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1 FUNDAMENTOS DAS CIÊNCIAS SOCIAIS UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL – UNIJUÍ VICE-REITORIA DE GRADUAÇÃO – VRG COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA – CEaD Coleção Educação a Distância Série Livro-Texto Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil 2008 Suimar João Bressan FUNDAMENTOS DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

Bressan, Suimar João. Fundamentos das ciências sociais

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    FUNDAMENTOS DAS CINCIAS SOCIAISUNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL UNIJU

    VICE-REITORIA DE GRADUAO VRG

    COORDENADORIA DE EDUCAO A DISTNCIA CEaD

    Coleo Educao a Distncia

    Srie Livro-Texto

    Iju, Rio Grande do Sul, Brasil2008

    Suimar Joo Bressan

    FUNDAMENTOSDAS CINCIAS SOCIAIS

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    FUNDAMENTOS DAS CINCIAS SOCIAIS

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    2008, Editora UnijuRua do Comrcio, 136498700-000 - Iju - RS - BrasilFone: (0__55) 3332-0217Fax: (0__55) 3332-0216E-mail: [email protected]

    www.editoraunijui.com.br

    Editor: Gilmar Antonio Bedin

    Editor-adjunto:Joel Corso

    Capa: Elias Ricardo Schssler

    Designer Educacional:Liane Dal Molin Wissmann

    Responsabilidade Editorial, Grfica e Administrativa:

    Editora Uniju da Universidade Regional do Noroestedo Estado do Rio Grande do Sul (Uniju; Iju, RS, Brasil)

    Catalogao na Publicao:Biblioteca Universitria Mario Osorio Marques Uniju

    B843f Bressan, Suimar Joo.

    Fundamentos das cincias sociais / Suimar JooBressan. Iju : Ed. Uniju, 2008. 122 p. (Coleoeducao a distncia. Srie livro-texto).

    ISBN 978-85-7429-661-6

    1. Sociologia. 2. Maquiavel. 3. Cincia moderna. 4.Modernidade. 5. Racionalismo. 6. Empirismo. I. Ttulo.

    II. Srie.CDU : 316

    316.2

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    FUNDAMENTOS DAS CINCIAS SOCIAIS

    SumrioSumrioSumrioSumrioSumrio

    CONHECENDO O PROFESSOR ................................................................................................. 5

    UNIDADE 1 A FUNDAO DA SOCIOLOGIA

    E O CONTEXTO HISTRICO-SOCIAL E INTELECTUAL ..................................................... 7

    1.1 O que Sociologia ............................................................................................................. 11

    1.2 A fundao da Sociologia contexto histrico-social .................................................. 17

    1.3 A fundao da Sociologia contexto intelectual .......................................................... 32

    1.3.1 O pensamento de Maquiavel e a Cincia moderna .......................................... 32

    1.3.2 A revoluo copernicana e a Cincia moderna ................................................. 36

    1.3.3 O confronto entre racionalismo e empirismo ..................................................... 44

    UNIDADE 2 A FUNDAO DA SOCIOLOGIA:

    As Teorias Sociolgicas Clssicas ............................................................................................ 55

    2.1 O pensamento social anterior Sociologia .................................................................... 55

    2.2 As Teorias Sociolgicas Clssicas

    Comte, Durkheim, Marx e Engels, Weber ........................................................................ 65

    UNIDADE 3 SOCIOLOGIA E CRISE DA MODERNIDADE .............................................. 99

    CONCLUSO .............................................................................................................................. 117

    REFERNCIAS .......................................................................................................................... 121

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    FUNDAMENTOS DAS CINCIAS SOCIAIS

    Suimar Joo Bressan

    Sou professor da Uniju h mais de 30 anos. Embora tenha

    uma formao na rea da Agronomia, fiz uma opo pelas Cincias

    Sociais mais precisamente pela Sociologia em 1975, quando

    tomei a deciso de cursar o Mestrado em Sociologia Rural na

    UFRGS. Na verdade, fui buscar nas Cincias Sociais as respostas

    no encontradas na Agronomia para as interrogaes que a con-

    dio humana nos impe. Obviamente, vivamos uma situao

    poltica no pas bastante complexa, por conta da vigncia do regi-

    me autoritrio. Socilogo era sinnimo de subversivo.

    A Sociologia alimentou os sonhos e as esperanas de milha-

    res de jovens da minha gerao na luta pela democracia e por trans-

    formaes sociais. Foram as reflexes de Florestan Fernandes,

    Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Francisco de Olivei-ra, Costa Pinto, entre outros, que nos permitiram uma compreen-

    so mais profunda dos processos sociais presentes na formao da

    sociedade brasileira. A Sociologia desenvolveu nesse perodo his-

    trico uma grande capacidade de olhar o mundo a partir do Brasil

    e da Amrica Latina, que possibilitou a formulao de alternativas

    sociais concretas para os nossos problemas.

    Costumo me identificar como professor de Sociologia e Pol-

    tica. O que me instiga mesmo, no entanto, o estudo do que de-

    nomino de Teoria Sociolgica e Teoria Poltica, talvez porque essas

    reas possibilitem a construo de uma viso global das socieda-

    des humanas. Atualmente minhas reflexes vinculam-se temtica

    da crise da modernidade, considerando-a numa perspectiva de tran-

    sio social. Estamos vivenciando o fim da sociedade industrial,

    realidade social compreendida e tambm construda pela Sociolo-

    gia. Nesse sentido, entendo ser importante cotejar as proposies

    da Sociologia clssica com as proposies de Alain Touraine,Boaventura de Sousa Santos, Anthony Giddens, Jrgen Habermas,

    Niklas Luhmann, entre outros.

    Conhecendo o professorConhecendo o professorConhecendo o professorConhecendo o professorConhecendo o professor

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    Hoje difcil falar em certezas, mas arrisco relacionar trs

    aspectos que afirmam a grandeza e a vitalidade do pensamento

    sociolgico.

    Primeiro. A Sociologia props uma nova compreenso da

    condio humana a partir da categoria sociedade. Isto quer dizer

    que os atos humanos se desenrolam sempre numa sociedade deter-

    minada, que ao mesmo tempo produz e produto das aes huma-

    nas. Fazer a Histria, portanto, o ato de criar relaes sociais

    que estruturam os sujeitos e as prprias estruturas sociais. a so-

    ciedade que cria os indivduos e no o contrrio.

    Segundo. certo que a Sociologia construiu uma viso cr-

    tica da modernidade e das suas instituies. Essa mesma Sociolo-

    gia identificou uma situao de crise da modernidade. Todos os

    conceitos elaborados para entender a situao atual de transio

    social tm a presena decisiva da Sociologia. Se a cincia uma

    construo social no parece bvio que a Sociologia tambm est

    em processo de construo e que esse processo inesgotvel?

    Terceiro. Todo o conhecimento tem uma dimenso prtica.

    Ele ser sempre, em algum momento, utilizado por algum para

    viabilizar um determinado projeto. A Sociologia deu visibilidade a

    essa dimenso prtica do conhecimento. O esforo intelectual

    empreendido para eliminar a tenso entre o ser e o vir a ser no foi

    bem-sucedido. Penso que d para afirmar uma tese: o futuro da

    Sociologia est sempre ligado a sua capacidade de desenvolver uma

    Sociologia do futuro.

    Concluo essa quase declarao de princpios da seguinte for-

    ma: a humanidade, cada vez mais ameaada pela barbrie, precisa

    da Sociologia, mas de uma Sociologia que seja expresso de um

    humanismo radical.

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    Unidade 1Unidade 1Unidade 1Unidade 1Unidade 1

    A Fundao da Sociologiae o Contexto Histrico-Social e Intelectual

    A criao da Sociologia pode ser inserida entre os grandes eventos ocorridos no sculo

    19. Ela mudou profundamente o modo do homem entender o mundo e a si prprio. O ho-

    mem descobriu-se definitivamente como um ser cuja essncia a sua sociabilidade perma-

    nente. Obviamente as aes humanas fundamentais tm sempre o sentido da reproduo da

    vida. O que a Sociologia nos permitiu perceber que no h possibilidade de que a reprodu-

    o possa ser um ato individual. A vida humana desenvolve-se numa estrutura espao-

    temporal que passamos a chamar de sociedade.

    Os socilogos logo descobriram que desenvolver uma cincia da sociedade uma

    tarefa extremamente difcil e complexa. Uma pergunta repetida at hoje se a Sociologia

    pode ser concebida como uma cincia com o mesmo carter das cincias fsicas e naturais.

    Respostas diferentes foram dadas a essa questo pelos autores que fundaram as trs grandes

    teorias da sociedade: Comte e Durkheim, Marx e Engels e Weber. Por isso, conhec-los

    uma tarefa urgente para quem quiser tornar-se um socilogo.

    Leia com ateno a opinio de Peter Berger sobre a relao do socilogo com a socie-

    dade e com o seu objeto de estudo:

    O fascnio da sociologia est no fato de que sua perspectiva nos leva a ver sob nova luz o prprio

    mundo em que vivemos. Isto tambm constitui uma transformao da conscincia. Alm disso,

    essa transformao mais relevante, do ponto de vista existencial, que a de muitas outras disci-

    plinas intelectuais, porque mais difcil de segregar em algum compartimento especial do esp-

    rito. O astrnomo no vive nas galxias distantes e, fora de seu laboratrio, o fsico nuclear pode

    comer, rir, amar e votar sem pensar em partculas atmicas. O gelogo s examina rochas em

    momentos apropriados e o lingista conversa com sua mulher na linguagem de todo o mundo. O

    socilogo, porm, vive na sociedade, tanto em seu trabalho como fora dele. Sua prpria vida,

    inevitavelmente, converte-se em parte de seu campo de estudo. Em vista da natureza humana ser

    o que , os socilogos tambm conseguem estabelecer uma separao entre sua atividade profis-

    sional e sua vida pessoal em sociedade. Mas uma faanha um tanto difcil de ser realizada emboa f (Berger, 1980, p. 31).

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    O socilogo , ao mesmo tempo, sujeito e objeto do conhe-

    cimento sociolgico. Ele sofreu ao longo da sua vida um proces-

    so de socializao como qualquer outra pessoa, incorporandovalores, conceitos e habilidades, alm de ocupar lugares sociais

    determinados. Em resumo: ele faz parte do seu objeto de estudo,

    de modo que quando um socilogo emite uma opinio sobre a

    sociedade ele tambm est falando de si prprio.

    Mais adequado seria considerarmos que a Sociologia uma

    cincia com um carter especfico, que no pode ser reduzida s

    cincias naturais. Esse debate esteve presente ao longo de todo o

    processo de desenvolvimento da Sociologia. E nada indica que

    ele tenha sido superado. Atualmente tem se levantado, com bas-

    tante freqncia, a tese de que se h um paradigma cientfico

    este deve ter como referncia s Cincias Sociais, pois mesmo os

    conhecimentos sobre a natureza so conhecimentos sociais. Tome

    como exemplo a seguinte questo: por que uma instituio de

    pesquisa via de regra financia um projeto de pesquisa sobre

    transgnicos e no sobre agroecologia?

