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• POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA MEDICAMENTOS Brasil integra esforço mundial para o desenvolvimento de sete novas drogas LucILIA ATAS E ntre 1975 e 1999, apenas 15 novos produtos foram desen- volvidos para o tratamento da tuberculose e de doenças tro- picais como o mal de Chagas, a malária, a leishmaniose e a doença do sono. Em comparação, no mesmo perío- do, surgiram 179 novas drogas somente para atender os portadores de doenças cardiovasculares. Vale registrar que tanto aquelas doenças - negligenciadas, para as quais o tratamento, quando existe, é ina- dequado - como as cardiovasculares, res- pondem praticamente pelo mesmo per- centual, em torno de 12% do número total de doenças do planeta. O desenvolvimento de novas drogas para as doenças que afetam populações em países em desenvolvimento pouco in- teressa à indústria farmacêutica. Este imenso mercado, apesar de reunir cerca de 80% da população mundial, é pouco atrativo já que responde por apenas 20% das vendas globais de remédios. E este descaso é responsável pela morte de mi- lhões de pessoas em todo o mundo. Recentemente, graças à iniciativa da ins- tituição humanitária Médicos Sem Fron- teiras (MSF), à qual se aliou a Organiza- ção Mundial da Saúde (OMS), começam a brotar os primeiros frutos de um programa focalizado no desenvolvimento de produtos inovadores - medicamentos e vacinas - pa- ra enfermidades como essas, cujo tratamen- to não figura no mapa das prioridades da indústria e que tampouco têm sido alvo de políticas públicas firmes e estruturadas. 20 • SETEMBRO DE 2003 PESQUISA FAPESP 91 Denominado Iniciativa de Drogas para Doenças Negligenciadas (cuja sigla é DNDi, em inglês), esse programa arti- cula os esforços de instituições científi- cas, governamentais e privadas de vários países. Os investimentos previstos são da ordem de US$ 250 milhões para um pra- zo de 12 anos, período em que se calcula obter seis ou sete drogas novas registra- das e um portfólio de oito projetos em desenvolvimento. A proposta da MSF - bancada inicial- mente com os recursos do prêmio Nobel da Paz, recebido pela organização em 1999 - é, basicamente, utilizar nessa ini- ciativa o mesmo padrão que a indústria farmacêutica adota na produção de dro- gas "rentáveis", geralmente chanceladas pela chamada tecnologia de ponta. Isto é, desenvolver remédios que representem ver- dadeiras inovações para males antigos, muitos dos quais já não respondem aos medicamentos convencionais. Doença e mercado - Os recursos iniciais para o período 2003-2004 giram em tor- no de US$ 20 milhões. Com o avanço da iniciativa, a expectativa é de que outros parceiros se juntem ao programa, tecen- do, no campo da saúde, uma rede hu- manitária, científica e social talvez inédi- ta no mundo. Típicas das regiões subdesenvolvidas do planeta, as doenças negligenciadas são geralmente ligadas à subnutrição e à falta de saneamento. Sob a ótica empresarial, não vale a pena investir tempo e dinheiro

Brasil integra esforço mundial para o desenvolvimento de ......de sete novas drogas LucILIA ATAS E ntre 1975 e 1999, apenas 15 novos produtos foram desen-volvidos para o tratamento

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Page 1: Brasil integra esforço mundial para o desenvolvimento de ......de sete novas drogas LucILIA ATAS E ntre 1975 e 1999, apenas 15 novos produtos foram desen-volvidos para o tratamento

• POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

MEDICAMENTOS

Brasil integra esforçomundial para o desenvolvimentode sete novas drogas

LucILIA ATAS

Entre 1975 e 1999, apenas 15novos produtos foram desen-volvidos para o tratamento datuberculose e de doenças tro-picais como o mal de Chagas,

a malária, a leishmaniose e a doença dosono. Em comparação, no mesmo perío-do, surgiram 179 novas drogas somentepara atender os portadores de doençascardiovasculares. Vale registrar que tantoaquelas doenças - negligenciadas, para asquais o tratamento, quando existe, é ina-dequado - como as cardiovasculares, res-pondem praticamente pelo mesmo per-centual, em torno de 12% do númerototal de doenças do planeta.

O desenvolvimento de novas drogaspara as doenças que afetam populaçõesem países em desenvolvimento pouco in-teressa à indústria farmacêutica. Esteimenso mercado, apesar de reunir cercade 80% da população mundial, é poucoatrativo já que responde por apenas 20%das vendas globais de remédios. E estedescaso é responsável pela morte de mi-lhões de pessoas em todo o mundo.

Recentemente, graças à iniciativa da ins-tituição humanitária Médicos Sem Fron-teiras (MSF), à qual se aliou a Organiza-ção Mundial da Saúde (OMS), começam abrotar os primeiros frutos de um programafocalizado no desenvolvimento de produtosinovadores - medicamentos e vacinas - pa-ra enfermidades como essas, cujo tratamen-to não figura no mapa das prioridades daindústria e que tampouco têm sido alvode políticas públicas firmes e estruturadas.

