Brasilidades Cachaça

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  • 8/14/2019 Brasilidades Cachaa

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    Como reconhecer uma boa cachaa? Para comeo de con-versa, a que boa mesmo, diferente da maioria encontra-da no mercado, tem aroma agradvel, no desce quei-mando, no d bafo e tambm no d ressaca.

    Embora seja uma bebida destilada, como o usque, e no

    fermentada, como o vinho, uma cachaa realmente boa mais se-melhante ao vinho do que ao usque. Lamentavelmente poucaspessoas sabem disso. So raros os alambiques produtores da mais

    legtima e antiga bebida brasileira na qualidade especial que todacachaa poderia ter (a propsito de antigidade, h registro hist-rico de que o primeiro engenho para moagem de cana-de-acar

    no Brasil foi construdo em 153, por Martim Afonso de Sousa,donatrio da Capitania de So Vicente).

    No riqussimo e pouco conhecido universo da cachaa, oconsumidor ca imerso na tempestade de informaes de interesse

    comercial, de opinies inconsistentes quase sempre contaminadaspelo exibicionismo de quem produz ou de quem consome, como

    Demstenes Romano

    Como reconheceruma boa cachaa

  • 8/14/2019 Brasilidades Cachaa

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    se tudo fosse mistrio e exclusividade na produ-

    o e na degustao de uma boa cachaa.Antes de ter meu primeiro alambique,

    pesquisei muito sobre produo e consumo de

    cachaa no Brasil, visitando muitos produtores,fazendo cursos, lendo tudo que encontrei, procu-rando as poucas universidades que se interessa-

    vam pelo assunto, espichando muitas conversaspelo interior de Minas Gerais.

    Nessas andanas, quei surpreso ao cons-

    tatar o promissor futuro da cachaa, ainda queenvolta por amadorismo, preconceito, marginali-dade. Assim como ocorre na vida e em gesto de

    negcios, quanto mais baixo o estgio de evolu-o, mais amplo o espao para a expanso.Se o leitor pensa no saber produzir e no

    saber degustar uma boa cachaa, esteja vonta-de, isso acontece at mesmo com apreciadores

    brasileiros.

    Se voc acha que um desinformado emcachaa, saiba que o problema no seu: a desin-formao ronda a cachaa, quase sempre disfar-ada em indenies primrias, a comear pelo

    nome do produto: cachaa, pinga, caninha ouaguardente? Sem falar nos sinnimos populares

    mais usados: birita, branquinha, cobertor de po-bre, dengosa, uca, tira-teimas, m, gua que pas-sarinho no bebe, canjebrina.

    Como o que nos interessa aqui falar sobrealgumas orientaes na produo e na avaliaode qualidade, deixamos ao arbtrio do leitor.

    Para situar o leigo, explicitamos que nos

    referimos cachaa artesanal produzida em pe-quena escala, porque quantidade e qualidade no

    combinam bem neste processo, do mesmo jeitoque h substancial diferena entre fazer uma boacomida em fogo lenha para dez pessoas ou fa-

    zer para cem pessoas.Resumidamente, o processo tradicional

    assim:

    1. Cultivo da cana-de-acar qualquer uma

    das centenas de variedades de cana servepara ser alambicada. A diferena entre umaou outra se reete mais na produtividade,

    na quantidade de caldo ou no teor de saca-rose, do que na qualidade da cachaa. Emtempo, nada de venenos, de fogo, e de ou-

    tras prticas ecologicamente condenveis.2. Moagem a cana triturada, geralmente em

    engenhos convencionais de moendas, para

    dela se extrair o caldo mais comumente cha-mado de garapa. Aqui, na moagem, dois fa-tores inuem decisivamente no grau de aci-

    dez da cachaa: a limpeza e a higienizaodo engenho, e o tempo que a cana car cor-tada (tanto melhor quanto menor for o pra-

    zo entre o corte, transporte e a moagem).3. Fermentao do engenho, a garapa vai

    para tanques ou cubas, aperfeioando o pro-duto nal, mais coada e sem bagacilhos ou

    qualquer outro resduo slido. Nesses reci-pientes diariamente se coloca garapa nova

    e limpa, com teor de sacarose em torno de

    15 graus brix (grau que indica o teor de sa-carose, medido por um aparelho chamado

    sacarmetro) e pH de ,8 a 6,0. No processoartesanal de produo de cachaa, utilizan-do fermentao caipira, cerca de 20% do

    recipiente contm fub de milho torrado emais um pequeno percentual de farelo desoja e farejo de arroz. Nesses nutrientes

    orgnicos encharcados de garapa prolife-

    ram microorganismos, dentre os quais sesobressaem as leveduras, clulas eucario-

    tas predominantemente saccharomyces eschizosaccharomyces as mais ecientes

    na transformao de sacarose em etanol. A

    converso do acar em lcool proporcio-na a transformao da garapa em mosto, amatria pronta para a fase de destilao. Em

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    Garrafa de cachaa.Ricardo Azoury / Pulsar Imagens

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    boas condies, o tempo de fermentao va-

    ria de 12 a 2 horas, incluindo o perodo dedecantao.

    A cachaa boa ou no (no sabor, no

    aroma, na leveza, na maciez, no dia seguin-te) em funo de cada detalhe do processode produo. Mas o conjunto de detalhes da

    fase de fermentao essencial e difcil degerenciar. Basta lembrar que, na prtica, oque chamamos de fermentao a criao

    de seres vivos, as leveduras, no visveis aoolho nu, super sensveis e exigentes quantoa horrios de alimentao (renovao da ga-

    rapa doce por natureza), tempo de descanso(decantao), condies ambientais (tempe-ratura local e higiene do recipiente) e condi-

    es para reproduo e renovao das clu-las.