    A Soc iologi a nasceu num con texto de afi rmao da

    modernidade, em que a sociedade industrial capitalista, organi-

    zada territorialmente em economias nacionais, cuja unidade e

    soberania de cada territrio determinada por um poder poltico

    e ideolgico igualmente nacional. Todas as teorias sociolgicas

    foram teorias elaboradas sobre essa sociedade, porm no so

    apenas teorias eqidistantes dos problemas que querem explicar:

    constituem, aberta ou veladamente, propostas de ao. Por isso,

    no surpreendente que Auguste Comte tenha fundado, a partir

    do positivismo, que estudaremos mais adiante, uma religio da

    humanidade, e Marx e Engels tenham atuado decisivamente na

    criao do primeiro partido poltico moderno.

    A Sociologia constitui a base e o fundamento das Cincias

    Sociais contemporneas, como a Antropologia, a Cincia Polti-

    ca, a Economia, a Geografia, a Histria, o Servio Social, a Co-

    municao Social, etc. Foi por meio da Sociologia que a pesqui-sa de temticas diversas foi possvel, estabelecendo vrias espe-

    cialidades: rural, urbana, do trabalho, de Direito, da religio, da

    Paradigma

    Modelo, padro; paradigmacientfico quer dizer a existn-

    cia de um conjunto estabeleci-do de teorias, mtodos etcnicas que organizam apesquisa cientfica. Esse

    modelo confere legitimidade(aceitao) aos resultados das

    pesquisas.

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    cultura, da poltica, da economia, etc. O desenvolvimento da

    diviso do trabalho cientfico, contudo, estabeleceu uma outra

    diviso, compondo o que hoje denominamos de Cincias Sociaisparticulares. Alm da Sociologia, tambm a Antropologia, a Cin-

    cia Poltica, a Economia, a Geografia, a Histria, o Servio Soci-

    al, a Comunicao Social, etc. fazem parte desse campo terico.

    Mesmo que cada cincia tenha um campo particular, elas pos-

    suem uma identidade e um fundamento comuns: a existncia

    social do homem. Como Cincias Sociais precisam enfrentar os

    mesmos problemas metodolgicos que caracterizaram a histria

    da Sociologia.

    Estamos vivendo uma nova era de transio social: a soci-

    edade industrial nacional tanto na sua verso capitalista como

    socialista est sendo substituda por uma outra sociedade, que

    provisoriamente vamos designar como informacional global. Esta

    nova sociedade um produto do desenvolvimento do capitalis-

    mo, pois foi o mundo do capital que acumulou foras produti-

    vas capazes de gerar uma nova evoluo industrial (ou

    informacional). Tudo indica que est em desenvolvimento uma

    nova e prolongada fase de reproduo capitalista.

    Nas ltimas dcadas, duas idias tomaram conta da

    intelectualidade mundial. De um lado, a afirmao taxativa do

    fim das ideologias e da histria como expresso do predomnio

    definitivo da economia de mercado e do Estado liberal democr-

    tico. De outro, a idia de crise do paradigma cientfico da

    modernidade que atingiu em cheio a Sociologia e as CinciasSociais. claro que no se pode separar a crise das Cincias So-

    ciais da atual situao de transformao social.

    Um desdobramento da crise das Cincias Sociais revela-se

    na alternativa: reconstruo da modernidade ou ps-

    modernidade? A modernidade esgotou suas promessas de eman-

    cipao do homem de tal modo que a sada est na descontruo

    das instituies da modernidade, ou ainda possvel reconstruiro projeto da modernidade mediante uma reviso profunda dos

    seus pressupostos? A primeira alternativa marginaliza a Sociolo-

    Estado liberaldemocrtico

    Forma de poder poltico em

    que se estabelece limites aopoder do Estado para evitar oabsolutismo e, ao mesmotempo, afirmar a soberaniapopular como base e funda-mento do poder poltico.

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    gia e as Cincias Sociais; a segunda exige uma transformao

    paradigmtica das mesmas, a comear pela crtica ao trabalho,

    categoria central da sociabilidade humana. A reconstruo re-quer uma nova concepo de conhecimento fundada na virada

    lingstica: razo e verdade constituem-se nas relaes

    intersubjetivas protagonizadas pelo dilogo entre sujeitos

    lingisticamente competentes. Nesse sentido, trabalho ou lingua-

    gem transforma-se numa questo central para as Cincias Sociais

    atualmente.

    A crise da Sociologia pode ser entendida tambm como o

    descompasso entre a sua capacidade explicativa e a nova reali-

    dade social. Aprendemos que as categorias de anlise sociolgi-

    ca so realidades histricas. Por exemplo, o sistema de classes

    burgueses e proletrios tpico do capitalismo industrial ade-

    quado para explicar as relaes de classe do capitalismo

    globalizado? Podemos inclusive por em dvida a existncia de

    classes sociais. Por isso, fazer um balano crtico das conquistas

    e das fragilidades da Sociologia, inclusive os impasses

    epistemolgicos, uma postura mais adequada do que afirmar

    que ela uma cincia em extino. Octavio Ianni (1997, p. 16),

    um dos mais eminentes socilogos brasileiros, afirma que

    o objeto da sociologia desenvolve-se continuamente, tornando-se

    muitas vezes mais complexo e provocando a recriao das suas

    configuraes conhecidas. Em lugar de manter-se semelhante,

    modifica-se todo o tempo. Alm de que se aperfeioam continua-

    mente os recursos metodolgicos e tericos da sociologia, o que

    permite aprimorar os modos de refletir sobre a realidade social, e

    inegvel que esta realidade transfigura-se de tempos em tem-

    pos, ou continuamente.

    Nesse sentido que a sociologia ingressou na poca do globalismo.

    O seu campo de estudos apresenta relaes, processos e estrutu-

    ras novos, no s desconhecidos, mas surpreendentes. Simultane-

    amente, as novas relaes, os novos processos e as novas estrutu-

    ras de dominao e apropriao, envolvendo integrao e frag-

    mentao, tenses e antagonismos, recriam as relaes, proces-

    sos e estruturas conhecidos. Isto significa que o globalismo confe-re novos significados s realidades locais, nacionais e regionais,

    ao norte e ao sul, orientais e ocidentais.

    Epistemolgico

    Refere-se reflexo sobre asformas da produo do

    conhecimento.

    Globalismo

    a denominao para a etapaatual de desenvolvimento dassociedades, que se caracteriza

    pela afirmao do espaoglobal ou mundial e a crescen-

    te fragilizao dos espaosnacionais.

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    Por isso, ser socilogo aceitar o desafio de fazer uma cincia em que no permitido

    descuidar-se dos destinos da humanidade. Mais uma vez vamos nos valer de uma afirmao

    de Peter Berger (1980, p. 34):

    a perspectiva sociolgica mais se assemelha a um demnio que possui uma pessoa, que a compe-

    le, repetidamente, s questes que so s suas. Por conseguinte, um convite sociologia um

    convite a um tipo de paixo muito especial. No existe paixo sem perigos.

    Referncias

    BERGER, Peter. Perspectivas sociolgicas uma viso humanista. Petrpolis: Vozes, 1980.

    IANNI, Octavio. A sociologia numa poca de globalismo. In: FERREIRA, Leila Costa. A

    sociologia no horizonte do sculo XXI. So Paulo: Boitempo Editorial, 1997.

    1.1 O QUE SOCIOLOGIA

    Todos os dias as pessoas, em qualquer parte do mundo, realizam atos bastante sim-

    ples, necessrios vida: consomem alimentos, cultivam a terra, vo e voltam do trabalho,

    levam os filhos escola, conversam com os amigos, fazem exerccios fsicos, enfrentam o

    trnsito catico das metrpoles, a vida calma das pequenas cidades. So atos to rotineiros

    que na maioria das vezes so executados de forma mecnica, como se no tivessem conscin-

    cia de que os esto realizando.

    Por um momento apenas vamos nos colocar como observadores de tais cenas cotidia-

    nas. Pode ser que a nossa reao fosse de simples registro das pessoas e dos seus atos. Assim,

    no perceberamos nada de diferente no mundo dos homens. Pode ser, contudo, que por

    alguma razo nos motivssemos a ir alm da percepo mais imediata das pessoas e dos

    seus atos. Por exemplo, perceber que embora os atos realizados sejam semelhantes ir ao

    trabalho as pessoas que os realizam so diferentes; ou, ao contrrio, que pessoas seme-

    lhantes realizam trabalhos diferentes.

    A partir dessa questo inicial pode-se ir alm: perguntar o que faz as pessoas serem

    diferentes ou porque existem trabalhos diferentes. Mais ainda:

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    As pessoas vo para o trabalho utilizando-se de transporte coletivo ou individual;

    Elas esto vestidas de terno e gravata ou um simples macaco.

    Se uma pessoa vai ao trabalho de automvel e usa terno e gravata podemos ter alguma

    idia da sua renda e assim relacionar o tipo de escola que os seus filhos freqentam, dife-

    rentemente da pessoa que veste um macaco e se utiliza de transporte coletivo.

    A segunda postura, que vai alm do simples registro dos atos observados, indica uma

    forma de pensar que pode ser identificada como sociolgica. Pensar sociologicamente signi-

    fica olhar os fatos humanos considerando as relaes que eles mantm entre si. Essas rela-

    es no so visveis a um simples olhar; elas s podem ser vistas por meio de um olharconduzido por regras determinadas.

    Vamos desenvolver mais um exemplo: o ato de comer um pedao de po. Pode ser um

    ato simples de uma pessoa que precisa saciar a fome. Se avanarmos, porm, na busca das

    relaes envolvidas nesse ato, a concluso ser surpreendente. A primeira questo para

    construir a relao da pessoa com a coisa (po) pode ser colocada pela pergunta sobre quem

    a pessoa? A resposta pode ser: trabalhador, empresrio, cristo, muulmano, universitrio,

    analfabeto, entre outras. As pessoas so diferentes pelo lugar que ocupam no processo de

    trabalho, pela identidade (viso de mundo), pelo grau de educao, etc.

    Se o po um produto do trabalho humano, podemos perguntar como ocorre a sua

    produo: um processo artesanal ou industrial? No primeiro caso pode ser feito por um

    trabalhador autnomo; no segundo, por um trabalhador assalariado de um empresrio capi-

    talista. A matria-prima a farinha produzida em pequenos moinhos, pelas cooperativas

    ou por grandes empresas capitalistas globalizadas? E o trigo ou o milho? Qual o processo

    tcnico adotado? Ele produz destruio do meio ambiente? As tecnologias empregadas na

    produo envolvem relaes entre pases? Em que perodo histrico elas ocorrem: na era do

    globalismo?

