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BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A PROPOSTA DE LEI DE DIRETRIZES SÓCIO- EDUCATIVAS Murillo José Digiácomo 1 - INTRODUÇÃO: O Estatuto da Criança e do Adolescente, em resposta aos ditames da "Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente" adotada por nossa Constituição Federal em seu art.227, e também com respaldo na normativa internacional, estabeleceu uma nova forma de ver, de compreender e de atender o adolescente em conflito com a lei, ou seja, aquele acusado da prática de ato infracional. Conquanto no que diz respeito à apuração do ato infracional em si considerado sejam assegurados ao adolescente direitos e garantias procedimentais similares aos conferidos a imputáveis acusados da prática de infração penal (arts.106 usque 109 da Lei nº 8.069/90), a aplicação e execução das sanções correspondentes, as chamadas medidas sócio- educativas, demandam um raciocínio totalmente diferenciado e muito mais complexo que aquele usualmente destinado à "dosimetria" e execução das penas atribuídas a adultos, com as quais aquelas não se confundem. Com efeito, deve-se partir do princípio que a medida sócio-educativa, embora pertença ao gênero "sanção estatal", posto que destinada unicamente a adolescentes que tenham comprovadamente praticado um ato infracional (conforme disposição expressa contida no art.114 da Lei nº 8.069/90), não possui natureza penal, não estando sujeita aos parâmetros fixados pelo Código Penal para aplicação de pena privativa de liberdade a imputáveis, tendo sua execução uma metodologia e um propósito também diferenciados. A apuração da autoria e da materialidade do ato infracional em si considerado se constitui apenas em uma das etapas do procedimento, que embora seja verdadeira conditio sine qua nom para aplicação das medidas sócio-educativas típicas, perde em importância para a apuração da situação pessoal, familiar e social do adolescente, de modo a saber quais as suas reais necessidades pedagógicas (tal qual exige o art.113 c/c art.100, primeira parte, da Lei nº 8.069/90), em razão das quais será aplicada e executada a medida sócio- educativa. E daí não podemos nos afastar. Partindo do pressuposto elementar de que as medidas sócio-educativas, embora tenham uma certa carga retributiva (pois como dito se constituem numa resposta estatal reservada unicamente a adolescentes em conflito com a lei), não são nem se confundem com as penas prescritas aos imputáveis, inexistindo qualquer prévia cominação de medida ao ato infracional praticado, seja ele de que natureza for, é óbvio que a medida sócio-educativa deve ser aplicada não em relação ao que o adolescente fez, numa perspectiva meramente retributivo-punitiva, mas sim em razão do que ele necessita para sua recuperação, de modo a evitar a reincidência. A descoberta da solução sócio-educativa mais adequada, assim, demanda um raciocínio e uma fundamentação completamente diversos daqueles utilizados na imposição da pena a imputáveis, devendo obedecer a regras e princípios próprios, numa perspectiva extra-penal. Assim, para que possamos instruir adequadamente um procedimento para apuração de ato infracional e aplicarmos ao adolescente a solução sócio-educativa adequada e, acima de tudo correta, sob o ponto de vista legal, devemos depurar nossas mentes da tradicional concepção "penalista" que ainda envolve a matéria e nos conscientizarmos de que estamos diante de um novo ramo do Direito, que não guarda qualquer afinidade com o Direito Penal. O procedimento para apuração de ato infracional imputado a adolescente, portanto, não pode ser tratado como uma espécie de "processo-crime de segunda categoria", como se vê em alguns casos, em que a instrução é por vezes morosa, precária e mal se limita à apuração da autoria e materialidade da infração, culminando com a aplicação ao adolescente de uma medida qualquer, sem maiores preocupações com seu efetivo cumprimento pelo jovem, ou com a imposição sistemática da medida extrema e excepcional

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A PROPOSTA DE LEI DE … · possível a seus direitos fundamentais, na exata dicção do art.113 c/c 100, segunda parte, da Lei nº 8.069/90. E que não

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BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A PROPOSTA DE LEI DE DIRETRIZES SÓCIO-EDUCATIVAS

Murillo José Digiácomo1 - INTRODUÇÃO:O Estatuto da Criança e do Adolescente, em resposta aos ditames da "Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente" adotada por nossa Constituição Federal em seu art.227, e também com respaldo na normativa internacional, estabeleceu uma nova forma de ver, de compreender e de atender o adolescente em conflito com a lei, ou seja, aquele acusado da prática de ato infracional.Conquanto no que diz respeito à apuração do ato infracional em si considerado sejam assegurados ao adolescente direitos e garantias procedimentais similares aos conferidos a imputáveis acusados da prática de infração penal (arts.106 usque 109 da Lei nº 8.069/90), a aplicação e execução das sanções correspondentes, as chamadas medidas sócio-educativas, demandam um raciocínio totalmente diferenciado e muito mais complexo que aquele usualmente destinado à "dosimetria" e execução das penas atribuídas a adultos, com as quais aquelas não se confundem.Com efeito, deve-se partir do princípio que a medida sócio-educativa, embora pertença ao gênero "sanção estatal", posto que destinada unicamente a adolescentes que tenham comprovadamente praticado um ato infracional (conforme disposição expressa contida no art.114 da Lei nº 8.069/90), não possui natureza penal, não estando sujeita aos parâmetros fixados pelo Código Penal para aplicação de pena privativa de liberdade a imputáveis, tendo sua execução uma metodologia e um propósito também diferenciados.A apuração da autoria e da materialidade do ato infracional em si considerado se constitui apenas em uma das etapas do procedimento, que embora seja verdadeira conditio sine qua nom para aplicação das medidas sócio-educativas típicas, perde em importância para a apuração da situação pessoal, familiar e social do adolescente, de modo a saber quais as suas reais necessidades pedagógicas (tal qual exige o art.113 c/c art.100, primeira parte, da Lei nº 8.069/90), em razão das quais será aplicada e executada a medida sócio-educativa.E daí não podemos nos afastar. Partindo do pressuposto elementar de que as medidas sócio-educativas, embora tenham uma certa carga retributiva (pois como dito se constituem numa resposta estatal reservada unicamente a adolescentes em conflito com a lei), não são nem se confundem com as penas prescritas aos imputáveis, inexistindo qualquer prévia cominação de medida ao ato infracional praticado, seja ele de que natureza for, é óbvio que a medida sócio-educativa deve ser aplicada não em relação ao que o adolescente fez, numa perspectiva meramente retributivo-punitiva, mas sim em razão do que ele necessita para sua recuperação, de modo a evitar a reincidência.A descoberta da solução sócio-educativa mais adequada, assim, demanda um raciocínio e uma fundamentação completamente diversos daqueles utilizados na imposição da pena a imputáveis, devendo obedecer a regras e princípios próprios, numa perspectiva extra-penal.Assim, para que possamos instruir adequadamente um procedimento para apuração de ato infracional e aplicarmos ao adolescente a solução sócio-educativa adequada e, acima de tudo correta, sob o ponto de vista legal, devemos depurar nossas mentes da tradicional concepção "penalista" que ainda envolve a matéria e nos conscientizarmos de que estamos diante de um novo ramo do Direito, que não guarda qualquer afinidade com o Direito Penal.O procedimento para apuração de ato infracional imputado a adolescente, portanto, não pode ser tratado como uma espécie de "processo-crime de segunda categoria", como se vê em alguns casos, em que a instrução é por vezes morosa, precária e mal se limita à apuração da autoria e materialidade da infração, culminando com a aplicação ao adolescente de uma medida qualquer, sem maiores preocupações com seu efetivo cumprimento pelo jovem, ou com a imposição sistemática da medida extrema e excepcional