20 • SETEMBRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 91

Denominado Iniciativa de Drogaspara Doenças Negligenciadas (cuja siglaé DNDi, em inglês), esse programa arti-cula os esforços de instituições científi-cas, governamentais e privadas de váriospaíses. Os investimentos previstos são daordem de US$ 250 milhões para um pra-zo de 12 anos, período em que se calculaobter seis ou sete drogas novas registra-das e um portfólio de oito projetos emdesenvolvimento.

A proposta da MSF - bancada inicial-mente com os recursos do prêmio Nobelda Paz, recebido pela organização em1999 - é, basicamente, utilizar nessa ini-ciativa o mesmo padrão que a indústriafarmacêutica adota na produção de dro-gas "rentáveis", geralmente chanceladaspela chamada tecnologia de ponta. Isto é,desenvolver remédios que representem ver-dadeiras inovações para males antigos,muitos dos quais já não respondem aosmedicamentos convencionais.

Doença e mercado - Os recursos iniciaispara o período 2003-2004 giram em tor-no de US$ 20 milhões. Com o avanço dainiciativa, a expectativa é de que outrosparceiros se juntem ao programa, tecen-do, no campo da saúde, uma rede hu-manitária, científica e social talvez inédi-ta no mundo.

Típicas das regiões subdesenvolvidasdo planeta, as doenças negligenciadas sãogeralmente ligadas à subnutrição e à faltade saneamento. Sob a ótica empresarial,não vale a pena investir tempo e dinheiro

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nessa seara: o retorno financeiro émuito baixo e, em certos casos, prati-camente nulo. As estatísticas mostramque menos de 10% dos gastos totaisem pesquisas de saúde são aplicadosem doenças que representam 90% dacarga global. E às doenças negligen-ciadas cabe uma fatia ainda menor:calcula-se que, dos cerca de US$ 70bilhões gastos em pesquisa e desen-volvimento (P&D) em 2001, menosde 1% tenha sido destinado ao de-senvolvimento de tratamentos paraesses males.

Buscando reverter esse qua-dro de modo duradouro eprofissional, a MSF lançouoficialmente o DNDi emjulho deste ano, em Gene-

bra. Suas bases de ação estão fincadasnas propostas de um grupo que traba-lha no tema há aproximadamente trêsanos. Sob a coordenação e gerencia-mento da MSF e da OMS, a intenção éenvolver instituições públicas e priva-das, bem como laboratórios e empre-sas, numa verdadeira cruzada interna-cional pela cura dessas doenças. Notraçado desse modelo, o desenvolvimen-to de novos remédios resultará no diá-logo entre vários centros de pesquisa,usando-se o aparato e a infra-estruturajá existentes de modo mais racional,produtivo e eficiente.

É o que está ocorrendo no Brasil,com a participação da Fundação Os-

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waldo Cruz (Fiocruz), cujo Instituto deTecnologia em Fármacos (Far-Mangui-nhos) é um dos membros fundadoresda DNDi. O médico sanitarista PauloBuss, presidente da Fiocruz, explica quea instituição vem trabalhando em umanova formulação farmacêutica que asso-cia duas substâncias, a artesunato e amefloquina (AS/MQ), no tratamento damalária. Nesse projeto, o Far-Mangui-nhos comanda uma parceria com ou-tros dois centros de pesquisa brasileiros,que passaram pelo crivo dos técnicos daOMS. Os sofisticados testes de toxici-dade - uma das áreas em que a d~fasa-gem tecnológica do país é mais profun-da - são realizados pelo laboratório

. Unitox, da Universidade Santo Amaro(Unisa), de São Paulo. E a Genotox, em-presa incubada no Centro de Biotecno-logia da Universidade Federal do RioGrande do Sul (UFRGS), encarrega-sedos testes de genotoxicidade, que detec-tam a possibilidade de mutação genéti-ca induzida por substâncias químicasque compõem os medicamentos e ava-liam o seu dano potencial.

A parceria internacional para a ob-tenção desse medicamento - o qual,dependendo dos resultados da fase clí-nica, poderá ser lançado num prazoque varia entre três e seis anos - envol-ve ainda instituições da Tailândia e daMalásia (testes clínicos) e do ReinoUnido (estudos in vitro e moleculares).

Além da formulação AS/MQ, con-duzida pelo Far-Manguinhos, um outro

projeto ligado à malária está em an-damento. Trata-se de uma formulaçãoque associa artesunato e amodiaquina(AS/AQ), cujo desenvolvimento farma-cêutico está sendo elaborado na Fran-ça, cabendo ao Brasil os testes de toxici-dade e genotoxicidade e a Burkina Fasoos testes clínicos em humanos.

