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BRAÇOS CRUZADOS, MÁQUINAS PARADAS (1978): UMA ANÁLISE HISTORIOGRÁFICA SOBRE O MOVIMENTO OPERÁRIO BRASILEIRO DOS ANOS 1970 ATRAVÉS DO CINEMA DOCUMENTÁRIO Regina F. E. Pazzanese (Universidade de São Paulo) Resumo: Esta comunicação pretende apresentar uma abordagem historiográfica, localizada na interconexão entre dois campos de produção do sentido: a história e o cinema, com uma análise sobre o filme Braços Cruzados, Máquinas Paradas (1978), de Roberto Gervitz e Sergio Segall. Financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPQ Introdução/justificativa No final dos anos 1970, as esquerdas brasileiras serão surpreendidas por manifestações e greves operárias de grandes proporções que ocorreriam em São Paulo e na grande São Paulo, região que movimentava um dos maiores PIBs do país, em plena transição democrática. Braços Cruzados, Máquinas Paradas (1978), de Roberto Gervitz e Sérgio Toledo Segall é um documentário que construirá narrativas sobre este período. Braços Cruzados é um filme sobre a disputa à presidência do sindicato dos metalúrgicos de São Paulo, ocorrida em 1978. Gervitz e Segall foram convidados pela Chapa 3, a Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo (OSM-SP) para registrar a campanha. Distante das movimentações do grande ABC e também do personagem, o sindicalista Luis Inácio Lula da Silva, destacado na maior parte das obras fílmicas sobre esse momento histórico, o leitmotiv do longa denunciava a estrutura sindical brasileira o qual herdara uma legislação trabalhista fascista, imposta pelo regime Vargas, como a principal causa da desarticulação dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, a estrutura argumentativa fílmica é construída em torno da premissa da organização autônoma fabril (através das comissões de fábrica) como

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BRAÇOS CRUZADOS, MÁQUINAS PARADAS (1978): UMA ANÁLISE

HISTORIOGRÁFICA SOBRE O MOVIMENTO OPERÁRIO BRASILEIRO DOS

ANOS 1970 ATRAVÉS DO CINEMA DOCUMENTÁRIO

Regina F. E. Pazzanese

(Universidade de São Paulo)

Resumo: Esta comunicação pretende apresentar uma abordagem historiográfica,

localizada na interconexão entre dois campos de produção do sentido: a história e o

cinema, com uma análise sobre o filme Braços Cruzados, Máquinas Paradas

(1978), de Roberto Gervitz e Sergio Segall.

Financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico –

CNPQ

Introdução/justificativa

No final dos anos 1970, as esquerdas brasileiras serão surpreendidas por

manifestações e greves operárias de grandes proporções que ocorreriam em São

Paulo e na grande São Paulo, região que movimentava um dos maiores PIBs do

país, em plena transição democrática. Braços Cruzados, Máquinas Paradas (1978),

de Roberto Gervitz e Sérgio Toledo Segall é um documentário que construirá

narrativas sobre este período.

Braços Cruzados é um filme sobre a disputa à presidência do sindicato dos

metalúrgicos de São Paulo, ocorrida em 1978. Gervitz e Segall foram convidados

pela Chapa 3, a Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo (OSM-SP) para

registrar a campanha. Distante das movimentações do grande ABC e também do

personagem, o sindicalista Luis Inácio Lula da Silva, destacado na maior parte das

obras fílmicas sobre esse momento histórico, o leitmotiv do longa denunciava a

estrutura sindical brasileira o qual herdara uma legislação trabalhista fascista,

imposta pelo regime Vargas, como a principal causa da desarticulação dos

trabalhadores.

Ao mesmo tempo, a estrutura argumentativa fílmica é construída em torno da

premissa da organização autônoma fabril (através das comissões de fábrica) como

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a efetiva solução para a práxis dessa luta, por uma manifestação de princípio

basista 1 , constituída pelo próprio operário e proponente de uma capilaridade

democrática orgânica e independente de qualquer filiação partidária.

O filme acompanhará a campanha eleitoral e a disputa entre três chapas

sindicais e o suposto golpe, da Chapa 1 (situação), sobre as urnas violadas e o

boicote à distribuição de material de campanha da Chapa 2, composta por

dissidentes do PCB, alguns quadros do PCdoB e militantes do MR8, e da Chapa 3,

organizados através das Comissões de Fábrica, composta por membros do “novo

sindicalismo”, chamados também de “autênticos”, entre os quais misturavam-se

sujeitos vindos da militância de base, próximos da esquerda católica e, também, as

diferentes correntes marxistas, em dissensão aos partidos comunistas.