    H outras possibilidades, no entanto: se o ato de comer um pedao de po tem um

    sentido simblico (um ato religioso, por exemplo). Pela observao e anlise deste ato pode-

    ramos avaliar as ideologias presentes na sociedade e o papel desempenhado por elas na

    reproduo da vida social. Atualmente muitos socilogos insistem em que devemos conside-

    rar a identidade como categoria fundamental para explicarmos os comportamentos huma-

    nos. Uma anlise mais cuidadosa, contudo, evidencia que a Sociologia nunca negligenciouesse aspecto. A diferena que hoje, em razo da revoluo informacional e da globalizao,

    a identidade gerada tanto pelo trabalho quanto pela Nao, por exemplo, esto sofrendo

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    um processo profundo de desconstruo. Nesse sentido, a busca

    de uma identidade um objetivo fundamental dos seres huma-

    nos no momento atual.

    Enfim, podemos a partir de um ato simples estabelecer o

    conjunto de relaes sociais que esto contidas na pessoa e no

    po. Como se pode depreender do exemplo, as relaes econmi-

    cas, polticas e ideolgicas de uma determinada poca histrica

    esto contidas em todos os atos humanos. Esta a primeira ma-

    nifestao da natureza do pensamento sociolgico: a perspecti-

    va da totalidade. As aes humanas no tm condies de existir

    isoladamente. Sempre que algum realiza uma ao ela repercu-

    te sobre outros. Se ela aparentemente se dirige para apanhar uma

    fruta silvestre, por exemplo, este ato est carregado de um signi-

    ficado universal na medida em que incorpora, de alguma forma,

    prticas humanas anteriores. Uma ao individual no existe fora

    da sociedade ou, dito de outra forma, a sociedade existe em cada

    ao singular.

    A reflexo feita at agora nos permite expor uma outra ca-

    racterstica daSociologia: a existncia da sociedade. A criao

    da Sociologia deu visibilidade dimenso social da condio

    humana, portanto permitiu compreender o homem como ser so-

    cial. O homem existe como ser social e no como um indivduo

    que existe em si e para si. As implicaes deste fato so bvias: os

    atos de cada indivduo singular repercutem nos demais indivdu-

    os, cada ao realizada por um indivduo implica em sua respon-

    sabilidade social por aquilo que foi feito. A sociedade se torna,assim, o palco fundamental das aes humanas.

    A Sociologia possibilita a compreenso das aes humanas

    como aes sociais, bem como as interaes entre as diferentes

    aes humanas. Uma mesma pessoa pode agir como ser-que-tra-

    balha (que faz o po do nosso exemplo), como um ser-cidado

    (membro de uma comunidade poltica), como um ser-que-pro-

    duz-idias (membro da comunidade cientfica, por exemplo). Po-demos fazer a seguinte pergunta: essas dimenses tm a mesma

    importncia na constituio do ser social ou h dimenses

    Desconstruo

    As sociedades humanassempre tm um conjunto de

    idias, valores e prticassociais aceitas pela maioria queorganiza as aes e oscomportamentos cotidianosdas pessoas. Em determinadosmomentos como o atual estabelece-se um processo decontestao das idias, dosvalores e das prticas domi-nantes, que perdemgradativamente a condio deservirem de modelo para as

    pessoas, iniciando-se aconstruo de um novomodelo. Nesse sentido,pode-se afirmar que associedades humanas empermanente processo dedesconstruo-construo.

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    FUNDAMENTOS DAS CINCIAS SOCIAIS

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    Florestan Fernandes(1920-1995)

    (So Paulo, 22/7/1920 a10/8/1995), socilogo, poltico

    e professor universitrio.O nome de Florestan

    Fernandes est profundamenteassociado pesquisa sociol-

    gica no Brasil e na AmricaLatina. Com mais de 50 obraspublicadas, ele transformou o

    pensamento social no pas eestabeleceu um novo estilo de

    investigao sociolgica,marcado pelo rigor analtico ecrtico, e um novo padro de

    atuao intelectual.

    Disponvel em:.Acesso em: 16 jan. 2008.

    condicionantes das demais? O desenvolvimento da Sociologia

    demonstrou que essa pergunta comporta diferentes respostas, que

    determinaram a formao de diferentes teorias sociolgicas.

    Antes de aprofundarmos a problemtica das teorias socio-

    lgicas cabe ainda a explicitao do papel mais profundo da So-

    ciologia:o autoconhecimento (ou autoconscincia) da sociedade.

    A criao da Sociologia, ao mesmo tempo que permitiu afirmar o

    carter social da condio humana, constituiu-se como um co-

    nhecimento da sociedade que incide sobre ela, exercendo uma

    ao decisiva na reproduo da sociedade, no sentido da conser-vao ou da transformao das relaes sociais vigentes.

    Obviamente, antes da criao da Sociologia havia outras

    formas de pensamento social, como o caso do contratualismo.

    A diferena fundamental que o contratualismo parte do homem

    como ser natural (o animal racional) que pode estabelecer um

    pacto (contrato) entre todos, criando assim a sociedade civil ou

    sociedade poltica, enquanto para a Sociologia, como vimos an-

    teriormente, o ser natural j um ser social, portanto a sociedade

    existe independentemente do contrato.

    Tambm a Sociologia um ato social porque os conceitos

    elaborados no sero conhecidos e empregados apenas pelo so-

    cilogo. O grande socilogo brasileiro Florestan Fernandes de-

    nominou esse fenmeno de a natureza sociolgica da Sociolo-

    gia. Esses conceitos sero, de alguma forma, disseminados para

    o conjunto da sociedade, tendo mais ou menos influncia social.

    Mais adiante vamos nos referir aos autores que fundaram a So-

    ciologia e por isso os denominamos de clssicos. Muitos ou-

    tros, no entanto, escreveram sobre a sociedade, elaborando idias

    at mesmo originais, mas que no foram apropriadas pela socie-

    dade como as idias dos clssicos. Poderamos formular a se-

    guinte hiptese: alm da profundidade da anlise social feita

    apelos clssicos, ela foi apropriada pelas classes fundamentais

    da sociedade porque sistematizava os interesses das classes de

    forma mais coerente.

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    15

    FUNDAMENTOS DAS CINCIAS SOCIAIS

    A Sociologia constituiu-se como um saber produzido se-

    gundo o mtodo cientfico. A maneira como fizemos a exposio

    do nosso exemplo indica como o saber sociolgico se constri. Aobservao regulada das aes humanas o modo de proceder

    construo conceitual da realidade social. A racionalidade con-

    siderada abstratamente no capaz de produzir um saber socio-

    lgico. A tarefa do socilogo pesquisar a realidade como ela .

    Esse saber cientfico (a cincia da sociedade), entretanto, produz

    conhecimentos que mostram uma certa singularidade. Por que

    falamos em teorias sociolgicas e no em uma teoria sociolgica,

    como ocorre na Fsica, na Qumica e na Biologia?

    Aps intensos debates percebemos que qualquer cincia

    uma fora social ativa, um poder criado pelo homem. A cincia

    refere-se sempre ao ser, mas no podemos eliminar o vir-a-ser (o

    futuro). Quando fazemos uma afirmao sobre o ser, nesta afir-

    mao j esto contidas as possibilidades do vir-a-ser. Esse dile-

    ma real, dele no podemos fugir. No caso da Sociologia, o pro-

    blema se amplia, pois os conhecimentos produzidos sobre a socie-

    dade envolvem necessariamente pontos de vista diferentes, que,

    ao longo da Histria recente, fundamentaram projetos de socie-

    dade, cuja expresso mais radical so os movimentos polticos.

    Todo o conhecimento um ato de criao da realidade

    investigada no pensamento e como objetividade. O que isso sig-

    nifica? Que a investigao sociolgica no se esgota na compre-

    enso da realidade vivida pelos homens; ela tambm deve permi-

    tir ao homem projetar-se, presentificar o futuro. O que a Sociolo-gia no pode aventurar-se exclusivamente na pesquisa do de-

    ver-ser, como procederam os pensadores da Utopia e da Cidade

    do Sol, que estudaremos na seo 1.3 desta Unidade. A investi-

    gao bem-sucedida, no entanto, exige do observador da vida

    social uma grande capacidade de imaginao, como condio

    para ultrapassar o mundo das aparncias.

    Por isso, quando nos referimos imaginao sociolgica(conceito criado pelo socilogo norte-americano C. Wright Mills),

    temos de explicitar bem o sentido do termo. Imaginao para o

    Charles Wright Mills

    (Waco, Texas, 28/8/1916 Nyack, Nova York, 20/3/1962),socilogo norte-americano.

    Mestre em Artes, Filosofia eSociologia pela Universidadedo Texas, doutorou-se emSociologia e Antropologia pelaUniversidade de Wisconsin. Foiprofessor de Sociologia, naUniversidade de Columbia. autor de vrias obras, entre asquais destacam-se A Imagina-o sociolgica, A elite dopoder e Ensaios de Sociolo-gia . Para Mills, a racionalidade

    do mundo ocidental noproduziu a indispensvellibertao do ser humano, umavez que as principais idelogiasdesenvolvidas capitalismo esocialismo no se mostraramaptas a prever e controlarintensos processos demudana social.

    Disponvel em:.

    Acesso em: 16 jan. 2008.Imagem disponvel em:http://www.cwrightmills.org/Images/School.jpg.Acesso em: 16 jan. 2008.

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    FUNDAMENTOS DAS CINCIAS SOCIAIS

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    socilogo no o ato de abstrair-se da realidade, mas de inserir-se to profundamente quan-

    to possvel na realidade. Promover a separao entre a conscincia e a realidade social um

    equvoco metodolgico, assim como negar que a dimenso criadora do homem se expressapor meio da conscincia.

    Assim sendo, a imaginao sociolgica consiste na postura intelectual em que se bus-

    ca compreender o contexto social mais amplo e como ele apreendido pelos indivduos

    concretos, tendo sempre presente a necessidade de separar as dimenses essenciais das no-

    essenciais da vida social. Para Wright Mills (1975, p. 12), a imaginao sociolgica afirma

    a idia de que o indivduo s pode compreender sua prpria experincia e avaliar seu prprio

    destino localizando-se dentro de seu perodo; s pode conhecer suas possibilidades na vida tor-

    nando-se cnscio das possibilidades de todas as pessoas nas mesmas circunstncias em que ele.

    Sob muitos aspectos, uma lio terrvel; sob muitos outros, magnfica. No conhecemos os

    limites da capacidade que tem o homem de realizar esforos supremos ou degradar-se volunta-

    riamente, de agonia ou exultao, de brutalidade que traz prazer ou de deleite da razo. Mas em

    nossa poca chegamos a saber que os limites da natureza humana so assustadoramente

    amplos. Chegamos a saber que todo o indivduo vive, de uma gerao at a seguinte, numa

    determinada sociedade; que vive uma biografia, que vive dentro de uma seqncia histrica. E,

    pelo fato de viver, contribui, por menos que seja, para o condicionamento dessa sociedade e para

    o curso de sua histria, ao mesmo tempo em que condicionado pela sociedade e pelo seu

    processo histrico.