    Se voc tiver a oportunidade de visitar

    um alambique em todas as instalaes, prio-rize a parte vital, onde se fermenta, e pro-cure observar os cinco indicadores de qua-lidade do processo com inuncia direta na

    qualidade do produto nal:

    3.1 ao chegar, respire fundo e sinta se o aroma

    de frutas maduras, suave, agradvel, ou se ocheiro um misto de lcool e de algo azedo,como se alguma coisa estivesse ali se decom-

    pondo e exalando acidez.3.2 veja se existem moscas e mosquitos no am-

    biente de fermentao. A presena de mos-cas de vinagre (droslas) indica infeco

    por bactrias acticas que fazem aumentar aacidez do mosto e do produto nal.

    3.3 outro indicativo de qualidade da fermenta-o (ou melhor, da criao de leveduras) o aspecto da espuma que ca na superfcie

    do mosto parecendo fervura. a ao dasleveduras sobre os acares, provocando aformao de gs carbnico na proporo de

    uma molcula do gs para cada molcula do

    etanol. Tambm, a olho nu, preste ateno:mau sinal a ocorrncia de bolhas (quantomaiores, pior) e bom sinal uma movimen-

    tao de fervura semelhante ao que acon-tece na culinria, principalmente em doces.

    3. pergunte sobre a rotina de horrios de reno-

    vao da garapa, de tempo de decantao domosto de edio do brix (teor de sacarose)da garapa ao entrar no tanque. Quanto mais

    constncia e disciplina melhor.3.5 uma pergunta-chave para uma informao

    macro: de quanto em quanto tempo o fer-

    mento tem sido renovado, trocado, refeito?Bom indicador de qualidade se ele noarreia, no adoece e no morre pelo

    menos durante toda safra convencional, emtorno de seis meses. Para quem alambica oano todo, ele deve estar bem o ano todo e

    todo o tempo, apenas sendo oxigenado devez em quando.

    4. Destilao de tanto se alimentarem do

    acar da garapa, as leveduras a transfor-

    mam em mosto, fazendo cair o teor de saca-rose de mais ou menos 15 graus brix parazero. A o mosto zerado de sacarose ca um

    pouco em repouso, para decantao e des-canso das leveduras, e, em seguida, vai

    para os alambiques enormes panelas comcapacidade para cem a mil litros de mosto.

    A destilao da cachaa ocorre por

    aquecimento (fogo direto ou caldeira) do

    mosto que, ao ferver, entra em processo deevaporao. O vapor sobe no alambique e

    se transforma em lquido, condensando-seao entrar em contato com o fundo do capelocheio de gua fria e corrente.

    Nessa fase de destilao, absoluta-mente essencial tirar os primeiros litros dacachaa (essa primeira parte chamada de

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    cabea) que so inevitavelmente conta-

    minados por elementos agressivos sa-de e ao bom gosto do consumidor. Depoisdesses elementos mais volteis, a destilao

    entra na etapa de produo da melhor par-te da cachaa, chamada de corao. Esseproduto de melhor qualidade representa

    dez por cento do total do mosto. Depois docorao vem a cauda, ou gua fraca,que to ou mais nociva sade e ao bem-

    estar do consumidor do que a cabea. aqui que se caracteriza uma das im-

    possibilidades de conciliar quantidade e

    qualidade na produo realmente artesa-nal e tica de uma tima cachaa. A opopara se ter um bom produto no misturar

    corao com cabea e cauda.5. Armazenagem e Envelhecimento engar-

    rafar cachaa nova e coloc-la sem ma-

    turao no mercado deveria ser caso desade pblica. Colocar cachaa nova semengarrafar deveria ser caso de polcia.

    A cachaa armazenada em barris, to-

    nis ou dornas de madeira curtida fazenorme diferena em sabor e em ocorrn-

    cia de elementos volteis. Nessas circuns-tncias, h diferenas marcantes entre a

    bebida produzida no dia, a armazenada

    h um ms e a envelhecida h seis meses,principalmente se a madeira for boa emporos, idade e troca de oxignio, sem inter-

    ferir no sabor, como carvalho ou blsamo.

    Acondicionada em vidro, o envelhecimen-to muito lento, levando anos para alcan-

    ar a maturao que na madeira se alcanaem meses.Como conhecer uma boa cachaa? Respos-

    ta sem contra-indicao: experimentando e sen-do exigente.

    No se impressione com rtulos, folders,histrias interessantes: experimente e no tome

    se ela descer esquentando e arranhando comounha de gato. Tambm no tome se sentir chei-ro de lcool e no de cana. Se notar acidez (gosto

    ou cheiro de vinagre), lembre-se do respeito quevoc deve ter com seu sistema digestivo!

    No desvalorize seu olfato e seu paladarem funo de condicionamentos e folclores

    sobre cachaa colorida ou cachaa branca, ro-srio ou no rosrio: os desonestos falsica-dores sabem como colorir ou como branquear.

    Acredite em sua capacidade de avaliar, analisar eir comparando umas s outras, como quase tudode bom que a gente faz na vida.

    Lamento no poder convidar cada leitor air ao meu alambique para ver a produo e ex-perimentar a cachaa da Fazenda Boi Parido. Os

    que se animarem sero bem-vindos.

    Demstenes RomanoJornalista e produtor de cachaa.

    Artigo originariamente publicado na revistaSabor do Brasil, MRE, 200.

    Como conhecer umaboa cachaa? Resposta

    sem contra-indicao:experimentandoe sendo exigente.

    No se impressionecom rtulos, folders,

    histrias interessantes.