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da internação sempre que o ato infracional se reveste de gravidade, numa preocupação meramente punitiva.Muito pelo contrário. O procedimento deve ser encarado com a especialidade e seriedade que o tema, dada relevância que possui, reclama.Deve ser particularmente célere, de modo que entre o momento da prática infracional e o momento do início do cumprimento da medida sócio-educativa pelo adolescente, decorra o menor período de tempo possível (daí porque deve-se dar preferência à remissão clausulada, que abrevia sobremaneira seu término), sob pena da perda do caráter pedagógico da medida aplicada. A respeito do tema, importante lembrar que, na forma do art.4º, par. único, alínea "b" da Lei nº 8.069/90, a garantia legal e constitucional de prioridade absoluta que reveste a matéria, importa em conferir à criança e ao adolescente a "precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública" (verbis), o que compreende também a prestação jurisdicional. Como resultado, e considerando que estamos lidando nada menos que com um princípio constitucional, deve-se assegurar aos procedimentos afetos à Justiça da Infância e Juventude a mais absoluta prioridade de instrução e julgamento, para o que devem se adequar as pautas de audiência e os serviços forenses.Como não se busca a aplicação de uma pena, mas sim de uma medida que visa atender as necessidades pedagógicas do adolescente, a instrução procedimental deve ir muito além da singela apuração da autoria e materialidade do ato infracional a ele imputado, buscando também informes precisos acerca de sua conduta pessoal, social e familiar, zelando ainda pela realização, por equipe interprofissional habilitada, a serviço do Juizado da Infância e Juventude ou recrutada junto a profissionais com atuação no município (a exemplo do que pode fazer o Conselho Tutelar, ex vi do disposto no art.136, inciso III, alínea "a", da Lei nº 8.069/90), de estudo social ou equivalente, que contenha, de forma clara e fundamentada, sugestão de aplicação de medida (conforme art.151 c/c art.186, §4º, da Lei nº 8.069/90).E a sentença, em item próprio, deve expor de forma minuciosa todo o raciocínio que levou o julgador a concluir pela adequação de determinada medida sócio-educativa em detrimento das demais, razão pela qual deve estar calcada nas regras e princípios estatutários e constitucionais próprios e jamais, como ainda se tem visto, tomar por base as chamadas "circunstâncias judiciais" previstas no art.59 do Código Penal para a dosimetria da pena a imputáveis.Para tanto, deve partir do princípio que, por força do disposto nos arts.1º e 6º da Lei nº 8.069/90, nenhum dispositivo contido no Estatuto da Criança e do Adolescente pode ser interpretado em desfavor do adolescente, devendo-se sempre buscar a solução que lhe for mais benéfica.E a propósito, que não se venha a utilizar o argumento hipócrita e falacioso de que a aplicação da medida extrema da internação é de algum modo "benéfica" ao adolescente, pois a mesma atenta contra os direitos fundamentais à liberdade e à convivência familiar a ele constitucionalmente assegurados com a mais absoluta prioridade (conforme enunciado do já citado art.227, caput, da Constituição Federal), sendo expressamente repudiada pelo próprio ordenamento jurídico-constitucional, que de modo a evitar sua aplicação, seja qual for a infração praticada, estabeleceu barreiras que visam restringi-la a situações excepcionais, após plenamente comprovada sua real necessidade.Nesse sentido, o art.227, §3º, inciso V, segunda parte da Constituição Federal foi expresso ao determinar que a aplicação de qualquer medida privativa de liberdade ao adolescente em conflito com a lei estará sujeita ao princípio da excepcionalidade, regra que foi integralmente reproduzida pelo art.121, caput, da Lei nº 8.069/90.O Estatuto da Criança e do Adolescente foi mais além, estabelecendo de forma categórica que "EM NENHUMA HIPÓTESE será aplicada a internação, havendo outra medida adequada" (art.122, §2º - verbis - grifei).

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Importante observar que o dispositivo estatutário acima transcrito se encontra inserido num artigo que, por si só, já restringe a possibilidade jurídica da aplicação da medida extrema e excepcional da internação a determinadas situações (ato infracional cometido mediante violência ou grave ameaça à pessoa, reiteração no cometimento de "outras infrações graves" e descumprimento reiterado e injustificável de medida anteriormente imposta).Assim sendo, atendendo a princípios básicos e universais de hermenêutica jurídica e também considerando a regra de interpretação contida no art.6º, em conjunção com o art.1º, ambos da Lei nº 8.069/90, lógico concluir que a restrição contida no art.122, §2º da Lei nº 8.069/90 se aplica especificamente às hipóteses relacionadas no caput do mesmo dispositivo, fora das quais a aplicação da medida privativa de liberdade extrema e excepcional ao adolescente já será juridicamente impossível.Como conseqüência natural dessa constatação elementar, não há como negar que a gravidade do ato infracional praticado pelo adolescente deve ser considerado apenas como um fator que, em tese, AUTORIZA, mas que JAMAIS pode determinar a aplicação da medida sócio-educativa de internação (assim como a semiliberdade, face o disposto no art.120, §2º, in fine, da Lei nº 8.069/90), que somente terá lugar em sendo comprovadamente NECESSÁRIA face a condição psicossocial do adolescente, para o que deverá a decisão respectiva tomar por base elementos idôneos constantes dos autos, com minuciosa exposição das razões que o levaram a concluir pela inadequação das demais medidas relacionadas no art.112 da Lei nº 8.069/90.Aqui necessário abrir um parênteses. Partindo-se do princípio que a gravidade do ato infracional praticado, na forma da lei e segundo o princípio constitucional da excepcionalidade acima citado, não pode ser considerada motivo suficiente a justificar a aplicação da medida de internação, logicamente inadmissível invocá-la como razão para o descarte das demais medidas previstas em lei, sob a absurda alegação de "presunção de periculosidade" do agente, como se vê em alguns casos.Ora, em primeiro lugar, como vimos, a regra restritiva contida no citado art.122, §2º da Lei nº 8.069/90 é destinada justamente a infrações de natureza grave, relacionadas nos incisos I e II do mesmo dispositivo, numa clara demonstração de que, para o legislador, tal fator não é motivo determinante para aplicação da medida privativa de liberdade extrema e excepcional.Em segundo, o adolescente em conflito com a lei, por força de disposição constitucional expressa, reproduzida no citado art.6º, in fine, da Lei nº 8.069/90 como regra de interpretação para todo e qualquer norma estatutária, deve ter respeitada sua "condição peculiar de pessoa em desenvolvimento" (art.227, §3º, inciso V, terceira parte, da Constituição Federal - verbis), pelo que sua conduta não pode ser simplesmente equiparada à de um adulto imputável para, sobre ela, recair toda fúria punitiva estatal, cogente que é a determinação de que suas peculiaridades, a serem apuradas através de estudo técnico idôneo, sejam consideradas pelo magistrado. A propósito, não podemos deixar de mencionar que a dita "periculosidade", seja em se tratando de adolescente, seja de adulto, não pode ser objeto de mera presunção, afirmada de forma precária, e por quem não tem capacidade técnica para tanto, com base na conduta infracional em si considerada.Em terceiro, atenta contra a lógica e o bom-senso, além de representar uma total falta de argumentos jurídicos a justificar a aplicação da medida, usar a gravidade do ato praticado para sustentar uma suposta "inadequação" das demais medidas em tese cominadas, pois como seu objetivo não é a punição do adolescente, mas sim a prevenção de sua reincidência, nada impede que mesmo um ato infracional considerado de extrema gravidade, pura e simplesmente face sua tipificação, resulte na aplicação de medidas sócio-educativas em meio aberto ou mesmo de cunho unicamente protetivo (ex vi do disposto no art.112, inciso VII da Lei nº 8.069/90), tudo a depender das necessidades pedagógicas do adolescente e tendo sempre por norte a solução que lhe acarrete o menor gravame

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possível a seus direitos fundamentais, na exata dicção do art.113 c/c 100, segunda parte, da Lei nº 8.069/90.E que não se venha utilizar do argumento falacioso de que o art.112, §1º, in fine, da Lei nº 8.069/90, segundo o qual a gravidade da infração se constitui num dos fatores a serem considerados quando da aplicação das medidas sócio-educativas, estaria a "determinar" a imposição da internação em se tratando de infrações de natureza grave.Como vimos, a aplicação da internação é regulada por disposições próprias contidas nos arts.121 e 122 da Lei nº 8.069/90, havendo neste último regra limitadora da aplicação dessa modalidade de medida mesmo em se tratando de infrações de natureza grave. A regra contida no citado art.112, §1º, in fine, da Lei nº 8.069/90, na verdade, à luz do contido nos arts.1º e 6º do mesmo Diploma Legal, além de outros dispositivos citados, somente pode ser interpretada no sentido oposto, ou seja, não é admissível que, para um ato infracional de natureza leve, ou seja, que não se enquadra nas hipóteses do art.122, incisos I ou II, da Lei nº 8.069/90, sejam aplicadas medidas que causem restrições excessivas e indevidas aos direitos do adolescente que o praticou. E aqui não estamos falando apenas de medidas privativas de liberdade, mas sim - e em especial, das medidas exeqüíveis em meio aberto, notadamente a prestação de serviços à comunidade, cuja duração deve ser proporcional à gravidade da conduta infracional, até mesmo de modo a evitar a absurda situação na qual a resposta sócio-educativa aplicada ao adolescente se mostra mais gravosa que a prevista a um imputável que tenha praticado infração semelhante.Outra situação teratológica, com a qual por vezes nos deparamos, é a aplicação de medidas privativas de liberdade sob o fundamento da inexistência, no município, de uma estrutura de atendimento alternativa, que permitiria a aplicação de medidas em meio aberto.Desnecessário mencionar o absurdo de tal argumento, que penaliza (literalmente, diga-se de passagem) o adolescente pela omissão do Poder Público em cumprir aquilo que a lei e Constituição Federal lhe impõe, criando uma cômoda "válvula de escape" para os problemas sociais daí decorrentes.Se tal solução era compreensível à época da vigência do famigerado "Código de Menores", que não relacionava direitos a crianças e adolescentes nem estabelecia obrigações ao Poder Público, também não prevendo quaisquer mecanismos jurídicos para responsabilizar o administrador omisso, com o advento da Lei nº 8.069/90 a situação mudou por completo, cabendo à Justiça da Infância e Juventude não mais o simplório e patético papel de "abrigar os órfãos e recolher os indesejáveis", naquilo que se chamou de "camburão social", que em nada contribuía para a mudança do status quo, mas sim lhe impõe assumir a condição de verdadeiro agente transformador da triste realidade vivida pela sociedade, em especial por sua parcela infanto-juvenil, para o que foram criados inúmeros instrumentos jurídicos que ainda não foram colocados em prática.Em verdade, a proposta do Estatuto da Criança e do Adolescente para o atendimento do adolescente em conflito com a lei se insere dentro de um contexto muito mais amplo, que pressupõe a elaboração e implementação de políticas públicas que tenham por enfoque primordial e prioritário à área infanto-juvenil (tal qual dispõe o art.4º, par. único, da Lei nº 8.069/90), desde as políticas sociais básicas (conforme art.4º, par. único, alínea "c" c/c art.87, ambos da Lei nº 8.069/90), passando pelas políticas de proteção especial (que englobam tanto a criação de programas de atendimento correspondentes às medidas de proteção relacionadas no art.101 da Lei nº 8.069/90 quanto àquelas voltadas aos pais ou responsável, relacionados no art.129 do mesmo Diploma Legal), tudo de modo a garantir a proteção integral que lhes é prometida já pelo art.1º da Lei nº 8.069/90.Os programas sócio-educativos destinados aos adolescentes em conflito com a lei, portanto, não podem ser analisados de forma isolada, mas sim dentro de toda uma sistemática idealizada pelo legislador para assegurar-lhes a proteção integral de que são credores.A falta das citadas políticas e programas de atendimento, por si só, já coloca o adolescente em situação de risco, na forma do previsto no art.88, inciso III c/c art.98, inciso I, in fine,