O desfecho da campanha anunciaria a vitória fraudada para a continuidade

da Chapa 1, sob a gestão de Joaquim dos Santos Andrade (o Joaquinzão),

presidente do sindicado dos metalúrgicos de São Paulo e o principal interlocutor

junto ao Ministério do Trabalho e industriais, desde o início da ditadura de 1964,

apresentada na diegése fílmica como representante do “peleguismo” sindical.

O recorte temporal, de final dos anos 1970, foi um momento “em aberto e de

indeterminações” históricas sob o qual emergiu, em torno das greves paulistas, uma

riqueza de diálogos e circulação no campo da política e também das artes, através

de intelectuais, militantes, operários e operárias, donas-de-casa, padres e leigos,

artistas, entre esses, cineastas, e personalidades políticas em um dos principais

acontecimentos históricos da segunda metade do século XX, que registra com as

greves paulistas o emergir de uma “nova esquerda”.

Tais cineastas e as obras produzidas, com o intuito de registrar este

ambiente singular e apesar de documentarem parte de um mesmo acontecimento

histórico (muitas vezes utilizando os mesmos arquivos e registros fílmicos),

anunciariam sob formas bastante distintas os valores e projetos político-ideológicos

presentes no ambiente das disputas fabris. Essa aproximação foi utilizada para

canalizar os anseios de uma intelectualidade militante em busca de renovação que,

durante a consolidação das lutas operárias, encontraria na “concorrência de

1 Pratica de consulta das bases antes da tomada de decisão, uma politica que emana das bases.

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projetos políticos e sindicais entre setores de esquerda partidários e que “viriam a

ser partidários” (no caso, a criação do PT), em uma disputa pela adesão de

trabalhadores da cidade e do campo à identidade de um “novo sindicalismo” e de

uma “nova” esquerda a ser “constituída tendo no Partido Comunista Brasileiro

(PCB) um excelente contraponto” (SANTANA, 1999: 104-5).

Localizado neste campo do saber que privilegia a tentativa de construção do

sentido como um método, onde o historiador “não para de encontrar o presente no

seu objeto, e o passado, nas suas práticas” (CERTEAU, 2000: 46) esta

comunicação, como parte da pesquisa de doutoramento em curso, pretende

apresentar certos aspectos da linguagem estética e discursiva do filme de Gervitz-

Segall associando-o a aproximações, tensões e distanciamentos entre projetos

politico-ideológicos dessas esquerdas.

Objetivo

O ponto de partida da análise fílmica de Braços Cruzados, Máquinas

Paradas (1978) pretendeu construir uma interpretação historiográfica sobre este

“momento aberto” na história nacional e realizar uma leitura crítica sobre a

produção cultural da “nova” esquerda, um segmento ainda pouco estudado do

ponto de vista da história cultural do regime militar (Napolitano: 2011, 297).

O recorte da pesquisa de doutorado para esta comunicação abordará a

passagem sobre o bairro popular e a sequência final de Braços Cruzados (1978)

como epílogos da peça fílmica, em que a construção argumentativa revelou-se em

fina agenda à matriz discursiva católica e as instituições orgânicas conectadas a

este campo, a incidir sobre o ambiente das lutas populares dos anos 1970 no país.

Resultados (parciais)

Os resultados da análise de Braços Cruzados, Máquinas Paradas (1978) são

por certo parciais dada a trajetória em curso dessa pesquisa. Contudo, foi possível

articular elementos históricos e políticos nessa construção interpretativa como

resposta a algumas hipóteses, os quais serão a seguir apresentados.

Havia por parte das esquerdas nacionais um ambiente de autocrítica e

revisão, desde o golpe de 1964, que acreditava ter encontrado no projeto de “ida ao

operário” e nos movimentos grevistas por um “novo” sindicalismo suas respostas.

Essa “ida ao povo” precedia de estratégias de aproximação e modos de

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representação (a serem incorporados nas obras fílmicas sobre o período)

sintomáticos a um ambiente cultural que também passava por revisões.