    O socilogo est proibido de moldar a realidade aos conceitos, como se estes fossem a

    prpria verdade. Ele deve ser capaz de deixar-se surpreender pela realidade investigada. Ser

    socilogo exercitar permanentemente a liberdade de investigao, que no se resume a

    fazer o que se quer ou a escolher entre alternativas; tambm o exerccio de refazer as

    escolhas, reavaliar o caminho percorrido e assumir os erros cometidos. Enfim, ser socilogo

    permitir ser assaltado pela dvida.

    Referncias

    BERGER, Peter. Perspectivas sociolgicas uma viso humanista. Petrpolis: Vozes, 1980.

    FERNANDES, Florestan.A natureza sociolgica da Sociologia. So Paulo: tica, 1980.

    GIDDENS, Anthony. Sociologia.Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2004.

    MARTINS, Carlos Benedito. O que Sociologia. So Paulo: Ed. Brasiliense, 1994.

    MILLS, C. Wright.A imaginao sociolgica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.

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    FUNDAMENTOS DAS CINCIAS SOCIAIS

    1.2 A FUNDAO DA SOCIOLOGIA: Contexto Histrico-Social

    Vamos discutir neste captulo o processo de formao da

    Sociologia, como momento fundamental que institui o campo

    das Cincias Sociais. claro que a criao da Sociologia no

    ocorreu de uma hora para a outra. Ao contrrio, o resultado de

    um longo e tenso processo de transformao social e intelectual,

    que se inicia no sculo 16 e se conclui no incio do sculo 19.

    Vamos analisar os principais momentos desse processo.

    A FORMAO DA SOCIEDADE MODERNA

    A formao da sociedade moderna resulta da completa de-

    composio das instituies que formavam a sociedade feudal. A

    nova sociedade afirma-se pela constituio de um sistema eco-

    nmico industrial capitalista, por um Estado laico (no religio-

    so) fundado na soberania popular e por uma cultura centrada na

    idia de nao (ou de uma identidade nacional) e na dimenso

    racional do homem.

    A longa marcha do feudalismo ao capitalismo marcada

    por dois momentos importantes: a conquista e a explorao da

    Amrica, no sculo 16, e pela ascenso a afirmao das burgue-

    sias nacionais, no sculo 17. So esses processos que estabele-

    cem as condies para o desenvolvimento das revolues polti-

    cas (inglesa, americana e francesa) e da Revoluo Industrial

    inglesa.

    A expanso europia precedida de um amplo crescimento

    do comrcio e das finanas, a partir do sculo 13. Alm disso, a

    inveno da imprensa, os avanos na metalurgia, na produo

    de metais e de produtos txteis, a fabricao de canhes e de

    outras armas de fogo, o aprimoramento da construo de

    caravelas e das tcnicas de navegao, entre outros fatores, am-pliam as condies para o desenvolvimento do comrcio e das

    conquistas de novos territrios.

    Sociedade feudal

    Forma de sociedade, verificadaprincipalmente na Europa, na

    Idade Mdia, cuja produoest organizada em feudos grandes propriedades de terra em que senhores feudais seapropriam de parte do trabalhodos camponeses. Do ponto devista da estrutura de classe,observa-se uma rgida hierar-quia entre clero, nobreza epovo. O poder poltico exercido pela nobreza e oclero, sob a forma do Estado

    monrquico, regido pelodireito divino. O papel da IgrejaCatlica fundamental; naverdade ela ocupa o centro dopoder poltico.

    Burguesia

    So os proprietrios dos meiosde produo (terra, mquinas,matrias-primas, conhecimen-tos) que os utilizam como

    capital, ou seja, como forma deobteno da mais-valia.

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    FUNDAMENTOS DAS CINCIAS SOCIAIS

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    Nesse momento histrico, a acumulao da riqueza vem do

    comrcio e dos metais preciosos (ouro, prata). Como afirma Michel

    Beaud (1991, p. 20):

    Monarcas vidos de grandezas e de riquezas, Estados lutando

    pela supremacia, mercadores e banqueiros encorajados ao enri-

    quecimento: so estas as foras que promovero o comrcio, as

    conquistas e as guerras, sistematizaro a pilhagem, organizaro

    o trfico de escravos, prendero vagabundos para obrig-los a

    trabalhar.

    Os novos territrios conquistados so transformados emcolnias, que exercero papel importante na acumulao das ri-

    quezas pelas metrpoles. Alm da apropriao do trabalho dos

    camponeses, a pilhagem dos tesouros encontrados nos lugares e

    a organizao da produo agrcola (cana-de-acar, algodo,

    etc.) so os fundamentos da acumulao chamada de

    mercantilista. A idia que a riqueza provm da acumulao de

    metais preciosos e da capacidade de um territrio em vender mais

    e comprar menos.

    Sintetizando: a formao de imensas fortunas pelas burgue-

    sias bancria e mercantil, o fortalecimento do poder dos reis e

    conseqentemente dos Estados nacionais e, sobretudo, a elabo-

    rao de uma nova concepo de mundo que valoriza a riqueza e

    a acumulao, criam as condies necessrias para a emergn-

    cia de uma nova burguesia, vinculada produo manufatureira.

    Na Europa, no sculo 17, o processo expansionista desen-

    volver-se- principalmente na Holanda, na Inglaterra e na Fran-

    a. Observa-se um significativo crescimento do comrcio, dos

    bancos, da navegao e das atividades de transformao. No caso

    da Holanda desenvolveu-se uma rica burguesia vinculada s se-

    guintes atividades de transformao:

    indstria de lanifcio em Leiden e indstria de tecidos em Haarlem;

    tingimento e tecelagem da seda, depois fiao de seda e corte dediamantes em Amsterd; refinao de acar e acabamento de te-

    cidos ingleses, cervejaria, destilaria, preparao do sal, de tabaco,

    Estados Nacionais

    Diferentes espaos territoriaisnos quais populaes determi-

    nadas exercem um poderpoltico soberano.

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    FUNDAMENTOS DAS CINCIAS SOCIAIS

    de cacau, trabalho de chumbo em Roterd; polimento de lentes

    pticas, fabricao de microscpios, de pndulos e instrumentos

    de navegao, estabelecimento de mapas terrestres e martimos,

    impresses de livros em todas as lnguas (Beaud, 1991, p. 37).

    Tambm na Inglaterra forma-se uma burguesia que desen-

    volveu a produo manufatureira. Diz Beaud (1991, p. 39) que

    por volta de 1640, algumas hulheiras produzem de dez a vinte e

    cinco toneladas por ano, contra algumas centenas de toneladas

    no sculo anterior. Altos fornos, fundies com grandes martelos

    de gua, fbricas de almen e de papel empregam vrias cente-nas de operrios; mercadores e fabricantes de txteis fazem tra-

    balhar vrias centenas, por vezes vrios milhares, de fiandeiros

    ou de teceles a domiclio. A burguesia que promove esse desen-

    volvimento comercial e manufatureiro necessita de

    encorajamento e de proteo ao mesmo tempo.

    Na Frana, mediante uma forte presena do Estado, sobre-

    tudo no perodo de Lus XIV e seu ministro Colbert, foram cria-

    das mais de 400 manufaturas. So

    manufaturas coletivas reunindo vrios centros artesanais que

    se beneficiam juntos de privilgios concedidos: fbrica de tecidos

    de Sedan ou de Elbeuf, malharia de Troyes, manufatura de armas

    de Sait-tienne... Manufaturas privadas, empresas individuais

    (Van Robais em Abbeville) ou grandes companhias com sucursais

    em vrias provncias, especialmente para as minas, para a gran-

    de metalurgia (Companhia Dallier de la Tour: forjas, canhes,

    ncoras, armas), para os lanifcios... Manufaturas do rei, enfim,

    propriedade do soberano: Gobelins, Svres, Aubusson, Saint-Gobain mas tambm arsenais e fundies de canhes. Os privi-

    lgios concedidos (monoplios de produo ou de venda, isen-

    es, financiamento) tm como contrapartida controles rigoro-

    sos (normas, quantidade) (Beaud, 1991, p. 55).

    Nesse perodo vigorosa, ainda, uma poltica mercantilista.

    A aliana da burguesia com o rei produziu uma forma de Estado

    absolutista em que ser assegurada a riqueza do rei, a defesa da

    produo e das polticas mercantilistas, necessrias para garan-tir a expanso e a defesa do comrcio em relao aos concorren-

    tes estrangeiros.

    Hulheiras

    Minas de carvo

    Almen

    Sulfato duplo de alumnio,cromo ou ferro e mais ummetal alcalino ou amnio.

    Lus XIV de Bourbon

    Ofrancs Louis XIV (5/9/1638,Saint-Germain-en-Laye, Frana 1/09/1715, Versalhes),

    conhecido como Rei-Sol, foio maior monarca absolutista daFrana, e reinou de 1643 a1715.

    A ele atribuda a famosafrase: Ltat cest moi (OEstado sou eu). Construiu oPalcio dos Invlidos e oluxuoso palcio de Versalhes,em Versalhes, perto de Paris,onde morreu em 1715.

    Disponvel em:.Acesso em: 16 jan. 2008.

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    FUNDAMENTOS DAS CINCIAS SOCIAIS

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    Na Inglaterra essa aliana foi questionada a partir do con-

    fronto entre o rei Carlos I e o Parlamento, este representando as

    novas classes em ascenso. A derrubada da Monarquia e a insti-tuio da Repblica, sob a direo de Oliver Cromwell, fortale-

    ceu as posies da burguesia na economia, tanto que a restaura-

    o da Monarquia, com Carlos II, no foi capaz de gerar uma

    situao de estabilidade poltica. Os confrontos se ampliaram,

    culminando com o triunfo da Revoluo Gloriosa, em 1688, que

    estabeleceu definitivamente o poder do Parlamento. Os ingleses

    produziram uma soluo intermediria, sendo mantido o poder

    do rei Guilherme I, porm submetido ao Parlamento o poder

    supremo e Constituio. Assim, forjou-se o Estado moderno

    na Inglaterra, sob a gide da burguesia vinculada produo, ao

    comrcio e s finanas dos profissionais liberais, dos comercian-

    tes e dos agricultores enriquecidos.

    importante sublinhar a situao de profunda explorao

    das classes trabalhadoras, tais como camponeses e artesos que

    trabalhavam para negociantes-fabricantes, mendigos obrigados a

    trabalhar nas workhousese o trabalho escravo mantido nas Col-nias, que foram fundamentais para a produo e a acumulao de

    riquezas. Na verdade, o que se verifica nesse momento histrico

    uma brutal explorao destes segmentos sociais, que protagonizam

    inmeras revoltas. o caso, por exemplo, das chamadas guerras

    camponesas que proliferaram em toda a Europa. Essa situao

    social tambm possibilitou o surgimento das primeiras idias de

    reforma social, cujos exemplos mais importantes, nesse perodo,

    so a Utopia, de Thomas Morus, texto publicado em 1516, e a

    Cidade do Sol, publicado em 1602, por Tomaso Campanella (os

    quais abordaremos novamente na seo que trata do contexto in-

    telectual em que ocorre a formao da Sociologia).

