou produziram obras sociologicas em nome de tais principios·. A questao da f i l i a ~ a o de

uma pesquisa sociologica a uma teoria particular do social - por exemplo, ade Marx, Weber ou Durkheim - e sempre secundaria em r e l a ~ a o aquestaode saber se tal pesquisa tern a ver com a ciencia sociologica: com efeito, 0

6. Idem.

7. Idem.

8. Cf. infra.

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(mico criterio para responder a tal pergunta reside na a p l i c a ~ a o dos principiosfundamentais da teoria do conhecimento sociologico que, como tal, naoestabelece qualquer s e p a r a ~ a o entre autores que, em principio, estariamseparados no terreno da teoria do sistema social. Se a maior parte dos autoresforam levados a confundir com sua teoria particular do sistema social a teoriado conhecimento do social que utilizavam - pelo menos implicitamente - emsua prifltica sociologica, 0 projeto epistemologico po de servir-se dessa distin~ a o previa para aproximar autores cujas o p o s i ~ 6 e s doutrinais dissimulam 0

acordo epistemologico.o receio de que 0 empreendimento leve a urn amalgama de principios

extraidos de t r a d i ~ 6 e s teoricas diferentes ou a c o n s t i t u i ~ a o de urn conjuntode formulas dissociadas dos principios que as fundamentam e uma forma deesquecer que a r e c o n c i l i a ~ a o - cujos principios temos i n t e n ~ a o de explicitar- opera-se realmente no exercicio autentico da profissao de sociologo ou,mais exatamente, na "profissao" do sociologo, esse habitus que, sendo urnsistema de esquemas mais ou menos controlados e mais ou menos transponiveis, e simplesmente a i n t e r i o r i z a ~ a o dos principios da teoria do conhecimento sOciologico. A tenta¢o sempre renascente de transformar os preceitosdo metodo em receitas de cozinha cientifica ou em engenhocas de laboratorio,

so podemos opor 0 treino constante na vigilancia epistemologica que,

\

:/subordinando a u t i l i z a ~ a o das tecnicas e conceitos a uma i n t e r r o g a ~ a o sobre. !as c o n d i ~ 6 e s e Iimites de sua validade, proibe as facilidades de uma aplicac;ao

automatica de procedimentos ja experimentados e ensina que toda opera\ ~ a o , por mais rotineira ou rotinizada que seja, deve ser repensada, tanto emI si mesma quanto em f u n ~ a o do caso particular. E somente por uma reinterI p r e t a ~ a o magica das exigencias da medida que podemos superestimar a," importancia de operac;6es que, no final de contas, nao passam de habilidades, profissionais e, simultaneamente - transformando a prudencia metodologicaI: em reverencia sagrada, com receio de nao preencher cabalmente as condic;6es rituais -, utilizar com receio, ou nunca utilizar, instrumentos que apenas

deveriam ser julgados pelo seu uso. Os que levam a p r e o c u p a ~ a o metodologica ate a obsessao nos fazem pensar nesse doente, mencionado por Freud,que passava seu tempo a Iimpar os oculos sem nunca coloca-Ios.

Levar a serio 0 projeto de transmitir metodicamente uma ars inveniendiever que ele implica uma coisa completamente diferente e muito mais doque a ars probandi proposta por aqueles que confundem a mecanica logica,desmontada posteriormente, das c o n s t a t a ~ 6 e s e provas com 0 funcionamento real do espirito de i n v e n ~ a o ; ever tambem, com a mesma evidencia, queexiste uma grande d i f e r e n ~ a entre as trilhas, ou melhor, os atalhos que,atualmente, possam ser t r a ~ a d o s por uma reflexao sobre a pesquisa e a

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, progressao lenta, sem lamentos nem rodeios, proposta por urn verdadeirodiscurso do metodo sociologico.

Diferentemente da t r a d i ~ a o que se limita it logica da prova, nao consentindo por principio entrar nos arcanos da i n v e n ~ a o e que, assim, fica condenada a oscilar entre uma retorica da e x p o s i ~ a o formal e uma psicologiaIitenfiria da descoberta, gostariamos de fornecer os meios de adquirir umad i s p o s i ~ a o mental que e a c o n d i ~ a o , tanto da i n v e n ~ a o quanto da prova. Pornao termos operado tal r e c o n c i l i a ~ a o , renunciamos a fornecer qualquer ajuda

ao trabalho de descoberta e encontramo-nos reduzidos, em companhia detantos metodologos, a invocar ou evocar, como e costume invocar os espiritos, os milagres da i 1 u m i n a ~ a o criadora, veiculados pela hagiografia dadescoberta cientifica, ou os misterios da psicologia das profundezas·. Se eevidente que os automatismos adquiridos podern permitir a economia deuma i n v e n ~ a o permanente, devemos nos abster de deixar crer que 0 sujeitoda i n v e n ~ a o cientifica e urn automaton spirituale, obedecendo aos mecanismos bern ajustados de uma p r o g r a m a ~ a o metodologica constituida uma vezpor todas, e confinar dessa forma 0 pesquisador na submissao cega aoprograma que exclui 0 retorno reflexivo ao mesmo, c o n d i ~ a o da i n v e n ~ a o denovos programas'o. "Da mesma forma que 0 conhecimento da anatomia nao

e a c o n d i ~ a o suficiente de urn procedimento correto", assim tambem ametodologia, dizia Weber, "nao e a c o n d i ~ a o de urn trabalho fecundo"l1. Noentanto, se e inutil esperar descobrir uma ciencia da maneira de fazer a

9. Ao definir 0 objeto da logica das ciencias, a Iiteratura metodol6gica toma sempre cui dado em afastarexplicitamente a considera¢o dos ways 0/ discovery em beneficia des ways of validation (cf., por

exemplo, C. Hempel, Aspects o j Scientific Explanation and Other Essays in the Philosophy of Science,Free press, Nova York, 1965, p. 82-83). K.R. popper retoma, frequentemente, a essa dicotomia que pareceabranger, para ele, a oposi¢o entre a vida pilblica e a vida privada: qA questa.o 'como descobriu, pela

primeira vez, sua teolial' toea, por assim dizer, uma questao extremamente pessoal, contrariamente aquestao 'como verificou sua teorial'n (K.R. Popper, Misere de I'historicisme Itrad. H. Rousseau], PIon,

paris, 1956, p. 132). Ou ainda: "Nao existe nada que se p a r ~ a com urn metodo logico para te r ideias ou

com uma reconstitui¢o logica desse processo. S_egundo a minha opiniao, Qualquer descoberta contem

'urn elemento irracional' ou uma ' intui¢o criadora' no sentido de Bergson" (K.R. Popper, The logic of

Scientific Discovery, Hutchinson, Londres, 1959,p. 32). Pelo contraria, desde que, por excec;ao, tomamas

explicitamence como objeto 0 "contexto da descoberta" (por oposi -¢o ao "contexto da prova"), somas

obrigados a romper com inumeros esquemas rotinei ros da tradi¢o epistemologica e metodol6gica, e,

em particular, com a representac;ao do procedimento da pesquisa como sucessao de etapas distintas e

predeterminadas (cf. P.E Hamond, [ed.], sociologist at Work, Essays on the CraftofSocial Research, Basic

Books, Nova York, 19641,

10. Basta pensar, por exemplo, na facilidade com a qual a pesquisa pode se reproduzir a si mesma sem

nada produzir, segundo a 16gica da pump-handle research.

1I. M. Weber, Essais sur la theorie de la science (trad.J. Freund), Pion, paris, 1965, p. 220.

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ciencia e esperar da logica algo diferente de uma forma de controlar a cienciaem vias de se fazer ou validar a ciencia ja constituida, ocorre que, comoobservava Stuart Mill, "a i n v e n ~ a o pode ser cultivada"j 0 mesmo e dizer queuma e x p l i c i t a ~ a o da logica da i n v e n ~ a o , por mais parcial que seja, podecontribuir para a r a c i o n a l i z a ~ a o da aprendizagem da aptidao para inventar.

Epistemologia das ciencias do homem e epistemalogia

das ciencias da natureza

A maior parte dos erros a que esta exposta tanto a atividade sociologicaquanto a reflexao sobre tal atividade encontra sua raiz na r e p r e s e n t a ~ a o falsa da epistemologia das ciencias da natureza e da r e l a ~ a o que ela mantemcom a epistemologia das ciencias do homem. Assim, epistemologias tao

opostas em suas a f i r m a ~ o e s patentes quanto 0 dualismo de Dilthey - que soconsegue apresentar a especificidade do metoda das ciencias do homem,opondo-o a uma imagem das ciencias da natureza suscitada pela merap r e o c u p a ~ a o de estabelecer d i s t i n ~ o e s - e 0 positivismo que se e s f o r ~ porimitar uma imagem da ciencia natural fabricada pela· necessidade dessai m i t a ~ a o , tern em comum 0 fato de ignorar a filosofia exata das cienciasexatas. Semelhante equivoco levou nao so a forjar d i s t i n ~ o e s f o r ~ a d a s entre os dois metodos para agradar as nostalgias ou aos desejos piedososdo humanismo, mas tambem a aplaudir ingenuamente as redescobertasque se ignoram como tais, ou ainda participar da s u p e r v a l o r i z a ~ a o positivista que, de forma escolar, copia uma imagem redutora da experienciacomo copia do real.

No entanto, podemos nos aperceber de que 0 positivismo so retoma porsua conta uma caricatura do metodo das ciencias exatas sem ter acesso ipso

facto a uma epistemologia exata das ciencias do homem. E, de fato, trata-sede uma constante da historia das ideias que a critica do positivismo mecanicista sirva para afirmar 0 carater subjetivo dos fatos sociais e sua irredutibi

lidade aos metodos rigorosos da ciencia. Assim, percebendo que "os metodosque os cientistas ou pesquisadores fascinados pelas ciencias da naturezatentararn, muitas vezes, aplicar a f o r ~ a as ciencias do homem nem sempreforam necessariamente os que os cientistas seguiam, de fato, em seu propriocampo, mas antes os que eles acreditavam utilizar,,12, Hayek conclui daiimediatamente que os fatos sociais diferem "dos fatos das ciencias fisicas

t 2. F.A. von H a y e ~ Scientisme et sciences saciales, £Ssa; sur Ie mauvais usage de la raison (trad. M. Barre),Pion, paris, 1953, p. 3.

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porque sao c r e n ~ a s ou opinioes individuais" e, por conseqiiencia, "nao devemser definidos a partir do que poderiamos descobrir a seu respeito por meiodos metodos objetivos da ciencia, mas a partir do que a pessoa que age pensaa seu respeito,,13. A c o n t e s t a ~ a o da i m i t a ~ a o automatica das ciencias danatureza associa-se tao automaticamente acritica subjetivista da objetivi

dade dos fatos sociais que todo e s f o r ~ o para tratar dos problemas especificos,levantados pela t r a n s p o s i ~ a o do saber epistemologico das ciencias da natureza para as ciencias do homem, corre 0 risco de aparecer sempre como umar e a f i r m a ~ a o

dos direitos imprescritiveis da subjetividade14.

Ametod%gia e 0 des/ocamento da vigilancia

Para ultrapassar esses debates academicos e as maneiras academicas desupera-Ios, e necessario sub meter a pratica cientifica a uma reflexao que,diferentemente da filosofia c1assica do conhecimento, aplica-se nao acienciaja constituida, ciencia verdadeira em r e l a ~ o aqual seria necessario estabelecer as c o n d i ~ o e s de possibilidade e de coerencia ou os titulos de legitimidade, mas a ciencia em vias de se fazer. Semelhante tarefa, propriamente

epistemologica, consiste em descobrir no decorrer da. propria atividade cien-I f

tifica, incessantemente confrontada com 0 erro, as c o n d i ~ o e s nas quais epossivel tirar 0 verdadeiro do falso, passando de urn conhecimento menos.verdadeiro a urn conhecimento mais verdadeiro, ou melhor, como afirmaBachelard, "proximo, isto e, retificado". Transposta para 0 caso das cienciasdo homem, essa filosofia do trabalho cientifico como " a ~ a o polemica incessante da Razao" pode propiciar os principios de uma reflexao capaz deinspirar e controlar os atos concretos de uma atividade verdadeiramentecientifica, definindo no que tern de especifico os principios do "racionalismoregional" peculiar aciencia sociologica. 0 racionalismo fixista que inspiravaas i n t e r r o g a ~ o e s da filosofia c1assica do conhecimento exprime-se, hoje, maisfacilmente nas tentativas de certos metodologos que tendem a reduzir a

13. Ibid., p. 21 e 24.

14. E, no entanto, bastaria todo 0 projeto de Durkheim para mostrar que epassivel escapar aaltemativada i m i t a ~ o cega e da recusa, igualmente (ega, de imitar: "A sociologia surgiu a ombra das c h ~ n c i a s da

natureza eem cantata intimo com eJas. r,.l Eevidente que, entre as primeiros saciologos, alguns estavam

enganados ao exagerarem tal aproxima¢o ao ponto de desconhecerem a origem das ciencias sociais

eaautonomia de que eJas devem desfrutar em rela¢oas Qutras cilmcias que as precederam. No entanto,tais excessos nao devem levar a esquecer tudo 0 que hij, de fec.undo nesses nucleos principais do

pensamento cientificon (E. Durkheim, "La sociologie et son domaine scientifiquen, in Rivista Italiana di

Sociologio, tomo IV, 1900, p. 127-159, reproduzido in A. Cuvillier, Ou va la s o c i o l o g i e f r o n ~ i s e l , MarcelRiviere, Paris, 1953, p. 177-208).

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reflexao sobre 0 metoda a uma logica formal das ciencias. No entanto, comoobserva P. Feyerabend, "qualquer fixismo semantico encontra dificuldadesdesde que se trata de justificar completamente 0 progresso do conhecimentoe as descobertas que contribuem para 0 mesmo,,15. Mais precisamente, mostrar interesse pelas r e l a ~ o e s intemporais entre p r o p o s i ~ o e s abstratas, emdetrimento dos processos pelos quais cada p r o p o s i ~ a o ou cada conceito foiestabelecido e engendrou outras p r o p o s i ~ o e s ou outros conceitos, e impedirprestar uma assistencia real aos que estao envolvidos nas arriscadas peripe

cias do trabalho cientifico, relegando 0 desenrolar da intriga para os bastidores e colocando em cena somente os desfechos. Inteiramente empenhadosna busca de uma logica ideal da pesquisa, os metodologos so podem, comefeito, dirigir-se a urn pesquisador definido abstratamente pela aptidao emrealizar essas normas da p e r f e i ~ a o , em suma, a urn pesquisador impecavel,isto e, impossivel ou infecundo. Aobediencia incondicional a urn organon de

, regras logicas tende a produzir urn efeito de "fechamento prematuro" fazendo desaparecer, para falar como Freud, "a elasticidade nas d e f i n i ~ o e s " ou,como diz Carl Hempel, "a disponibilidade semantica dos conceitos" que, pelomenos em certas fases da historia de uma ciencia ou do desenrolar de umapesquisa, constituem uma das c o n d i ~ o e s da i n v e n ~ a o .

Nao se trata de negar que a f o r m a l i z a ~ a o logica considerada como urnmeio de colocar it prova a logica em ate da pesquisa e a coerencia de seusresultados constitui urn dos instrumentos mais eficazes do controle epistemologicoj no entanto, essa u t i l i z a ~ a o legitima dos instrumentos logicos serve,freqiientemente, de c a u ~ a o itpaixao perversa por exercicios metodologicosque tern como (mica finalidade discernivel permitir a e x i b i ~ a o do arsenal dosmeios disponiveis. Diante de certas pesquisas concebidas como prova logicaou metodologica, nao e possivel deixar de pensar, com Abraham Kaplan, naconduta do ebrio que, tendo perdido a chave de casa, procura-a obstinadamente ao pe de urn lampiao, sob 0 pretexto de que ai esta rna is claro [A.

Kaplan, texto n° 3].

o rigorismo tecnologico que se apoia na fe em urn rigor definido uma vezpor todas e para todas as s i t u a ~ o e s , isto e, em uma r e p r e s e n t a ~ a o fixista daverdade ou, por conseqiiencia, do erro como transgressao de normas inconIdicionais, opoe-se diametralmente it busca dos rigores especlficos que se

! :apoia em uma teoria da verdade como teoria do erro retificado. "0 conhecer,

15. P. Feyerabend, in H. Feigl e G. Maxwell (eds.), "Scientific EXplanation, Space and Time", in MinnesotaStudies in the Philosophy 01 Science, Vol. III, Minneapolis, 1962, p. 31.

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r firma ainda Gaston Bachelard, deve evoluir com 0 conhecido". 0 mesmo e. dizer que seria inutil procurar uma logica anterior e exterior a historia da\J ciencia em vias de se fazer. Para apreender os procedimentos da pesquisa, e.. necessario examinar como ela procede, em vez de confina-Ia na observimcia

de um decalogo de processos que so devem, talvez, parecer a v a n ~ d o s emr e l a ~ a o a pratica real na medida em que sao definidos de ante mao16.

"Fascinado pelo fato de que, em matematica, evitar 0 erro e uma questao detecnica, ha quem pretenda definir a verdade como 0 produto de uma

atividade intelectual ques a t i s f a ~ a

certas normasj ha quem pretenda considerar os dados experimentais como sao considerados os axiomas da geometriaj hit quem espere determinar regras do pensamento que desempenhariamo papel que a logica desempenha na matematica. Ha quem pretenda fazer,a partir de uma experiencia Iimitada, uma teoria em uma unica vez. Ora, 0

calculo infinitesimal nao conheceu seus fundamentos a nao ser progressivamentej a n o ~ a o do numero so atingiu sua c1areza ao fim de dois mileniose meio. Os procedimentos que instauram 0 rigor surgem como respostasa perguntas que nao sabemos formular a priori, que somente 0 desenvolvimento da ciencia faz emergir. A ingenuidade perde-se lentamente. (sso,verdadeiro na matematica, 0 e a fortiori nas ciencias da o b s e r v a ~ a o nas

quais cada teoria refutada sugere novas exigencias de rigor. portanto, einutil pretender apresentar a priori as c o n d i ~ o e s de um pensamentoautenticamente cientifico,,17.

1

Mais profundamente, a insistente e x o r t a ~ a o em prol da p e r f e i ~ a o metodologica corre 0 risco de levar a um des/ocamento da vigilancia epistemologica. Assim, em vez de nos interrogarmos, por exemplo, sobre 0 objeto dam e d i ~ a o enos perguntarmos se ele merece ser medido, em vez de questionarmos as tecnicas de m e d i ~ a o e de nos interrogarmos sobre 0 grau deprecisao desejavel e legitimo, considerando as c o n d i ~ o e s particulares damedida, ou ate mesmo de examinarmos, mais simples mente, se os instrumentos medem 0 que se pretende medir, podemos - levados pelo desejo de

transformar a ideia pura do rigor metodologico em tarefas realizaveis -perseguir, com a obsessao das decimais, 0 ideal contraditorio de uma

t6. Os autores de urn lango estudo consagrado as func;oes do metoda estatistico em sociologia confessamin/ine Que "suas indicac;oes relativas as possibilidades de aplicar aestatistica teorica a esquisa empiricacaracterizam somente 0 estado atual da discussao metodol6gic3, sendo que a pratica perrnanece no

retaguardo" (E.K. Scheuch e D. Roschmeyer, uSoziologie und S t a t i s t i ~ Ober den Einfuss der modemenWissenschaftslehre auf ihr gegenseitiges Verhaltnis", in KOinerZeitschriftflirsDzioJogie und Saz;oJ-Psy

chologie, VIII, 1956, p. 272-291).

17. A. Regnier, les in/aTtunes de la raison, Ed. du Seuil, Paris, 1966, p. 37-38.

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precisao intrinsecamente definivel; nesse caso, esquecemos que, como lembra A.D. Richtie, "fazer uma m e d i ~ a o rnais precisa do que e necessario nao

deixa de ser menos absurdo do que fazer uma m e d i ~ a o nao suficientementeprecisa,,18, ou ainda que, como observa N. Campbell, quando fica estabelecido

que todas as p r o p o s i ~ o e s compreendidas entre certos Iimites sao equivalen

tes e que a p r o p o s i ~ a o definida de maneira aproximada situa-se nessesIimites, a u t i l i z a ~ a o da forma aproximada e perfeitamente legitima19. Com-

preende-se que, ao engendrar uma casuistica do erro tecnico, a etica do dever

metodologico possa conduzir - pelo menos indiretamente - a urn ritualismodos procedimentos que, sendo talvez a caricatura do rigor metodologico, e,

com toda a certeza, exatamente 0 contrario da vigilancia epistemologica'·.Particularmente significativo e 0 fato de que a estatistica - ciencia do erro edo conhecimento proximo que, em procedimentos tao usuais quanto 0

calculo do erro ou dos Iimites de c o n f i a n ~ a , coloca em a ~ a o uma filosofia davigilancia critica - possa ser corrente mente utilizada como alibi cientifico dasubmissao cega ao instrumento.

Da mesma forma, sempre que os teoricos fazem comparecer a pesquisaempirica com os respectivos instrumentos conceituais diante d() tribunal deuma teoria cujas c o n s t r u ~ o e s eles recusam medir pelo saber da ciencia que

ela pretende refletir e do minar, ficam devendo somente ao prestigio, indistintamente Iigado a qualquer empreendimento teorico, 0 fato de receberema homenagem f o r ~ a d a e verbal dos profissionais de campo. Ese a conjunturaintelectual permitir que os puros te6rios imponham aos cientistas seu ideal,logico ou semantico, da coerencia integral e universal do sistema dos conceitos, eles poderao ate mesmo paralisar a pesquisa na medida em queconseguem inspirar a obsessao de pensar em tudo, de todas as formas e sobtodos os angulos ao mesmo tempo, ignorando que, nas s i t u a ~ o e s reais da

t 8. A.D. Richtie, Scientific Method: An Inquiry into the Character and Validity of Natural Laws, Littlefield,Adams, Paterson (NJ.), 1960, p. 113. Analisando essa busca da uprecisao mal fundada" Que consiste em

acreditar "que a menta da solu9io esta no numero de decimais indicadas h, Bachelard obselVa "que a

precisao em urn resultado, quando vai alem da precisao nos dodos experimentais, significa exatamentea determina9io do nada .. essa pratica lembra a piada de Dulong a respeito de urn experimentador:'Tern a certeza do terceiro algarismo depois da virgula, mas edo primeiro Quetem diivida'" (G. Bachelard,

La/ormation de J'esprit scienti/ique, 41 ed., vrin, paris, 1965, p. 214) [N.T.: Cf. G. Bachelard, A/ormac;aodo espirito cient/lico: contribui¢o para uma pSicanalise do conhecimento, trad. de Estela dos Santos

Abreu, Contraponta, Rio de Janeiro, 1996, p. 262-263].

t 9. N.R. campbell, An Account 0/ he principles ofMeasurement and Calculation, Longmans, Green, Londres,

Nova York, 1928, p.186.

20. 0 interesse ansioso pelas doenc;as do espirito cientifico pade ter urn efeito tao depressivo quanta as

inquietat;oes hipacondnacas dos frequentadares do Larausse medical.