Jean-Claude Bernardet era um exemplo expoentes e uma das principais

referências no campo da crítica cinematográfica de esquerda, desde o cinema

novo, a alimentar muitos desses debates. No ensaio Transparência ou Intervenção,

de 1986, o cineasta defenderá que a relação do intelectual-cineasta no cinema

brasileiro dos anos 1970 seria parte de um “quadro de revisão mais amplo”. O olhar

“sociológico”, de vanguarda, do artista dos anos 1960 sobre a inadequação do

comportamento popular para solucionar seu próprios problemas sociais desloca-se

para a defesa do intelectual-artista orgânico à serviço do popular, que “longe de

querer ensinar se elimina diante do comportamento popular que seu filme

apresenta, e se algo há de ser ensinado, é ele cineasta que quer ser ensinado pelo

povo” (FILME CULTURA, 2010: 54).

Uma certa “batalha” pelas formas de representação daquela década,

conforme anuncia Bernardet, puderam ser verificadas como preocupações dos

realizadores de Braços Cruzados, Máquinas Paradas (1978). Para os cineastas,

Gervitz e Segall, a premissa por um cinema militante mais fluido, constituído sob

bases orgânicas e colaborativas (em que a autoria é menos importante, pois

valoriza os sujeitos e grupos sociais a partir de seu próprio referencial), encontraria

maior consonância com o modo de se compreender e articular arte engajada e

“povo” a partir daquela década.

Uma visão de longa duração, contudo, pode localizar nessa “organicidade”

maior entre artista e “povo”, de valorização do saber popular compreendida na

historiografia como um deslocamento próprio daquele ambiente de revisão dos

anos 1970, em uma chave de leitura que transbordaria inclusive o contexto

nacional. Diz-se que sua “gênese” estaria localizada no cinema militante europeu,

fortemente marcado pelo maio de 1968 francês, mas foi possível encontrar

vestígios desse pressuposto em produções de “leitura documentarizante” 2 no

documentarismo inglês dos anos 1930, que desde então refletia sobre o papel e a

2Por leitura documentarizante Roger Odin compreende transformar a análise fílmica em uma leitura capaz de tratar todo o filme como documento. Todo filme que teria como enfoque construir um eu de origem “real”, ou seja, a historia e/ou um sujeito, ou uma instituição etc. existiriam previamente à criação do filme, este filme não existe per se (ODIN, 2012: 15).

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postura dos cineastas frente às classes populares3. Este “hábito” circulou sobre o

ambiente cinematográfico com uma duração quase tão longa quanto a do próprio

universo do documentário.

Assim como este tema da “intervenção ou transparência”, outra estratégia

estética, discursiva e política será corporificada em Braços Cruzados (1978),

contudo, a partir de uma outra matriz, a de perspectiva cristã. Para Vera Telles, a

Igreja Católica nos anos 1970 tornar-se-ia certamente a propulsora a estimular

“uma identidade comum aos “oprimidos” enquanto Povo de Deus e agentes de uma

nova sociedade mais justa e igualitária. Da experiência cotidiana, as comunidades

de base acabavam por transformarem-se em lugares onde os sentimentos de

injustiça e privação eram elaborados como problemáticas coletivas” (1986: 48).

Contudo, apesar desta legítima ancoragem, Telles questionava o papel da

Igreja como formulador deste novo paradigma de luta e resistência nos espaços

cotidianos e convívio comunitário dos bairros. De acordo com a autora, haveria

uma “herança” sendo transmitida em espaços e tempos diferenciados, que

tornariam o bairro naqueles anos 1970 mais seu “receptor” do que propriamente o

criador de uma verve politizadora do cotidiano (op.cit, 1986: 49).

Inserido nesse ambiente, Braços Cruzados, Máquinas Paradas (1978)

construirá sua representação sobre o bairro popular após uma sequência que

entrevista apressadamente o “pelego” Joaquim dos Santos Andrade, o Joaquinzão,

e os pilares da campanha sindical da Chapa 1. Entre imagens da periferia da capital

paulista, a banda sonora assumirá o papel da voz over (de narrador onipresente)

em um samba irônico intitulado “Se Segura Joaquim”, composto por Silvio Modesto:

quem é esse cara que fala e promete e não resolve nada / se segura Joaquim, cuidado com a rapaziada (2x) / mas que falta de respeito, com a classe operariada / seu reinado brevemente estará fora de jogada / se segura Joaquim, cuidado com a rapaziada (2x) / desse teu papo mesquinho, da sua conversa

3 Para Peter Stansky “as origens do movimento do documentário Britânico nasce nos anos trinta usualmente com um grupo de esquerda mas definitivamente intelectuais da classe média cujas interpretações do olhar para os britânicos comuns, e particularmente sua representação sobre as pessoas da classe trabalhadora, devem ser consideradas com cautela” (tradução nossa). O autor sugere ainda que muitos documentaristas costumam não “evitar o perigo de pretender falar pela vasta maioria ou pregar por ela”, como um tipo de “elitismo paternalista”. (STANSKY, ABRAHAMS, 1997: 78)