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ambos da Lei nº 8.069/90, podendo ser o administrador público responsabilizado por sua omissão em cumprir sua obrigação de dispensar à área infanto-juvenil a prioridade absoluta de tratamento prevista nos já citados art.227, caput, da Constituição Federal e art.4º, caput e par. único, da Lei nº 8.069/90 (conforme art.208 e par. único, do mesmo Diploma Legal).O Juiz da Infância e Juventude, ao contrário do que ocorria com o antigo "Juiz de Menores", desempenha hoje uma função altamente técnica, que não mais admite o amadorismo de outrora.O "prudente arbítrio" e as decisões de cunho meramente administrativo, que eram a regra na vigência do "Código" revogado, deram lugar à estrita observância das normas e parâmetros estabelecidos pela lei e pela Constituição Federal, sendo sua jurisdição (que ocorre mesmo quando expede as já tradicionais "portarias e alvarás judiciais") hoje voltada primordialmente à defesa dos interesses coletivos ou difusos de crianças e adolescentes, como se extrai da leitura dos arts.148 (notadamente de seu inciso IV), 208, incisos I a VIII e par. único, 212 e §2º, 213, §§1º e 2º, 216 e 221, todos da Lei nº 8.069/90.A determinação contida no art.221 da Lei nº 8.069/90, aliás, deixa clara a obrigação de que o Juiz da Infância e Juventude (ou qualquer outra autoridade judiciária), diante da constatação da falta de uma estrutura adequada no município para o atendimento do adolescente em conflito com a lei (que como visto o coloca em situação de risco na forma do disposto no art.98, inciso I, segunda parte, da Lei nº 8.069/90 e autoriza a tomada medidas judiciais para reverter o quadro, conforme art.208 e par. único do mesmo Diploma Legal), para tanto provoque a iniciativa do Ministério Público, ao qual incumbe, dentre outras, "zelar pelo EFETIVO RESPEITO aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis" (art.201, inciso VIII, da Lei nº 8.069/90 - verbis - grifei).Essa verdadeira parceria que deve existir entre Juizado da Infância e Juventude e Ministério Público, bem como destes em relação aos demais integrantes do "Sistema de Garantias" idealizado pelo legislador com vista à proteção integral de crianças e adolescentes, aliás, é a base de toda sistemática prevista para o atendimento do adolescente em conflito com a lei, que não pode ser visto como o "vilão" da estória, mas sim como um indivíduo que, por se encontrar numa "condição peculiar de pessoa em desenvolvimento" (conforme art.227, §3º, inciso V, terceira parte da Constituição Federal e art.6º, in fine, da Lei nº 8.069/90, alhures mencionado), precisa ser, na forma da lei e da Constituição, como tal respeitado, em especial por aqueles ao qual incumbe a honrosa, porém difícil e necessária tarefa de interpretar de maneira correta e fazer cumprir as determinações legais e constitucionais que, longe de permitir a punição daquele que é, em última análise, seu destinatário, impõe obrigações e responsabilidades ao Poder Público, ao qual incumbe priorizar a criança e o adolescente em todas as suas ações.Imprescindível, pois, que os operadores do Estatuto da Criança e do Adolescente, em especial aqueles que possuem o conhecimento técnico-jurídico e o dever de colocá-lo em prática em prol de crianças e adolescentes, compreendam que o "problema" do adolescente em conflito com a lei não se resume à repressão policial nem se resolve com a singela e simplória aplicação da medida sócio-educativa de internação, mas sim importa numa compreensão muito mais ampla dos preceitos legais e constitucionais correspondentes, num processo de construção da cidadania e de busca do comprometimento, quando não responsabilização do Poder Público, com vista a dar plena efetividade às disposições estatutárias voltadas precipuamente à prevenção e proteção de crianças e adolescentes, na busca de sua proteção integral há tanto prometida.Enquanto ao passo que efetuamos um discurso garantista, continuarmos a utilizar práticas menoristas, voltadas unicamente à repressão, e não à necessária promoção social de crianças, adolescentes e suas famílias, numa concepção retrógrada e completamente equivocada do que é e a que veio o Estatuto da Criança e do Adolescente, deixando de acionar os mecanismos jurídicos por ele colocados à nossa disposição para o pleno

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asseguramento dos direitos infanto-juvenis, somente estaremos contribuindo para a perpetuação do status quo vigente, quando não para a piora das condições de vida de nossa juventude, a cada dia mais negligenciada pelo Poder Público e marginalizada pela sociedade, em total descompasso com o que preconizam a lei e a Constituição Federal.Necessário, pois, que desfraldemos a bandeira do Estatuto da Criança e do Adolescente, e busquemos a capacitação e a inspiração necessárias para travar essa verdadeira guerra em prol de nossas crianças e adolescentes, voltando nossas baterias contra os maus administradores e políticos demagogos, que se omitem em cumprir suas obrigações e, impunemente, fazem tábula rasa da garantia de prioridade que a lei e a Constituição Federal conferem à área infanto-juvenil.Os instrumentos legais e constitucionais para que isto ocorra já estão à nossa disposição.Basta colocá-los em prática.2 - "PROPOSTA DE LEI DE DIRETRIZES SÓCIO-EDUCATIVAS": POR QUE CHAMÁ-LA ASSIM:Como tive a oportunidade de expor na introdução supra, o Estatuto da Criança e do Adolescente possui uma proposta diferenciada para o atendimento do adolescente em conflito com a lei, contendo por si só inúmeras regras garantistas que, se interpretadas e aplicadas corretamente, de acordo com os princípios próprios que norteiam a matéria, são mais do que suficientes para assegurar um tratamento sócio-educativo adequado e condigno ao jovem.Ocorre que, infelizmente, dado inconcebível descaso com o qual a área da infância e juventude ainda é tratada (a começar por boa parte das faculdades de Direito, que insistem em relegar o Direito da Criança e do Adolescente, ramo do Direito Público de importância capital para todos os profissionais do Direito, em especial magistrados e membros do Ministério Público com atuação na Justiça Estadual, à condição de mera disciplina optativa, com carga horária em regra bastante reduzida), o Estatuto da Criança e do Adolescente não raro vem sendo interpretado de forma completamente equivocada, servindo mais como um instrumento de repressão e de restrição de direitos infanto-juvenis, do que de seu asseguramento, para o que foi concebido.Práticas menoristas, quase doze anos após a revogação do "Código" de 1979, ainda são comuns, apesar de agora pretensamente legitimadas por um discurso garantista, num anacronismo que resulta no chamado "Paradigma da ambigüidade", que tantos malefícios tem causado a nossas crianças e adolescentes, além é claro da própria sociedade, que se vê privada do fiel cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente, legislação avançada que é mais aclamada e conhecida fora do que dentro do Brasil.Isto ocorre ante a constatação de que a radical mudança de paradigma ocorrida com o advento da nova orientação jurídico-constitucional, em alguns casos, não foi acompanhada de uma mudança de atitude por parte daqueles encarregados de interpretar e aplicar a lei, gerando uma situação tanto ambígua quanto anômala, em que práticas arbitrárias do passado são agora pretensamente "legitimadas" por um discurso garantista, não raro fazendo da Justiça da Infância e Juventude pouco mais do que uma "Justiça de Menores", em prejuízo direto de crianças e adolescentes.Acerca do mencionado fenômeno, que não raro tem impedido que a Justiça da Infância e Juventude atue como verdadeira guardiã dos interesses afetos a crianças e adolescentes, colocando-os a salvo da omissão do Estado em lhes garantir o efetivo exercício de todos os direitos assegurados pela Lei e pela Constituição Federal, interessante colacionar a lição de EUGÊNIO COUTO TERRA, que chama essa ambigüidade de concepções de "crise paradigmática":"A crise paradigmática é verificada, justamente, a partir dos sinais do surgimento de um novo paradigma, então, operado por uma revolução conceitual e normativa no tratamento dos interesses das crianças e adolescentes. Do antigo paradigma então representado pelo Código de Menores e as demais legislações esparsas até o advento da Constituição Federal de 1988, as relações jurídicas em que figuravam crianças e adolescentes ou mesmo que tratavam de seus direitos e