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atividade cientifica, so e possivel esperar construir problematicas ou novasteorias com a c o n d i ~ a o de renunciar aa m b i ~ o impossivel, desde que ela naoseja escolar ou profetica, de dizer tudo sobre tudo e de forma ordenada21

A ordem epistem%gica das razoes

No entanto, essas analises sociologic as ou psicologicas da perversaometodologica e da diversao especulativa nao poderiam tomar 0 lugar dacritica propriamente epistemologica para a qual servem de i n t r o d u ~ a o . Se e

necessario prevenir com urn vigor particular contra as advertimcias dosmetodologos e porque, ao chamar a atem;ao exclusivamente para os controles formais dos procedimentos experimentais e dos conceitos operatorios,elas tern tendencia a desviar a vigilancia em r e l a ~ a o a perigos rna is a m e a ~ a dores. Os instrumentos e apoios, sem duvida muito poderosos, que a reflexaometodologica proporciona avigilancia voltam-se contra a mesma sempreque nao sao preenchidas as c o n d i ~ 6 e s previas de sua u t i l i z a ~ o . A cienciadas c o n d i ~ 6 e s formais do rigor das o p e r a ~ 6 e s , apresentando as aparenciasde uma f o r m a l i z a ~ a o "operatoria" da vigilancia epistemologica, pode parecerfundada na pretensao de garantir automaticamente a a p l i c a ~ a o dos principios e preceitos que definem a vigilancia epistemologica, de modo que e

necessario urn acrescimo de vigilancia para evitar que venha a se produzir,automaticamente, esse efeito de deslocamento.

seria necessario, dizia saussure, "mostrar ao Iingiiista 0 que ele faz"n. Aquestao de saber 0 que e fazer ciencia ou, rna is precisamente, 0 e s f o r ~ o dispendido para saber 0 que faz 0 cientista, quer ele saiba ou nao 0 que faz,nao e somente uma i n d a g a ~ a o sobre a eficacia e 0 rigor formal das teorias emetodos disponiveis, mas urn questionamento dos metodos e teorias em suapropria u t i l i z a ~ a o para determinar 0 que fazem aos objetos e os objetos que

.fazem. A ordem segundo a qual deve ser conduzida essa i n t e r r o g a ~ a o eimposta tanto pela analise propriamente epistemologica dos obstaculos do

It . Certas dissertac;oes te6ricas sabre todas as coisas c o n h e c i d ~ s au cognosciveis preenchem, sem duv!daalguma, uma fun¢o de a n e x a ~ o antecipada am!loga a as profecias astrol6gicas sempre aptas a digerir,retrospectivamente, 0 acontecimento: "Existem pessoas, afirma Claude Bernard, que, a proposito deuma questao, dizem tudo a que e passivel dizer a fim de reclamarem quando, mais tarde, for feitaqualquer experiencia sabre 0 assunto. Ecomo aqueles que tra-;,am planetas em todo a firmamento afim de reclamarem que se trata do planeta Que tinham previsto" (principes de medecine experimentale.P.U.F., Paris, 1947, p. 255).

12. E. Benveniste, "Lettres de Ferdinand de Saussure it Antoine Meillet", in Cahiers ferdinand de saussure,21,1964,p.92-135.

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conhecimento, quanto pela analise sociologica das implicac,:oes epistemolo-gicas da sociologia atual que definem a hierarquia dos perigos epistemologi-cos e, por conseqiiencia, das urgencias.

Defender juntamente com Bachelard que 0 fato cientifico econquistado,construfdo, constatado, e recusar, ao mesmo tempo, 0 empirismo que reduzo ato cientifico a uma constatac,:ao e 0 convencionalismo que the opoesomente as condic,:oes previas da construc,:ao. A orc,:a de lembrar 0 imperativoda constatac;ao, contra toda a tradic;ao especulativa da filosofia social da qual

tern de se liberar, a comunidade sOciologica tende, atualmente, a esquecer ahierarquia epistemologica dos atos cientificos que subordina a constatac;ao aconstruc,:ao e a construc;ao a ruptura: tratando-se de uma cienciaexperimental, a simples referencia aprova experimental nao passa de umatautologia, enquanto nao for acompanhada por uma explicac;ao dos pres-supostos teoricos que servem de base a uma verdadeira experimentac;aojora, tal explicitac;ao permanece em si mesma desprovida de virtudeheuristica enquanto nao for acompanhada da explicitac,:ao dos obstaculosepistemologicos que se apresentam, sob uma forma especifica, em cadaatividade cientifica.

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PRIMEIRA PARTE

A ruptura

1. 0 FATO ECONQUISTADO CONTRA A ILUSAO

DO SABER IMEDIATO

Avigilancia epistemologica impoe-se, particularmente, no caso das cienciasdo homem nas quais a s e p a r a ~ a o entre a opiniao comum e 0 discursocientifico e mais imprecisa do que alhures. Ao concedermos, com demasiada. acilidade, que a p r e o c u p a ~ a o com uma reforma politica e moral da sociedadelevou os sociologos do seculo XIX a abandonar, muitas vezes, a neutralidadecientifica e, ate mesmo, que a sociologia do seculo XX renunciou, eventualmente, as a m b i ~ o e s da filosofia social sem ter ficado isenta de c o n t a m i n a ~ o e s ideologicas de outra natureza, dispensamo-nos quase sempre de reconhecer,para tirar dai todas as conseqiiencias, que a familiaridade com 0 universosocial constitui, para 0 sociologo, 0 obstaculo epistemologico por excelenciaporque ela produz continuamente c o n c e p ~ o e s ou s i s t e m a t i z a ~ o e s ficticias aomesmo tempo que as c o n d i ~ o e g o d e sua credibilidade. 0 sociologo nuncac()nseguira acabar com a sociologia espontanea e deve se impor uma polemica incessante contra as evidencias ofuscantes que proporcionam, semgrandes e s f o r ~ o s , a i1usao do saber imediato e de sua riqueza insuperavel.Sua dificuldade em estabelecer, entre a percep¢o e a dencia, a s e p a r a ~ a o que, para 0 fisico, exprime-se por uma o p o s i ~ a o nitida entre 0 laboratorio ea vida cotidiana, e tanto maior pelo fato de nao conseguir encontrar, em suah e r a n ~ a teorica, os instrumentos que Ihe permitiriam recusar radicalmentea Iinguagem corrente e as n o ~ o e s comuns.

1.1. P r e n o ~ 6 e s e tecnicas de ruptura

Na medida em que tern como f u n ~ a o reconciliar, a qualquer p r e ~ o , aconsciencia comum consigo mesma ao propor e x p l i c a ~ o e s , ate mesmo contradit6rias, a respeito do mesmo fato, as opinioes primeiras sobre os fatossociais apresentam-se como uma coletanea falsamente sistematizada de

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julgamentos com uso altemativo. Essas p r e n o ~ o e s , " r e p r e s e n t a ~ o e s esquematicas e sumarias" que sao "formadas pela pratica e para ela", retiram suaevidencia e "autoridade", como observa ourkheim, das f u n ~ o e s sociais quedesempenham [ I ~ . Durkheim, texto nO 41.

A influencia das n o ~ o e s comuns e tao forte que todas as tecnicas deo b j e t i v a ~ a o devem ser utilizadas para realizar efetivamente uma ruptura que,na maior parte das vezes, e mais professada do que concretizada. Assim, osresultados da medida estatistica podem, pelo menos, te r a virtude negativa

de desconcertar as impressoes primeiras. Oa mesma forma, nao temosverificado, com freqiiencia, a_ fun¢o de ruptura que Ourkheim conferia it

d e f i n i ~ a o previa do objeto como c o n s t r u ~ a o teo rica "provisoria" destinada,antes de tudo, a "substituir as n o ~ o e s do senso comum por uma primeirano¢o cientifica'" IM. Mauss, texto nO 51. Com efeito, na medida em que alinguagem corrente e determinadas u t i l i z a ~ o e s eruditas das palavras banaisconstituem 0 principal veiculo das r e p r e s e n t a ~ o e s comuns da sociedade, esem duvida uma critica logica e lexicologica da linguagem comum queaparece como a c o n d i ~ a o indispensavel para a e l a b o r a ~ a o controlada dasn o ~ o e s cientificas II.H. Goldthorpe e D. Lockwood, texto nO 61.

Pelo fato de que, no momento da o b s e r v a ~ a o ou e x p e r i m e n t a ~ a o , 0sociologo estabelece uma r e l a ~ a o com 0 objeto que, enquanto r e l a ~ a o social,nunca e puro conhecimento, os dados apresentam-se-lhe como c o n f i g u r a ~ o e s vivas, singulares e, em poucas palavras, humanas demais, que tendem a seimpor como estruturas do objeto. Ao fragmentar as totalidades concretas epatentes que sao dadas it i n t u i ~ a o para substitui-las pelo conjunto doscriterios abstratos que as definem do ponto de vista sociologico - profissao,r e m u n e r a ~ a o , nivel de i n s t r u ~ a o , etc. - impedindo as i n d u ~ o e s espontaneas'que, por urn efeito de halO, levam a estender a uma c\asse inteira os t r a ~ o s marcantes dos individuos mais "tipicos" na aparencia, em suma, dilacerandoa rede de r e l a ~ o e s que se tece continua mente na experiencia, a analiseestatistica contribui para tomar possivel a c o n s t r u ~ a o de novas r e l a ~ i i e s , capazes de impor, por seu carater insolito, a busca das r e l a ~ i i e s de naturezasuperior que the serviriam de justificativa.

1. P. Fauconnet e M. Mauss, verbete "SocioJogie", in Grande Encyclopedie F r a n ~ a i s e , t. XXX, paris, 1901, p.

173. Naa e urn acaso se as Que pretendem encontrar em Durkheim, e, mais precisamente, em sua teoTiada defini¢o e do indicador (d., por exempio, R.K. Merton, Elements de theorie et de methode

sociologique [trad. H. Mendras], 2! ed. aumentada, Pion, Paris, 1965, p. 61), a origem e c a u ~ o do

"operacionalismo"ignorama func;ao de ruptura que Durkheimconferiacl defini¢o; com efeito, inumeras

d e f i n i ~ f i e s dit3S "operat6rias" sao simplesmente uma formalizac;ao, logicamente controlada, das ideiasdo senso comum.

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Em resumo, a i n v e n ~ a o nunca se reduz a uma simples leitura do real, porc.> mais desconcertante que seja, ja que pressupoe sempre a ruptura com 0l mesmo e com as c o n f i g u r a ~ o e s que ele propoe a p e r c e p ~ a o . Por insistir

-demais no papel do acaso na descoberta cientifica, como faz Robert K. Mertonna analise da serendipity, expomo-nos a despertar as r e p r e s e n t a ~ o e s maisingenuas da i n v e n ~ a o , resumidas no paradigma da m a ~ a de Newton: aapreensao de um fato inesperado pressupoe, pelo menos, a decisao de prestaruma a t e n ~ o metodica ao inesperado e sua virtude heuristica depende da

pertinencia e coerencia do sistema de i n d a g a ~ o e s que ele coloca em questa02

sabe-se que 0 ate da i n v e n ~ a o que conduz a s o l u ~ a o de um problemasensorio-motor ou· abstrato deve quebrar as r e l a ~ o e s mais aparentes, porserem as mais famiiiares, para fazer surgir 0 novo sistema de r e l a ~ o e s entre

.os elementos. Em sociologia como alhures, "uma pesquisa seria leva a reunir··0 que 0 vulgo separa ou a distinguir 0 que 0 vulgo confunde,,3.

1.2. A ilusiio da transparencia e 0 principio da niio-consciencia5

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Todas as tecnicas de ruptura, tais como a critica logica das n o ~ o e s , ac o m p r o v a ~ a o estatistica das falsas evidencias, a c o n t e s t a ~ a o decisoria e

metodica das aparencias, hao de permanecer impotentes enquanto a sociologia espontanea nao for atacada em seu proprio amago, isto e, na filosofiado conhecimento do social e da a ~ a o humana que Ihe serve de suporte. Asociologia so pode se constituir como ciencia realmente separada do sensocomum, com a c o n d i ~ a o de opor as pretensoes sistematicas da sociologiaespontanea a resistencia organizada de uma teoria do conhecimento dosocial cujos principios contradizem, ponto por ponto, os pressupostos dafilosofia primeira do social. Por nao existir tal teoria, 0 sociologo pode recusarostensivamente as p r e n o ~ o e s , ao mesmo tempo que edifica a aparencia deum discurso cientifico sobre os pressupostos assumidos inconscientemente11 partir dos quais a sociologia espontanea engendraria essas p r e n o ~ o e s . Como

r e p r e s e n t a ~ a o i1usoria da genese dos fatos socia is segundo a qual 0 cientistapoderia compreender e explicar tais fatos "unicamente pelo e s f o r ~ o de suareflexao particular", 0 artificialismo apoia-se, em ultima analise, no pressuposto da ciencia infusa que, enraizado no sentimento da familiaridade, serve

e 2. R.K. Merton. Elements de theorie et de methode sociologique, op. cit., p. 47-51.

oIS J. "PorexempJo, a ciencia das religioes reuniu, em urn mesmo genero, as tabus de impureza e as de purezaIS porque todos eles sao tabus; pelo contrario, estabeleceu uma cuidadosa d i s t i n ~ o entre as ritos

funerarios e a culto dos antepassados" (P. Fauconnet e M. Mauss, uSociologie" in lac. cit., p. 173).

Ut-RGSBlbl!oteca Sdcriai de eienein, Sociais A Hllm" · d · ~ - " '. "m QUe!!

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de base tam bern para a filosofia espontanea do conhecimento do mundo

social: a polemica de Durkheim contra 0 artificialismo, 0 psicologismo ou 0

moralismo e apenas 0 avesso do postulado segundo 0 qual os fatos sociais

''tern uma forma de ser constante, uma natureza que nao depende da

arbitrariedade individual e de onde derivam r e l a ~ o e s necessarias" [I:, Dur

kheim, texto n° 71. 0 mesmo afirmava Marx quando defendia que, "na

p r o d u ~ a o social de sua existencia, os homens estabelecem r e l a ~ o e s determi

nadas, necessarias, independentes de sua vontade", ou ainda Weber quando

nao aceitava reduzir 0 sentido cultural dasa ~ o e s

asi n t e n ~ o e s

subjetivas dosatores, Ao exigir do sociologo que penetre no mundo social como em urn

mundo desconhecido, Durkheim reconhece a Marx 0 merito de ter rompido

com a i1usao da transparencia: "Julgamos ser fecunda a ideia de que a vida

social deve ser explicada, nao pela c o n c e p ~ a o que tern a seu respeito os que-participam nela, mas por causas profundas que escapam a consciencia,,4 [E,

Durkheim, texto n° 8],

Semelhante convergencia explica-se facilmentes: 0 que poderiamos de

signar por principio da nao-consciencia, concebido como c o n d i ~ a o sine qua

non da c o n s t i t u i ~ a o da ciencia sociologica, e simplesmente a r e f o r m u l a ~ a o na logica dessa ciencia do principio do determinismo metodologico que

nenhuma ciencia poderia negar sem se negar como tal", E0 que dissimulamosquando exprimimos 0 principio da nao-consciencia com 0 vocabulario do

, inconsciente e, assim, transformamos urn postulado metodologico em teseantropologica, chegando a substancia apartir do substantivo ou servindo-nos

da polissemia desse termo para reconciliar 0 apego aos misterios da inte-

4. E. Durkheim, resenha de A. Labriola, "Essais sur la conception materialiste de l'histoiren, in Revue

Philosophique, dez. de 1897, vol. XLIV, 22° ano, p. 648.

5. A a c u s a ~ o de sincretismo que poderia seT suscitada pela aproximayio entre as textos de Marx,

e DUrkheim, apoiar-se-ia na confusao entre a teoria do conhecimento do social como conldiy;opossibilidade de urn discurso sociologico verdadeiramente cientifico e a teoria do sistema social

sabre esse ponto, p. e" e infra, G. BacheJard, texto nO 2, p. 108-111). No caso em que nao fosse reconhecidatal distinyio, ainda seria necessaria examinar se a aparimcia de discordancia nao edevida ao (ato deestarmos ligados a r e p r e s e n ~ o tradicional de uma pluraJidade de t r a d i ~ 6 e s teoricas; talrepresenta¢o e contestada precisamente pelo "ecletismo apaziguante" da teoria do conhecimentosociologico que, a partir da experiencia da atividade sociologica, recusa determinadas oposic;6es quese tornaram rituais em outra atividade, a do ensino da mosoFia.

6. "Se, como escreve Claude Bernard, um fenomeno se apresentasse em uma experiencia comaparencia de tal modo contraditoria que mio pudesse ser associado de forma necessaria a determinadascondic;6es de existencia, a razao deveria repeJir 0 Jato como urn fata mlo ciendfica [ ..] porque a aceita¢ode urn fata sern causa, isto e, indeterminado em suas condic;6es de exisrenciC\ nao enem maismenos do que a n e g a ~ o da ciencia" (C. Bernard, Introduction a etude de la medecine eXI,eriimenta'le, IJ.-B. Baillere et fils, Paris, 1865, cap. II, § 1).

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9] De fato, a Omca f u n ~ a o do prmclplo da nao-consclencla e afastar a Ilusaoq ~ e a antropologia possa se constituir como cii!Ocia reflexiva e, ao mesmotempo definir as c o n d i ~ 6 e s metodologicas que a tornem uma ciencia expe-

o r i m e n ~ I ' [E. Durkheim, texto nO 10; F. Simiand, texto nO 111.

se a sociologia espontanea ressurge com tal insistencia e sob disfarcestao diferentes na sociologia erudita e, sem dOvida, porque os sociologos quepretendem conciliar 0 projeto cientifico com a a f i r m a ~ a o dos direitos da

pessoa , direito a a ~ a o livre e dire ito aconsciencia clara da a ~ a o , ou, simplesmente, evitam sub meter sua pnitica aos principios fundamentais da teoriado conheCimento sociologico, voltam a encontrar, inevitavelmente, a filosofiaingenua da a ~ a o e da r e l a ~ a o do sujeito a sua a ~ a o aplicada na sociologiaespontanea por sujeitos preocupados em defender a verdade vivida de suaexperiencia da a ~ a o social. A resistencia que suscita a sociologia quandopretende desapossar a experiencia imediata de seu privilegio gnoseologicoinspira-se na mesma filosofia humanista da a ~ a o humana de determinadasociologia que, servindo-se de conceitos como, por exemplo, 0 de "motiva-

7. Embora tivesse permanecido confinado na problematica da consciencia coletiva pelos instrumentosconceituais peculiares as c i l ~ n c i a s humanas de sua epoca, Durkheirn teve a p r e o c u p a ~ o de estabelecer

a distinc;ao entre a princip ia pelo qual a sociologo tria a existimcia de regularidades nao-conscientes e

'-a- afinnac;ao de urn "inconsciente" dotado de caracteres especificos. Ao discutir a relac;ao entre as-representac;6es individuais e as representac;oes coletivas, ele escreve a seguinte: "TUdo a que pretendemos dizer, com efeito, eQue se passam fenomenos em nos que sao de natureza pSlquica e, no entanto,nao sao conhecidos do ego que nOs somas. Quanto a saber se sao percebidos por algum egodesconhecido ou 0 que podem ser fora de qualquer apreensao, isso nao nos importa. Admitamos apenasque a vida representativa se estende alem de nossa consciencia atual" (E. Durkheim, "Representationsindividuelles et representations collectives", in Revue de Metophysique et de Morale, IV, maio de 1898,reproduzido in sociologie et Philosaphie, F. Alcan, paris, 1924; citado a partir da 3! ed., P.U.F., paris, 1961,p. 25) [N.T.: Cf. E. ourkheim, "Representac;6es individuais e representac;6es coletivas", in Socia/ogio eflIosofia, trad. deJ.M. de Toledo camargo, Companhia Editora Forense, Sao paulo, 1910, p. 31-32].

8. E0 que sugere C. Levi-Strauss quando estabelece a distinc;ao entre 0 emprego que Mauss faz da noc;aode inconsciente e a notao junguiana de urn inconsciente coletivo "repleto de simbolos e, ate mesmo,de coisas sirnbolizadas que para ele formam uma especie de substrata" e quando reconhece a Mauss 0merito "de ter feito apelo ao inconsciente como ao fornecedor do carater comum e especifico dos fatossociais" (c. Levi-Strauss, "Introduction", in M. Mauss, Sociologie et Anthropa/ogie, P.U.F., Paris, 1950, p.XXX e XXXII) [N.T.: Cf. C. Levi-Strauss, "Introduc;ao a obra de Marcel Mauss", in Sociologia e antropologia,

tTad. de Lamberto puccinelli, Editora Pedagogica e Universitaria Ltda. I Editora da universidade de SaoPaulo, Sao paulo, 1914, p. 20 e 18-19]. E ainda nesse sentido que ele reconhece em Tylor a afirmatao,sem duvida confusa e equivoca, do que faz a originalidade da etnologia, a saber, "a natureza inconscientedos fenomenos coletivos" .. "Mesmo quando encontramos interpretac;Oes, estas tern sempre 0 caraterde racionalizac;6es ou elaborac;6es secundiirias: nao hci sornbra de duvida de que as razlles que noslevam a praticar urn costume, compartilhar urna crenc;a, estao muito afastadas das razlles queinvocamos para justificar tal atitude" (Anthropologie structurale, Pion, paris, 1958, p. 25).

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~ a o " ou dedicando-se por p r e d i l e ~ a o as questoes de decision-making, realiza,a sua mane ira, 0 desejo ingenuo de todo sujeito social: pretendendo perm anecer senhor e possuidor de si mesmo e de sua propria verdade, desejandoconhecer apenas 0 determinismo de suas proprias determinac;oes (em boraas considere inconscientes), 0 humanista ingenuo que existe em todos oshomens sente profundamente como uma reduc;ao "sociologista" ou "materialista" qualquer tentativa para estabelecer que 0 sentido das ac;oes maispessoais e rna is "transparentes" nao pertence ao sujeito que as realiza, mas

ao sistema completo das relac;oes nas quais e pelas quais elas se realizam.As falsas profundezas prometidas pelo vocabulario das "motivac;oes" (ostensivamente distinguidas dos simples "motivos") tern, talvez, como func;ao

, j,alvaguardar a filosofia da escolha, ornamentando-a com prestigios cientifi"cos que estao associados a busca das escolhas inconscientes. A prospecc;ao

superficial das func;oes psicologicas tais como elas sao vividas - "razoes" ou"satisfac;oes" - impede, quase sempre, a busca das func;oes socia is que as"razoes" dissimulam e cuja plena realizac;ao proporciona, por acrescimo, assatisfac;oes experimentadas diretamente9

Contra esse metoda ambiguo que permite a troca indefinida de s e r v i ~ o s entre 0 senso comum e 0 senso comum erudito, e necessario apresentar urn

segundo principio da teoria do conhecimento do social que e simplesmentea forma positiva do principio da nao-consciencia: as relac;oes socia is naopoderiam ser reduzidas a relac;oes entre subjetividades animadas por intenc;oes ou "motivac;oes" porque se estabelecem entre condic;oes e posic;oessociais, e porque, ao mesmo tempo, sao mais ieais do que os sujeitos queestao Iigados por elas. As criticas que Marx opunha a Stirner dirigem-se aospsicossoci610gos e soci610gos que reduzem as relac;oes sociais a repre

' sentac;ao que os sujeitos tern delas e acreditam, em nome de urn artificialismoIpratico, que e possivel modificar as relac;oes objetivas transformando essa• epresentac;ao: "Sancho nao deseja que dois individuos estejam 'em contradic;ao' entre si, como burgues e pro letario [ ..1, mas gostaria de ve-Ios es

tabelecer uma relac;ao pessoal de individuo a individuo. Nao considera que,no quadro da divisao do trabalho, as relac;oes pessoais se tornem, necessariae inevitavelmente, relac;oes de classes e se cristalizem como tais; assim, todo

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9. Tal e 0 sentido da critica que Durkheim dirigia a spencer: UOs fatos sociais mio sao a Simples

desenvolvirnento dos fatos psiquicos, mas as segundos nao passam, em grande parte, do prolongamento

dos primeiros no interior das consciencias. Essa p r o p o s j ~ o emuito importanteporque 0 ponto de vista

contrario expoe, a cada instante, 0 soci61ogo a tomar a causa peto efeito e reciprocamente" (De 10

division du travail social, 7" ed., P.U.F., paris, 1960, p. 341).