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fiada, diz que esta fazendo tudo, não está fazendo nada / se segura Joaquim, cuidado com a rapaziada (2x) / quanta gente trabalhando sem direito de morada, ninguém mais tá embarcando, na tua canoa furada / se segura Joaquim, cuidado com a rapaziada (2x) / quem é esse cara? (MODESTO, 1978)

Imagem em movimento e música reiteram-se nessa que será uma das

passagens mais românticas construídas pelo filme. Sequência, décadas mais tarde,

a ser lamentada por Gervitz por seu caráter “populista” e a forma com que moldou a

imagem de Joaquinzão:

não nos escapou o ranço populista da cena, sem falar no vazio descritivo das imagens usadas para ilustrar (outra coisa que odeio fazer) o samba. Além disso, nós não precisávamos destruir o Joaquinzão antes do espectador chegar às suas próprias conclusões. Até mesmo num filme de propaganda é melhor o público pensar por si mesmo (FILME CULTURA, 2005: 70).

A seguir, as imagens desta sequência que comunicava, ao mesmo tempo,

iconográfica e ideologicamente o bairro popular, na melodia “Se Segura Joaquim”.

Imagem 1: a periferia Imagem 2: criança no balde sendo lavada

Imagem 3: homem bebendo Imagem 4: crianças pulam corda

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Imagem 5: casebres, galinhas, bezerro, mato

Imagem 6: crianças olham a câmera Imagem 7: homens e criança construindo uma casa

A iconografia: galinhas, o que parece ser um bezerro bebendo água do

córrego a céu aberto, crianças pulando corda, um homem com a cachaça, um bebê

sendo lavado pela mãe no balde, meninas andando de mãos dadas brincando,

homens e crianças construindo suas casas. A periferia de Braços Cruzados (1978)

é uma cidade pobre semi-rural, composta em sua maioria por crianças jogando nas

ruas, algumas mães e por poucos homens erguendo suas casas, um deles “até

bebe”, animado. O lirismo do bairro popular na diegése fílmica era o contraponto ao

ambiente árduo, opressor e extenuante da fábrica “infernal” retratada no filme.

Braços Cruzados (1978) promove então uma leitura cristã sobre a

construção de novos espaços de sociabilidade e resistência para as esquerdas no

final dos anos 1970 endereçada ao bairro popular. A mensagem da “Igreja dos

Pobres”, do povo bom, humilde, trabalhador e oprimido que constrói sua autonomia

e luta por direitos por meio da comunhão e da solidariedade nos bairros é um

manifesto referendado à matriz discursiva dessa “nova” igreja católica, desde

Medellín 4 . A prática politica nasceria da experiência do cotidiano e não pelos

4 Foi o encontro da Segunda Conferência dos Bispos da América Latina, ocorrido em 1968, em Medellín, na Colômbia, que seria “marcado por denúncias dos bispos presentes contra a violência

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arautos de uma vanguarda onipresente e onisciente, ou seja, não haveria

conscientização a partir de um saber que vem “de fora”, mas do povo “junto, com

erros e acertos”, a decidir seu destino (op.cit. 1986: 64).

Como resultado, esta pesquisa notou que o argumento da obra fílmica

perpassou o imaginário de dois grupos específicos para ser construído. O primeiro,

o de intelectuais-cineastas realizadores de Braços Cruzados (1978), para além de

Gervitz e Segall, mas de conexões e trocas culturais mais amplas operadas no

universo em que estão localizados estes cineastas, como no grupo Tarumã da

ECA-USP, no diálogo com outros cineastas e correntes do cinema militante.

O segundo imaginário, como não poderia deixar de ser, da própria OSM-SP,

contudo, apesar da heterogeneidade que a Oposição Sindical imprimia em sua

estrutura organizacional, houve um núcleo político de tendência específica a pautar

os realizadores previamente e durante a construção do filme. Validou-se, destarte,

a hipótese de sua vinculação orgânica a uma tradição intelectual progressista da

igreja católica em defesa por uma democracia cristã, que viria do fim da era Vargas.