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interesses, eram baseadas no binômio proteção-repressão da infância "desajustada" aos padrões estabelecidos pela elite social - certeza jurídica (paradigma)....Diversamente, através do texto constitucional, introduziu-se uma nova realidade jurídica democrática e emancipatória, em conformidade com o Estado Democrático de Direito - que precisa ser materialmente efetivada - em que deixa de existir o "menor desajustado" e passa a merecer atenção legal a infância e juventude como um todo, independentemente de qualquer condição social ou adjetivação qualificadora. A ruptura paradigmática desestabilizou o saber instituído, em decorrência mesmo da alteração dos referenciais básicos institucionalizados e arraigados no senso comum da sociedade e, em especial, dos operadores jurídicos. Instala-se, assim, a crise paradigmática, justamente, em razão da resistência oferecida pelos operadores do direito e por parte da sociedade que não aceitam a emergência do novo e a sua identificação como paradigma, resistindo, pois, à mudança de modelo, inclusive, com tentativas reacionárias de modificação e supressão de conquistas duramente alcançadas, como, por exemplo, a da constitucionalização da idade penal mínima de dezoito anos para a responsabilização penal, a qual (inimputabilidade) passou a se constituir num direito individual deste grupo de pessoas....A partir da Constituição de 1988, intensifica-se a interação e conjugação do direito internacional e do direito interno, que fortalecem a sistemática de proteção dos direitos fundamentais, com uma principiologia e lógica próprias, fundadas no princípio da primazia dos direitos humanos.Vivemos em um mundo globalizado - quer gostemos ou não disso - e, cada vez mais, há uma interação entre direito interno e direito internacional. A introdução na Carta Magna da doutrina da proteção integral (...), decorreu da internalização da vertente protetora dos direitos humanos de caráter internacional, dos quais a proteção da criança e do adolescente é uma das facetas. Tanto é assim, que o disposto no artigo 227 é reconhecido como síntese das diretrizes fixadas pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança. O Brasil, ao ratificar a Convenção - e fez isso sem qualquer ressalva de reserva - assumiu a obrigação de cumpri-la integralmente.Vale dizer, é vedado ao Estado brasileiro tomar qualquer iniciativa que venha a tornar ineficaz ou contrariar qualquer dispositivo da Convenção sobre os Direitos da Criança, que, entre nós, por força do §2º, do artigo 5º, tem status de norma constitucional. Isso porque a Carta Magna de 1988, na esteira de outras Constituições, passou a considerar as normas de tratados de direitos humanos como de hierarquia constitucional.O tratado em referência, inequivocamente, tem conteúdo de proteção dos direitos humanos".E conclui, por fim, o ilustrado autor:"É inviável qualquer interpretação que não passe por um rebate principiológico, ou seja, só é possível a aplicação/interpretação da lei (latu sensu) em consonância com os princípios constitucionais que dão a conformação do Estado Democrático de Direito. E assim é, pois só se justifica o existir do Estado - 'domínio de homens sobre homens' - porque a razão única de sua existência é o ser humano. O Estado que não tenha por fim a promoção da dignidade humana - ou, se preferindo, a realização dos direitos fundamentais - não tem razão de ser....A Constituição, ao determinar prioridade absoluta na concretização das condições de uma existência digna para a infância e juventude, estabelece que a promoção

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da dignidade humana dessa categoria de cidadão tem natureza fundamental, posto que visceralmente ligada ao princípio da dignidade humana" (In "A Razão da Idade. Mitos e Verdades". Coleção Garantia de Direitos. Série Subsídios. Ministério da Justiça. Secretaria de Estado dos Direitos Humanos. Brasília, 2001. Tomo VII, págs.49/50 e 63/64 - grifei).Tais palavras nos levam a uma profunda reflexão, não apenas no que diz respeito à forma como crianças e adolescentes devem ser vistos, compreendidos e tratados face o novo paradigma da Proteção Integral, instituído pelo art.227, da Constituição Federal com base na normativa internacional, mas também acerca do verdadeiro papel da Justiça da Infância e Juventude dentro dessa nova sistemática.A concepção equivocada que muitos ainda têm acerca das disposições estatutárias relativas ao adolescente em conflito com a lei, somada à falta de uma visão mais global sobre o alcance e finalidade do Estatuto da Criança e do Adolescente, tem provocado a singela e falaciosa utilização de preceitos da Lei Penal como fundamentos para a decisão impositiva da medida sócio-educativa da internação, não raro conduzindo à adoção dessa solução extrema de forma sistemática, o que tem provocado a superlotação das unidades onde a medida é executada, reduzindo drasticamente as chances de sua eficácia.É bem verdade que existem distorções também na forma como as medidas sócio-educativas em geral vêm sendo executadas, mas isto igualmente decorre da falta de compreensão, por parte dos encarregados da execução dos programas sócio-educativos (quando estes existem), dos princípios e finalidade das medidas respectivas.A "Proposta de Lei de Diretrizes Sócio-Educativas" surge, pois, como uma tentativa de melhor regulamentar as disposições estatutárias relativas ao adolescente em conflito com a lei, de modo a dar menos margem para as mencionadas interpretações distorcidas acerca da matéria.Vale ressaltar que em momento algum se procurou alterar qualquer dos dispositivos estatutários, mas apenas tornar expressas as regras que, implicitamente, a legislação já contempla.Contrariamente ao "Anteprojeto de Lei de Execução de Medidas Sócio-Educativas" que substituiu, voltado unicamente a regulamentar a execução das medidas sócio-educativas após proferida a sentença respectiva, a nova "Proposta" traz explícitos alguns parâmetros também para a aplicação das medidas sócio-educativas, pois como dito acima, boa parte das distorções encontradas se dão nesse momento, resultando na utilização indiscriminada da medida extrema e excepcional da internação em frontal violação a disposições estatutárias expressas.A propósito, outra preocupação da nova "Proposta" foi a de deixar ainda mais evidenciado o caráter excepcional da medida de sócio-educativa de internação, que na proposta anterior recebia tamanho destaque que fazia transparecer a falsa impressão que deveria ser a regra.Dessa forma, a "Proposta de Lei de Diretrizes Sócio-Educativas", se propõe a corrigir algumas das anomalias que vêm ocorrendo por ocasião do atendimento prestado ao adolescente em conflito com a lei, numa perspectiva eminentemente garantista que visa abolir, em definitivo, o "ranço" menorista e as investidas penalistas que insistem em contaminar a matéria.3 - DA APRESENTAÇÃO DA "PROPOSTA":O presente trabalho tem por objetivo apresentar ao leitor a "Proposta de Lei de Diretrizes Sócio-Educativas", convidando-o à reflexão acerca de seus dispositivos, que serão transcritos um a um, passando o autor a efetuar os comentários que entende necessários.Evidente que não se pretende esgotar a matéria, porém estabelecer um ponto de partida para sua discussão, de modo que o resultado final traga benefícios aos operadores do Estatuto da Criança e do Adolescente e, em especial, aos adolescentes em conflito com a lei que somente terão a ganhar com a nova visão que se espera incutir nos intérpretes e aplicadores da lei.