Encontra-se também em fase de de-senvolvimento, em âmbito internacio-nal, o paromomicin, droga de uso vete-rinário que está sendo rejuvenescidapara uso humano, sob a forma injetável,para combater a leishmaniose. A cria-ção de outros medicamentos deverá, emlinhas gerais, seguir esse mesmo esque-ma cooperativo: diferentes centros pelomundo encarregam-se de diferentes eta-pas, da formulação à produção.

Competência e resultados - Eloan Pi-nheiro, ex-diretora do Far-Manguinhose membro da DNDi internacional, as-sinala que a presença brasileira nessainiciativa representou a consolidação doFar-Manguinhos no cenário mundial,após a instituição ter desenvolvido asformulações para o coquetel de drogasde combate ao vírus da Aids.

A capacitação científica existente hojeno país é "extraordinária", avalia PauloBuss. O que falta, em sua opinião, é umprojeto mais consistente que combine aparte científica com a área industrial."Porque a pesquisa produz artigoscientíficos; produzir algo tangível não éprática corriqueira, não faz parte da

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cultura universitária brasileira:' Nesseâmbito, o representante da Campanhade Acesso a Medicamentos Essenciaisda MSF no Brasil, Michel Lotrowska,sugere que as instituições brasileiras definanciamento adotem linhas de apoioespecíficas para projetos que focalizemo desenvolvimento de novos produtos,isto é, projetos que ofereçam resultadosconcretos para os pacientes.

Eloan Pinheiro observa queo país tem uma boa com-petência científica insta-lada em várias universida-des e institutos. Esta base

está apta a desenvolver novos pro-dutos para doenças negligenciadas,utilizando tanto plantas medicinaiscomo armas da biotecnologia e dasíntese química.

Apesar disso, há grandes lacunas naárea de farmacologia, toxicologia, testesclínicos e desenvolvimento de metodo-logia clínica. "Temos no país os cérebros,mas faltam áreas estruturadas em quan-tidade e qualidade para a realização dosensaios. Considero isso conseqüência dafalta de uma política industrial no setorde insumos terapeuticamente ativos.Não há ainda uma política de produ-ção de insumos que estão fora de pa-tente': constata Eloan.

Nas últimas décadas, o conhecimen-to científico na área de saúde evoluiubastante e introduziram-se novos me-dicamentos para as doenças globais,

como o câncer e as cardiovasculares.Até mesmo para problemas ligados ao"estilo de vida", como celulite, calvíciee jet leg, têm surgido medicamentosinovadores.

Contrastando com esse quadro deavanço, acentuou-se o abismo que se-para as doenças tropicais e não tropi-cais. Praticamente não se lançaram, nosúltimos 25 anos, remédios mais "mo-dernos" para controlar ou debelar asprimeiras. Muitas dessas enfermidadessão combatidas até hoje com formula-ções existentes há cerca de 40 anos,que não produzem mais os efeitos de-sejados, aumentando o sofrimento daspessoas. Documento da MSF assinalaque até muito recentemente pacientesque sofriam da doença do sono, porexemplo, tinham de submeter-se a umdoloroso tratamento à base de arsêni-co por falta de disponibilidade de umremédio mais eficaz.

Apesar dessas constatações, os espe-cialistas que traçaram as diretrizes daDNDi não culpam apenas a iniciativaprivada pela falta no mercado de novosprodutos, de kits de diagnóstico ou mes-mo de vacinas para as doenças negli-genciadas. O programa indica tambémfalhas na área pública. Nos países menosdesenvolvidos, há, entre outros fatores,uma combinação perversa de falta derecursos financeiros e de estabelecimen-to de políticas de incentivo à produçãoe ao desenvolvimento tecnológico detratamento para essas patologias.

Rede regional - Na fase atual do pro-grama, foram pré-selecionados 71 pro-jetos, informa Michel Lotrowska. Opróximo passo é realizar uma triagempara escolher aqueles que serão efeti-vamente desenvolvidos. A participaçãodo setor privado ainda está sendo de-lineada, tendo havido reuniões com aindústria farmacêutica, mas os tiposde colaboração não foram ainda for-matados.

O representante da MSF diz aindaque a DNDi está montando uma redede escritórios regionais para sincroni-zar melhor os diferentes projetos, emvárias partes do mundo. O "braço" dainiciativa para a América Latina e Ca-ribe deverá funcionar no Brasil pro-vavelmente a partir de 2004. A meta éorganizar um network, para que osprofissionais envolvidos comparti-lhem pesquisas, recursos humanos euso de laboratórios, além de identi-ficar oportunidades de projetos e cap-tar fundos.

Cada uma das etapas definidas pa-ra os projetos aprovados poderá serexecutada em países diferentes, mastodas estarão sob o guarda-chuva ins-titucional da MSF e da OMS no que serefere à coordenação e gerenciamen-to dos projetos. A idéia é que as ino-vações resultantes dos trabalhos deinvestigação constituam patentes pú-blicas, o que garantirá o amplo acessodas populações-alvo aos medicamen-tos produzidos. •

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