O filme é construído de modo a prevalecer uma mensagem uníssona sobre o

projeto da OSM-SP e a não transparecer suas contradições, complexidades e

impasses internos. Porém, nossas visitas aos arquivos revelaram como a OSM-SP

era, ao contrário, uma expressão de vozes por demais heterogêneas, que agregava

naquele momento político “em aberto” sujeitos advindos de muitos espaços de

militância, partidos, movimentos sindicais e populares, organizações de bairro e de

base da igreja católica, entre outros, em disputa não apenas pelo espaço dentro da

Oposição Sindical, mas pelo próprio significado de um projeto político para a classe

trabalhadora brasileira.

O discurso fílmico da Praça da Sé seria emblemático neste sentido.

Reconhecemos nele os mecanismos estratégicos da construção argumentativa de

Braços Cruzados (1978) como um refluxo da interpretação que matriz católica

endereçava ao trabalhador dos bairros populares. Sujeitos esses que, dois anos

após as filmagens, fariam parte dessa “nova” esquerda a participar da criação do

institucionalizada” nas ditaduras latino americanas, “seu compromisso de “unir-se aos pobres” além de um implícito “mea culpa” por quatro séculos de aliança com as classes dominantes”, que resultaria em um relatório final endossado inclusive pelo pontífice então em exercício, o Papa Paulo VI (op. cit. 1986: 16)

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Partido dos Trabalhadores (PT) e, no entanto, na mensagem fílmica seriam tratados

como apartidários e avessos à estrutura sindical. O filme localiza a classe popular,

portanto, enquanto o personagem capaz de desconstruir sua própria opressão, por

meio da sociabilidade e agenda de direitos organizada através dos bairros e da luta

cotidiana nas fábricas. O “povo unido” jamais seria vencido.

A seguir apresentaremos trechos dessa sequência final de Braços Cruzados

(1978), na Praça da Sé, pela defesa da força da união das classes populares.

Imagem 9: faixa int. Movimento Custo de Vida Imagem 10: Movimento Custo de Vida, bairros e assinaturas contra a Carestia para a presidência da República, Catedral da Sé

Imagem 11: Orador int. Catedral da Sé Imagem 12: Escadaria ext. Igreja da Sé

Imagem 13: Faixa int. Catedral da Sé Imagem 14: Escadaria ext. Catedral da Sé

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O orador na Catedral da Sé manifesta:

companheiros, hoje aqui nesta Assembleia do movimento do custo de vida, movimento esse em que nós, trabalhadores da classe operaria, são os que mais sofremos porque os nossos salários, infelizmente são os mais baixos de todas as categorias que existe. E nós não podíamos deixar de também dar o nosso apoio a esse movimento porque foram as nossas donas de casas que iniciaram ele. E que estão enfrentando ainda hoje os maiores problemas pra conseguirem essa Assembleia. Foram essas donas de casa que nessa semana não mediram esforços para se reunir, ate altas horas da noite, porque eles diziam que lá, por detrás desse movimento estavam coisas subversivas e nos operários dizemos que não há nada disso nesse movimento. E que a coisa... e que a coisa que nos consideramos subversiva foi o arrocho salarial em que foi implantado e foi esse arrocho que nós não estava aguentando mais essa situação, nos vencemos uma 1a etapa hoje e que nos devemos continuar essa etapa, continuar como? Pensando ai em continuidade nesse movimento, dentro da fabrica, pensando na continuidade desse movimento; nessa campanha salarial que se aproxima e pedindo assim nessa campanha salarial um reajuste que não seja mais um reajuste de esmola, que não seja mais um reajuste de fome, mas um reajuste... mas um reajuste com dignidade e viva os trabalhadores! Multidão: Viva! Multidão: a praça é do povo! O povo, na raca, ja conquistou a praça!... o povo, unido, jamais será vencido!... (Braços Cruzados, 1978: 1h8min.)

Entre os documentos sobre a circulação do filme atestamos sua intrínseca

organicidade junto à CNBB5 e a relação com a organização não governamental de

cunho católico FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e

Educacional)6, que atua mundialmente como um braço da Conferencia Nacional

5 Na Assembleia regional da CNBB, em 1982, há projeção de Braços Cruzados (1978) antes dos debates. O objetivo do encontro é discutir sobre o documento do Papa João Paulo II sobre o papel da igreja. Para dom Angélico Sandalo Bernardino “há todo um sistema socioeconômico-politico que não esta de acordo com a palavra de Deus. Nem o capitalismo nem o comunismo satisfazem a necessidade de participação do trabalhador.” Jornal do Brasil 1/6/1982. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=Captcha&PagFis=43772 6 Entrevista com Diogo Gomes da Dina Filmes, em 2/4/1981. Entrevistador: “eu soube viajando pelo nordeste que Braços Cruzados foi exibido adoidado, e algumas exibições, eu tenho certeza que não foram pela Dina; se eu não estou errado foi pela FASE”. Existe também concorrência entre os filmes distribuídos? Diogo: “A FASE, por exemplo, é uma das produtoras do filme, do Braços Cruzados, que é mantida pela igreja (grifo meu). Então ela pagou o mínimo pelo filme e realmente tem exibido muito esse filme, no Nordeste principalmente, mais do que a Dinafilme”. In: Centro Cultural Vergueiro, acervo Multimeios, 42fls/f1 TR 2559 laudas 14 e 15.