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4 - DOS COMENTÁRIOS À "PROPOSTA": TÍTULO I - DISPOSIÇÕES GERAIS:Art.1º. A presente Lei destina-se a regular a aplicação das medidas sócio-educativas previstas no art.112, da Lei nº 8.069/90, bem como disciplinar sua execução, estabelecendo suas diretrizes.O art.1º da "Proposta" evidencia sua preocupação não apenas em melhor regulamentar a execução pura e simples das medidas sócio-educativas, mas também a de estabelecer diretrizes para sua aplicação, de modo a evitas as distorções que vem ocorrendo, consoante apontado na introdução supra.Embora não haja referência expressa, a interpretação da "Proposta", que como disse apenas melhor explicita, e em nada altera as disposições contidas no Estatuto da Criança e do Adolescente, deve seguir os mesmos parâmetros por este traçados, notadamente ao disposto nos arts.1º e 6º da Lei nº 8.069/90, devendo qualquer dúvida porventura surgida ser interpretada da forma mais benéfica ao adolescente.Art.2º. A medida sócio-educativa tem natureza sancionatória e conteúdo prevalentemente pedagógico.O dispositivo em questão, que foi alvo de profunda discussão junto à comissão que elaborou a "Proposta", inclusive no que concerne à sua própria inclusão no texto, toca num ponto nevrálgico da matéria, que vem a ser a da natureza jurídica da medida sócio-educativa.A preocupação em deixar claro seu caráter sancionatório decorre da constatação de que alguns julgados, talvez ainda inspirados pelos ensinamentos da doutrina menorista, insistem em sustentar que internação é medida sempre "benéfica" ao adolescente, pois na unidade encarregada de executar a medida o mesmo irá receber todo amparo e assistência que, por vezes, não possui junto à sua família.Ora, se tal concepção era admissível à época da vigência do "Código de Menores", em que a pretexto de atender o "melhor interesse do menor" (sic.) eram segregados do convívio familiar e social mesmo adolescentes que sequer haviam praticado ato infracional (notadamente aqueles possuidores do famigerado "desvio de conduta"), isto não mais ocorre (sob o prisma legal) ao menos desde a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, que elevou crianças e adolescentes à condição de cidadãos (e não mais meros objetos da intervenção - pretensamente tutelar - estatal), com os mesmos direitos e garantias asseguradas aos adultos contra o arbítrio estatal.Ao admitir-se explicitamente o caráter sancionatório das medidas sócio-educativas, fica também evidenciada sua carga retributiva, que deve ser considerada não com a mesma intensidade e finalidade que a presente nas penas (com as quais aquela não se confunde), mas sim na perspectiva de que somente é juridicamente possível a aplicação de medidas sócio-educativas como resposta à comprovada prática de um ato infracional, ex vi do disposto nos arts.103, 112, caput e 114, todos da Lei nº 8.069/90.Os dispositivos estatutários acima citados, por sinal, já trazem implícita tal constatação, tendo a Lei nº 8.069/90, atendendo ao comando emanado do art.227, §3º, inciso V, segunda parte, da Constituição Federal (que institui o princípio da excepcionalidade das medidas privativas de liberdade), estabelecido ainda restrições especificas à aplicação e execução das medidas privativas de liberdade, pois não restam dúvidas que estas, por atentatórias aos direitos fundamentais à liberdade e à convivência familiar e comunitária, legal e constitucionalmente assegurados aos adolescentes, que a todos cabe preservar com a mais absoluta prioridade, representam um mal que deve ser a todo custo evitado (conforme art.227, caput, da Constituição Federal e arts.4º, caput; 100 c/c 113; 121, caput e 122, §2º, todos da Lei nº 8.069/90).De modo a evitar que fosse dado ênfase ao confessado caráter sancionatório das medidas sócio-educativas, fornecendo assim munição aos partidários do chamado "Direito Penal Juvenil", o dispositivo procurou ressaltar seu conteúdo "prevalentemente pedagógico", não havendo margem para sua aplicação - e execução, de forma meramente expiatória.

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O dispositivo comentado, destinado a todas as espécies de medidas sócio-educativas, deve ser interpretado em conjunto com o art.113 c/c art.100, ambos da Lei nº 8.069/90 e, no caso específico da execução da medida de internação, com o disposto nos arts.123, par. único e 124, incisos XI e XII, do mesmo Diploma Legal, evidenciando assim a idéia de que a privação de liberdade jamais pode conter um fim nela própria, se constituindo apenas num meio, extremo e excepcional (cuja utilização deve ser plenamente justificada face as necessidades pedagógicas do adolescente), para realização do trabalho sócio-educativo que se entende imprescindível na espécie.Tamanha foi a preocupação do legislador em impedir que as medidas privativas de liberdade fossem executadas sem a realização de atividades pedagógicas com os sócio-educandos, aliás, que estabeleceu, de maneira expressa, que o não oferecimento ou a oferta irregular de "escolarização e profissionalização de adolescentes privados de liberdade" pode levar à responsabilidade dos agentes e autoridades públicas aos quais se atribui a omissão, ex vi do disposto no art.208, inciso VIII c/c art.216, ambos da Lei nº 8.069/90.Art.3º. O procedimento sócio-educativo, em observância ao princípio constitucional da prioridade absoluta, insculpido no art.227, caput da Constituição Federal, deverá tramitar de forma célere e, juntamente com todos os demais feitos relativos à área da infância e juventude, terá preferência de instrução e julgamento sobre todos os demais processos em tramitação no mesmo Juízo ou Tribunal.O dispositivo em questão é conseqüência lógica e natural do PRINCÍPIO constitucional da PRIORIDADE ABSOLUTA à criança e ao adolescente, insculpido no art.227, caput, da Constituição Federal, que reproduzido e traduzido pelo art.4º, caput e parágrafo único, da Lei nº 8.069/90 importa, dentre outras, em conferir a crianças e adolescentes a necessária "precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública" (verbis - art.4º, par. único, alínea "b", da Lei nº 8.069/90).E nem poderia ser diferente, pois como não se discute o fato de o exercício da jurisdição, além de um Poder estatal, se constituir num serviço público dos mais relevantes, tendo seu acesso assegurado e facilitado sempre que se tratar da defesa de direitos e interesses afetos a crianças e adolescentes (inteligência do art.5º, inciso XXXV da Constituição Federal c/c art.141 e parágrafos, da Lei nº 8.069/90), inevitável a incidência do referido dispositivo, como de resto do comando constitucional relativo à absoluta prioridade à criança e ao adolescente, também ao Poder Judiciário, de modo que o atendimento das causas de interesse de crianças e adolescentes - notadamente aquelas que tramitam na Justiça da Infância e Juventude, seja célere e prioritário.O desdobramento mais explícito dessa constatação se encontra no art.198, inciso III da Lei nº 8.069/90, segundo o qual, nos Tribunais, "os recursos terão preferência de julgamento e dispensarão revisor" (verbis).No entanto, da análise de todos os procedimentos previstos na Lei nº 8.069/90, em especial daquele destinado à apuração de ato infracional praticado por adolescente, verifica-se que sua tônica é a celeridade, com atos praticados em rápida sucessão, de modo que sua tramitação e julgamento ocorra sem maiores delongas.E nem poderia ser diferente, na medida em que a morosidade na tramitação do procedimento para apuração de ato infracional praticado por adolescente pode resultar em conseqüências desastrosas a seu destinatário, que se verá privado de receber, com a presteza necessária, o tratamento sócio-educativo de que necessita.O Estatuto da Criança e do Adolescente já demonstra essa preocupação com a prontidão da resposta sócio-educativa ao estabelecer, como regra (afirmação que decorre da inteligência do disposto no art.182, primeira parte e 186, §1º, ambos da Lei nº 8.069/90), a possibilidade da concessão remissão, inclusive em sua forma clausulada, já por ocasião da oitiva informal do adolescente pelo representante do Ministério Público (art.126, caput c/c arts.127 e 181, todos da Lei nº 8.069/90). De igual sorte, prevê como sendo de 45