    O fechamento dos campos (enclosures acts) pelos grandes pro-

    prietrios provocou uma enorme migrao de camponeses para as

    cidades. Estes campos passaram a ser ocupados pela criao de ove-

    lhas, para atender crescente demanda pela l. A reao dos cam-

    poneses logo se fez sentir intensamente, reivindicando liberdade,democracia parlamentar e propriedade. Ao mesmo tempo, as cida-

    des cresceram e os mercados ultrapassaram os limites citadinos.

    Workhauses

    Casas de trabalho, mantidasprincipalmente pela Igreja.

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    FUNDAMENTOS DAS CINCIAS SOCIAIS

    Esse processo extremamente importante, pois rompe com

    a estrutura das corporaes que conseguiam atender s deman-

    das locais por produtos artesanais. Assim comea a surgir umanova figura no processo produtivo: um intermedirio cuja fun-

    o era fazer com que os produtos chegassem at os consumido-

    res. Quando ele passa tambm a disponibilizar a matria-prima,

    o mestre arteso desempenha apenas as funes de empregador,

    trabalhador e capataz. Na verdade, este se transforma paulatina-

    mente em um simples produtor de mercadorias. Mesmo que ain-

    da fossem donos dos instrumentos de trabalho, eles dependiam

    da matria-prima trazida pelos intermedirios e no mais se apro-

    priavam do produto final.

    Leo Huberman, na sua magistral obraA Histria da Rique-

    za do Homem, sintetiza o processo de evoluo dos sistemas pro-

    dutivos que culmina com o domnio do sistema fabril, no sculo

    18. Embora o desenvolvimento no seja um processo linear, de

    etapas que se sucedem, pode-se estabelecer as seguintes fases:

    1. Sistema familiar:os membros de uma famlia produzem artigos

    para seu consumo, e no para a venda. O trabalho no se fazia com

    o objetivo de atender ao mercado. Princpio da Idade Mdia.

    2. Sistema de corporaes:produo realizada por mestres artesos

    independentes, com dois ou trs empregados, para o mercado,

    pequeno e estvel. Os trabalhadores eram donos tanto da mat-

    ria-prima que utilizavam como das ferramentas com que traba-

    lhavam. No vendiam o trabalho, mas o produto do trabalho.

    Durante toda a Idade Mdia.

    3. Sistema domstico:produo realizada em casa para um mer-

    cado em crescimento, pelo mestre arteso com ajudantes, tal como

    no sistema de corporaes. Com uma diferena importante: os

    mestres j no eram independentes; tinham ainda a propriedade

    dos instrumentos de trabalho, mas dependiam, para a matria-

    prima, de um empreendedor que surgira entre eles e o consumi-

    dor. Passaram a ser simplesmente tarefeiros assalariados. Do s-

    culo XVI ao XVIII.

    4. Sistema fabril: produo para um mercado cada vez maior e

    oscilante, realizado fora de casa, nos edifcios do empregador e

    sob rigorosa superviso. Os trabalhadores perderam completa-

    Leo Huberman

    Foi chefe do Departamento deCincias Sociais do NewCollege, da Universidade de

    Columbia, nos Estados Unidos.Jornalista militante, escreveunumerosos artigos, publicadosem sua quase totalidade naMonthly Review, publicao deprestgio internacional que,junto com Paul Sweezy, fundoue dirigiu at sua morte,ocorrida em novembro de1998.

    Disponvel em:.Acesso em: 16 jan. 2008.

    Imagem disponvel em:.Acesso em: 16 jan. 2008.

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    FUNDAMENTOS DAS CINCIAS SOCIAIS

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    mente sua independncia. No possuem a matria-prima, como ocorria no sistema de corporaes,

    nem os instrumentos, tal como no sistema domstico. A habilidade deixou de ser to importante

    como antes, devido ao maior uso da mquina. O capital tornou-se mais necessrio do que nunca.

    Do sculo XX at hoje (Huberman, 1974, p. 125).

    A Revoluo Industrial um evento que se desenvolve fundamentalmente na Inglater-

    ra. A combinao de vrios fatores econmicos, sociais, polticos e culturais fez do terri-

    trio ingls um lugar em que incontveis decises de empresrios e investidores, respalda-

    dos por uma nova institucionalidade poltica, fossem comandadas pela busca do lucro m-

    ximo. De acordo com Hobsbawm (1977a, p. 47),

    as condies adequadas estavam visivelmente presentes na Gr-Bretanha, onde mais de um

    sculo se passara desde que o primeiro rei tinha sido formalmente julgado e executado pelo povo

    e desde que o lucro privado e o desenvolvimento econmico tinham sido aceitos como os supre-

    mos objetivos da poltica governamental. A soluo britnica do problema agrrio, singular-

    mente revolucionria, j tinha sido encontrada na prtica. Uma relativa quantidade de proprie-

    trios com esprito comercial j quase monopolizava a terra, que era cultivada por arrendatri-

    os empregando camponeses sem terra ou pequenos agricultores. (...) As atividades agrcolas j

    estavam predominantemente dirigidas para o mercado; as manufaturas de h muito tinham-se

    disseminado por um interior no feudal. A agricultura j estava preparada para levar a termo

    suas trs funes fundamentais numa era de industrializao: aumentar a produo e a produti-

    vidade de modo a alimentar uma populao no agrcola em rpido crescimento; fornecer um

    grande e crescente excedente de recrutas em potencial para as cidades e as indstrias; e fornecer

    um mecanismo para o acmulo de capital a ser usado nos setores mais modernos da economia.

    (...) Um considervel volume de capital social elevado o caro equipamento geral necessrio

    para toda a economia progredir suavemente j estava sendo criado, principalmente na constru-

    o de uma frota mercante e de facilidades porturias e na melhoria das estradas e vias naveg-

    veis. A poltica estava engatada ao lucro.

    A forma principal do capitalismo ingls presente nas atividades de transformao foi o

    sistema domstico, em que artesos ou camponeses pobres produzem bens a domiclio para

    um mercador-fabricante. A manufatura, reunindo no mesmo espao muitos trabalhado-

    res, no se desenvolveu plenamente na Inglaterra. A partir da segunda metade do sculo 18,

    contudo, desenvolveu-se a forma de organizao tpica da produo capitalista: o sistema

    de fbricas.

    Durante todo o sculo 18 so geradas, na Inglaterra, as inovaes tcnicas que au-

    mentaram significativamente a produo. J no incio do sculo John Lombe furtou os se-

    gredos das mquinas italianas de fiar a seda, construindo com seu irmo uma fbrica, em1717. Nessa mesma poca os Darby melhoraram a produo de ferro fundido com misturas

    de coque, de turfa e de p de carvo, utilizando um potente fole de forja. Nas minas so

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    FUNDAMENTOS DAS CINCIAS SOCIAIS

    empregadas bombas atmosfricas a vapor para retirar a gua. Em 1733 o tecelo John Kay

    inventa uma lanadeira volante, cujo uso se generaliza duas dcadas depois. Em 1749 o

    relojoeiro Huntsmann fabrica ao fundido. No perodo de 1730 a 1760 a utilizao do ferroaumenta em 50%. De 1740 a 1770 o consumo de algodo aumenta 117%. Em 1764 o tece-

    lo James Hargreaves aperfeioa a roca spinning jenny, possibilitando fiar vrios fios ao

    mesmo tempo. Em 1767-1770 o cardador Thomas Hights e o penteador Arkwright passam a

    utilizar a energia da gua com o waterframe. O fiador e tecelo Compton ir combinar essas

    duas invenes, por meio da mule jenny, localizando as fiaes prximas s correntes de

    gua.

    James Watt, nos anos 60, inventa a mquina a vapor, que ser usada na indstria apartir de 1775. Em 1785 ser construda em Nottingham a primeira fiao a empregar m-

    quinas a vapor. Nesse mesmo ano o pastor Cartwright inventa o tear mecnico, cujo empre-

    go ser generalizado no fim do sculo.

    Paralelamente, o progresso tcnico verifica-se em outras reas da produo txtil

    mquinas de bater, de cardar, de fiar em quantidade, branqueamento, tintura, etc., e em

    outras indstrias fbricas de papel, serraria, madeira, etc. Tambm a produo do ferro

    progride intensamente. Em 1776 so fabricados os primeiros trilhos de ferro e, em 1778,

    construdo o primeiro navio de ferro.

    Cabe ressaltar tambm a centralidade do algodo na Revoluo Industrial. Afirma

    Eric Hobsbawm que o algodo permitiu a criao de um conjunto bastante amplo de ativi-

    dades fabris, responsveis por uma expressiva parcela do crescimento econmico da Ingla-

    terra at 1830.

    Tambm cabe ressaltar a importncia do carvo, a principal fonte de energia industri-

    al e importante combustvel domstico na Inglaterra. O carvo est na base do desenvolvi-mento de uma das principais invenes da Revoluo Industrial: a ferrovia. A expanso das

    ferrovias foi significativa. Em 1830 havia poucos quilmetros de ferrovias no mundo; em

    1840 havia 7 mil quilmetros e em 1850 mais de 37 mil quilmetros. Essa expanso explica-

    se pelo fato de que as classes ricas acumulavam renda to rapidamente em to grandes

    quantidades que excediam todas as possibilidades disponveis de gasto e investimento

    (Hobsbawn, 1977a, p. 62).

    Esse conjunto de invenes e de tcnicas revoluciona a produo, gerando uma nova

    forma de organizao: a fbrica. Ela se generaliza nos sculos seguintes, constituindo o

    ncleo estratgico do desenvolvimento do capitalismo. De acordo com Beaud (1991, p. 107),

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    FUNDAMENTOS DAS CINCIAS SOCIAIS

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    a fbrica utiliza uma energia (hulha preta para o calor, hulha

    branca para acionar os mecanismos) e mquinas. apenas no

    fim do sculo que os motores a vapor, concebidos e experimenta-

    dos por Watt entre 1765 e 1775, sero usados para acionar as

    mquinas (haver cerca de quinhentos em servio por volta de

    1800). Com essa energia promovido um sistema de mquinas

    que resulta necessariamente na organizao da produo e dos

    ritmos do trabalho, e que implica uma nova disciplina para os

    trabalhadores que a servem. So construdas fiaes, construes

    de tijolo de quatro ou cinco andares empregando centenas de ope-

    rrios; fbricas de ferro e de fundio renem altos fornos e vri-

    as forjas.

    A fbrica torna-se o espao institucional privilegiado para

    a produo capitalista de mercadorias. Nela estabelecem-se rela-

    es entre duas classes importantes: o empresrio capitalista, pro-

    prietrio dos meios de produo, e os trabalhadores assalariados.