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o seu palavrorio reduz-se a urn desejo piedoso que ele pensa concretizarexortando os individuos dessas classes a expulsar de seu espirito a ideia desuas " c o n t r a d i ~ o e s " e de seu "privilegio" particular .. Para destruir a 'contradi¢o' e 0 'particular', bastaria rnodificar a 'opiniao' e a 'vontade",'0. Independente mente das ideologias da " p a r t i c i p a ~ a o " e da " c o m u n i c a ~ a o " as e r v i ~ o das quais, muitas vezes, elas estao, as tecnicas c1assicas da psicologiasocial inclinam-se, em decorrencia de sua epistemologia implicita, a privilegiar as r e p r e s e n t a ~ ~ e s dos in.dividuos em d.etrimento ~ a s r ~ l a ~ o e s o ~ j e t i v ~ s nas'quais estes estao envolvldos e que defmem a

" s a t l s f a ~ a o " ou a "msatls'fll9io" que os mesmos experimentam, os conflitos que enfrentam ou as

expectativas e a m b i ~ o e s que exprimem. Pelo contrario, 0 principio danao-consciencia impoe que seja construido 0 sistema das r e l a ~ o e s objetiva's nas quais os individuos se encontram inseridos e que se exprimemmais adequadamente na economia ou morfologia dos grupos do que nas'opinioes e i n t e n ~ o e s declaradas dos sujeitos. Nao e a d e s c r i ~ a o das ati:/'tudes, opinioes e a s p i r a ~ o e s individuais que tern a possibilidade de pro-,porcionar 0 principio explicativo do funcionamento de uma organizaltao,'mas a apreensao da logica objetiva da o r g a n i z a ~ a o e que conduz ao principiocapaz de explicar, por acrescimo, as atitudes, opinioes e a s p i r a ~ o e s " . Esst:i

objetivismo provisorio que e ac o n d i ~ a o

da apreensao da verdade objetivada dos sujeitos e tambem a c o n d i ~ a o da compreensao completa dar e l a ~ a o vivida que os sujeitos mantem com sua verdade objetivada emurn sistema de r e l a ~ o e s objetivas12

to. K. Marx, ldeologie allemande (tcad. J. Molitor), in Oeuvres Philosophiques, t.lX, A. castes, Paris, 1947,p.94.

t t. Essa redu¢o apsicologia encontra urn de seus modelos prediletos no estudo d o ~ , p e q u e n o s grupos,au seja, grupDs isolados de a ~ o e intera¢o abstraidos da sociedade global. Perneu-se a (onta das

pesquisas em que a estudo, em sistema fechado, dos conflitos psicol6gicos entre bandos tama a lugar

da am'llise das r e l a ~ o e s objetivas entre forc;as sociais.

IZ. Se foi necessario, para defesa da causa pedagOgica, (olocar tada a enfase na c o n d i ~ o previa da

o b j e t i v a ~ o que se impoe a qualquer procedimento sOciologico quando este pretende romper com a

sociologia espontanea, mio se tratava de reduzir a tarefa da e x p l i c a ~ o sociologica as dimensoes de

urn objetivismo: "Por sua propria existencia, a sociologia pressupoe a s u p e r a ~ o da oposil;ao ficticiaque subjetivistas e objetivistas fazem surgir arbitrariamente. Se a sociologia como c H ~ n c i a objetiva e_passivel, eporque existem relar;oes exteriores, necessarias, independentes das vontades individuais e,

quisermos, inconscientes (no sentido em que elas nao se apresentam pela simples reflexao) que 56podem ser apreendidas passando peJa o b s e r v a ~ o e e x p e r i m e n t a ~ o objetivas. [ ..1 No entanto,diferentemente da ciencia da natureza, uma antropologia total nao pode se Iimitar a uma c o n s t r u ~ o das relaC;:fies objetivas porque a experiencia das significar;fies faz parte da significar;ao total da

experiencia: a sOciologia menos suspeita de subjetivismo recorre a conceitos intermediarios e media-dares entre 0 subjetivo e 0 objetivo, tais como aliena¢o, atitude ou ethos. cabe-Ihe, com efeito,

. ~ o n s t r u i r a sistema de relar;oes que englobe, miD 56 0 sentido objetivo das condutas organizadas se-

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1.3. Natureza e cultura: substancia e sistema de r e l a ~ o e s Se 0 principio da nao-consciencia nao passa do avesso do principio do

c1ima das r e l a ~ o e s , este ultimo deve por si levar a recusar todas as tentativaspara definir a verdade de urn fen6meno cultural independentemente dosistema das r e l a ~ o e s historicas e sociais nas quais ele esta inserido. Conde-nado inumeras vezes, 0 conceito de natureza humana, a rna is simples e maisnatural das naturezas simples, sobrevive sob as especies de conceitos quesao como sua moeda corrente, por exemplo, as "tendencias" ou as " p r o p e n ~ soes" de certos economistas, as "motivac;oes" da psicologia social ou as"necessidades" e os "pre-requisitos" da analise funcionalista. A filosofiaessencialista que era solidaria com a n o ~ a o de natureza continua ainda ema ~ a o em determinada u t i l i z a ~ a o ingenua de criterios de analise, tais como 0

sexo, idade, r a ~ a ou aptidoes intelectuais, quando essas caracteristicas saoconcebidas como dados naturais, necessarios e eternos, cuja eficacia poderiaser apreendida independentemente das condic;oes historicas e sociais que osconstituem em sua especificidade para determinada sociedade e em determinado momento do tempo.

De fato, 0 conceito de natureza humana esta em a ~ a o sempre que etransgredido 0 preceito de Marx que proibe eternizar, em uma natureza, 0

produto de uma historia, ou 0 preceito de Durkheim exigindo que 0 socialseja explicado pelo social e unicamente pelo social [K. Marx, texto nO 12; E..Durkheim, texto nO 131. A formula de Durkheim conserva todo 0 seu valorcom a c o n d i ~ a o de que nao exprima a reivindicac;ao de urn "objeto real",realmente distinto do objeto das outras ciencias do homem, nem a pretensaosociologista em justificar, do ponto de vista sociologico, todos os aspectosda realidade humana, mas somente a l e m b r a n ~ a da decisao metodologica denao abdicar prematuramente do dire ito a e x p l i c a ~ a o sociologica ou, dito poroutras palavras, nao recorrer a urn principio de e x p l i c a ~ a o tirado de outraciencia, quer se trate da biologia ou psicologia, enquanto nao tiver sidocompletamente comprovada a eficacia dos metodos de e x p l i c a ~ a o propria-mente sociologica. Alem do fato de que, ao recorrer a fatores que sao pord e f i n i ~ a o trans-historicos e transculturais, corremos 0 risco de dar comoexplicac;ao isso mesmo que deve ser explicado, ficamos condenados, na

gundo regularidades mensuraveis, mas tambem as r e l a ~ 6 e s singulares que as sujeitos mantem com as

condit;oes objetivas de sua existendae com 0 sentido objetivo de suas condutas, sentido Que as possui

porque esta:o desapossados dele. Dito por outras palavras, a d e s c r i ~ o da subjetividade objetivadareenvia a descri¢o da intenoriza¢o da objetividade n (P. Bourdieu, Un Art moyen, Ed. de Minuit. Paris,

1970,2' ed., p. 18-20; l ' ed., 1965).

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melhor das hipotes.es, a explicar somente o. a s p e c ~ o . em que as i n s t i t u i ~ o e s ~ - a S s e m e l h a m , delxando escapar, como aflrma leVI-Strauss, 0 que faz sua:pecificidade h i s ~ o r i c ~ o ~ i g i n a l ! d a d e . e u l t u r a l : "Uma.disciplina c ~ o obje- .tlvo principal, senao 0 umco, e anahsar e mterpretar as d l f e r e n ~ a s eVlta todosos problemas levando em c o n s i d e r a ~ a o apenas as s e m e l h a n ~ a s . No entanto,ao mesmo tempo, perde todos os meios de estabelecer a d i s t i n ~ a o entre 0

seral, que e 0 seu objetivo, e 0 banal com 0 qual ela se contenta"" [M. Weber,

fexto nO 141.

No entanto, nao basta que as caraeteristicas atribuidas ao homem socialem sua universaIidade se apresentem como "residuos" ou invariantes colocados em evidimcia por uma analise de sociedades eoncretas para que s ~ a afastada, decisivamente, essa filosofia essenciaIista que deve a maior partede sua s e d u ~ a o ao esquema de pensamento segundo 0 qual "nao hi! nada denovo sob 0 sol": de Pareto a LUdwig von Mises nao faltam analises, aparentemente historicas, que se Iimitam a designar com urn nome sociologicodeterminados principios explicativos tao pouco sociologizados, tais como a" i n c I i n a ~ a o a criar a s s o c i a ~ o e s " , "a necessidade de manifestar sentimentospor meio de a ~ o e s exteriores", 0 ressentimento, a busea do prestigio, ainsaciabilidade da necessidade ou a libido dominandi14

• Nao seria possivel

compreender que, tao freqiientemente, os sociologos possam negar-se comotais, ao proporem sem outra justificativa determinadas e x p l i e a ~ o e s que elesso deveriam acolher como ultimo reeurso, se a t e n t a ~ a o de se justificarempelas opinioes declaradas nao Fosse r e f o r ~ a d a pela s e d u ~ a o generica dae x p l i e a ~ a o pelo simples, cuja "inefieacia epistemologiea" fai denunciadaincansavelmente por Bachelard.

t l . C. Levi-Strauss, Anthropologie structurale, op. cit., p. 19.

14. Para estabelecer que 0 azedume eritieD contra 0 capitalismo s6 poderia ser inspirado pelo ressentimenta peculiar a individuos frustrados em sua a m b i ~ o social, Von Mises deve servir-se, independentemente de qualquer especificac;ao sociologica, da propensao aautojustificac;ao duplicada pelaaspirac;ao aascensao social. Eporque teriam perdido sua oportunidade de ascensao, na sequencia dealguma inferloridade natural ("as quaJidades biol6gicas de urn homem limitam. de forma bastanteestrita, 0 campo no interior do qual ele podera prestar servir;os aos outros"), que numerosas pessoas

dirigiriam contra 0 capitalismo 0 ressentimento surgido de sua ambir;ao frustrada. Em suma, como,

segundo Leibniz, estil inscrito desde toda a etemidade na essencia de Cesar que ele hiI de atravessar 0Rubicao, assim tambem 0 destino de cada sujeito social estaria contido em sua natureza (definida peloseu aspecto psicologico 'e, por vezes, biologico). 0 essencialismo conduz, logicamente, a uma "sociodi-ceia" (L Von Mises, The Anti-capitalistic Mentality, van Nostrand, Princeton (NJ.), Toronto, Londres, NovaYorK, 1956, p. 1-33).

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1.4. Asociologia espontanea e os poderes da linguagem

Se a sociologia e uma cii!Ocia como as outras que encontra somente umadificuldade particular em ser uma ciencia como as outras, e, fundamentalmente, em decorrencia da r e l a ~ a o particular que se estabelece entre aexperiencia erudita e a experiencia ingenua do mundo social e entre asexpressoes ingenua e erudita de tais experiencias. Com efeito, nao bastadenunciar a ilusao da transparencia e adotar principios capazes de rompercom os pressupostos da sociologia espontiinea para acabar com as constni

~ o e s ilusorias que ela pro poe. " H e r a n ~ a de palavras, h e r a n ~ a de ideias",segundo 0 titulo de Brunschvicg, a linguagem corrente que, pelo fato de sercorrente, passa desapercebida, contem, em seu vocabulario e sintaxe, todauma filosofia petrificada do social sempre pronta a ressurgir das palavrascomuns ou das expressoes complexas construidas com palavras comuns que,inevitavelmente, sao utilizadas pelo sociologo. Quando aparecem dissimuladas sob as aparencias de uma e l a b o r a ~ a o erudita, as p r e n o ~ o e s podem abrircaminho no discurso sociologico sem perderem, de modo algum, a credibilidade que lhes e conferida pela sua origem: as advertencias contra a contam i n a ~ a o da sociologia pela sociologia espontanea nao passariam deexorcismos verbais se nao fossem acompanhadas por urn e s f o r ~ o feito no

sentido de fornecer avigilancia epistemologica as armas indispensaveis paraevitar a c o n t a m i n a ~ a o das n o ~ o e s pelas p r e n o ~ o e s . Sendo, muitas vezes,prematura, a a m b i ~ a o de jogar fora a linguagem comum para adotar emlugar, pura e simplesmente, uma linguagem perfeita, por ser i n t p i r : " m " n 1 ~ " construida e formalizada, corre 0 risco de desviar da analise, mais urgente,logica da linguagem comum: somente essa analise pode dar ao sociologomeio de redefinir as palavras comuns no interior de urn sistema de n O I ~ O E : S e x p ~ e s s a m e n t e definidas e metodicamente depuradas, ao mesmo temposubrhete acritica as categorias, problemas e esquemas, retirados da 1 I I , ~ ; u a comum pela lingua erudita, que a m e a ~ a m sempre se reintroduzir nagem sob os disfarces eruditos da lingua rna is formal possive!. "0 estudo

emprego logico de uma palavra, escreve Wittgenstein, permite-nos e S I = a ~ l a r a influencia de certas expressoes tipicas [...]. Essas analises procuramviar-nos das opinioes preconcebidas que nos impelem a acreditar que osdevem estar de acordo com determinadas imagens que florescem em nossalinguagem"". Por nao submetermos a linguagem comum, principal ,,,,iLll'-

15. L Wittgenstein, Le cahier bJeu et Ie cahier brun (tTad. G. Durand), Gallimard, paris, 1965, p. 89.

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.menta da " c o n s t r u ~ a o do mundo dos objetas,,16, a uma critica metodica,expomo-nos a considerar como dados determinados objetos pre-construidosnae pela Iinguagem comum. A preocupa¢o com a d e f i n i ~ a o rigorosa con-,tinua sendo inutil e! ate ' ! 1 e s ~ ~ , ~ n g a _ n a ~ o r a e.nquanto 0 ~ r i n ~ i p ~ o . unificador!c; ;dos objetos submetl.dos a d e f l m ~ a o na.o t!ver sldo submetldo a cntlca 17. , C ~ ~ o .Os fifosofos que delxam que Ihes seJa Imposta a busca de uma d e f l m ~ a o essencial do "jogo", sob pretexto. de ~ u e a ~ i n g u a ~ e ~ c o r r e ~ t e ~ t i l i ~ urnunico substantivo comum para dlzer "Jogos mfantls, Jogos ohmplcos, Jogos

de matematica ou trocadilhos", assim tambem os sociologos que organizamsua problematica cientifica em tomo de termos pura e simplesmente tiradosdo vocabulario familiar obedecem a Iinguagem que Ihes e fomecida pelosolJjetos no momenta em que j u l ~ m estar s u b ~ e t ~ d o s a ~ e ~ a s ao ':dado". As

,divisoes operadas pelo vocabulano comum nao sao as umcas pre-constru~ o e s inconscientes e incontroladas que a m e a ~ a m insinuar-se no discursosociologico e essa tecnica de ruptura que e a critica logica da sociologiaespontanea encontraria, sem duvida, urn instrumento insubstituivel na nosografia da linguagem corrente que se apresenta - pelo menos no estado dee s b o ~ o - na obra de Wittgenstein [M. Chastaing, texto nO 15]18.

16. Ct. E. cassirer, "Le langage et la construction du monde des objets", in Joumal de psychoJogie "annaleetpathoJogique, vol. 30, 1933, p. 18-44; e "The Influence of Language upon the Development ofScientific

Thought", in The Journal of Philosophy, vol. 33, 1936, p. 309-327.

17. M. Chastaing prolonga a (ritiea empreendida por Wittgenstein a respeito dos jogos IN.T.: No original,

jeux1 conceituais instigados pelos jogos de palavras a partir da palavra "jogo": "Os homens miD

funcionam IN.T.: No original, jouent do verbo jouer; este verba tambem significa brincar, jogar,representar urn papel no teatro, fingir, tocar urn instrumento musical ... Nesta c i t a ~ o , 0 predicado esemprejouer] como seus revestimentos de madeira, nem como suas instituic;oes. Nao fazern trocadilhoscomo representam urn papel no palco; mio tocam vioUna como manipulam urn paUi nao arriscamdinheiro como tern rna sortei nao danc;am uma valsa como enfrentam urn adversarioj nao brincam comuma bala como jogam bola, inclusive 'football'. Podem dizer Que seu comportamento sera diferenteconforme as circunstancias. Deveriam dizer: brincar niio ebrincar" (M. Chastaing, uJouer n'est pasjouer",inJournal de psychoJogie nonnale etpathoJogique, nO 3,julho-setembro de 1959, p. 303- 326). ACfitica

I6gica e Iingiiistica a Qual M. Chastaing submete a palavra "jogo" poderia a p l i c a r ~ s e , mais ou menosintegralmente, a nac;ao de "Iazer", as utilizac;oes comumente feitas dessa palavra e as definic;aes"essenciais" que recebe de certos sociologos: "ColoQue no lugar da velha palavra 'jogos' 0 neologismo'lazer'. Substitua, portanto, em algumas descric;6es classicas dos jogos, 'a vontade de jogar' ou 'aatividade livre' do jogador par urn lazer qualificado como desejada ou taxada de applo do individuo

sem Que voce esteja preocupado com 0 lazer dirigido e as !erias pagas, nem com a antiga oposic;aolieet-libet. Substitua 0 'prazer dejogar' pela visao hedonfstica do lazer, tendo 0 cuidado de nao cantarolarSombre dimanche IN.T.: Domingo sombrio] e depois je hais les dimanches IN.T.: Odeio os domingosl.Enfim, substitua alguns jogos gratuitos por diferentes formas de lazer que se desenroJam jora dequaJquer jinalidade utilitario, se voce tiver a possibilidade de eSQuecer a jardinagem dos operarios eempregados, inclusive as gambiarras domesticas" (ibid.).

tl . Assim, a maior parte das utilizac;6es do terma inconsciente caem no paralogisma das "essencias ocultas"que consiste, segundo Wittgenstein, em arrancar as palavras de seus contextos de utilizac;a,o e data-lasde uma significac;ao substancial (d. infra, L. Wittgenstein, texto nO 9, p. 139-141).

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Semelhante cratica daraa ao sociologo 0 meio, nao SO de dissipar 0 halosemantico (fringe of meaning, como afirma William James) que envolve aspalavras mais comuns, mas tambem controlar as s i g n i f i c a ~ o e s flutuantes detodas as metaforas - inclusive as que, aparentemente, estao fora de uso-:"

que a m e a ~ a m situar a coerencia de seu discurso em uma natureza diferentedaquela em que ele pretende inscrever suas f o r m u l a ~ o e s . Ou seja, algumasdessas imagens que poderiam ser c1assificadas segundo a natureza, biologicaou mecanica, a qual elas reenviam, ou segundo as filosofias implicitas do

social que elas sugerem: equilibrio, pressao,f o r ~ a ,

tensao, reflexo, raiz, corpo,celula, s e c r e ~ a o , cresci mento, r e g u l a ~ a o , g e s t a ~ a o , enfraquecimento, etc. Taisesquemas de i n t e r p r e t a ~ a o , tirados quase sempre da natureza fisica oubiologica, a m e a ~ a m veicular, sob a aparencia da metiifora e da homonimia,uma filosofia inadequada da vida social e, sobretudo, desencorajar a buscada e x p l i c a ~ a o especifica, fornecendo sem gran des e s f o r ~ o s uma aparencia

.. e x p l i c a ~ a o ' 9 [G. canguilhem, texto nO 161. Assim, uma psicanalise doespirito sociologico poderia, sem duvida, encontrar em inumeras d e s c r i ~ o e s do processo revolucionario, como explosao apes a opressao, urn esquemamecanico, apenas transposto. Da mesma forma, os estudos de difusaocultural recorrem, rna is freqiientemente de forma inconsciente do que cons

ciente, ao modelo dap r o p a g a ~ a o

da mancha de oleo para tentar justificar aarea e ritmo de dispersao de urn t r a ~ o cultural. Uma forma de contribuir paraa p u r i f i c a ~ a o do espirito cientifico seria analisar concretamente a logica e asf u n ~ o e s de esquemas como 0 da " m u d a n ~ a de escala" no qual nos apoiamospara transferir para 0 plano da sociedade global ou planetaria determinadaso b s e r v a ~ o e s ou p r o p o s i ~ o e s validas no plano dos pequenos gruposj como 0

da " m a n i p u l a ~ a o " ou "complo" que, baseando-se no final de contas na i1usaoda transparencia, tern a falsa profundidade de uma e x p l i c a ~ a o pelo oculto eproporciona as s a t i s f a ~ o e s afetivas da denuncia das criptocraciasj ou aindacomo 0 da " a ~ a o a distancia" que leva a pensar a a ~ a o dos meios modernosde c o m u n i c a ~ a o , segundo as categorias do pensamento magic0

2".

Ve-se que a maior parte de tais esquemas metaforicos sao comuns asa f i r m a ~ o e s ing€!nuas e ao discurso eruditoj e, de fato, ficam devendo a essa

19. Alias, nao passa de uma justa represalia: se a sociologia foi submetida a importa¢o incontrolada de

esquemas e imagens biol6gicas, a biologia teve de depurar de conotac;6es marais e politicas, em Dutra

epoca e com grande dificuldade, certas noc;6es, tais como as de "eelulan ou "tecido" (ct. infra, G.

Canguilhem, texto nO 16, p. 1 6 5 ~ 1 6 8 ) . 10. N. Chomsky mastra assim que, Iimitando-se a utilizar as termos tecnicos de forma rnetaf6rica, a

Iinguagem de Skinner revela sua inconsistencia quando e submetida a uma cTltica J6gica e Iingiiistica

(N. Chomsky, resenha de B.F. Skinner, Verbal Behavior. in Language. vol. 35. 1959, p. 16-58).

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dupla origem seu rendimento pseudo-explicativo. Como afirma Yvon Belaval,Use eles nos convencem porque nos fazem deslizar e oscilar, sem 0 nossoconhecimento, entre a Imagem e 0 pensamento, entre 0 concreto e 0

abstrato. Associada a i m a g i n a ~ a o , a linguagem transpoe, sub-repticiamente,a certeza da evidencia sensivel para a certeza da evidencia logica,,21. Ocul-

tando sua origem comum sob a aparencia do jargao cientifico, tais esquemasmistoS escapam a r e f u t a ~ a o , seja porque propoem imediatamente umae x p l i c a ~ a o global e despertam as experiencias rna is familiares (0 conceito de

"sodedade de massa" pode, por exemplo, encontrar urn paralelo na experiencia dos engarrafamentos de Paris e 0 termo " m u t a ~ a o " nao evoca, muitasvezes, mais do que a experiencia banal do inaudito); seja porque elesreenviam a uma filosofia espontanea da historia, como 0 esquema do retornociclico quando evoca somente a sucessao das e s t a ~ o e s , ou como 0 esquemafuncionalista quando nao tern outro conteudo senao a formula "isso eestudado para" do finalismo ingenuo; seja porque eles encontram esquemaseruditos ja vulgarizados, sendo que a compreensao do sociograma adota, porexemplo, a imagem invisivel das afinidades profundas entre as pessoas. Aproposito da fisica, Duhem observava que 0 cientista expoe-se sempre arecuperar nas evidencias do senso comum 05 residuos de teorias anteriores,

abandonados ai pela ciencia; considerando que tudo predispoe os conceitose as teorias sociologicos a passar para 0 dominio publico, 0 sociologo correo risco, mais do que qualquer outro cientista, de "retomar no cerne dosconhecimentos comuns, para devolve-las aciencia teorica, as p e ~ a s que estatinha deposita do ai,,22.