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(quarenta e cinco) dias o prazo "máximo e improrrogável" para conclusão do procedimento sócio-educativo, em estando o adolescente privado de sua liberdade, inclusive sob pena da prática de crime, por parte da autoridade (inclusive judiciária) que descumpre, de forma injustificada (e dificilmente haverá escusa para tanto), prazo fixado pela lei em benefício de adolescente privado de liberdade (arts.108, caput c/c 183 e 235, todos da Lei nº 8.069/90).Vale aqui ressaltar que não é a intensidade (diga-se rigor) da resposta sócio-educativa que importa, mas sim sua aplicação de forma célere, de modo que o adolescente seja o quanto antes encaminhado ao programa sócio-educativo e/ou protetivo que se mostre necessário face sua peculiar condição, sendo certo que as medidas aplicadas também se constituem em limites concretos que lhe darão a noção de autoridade e responsabilidade.De nada adianta aguardar meses ou mesmo anos a fio para proporcionar ao adolescente o tratamento sócio-educativo de que o mesmo necessita já no momento da prática do ato infracional.Uma medida aplicada a destempo perde por completo seu caráter pedagógico e se transforma numa verdadeira pena, em total desacordo ao previsto na legislação.O procedimento para apuração de ato infracional praticado por adolescente, portanto, mesmo não havendo internação provisória (medida por sinal excepcionalíssima para cuja imposição, a par dos requisitos do art.174 da Lei nº 8.069/90, a autoridade judiciária deve demonstrar sua "necessidade imperiosa", ex vi do disposto no art.108, par. único, in fine, da Lei nº 8.069/90), deve ter preferência de instrução e julgamento, devendo receber da autoridade judiciária um tratamento prioritário em seus despachos, sentenças e pauta de audiências.Como a apregoada "precedência de atendimento" decorre de mandamento constitucional expresso, que determina sejam crianças e adolescentes destinatárias de um tratamento prioritário em todos os serviços públicos, dentre os quais, como dito acima, se encontra a prestação da jurisdição, a aludida preferência deve ocorrer mesmo em relação aos procedimentos "em que figure como parte ou interveniente pessoa com idade igual ou superior a sessenta e cinco anos", na forma do previsto no art.1.211-A, do Código de Processo Civil, acrescido pela Lei nº 10.173, de 09 de janeiro de 2001.Mais uma vez, portanto, a "Proposta" apenas explicita aquilo que já se extrai da interpretação sistemática, lógica e teleológica do Estatuto da Criança e do Adolescente e das disposições constitucionais a ele correlatas.Art.4º. Aos municípios cabe, preferencialmente, a criação e manutenção de programas sócio-educativos em meio aberto, ficando os Estados e o Distrito Federal incumbidos da criação e manutenção de programas de semiliberdade e internação, inclusive provisória, sendo em qualquer caso facultada a parceria com órgãos e entidades governamentais e não governamentais.O dispositivo visa acabar com as dúvidas existentes acerca da responsabilidade dos entes federados pela criação e manutenção de programas sócio-educativos, deixando claro que embora seja facultado aos municípios a criação de programas de semiliberdade e internação, devem primeiro providenciar a criação de programas em meio aberto (notadamente a liberdade assistida e a prestação de serviços à comunidade), de modo a garantir uma estrutura de atendimento adequada a seus adolescentes em conflito com a lei, com respeito ao disposto no já citado art.113 c/c art.100, segunda parte, da Lei nº 8.069/90.Vale aqui abrir um parênteses para lembrar que a "municipalização do atendimento" prevista no art.88, inciso I, da Lei nº 8.069/90 como uma das diretrizes da política a ser implementada em prol de crianças e adolescentes, não pode ser compreendida como sinônimo de "prefeiturização", cabendo aos Estados e mesmo à União prestar aos municípios a assistência técnica e financeira necessária à elaboração, implementação e manutenção dos programas sócio-educativos em meio aberto, a exemplo do que dispõe o art.211 e §1º, in fine, da Constituição Federal no que diz respeito à educação.

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Outro aspecto digno de nota acerca do dispositivo diz respeito ao reconhecimento expresso que a execução dos programas sócio-educativos - inclusive os relativos às medidas privativas de liberdade, pode se dar por intermédio de entidades não governamentais, como aliás já se extraía da inteligência do disposto nos arts.86 e 90, caput e incisos VI e VII usque 94 e 96, todos da Lei nº 8.069/90.Evidente que a possibilidade da utilização de entidades não governamentais para o fim de execução de medidas privativas de liberdade não exime o Estado de sua obrigação de "zelar pela integridade física e mental dos internos, cabendo-lhe adotar as medidas de contenção e segurança" (verbis - art.125, da Lei nº 8.069/90), dispositivo estatutário por muitos invocado para sustentar a impossibilidade do estabelecimento da citada parceria.Permite-se, pois, que a execução do programa sócio-educativo propriamente dito fique a cargo da entidade não governamental, cabendo ao Estado a construção de obstáculos contra fuga e a vigilância externa das unidades, sem interferir na proposta pedagógica respectiva.Art.5º. A medida sócio-educativa não comporta prescrição.§ 1º - Em razão do decurso do tempo entre a conduta infracional e o momento do início ou reinício do cumprimento da medida sócio-educativa, poderá o juiz da execução, ouvido o Defensor e o Ministério Público, mediante decisão fundamentada declarar sua extinção em razão da perda do objeto sócio-educativo.§ 2º - O disposto no parágrafo anterior também se aplica a procedimentos ainda em curso, que em tal caso serão declarados extintos sem a análise de seu mérito.O tema do presente dispositivo, que se entendeu necessário incluir na "Proposta" face a existência de julgados que têm reconhecido a incidência da prescrição nos procedimentos para apuração de ato infracional praticado por adolescente, tomando por base o disposto no art.109 do Código Penal (matéria com a qual, como dito alhures, se quer a maior distância possível), foi discutido em profundidade pela comissão que elaborou a "Proposta", desde logo formando-se duas correntes:A que defendia a previsão da prescrição, argumentava que esta se constitui num instituto que não está restrito ao Direito Penal, mas também se encontra presente em outros ramos do Direito. Ademais, a falta da previsão de um prazo prescricional específico resultaria numa situação mais prejudicial ao adolescente do que fosse ele adulto imputável (notadamente se menor de 21 anos, caso em que seria beneficiado com a redução pela metade dos prazos prescricionais, ex vi do disposto no art.115 do Código Penal), haja vista que, em tese, em tendo praticado um ato infracional qualquer aos 12 (doze) anos de idade, e tendo a seguir se evadido ou simplesmente mudado de residência com seus pais, sem comunicação ao Juízo, poderia ter em seu desfavor expedido mandado de busca e apreensão (a teor do disposto no art.184, §3º, da Lei nº 8.069/90), que somente iria "expirar" após o mesmo completar 21 (vinte e um) anos de idade, quando então, por força do disposto no art.2º, par. único c/c art.121, §5º, ambos da Lei nº 8.069/90, cessaria toda e qualquer possibilidade de aplicação do Estatuto. O mesmo ocorreria caso fosse o adolescente sentenciado a determinada medida sócio-educativa e não fosse encontrado para iniciar sua execução.Embora ponderáveis e respeitáveis os argumentos, prevaleceu o entendimento de que o estabelecimento de prazos prescricionais, além de dar margem a uma indevida ilação com o Direito Penal, estaria em descompasso com a proposta do Estatuto da Criança e do Adolescente para o atendimento do adolescente em conflito com a lei, até porque não cabe ao Estado (latu sensu), abrir mão, sem motivo justificado, de seu dever de proporcionar ao jovem a resposta sócio-pedagógica adequada, enquanto esta ainda se fizer necessária. O estabelecimento de uma causa objetiva de "perda da pretensão sócio-educativa" seria contrária à proposta de proteção integral do adolescente, que mesmo após decorrido o "lapso prescricional" previsto ainda poderia estar a necessitar dos limites e das oportunidades decorrentes da medida originalmente aplicada ou de outra que viesse a

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substituí-la, tal qual previsto no art.113 c/c art.99, ambos da Lei nº 8.069/90, do que seria então privado.De modo a evitar a ocorrência das situações anômalas apontadas pelos partidários da prescrição, foi prevista a possibilidade do reconhecimento, pela autoridade judiciária, a qualquer momento, de ofício ou a requerimento da parte, da chamada "perda do objeto sócio-educativo", face o desaparecimento do caráter pedagógico da medida ocorrido em virtude do prolongado decurso do tempo entre o momento da prática infracional e o início ou reinício da execução da medida, consoante alhures mencionado.Com tal solução, chega-se ao mesmo resultado que adviria com a incorporação do instituto da prescrição, porém com a utilização de uma argumentação própria, mais adequada à citada proposta estatutária, que leva o operador a melhor refletir acerca dos objetivos do procedimento sócio-educativo e medidas dele resultantes.De igual sorte, o art.78 da "Proposta", inserido no título "Das disposições finais e transitórias", prevê de maneira expressa que o mandado de busca e apreensão expedido em desfavor do adolescente, salvo se decorrente de sentença que aplica a medida sócio-educativa de internação nas hipóteses do art.122, incisos I e II da Lei nº 8.069/90, terá vigência máxima de 02 (dois) anos, contados da data de sua decretação, devendo se necessário ser renovado após este prazo.Com a limitação do "prazo de validade" do mandado de busca e apreensão, evita-se a ocorrência da situação acima aventada, e em contrapartida, permite ao Juízo a reavaliação periódica da necessidade ou não da continuidade do procedimento ou da execução da medida, permitindo que o mesmo, se for o caso, decrete sua extinção em razão da já mencionada perda do objeto sócio-educativo.Sobre a matéria, importante mencionar que o Superior Tribunal de Justiça, em recente decisão, reconheceu a incidência da prescrição em procedimentos para apuração de ato infracional praticado por adolescente, utilizando para tanto os parâmetros da Lei Penal.Em que pese o teor do respeitável julgado, continuamos a defender que eventual extinção do procedimento em curso ou da medida em execução, quando do prolongado decurso do tempo desde a prática infracional, se dê por intermédio de princípios e fundamentos próprios do Direito da Criança e do Adolescente, e não "emprestados" da Lei Penal ou de outros ramos do Direito.Art.6º. Os órgãos e entidades encarregadas da execução das medidas sócio-educativas deverão especificar, em seus programas de atendimento, as respectivas propostas pedagógicas, em que conste, dentre outros, os princípios de conduta e ações destinadas a proporcionar, junto ao adolescente e sua família, a superação de conflitos pessoais e sociais baseados em valores humanos e promoção da cidadania.Este dispositivo nasceu da preocupação da comissão em definir, ou ao menos de estabelecer parâmetros mínimos que permitissem a melhor compreensão do que vem a ser a "proposta pedagógica" inerente a cada programa sócio-educativo.A idéia é, acima de tudo, obrigar as entidades governamentais e não governamentais encarregadas da execução do programa sócio-educativo, a elaborarem uma proposta de atendimento ao adolescente em conflito com a lei adequada às regras e princípios estabelecidos tanto pela Lei nº 8.069/90 quanto pela própria "Proposta" em comento, contendo ainda os imprescindíveis elementos técnicos a serem trabalhados com o jovem e sua família, bem como com a comunidade em geral (dadas disposições elementares contidas nos arts.4º, caput, 70 e 100 c/c 113, todos da Lei nº 8.069/90, bem como arts.205, 226 e 227, da Constituição Federal).A proposta de atendimento, que num primeiro momento conterá a metodologia e os objetivos globais do programa específico, será a seguir melhor explicitada, caso a caso, no chamado "plano individual de atendimento" (Título IV, Capítulo II da "Proposta" - arts.38 usque 41), de modo que cada adolescente tenha respeitada sua individualidade.