    Como se trata de uma forma de produo que visa ao lucro e

    acumulao do capital, a inovao das tcnicas e a permanente

    ampliao dos mercados constituem-se em prticas fundamen-

    tais. A concorrncia ameaa permanentemente cada capitalista

    individual e as crises peridicas o conjunto dos capitalistas. Os

    trabalhadores tambm esto sob a constante ameaa do desem-

    prego e da reduo dos salrios. Alm disso, so submetidos a

    uma rgida disciplina e a formas de controle cada vez mais cien-

    tficas.

    Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista, reco-

    nhecendo o papel revolucionrio desempenhado pela burguesia

    na Histria moderna, assim avaliaram as conseqncias da

    hegemonia da burguesia no mundo moderno:

    onde quer que tenha chegado ao poder, a burguesia destruiu todas

    as relaes feudais, patriarcais, idlicas. Dilacerou

    impiedosamente os variegados laos feudais que ligavam o ser

    humano a seus superiores naturais, e no deixou subsistir entre

    homem e homem outro vnculo que no o interesse nu e cru, o

    insensvel pagamento em dinheiro. Afogou nas guas glidas

    do clculo egosta os sagrados frmitos da exaltao religiosa,do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-bur-

    gus. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca e no

    Manifesto do Partido Comu-nista:

    voc tem acesso ao texto nantegra em:

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    FUNDAMENTOS DAS CINCIAS SOCIAIS

    lugar das inmeras liberdades j reconhecidas e duramente conquistadas colocou unicamente a

    liberdade de comrcio sem escrpulos. (...) Transformou em seus trabalhadores assalariados o

    mdico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de cincia.

    A necessidade de mercados cada vez mais extensos para seus produtos impele a burguesia para

    todo o globo terrestre. Ela deve estabelecer-se em toda a parte, instalar-se em toda a parte, criar

    vnculos em toda a parte.

    Atravs da explorao do mercado mundial, a burguesia deu um carter cosmopolita produo

    e ao consumo de todos os pases (Marx; Engels, 1996, p. 68-69).

    Sintetizando: os processos sociais que se desenvolveram entre os sculos 15 e 18

    culminaram com a Revoluo Industrial, o estabelecimento do sistema fabril e as demais

    instituies da sociedade moderna. Uma nova sociedade nasceu: urbana, industrial e ca-

    pitalista.

    claro que essa colossal transformao do mundo no teria sido possvel se as novas

    classes sociais no tivessem desenvolvido uma viso de mundo coerente com seus interesses

    (uma nova cultura) e uma igualmente nova forma de Estado. Assim, as novas classes liga-

    das ao comrcio, produo manufatureira e posteriormente fabril, desenvolveram uma

    viso de mundo, uma forma de Estado que genericamente podemos designar como liberal.

    Inicialmente fizemos meno ao primeiro grande acontecimento poltico ocorrido no

    sculo 17: as duas revolues inglesas que criaram as bases polticas e culturais para o

    desenvolvimento da Revoluo Industrial na Inglaterra e do Estado moderno. Posterior-

    mente, em 1776, a revoluo americana, embora no tenha tido a mesma importncia, ao

    mesmo tempo que afirmou a independncia e a criao dos Estados Unidos da Amrica,

    instituiu uma forma republicana de Estado.

    Esses processos polticos tero como momento culminante a Revoluo Francesa. Se

    a Revoluo Industrial inglesa como vimos moldou a economia moderna, foram os acon-

    tecimentos ocorridos na Frana, em 1789, que deram forma poltica e ideologia moder-

    na. Foi uma verdadeira revoluo social de massa, mais radical do que outros processos

    similares e profundamente ecumnica. Conforme Hobsbawm (1977a, p. 73),

    seus exrcitos partiram para revolucionar o mundo; suas idias de fato o revolucionaram. (...)

    Sua influncia direta universal, pois ela forneceu o padro para todos os movimentos revoluci-onrios subseqentes, suas lies (interpretadas segundo o gosto de cada um) tendo sido incorpo-

    radas ao socialismo e ao comunismo modernos.

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    A revoluo francesa passou por vrias fases, de avanos e

    recuos. O seu momento mais radical a repblica jacobina pas-

    sou para a histria como a fase do terror; no entanto, pode-seargir que sem esse momento talvez a restaurao, ocorrida pos-

    teriormente, teria sido mais substantiva do ponto de vista social e

    poltico. Com o fim da repblica jacobina, ocorreram vrias

    alternncias de regime responsveis pela manuteno da socie-

    dade burguesa: Diretrio (1795-1799), Consulado (1799-1804),

    Imprio (1804-1814), a restaurao da Monarquia Bourbon

    (1815-1830), a Monarquia Constitucional (1830-1848), a Rep-

    blica (1848-1851) e o Imprio (1852-1870).

    A fase dirigida por Napoleo, oriundo do prprio movimen-

    to jacobino, representou o momento das grandes conquistas e da

    consolidao da revoluo. certo que a utopia radical da liber-

    dade, igualdade e fraternidade foi substituda pelos smbolos

    maiores da sociedade burguesa: o Cdigo Civil, a criao do Ban-

    co Nacional, a hierarquia do funcionalismo pblico e a institui-

    o das grandes carreiras da vida pblica francesa, como o exr-

    cito, o Direito e a educao. Ainda de acordo com Hobsbawm

    (1977a, p. 94), o regime napolenico

    trouxe estabilidade e prosperidade para todos, exceto para os 250

    mil franceses que no retornaram de suas guerras, embora mesmo

    para os parentes deles tivesse trazido a glria. Sem dvida, os bri-

    tnicos se viam como os lutadores pela causa da liberdade contra

    a tirania; mas em 1815 a maioria dos ingleses era mais pobre do

    que o fora em 1800, enquanto que a maioria dos franceses era

    quase que certamente mais rica, e ningum, exceto os trabalhado-

    res assalariados cujo nmero ainda era insignificante, tinha perdi-

    do os substanciais benefcios econmicos da Revoluo.

    A derrota militar sofrida por Napoleo no impediu a conti-

    nuidade da revoluo burguesa. Apenas colocou um ponto final

    na poltica expansionista francesa, impedindo que a Frana se

    tornasse a grande potncia do mundo, lugar que foi ocupado pela

    Inglaterra, que, como vimos, foi capaz de desenvolver com suces-

    so uma economia capitalista. Este processo de transformao

    obviamente no se restringiu s mudanas na esfera econmica;ele estendeu sua influncia aos campos da poltica e da cultura,

    gerando um novo processo societrio.

    Repblica Jacobina

    Fase da Revoluo Francesadominada pelos jacobinos,

    grupo poltico que defendiareformas sociais radicais. Suaslideranas mais conhecidas so

    Robespierre, Danton e Marat.

    Napoleo Bonaparte

    (Ajaccio, Crsega, 15/8/1769 Santa Helena, 5/5/1821),dirigente efetivo da Frana a

    partir de 1799. Imperador da

    Frana, conquistou e governougrande parte da Europa central

    e ocidental. Napoleo foi umdos chamados monarcasiluminados, que tentaram

    aplicar poltica as idias domovimento filosfico chamado

    Iluminismo ou Aufklrung.

    Disponvel em:.Acesso em: 16 jan. 2008.

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    FUNDAMENTOS DAS CINCIAS SOCIAIS

    Resta ainda considerar dois aspectos socialmente importantes para compreender o pro-

    cesso de surgimento da Sociologia. O primeiro diz respeito emergncia da classe operria

    como sujeito poltico independente, a partir de 1830, na Frana e na Inglaterra, como pro-duto do aprofundamento da industrializao. Podemos citar como exemplo o movimento

    cartista, movimento de trabalhadores ocorrido na Inglaterra que reivindicava o voto univer-

    sal e secreto, igualdade dos distritos eleitorais, eleio anual do Parlamento, pagamento aos

    parlamentares e abolio da condio de proprietrios para ser candidato.

    O segundo se refere revoluo de 1848. Esse processo, que ocorreu mais ou menos

    simultaneamente em todos os principais pases europeus, assumiu os contornos de uma

    verdadeira revoluo social. O objetivo das foras revolucionrias era o estabelecimento de

    uma repblica democrtica e social, capaz de superar as injustias e as desigualdades pro-

    fundas geradas pelo desenvolvimento da sociedade burguesa. Com a mesma presteza com

    que os governos conservadores foram derrubados, porm as foras sociais que os sustenta-

    vam foram capazes de restabelecer a ordem social.

    Na verdade a verdadeira fora revolucionria, segundo Hobsbawm, foram os trabalha-

    dores pobres. Estes constituram a base social da revoluo, mas pela falta de organizao e

    inexperincia poltica, no conseguiram formular um projeto claro de sociedade. Os peque-

    nos proprietrios, agricultores, a baixa classe mdia, os artesos descontentes e seus porta-vozes intelectuais foram importantes agentes revolucionrios, mas tambm incapazes de

    constituir uma real alternativa poltica. Nessa revoluo a burguesia assumiu a sua condi-

    o de classe, deixando de ser definitivamente uma fora socialmente revolucionria.

    A revoluo de 1848 tambm produziu mudanas. Talvez a mais importante foi levar

    ao fim a crena na virtude das monarquias sustentadas pela imutabilidade das regras divi-

    nas e pela rigidez das hierarquias sociais. A defesa da nova ordem social precisava de novos

    instrumentos conceituais e polticos. As diferentes teorias sociais pr e ps-revolucionrias

    fornecero os meios mais adequados para a defesa da ordem capitalista, mas desenvolvero

    tambm os meios para a sua superao. A criao da Sociologia vale repetir parte

    importante, juntamente com o pensamento liberal, do universo intelectual dessa poca.

    Nela se configuram as teorias que sustentam e as que criticam a nova sociedade industrial

    capitalista.

    A derrota das foras revolucionrias fortaleceu a sociedade burguesa. O perodo que

    se seguiu foi de intensa expanso econmica sob a tica liberal, at 1875, ano em que tem

    incio uma profunda depresso econmica. Na verdade, esse perodo expansivo criou asbases para a segunda Revoluo Industrial. Eric Hobsbawm (1977a, p. 312-313) sintetizou

    as transformaes ocorridas nesse perodo da seguinte forma:

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    FUNDAMENTOS DAS CINCIAS SOCIAIS

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    a economia capitalista mudou de quatro formas significativas.

    Em primeiro lugar, entramos agora numa nova era tecnolgica,

    no mais determinada pelas invenes e mtodos da primeira

    Revoluo Industrial: uma era de novas fontes de poder (eletrici-

    dade e petrleo, turbinas e motor a exploso), de nova maquina-

    ria baseada em novos materiais (ferro, ligas, metais no-ferrosos),

    de indstrias baseadas em novas cincias tais como a indstria

    em expanso da qumica orgnica. Em segundo lugar, entramos

    tambm agora cada vez mais na economia de mercado de consu-

    mo domstico, iniciada nos estados Unidos, desenvolvida (na Eu-

    ropa ainda modestamente) pela crescente renda das massas, mas

    sobretudo pelo substancial aumento demogrfico dos pases de-

    senvolvidos. De 1870 a 1910 a populao da Europa cresceu de

    290 para 435 milhes, a dos Estados Unidos de 38,5 para 92 mi-

    lhes. Em outras palavras, entramos no perodo da produo de

    massa, incluindo alguns bens de consumo durveis.