Sem duvida, 0 rigor cientifico nao nos obriga a renunciar a todos osesquemas analogicos de e x p l i c a ~ a o ou compreensao como e testemunhadopefa u t i l i z a ~ a o feita, eventualmente, pela fisica moderna de determinadosparadigmas - ate mesmo mecanicos - com finalidade pedagogica ou heuristica; com a c o n d i ~ a o de utiliza-Ios de forma consciente e metodica. Da mesmaforma que as ciencias fisicas tiveram de romper categoricamente com as

r e p r e s e n t a ~ o e s animistas da materia e da a ~ a o sobre a materia, assimtambem as ciencias sociais devem operar 0 "corte epistemologico" capaz de.estabelecer a s e p a r a ~ a o entre a i n t e r p r e t a ~ a o cientifica e todas as interpret a ~ o e s artificialistas ou antropomorficas do funcionamento social: e somente

:U. Y. Belaval, Les philosophes et leur langage, Gallimard, paris, 1952, p. 23.

22. P. Duhem, La theorie physique, son objet, sa structure, M. Riviere, Paris, 1954, 2! ed. revista e ampliada,p.397.

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III

com a c o n d i ~ a o de submeter os esquemas utilizados pela e x p l i c a ~ a o socio.lagica a prova da e x p l i c i t a ~ a o completa

23que sera possivel evitar a contami.

n a ~ a o a que estao expostos os esquemas rna is depurados sempre que eleapresentam uma afinidade de estrutura com os esquemas comuns. Bachelarmostra que a maquina de costura sa foi inventada quando as pessoa

deixaram de imitar os gestos da costureira: sem duvida, a sociologia tiraria melhor I i ~ a o de uma justa r e p r e s e n t a ~ a o da epistemologia das cii!ncias d

natureza se se empenhasse em pro ceder a v e r i f i c a ~ a o permanente de questa construindo verdadeiramente maquinas de costura, em vez de transpor,de forma irrelevante, os gestos esponmneos da pratica ingenua.

1.5. A tentm;ao do profetismo

Na medida em que tern mais dificuldade do que qualquer outra ciencipara se Iiberar da i1usao da transparencia e para realizar, irreversivelmente,a ruptura com as p r e n o ~ o e s j na medida em que, muitas vezes, Ihe e atribuida,volens nolens, a tarefa de responder as questoes ultimas sobre 0 futuro d

c i v i l i z a ~ a o , a sociologia esta, hoje, predisposta a manter com urn publico, quenunca se reduz completamente ao grupo dos pares, uma r e l a ~ a o mal esclarecida que corre sempre 0 risco de voltar a encontrar a lagica da r e l a ~ a o entre

o autor de sucesso e seu publico ou, ate mesmo, por vezes, entre 0 profete sua audiencia. Mais do que todos os outros especialistas, 0 socialogo estexposto ao veredicto ambiguo e ambivalente dos nao-especialistas que sesentem com a autoridade de dar credito as analises propostas, comc o n d i ~ a o de que estas despertem os pressupostos de sua sociologia espontanea, mas que sao l e v a d o ~ , por essa mesma razao, a contestar a validade deuma ciencia que eles sa aprovam na medida em que ela coincide com 0 bornsen so. De fato, quando 0 socia logo se Iimita a tomar a sua conta os objetode reflexao do senso comum e a reflexao comum sobre esses objetos, naotern mais nada a opor a certeza comum de que pertence a todos os homensfalarem de tudo 0 que e humano e julgarem qualquer discurso, ate mesmo

cientifico, sobre 0 que ehumano. E como e possivel que cada urn nao se sinturn pouco socia logo quando as analises do "socialogo" concordam completamente com as a f i r m a ~ o e s da tagarelagem cotidiana e quando 0 discursodo analista e as a f i r m a ~ o e s analisadas estao separados apenas pela barreir

23. Nessa tarefa de contrale semantico. a sociologia pade se armar naD so com 0 que Bachelard designav(

como psicanalise do conhecimento au com uma critica puramente 16gica e Iingiii5tica. mas tambem

com uma sociologia da u t i l i z a ~ o social dos eSQuemas de interpreta¢o do social.

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i

das aspaSl24 Nao e urn acaso se 0 estandarte do "humanismo" sob 0

:' al se reconciliam os que acreditam que basta ser humano para ser

:ciOIOgOe os que fazem sociologia para satisfazer uma paixao demasiadohumana pelo "humano" serve de sinal de adesao a todas as resistencias~ n t r a a sociologia objetiva, quer se inspirem na i1usao da refJexividade ouna afirma¢o dos direitos imprescritiveis do sujeito livre e criador.

o sociologo em comunhao com seu objeto nunca esta longe de sucumbir

a com placencia cumplice em favor das expectativas escatologicas que 0

grande publico intelectual tende a transferir, atualmente, para as "cienciashumanas" - alias, seria preferivel designa-Ias por ciencias do homem. Ao

aceitar definir seu objeto e as f u n ~ o e s de seu discurso em conformidade comas demandas de seu publico, apresentando a antropologia como urn sistemaC!erespostas totais as questoes ultimas sobre 0 homem e seu destino, 0

socioiogo faz-se profeta, embora a estilistica e a tematica de sua mensagems ~ a m diferentes segundo que, "sen do pequeno profeta credenciado peloEstado", ele responde como mestre de sabedoria as i n q u i e t a ~ o e s de salva¢o

intelectual, cultural ou politica de urn auditorio de estudantes; ou segundoque, praticando a politica teorica atribuida por wright Mills aos "estadistas"da ciencia, ele se e s f o r ~ a por unificar 0 pequeno reino dos conceitos sobre

os quais e pelos quais entende reinar; ou ainda segundo que, sendo pequeno profeta marginal, ele fornece ao grande publico a ilusao de ter

acesso aos ultimos segredos das ciencias do homem [M. Weber, B.M.

Berger, textos nOs 17 e 18].

A Iinguagem sociologica que, ate mesmo em suas u t i l i z a ~ o e s maiSlcontroladas, recorre sempre a palavras do lexico comum tornado em uma '"iCeP¢0 rigorosa e sistematica e que, por esse fato, se torna equivoca desdeque deixa de se dirigir unicamente aos especialistas, presta-se, mais do quequalquer outra, a u t i l i z a ~ o e s fraudulentas: osjogos de polissemia, permitidospela afinidade invisivel entre os conceitos mais depurados e os esquemascomuns, favorecem 0 duplo sentido e os mal-entendidos cumplices quegarantem ao duplo jogo profetico suas audiencias multiplas e, por vezes,contraditorias. Se, como afirma Bachelard, "todo quimico deve combater em 1si 0 alquimista", assim tambem todo sociologo deve combater em si proprioo .RfC!feta social que, segundo as exigencias de seu publico, e obrigado aencamar. A e l a b o r a ~ a o , aparentemente erudita, das evidencias que sao as

U. Prererimos deixar a cada leitor 0 trabalho de encontrar i1ustrat;oes dessa analise.

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mais bern feitas para encontrar urn publico porque sao evidi'mcias publicas ea u t i l i z a ~ a o de uma lingua com varios registros, que justapoe as palavrascomuns e as palavras tecnicas destinadas a servir-Ihes de c a u ~ a o , fomecemao sociologo sua melhor mascara quando, apesar de tudo, ele pretendedesconcertar os que encontram nele plena s a t i s f a ~ a o de suas expectativas,orquestrando de forma grandiosa seus temas favoritos e oferecendo-Ihes urndiscurso cuja aparencia de esoterismo serve, na realidade, as f u n ~ o e s exotericas de urn empreendimento profetico. A sociologia profetica volta a encon

trar, naturalmente, a logica segundo a qual 0 senso comum constroi suase x p l i c a ~ o e s quando ela se contenta em sistematizar falsamente as respostasda sociologia espontanea - obtidas pela experiencia comum de forma desordenada - as questoes existenciais: de todas as e x p l i c a ~ o e s simples, ase x p l i c a ~ o e s pelo simples e pelas naturezas simples sao as mais freqiientemente invocadas pelas scciologias profeticas que encontram nos fenomenostao familiares, como a televisao, 0 principio explicativo de " m u t a ~ o e s planetarias". "Toda verda de, afirma Nietzsche, e simples: nao sera isso umadupla mentira? Tomar alguma coisa desconhecida em alguma coisa con hecida traz alivio, tranqiiiliza 0 espirito e, alem dis so, proporciona urnsentimento de poder. Primeiro principio: uma e x p l i c a ~ a o qualquer e pre

ferivel a falta dee x p l i c a ~ a o .

como, no fundo,trata-se

de nosd e s e m b a r a ~ a r

de r e p r e s e n t a ~ o e s angustiantes, nao as observamos de muito perto como objetivo de encontrarmos os meios para chegar a elas: a primeirar e p r e s e n t a ~ a o pela qual 0 desconhecido declara-se conhecido faz tantobern que a consideramos como verdadeira".

Que esse recurso as e x p l i c a ~ o e s pelo simples tenha como f u n ~ a o tranqiiilizar ou inquietar, que esteja equipado com paralogismos da forma parspro toto, das s i s t e m a t i z a ~ o e s por alusao e elipse ou dos poderes da analogiaesponrnnea, e sempre em suas afinidades profundas com a sociologia espontanea que reside sua mola explicativa. Marx afirmava 0 seguinte: "Essas belasformulas Iiterarias que, por meio de analogias, organizam tudo em tudo

podem parecer engenhosas quando as ouvimos pela primeira vez, tanto maisque chegam a identificar coisas contraditorias entre si. Quando sao repetidas,com p r e s u n ~ a o , como se tivessem urn alcance cientifico, revelam-se simplesmente idiotas. Sao feitas para esses pedantes que veem tudo cor-de-rosa,falam a-toa e envolvem todas as ciencias com seu sentimentalismo piegas,,2'. .

25. K. Marx, fOndements de la Critique de l'Economie politique, t. I (trad. R. Dangevillel, Anthropos, paris,

1967. p. 240.

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reoria e tradif;Oo teorica

colocar sua epistemologia sob 0 signo do "por que nao?" e a historia, __ ,_,,_ cientifica sob 0 signo da descontinuidade ou, melhor, da ruptura

r n t J ~ i , Bachelard recusa a ciencia as certezas do saber d e f i n i t i v ~ para- ela so poden! progredir ao colocar perpetuamente em questao

de suas proprias c o n s t r u ~ o e s . No entanto, para que uma

IXjlei'lelllcia como a de Michelson e Morley possa conduzir a urn questionai}t\,ent:o radical dos postulados fundamentais da teoria, e necessario que exista

teo ria capaz de suscitar tal experiencia e levar a sentir urn desacordo'tao sutil quanto 0 que faz aparecer essa experiencia. A s i t u a ~ a o da sociologia/lao e de modo algum, favoravel a essas f a ~ a n h a s teoricas que, levando ai l e g a ~ o ao proprio amago de uma teoria cientifica aparentemente confirmada tornaram possiveis as geometrias nao-euclidianas ou a fisica nao-new

t o n i a ~ a . Alem disso, 0 sociologo esta condenado aos e s f o r ~ o s obscuros:exigidos pelas rupturas sempre r e c o m e ~ a d a s com as s o l i c i t a ~ o e s do senso ' ,comum, ingenuo ou erudito: com efeito, quando se volta para 0 passado ,teorico de sua disciplina, encontra nao uma teoria cientifica constituida, masuma tradif;oo. Semelhante s i t u a ~ a o favorece a divisao do dominio e p i s t e m o ~ Jlogico em dois campos cuja o p o s i ~ a o se manifesta nas r e l a ~ o e s opostas que

mantem com a mesma r e p r e s e n t a ~ a o da teoria: igualmente, incapazes deoporem it imagem tradicional da teoria uma teoria propriamente cientificaou, pelo menos, uma teo ria cientifica da teoria cientifica, uns l a n ~ a m - s e impulsivamente em uma pratica que pretende encontrar em si mesma seuproprio fundamento teo rico, enquanto outros continuam a manter com at r a d i ~ a o a r e l a ~ a o tradicionalista que as comunidades de letrados acostumaramose a manter com urn corpus no qual os principios declarados dissimulampressupostos tanto mais inconscientes pelo fato de serem rna is essenciais eno qual a coerencia semantica ou logica pode ser simplesmente a expressaomanifesta de escolhas ultimas baseadas em uma filosofia do homem e dahistoria, e nao em uma axiomatica construida de forma consciente.

Os que se e s f o r ~ a m por fazer a soma das c o n t r i b u i ~ o e s teoricas legadaspelos "pais fundadores" da sociologia nao sera que enfrentam urn empreendimento ana ogo ao dos teo ogos ou canonistas da Idade Media que reuniamem suas enormes Sumas 0 conjunto dos argumentos e questoes legados pelas"autoridades", textos can6nicos ou Padres da I g r ~ a 7 2 6 Sem duvida, os "teo-

26. ,relat;,ao tradicional a uma t r a d i ~ o observa-se sempre nos primeiros momentos da hist6ria de uma

c l e n c ~ a .. ~ c h e l a r d mastra assim que, nos livros cientificos do seculo XVIII, existe uma erudi¢o

parasltana que traduz ainda a inorganizac;ao e a dependencia da cidadela erudita em rela¢o a socie-

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ricos" contemporaneos da sociologia concordariam com Whitehead ao afirmar que "uma ciencia deve esquecer seus fundadores"j ocorre que suassinteses poderiam diferir menos do que possa parecer das c o m p i l a ~ e e s medievais: 0 imperativo de "cumulatividade" a que se submetem ostensivamente nao seria, na maior parte das vezes, simplesmente a r e i n t e r p r e t a ~ a o , por referencia a outra t r a d i ~ a o intelectual, do imperativo escolastico dac o n c i l i a ~ a o dos contrarios? Como observa Erwin Panofsky, os escolasticos"nao podiam deixar de notar que as autoridades e, ate mesmo, as diferentes

passagens da Sagrada Escritura estavam, muitas vezes, emc o n t r a d i ~ a o .

SoIhes restava, apesar de tUdo, admiti-Ias como tal e interpreta-Ias e reinterpreta-Ias indefinidamente ate que fossem reconciliadas. Eis 0 que os teo ogossempre tern feito,,27. Tal e exatamente, no essencial, a logica de uma "teoria"que, como a de Talcott parsons, nunca deixa de ser a r e e l a b o r a ~ a o indefinidados elementos teoricos artificial mente extraidos de urn corpo escolhido deautoridades

28, ou ainda a logica de urn corpus doutrinal como a obra de

Georges Gurvitch que apresenta, tanto em sua topica quanto em seu procedimento, todas as caracteristicas das coletaneas de canonistas medievais,vastos confrontos de autoridades contraditorias coroados pelas concordantiae violentes das sinteses finais 2

•• Nada se opee, de forma rna is completa, a

razao arquitetonica das grandes teorias sociologicas, capazes de digeriremtodas as teorias, todas as critic as teoricas e, ate mesmo, todas as empirias,do que a razao polemica que, "por suas dialeticas e criticas", conduziu asteorias modernas da fisicaj e, por conseqiiencia, tudo separa 0 "superobjeto","resultado de uma objetividade que apenas retem do objeto 0 que ela

dade mundana. Se, "ao tratarem do fogo no seu celebre Physyque du Monde (paris, 1870), a barao deMarivetz eGOllssier consideram como urn dever e uma glOria examinar quarenta eseis diferentes teoriasantes de proporem a carreta, que e a deles", e porque sua ciencia nao rompeu com a passado, por maisincipiente que seja, e e tambem parque, por falta de uma o r g a n i z a ~ o propria e de regras autone'mas,'

a discussao cientifica esempre concebida segundo 0 modela da c o n v e r s a ~ o mundana" (La formationde I'esprit scientif;que,Contribution c:i une psychanalyse de la connaissance objective, 41 ed. Vrin, Paris,1965, p. 27) [N.T.: Cf. G. B a c h e l a r d , A f o r m a ~ a o d o espirito cientijlco.", op. cit, p. 34]. Cf. infra, G. Bache/oro,texto nO 43, p. 284.

27. E panofsky, Architecture gothique et pensee scolastique (trad. P. Bourdieu), Ed. de Minuit. Parts, 1967,

p.118.

28. Nao e 0 aspecto menos artificial de uma obra como The Structure of Social Action de T. Parsons 0

tratamento que este autor reserva as doutrinas classicas para demonstrar sua cumulatividade.

29 . 0 tradicionalismo teartco sobrevive. talvez, pela o p o s i ~ o que encontra nos profissionais de campomais positivistas e, ate mesmo, no que eles Ihe opoem: sera necessario lembrar, com politzer, que "naO

e possivel, seja qual for a sinceridade da i n t e n ~ o e a vontade da precisao, transformar a flSica deAristoteles em fisica experimentalR l (G. politzer, Critique des jondements de 10 psychologie, Rieder,

Paris, 1928, p. 6).

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do sub-objeto, surgido das concessoes e compromissos g r a ~ a s aosse 'instauram os grandes imperios das teorias com pretensao universal

BClchelard, texto nO 19].

F considerando a natureza das obras que a comunidade dos sociologosteconhece como teoricas e, sobretudo, a forma da r e l a ~ a o a essas teorias queencoraja a logica de sua transmissao ( ~ u i t a s ~ ~ z e s , . i n d i s s o c i ~ v e l da . I ~ g i c a de sua p r o d u ~ a o ) , a ruptura com as teonas tradlClonalS e a r e l a ~ a o tradlclonal .a essas teorias nao p a ~ s a de urn c a s . ~ particular da ruptura com a s o c ~ o l o g i a ']sponmnea: com efelto, cada soclologo deve contar com determmadospressupostos eruditos que a m e a ~ a , " ? impor-Ihe suas pr?blematicas, temati:cas e esquemas de pensamento. Asslm, por exemplo, eXlstem problemas queios sociologos deixam de apresentar porque a tradi¢o profissional nao osreconhece como dignos de serem levados em c o n s i d e r a ~ a o , ou nao propoeas ferramentas conceituais ou as tecnicas que permitiriam trata-Ios de formacanonica; e, inversamente, existem questoes que eles se obrigam a formularporque as mesmas ocupam uma p o s i ~ a o elevada na hierarquia consagradados temas de pesquisa. Da mesma forma, a propria denuncia ritual dasp r e n o ~ o e s comuns corre 0 risco de se degradar em uma p r e n o ~ a o escolarbern feita para evitar 0 questionamento das p r e n o ~ o e s eruditas. J

Se e necessario utilizar contra a teoria tradicional as mesmas armasempunhadas contra a sociologia espontanea e porque as c o n s t r u ~ o e s maiseruditas tiram da logica do senso comum nao so seus esquemas de pensamento, mas tambem seu projeto fundamental: com efeito, nao operaramcom "0 simples espirito de ordem e c l a s s i f i c a ~ a o " "a ruptura" que, comoafirma Bachelard, caracteriza "0 verdadeiro espirito cientifico moderno".Quando Whitehead observa que a logica classificatoria, que se situa ajmeio-caminho entre a d e s c r i ~ a o do objeto concreto e a e x p l i c a ~ a o sistematica proporcionada pela teoria comprovada, procede sempre de uma "abstra

incompleta,,3., caracteriza perfeitamente as teorias da a ~ a o social com , )pretensao universal que, como a de Parsons, so conseguem dar as aparencias'da generalidade e exaustividade na medida em que utilizam esquemas"abstratos-concretos" completamente analogos em sua f u n ~ a o e funcionamento aos generos e especies de uma c l a s s i f i c a ~ a o aristotelica. E, com sua \

, teoria da "teoria de medio alcance", Robert K. Merton pode renunciar as·a m b i ~ o e s , atualmente insustentaveis, de uma teoria geral do sistema social,sem colocar em questao os pressupostos logicos dessas tentativas de classi-

10.A.N. Whitehead, Science and the Modem World, Mentor Book, Nova York, 1925, p. 34.

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f i c a ~ a o e c 1 a r i f i c a ~ a o conceitual, inspiradas sobretudo em objetivos pedago.

gicos e nao cientificos: 0 procedimento do cruzamento - ou segundo seu

nobre nome: " s u b s t r u ~ a o do e s p a ~ o de atributos" - deve, sem duvida, ser tao

freqiiente na sociologia universitaria (basta pensar na tipologia mertoniana

da anomia ou nas multiplas tipologias com multiplas dimensoes'tla sociologia

gurvitchiana) pelo fato de favorecer a i n t e r f e c u n d a ~ a o indefinida de urn

numero fini to de Iinhagens de conceitos de escola. Pretender adicionar todos

os conceitos legados pela t r a d i ~ a o e todas as teorias consagradas, ou preten·

der reduzir tudo 0 que existe em uma especie de casuistica do real, medianteesses exercicios didaticos de taxinomia universal que, como observa jevons,

sao caracteristicos da epoca aristotelica da ciencia social e que "estao con·

den ados a desmoronar desde que aparecerem as s e m e l h a n ~ a s ocultas que

os fenomenos contem em Si,,31 e ignorar que a verdadeira a c u m u l a ~ a o pressupoe rupturas, que 0 progresso teorico pressupoe a i n t e g r a ~ a o de novos

dados mediante urn questionamento critico dos fundamentos da teo ria que

os novas dados colocam aprova. Por outras palavras, se e verdade que toda

teoria cientifica se aplica ao dado como urn codigo historicamente constitui·

do e proviso rio que, para determinada epoca, representa 0 principio soberano

de uma d i s t i n ~ a o sem equivocos entre 0 verdadeiro e 0 falso, a historia de

uma ciencia e sempre descontinua porque 0 refinamento da grade de de·c i f r a ~ a o nunca se prossegue indefinidamente, mas termina sempre pela

s u b s t i t u i ~ a o pura e simples de uma grade por outra.

1.7. Teoria do conhecimento sociol6gico e teoria do sistema social

Uma teoria nao e 0 maior denominador comum de todas as grandes

teorias do passado, nem, a fortiori, essa parte do discurso sociologico que

nao se opoe aempiria a nao ser escapando, pura e simplesmente, ao controle

experimentalj nao e tambern a galeria das teorias canonicas na qual a teoria

se reduz ahistoria da teoria, nem urn sistema de conceitos que, reconhecendo

como unico criterio de cientificidade 0 da coerencia semimtica, se refere a

ele, em vez de se medir aos fatos, nem, no lado oposto, essa soma de

pequenos fatos verdadeiros ou de r e l a ~ o e s demonstradas aqui e la, por

diferentes cientistas e de forma desordenada, que se Iimita a ser a reinter·

p r e t a ~ a o positivista do ideal tradicional da Sumo sociologica32• A repre·

s e n t a ~ a o tradicional da teoria e a representa¢o positivista, que atribui a eoria

31 . W.S. jevons, The Principles of Science, Methuen, Londres, 1892, p. 691.

32. A recensao das p r o p o s i ~ o e s consideradas como estabelecidas apresenta urn interesse evidente se se

trata de proporcionar urn meio comado de mobilizar a informa<;ao adquirida (d. B. Berelson e G.A.

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apenas a f u n ~ a o de representar tao completa, simples e exatamente possivelJ urn corijunto de leis experimentais, rem em comum 0 seguinte: desapossar

) a teoria de sua fun¢o primordial, garantir a ruptura epistemologica conduzindo ao principio capaz de justificar c o n t r a d i ~ o e s , incoerencias ou lacunasque somente tal principio pode fazer surgir no sistema das leis estabelecidas.