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Devem ser claramente explicitados os fundamentos legais e técnicos do programa, atribuindo-se de maneira expressa e motivada responsabilidades não apenas ao adolescente, mas à própria entidade e aos encarregados de acompanhar a execução da medida. De igual sorte, curial que a proposta de atendimento contenha previsão para o envolvimento da família do adolescente e da comunidade em geral, devendo o programa sócio-educativo estar articulado com outros de cunho protetivo (de modo a permitir, por exemplo, seu ingresso ou reingresso na escola, tratamento psicológico e/ou para drogadição etc.) e também voltados a seus pais ou responsável (na forma do previsto no art.129 da Lei nº 8.069/90).Tal disposição visa atender ao previsto no art.86 da Lei nº 8.069/90, que traz ínsita a idéia de que todos os mecanismos que compõe o "Sistema de Garantias à Criança e ao Adolescente" idealizado pelo Estatuto devem trabalhar em rede, num somatório de ações integradas com vista à sua prometida proteção integral.Com tais exigências, procura-se evitar que a medida sócio-educativa seja executada sem qualquer critério ou enfoque pedagógico, convertendo-se em uma verdadeira pena, em desacordo com os preceitos legais específicos e sem qualquer resultado benéfico ao adolescente.A primeira conseqüência, aliás, será a de obrigar as entidades a elaborarem seus programas de atendimento, e assim procederem com base em critérios técnicos idôneos, com detalhamento da metodologia de trabalho que permita visualizar sua adequação e verificar, a qualquer momento, se a medida vem sendo corretamente executada.Desnecessário mencionar que a análise da adequação do programa sócio-educativo e de sua proposta pedagógica deve ser efetuada já pelo Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, junto ao qual deve ser aquele devidamente registrado, na forma do disposto no art.90, par. único, da Lei nº 8.069/90. Para que proceda ao registro do programa, e assegurar sua integração à rede de atendimento existente no município, é facultado (para não dizer imprescindível) ao Conselho de Direitos estabelecer parâmetros adicionais e exigências específicas junto à entidade que pretende desenvolvê-lo (número de técnicos, habilitação das pessoas encarregadas da execução do programa, número máximo de adolescentes por técnico, educador e unidade, articulação do programa com outros em execução etc.), sob pena de indeferimento do pedido respectivo.Iniciada a execução do programa, fundamental que se proceda à sua permanente fiscalização, na forma do previsto no art.95 e seguintes da Lei nº 8.069/90, e caso sejam detectadas irregularidades (inclusive quando verificado que o programa não está surtindo, nos sócio-educandos, os resultados pedagógicos almejados), é se proceder sua adequação às necessidades específicas da clientela, seja de forma espontânea, pela equipe técnica a serviço da entidade, seja mediante provocação do Ministério Público (no exercício da atribuição prevista no art.95 c/c art.201, §5º, alínea "c", da Lei nº 8.069/90), seja mediante demanda judicial específica (ex vi do disposto no art.191 e seguintes, da Lei nº 8.069/90).O objetivo do dispositivo da "Proposta" em exame, ao qual como visto se somam outros contidos na Lei nº 8.069/90, portanto, é o de extirpar do sistema, de uma vez por todas, o amadorismo e a falta de seriedade no atendimento ao adolescente em conflito com a lei, que infelizmente têm sido a tônica Brasil afora, com os resultados negativos que todos nós conhecemos.Art.7º. Comprovadas autoria e materialidade da infração, a aplicação da medida sócio-educativa mais adequada pressupõe, além do contido no art.112, § 1º da Lei nº 8.069/90, a análise minuciosa das condições pessoais, familiares e sociais do adolescente, na busca de suas reais necessidades pedagógicas.§ 1º - Quando entender cabível a aplicação de medidas sócio-educativas privativas de liberdade, deverá a autoridade judiciária demonstrar, além da adequação do fato às hipóteses do art.122 da Lei nº 8.069/90, as razões que o levaram a concluir pela inadequação das medidas sócio-educativas em meio aberto.

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§ 2º - A gravidade do ato infracional praticado não é motivo que, por si só, justifique a aplicação de medida sócio-educativa privativa de liberdade.O presente dispositivo visa melhor explicitar os parâmetros legais que devem servir de base à aplicação da medida sócio-educativa mais adequada ao adolescente em conflito com a lei, evitando assim a indevida e inadequada utilização de outros, como aqueles contidos no art.59 do Código Penal, totalmente estranhos ao Direito da Criança e do Adolescente.Em verdade, nada inova em relação ao já contido, embora de maneira implícita, na Lei nº 8.069/90 à qual se reporta expressamente.Evidencia, no entanto, a importância capital da busca das "reais necessidades pedagógicas" do adolescente, em razão das quais se dará a resposta sócio-educativa, na esteira do contido nos arts.100, in fine e 113, ambos da Lei nº 8.069/90.Deixa claro que não basta a singela apuração da autoria e da materialidade do ato infracional para autorizar a aplicação da medida sócio-educativa, mas também que reputa-se imprescindível a busca de informações precisas acerca das "condições pessoais, familiares e sociais do adolescente", de preferência com a realização de estudo social idôneo, por intermédio de equipe técnica habilitada, consoante previsto nos arts.151 e 186, §4º, ambos da Lei nº 8.069/90.O parágrafo primeiro do dispositivo em tela deve ser analisado em conjunto com o art.122, §2º, da Lei nº 8.069/90, que em respeito ao princípio constitucional da excepcionalidade das medidas privativas de liberdade, insculpido no art.227, §3º, inciso V, segunda parte, da Constituição Federal (e reproduzido no art.121, caput, da Lei nº 8.069/90), é expresso ao determinar que "EM NENHUMA HIPÓTESE será aplicada a internação, havendo outra medida adequada" (verbis - grifei).Já o parágrafo segundo do mesmo dispositivo resulta do já mencionado caráter não punitivo das medidas sócio-educativas, não dando margem para que a medida extrema da internação seja aplicada apenas em razão da gravidade do ato infracional praticado.Consoante mencionado na introdução supra, o princípio da proporcionalidade entre o ato infracional praticado e a medida sócio-educativa a ser aplicada, estabelecido pelo art.112, §1º, in fine, da Lei nº 8.069/90, deve ser interpretado segundo as regras de hermenêutica contidas nos arts.1º e 6º do mesmo Diploma Legal, ou seja, sempre de modo a beneficiar e jamais prejudicar o adolescente.E nem poderia ser diferente, pois como dito alhures, a regra do citado art.122, §2º, da Lei nº 8.069/90, está inserida dentro de um dispositivo que, por si só, já restringe sobremaneira as hipóteses em que, em tese, é juridicamente admissível a aplicação da medida privativa de liberdade extrema e excepcional, que salvo na hipótese do "descumprimento reiterado e injustificável de medida anteriormente imposta" (verbis - art.122, inciso III, da Lei nº 8.069/90), somente terá cabimento em se tratando de infrações de natureza grave.A interpretação conjunta de ambos os parágrafos e caput do dispositivo sub examine, como aliás já ocorre diante das disposições estatutárias citadas, deixa mais do que evidenciado o fato de que a gravidade do ato infracional praticado também não pode ser invocada para, sem qualquer respaldo técnico e/ou elementos adicionais trazidos aos autos, justificar que as demais medidas sócio-educativas relacionadas no art.112, da Lei nº 8.069/90, não seriam adequadas.Fosse possível a utilização da gravidade do ato infracional praticado pelo adolescente ser utilizada como fundamento IDÔNEO a autorizar o "descarte" das medidas aplicáveis em meio aberto, o citado art.122, §2º, da Lei nº 8.069/90, que como vimos, está inserido num dispositivo que restringe a possibilidade jurídica da aplicação da medida extrema da internação basicamente a infrações consideradas graves, não teria o menor sentido.Semelhante conclusão seria verdadeiramente teratológica, pois além de desconsiderar as normas e princípios estatutários e constitucionais específicos já mencionados, afrontaria regras básicas de hermenêutica segundo as quais a lei não contém palavras inúteis e