    Em terceiro lugar e de certa forma este foi o desenvolvimento

    mais decisivo , uma reviravolta paradoxal teve lugar. A era do

    triunfo liberal tinha sido aquela era de factodo monoplio indus-

    trial ingls, dentro do qual (com notveis excees) os lucros eram

    assegurados sem muita dificuldade pela competio de pequenas

    e mdias empresas. A era ps-liberal caracterizava-se por umacompetio internacional entre economias industriais nacionais

    rivais a inglesa, a alem, a norte-americana; uma competio

    acirrada pelas dificuldades que as firmas dentro de cada uma

    destas economias enfrentavam (no perodo de depresses) para

    fazer lucros adequados. A competio levava portanto concen-

    trao econmica, controle do mercado e manipulao (...).

    O mundo entrou no perodo do imperialismo, no sentido maior da

    palavra (que inclui as mudanas na estrutura da organizao eco-

    nmica como, por exemplo, o capitalismo monopolista), mastambm em seu sentido menor: uma nova integrao dos pases

    subdesenvolvidos enquanto dependncias em uma economia

    mundial dominada pelos pases desenvolvidos. Alm da rivali-

    dade (que levou as potncias a dividir o globo entre reservas for-

    mais ou informais para seus prprios negcios) entre mercados e

    exportaes de capital, tal processo tambm era devido crescente

    no-disponibilidade de matrias-primas na maioria dos prprios

    pases desenvolvidos, por razes geolgicas ou climticas. ( ...)

    Numa escala global, esta dicotomia entre reas desenvolvidas esubdesenvolvidas (teoricamente complementares), embora no

    nova em si mesma, comeou a tomar uma forma reconhecida-

    Pensamento liberal

    Pensamento que afirma asvirtudes da livre iniciativa dos

    indivduos e do mercado parao pleno desenvolvimento das

    atividades econmicas.

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    FUNDAMENTOS DAS CINCIAS SOCIAIS

    mente moderna. O desenvolvimento da nova forma de desenvolvimento/dependncia iria conti-

    nuar com apenas breves interrupes at a queda geral na dcada de 1930, e forma a quarta

    grande mudana na economia mundial.

    Um novo estado cada vez mais forte e intervencionista e dentro dele um novo tipo de poltica

    desenvolveram-se a partir de ento, recebidos com melancolia pelos pensadores antidemocrticos.

    Esse o mundo que surgiu das grandes revolues inglesa e francesa. A Revoluo

    Industrial inglesa levou ao limite o desenvolvimento de um processo civilizatrio capitalis-

    ta. A revoluo francesa exps as contradies sociais geradas pelas sociedades de classes,

    notadamente a sociedade burguesa, criando situaes polticas em que diferentes projetos

    histricos foram confrontados. Apesar das derrotas sofridas pelos projetos que envolveram opovo, a acmulo produzido pelas lutas sociais revolucionrias desembocar no mais impor-

    tante evento do sculo 20: a revoluo sovitica.

    Para concluir este captulo: estes elementos histricos so importantes para

    contextualizar o nascimento da Sociologia. Ela mesma um dos atores cuja presena no

    cenrio cultural e poltico a partir do sculo 19 ser fundamental (talvez at mesmo decisi-

    va) para definir os movimentos realizados pelos grandes sujeitos histricos: as classes soci-

    ais. o que vamos ver no prximo captulo.

    Referncias

    BEAUD, Michel. Histria do capitalismo de 1500 aos nossos dias. So Paulo: Ed Brasiliense,

    1991.

    HOBSBAWM, Eric J.A era das revolues(1789-1848). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977a.

    HOBSBAWM, Eric J.A era do capital(1848-1875). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977b.

    HUBERMAN, Leo. Histria da riqueza do homem. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974.

    MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrpolis: Vozes, 1996.

    1.3 A FUNDAO DA SOCIOLOGIA: CONTEXTO INTELECTUAL

    No captulo anterior reconstrumos o contexto histrico-social em que ocorreu a for-

    mao da Sociologia. Esse conjunto de transformaes obviamente no teria ocorrido separalelamente os homens no tivessem desenvolvido outras formas de pensar o mundo e a

    sociedade, contrapondo-as com o pensamento religioso. Por isso, fundamental discutir o

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    contexto intelectual em que ocorre a formao da Sociologia. Vale

    lembrar que a Sociologia, como um evento do sculo 19, ao com-

    pletar o ciclo de formao das cincias, pode ser caracterizadacomo o momento de consolidao do pensamento cientfico. A

    nossa tarefa agora ser recuperar os momentos principais desse

    processo.

    A cincia moderna estrutura-se definitivamente no sculo

    19. Porm a sua histria inicia-se efetivamente no mundo grego.

    Seria fundamental reconstruir esse processo histrico no seu con-

    junto. Nesse sentido, precisaramos nos referir, por exemplo, aos

    pensadores pr-socrticos, como Parmnides, para quem o cami-

    nho que conduz verdade aquele que diz que o ser e que o

    no-ser no ; ou Herclito, que afirma que o mundo movi-

    mento e contradio: esse mundo, igual para todos, nenhum

    dos deuses e nenhum dos homens o fez; foi, e sempre ser um

    fogo eternamente vivo, acendendo-se e apagando-se conforme a

    medida. Ainda se poderia designar as idias de Empdocles (s

    vezes, do mltiplo cresce o uno para um nico ser; outras, ao

    contrrio, divide-se o uno na multiplicidade) ou de Anaxgoras

    (todas as outras coisas participam de todas as coisas).

    Sero os filsofos do perodo socrtico, no entanto, que daro

    um impulso novo para a criao de um pensamento racional,

    notadamente Scrates, Plato e Aristteles. Scrates, a partir das

    premissas conhece-te a ti mesmo e s sei que nada sei, esta-

    belece um mtodo de produo do conhecimento ou de supera-

    o da simples opinio mediante sucessivas perguntas. comesse mtodo que Plato, na Repblica, chega concluso de que

    a cidade justa aquela que distribui os homens hierarquicamen-

    te, em classes, segundo sua aptido: os dirigentes-filsofos, os

    soldados e os trabalhadores. Para Plato, h uma diferena fun-

    damental entre o mundo das idias, mundo perfeito, do bem ab-

    soluto mundo inteligvel, ao qual se chega pela Filosofia , e o

    mundo sensvel, das coisas visveis e das imagens simples cpia

    do mundo inteligvel. Nem todos os homens tm acesso ao mun-do inteligvel, apenas aqueles que podem desenvolver a virtude

    da sabedoria pois na sua alma predomina o elemento racional.

    Parmnides de Elia

    (cerca de 530 a.C. 460 a.C.)nasceu em Elia, hoje Vlia,

    Itlia. Foi o fundador da escolaeletica .

    Seu pensamento est expostonum poema filosfico

    intitulado Sobre a Naturezae considerado o fundador dametafsica ocidental com sua

    distino entre o Ser e o No-Ser.

    Disponvel em:.

    Acesso em: 16 jan. 2008.

    Herclito de feso

    (datas aproximadas: 540 a.C. 470 a.C. em feso, na Jnia),

    filsofo pr-socrtico, recebeuo cognome de pai da

    dialtica. Problematiza aquesto do devir (mudana).

    Recebeu a alcunha de Obscu-ro, pois desprezava a plebe,

    recusou-se a participar dapoltica (que era essencial aos

    gregos), e tinha tambmdesprezo pelos poetas,

    filsofos e pela religio. Suaalcunha derivou-se principal-

    mente devido ao livro (Sobre aNatureza) que escreveu com

    um estilo obscuro, prximo asentenas oraculares.

    Disponvel em: . Acesso em: 16 jan.

    2008.

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    FUNDAMENTOS DAS CINCIAS SOCIAIS

    Aristteles contrape-se a Plato, sobretudo em relao aos

    dois mundos, o inteligvel e o sensvel. O pensamento aristotlico

    estabelece um ponto de partida: a categoria substncia. Subs-tncia aquilo que existe o ser e sobre ela podemos construir

    um conhecimento, por meio das categorias estabelecidas pela l-

    gica. A substncia ato e potncia, ou seja, possui uma

    potencialidade que se concretiza o ato numa forma determi-

    nada. De forma simplificada, pode-se dizer que o mundo das idi-

    as uma expresso inteligvel do mundo sensvel.

    Para os objetivos desta reflexo, no entanto, vamos consi-

    derar basicamente as mudanas que se iniciam com o

    Renascimento, no sculo 15, e vo at o sculo 19. Esse perodo

    inicial pode ser caracterizado pela recuperao do pensamento

    grego, sobretudo a contribuio de Aristteles, feita por Santo

    Toms de Aquino. At ento prevalecia a influncia de Plato,

    incorporada pelo pensamento de Santo Agostinho. O humanismo

    renascentista pode ser resumido na seguinte questo: a retoma-

    da das reflexes sobre o homem e a natureza, oscilando entre as

    perspectivas humana e religiosa. O Renascimento abre a possibi-

    lidade de construo de um novo processo civilizatrio; inicia o

    rompimento com a poca medieval e inaugura a era moderna. A

    retomada do pensamento grego fundamental, porque por meio

    dele que os homens comeam a pensar o mundo a partir do pr-

    prio mundo. Alm dos artistas, vrios pensadores renascentistas

    destacaram-se: Petrarca, Nicolau de Cusa, Marclio Ficino, Pico

    de Mirndola, Michel de Montaigne, Erasmo de Roterd, Lutero,

    Calvino, Tomas Morus, Leonardo da Vinci, Maquiavel, Giordano

    Bruno, Tomaso Campanella, entre outros.

    O pensamento humanista-renascentista expressa uma gran-

    de vontade de renovao religiosa. Lutero e Calvino so exem-

    plos importantes; segundo eles, a salvao do homem est uni-

    camente na f e na palavra de Deus, revelada nas Sagradas Es-

    crituras. Calvino leva ao limite as idias de providncia e

    predestinao. A viso radical de Lutero a liberdade de inter-pretao do texto sagrado e a possibilidade de qualquer homem

    iluminado poder pregar a palavra de Deus leva a uma grande

    Empdocles

    (Agrigento, 495/490 435/430 a.C.), filsofo, mdico,legislador, professor, msticoalm de profeta, foi defensorda democracia e sustentava aidia de que o mundo seriaconstitudo por quatro

    elementos: gua, ar, fogo eterra.

    Disponvel em:.Acesso em: 16 jan. 2008.