No entanto, as advertencias contra a a b d i c a ~ a o teo rica do empirismo naopoderiam legitimar a i n t i m a ~ a o terrorista dos teoricos que, ao excluirem apossibilidade de teorias regionais, confinam a pesquisa na alternativa do tudoou nada, do hiperempirismo pontilhista ou da teoria universal e geral dosistema social. Sob os ape os de urgencia de uma teoria sociologica, confundem-se,com efeito, a exig€mcia insustentavel de uma teo ria geral e universaldas f o r m a ~ o e s sociais e a exigencia inelutavel de uma teo ria do conhecimento sociologico. Devemos dissipar essa confusao, encorajada pelas doutrinassociologicas do seculo XIX, para termos a possibilidade de reconhecer, semnos condenarmos ao ecletismo ou sincretismo da t r a d i ~ a o teorica, a convergencia das grandes teorias c1assicas em r e l a ~ a o aos principios fundamentaisque definem a teoria do conhecimento sociologico como fundamento dasteorias parciais, Iimitadas a uma natureza definida de fatos. Nas primeirasfrases de sua i n t r o d u ~ a o aos Cambridge Economic Handbooks, Keynes escrevia 0 seguinte: "A teoria economica nao fornece urn elenco de conclusoesestabelecidas e imediatamente aplicaveis. Trata-se de urn metodo e nao deuma doutrina, de urn instrumento do espirito, de uma tecnica de pensamento, que ajuda aquele que 0 possui a tirar conclusoes corretas". A teoria do iconhecimento sociologico, como sistema de regras que regem a p r o d u ~ a o detodos os atos e discursos sociologicos possiveis, e somente destes, e 0

principio gerador das diferentes teorias parciais do social (quer se trate, porexemplo, da teoria das trocas matrimoniais ou da teoria da difusao cultural)e, por conseqiiencia, 0 principio unificador do discurso propria mente sociologico que nao deve ser confundido com uma teoria unitaria do social". Como I

Steiner, Human Behavior;An Inventory ofScientific Findings, H a r c o u ~ Brace &. World, Nova York, 1964).

No entanto, esse genera de compiJac;ao "maquinalmente empirica" de dados descontextualizados nao

poderia seT apresentado sem usurpac;ao, da maneira como isso acontece por vezes, como urna teoriaau fragmento de urna teoria futura, cuja realizac;ao e, de fato, abandonada as pesquisas futufas. Oa

mesma forma, 0 trabalho teorico Que consiste em experimentara coerencia de urn sistema de conceitos,

ate mesmo sem referenda as pesquisas empiricas, tern urna func;ao positiva, com a condi¢o de que

nao se apresente como a propria construylo da teeria cientifica.

U, A d e f i n i ~ o social das relac;:6es entre a teoria e a prntica que tern afinidades com a oposic;:ao tradicional

entre as tarefas nobres do cientista e a paciencia minuciosa do artesao, e - pelo menos na Fran91 - com a

o p o s i ~ o escolar entre 0 brilhante e 0 serio, e denunciada tanto pelas reticencias em reconhecer a teona

quando esta se encama em uma pesquisa parcial, quante pela dificuldade em atualiza-Ia na pesquisa.

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observa Michael polanyi, "se consideramos a ciencia da natureza como urnconhecimento das coisas e estabelecemos a distin¢o entre a ciencia e 0

conhecimento da ciencia, isto e, a metaciencia, somos levados a distinguirtres niveis logicos: os objetos da ciencia, a propria ciencia e a metacienciaque inclui a logica e a epistemologia da ciencia,,34. A confusao entre a teo riado conhecimento sociologico que faz parte da metaciencia, e as teoriasparciais do social que envolvem os principios da metaciencia sociologica na

o r g a n i z a ~ a o sistematica de urn conjunto de r e l a ~ o e s e principios explicativos

de tais r e l a ~ o e s , leva 0 pesquisador a condenar-se a renunciar a fazer cienciana expectativa de que uma ciencia da metaciencia ocupe 0 lugar da ciencia,ou a considerar uma sintese necessariamente vazia das teorias gerais (ou, ate

mesmo, das teorias parciais) do social como a metaciencia que e a c o n d i ~ a o de qualquer conhecimento cientifico possivel.

34. M. Polanyi, Personal Knowledge, Routledge and Kegan paul, Londres, 1958, p. 344.

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SEGUNDA PARTE

A c o n s t r u ~ i o do objeto

2. 0 FATO ECONSTRUiDO: AS FORMAS

DA DEMISSAO EMPIRISTA

"0 ponto de vista, afirma saussure, cria 0 objeto". 0 mesmo e dizer queuma ciencia nao poderia ser definida por urn campo do real que Ihe perten

cesse. Como observa Marx, "a totalidade concreta como totalidade pensada,concreto pensado, e, de fato, urn produto do pensamento, do ate de conceberr. ..l. Tal

como aparece na mente como urn todo pensado, a totalidade eurn

produto do cerebro pensante que se apropria do mundo da (mica maneirapossivelj ora, essa maneira difere da a p r o p r i a ~ a o do mundo pela arte, religiaoou espirito pr.'itico. 0 sujeito real subsiste, tanto depois como antes, em suaautonomia fora da mente .. " [K Marx, texto nO 201. E e 0 mesmo principioepistemologico, instrumento da ruptura com 0 realismo ingenuo, que e

formulado por Max Weber: "Nao sao, afirma este autor, as r e l a ~ f i e s reaisentre as 'coisas' que constituem 0 principio da d e l i m i t a ~ a o dos diferentescampos cientificos, mas as r e l a ~ f i e s conceituais entre problemas, Eapenasnos campos em que e aplicado urn novo metodo a novos problemas e emque sao descobertas, assim, novas perspectivas que surge tambem uma nova'ciencia",2 [M . Weber, texto nO 211.

Embora as ciencias fisicas sejam divididas, por vezes, em subunidades -como a selenografia ou a oceanografia - definidas pela j u s t a p o s i ~ a o dedisciplinas diversas que se aplicam ao mesmo campo do real, isso ocorresomente com finalidade pragmatica: de fato, a pesquisa cientifica organiza-se

I. KMarx,lncroduction generale a 10 critique de ,'economie politique (tTad. M. Rubel e LEvrard), in Oeuvres,

t. I, Gallimard, Paris, 1965, p. 255-256 [N.T.: cr. K. Marx, Para a cfidea do economia politica, trad. de JoseArthur Giannotti e Edgar Malagodi, 211. ed., Abril Cultural, Sao paulo, 1978, p. 1171.

2. M. Weber, Essais sur Ja theorie de 10 science, op. cit., p. 146.

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em torno de objetos construidos que nao tern nada em comum com asunidades separadas pela p e r c e p ~ a o ingenua. Poderiamos ver os elos queainda ligam a sociologia erudita as categorias da sociologia esponamea no

fato de que, muitas vezes, ela se sub mete as c l a s s i f i c a ~ o e s por camposaparentes, sociologia da familia ou sociologia do lazer, sociologia rural ousociologia urbana, sociologia dos jovens ou sociologia da velhice. De formageral, por considerar a divisao cientifica do trabalho como partilha real do

real e que a epistemologia empirista concebe as r e l a ~ o e s entre cienciasvizinhas - por exemplo, psicologia e sociologia - como conflitos de fronteira.

Temos 0 direito de ver no principio durkheimiano segundo 0 qual "e

necessario tratar os fatos sociais como coisas" (a enfase deve ser colocadaem "tratar como") 0 equivalente especifico do golpe de estado tearico peloqual Galileu constitui 0 objeto da flsica moderna como sistema de r e l a ~ o e s quantificaveis, ou da decisao de metoda pela qual Saussure cria a lingiiisticae seu objeto estabelecendo a d i s t i n ~ a o entre lingua e palavra: e, com efeito,uma d i s t i n ~ a o semelhante que Durkheim formula quando, explicitando completamente a s i g n i f i c a ~ a o epistemolagica da regra cardial de seu metodo,afirma que nenhuma das regras implicitas que se impoem aos sujeitos sociais"volta a se encontrar inteiramente nas a p l i c a ~ o e s levadas a efeito pelos

particulares, ja que podem ate mesmo existir sem serem realmente aplicadas"'. 0 segundo prefacio de sua obra As regras do metodo sociologico diz,

com suficiente clareza, que se trata de definir uma atitude mental, e nao deatribuir ao objeto urn estatuto ontolagico [E. Durkheim, texto nO 22]. E se

essa especie de tautologia pela qual a ciencia se constitui ao construir seuobjeto contra 0 senso comum, em conformidade com os principios dec o n s t r u ~ a o que a definem, nao se impoe unicamente pela evidencia, e porquenada se opoe mais as evidencias do senso comum do que a d i s t i n ~ a o entreo objeto "real", pre-construido pel a p e r c e p ~ a o , e 0 objeto da ciencia, comosistema de r e l a ~ o e s construidas propositalmente4

3. E. Ourkheim, Les regles de la methode sociologique, 2! ed. revisada e aumentada, F. Alcan, paris, 1901;

cicada a partir da is! ed., P.U.F., Paris, 1953, p. 9 rN.T.: ct. E. ourkheim, As regras do metoda sociologico,

tfad. de Maria lsaura Pereira de Queiroz, 11!!. ed., Companhia Editora Nacional, Sao Paulo, 1984, p. 6].

4. E, sem duvida, porque a s i t u a ~ o do comec;o au recomec;o encontra-se entre as mais favoraveis a

e x p l i d t a ~ o dos principios de c o n s t r u ~ o que caraccerizam uma ciencia que a a r g u m e n t a ~ o p o h ~ m i c a desenvolvida pelos durkheimianos para imporem 0 prindpia da "especificidade dos ratas sociaisn

conserva, ainda hoje, urn valor que mio esornente arqueol6gico.

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Nao e possivel evitar a tarefa de construir 0 objeto sem abandonar abusca por esses objetos pre-construidos, fatos socia s separados, percebidose nomeados pela sociologia espontanea ' ou "problemas sociais" cuja preten

sao a existirem como problemas sociologicos e tanto maior na medida emque tern mais realidade social para a comunidade dos sociologos'. Nao esuficiente multiplicar os cruzamentos de criterios tirados da experienciacomum (basta pensar em todos os temas de pesquisa do tipo "as diferentes

formas de lazer dos adolescentes de urn grande condominio da peri feria leste

de paris") para construir urn objeto que, resultante de uma serie de divisoesreais, continua sendo urn objeto comum e nao tern acesso a dignidade deobjeto cientifico pelo simples fato de que se presta a a p l i c a ~ a o das tecnicascientificas. Sem duvida, Allen H. Barton e Paul F. Lazarsfeld tern motivos paraobservar que expressoes, tais como "consumo conspicuo" ou white-col/arcrime, constroem objetos especificos, irredutiveis aos objetos comuns, chamando a a t e n ~ a o para fatos conhecidos que, pelo simples fato da aproxima~ a o , adquirem urn n!ivo sentid07

, mas a necessidade de construir d e s i g n a ~ o e s especificas que, ate mesmo formadas com as palavras do vocabulario comum,-constroem novos objetos ao construirem novas r e l a ~ o e s entre os aspectos-das coisas, nao constitui mais do que urn indicio do primeiro grau da ruptura

'epistemol6gica com os objetos pre-construidos da sociologia espontanea.com efeito, os conceitos rna is capazes de desconcertar as n o ~ o e s comunsnao detem, em estado isolado, 0 poder de resistir sistematicamente a ogicasistematica da ideologia: ao rigor analitico e formal dos conceitos ditos'"operatorios" opoe-se 0 rigor sintetico e real dos conceitos que receberam a :

5. Numerosos soci6logos principiantes agem como se bastasse adotar urn objeto dotado de reaJidade socialpara deterem, ao mesmo tempo, urn objeto dotado. de realidade sOciol6gica: sem falar das inumer.iveismonografias de aldeia, poderiamos clmf todos as temas de pesquisa que tern como ((nica problematicaa pura e simples d e s i g n a ~ ( j o de grupos sociais OU problemas percebidos pela consciimcia (omum em

determinado momento do tempo.

6, Nao e urn acaso se determinados campos da sociologia, como 0 estudo dos meios modemos de

comunicat;.ao ou das diferentes formas de lazert sao 05 mais permeaveis as problematicas e eSQuemas

da sOciologia espontcinea: alem de existirem como temas obrigat6rios da conversa¢o comum sobre asociedade modema, esses objetos devem sua carga ideol6gica ao fato de que e ainda com ele mesmoque 0 intelectual estabelece rela¢o quando estuda a rela¢o das classes populares com a cultura. Arela¢o do intelectual com a cultura contem a verdadeira questao da rela¢o do intelectual com ac o n d i ~ a o intelectual que nunca chega a ser formulada tao dramaticamente a nao ser na questao de suarela¢o com as classes populares como classes desapossadas da cultura.

7. A.H. Barton e P.F. Lazarsfeld, ~ S o m e Functions of Qualitative Analysis in social Research", in S.M. Lipsete N.J. Smelser (eds.), sociology: The Progress Of aDecade, Prentice Hall, Englewood Cliffs (N.J.), 1961, p.95-122.

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designa¢o de "sistemicos" porque sua u t i l i z a ~ a o pressupoe apermanente ao sistema completo de suas i n t e r - r e l a ~ o e s 8 . Por rna is parcial

, parcelar que seja urn objeto de pesquisa, so pode ser definido e conlstni em f u n ~ a o de uma problemiitica te6rica que permita submeter a, interroga¢o sistematica os aspectos da rea/idade colocados em r.. : . •

. entre si pela questao que Ihes e formulada.

2.1. "As abdicm;oes do empirismo"

Hoje em dia, juntamente com toda a reflexao tradicional sobre a ciencia.reconhece-se com demasiada facilidade que toda observa¢o ou e X l p e l ' i m e n ~ t a ~ a o implica sempre a f o r m u l a ~ a o de hipoteses. A d e f i n i ~ a o do prclcel:limlen2to cientifico como dialogo entre a hipotese e a experiencia pode, entretalltO.se degradar na imagem antropomorfica de uma troca pela qual dois pal'ceiirosassumiriam papeis perfeitamente simetricos e interpermutaveisj ora, naopode esquecer, de modo algum, que 0 real nunca toma a iniciativa ja queda resposta quando e questionado. Bachelard defendia, com outras D a l a v r : ~ . que "0 vetor epistemologico [ ..1vai do racional ao real e nao, inversamente,da realidade ao geral, como era professado por todos os filosofos, desde

Aristoteles ate Bacon" [G. Bachelard, texto nO 23].

Se e necessario lembrar que "a teoria domina 0 trabalho experimentaldesde sua c o n c e p ~ a o ate as ultimas m a n i p u l a ~ o e s de laboratorio"', ou aindaque "sem teoria, nao e possivel regular urn unico instrumento, int,errlreltar •

•. Os conceitos e p r o p o s i ~ o e s exclusivamente definidos pelo seu carater "operatorio" podem Iimitar-seseT a f o r m u l a ~ o logicamente irrepreensivel de p r e n o ~ o e s e, por esse m o t i v ~ , sao para as con.ceitossistematicos e proposic;oes tearicas a que a objeto pre-construido e para a objeto construido.

colocarmos a enfase exclusivamente no carater operacional das definic;oes, corremos a risco

considerar uma simples terminologia c1assificatoria - e 0 caso de S.c. Dodd (Dimensions ofSociety.York, 1942, au "Operational Definitions operationnally Defined", inAmericanjoumal o f 5 : o d o l o ! ~ y , :XLV'III,1942-1943, p. 482-489) - como uma verdadeira teoria, deixando para a pesquisa ulterior a ~ " , . _ , . . . _ '._,

sistematicidade dos conceitos _prop.ostos.e, ate mesmo, de sua fecundidade tearica. Como observaHempel, ao privilegiar as " d e f i n i ~ o e s operacionais n em detrimento das e x i g ~ n c i a s teoricas, Iiteraturametodol6gica dedicada as ciencias sociais tende a 5ugerir que, para preparar seu futuro de disdplina

cientifica, a sociologia 56 tena de constituir uma provisao tao ampla quanto passivel de tennos

'operacionalmente definidos' e 'com uma u t i l i z a ~ o constante e univoca', como se a forrnatiioconceitos cientificos pudesse estar separada da e l a b o r a ~ o tearica. E a f o r m u l a ~ o de sistem,1!.conceituais dotados de pertinencia tearica Que esta em a ~ o no progresso cientifko: semelhantes

formulac;oes exigem a invenc;ao te6rica que nilO poderia Iimitar-se ao imperativo empirista au operacionalista da pertinencia empirica" (e.G. ~ ~ ! , FUndamentals of Concept Formation in EmpiricaJ

Research, university of Chicago press, Chicago, Londres, 1952, p. 47).

9. K.R. popper, The Logic oj Scientific Discovery, op. cit., p. 107.

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(mica leitura,,'0 e porque a r e p r e s e n t a ~ a o da experiencia como protocolo

uma constata¢o isenta de qualquer i m p l i c a ~ a o te6rica transparece em

indicios, por exemplo, na c o n v i c ~ a o , ainda bastante comum, de que. existem fatos que poderiam sobreviver tais quais 11 teoria para a qual e pela

~ a l tinham sido feitos. No entanto, 0 destine infeliz da n o ~ a o de totemismo(que 0 pr6prio Levi-Strauss aproxima do destino da histeria) bastaria paradestruir a c r e n ~ a na imortalidade cientifica dos fatos: uma vez abandonadaa teoria que os reunia, os fatos de totemismo voltam ao estado de poe ra de

dados de onde tinham sido tirados, durante algum tempo, por uma teoria ede onde poderiam ser tirados por outra teoria com a condi¢o de Ihes conferir

'd 11outro senti 0 .

Basta ter tentado uma vez sub meter 11 analise secunda ria 0 materialcoletadO em fun¢o de outra problematica, por mais neutra que esta possaser na aparencia, para saber que os data mais ricos nunca estariam em .c o n d i ~ o e s de responder completa e adequadamente a questoes para as quaise elas quais nao foram construidos. Nao se trata de contestar, por principio,avalidade da u t i l i z a ~ a o de urn material ja usa do, mas sim lembrar as con-d i ~ o e s epistemol6gicas desse trabalho de r e t r a d u ~ a o que incide sempresobre fatos construidos (bern ou mal) e nao sobre dados. Semelhante trabalho

'de i n t e r p r e t a ~ a o , cujo exemplo ja era dado por Durkheim em sua obra 0

suicfdio, poderia ate mesmo constituir 0 melhor treino para a vigilanciaepistemol6gica na medida em que exige a explicita.;ao met6dica das problemati cas e principios de c o n s t r u ~ a o do objeto que sao investidos tanto nomaterial, quanto no novo tratamento que Ihe e aplicado. Os que estao 11espera de milagres a partir da triade mitica - arquivos, data e computers -ignoram 0 que separa esses objetos construidos que sao os fatos cientificos(coletados por questionario ou inventario etnografico) dos objetos reais quesao conservados nos museus e que, pela sua "excessiva concretude", oferecern 11 i n t e r r o g a ~ a o ulterior a possibilidade de c o n s t r u ~ o e s indefinidamenterenovadas. Por esquecermos essas preliminares epistemol6gicas, ficamos

expostos a tratar diferentemente 0 identico e de uma forma identic a 0

diferente, comparar 0 incomparavel e deixar de comparar 0 comparavel, pelofato de que, em sociologia, os "dados", ate mesmo os mais objetivos, sao.obtidos pela a p l i c a ~ a o de grades (faixas etarias, de r e m u n e r a ~ a o , etc.) queimplicam pressupostos te6ricos e, por esse motivo, deixam escapar uma

to. P. Duhem, La theorie physique, op. cit., p. 277.

t t. C. Levi-Strauss, Ie totemisme aujourd'hui, P.U.F., paris, 1962, p. 7.

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i n f o r m a ~ a o que poderia ter sido apreendida por outra c o n s t r u ~ a o dos fatos'2o positivismo que trata os fatos como dados esta condenado a procederr e i n t e r p r e t a ~ o e s inconsequentes porque se ignoram como tais, ou a silTlhl •••

c o n f i r m a ~ o e s obtidas em c o n d i ~ o e s tecnicas semelhantes: em todos osconsidera a reflexao metodol6gica sobre as c o n d i ~ o e s da r e i t e r a ~ a o urn substituto da mesma reflexao sobre a r e i n t e r p r e t a ~ a o secundaria.

Somente uma imagem mutiIada do procedimento experimentaltransformar a "submissao aos fatos" no imperativo unico. Especialista de

ciencia contestada, 0 soci610go e particularmente tentado a procurarr a n ~ a no carater cientifico de sua disciplina ao sobrevalorizar as exiigelllci.!S

que ele atribui as ciencias da natureza. Reinterpretado segundo umaque e simples mente a do emprestimo cultural, 0 imperativo cientificosubmissao ao fato leva a demissao pura e simples perante 0 dado. Aprofissionais de campo das ciencias do homem que professam umaantiquada no que Nietzsche chamava "0 dogma da imaculada percepc;ao"necessario lembrar a a f i r m a ~ a o de Alexandre Koyre: "No surgimentociencia c1assica, a experiencia - no sentido da experiencia rudimentarIimitou-se a desempenhar 0 papel de obstaculo,,13.

Com efeito, ecomo se 0 empirismo radical propusesse como ideal quesoci610go se anulasse como tal. A sociologia seria menDs vulneravelt e n t a ~ o e s do empirismo se fosse suficiente lembrar-Ihe, com Poincare,"os fatos nao falam". A m a l d i ~ a o das ciencias humanas, talvez, seja 0 fatoabordarem urn objeto quefala. Com efeito, q\lando 0 soci610go pretendedos fatos a problematica e os conceitos te6ricos que Ihe permitam rn,n.trnf,

e analisar tais fatos, corre sempre 0 risco de se Iimitar ao que eafirmado .seus informadores. Nao basta que 0 soci61ogo esteja a escuta dos sujeit10s

f a ~ a a g r a v a ~ a o fiel das i n f o r m a ~ o e s e razoes fornecidas por estes,justificar a conduta deles e, ate mesmo, as razoes que propoem: ao pro'cec1edessa forma, corre 0 risco de substituir pura e simplesmente suas p r ( ) p r i i ~ p r e n o ~ o e s pelas p r e n o ~ o e s dos que ele estuda, ou por urn misto f"I'.,unp,.j'jerudito e falsamente objetivo da sociologia espontanea do "cientista" esociologia espontanea de seu objeto.

12. Cf. P. Bourdieu eJ.-C. Passeron, "La comparabilite des systemes d'education", in R. castel eJ.-c.(eds.), Education, democratie et developpement, cahiers du Centre de sociologie europeenne,Mouton, paris, Haia, 1967, p. 20-58.

t3 . A. Koyre, Etudes galiJeennes, I. AJ'aube de 10 science ,'assique, Hermann, P a r i ~ 1940, p. 7. E a ~ : ~ ~ : "As 'experiencias' que Galileu reivindica au reivindicara mais tarde, ate mesmo as que eleexecuta, nao passam, nem nunea passarao de experiencias de pensamento" (ibid, p. 72).

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A o b r i g a ~ a o de retermos simplesmente, para questionar 0 real ou osmetodos de i n t e r r o g a ~ a o do real, determinados elementos criados, na realidade, por uma i n t e r r o g a ~ a o que se ignora e .se nega como i n t e r r o g a ~ a o , e,sem duvida, a melhor forma de corrermos 0 riSCO - ao negar que a constata¢o pressupoe a c o n s t r u ~ a o - de constatar urn nada que, contra nossavontade, acabamos construindo. Poderiamos dar uma centena de exemplosde casas em que, julgando restringir-se a neutralidade ao Iimitar-se a tirardo discurso dos sujeitos os elementos de seu questiom'irio, 0 sociologo propoe

aojulgamento dos sujeitos determinadosjulgamentos formulados por outrossujeitos e corre 0 risco de situar seus sujeitos em r e l a ~ a o a julgamentos que-Ilem ele proprio sa be situar, ou considerar julgamentos superficiais, suscitados pela necessidade de responder a questoes desnecessilfias, como expres

·sao de uma atitude profunda. Ainda he! mais: 0 sociologo que recusa illc o n s t r u ~ a o controlada e consciente de seu distanciamento ao real e de suaa ~ a o sobre 0 real po de nao so impor aos sujeitos determinadas questoes que'

nao fazem parte da experiimcia deles e deixar de formular as questoessuscitadas por tal experiencia, mas ainda formular-Ihes, com toda a ingenui- idade, as questoes que ele proprio se formula a respeito deles, por uma iconfusao positivista entre as questoes que se colocam objetivamente aos'.

sujeitos e as questoes que eles se formulam de forma consciente. p o r t a n t ~ ~ 1 o sociologo tera de fazer uma dificil escolha quando, desencaminhado poruma falsa filosofia da objetividade, vier a tentar anular-se como sociologo.