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dos Bispos Norte-Americanos 7 . No Brasil, o vínculo da FASE com a CNBB,

naqueles anos 1970, era estrutural. A FASE apoiou a produção do filme, além de

contribuir tecnicamente com a OSM-SP, nas décadas de 1970 e 1980, com a

publicação de jornais, relatórios de memória e análises políticas da organização.

Considerações finais

Para a historiografia, a construção da ideia de um “novo sindicalismo” foi

uma eficaz invenção da “nova” esquerda que, em busca de renovação, reorganiza a

memória do movimento sindical para a “construção de sua alteridade política”

(SANTOS, 2011: 60). Do mesmo modo, obras como Braços Cruzados, Máquinas

Paradas (1978) podem ser vistas como “lugares de memória” (NORA, 1993: 21)

capazes de articular vontades, tradições e rupturas que servem ao exercício crítico

e ao fazer do historiador, contribuindo para a construção e investigação de novas

identidades e narrativas a serem moldadas na historicidade do tempo.

O projeto político e a alternativa de organização popular construídos em Braços

Cruzados, Máquinas Paradas (1978) trata sobre a emancipação operária a partir de

sua organização social, união e autonomia frente à estrutura sindical, mas também,

frente aos partidos políticos. A passagem na Catedral da Sé apresenta uma mise-

en-scène histórica que identifica naquele fim dos anos 1970 o operário fabril tal e

qual o agente de transformações sociais nacional e o “sujeito de sua própria

história”.

Esta concepção do operário sindical como um novo sujeito histórico considerava

a articulação de dos campos de produção do sentido, os cineastas intelectuais, e as

instituições (OSM, CNBB, FASE) que encomendaram o filme. Desta união de

intenções, elaborou-se uma narrativa e memória sobre estas identidades coletivas,

atreladas a um projeto de autonomia e união popular, através de sua prática de

resistência e luta por direitos, inserida no cotidiano dos bairros populares. Valores

os quais, grosso modo, notavelmente bibliografados no campo das ciências

humanas como parte de uma leitura cristã de autonomia(SADER, 1988: 52-60).

Destaca-se aqui o ineditismo sobre a organicidade com que Braços Cruzados

(1978) dialoga tanto esteticamente com novas configurações audiovisuais, como

7 Ver o trabalho de mestrado de Eduardo Karol, Território e Territorialidade da Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional - F.A.S.E.

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com a matriz narrativa católica na película, deslocando o filme de um lugar

comumente identificado com o Cinema Novo e com a necessidade de uma

vanguarda na luta política, para uma perspectiva de cinema político híbrido, basista

e orgânico distintos de um projeto autoral como seria no cinemanovismo.

Os resultados dessa comunicação pretenderam contribuir para localizar esse

discurso “fundador” dos novos personagens em Braços Cruzados (1978) como um

dos primeiros filmes a demarcar esta experiência de modo intencional e

contundente, capaz de abrigar o imaginário não somente de intelectuais e

operários, mas de uma pluralidade de militantes e partidos políticos de esquerda, a

vê-los como protagonistas de uma mise-en-scène de classe em formação.

Referências

Artigo:

ODIN, Roger. Filme documentário, leitura documentarizante. Revista Significação,

ano 39, no. 37, pg. 11-30. Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São

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SANTANA, Marco Aurélio. Entre a ruptura e a continuidade: visões da história do

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Capítulo de livro:

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Autor de livro:

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SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena, São Paulo, Paz e

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STANSKY, ABRAHAMS. London’s Burning. Constable: Londres, 1997.

Dissertações e Teses:

Eduardo Karol, Território e Territorialidade da Federação de Órgãos para a

Assistência Social e Educacional - F.A.S.E. Departamento de Geografia da

FFLCH-USP, em 2000. Disponível em http://br.monografias.com/trabalhos/territorio-

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