    Anaxgoras de Clazomena

    (Clazomena, 500 a.C. Lmpsaco, 428 a.C.), filsofogrego do perodo pr-socrtico. Nascido emClazmenas, na Jnia, fundoua primeira escola filosfica deAtenas, contribuindo para aexpanso do pensamentofilosfico e cientfico que era

    desenvolvido nas cidadesgregas da sia.

    Disponvel em:.Acesso em: 16 jan. 2008.

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    diviso da Igreja Catlica, com a criao da Igreja Luterana. Con-

    sumada a diviso, no entanto, o prprio Lutero exortou os prn-

    cipes a reprimirem os delitos pblicos, os perjrios e as blasfmi-as manifestadas em nome de Deus.

    Tambm importante ressaltar que nesse perodo surge um

    pensamento social crtico, protagonizado por Tomas Morus e

    Tomaso Campanella. O primeiro imaginou a ilha de Utopia e o

    segundo a Cidade do Sol, formas de organizao social fundadas

    na propriedade comum dos meios de produo. Na Utopia o di-

    nheiro seria abolido e com ele os roubos, a violncia e a pobreza, a

    igualdade possibilitaria o desenvolvimento do nosso, o trabalho

    deixaria de ser uma atividade penosa, os homens seriam pacifistas

    e seria admitido o pluralismo religioso. A Cidade do Sol uma

    cidade crist, dirigida por um prncipe-sacerdote denominado Sol

    e nela as virtudes (verdade, gratido, justia, fortaleza, magnani-

    midade, etc.) predominariam sobre os vcios. Seus habitantes lou-

    vam Ptolomeu, admiram Coprnico e so inimigos de Aristteles.

    1.3.1 O PENSAMENTO DE MAQUIAVEL E A CINCIA MODERNA

    A Cincia moderna comea a se constituir efetivamente a

    partir das reflexes feitas por Maquiavel (1469-1527) sobre o Es-

    tado e a poltica. As lies elaboradas por Maquiavel em O prn-

    cipe (1513) e nos Discursos sobre a primeira dcada de Tito Lvio

    (escritos entre 1513 e 1519) estabelecem uma nova maneira deproduzir o conhecimento. Maquiavel abandona a idia de esta-

    belecer as coisas como elas deveriam ser, para analisar as coisas

    como elas so. Afirma ele (1998, p. 73):

    Sendo meu intento escrever algo til para quem me ler, parece-me

    mais conveniente procurar a verdade efetiva da coisa do que uma

    imaginao sobre ela. Muitos imaginaram repblicas e principa-

    dos que jamais foram vistos e que nem se soube se existiram de

    verdade, porque h tamanha distncia entre como se vive e comose deveria viver, que aquele que trocar o que se faz por aquilo que se

    deveria fazer aprende antes sua runa do que sua preservao.

    Scrates

    (470 a.C. 399 a.C.), filsofoateniense, um dos mais

    importantes cones da tradiofilosfica ocidental e um dosfundadores da atual Filosofia

    Ocidental. A fonte maisimportante de informao

    sobre Scrates Plato (algunsfilsofos afirmam s se poderfalar de Scrates como um

    personagem de Plato, por elenunca ter deixado nada escrito

    de sua prpria autoria,comprovando historicamente

    sua existncia real).

    Disponvel em:.Acesso em: 16 jan. 2008.

    Plato

    (428/27 a.C. 347 a.C.), filsofogrego. Discpulo de Scrates,

    fundador da Academia e mestrede Aristteles. Seu nome

    verdadeiro era Aristcles; Platoera um apelido que, provavelmen-

    te, fazia referncia sua caracte-rstica fsica, tal como o porte

    atltico ou os ombros largos, ouainda a sua ampla capacidade

    intelectual de tratar de diferentestemas. (pltos), em

    grego significa amplitude,dimenso, largura. Sua Filosofia

    de grande importncia einfluncia. Plato ocupou-se com

    vrios temas, entre eles tica,poltica, metafsica e teoria do

    conhecimento.

    Disponvel em:.Acesso em: 16 jan. 2008.

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    Aristteles

    Nasceu em Estagira, naCalcdica (384 a.C. 322 a.C.).Filsofo grego, aluno de Platoe professor de Alexandre, oGrande, considerado um dos

    maiores pensadores de todosos tempos e criador dopensamento lgico.

    Ele est entre os mais influen-tes filsofos gregos, junto comScrates e Plato, quetransformaram a Filosofia pr-socrtica, construindo um dosprincipais fundamentos daFilosofia ocidental. Aristtelesprestou contribuiesfundantes em diversas reas

    do conhecimento humano,destacando-se: tica, poltica,fsica, metafsica, lgica,psicologia, poesia, retrica,zoologia, biologia, histrianatural. considerado pormuitos o filsofo que maisinfluenciou o pensamentoocidental, por ter estudadouma variada gama de assuntose por ter sido tambm umdiscpulo que em muito

    sentidos ultrapassou seumestre.

    Disponvel em:.Acesso em: 16 jan. 2008.

    Esta afirmao confirmada pelo contedo dos dois livros

    citados. Na verdade Maquiavel, mediante a observao, estabele-

    ce princpios sobre o homem e a natureza do Estado, bem comodas aes que levaram certos prncipes a serem vitoriosos e ou-

    tros derrotados. O fato de os homens serem ingratos, volveis,

    simulados e dissimulados, fogem dos perigos, so vidos de ga-

    nhar determina a necessidade do Estado, como instituio capaz

    de estabelecer alguma ordem entre os homens, que obviamente se

    transformar em desordem, considerando as caractersticas imu-

    tveis dos homens. Tambm justifica a necessidade do Estado o

    fato de existirem duas foras em confronto nas sociedades: o povo

    no quer ser comandado nem oprimido pelos grandes, enquanto

    os grandes desejam comandar e oprimir o povo (1998, p. 43).

    A observao detalhada das aes dos grandes homens

    (governantes, chefes militares) e da sua prpria, como dirigente

    da Repblica de Florena, lhe permite construir um conjunto de

    regras necessrias para a conquista e manuteno do poder pol-

    tico. Por exemplo, uma regra fundamental para o bom governante

    considerar que mais adequado ser temido do que ser amado,posto que a condio prefervel uma combinao das duas

    muito difcil de ser alcanada. O temor coloca a questo do uso

    da crueldade; o governante bem-sucedido no deve ter o escr-

    pulo de empreender aes cruis se elas forem necessrias para

    manter o poder do Estado. Deve, no entanto, proceder de forma

    adequada, quando houver justificativa conveniente e causa

    manifesta, evitando sempre atentar contra os bens dos outros.

    A violncia , portanto, intrnseca ao governante e ao Estado.

    Maquiavel emprega duas categorias analticas para a com-

    preenso das aes polticas: virt efortuna. Considerando que

    muitos defendem que as aes humanas so governadas pela for-

    tuna e por Deus, Maquiavel posiciona-se da seguinte maneira:

    j que o nosso livre-arbtrio no desapareceu, julgo possvel ser

    verdade que a fortuna seja rbitro de metade de nossas aes,

    mas que tambm deixe ao nosso governo a outra metade, ou qua-

    se (1998, p. 119). A fortuna pode ser traduzida como sorte ou,mais precisamente, como a indeterminao, o acaso. A virt re-

    presenta a ao determinada ou o conhecimento da situao.

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    Martinho Lutero

    (Eisleben,10/11/1483 Eisleben,

    18/02/1546), telogo alemo. considerado o pai espiritual

    da Reforma Protestante.

    Disponvel em:.Acesso em: 16 jan. 2008.

    Joo Calvino

    (Noyon,10/7/1509 Genebra,

    27/5/1564), telogo cristofrancs. Calvino fundou oCalvinismo, uma forma deProtestantismo, durante a

    Reforma Protestante. Calvinofoi inicialmente um humanista.Nunca foi ordenado sacerdote.Depois do seu afastamento daIgreja catlica, este intelectualcomeou a ser visto, gradual-

    mente, como a voz domovimento protestante,

    pregando em igrejas eacabando por ser reconhecido

    por muitos como padre.

    Disponvel em:.Acesso em: 16 jan. 2008.

    Se fssemos inteiramente governados pela deusa fortuna

    pouco teramos a fazer; como somos apenas em parte governados

    pela fortuna, podemos, por meio da virt, domin-la. Maquiavelcita o exemplo dos rios caudalosos, que durante as enchentes

    arrasam tudo o que est prximo. Quando volta a calmaria nada

    impede que os homens construam diques para controlar a fria

    das guas na prxima enchente. O que isso significa? a efetiva

    presena da virt, ou seja, da capacidade dos homens observa-

    rem um fenmeno natural e inventarem estruturas de proteo.

    Assim, a fortuna controlada pela virt; os homens conquistam

    sua liberdade. A poltica uma atividade humana, desvinculada

    dos deuses e da tica; ela governada pela capacidade dos ho-

    mens em conhecer e transformar o mundo.

    O governante vitorioso aquele que capaz de desenvolver

    a virt, transformando-se num verdadeiro sujeito do conhecimento

    e da poltica. Ele precisa conhecer as diferentes foras sociais, a

    capacidade das mesmas em mobilizar recursos para a disputa pelo

    poder, as estratgias polticas tradicionais e novas e, principal-

    mente, conhecer a si prprio, as suas prprias foras. Namodernidade, o governante o partido poltico, que tem um pla-

    no de ao administrativa (programa de governo), capaz de ex-

    pressar os interesses da maioria da populao, de tal modo que

    ela o assume como seu (hegemonia).

    O mtodo de investigao adotado por Maquiavel o coloca

    como um dos precursores da Sociologia. Grald Namer identifi-

    ca-o como o fundador da Sociologia do conhecimento. claro

    que as perspectivas so diferentes: o governante, o povo e,

    contemporaneamente, o socilogo. O prprio Maquiavel adverte

    para esse problema: para conhecer bem a natureza dos povos,

    preciso ser prncipe, e, para conhecer a natureza dos prncipes,

    preciso ser povo (1998, p. 130). Como h sempre uma oposio

    na sociedade, os conhecimentos so relativos e respondem aos

    interesses concretos do povo ou do prncipe.

    Alm disso, h uma dimenso fundamental a ser observadapelo prncipe, que sobrepe o parecer ser ao ser. Essa

    intransparncia se manifesta, por exemplo, em relao palavra

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    Nicolau Maquiavel

    (Florena, 3/05/1469 Florena, 21/6/1527), historia-dor, poeta e diplomata italianodo Renascimento. reconheci-

    do como fundador dopensamento e da cinciapoltica moderna, pelo fato deescrever sobre o Estado e ogoverno como realmente so eno como deveriam ser.Recentes estudos sobre oautor e sua obra admitem queseu pensamento foi malinterpretado historicamente.Desde as primeiras crticas,feitas postumamente por umcardeal ingls, as opinies,muitas vezes contraditrias,acumularam-se, de forma queo adjetivo maquiavlico,criado a partir de seu nome,significa esperteza, astcia.

    Disponvel em:.Acesso em: 16 jan. 2008.

    empenhada para o povo. Como ningum absolutamente bom,