Nao e surpreendente que 0 hiperempirismo, que abdica do dire ito e deverda c o n s t r u ~ a o teo rica, em beneficio da sociologia espontanea, encontre denovo a filosofia espontanea da a ~ a o humana como expressao transparentea si mesma de uma d e l i b e r a ~ a o consciente e voluntaria: inumeras pesquisasde motiva¢o (sobretudo retrospectivas) pressupoem que os sujeitos possamdeter, durante um momento, a verdade objetiva de seu comportamento (econservem dela, de forma continua, uma memoria adequada), como se ar e p r e s e n t a ~ a o que os sujeitos tern de suas decisoes ou a ~ o e s nao ficassedevendo nada as r a c i o n a l i z a ~ o e s retrospectivas14

• Sem duvida, pode-se edeve-se coletar os mais irreais discursos, mas com a c o n d i ~ a o de ver neles,

14.0 sucesso preitieD e te6rico da n o ~ o de opiniao deve-se, sem duvida, ao seguinre: ela acumula codas

as ilus6es da fiJosofia atomistica do pensamento e da filosofia espontanea das relac;6es entre 0

pensamento e a a ~ o . a c o m e ~ r pela ilusao do papeJ privilegiado da expressao verbal como indicador

das disposic;oes ao ato. Nada de surpreendente se as sociologos que tern uma confianc;a cega nas

sondagens estejam exposcos, continuamente, a confundir as declarac;6es de a¢o - au pior - asdeclarac;oes de inten¢o com as probabilidades de a¢o.

51\.1FRGS '. " ' - - ..Biblioteca Sr.tor:ai cb Ciencias Sociais e Humanidades

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nao a e x p l i c a ~ a o do comportamento, mas urn aspecto do comportamentoser explicado. Sempre que acredita eludir a tarefa de construir os fatosf u n ~ a o de uma problematica teorica, 0 sociologo submete-se a uma ( ' n r l ~ t ' , , , ~ a o que se ignora e que ele ignora como tal, coletando no maximo U I " ~ U ' ' ' 0 1 ficticios forjados pelos sujeitos para enfrentarem a s i t u a ~ a o de pesquisa

responderem a questoes artificiais, ou ainda, ao artificio por excelenciaausencia de questoes. portanto, ao renunciar ao seu privilegio epiistE!molo'l!i

co, 0 sociologo estara sancionando uma sociologia espontanea.

2.2. Hipoteses ou pressupostos

Seria muito facil mostrar que toda pratica cientifica, ate mesmo etudo quando, obcecadamente, reivindica 0 empirismo rna is cego,pressupostos teoricosj alem disso, 0 sociologo so podera escolheri n t e r r o g a ~ o e s inconscientes, portanto, incontroladas e incoerentes, eelenco de hipoteses metodicamente construidas para serem submetidasprova experimental. Ao recusar a f o r m u l a ~ a o explicita de urn elencohipoteses baseado em uma teo ria, ele fica condenado a aplicar

que nao sao diferentes das p r e n o ~ o e s da sociologia espontanea e dagia, isto e, as questoes e conceitos que temos como sujeitos sociais qU.anul

nao desejamos te-Ios como sociologos. Assim, Elihu Katz mostra comoautores da enquete, publicada com 0 titulo The People's Choice, naoguiram encontrar na pesquisa baseada em uma p r e n o ~ a o - a "massa"publico atomizado de receptores - os meios de apreender empiricamentefen6meno rna is importante em materia de difusao cultural, ou seja, 0

em do is tempos" (two-step flow) que so poderia ser estabelecido mediantuma ruptura com a r e p r e s e n t a ~ a o do publico como massa desprovidaqualquer estrutura 5 [E. Katz, texto n° 241.

U. E. Katz, "The TWo-Step Flow of Communication: An Up-ta-Date Report on an Hypothesis", inOpinion Quarterly. vol. 21, spring 1957, p. 61-78: "Entre todas as idejas apresentadas em The

Choice, a hipotese do fluXQ em dais tempos e, provavelmente, a menos rundamentada

empiricos. A razao disso e clara: 0 projeto de pesquisa miD previa a importancia que

interpessoais revestiriam na analise dos dados. Considerando a imagem de urn publico atomizadoinspirava tantas pesquisas sabre as mass media, 0 mais surpreendente e que as

interpessoais nao tenham chamada, nem urn pOlleD, a a t e n ~ o dos pe5quisadores". Para

f o ~ uma tecnica pode excluir urn aspecto do feoomeno, basta saber que, com outras proble,mitiicas.outras tecnicas, as sociologos rurais e os etn6logos tinham apreendido, M muito tempo,two-step fJow. sao abundantes os exemplos de tais descobertas que enecessario redescobrir:Barton e P.F. Lazarsfeld lembram que 0 problema dos "grupos informais", ja conhecido hit muitooutrossociologos, so apareceu muito tarde e como uma "surpreendente descoberta" para as l,es(IUi••do<

da Western Electric (cf. "Some Functions of Q ualitative Analysis in Social Research",'oc. cit.).

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que conseguisse escapar aos pressupostos da sociologia espon

""",riotica sociologica nunca chegaria a realizar 0 ideal empirista da" sem pressupostos, nem que fosse pelo fato de utilizar instrumentos

de g r a v a ~ a o . "Estabelecer urn dispositivo tendo em vista uma

e formular uma questao anatureza", dizia Max Planck. A medida elirument()s de m e d i ~ a o , e, de forma geral, todas as o p e r a ~ o e s da pratica

desde a e l a b o r a ~ a o dos questionarios e a c o d i f i c a ~ a o ate a

estatistica, constituem outras tantas teorias em ato, enquanto pro

lienltos de c o n s t r u ~ a o , conscientes ou inconscientes, dos fatos e dasentre os mesmos. Quanto menos consciente for a teo ria implicitaem

imlnalla pratica - teoria do conhecimento do objeto e teoria do objetoserao as possibilidades de que ela s ~ a mal controlada, portanto,

Ilu!lta(la ao objeto em sua especificidade. Ao designar por metodologia,acontece freqiientemente, 0 que nao passa do decalogo dos preceitos

~ l O g i o o s , e s j c a r n 0 1 t e i ' l - s e a questiio metodologica propriamente dita, ou s ~ a , i , = : : ~ ; : ~ e = n t r e as recnicas (metricas ou nao) por referencia a s i g n i f i c a ~ o

do tratamento a que sera submetido, pelas tecnicas escolhidas,e a s i g n i f i c a ~ a o teorica das questoes que se pretende formular ao

ao qual sao aplicadas.

por exemplo, uma tecnica aparentemente tao irrepreensivel e inevitavel

1 ! i ~ ~ ~ : q ~ a . i ~ d ~ a amostragem ao acaso pode eliminar completamente 0 objeto), sempre que tal objeto fique devendo alguma coisa aestrutura

" , tillS grupos, cuja supressao, justamente, e a razao de ser da amostragem ao'ahso. Assim, Elihu Katz observa que, "para estudar esses canais do fluxo de

lIIf1uencia que sao os contatos entre individuos, 0 projeto de pesquisaflWelou-se inoperante pelo fato de te r recorrido a uma amostra ao acaso deUfdlviduos abstraidos de seu meio ambiente social I ..J. Na medida em quealia individuo de uma amostra ao acaso so pode falar por si proprio, osliulders de opiniao, na pesquisa eleitoral de 1940, so podiam ser identificados,.Ia c r e n ~ a em sua d e c l a r a ~ a o " . Alem disso, 0 autor observa que essa tecnica

"nao permite comparar os leaders aos respectivos seguidores, mas somenteQsleaders e os nao-Ieaders em geral"". Ve-se ai como a tecnica, na aparencia,mals neutra aplica uma teoria implicita do social, ou s ~ a , a de urn publico~ n c e b i d o como "massa atomizada", isto e, no caso, a teoria consciente ou~ C O n s c i e n t e m e n t e aplicada na pesquisa que, por uma especie de harmonia-II"

,:1'<

II . E. Katz, loc. cit., p. 64.

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p ~ - " ; ' " "''''' ,"h"d' r o m " ~ rem;,,". 'Mm '"n, do obj. . .r, ao mesmo tempo, outra d e f i n i ~ a o dos objetivos da pesquisa teriam exigido f

a u t i l i z a ~ a o de outra tecnica de amostragem, por exemplo, a sondagem por t

segmentos: ao constituir 0 conjunto dos membros a partir de un ida des sociaisformadas, por sua vez, ao acaso (estabelecimento industrial, familia, aldeia),encontra-se 0 meio de estudar a rede completa de r e l a ~ i i e s de c o m u n i c a ~ a o que podem se estabelecer no interior desses grupos, ficando claro que 0

metodo, bern adequado no caso particular, obtem tanto menos eficacia

quanto 0 segmento e mais homogeneo e quanto 0 feniimeno cujas v a r i a ~ i i e s se pretende estudar esta mais dependente do criterio segundo 0 qual 0

segmento e definido. portanto, e necessario submeter a i n t e r r o g a ~ a o epistemologica todas as o p e r a ~ i i e s estatisticas: "Nao se deve pedir, nem levar adizer a melhor estatistica (como, de resto, a menos correta) a nao ser 0 queela diz e da maneira e sob as c o n d i ~ i i e s em que ela 0 diz,,18. Para obedecerverdadeiramente ao imperativo formulado por Simiand e para nao levar aestatistica a dizer uma coisa diferente do que ela diz, e necessario nosperguntar, em cada caso, 0 que ela diz e po de dizer, dentro de quais limitese sob quais c o n d i ~ i i e s If. Simiand, texto nO 251.

2.3. AJalsa neutralidade das tecnicas: objeto construfdo ou arteJato

o imperativo da "neutralidade etica" que Max Weber opunha a ingenuidade moralizante da filosofia social tende a se transformar, hoje, em urn

mandamento rotinizado do catecismo sociologico. Se dermos credito asr e p r e s e n t a ~ i i e s mais triviais do preceito weberiano, basta ria estarmos prevenidos contra a parcialidade afetiva e as s o l i c i t a ~ o e s ideologicas paraficarmos Iivres de qualquer i n t e r r o g a ~ a o epistemologica sobre a s i g n i f i c a ~ a o dos conceitos e a pertinencia das tecnicas. A i1usao de que as o p e r a ~ i i e s "axiologicamente neutras" sao tambem "epistemologicamente neutras" Iimi-

ta a critica de urn trabalho sociologico, 0 proprio ou 0 dos outros, ao exame,

f7. Da mesma forma, C. Kerr e LH. Fisher mostram que, nas pesquisas da escola de E. Mayo, a tecnica e os

pressupostos apresentam afinidades: a observa9io cotidiana dos cantatas face a face e das r e l a ~ 6 e s interpessoais no interior da empresa implica a convic¢o difusa de que "0 pequeno grupo de trabalho

ea celula essencial na organiza¢o da empresa e que esse grupo e seus membros obedecem essencial-mente a determinat;oes afetivas" L1. "0 sistema de Mayo resulta automaticamente de duas escolhasessenciais. Uma vez realizadas tais escolhas, tudo estava dado: metodos, campo de interesse, p r e s c r i ~ 6 e s praticas, problemas adotados para a pesquisa" [e, em particular] " i n d i f e r e n ~ aos problemas de ciasse,

ideologia, poder" (UPlan sociology: The Elite and the Aborigines", in M. Komarovsky led.], Common

Frontiers a/the Social Sciences, The Free Press, Glencoe, ilL, 1957, p. 281-309).

18. F. Simiand, Statistique et experience, remarques de methode, M. Riviere, paris, 1922, p. 24.

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sempre facil e muitas vezes esteril, de seus pressupostos ideolagicos e deseUs valores ultimos. 0 debate sem fim sobre a "neutralidade axiolagica"serve, quase sempre, de substituto adiscussao propria mente epistemolagicasobre a "neutralidade metodolagica" das tecnicas e, por esse motivo, forneceuma nova c a u ~ a o a ilusao positivista. Por urn efeito de deslocamento, 0

interesse pelos pressupostos eticos e pelos valores ou fins ultimos evita 0

exame critico da teo ria do conhecimento sociolagico que esta implicada nos

atoS mais elementares da pratica.

por exemplo, nao sera por que se apresenta como a r e a l i z a ~ a o paradigmatica da neutralidade na o b s e r v a ~ a o que, entre todas as tecnicas de coletade dados, a entrevista nao-diretiva e tao freqiientemente exaltada, em

detrimento, por exemplo, da o b s e r v a ~ a o etnografica que, ao estar equipadacom as regras impositivas de sua t r a d i ~ a o , realiza rna is completamente 0

ideal do inventario sistematico, operado em uma s i t u a ~ a o real? Temos 0

direito de suspeitar da preferencia que goza tal tecnica, quando observamosque os "tearicos", metodalogos e utilizadores do instrumento que, no entanto,sao pouco avaros de conselhos e i n s t r u ~ i i e s , nunca tentaram se interrogarmetodicamente sobre as d i s t o r ~ i i e s especificas operadas por uma r e l a ~ a o social tao profundamente artificial: quando nao sao controladas as pressup o s i ~ i i e s implicitas e, nesse caso, os sujeitos sociais estao igualmente pre dispostos a falar livre mente de todas as coisas e, antes de tUdo, de si praprios,e tambem aptos a adotar uma r e l a ~ a o , ao mesmo tempo, constrangedora eintemperante com a linguagem, a entrevista nao-diretiva que rompe areciprocidade das trocas costumeiras (alias, exigivel de forma desigual,segundo os meios e as s i t u a ~ i i e s ) incita os sujeitos a produzir urn arteJato

verbal, alias, desigualmente artificial, segundo a distancia entre a rela¢o coma linguagem favorecida por sua classe social e a r e l a ~ a o artificial com alinguagem que e exigida deles. Para esquecer de colocar em questao aneutralidade das tecnicas mais neutras do ponto de vista formal, e necessariodeixar de perceber, entre outras cOisas, que as tecnicas de pesquisa sao

outras tantas tecnicas de sociabilidade, qualificadas do ponto de vista social[L. Schatzman e A. strauss, texto nO 261. A o b s e r v a ~ a o etnografica, que e paraa e x p e r i m e n t a ~ a o social 0 que a o b s e r v a ~ a o dos animais em meio natural epara a e x p e r i m e n t a ~ a o em laboratario, faz sentir 0 carater ficticio e f o r ~ a d o da maior parte das s i t u a ~ i i e s sociais criadas por urn exercicio rotineiro dasociologia que e levado tanto mais a ignorar a " r e a ~ a o no laboratOrio", quantoesta limitado ao conhecimento do laboratario e dos instrumentos de laboratario, testes ou questionarios.

Da mesma forma que nao existe g r a v a ~ a o perfeitamente neutra, assimtambem nao ha perguntas neutras. 0 socialogo que nao sub mete suas

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proprias i n t e r r o g a ~ o e s a i n t e r r o g a ~ a o sociologica nao estaria em corldil;oe!de fazer uma analise sociologica verdadeiramente neutra das respostaselas suscitam. Por exemplo, uma pergunta tao univoca na aparencia

esta: "Voce trabalhou hoje1" A analise estatistica mostra que ela " U ~ , ( ; I t O respostas diferentes por parte dos camponeses da Cabilia ou dos carnp,om!seIdo sui da Argeliaj ora, se estes se referissem a uma d e f i n i ~ a o "objetiva"

trabalho - isto e, a d e f i n i ~ a o que a economia moderna tende a inculcaragentes economicos - deveriam fornecer respostas semelhantes. Ecom

c o n d i ~ a o de que ele se interrogue sobre 0 sentido de sua propria per·gUlntaJem vez de tirar a conclusao precipitada de que as respostas sao absurdasdadas de rna fe, que 0 sociologo tera algumas possibilidades de de5;collrir q u ~ a d e f i n i ~ a o do trabalho que esta implicita em sua pergunta nao CO,"reilpOlndl

a d e f i n i ~ a o que as duas categorias de sujeitos implicam em suas res.poiltail"

Ve-se como uma pergunta que nao e transparente para quem a formulaobnubilar 0 objeto que, inevitavelmente, ela constroi, embora nao tenhafeita propositalmente para construi-Io U.H. Goldthor.pe e D. Lockwood,nO 271. Considerando que e possivel perguntar seja la 0 que for a quemque seja e que todo sujeito tern quase sempre suficiente boa vontaderesponder, no minimo, qualquer coisa a qualquer pergunta, mesmo que

seja irreal, 0 questionador que, por falta de uma teoria do questionario,se interroga sobre a s i g n i f i c a ~ a o especifica de suas perguntas, corre 0

de encontrar facilmente uma garantia do realismo de suas perguntasrealidade das respostas recebidas'o: interrogar, como faz Daniel Lerner,

proletarios de paises subdesenvolvidos sobre sua aptidao a se Drc)iel:arl!D

nos herois preferidos de cinema, quando nao e sobre sua r e l a ~ a o com ade jornais, e correr 0 risco bern evidente de coletar umf/atus vocis quecomo unica s i g n i f i c a ~ a o a que Ihe for conferida pelo sociologo ao tr:>t;,-I,

como urn discurso significante21• sempre que 0 sociologo for inc:onlsci.ente l e ~

t9 . P. Bourdieu, Travail et travaWeurs en Algerie, 2'" parte, Mouton, paris, Haia, 1962, p. 303-304.

20. Se a analise secundaria dos documentos fomecidos p e , a ~ : a ' ~ ' ~ S " : ' i n ~ g ~ e n ~ ; u ~ ~ a = ~ ~ ~ ~ i ~ ~ : ~ ~ ~ ~ : ~ s ~ 2 ~ sempre passivel e legitima,eporque e aro que as sujeitoscoisa e mio revelem nada em suas respostas do que sao: sabe-se, por exempio, que as

as recusas em responder podem seT interpretadas. Todavia, a r e c u p e r a ~ o do sentido que,

tudo, eles fomecem pressupoe urn trabalho de r e t i f i c a ~ o , nem que fosse para saber a qual

- mio enecessariamente a Que Ihes foi formulada - corresponde verdadeiramente sua resposta.

2t. D. Lerner, The passing of Traditional Society, The Free Press of Glencoe, Nova York, 1958. Sem

em uma critica sistematica dos pressupostos ideol6gicos implicados em urn questionario que, em

perguntas, reser'la somente duas sobre 0 trabalho e 0 estatuto socioeconomico (contra 87 sobre

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rela¢O a problematica implicada em suas perguntas, privar-se-a de compreender a problematica que os sujeitos implicam em suas respostas: nessecaso, estao preenchidas as c o n d i ~ o e s para que passe desapercebido 0 equivoco que leva a descrever, em termos de ausimcia, determinadas realidadesdissimuladas pelo proprio instrumento da o b s e r v a ~ a o e pela i n t e n ~ a o , socialmente condicionada, do utilizador do instrumento.

por mais fechado que sE\ia, 0 questionario nao garante necessaria mentea univocidade das respostas pelo simples fato de submeter todos os sujeitos

a perguntas formalmente identicas. pressupor que uma pergunta tern 0

mesmo sentido para sujeitos sociais separados pelas d i f e r e n ~ a s de cultura,associadas a origem de classe, e ignorar que as diferentes Iinguagens naodiferem apenas pela amplitude de seu lexico ou grau de a b s t r a ~ a o , mastam bern pelas tematicas e problematicas que veiculam. A critica feita porMaxime Chastaing ao "sofisma do psicologo" aplica-se sempre que for ignorada a questao da significa¢o diferencial que as perguntas e as respostasrevestem real mente segundo a condi¢o e a p o s i ~ a o social das pessoasinterrogadas: "0 estudante que confunde sua perspectiva com a das c r i a n ~ a s estudadas acaba coletando a propria perspectiva no estudo em que julgaestar coletando a das c r i a n ~ a s [ ..J. Quando pergunta: "Sera a mesma coisa

trabalhar e brincar1 Qual a d i f e r e n ~ a que existe entre 0 trabalho e 0 jogol",acaba impondo, pelos substantivos propostos pela sua pergunta, a d i f e r e n ~ a estabelecida pelos adultos que parece estar sendo colocada em questao porele [ ..J. Quando 0 entrevistador c1assifica as respostas - nao segundo ostermos que as constituem, mas segundo 0 sentido que Ihes daria se eleproprio as tivesse proferido - nas tres categorias do jogo-facilidade, jogo-inutilidade e jogo-Iiberdade, ele f o r ~ a os pensamentos infantis a se situarem emseus compartimentos filosoficos"". Para escapar desse etnocentrismo Iin-

giiistico, nao basta, como ja vimos, submeter as a f i r m a ~ o e s coletadas pelaentrevista nao-diretiva a analise de conteudo, correndo 0 risco de nos deixarmos influenciar pelas n o ~ o e s e categorias da lingua utilizada pelos sujei

tos: so e possivel nos Iibertarmos das p r e - c o n s t r u ~ o e s da Iinguagem, quer se

mass media, cinema, jamal, radio, televisao), podemos observar que uma teoria que leva em conside-

r a ~ o as condic;oes objetivas de existencia do 5ubproletiuio e, em particular, a instabilidade generalizadaque as define, pode explicar a aptidao do 5ubproletario para se imaginar como merceeiro au jomalista, eate mesmo da modalidade particulardessas "projec;oes", quando afinal a "teoria da modemiza¢o" proposta

por Lerner e mpotente para justificar a r e J a ~ o que 0 subproletario manrem com 0 traballlO au 0 futuro.

~ p e s a r de brutal e grosseiro, esse criteria permite, segundo parece, estabelecer a distinc;ao entre urn

mstrumento ideolOgica, condenado a produzir urn simples one/ato, e urn instrumento cientifico.

12. M. Chastaing, "Jouer n'est pas jouern, loc. cit.

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trate da Iinguagem do cientista ou da Iinguagem de seu objeto, ao instaurar_ .

mos a d i a h ~ t i c a que leva as c o n s t r u ~ o e s adequadas pelo confronto metodicode dois sistemas de p r e - c o n s t r u ~ o e s 2 3 [C. Levi-Strauss, M. Mauss, B. Malinovski, textos n°S28, 29 e 30].

Ainda nao foram tiradas todas as conseqiiencias metodologicas do fato

de que as tecnicas mais c1assicas da sociologia empirica estao condenadas,

por sua propria natureza, a criar s i t u a ~ o e s de e x p e r i m e n t a ~ a o ficticia, essencialmente, diferentes das e x p e r i m e n t a ~ o e s socia is produzidas, continua

mente, pelo desenrolar da vida social. Quanto rna is as condutas e atitudesestudadas dependerem da conjuntura, tanto rna is a pesquisa corre 0 risco

de se Iimitar a apreender, na conjuntura particular permitida pela s i t u a ~ a o de enquete, atitudes e opinioes que nao tern valor alem dos Iimites de tal

s i t u a ~ a o . Assim, as pesquisas sobre as r e l a ~ o e s entre as classes e, rna is

precisamente, sobre 0 aspecto politico de tais r e l a ~ o e s , estao condenadasquase inevitavelmente a chegar a conclusao do enfraquecimento dos confli-tos de classe porque as exigencias tecnicas as quais elas devem sesub meter levam-nas a excluir as s i t u a ~ o e s de crise e, por conseguinte,tornam dificil apreender ou preyer as condutas que surgiriam de umas i t u a ~ a o de conflito. Como observa Marcel Maget, enecessario "referirmo

nos a historia para descobrir as constantes (se e que elas existem) der e a ~ o e s a novas s i t u a ~ o e s . A novidade historica exerce a f u n ~ a o de'reativo' para revelar as virtualidades latentes. Dai, a utilidade de acompanhar 0 grupo estudado ao encontrar-se perante novas s i t u a ~ o e s ; de fato,a e v o c a ~ a o dessas s i t u a ~ o e s nao passa de urn mal menor porque nao epossivel multiplicar indefinidamente as perguntas,,24.

Contra a definil;ao restritiva das tecnicas de coleta dos dados que leva aconferir ao questionario urn privilegio indiscutivel e a considerar simplesmente como substitutos aproximativos da tecnica regia determinados me-

todos que, no entanto, sao tao codificados e tao experimentados quanto os

da pesquisa etnografica (com suas tecnicas especificas, d e s c r i ~ a o morfologica, tecnologia, cartografia, lexicologia, biografia, genealogia, etc.), e necessario restituir aobserva¢o rnetOdica e sistematica seu primado epistemologico".

23.Assim, a entrevista nao-diretiva e a amllise de conteudo naD poderiam ser utilizadas como uma especiede padrao absoluto, mas devem fomecer urn meio de controlar, continuamente, tanto a sentido das

perguntas formuladas, Quanta as categorias segundo as quais as respostas sao analisadas e interpretadas.

24. M. Mager, Guide d'etude directe des comportements culturels, C.N.R,S' I Paris, 1950, p. XXXI.

25. Encontrar-se-a uma apresentac;ao sistematica de ta l metodologia na obm de Marcel Magee, citada na

nota de rodape anterior.

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Em vez de constituir a forma rna is neutra e mais controlada do estabelecimento dos dados, 0 questiomlrio pressupoe todo urn conjunto de exclusoes,nem todas escolhidas, e que sao tanto rna is perniciosas enquanto permane

cerem inconscientes: para saber estabelecer urn questiomlrio e saber 0 quefazer com os fatos que ele produz, e necessario saber 0 que faz 0 questionario,isto e, entre outras coisas, 0 que nao po de fazer. Sem falar das perguntas queas normas sociais que regulam a s i t u a ~ a o de pesquisa proibem que sejamformuladas, nem daquelas que 0 sociologo deixa de formular ao aceitar uma

d e f i n i ~ a o social da sociologia que nao passa do decalque da imagem publicada sociologia como referendo, as perguntas mais objetivas - ou seja, as que

incidem sobre as condutas - Iimitam-se a coletar 0 resultado da o b s e r v a ~ a o efetuada pelo sujeito sobre suas proprias condutas. Assim, a i n t e r p r e t a ~ a o so e valida se se inspirar na i n t e n ~ a o expressa de discernir metodicamente

entre as a ~ o e s e as d e c l a r a ~ o e s de i n t e n ~ o , assim como as d e c l a r a ~ o e s dea¢o que podem manter r e l a ~ o e s com a a ~ a o que vao do exagero valorizanteou da omissao por p r e o c u p a ~ a o com 0 segredo ate as d e f o r m a ~ o e s , reinterp r e t a ~ o e s e, inclusive, aos "esquecimentos seletivos"; semelhante i n t e n ~ a o pressupoe que 0 pesquisador encontre 0 meio de operar cientificamente tald i s t i n ~ a o pelo proprio questionario, ou por uma u t i l i z a ~ a o particular dessa

tecnica (basta pensar nas pesquisas sobre os o r ~ a m e n t o s ou o r ~ a m e n t o s tempo como q u a s e - o b s e r v a ~ a o ) , ou ainda pela o b s e r v a ~ a o direta. Nessecaso, e levado a inverter a r e l a ~ a o que alguns metodologos estabelecementre 0 questionario, simples inventario de a f i r m a ~ o e s , e a o b s e r v a ~ a o dotipo etnografico como inventario sistematico de atos e objetos cUlturais26

: 0

questionario nao passa de urn dos instrumentos da o b s e r v a ~ a o , cujas vantagens metodologicas - por exemplo, a aptidao para coletar dados homogeneosigualmente suscetiveis de urn tratamento estatistico - nao devem dissimularos Iimites epistemologicos; assim, alem de nao ser a tecnica mais economicapara apreender as condutas normalizadas - cujos processos "regulados" comtodo 0 rigor sao altamente previsiveis e, por conseguinte, podem ser apreen

didas g r a ~ a s a o b s e r v a ~ a o ou it i n t e r r o g a ~ a o experiente de alguns informadores - ainda corre 0 risco, nas u t i l i z a ~ o e s mais ritualizadas, de ignorar esse

26. Ao colacaT todas as cecnicas etnognlficas na categoria desvalorizada da qualitative analysis, as queprivilegiam absolutamente a "quantitative analysis" fiearn condenados a veT ai simplesmente urn

expedience por uma especie de etnocentrismo metodol6gico que leva a referi-Ias a estatistica como se

fosse sua verdade, por naD verem ai rnais do que uma "quase-estatistica" na Qual poderiam ser

encontradas " q u a s e - d i s t r i b u i ~ o e s n . ~ Q u a s e - c o r r e l a t ; o e s " e "Quase-dados empiricos": "A reuniao e analisedos quase-dados estatisticos podem, sem duvida, ser praticadas de forma rnais sistematica do que a

foram anteriormente, pelo menos, se e adotada a estrutura 16gica da analise quantitativa para ser

conservada presente na mente e tirar dai advertencias gerais e diretivasn (A.H. Barton e P.F. Lazarsfeld,

"Some Functions of Qualitative Analysis in Social Research n, in loc. cit).

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aspecto das condutas e, ate mesmo, por urn efeito de deslocamento,

lorizar 0 proprio projeto de apreende-Ias".

Ocorre que os metodologos recomendam 0 recurso as tecnicas c1alssical

da etnologiaj no entanto, ao transformarem a m e d i ~ a o na medida deas coisas e as tecnicas de m e d i ~ a o na medida de toda a tecnica, so c o n s l ~ g l l e l l l i

ver nisso os apoios subalternos ou expedientes para uencontrar ideias"

primeiras fases de uma pesquisa28 e, por conseguinte, excluem a q U ' ~ S { i ~ O propria mente epistemologica das r e l a ~ o e s entre os metodos da etnologia

os da sociologia. A ignorancia reciproca e tao prejudicial para 0 progressoduas disciplinas, quanto 0 entusiasmo desmedido capaz de suscitar aincontrolada de aspectos peculiares a cad a uma delasj alias, as duas atitwiesnao sao exclusivas. A r e s t a u r a ~ a o da unidade da antropologia social (enten-dida no sentido pleno do termo e nao como sinonimo de etnologia) pressupoeuma reflexao epistemologica que tenderia a determinar 0 que as duasmetodologias ficam devendo, em cada caso, as t r a d i ~ o e s de cada uma das

disciplinas e as caracteristicas de fato das sociedades que elas tomam como

objeto. Se nao ha duvida de que a i m p o r t a ~ a o sem controle de metodos econceitos que foram elaborados no estudo de sociedades sem escrita, nem

t r a d i ~ o e s historicas, pouco diferenciadas social mente e pouco expostas aos

contatos com outras sociedades corre 0 risco de levar a algo de absurdo (bastapensar, por exemplo, em determinadas analises "culturalistas" de sociedadesestratificadas), e por demais evidente que e necessario evitar considerarcertas I i m i t a ~ o e s condicionais como limites de validade inerentes aos meto-dos da etnologia: nada impede de aplicar os metodos da etnologia as

sociedades modernas, com a c o n d i ~ a o de submeter, em cada caso, a reflexaoepistemologica os pressupostos implicitos de tais metodos relativos a estru-tura da sociedade e a logica de suas t r a n s f o r m a ~ o e s 2 9 .

Ate mesmo as o p e r a ~ o e s mais elementares e, na aparencia, as maisautomaticas do tratamento da i n f o r m a ~ a o implicam escolhas epistemologicas e mesmo uma teoria do objeto. E por demais evidente, por exemplo, que

27. Inversamente. 0 interesse privilegiado que as etnologos dedicam aos aspectos mais regulamentados

da conduta vai, muitas vezes, de par com a i n d i f e r e n ~ na u t i l i z a ~ o da estatistic3, a (mica capaz de

medir a distanda entre as normas e as condutas reais.

28. Cf., por exemplo, A.H. Barton e P.F. Lazarsfeld, USome Functions of Qualitative Analysis in social

Research", in lac. cit. Quanta a C. Selliz, M. Deutsch e S.W. Cook, tentam definir as condic;6es em que

poderia ser realizada uma t r a n s p o s i ~ o frutuosa de tecnicas de inspirac;ao etnol6gica (Research

Methods in SociaJ Relations, Rev. I vol. ed., Methuen, 1959, p. 59-65),

29. Tal s u b s t a n t i f i c a ~ o do metodo etnol6gico e operada por R. Bierstedt no artigo wThe Limitation of

Anthropological Method in Sociology", in American Journal of sociology, LlV, 1948-1949, p. 23-30.

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, uma verdadeira teoria, consciente ou inconsciente, da e s t r a t i f i c a ~ a o socialeue esta em jogo na c o d i f i c a ~ a o dos indicadores da p o s i ~ o social ou na~ i v i s a o das categorias (basta pensar, por exemplo, nos diferentes indices quepodem ser escolhidos para definir os graus de " c r i s t a l i z a ~ o do estatuto"). Osque por omissao ou imprudencia, evitam tirar todas as conseqiiencias de talevidencia correm 0 risco, muitas vezes, de serem atingidos pela criticadirigida contra as d e s c r i ~ o e s escolares que tendem a sugerir que 0 metodaexperimental tem como f u n ~ o descobrir r e l a ~ o e s entre "dados" ou proprie

dades preestabelecidas desses "dados". "Nao h3 nada mais enganador, diziaDewey, do que a simplicidade aparente do procedimento cientifico tal comoedescrito pelos tratados de logica"j com efeito, essa simplicidade especiosaatinge seu apice quando sao utilizadas as letras do alfabeto para representara a r t i c u l a ~ a o do objeto: indican do, em urn caso, ABCD, em outro BCFG e emum terceiro CDEH e assim por diante, chegamos a conclusao de que eevidentemente C que determina 0 fenomeno. No entanto, a u t i l i z a ~ a o de talsimbolismo e "urn meio eficaz de obnubilar 0 fato de que os materiais emquestao ja foram padronizados e, por conseguinte, dissimular que toda atarefa da pesquisa indutivo-dedutiva se apoia, na realidade, nas o p e r a ~ o e s , g r a ~ a s as quais os materiais sao homogeneizados"'o. Se os metodologos estao

mais atentos as regras que devem reger am a n i p u l a ~ a o

de categorias jaconstituidas do que as o p e r a ~ o e s que permitem constitui-las e porque 0

problema da c o n s t r u ~ a o do objeto nunca po de ser resolvido de ante mao euma vez por todas, quer se trate de dividir uma p o p u l a ~ a o em categoriassociais, faixas etarias ou de r e m u n e r a ~ o . Pelo fato de que toda taxinomiaimplica uma teoria, opera-se necessaria mente uma divisao inconsciente desuas escolhas em f u n ~ a o de uma teoria inconsciente, isto e, quase semprede uma ideologia. Por exemplo, considerando que a r e m u n e r a ~ a o varia deuma forma continua, a divisao de uma p o p u l a ~ a o em faixas de r e m u n e r a ~ a o implica necessariamente uma teo ria da e s t r a t i f i c a ~ a o : "nao e possivel t r a ~ a r uma linha para estabelecer a s e p a r a ~ a o , de forma absoluta, entre ricos e

pobres, os detentores de capitais fundiarios ou imobiliarios e os trabalhadores. Varios auto res pretendem deduzir desse fato a conseqiiencia que, emnossa sOciedade, nao seria possivel falar de uma c1asse capitalista, nem oporos burgueses aos trabalhadores,,31. 0 mesmo e dizer, acrescenta Pareto, que

30.). Dewey, Logic: The Theory oj nquil]l, H o l ~ Nova York, 1938, p. 431, n. 1.

31. V. Pareto, Cours d'Economie politique, t. II, Droz, Genebra, p. 385. As tecnicas mais abstratas dedivisao do material tern justamente, como efeito, anular unidades concretas como a g e r a ~ o . abiografia e a carreira.

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nao existem velhos porque nao se sabe em que ida de, em que momenta

vida, c o m e ~ a a velhice.

Enfim, seria necessario nos perguntarmos se 0 metodo de analisedados que parece 0 mais adequado a ser aplicado a todos os tipos de r e l c l ~ o l ~ S i quantificaveis, a saber, a analise multivariada, nao deve ser sempre S U L " I l I ~ tide a i n t e r r o g a ~ a o epistemologica: com efeito, ao postular que e D O ~ i s j v ' e l isolar, alternadamente, a a ~ a o das diferentes variaveis do sistema rnrnnllprn

das r e l a ~ o e s no interior do qual elas atuam, a fim de apreender a eficacia

propria de cada uma delas, essa tecnica priva-se de apreender a eficaciaurn fator pode obter de sua i n s e r ~ a o em uma estrutura e, ate mesmo,eficacia propriamente estrutural do sistema dos fatores. Alem disso,adotarmos urn sistema definido pelo equilibrio pontual como urnsincronico, corremos 0 risco de deixar escapar 0 que 0 sistema fica de'velldoao seu passado e, por exemplo, 0 sentido diferente que dois elE!m,ent:os1

semelhantes na ordem das simultaneidades podem conseguir pelo fatoserem originarios de sistemas diferentes na ordem da sucessao, isto e,exemplo, trajetorias biograficas diferentes32

• De forma geral, a u t i l i Z l a ~ l o experiente de todas as formas de calculo que permitem a analise deconjunto de r e l a ~ o e s pressuporia urn conhecimento e consciimcia n",rfpjit,,_

mente claros da teoria do fato social implicada nos procedimentos, ...r"r".aos quais cada uma delas seleciona e constroi 0 tipo de relac;:oes

variaveis que define seu objeto.

Quanto rna is facilmente as regras tecnicas da u t i l i z a ~ a o das tecnicasprestam a c o d i f i c a ~ a o , tanto mais dificil sera definir e, mais ainda, pn,r"rn",na pratica os principios capazes de determinar a u t i l i z a ~ a o de cada te(:ni(:aque levasse em c o n s i d e r a ~ a o , de forma consciente, os pressupostos IOgiicos

ou sociologicos de suas o p e r a ~ o e s . Quanto aos principios dos principios,que regem a u t i l i z ; a ~ a o correta do metodo experimental em sociologia e,esse motivo, constituem 0 fundamento da teo ria do conhecimento sOI:iolo;

gico, sao tao opostos aepistemologia espontanea que podem ser COIlst.mtle,

mente transgredidos, inclusive, em nome dos preceitos ou formulas dosjulgamos tirar partido. Assim, a mesma i n t e n ~ a o metodologica de naolimitarmos as expressoes conscientes po de levar a atribuir a COlnst:rUCOE!Sl

tais como a analise hierarquica das opinioes, 0 poder de passar das 1I .."lara-,

~ o e s , por mais superficiais que sejam, para as atitudes que estao na

31. Cf. P. Bourdieu, J.-C. Passeron eM. de saint-Martin, Rapport pedagogique et communication, cahiersdlCentre de sociologie europeenne, nO 2, Mouton, paris, Haia, 1965, p. 43-57.

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origem, isto e, transmutar magicamente 0 consciente em inconscientej ou,por um procedimento identico, mas que fracassa por razoes inversas, procurar a estrutura inconsciente da mensagem de imprensa por meio de umaanalise estrutural que, no melhor dos casos, so consegue redescobrir, comgrande dificuldade, algumas verdades primeiras retidas, com toda consciencia, pelos produtores da mensagem.

Da mesma forma, 0 principio da neutralidade etica,lugar-comum de todas

as t r a d i ~ o e s metodologicas, po de, em sua forma rotineira, incitar paradoxal

mente ao erro epistemologico quando, afinal, sua pretensao e evitiHo. E,realmente, em nome de uma c o n c e p ~ a o simplista do relativismo cUltural quedeterminados sociologos da "cultura popular" e dos meios modernos dec o m u n i c a ~ a o podem criar a ilusao de_se conformar com a regra de aura daciencia etnologica ao tratarem todos os comportamentos culturais, desde ac a n ~ a o folclorica ate a cantata de Bach, passando por uma c a n ~ a o da moda,como se 0 valor que os diferentes grupos lhes atribuem nao fizesse parte desua realidade, como se nem sempre fosse necessario relacionar as condutasculturais aos valores a que elas se referem objetivamente para lhes restituirseu sentido propriamente cultural. 0 sociologo que decide ignorar as diferen~ a s de valor que os sujeitos sociais estabelecem entre as obras de cultura

opera de fato uma t r a n s p o s i ~ a o ilegitima, por ser incontrolada, do relativismoao qual se obriga 0 etnologo quando considera culturas que fazem parte desociedades diferentes: as diferentes "culturas" que se encontram na mesmasociedade estratificada estao objetivamente situadas umas em r e l a ~ a o asoutras porque os diferentes grupos se situam uns em r e l a ~ a o aos outros,em particular, quando se referem a elasj pelo contrario, a r e l a ~ a o entreculturas que fazem parte de sociedades diferentes pode existir unicamente na e pela c o m p a r a ~ a o operada pelo etnologo. 0 relativismo integral emecanicista leva ao mesmo resultado do etnocentrismo etico: nos doiscasos, a r e l a ~ a o do observador aos valores daqueles que ele observa (e,por conseguinte, ao valor deles) toma 0 lugar da r e l a ~ a o que estes mantem

objetivamente com seus valores.

• ••

"Qual e 0 fisico, pergunta Bachelard, que aceitaria dispender seus recursospara construir urn aparelho destituido de qualquer s i g n i f i c a ~ a o teorica1"lnumeras pesquisas sociologicas nao resistiriam a tal i n t e r r o g a ~ a o . A demissao pura e simples diante do dado de uma pratica que reduz 0 elenco dehipoteses a uma serie de a n t e c i p a ~ o e s fragmentarias e passivas leva asm a n i p u l a ~ o e s cegas de uma tecnica que engendra automaticamente arteJa-

tos, c o n s t r u ~ o e s vergonhosas que sao a caricatura do fato construido meto-

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diea e eonscientemente, isto e, cientifieamente. Ao se reeusar a ser 0 ~ U J l t l l l · n cientifieo de sua sociologia, 0 sociologo positivista dediea-se, salvo millagire

do ineonsciente, a fazer uma sociologia sem objeto cientifieo.

Esqueeer que 0 fato eonstruido segundo proeedimentos formcllmlenteirrepreensiveis, mas ineonscientes de si mesmos, corre 0 risco de ser ,,",pn,,.

urn artefato, e admitir, sem qualquer outro exame, a possibilidade de aplieclr

as teenicas it realidade do objeto ao qual sao aplicadas. Sera surpreendenteque os que professam que so tern existencia cientifica os objetos que po:ssarn

ser apreendidos ou medidos pelas teenieas disponiveis, sejam levados,sua pratiea, a eonsiderar como digno de ser eonhecido unieamente 0 quepode ser medido ou, pior ainda, a eonferir existencia cientifiea a tudo 0 quese deixa medir1 Os que fazem como se todos os objetos fossem suseetiveisde uma (mica e mesma teeniea, ou indiferentemente de todas as teenicas,esqueeem que as diferentes teenicas podem, em eerta rnedida variavel e corn

rendimentos desiguais, eontribuir para 0 conhecimento do objeto, contantoque sua u t i l i z a ~ a o seja eontrolada por uma reflexao metodiea sobre as eon-d i ~ o e s e limites de sua validade que, em cada easo, depende de sua adequa- .~ a o ao objeto, isto e, it teoria do objeto33

• Alem disso, somente essa reflexaopode permitir a r e i n v e n ~ a o eriadora que exige idealmente a a p l i e a ~ a o de uma

teenica, "inteligeneia morta que a inteligencia deve ressuscitar", e, a fortiori,a i n v e n ~ a o e a a p l i e a ~ a o de novas teenieas.

2.4. A analogia e a e o n s t r u ~ i i o das hip6teses

Para saber eonstruir 0 objeto e eonheeer 0 objeto que e eonstruido, eneeessario ter eonsciencia de que todo objeto propriamente dentifieo eeonsdente e metodicamente eonstruido, e e neeessario eonheeer tudo issopara nos interrogarmos sobre as teenicas de c o n s t r u ~ a o das perguntasformuladas ao objeto. A metodologia que deixasse de levar em e o n s i d e r a ~ a o o problema da i n v e n ~ a o das hipoteses a serem comprovadas nao poderia,como observa Claude Bernard, "dar ideias novas e feeundas aos que nao as

tern; servira somente para dirigir as ideias dos que ja as tern e desenvolve-Iasa fim de tirar delas 0 melhor resultado possivel f. ..]. 0 metoda por si so nao

gera nada"".

33. A u t i l i z a ~ o monomaniaca de uma tecnica particular e a mais freqtiente e, tambem, a mais frequen-

temente denunciada: "Deem urn martelo a uma c r i a n ~ , diz Kaplan, e M.o de ver que tudo the parece

merecer uma martelada" (The Conduct oj Inquiry, op. at, p. 112).

34. C. Bernard, Introduction a etude de Ja medecine experimentale. op. cit., cap. 11, § 2.

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ntenas

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Contra 0 positivismo que tern tendEmcia a considerar a hipotese unica·

mente como 0 produto de uma g e r a ~ a o espontfmea em meio esteril e que

espera i n g e n u a m ~ n t e que 0 conhecimento dos fatos ~ ~ , no ~ e l h o r dos.casos,a i n d u ~ a o a partir dos fatos leve, de forma automatlca, a f o r m u l a ~ a o dashipoteses, a analise eidetica de Husserl, assim como a analise historica deKOyre, fazem ver, a proposito do procedimento paradigmatico de Galileu, queuma hipotese, como a da inercia, so veio a ser conquistada e construidamediante urn golpe de estado teorico que, por nao ter encontrado qualquer

apoio nas sugestoes da experiencia, so conseguiu sua legitimidade pelacoerencia do desafio da i m a g i n a ~ a o l a n ~ a d o aos fatos e as imagens ingenuas

ou eruditas dos mesmos35

Semelhante e x p l o r a ~ a o dos multiplos aspectos, que pressupoe urn dis·

tanciamento decisorio em r e l a ~ a o aos fatos, permanece exposta as facilida·des do intuicionismo, do formalismo ou da pura e s p e c u l a ~ a o , ao mesmotempo que po de escapar, embora ilusoriamente, as exigencias da Iinguagemou ao controle da ideologia. Como observa R.B. Braithwaite, "urn pensamentocientifico que recorre ao modelo analogico e sempre urn pensamento quefunciona a maneira do "como se" (as if thinking) [...]j assim, a contra partida

do recurso aos modelos e uma vigilancia constante,,'6. Ao estabelecer ad i s t i n ~ a o entre 0 tipo ideal do conceito generico obtido por i n d u ~ a o e a"essencia" espiritual ou a copia impressionista do real, Webervisava somenteexplicitar as regras de funcionamento e as c o n d i ~ o e s de validade do proce·dimento que todo pesquisador, por mais positivista que seja, utiliza conscien·

35.E. Husser), ~ D i e Krisis der europaischen Wissenschaften und die transzendentale Phanomenologie: Eine

Einleitung in die phanomenologische Philosophie" (trad. francesa de E. Gerrer, "La crise des scienceseuropeennes et la phenomenologie transcendental", in Les Etudes PhiJosophiques, nO 2 e nO 4, paris,

1949). Tao sensivel como QualQuer outro historiador da cienciaa

ngenhosidade experimental de Galileu,Koyre nao hesita, parern, em ver na opiniao preconcebida de construir uma fisica arquimediana 0principia motor da revolu¢o dentifica iniciada por Galileu. E a teoria, ista e, nesse casa, a intuic;aa

te6rica do principia da inercia Que precede a experiimcia e a torna passivel, tamanda concebiveis as

experiencias suscetiveis de validar a teoria. Cf. A. Koyre, Etudes galileennes, III, Galilee et la loi d'inertie,Hermann, paris, 1966, p. 226-227.

36. R.B. Braithwaite, Scientific Explanation, Cambridge university Press, Cambridge, 1963, p. 93. Nao e

um acaso se, nas ciencias que, como a econometria, recorrem, ha muito tempo, a c o n s t r u ~ o de

modelos, a consciencia do perigo de "imuniza<;ao" contra a experiencia Que e inerente a qualquerprocedimento formalista, isto e, simplificador, e mais acentuada do que em sociologia. H. Albertmostrou 0 "alibi i1imitado" proporcionado pelo habito de raciocinar ceteris paribus: a hip6tesetorna-se irrefutavel desde 0 momenta em Que toda observa<;aa contraria a hipotese pade ser

imputada a varia¢o dos fatares que a hip6tese neutraliza partindo do pressuposto de que sao

constantes (H. Albert, "Modell Platonismus", in E. Topitsch [ed.], Logik der Sozialw;ssenscha!ten,Kiepenheuer und Witsch, Colonia, Berlim, 1966, p. 406-434).

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te ou inconscientemente, mas que so po de ser controlado se for utiliz:adc

com conhecimento de causa. Por o p o s i ~ a o as c o n s t r u ~ o e s especulativasfilosofia social cujos refinamentos logicos tern como (mica finalidadetruir urn sistema dedutivo bern ordenado e que sao irrefutaveis porquepodem ser comprovados, 0 tipo ideal como "guia para a constru¢o

hipoteses", segundo a expressao de Max Weber, euma fic¢o coerente "a

a situa¢o ou a¢o ecomparada e avaliada", uma constru¢o concebida paramedir em r e l a ~ a o ao real, uma c o n s t r u ~ a o proxima - cuja d i f e r e n ~ ela nelrmito

medir e reduzir - e nao aproximativa. 0 tipo ideal permite rnedir a reailidadEporque se mede em rela¢o a ela e define-se com precisao ao nplrprrnin: .

precisamente a d i f e r e n ~ que 0 separa do real [M. Weber, texto nO 31].

Com a c o n d i ~ a o de que sejam retiradas as ambigiiidades que Webersubsistir ao identificar 0 tipo ideal com 0 modelo, no sentido deexemplar ou caso-limite, construido ou constatado, 0 raciocinio comosagem dos limites constitui uma tecnica insubstituivel de i n v e n ~ a o hipoteses: 0 tipo ideal pode referir-se tanto a urn caso teoricamente nnviI,.'

giado em urn grupo construido de t r a n s f o r m a ~ o e s (basta pensar, por PY"m_

plo, no papel que Bouligand leva 0 triangulo retangulo a desempenharsuporte privilegiado da d e m o n s t r a ~ a o da "pitagoricidade"''), quanto do

paradigmatico que po de ser, seja uma pura f i c ~ a o obtida por passagemlimites e " a c e n t u a ~ a o unilateral" das propriedades pertinentes, sejaobjeto realmente observavel e que apresenta, no rnais elevado grau, 0

mimero das propriedades do objeto construido. Para escapar aos pelrig()s

inerentes a tal procedimento, e necesario tratar 0 tipo ideal, nao em si me:smo!

e por si mesmo - a maneira de uma amostra reveladora que bastaria rnrli'>r

para conhecer a verdade de todo 0 conjunto - mas como urn elementourn grupo de t r a n s f o r m a ~ o e s , referindo-o a todos os casos da familia daele constitui urn caso privilegiado. Assim, ao construir por f i c ~ a o de mEltodo

o sistema das condutas que colocariam os meios mais racionais a s e r v i ~ o defins racionalmente calculados, Max Weber consegue urn meio pri'vile:gialdo

para compreender a gama das condutas reais que 0 tipo ideal permite objetivar,ao tornar objetiva sua distancia diferencial em r e l a ~ a o ao tipo puro. Ate

mesmo 0 tipo ideal no senti do de amostra reveladora (ostensive instance),fazendo ver 0 que e procurado, como observava Bacon, "a nu, sob uma formaengrandecida ou em seu mais elevado grau de potencia", pode ser objeto de

uma u t i l i z a ~ a o rigorosa: podemos evitar 0 que foi designado por "paralogismo

37. Cf. G. Bachelard, Le rationalisme applique, op. cit., p. 9 1 ~ 9 7 .

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exemplo dramatico", variante do "paralogismo da francesa ruiva", com a

I i O J l d i ~ ; a O de percebermos no caso extrema que e dado it observa¢o 0

~ I a d o r da estrutura do sistema do conjunto dos casos isomorfos"j e tal/6gica que leva Mauss a privilegiar 0 potlatch como "forma paroxistica" dafamilia das trocas do tipo total e agonistico, ou que permite ver no estudanteuniversitario parisiense da s e ~ a o de letras, de origem burguesa e comI n c l i n a ~ a o para 0 diletantismo, urn ponto de partida privilegiado para construir 0 modelo das r e l a ~ o e s possiveis entre a verda de sociologica da c o n d i ~ a o estudantil e sua transfigura¢o ideologica.

Aars inveniendi deve, portanto, empenhar-se em fornecer as tecnicas depensamento que permitam conduzir, de forma metodica, 0 trabalho deconstru¢o das hipoteses, ao mesmo tempo que minimizar, pela conscienciados perigos que implica tal empreendimento, os riscos que Ihe sao inerentes.o raciocinio por analogia que e considerado por um grande numero deepistemologos como 0 primeiro principio da i n v e n ~ a o cientifica esta votadoa desempenhar um papel especifico na ciencia sociologica que tem comoespecificidade nao poder constituir seu objeto a nao ser pelo procedimentocomparativo'·. para evitar a c o n s i d e r a ~ a o ideografica de casos que naocontem em si mesmos sua razao de ser, 0 sociologo deve multiplicar as

hipoteses de analogias possiveis ate construir a familia de casos que justifiqueo caso considerado. E para construir tais analogias pode com toda a legitimidade servir-se da hipotese de analogias de estrutura entre os fenomenos

38, assim, que 0 hospital psiquiatrico e considerado por Goffman que a coloca na serie das instituit;:oestotais, casemas au intematos: portanto, 0 caso privilegiado na serie construida pode ser a que,considerado isoladamente, dissimula melhof, por suas func;6es oficiaimente humanitarias, a Jogica do

sistema dos casas isomorfos (cf. E. Goffman, Asiles, Editions de Minuit, paris, 1968).

39. Cf.,porexemplo, G. Polya,'nductionand Analogy in Mathematics, Princeton University Press, Princeton(NJ.), 1954, t.1 e II. Durkheimja tinha sugerido as principios de uma reflexao sabre a u t i l i z a ~ o c ~ r r e t a da analogia. "0 erro dos soci61ogos bi61ogos mio e, portanto, 0 fato de terem utilizado (a analogia), masterem feito mau uso dela. Pretenderam, mio controlar as leis da sociologia pelas leis da biologia, masdeduzir as primeiras a partir das segundas. Ora, tais inferencias nao tern qualQuer valorj com efeito, se

as leis da vida se encontram na sociedade, apresentam-se ai sob novas farmas e com caracteristicasespecificas que a analogia nao tern possibilidade de prever e s6 podem ser percebidas pela o b s e r v a ~ o direta. Entretanto, se as soci61ogos tivessem c o m e ~ d o par determinar, com a ajuda de procedimentossociol6gicos, certas condi<;6es da o r g a n i z a ~ o social, teria side perfeitamente legitimo examinar, emseguida, se estas nao apresentariam semelhanc;as parciais com as condi<;6es da o r g a n i z a ~ o animal,tais como sao determinadas pelo biologo. podemos ate prever que nao sera inuti! colocar em evidenciaas caracteristicas comuns que toda organizac;ao deve tern (Eo Durkheim, "Representations individuelles et

Representations collectives", in Revue de Metaphyslque et de Morale, t. VI, maio de 1898, reproduzido inSOciologie et Philosophie, Paris, F. Alean, 1924; 3!l. ed., P.U.F., Paris, 1963) IN.T.: CF. E. Durkheim, "Repre-senta¢es individuais e representac;oes coletivas", in Sociologia e/ilosojia, op. cit., p. 13].

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sociais e fenomenosja formalizados por outras ciencias, a c o m e ~ a r pelasproximas - lingiiistica, etnologia - ou, ate mesmo, biologia. "E sempre int:en!ssante, observa Durtrneim, pesquisar se uma lei, estabelecida para r l p l r p r l m i " , ~ . da natureza de fatos, pode ser aplicada alhures, mutatis mutandis;

s e m e l h a n ~ a pode ate mesmo servir para confirma-Ia e compreender m",lhft,

seu alcance. Em suma, a analogia e uma forma legitima da c o m p a r a ~ o .alias, 0 unico meio pratico anossa d i s p o s i ~ o para tornar as coisas int·pli,Di.

veis,,40. Em poucas palavras, a c o m p a r a ~ a o orientada pela hipotese de

logias constitui nao so 0 instrumento privilegiado do corte com ospre-construidos, que pretendem com insistencia ser tratados em si mE:smol

e por si proprios, mas tambem 0 principio da c o n s t r u ~ a o hipoteticar e l a ~ i i e s entre as r e l a ~ i i e s .

2.5. Modelo e teoria

E o mente com a c o n d i ~ o de refutar a d e f i n i ~ a o dada pelos po! . t I \ r l s t ; ~ s usuarios privilegiados da noc;ao, ao modelo que podemos conferir-Ihepropriedades e func;iies comumente reconhecidas a teoria41

• Semtemos 0 dire ito de designar por modelo todo sistema de r e l a ~ i i e s propriedades selecionadas, abstratas e simplificadas, construido c O l ~ s c : i e l l t e , mente com a finalidade de descric;ao, explicac;ao ou previsao e, porguinte, plenamente controlavel; mas com a condic;ao de nao PlTmrp17'. . n ' n . ~ sinonimos desse termo para dar a entender que, nesse caso, 0 modeloser algo diferente de uma copia que faz pleonasmo com 0 real e .que, aoobtida por simples procedimento de ajustamento e extrapolac;ao, naode modo algum ao principio da realidade que imita. Duhem criticava"modelos medinicos" de Lord Kelvin por se lim ita rem a manter com osuma semelhanc;a superficial. Simples "procedimentos de exposic;ao"falam apenas a maginac;ao, tais ferramentas nao podem servir de guiaa invenc;ao porque, no melhor dos casos, nao passam da formalizac;ao desaber previo e tendem a impor sua logica propria, evitando, por COnSE!gl.lin1:e,

a busca da logica objetiva que tern de ser construida para justificar, tec)ric:amente, 0 que eles se limitam a representar42

• Certas formulac;iies eruditas

40. E. Durkheim, ibid.

41. No conjunto desse paragrafo, a terma teoria sera considerado no sentido de teoria parcial do

(cr. supra, § 1.7, p. 42-44).

41. Entre as modelos incontrolados que eriam obstaculoa preensao das analogias profundas, en . ! C e ~ ; a r t o tambern contar com as que sao veiculados pelas metaforas da Iinguagem, inclusive as Que ja estao

de usa (cf. supra, § 1.4, p. 32-36).

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r e n o ~ o e s do senso comum lembram os automatos construidos por Vaucan-~ o n e Cat que, por falta de conhecimento dos principios reais de funciona-mento, recorriam a mecanismos baseados em outros principios para pro-duzirem uma simples reprodu¢o das propriedades mais fenomenais: comoobserva Georges canguilhem, a utiliza¢o dos modelos so se revelou fecundaem biologia no momenta em que os modelos mecanicos, concebidos segundoa logica da produ¢o e transmissao da energia, foram substituidos pormodelos cibemeticos baseados na transmissao da i n f o r m a ~ a o e, dessa forma,

identificados com a logica do funcionamento dos circuitos nervosos' 3• Nao eum acaso se a i n d i f e r e n ~ a em r e l a ~ a o aos principios leva f o r ~ o s a m e n t e a urnoperacionalismo que Iimita suas a m b i ~ o e s a "salvar as aparencias", correndoo risco de propor urn numero de modelos igual ao numero de fenomenos oumultiplicar para 0 mesmo fenomeno urn certo numero de modelos que nemchegam a ser contraditorios porque, produtos de uma bricolagem erudita,sao igualmente desprovidos de principios. A pesquisa aplicada pode, semduvida, contentar-se com tais "verdades a 40%", segundo a expressao deBoas, mas os que confundem uma r e s t i t u i ~ a o aproximativa (e nao proxima)do fenomeno com a teoria dos fenomenos correm 0 risco de falenciasinelutitveis e, no entanto, inexplidiveis, enquanto permanecer inexplicado

urn poder explicativo de encontro.Partindo da confusao entre a simples seme/ham;a e a ana/ogia, r e l a ~ a o

entre r e l a ~ o e s que deve ser conquistada contra as aparencias e construidapor urn verdadeiro trabalho de a b s t r a ~ a o e por meio da c o m p a r a ~ a o cons-cientemente operada, os mode/os mimeticos, que se Iimitam a apreenderas s e m e l h a n ~ a s exteriores, opoem-se aos mode/os ana/6gicos que visamreapreender os principios ocultos das realidades que interpretam. "Racio-cinar por analogia e, diz a Academie, formar urn raciocinio baseado nass e m e l h a n ~ a s ou r e l a ~ o e s de uma coisa com outra", ou melhor, corrigeCournot, "baseado nas r e l a ~ o e s ou s e m e l h a n ~ a s enquanto estas indicamas r e l a ~ o e s . Com efeito, no juizo analogico, a teoria abstrata incide unica-mente sobre a razao das s e m e l h a n ~ a s : estas nao tern qualquer valor desdeque nao indiquem r e l a ~ o e s na natureza dos fatos em que a analogia seaplica"".

43. G. canguilhem, uAnalogies and Models in Biological Discovery", in Scientific change, Historical Studiesin the Intellectual, Social and Technical Conditions for scientific Discovery and Technicallnvention,jromAntiquity to the Present, Symposium on the H istory of Science, Heinemann, Londres, 1963, p. 507-520.

44. A. Cournot; Essai sur Jes jondernents de nos connaissances et sur les caracteres de 10 critiquephilosophique, Hachette, paris, 1912, p. 68.

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Os diferentes procedimentos de c o n s t r u ~ a o das hipoteses podemcontrar urn acrescimo de eficacia no recurso a f o r m a l i z a ~ a o que, alemf u n ~ a o clarificadora de uma rigorosa estenografia dos conceitos ef u n ~ a o critica de uma prova logic a do rigor das d e f i n i ~ 6 e s e da cOlerenci:do sistema das p r o p o s i ~ 6 e s , pode tambem desempenhar, sob certasd i ~ 6 e s , uma f u n ~ a o heuristic a ao permitir a e x p l o r a ~ a o sistematicapossivel e a c o n s t r u ~ a o controlada de urn elenco sistematico de hitlotl!SPIcomo esquema completo das experiencias possiveis. No entanto, se

eficacia - simultaneamente, mecanica e metodica - dos simbolos eoperadores da logica ou da matematica, "instrumentos comparatistasexcelencia", segundo a expressao de Marc Barbut, permite levar atermo a v a r i a ~ a o imaginaria, nesse caso, 0 raciocinio analogicotambem desempenhar, ate mesmo na falta de qualquer requinte foo·m,,'.

sua f u n ~ a o de instrumento de descoberta, embora de forma mais I " h n r ; n o ~ e com menos s e g u r a n ~ a . Em sua u t i l i z a ~ a o mais corrente, 0 modelo fnr'n."••

o substituto de uma e x p e r i m e n t a ~ a o , muitas vezes, impossivel nose da 0 meio de confrontar com a realidade as conseqiiencias queexperiencia mental permite colocar em evidencia de forma completa,ser ficticia: "Na esteira de Rousseau, e sob uma forma decisiva,

ensinou, observa Claude Levi-Strauss, que a ciencia social ja naoconstroi no plano dos acontecimentos como tam bern a fisica deixou deconstruir a partir dos dados da sensibilidade: 0 objetivo e construirmodelo, estudar suas propriedades e suas diferentes maneiras deno laboratorio para aplicar, em seguida, tais o b s e r v a ~ 6 e s a intefl>fe,tal;ao;do que se passa empiricamente,,45.

o valor explicativo dos modelos resulta dos principios de sua rn,nc 'r . ",;in;

e nao de seu grau de f o r m a l i z a ~ a o . Com certeza, como tern sido mc)stlradlo,

freqiientemente, de Leibniz a Russel, 0 recurso as "evidencias cegas"simbolos constitui uma excelente p r o t e ~ a o contra as evidencias OflJSCanteslda i n t u i ~ a o : "0 simbolismo e utH, indiscutivelmente; porque torna as

dificeis. Pretendemos saber "0 que pode ser deduzido do que". ora,c o m e ~ o , tudo e evidente por si; e e muito dificH ver se uma prc)pc)sil;aO'

evidente resulta de uma outra ou nao. A evidencia e sempre a inimigarigor. Assim, inventamos urn simbolismo dificil de tal modo que nadaparece evidente. Em seguida, inventamos regras para operar sobre os ~ i m h n -

45. c. Ikvi-strauss, Tristes Tropiques, PIon, Paris, 1956, p. 49.

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e tudo se torna mecimico,,46. No entanto, os matematicos tinham menos

iies do que os sociologos ao lembrarem que, em vez de condena-Ias, a~ m a l i z a ~ a o po de consagrar as evidencias do senso comum. Pode-se, dizia

'wibniz dar forma de e q u a ~ a o a curva que passa por todos os pontos de urnrosto. <> objeto percebido nao se torna urn objeto construido com urn simplesolpe de varinha matematica: ainda pior, na medida em que simboliza a

~ u P t u r a com as aparencias, 0 simbolismo da ao objeto prli-construido umarespeitabilidade usurpada que 0 coloca a salvo da critica teorica. Se Ii ne

cessario estarmos prevenidos contra os falsos prestigios e os falsos prodigiosda f o r m a l i z a ~ a o sem controle epistemologico, Ii porque, ao dar as aparenciasda a b s t r a ~ a o a p r o p o s i ~ o e s que podem ser extraidas, as cegas, da sociologiaespontfmea ou da ideologia, ela corre 0 risco de sugerir que Ii possivel evitaro trabalho de a b s t r a ~ a o , 0 unico capaz de destruir as s e m e l h a n ~ a s aparentes

para construir as analogias ocultas.

A apreensao das homologias estruturais nem sempre tern necessidadede recorrer ao formalismo para encontrar seus fundamentos e dar prova deseu rigor. Basta acompanharmos a tentativa de Panofsky que 0 leva acomparar a Suma de Tomas de Aquino com a catedral gotica para percebermos as c o n d i ~ o e s que tornam possivel, legitima e fecunda tal o p e r a ~ a o : parater acesso a analogia oculta, escapando ao mesmo tempo a curiosa misturade dogmatismo e empirismo, misticismo e positivismo, que caracteriza 0

intuicionismo, Ii necessario renunciarmos a encontrar nos dados da i n t u i ~ a o sensivel 0 principio capaz de unifica-Ios realmente e submeter as realidadescomparadas a urn tratamento que as torne identicamente disponiveis paraa c o m p a r a ~ a o . A analogia nao se estabelece entre a Suma e a Catedralconsideradas, se Ii que podemos falar assim, segundo seu valor facial, masentre dois sistemas de r e l a ~ o e s inteligiveis, nao entre "coisas" que seconfiariam a p e r c e p ~ a o ingenua, mas entre objetos conquistados contraas aparencias imediatas e construidos por uma e l a b o r a ~ a o metodica [E.

Panofsky, texto nO 32].

Assim, Ii pelo poder de ruptura e pelo poder de g e n e r a l i z a ~ a o , sendo queos dois sao inseparaveis, que 0 modelo te6rico Ii reconhecido: como depura~ a o formal das r e l a ~ o e s entre as relac;:oes que definem os objetos construidos,ele pode ser transposto para ordens de realidade, do ponto de vista fenomenal, muito diferentes e sugerir por analogi a novas analogias, principios de

46. B. Russel, Mysticism and Logic, and Other Essays, Doubleday, Anchor BOoks, Nova York, 1957, p. 73 (1st

pub!', Philosophical Essays,.George Allen & Unwin, Londres, 1910, 2nd ed., Mysticism and Logic, 1917).

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1 novas c o n s t r u ~ o e s de objetos [Po Duhem, texto nO 33j N. Campbell, texto34]. Da mesma forma que 0 matematico pode encontrar na d e f i n i ~ a o dacomo curva de curvatura nula 0 principio de uma teoria geral das rm"".sendo que a Iinha curva emelhor generalizador do que areta, assim t " ~ n h ' ; , " ; a c o n s t r u ~ a o de urn modele permite tratar diferentes formas sociaisoutras tantas r e a l i z a ~ o e s de urn mesmo grupo de t r a n s f o r m a ~ o e s e,conseguinte, fazer surgir propriedades ocultas que s6 se revelam qu;an!IO

cada uma das r e a l i z a ~ o e s ecolocada em r e l a ~ a o com todas as outras, isto

por referencia ao sistema completo das r e l a ~ o e s pelo qual se exprimeprincipio da afinidade estrutural das mesmas'7• E esse procedimentoconfere fecundidade, isto e, poder de g e n e r a l i z a ~ a o , as c o m p a r a ~ o e s sociedades diferentes ou entre subsistemas da mesma sociedade, por~ a o aos simples paralelismos suscitados pela s e m e l h a n ~ a dos conteudos.medida em que essas "metilforas cientificas" levam aos principios das hn,mft .

logias estruturais que se encontram submersas nas d i f e r e n ~ a s fenlonlenlais,elas sao, como se diz, "teorias em miniatura" ja que, ao formularemprincipios geradores e unificadores de urn sistema de r e l a ~ o e s , daos a t i s f a ~ o as exigencias do rigor na ordem da prova e da fecundidadeordem da invenc;:ao, alias, caracteristicas que definem uma c o n s t r u ~ a o ca: como gramaticas generativas de esquemas transponiveis, fornecemprincipio de. i n d a g a ~ o e s e questionamentos indefinidamente rello,rav'eis,como r e a l i z a ~ o e s sistematicas de urn sistema de r e l a ~ o e s verificadas ouserem verificadas, obrigam a proceder a uma v e r i f i c a ~ o que, por si mesma,pode ser sistematicaj como produtos conscientes de urn distanciamentor e l a ~ o a realidade, voltam sempre a realidade e permitem medir em r"l"r;incom essa realidade as propriedades que, em virtude unicamente deirrealidade, acabam sendo colocadas em completa evidencia, por d e d u ~ o 4 8 .

47. E0 mesmo procedimento, que consiste em conceber 0 caso particular e, are mesmo, 0 conjuntocasas reais como casas particulares de urn sistema ideal dos compossiveis 16gicos, que pode levaroperac;6es mais concretas da pratica sociologica, como a i n t e r p r e t a ~ o de uma r e l a ~ o inverter a s i g n i f i c a ~ o da no¢o de significatividade estatistic.a: da mesma forma que achegou a considerar a aus@ncia de propriedades como uma propriedade, assim tambe:m ar e l a ~ o estatistica entre duas variitveis pode ser altamente significativa se considerarmos essano interior do sistema completo das relac;6es de que ela faz parte.

48. Nas ciencias sociais, seria indispensavel empreender uma verdadeira e d u c a ~ o do espirito ciel"tificopara que, em seus reJat6rios de pesquisa, por exernplo, as soci610gos abandonem cada vezprocedirnento indutiva que, no melhar dos casas, se Iirnita a apresentar urn balant;o recapitulativoinfra, § 3.2., p. 80) para reorganizarern em f u n ~ o de urn principio unificadar (au varias), a fimjustifica-Ia sisternaticamente, a canjunta das reJat;oes ernpiricamente constatadas, ista e, paracerern em sua pratica aexigencia te6rica, nern que fosse no plano de urna problematica regional.

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