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que as normas contidas no parágrafo se aplicam às disposições relacionadas na cabeça do artigo ou, como no caso específico em exame, em seus incisos.Nesse contexto, é inegável que a aplicação de medidas privativas de liberdade sem a devida fundamentação e/ou tendo por "fundamento" único a gravidade do ato infracional em tese praticado AFRONTA o preceito constitucional insculpido no art.227, §3º, inciso V, segunda parte, da Constituição Federal, pois como vimos, a gravidade da infração não é o fator que justifica a adoção da solução excepcional respectiva, servindo apenas para indicar se ela é, ou não, em tese cabível (juridicamente impossível que é a aplicação das medidas de inserção em regime de semiliberdade e internação fora das hipóteses previstas no art.122 da Lei nº 8.069/90).Em outras palavras, temos que a gravidade do ato infracional em tese praticado, isoladamente considerada, não serve de fundamento para a aplicação de medidas sócio-educativas privativas de liberdade, servindo apenas como UM dos fatores que permitem, EM TESE, a aplicação de tais medidas, cuja adequação ao caso específico analisado obrigatoriamente terá de ser demonstrada através de argumentos outros, que afastem de forma clara a incidência da regra geral e constitucional (art.227, §3º, inciso V, segunda parte, da Constituição Federal, já mencionado) que determina a aplicação de medidas sócio-educativas preferencialmente em meio aberto.Assim sendo, quando entender necessária a aplicação de medidas sócio-educativas privativas de liberdade, não pode o magistrado deixar de consignar expressamente a razão de ter ele concluído pela impossibilidade, inviabilidade ou inadequação à espécie das medidas exeqüíveis em meio aberto (dada incidência do disposto no art.122, §2º, da Lei nº 8.069/90), não podendo para tanto invocar a gravidade do ato infracional praticado pelo adolescente, sob pena de frontal violação do princípio legal e constitucional da excepcionalidade da imposição de tais medidas, causando evidentes prejuízos ao adolescente em total descompasso com a regra de hermenêutica estabelecida pelo art.6º da Lei nº 8.069/90.Art.8º. A falta de programas de proteção e/ou sócio-educativos em meio aberto não pode ser invocada como motivo ensejador da aplicação de medida sócio-educativa privativa de liberdade.Parágrafo único - Em sendo constatada a falta de programas de proteção e/ou sócio-educativos em meio aberto no município, a autoridade judiciária, de ofício ou a requerimento das partes, fará comunicação formal da deficiência estrutural verificada ao Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente local, que deverá deliberar pela implantação de uma política sócio-educativa própria.O dispositivo em exame guarda nítida correlação com o anterior, resultando da inteligência dos arts.6º e 122, §2º, ambos da Lei nº 8.069/90.Deixa claro que o magistrado não pode aplicar a medida privativa de liberdade extrema da internação sob o argumento de que não existem, no município ou comarca, programas de proteção e/ou sócio-educativos em meio aberto para onde possa ser o adolescente encaminhado.E nem poderia ser diferente, pois não há que se confundir, para fins de interpretação a contrariu sensu do art.122, §2, da Lei nº 8.069/90, a comprovada inexistência de outras medidas em meio aberto mais adequadas à internação, face as necessidades pedagógicas do adolescente, com a falta de programas alternativos a elas correspondentes, para onde possa ser ele encaminhado.Assim, sendo em tese recomendável a aplicação, ao adolescente, de uma ou mais medidas sócio-educativas em meio aberto e/ou de cunho unicamente protetivo, a inexistência dos programas a elas correspondentes no município ou comarca, que permitiria a realização do trabalho sócio-pedagógico que se mostra necessário sem ter de privá-lo de sua liberdade e do convívio familiar e comunitário, não pode ser invocada para o fim justificar sua internação ou inserção em regime de semiliberdade, em regra a ser cumprida em local

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distante de sua residência e não raro em condições atentatórias à sua dignidade, contrariando assim o disposto no art.5º, da Lei nº 8.069/90 e outras disposições estatutárias e constitucionais correlatas.Se constituiria, aliás, um verdadeiro disparate determinar a privação de liberdade de um adolescente sob o argumento de que não existem alternativas à medida face a falta de estrutura do município e comarca para seu adequado atendimento.Seria penalizar (literalmente, diga-se de passagem), o adolescente pela omissão Estatal, que por si só já o vitimiza e o coloca em situação de risco, na forma do art.98, inciso I, in fine, da Lei nº 8.069/90.Seria fazer tabula rasa dos mais elementares princípios e regras garantistas consagradas pela Lei nº 8.069/90 e Constituição Federal.Consoante ventilado na introdução supra, se tal solução era até compreensível à época da vigência do "Código de Menores", que não relacionava direitos a crianças e adolescentes nem obrigações ao Poder Público, a mesma hoje se mostra inconcebível diante de nosso ordenamento jurídico-constitucional, que coloca a criança e o adolescente como centro de nossa atenção e destinatários da mais absoluta prioridade em nossas ações.A sistemática prevista pela Lei nº 8.069/90 para o atendimento do adolescente em conflito com a lei se insere num contexto muito maior - de proteção integral a todas as crianças e adolescentes, tendo um enfoque eminentemente preventivo e prioritário.São claramente previstos inúmeros "mecanismos de exigibilidade", colocados à disposição da Justiça da Infância e Juventude para fazer com que os direitos assegurados à criança e ao adolescente lhes sejam efetivamente assegurados - e com a absoluta prioridade que a Constituição Federal preconiza.O Estatuto da Criança e do Adolescente dedicou um capítulo inteiro (o Capítulo VII, do Título VI), à "proteção judicial dos Interesses Individuais, difusos e coletivos" afetos à criança e ao adolescente, prevendo uma série de instrumentos jurídicos (como a ação civil pública e a ação mandamental) e ainda deixando espaço para outros (conforme art.212, caput, da Lei nº 8.069/90), dando ao Juiz da Infância e Juventude poderes especiais, de modo que possa assegurar a plena efetividade da norma e o atingimento de seu objetivo finalístico que, nunca é demais repetir, a proteção integral de crianças e adolescentes.Como dizia o saudoso Desembargador Paraense Paulo Frota, exemplo e luta pela causa infanto-juvenil que integrou a comissão que elaborou a "Proposta" em estudo, "o Juiz da Infância e Juventude deve ser estético, e não estático", de modo a assumir, em sua plenitude, o papel que lhe foi reservado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.Assim sendo, há a expressa previsão para que o Juiz da Infância e Juventude protagonize o asseguramento da plena eficácia da tutela jurisdicional através de iniciativas como a prevista no art.213, caput, da Lei nº 8.069/90, em que "na ação (instaurada para proteção de interesses individuais, coletivos ou difusos assegurados a crianças e adolescentes) que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou DETERMINARÁ (de ofício) PROVIDÊNCIAS QUE ASSEGUREM O RESULTADO PRÁTICO EQUIVALENTE AO ADIMPLEMENTO" (verbis - grifos e notas explicativas do autor), sendo-lhe lícito, por ocasião do despacho da inicial ou da sentença, "impor multa diária ao réu, INDEPENDENTEMENTE DE PEDIDO DO AUTOR, se for suficiente e compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito" (verbis - art.213, §2º, da Lei nº 8.069/90 - grifei), mas também que busque a responsabilização civil e administrativa do agente do Poder Público a que se atribui a ação ou omissão lesiva aos direitos e interesses infanto-juvenis, como aliás impõe o art.216 da Lei nº 8.069/90.E mais, o art.221, da Lei nº 8.069/90 também é categórico ao determinar que "se, no exercício de suas funções, juízes e tribunais tiverem conhecimento de fatos que possam ensejar a propositura de ação civil, remeterão peças a Ministério Público, para as providências cabíveis" (verbis).

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A regra acima transcrita, é decorrência natural do disposto no art.220 também da Lei nº 8.069/90, que obriga todo servidor público (ainda que no exercício temporário da função pública, como é o caso do membro do Conselho Tutelar) e faculta a todo cidadão, "provocar a iniciativa do Ministério Público" (verbis), de modo que este, em cumprimento ao disposto no art.201, incisos V e VIII, ambos da Lei nº 8.069/90, tome as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis de modo a garantir o "efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes" (verbis).Indo mais além, chegaremos ao contido no art.70, da Lei nº 8.069/90, que dispõe ser "dever de TODOS (inclusive, é claro - e em especial - de membros da Magistratura e Ministério Público) prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente" (verbis) e, por fim, ao disposto nos arts.4º e 5º, também da Lei nº 8.069/90 e de sua gênese constitucional, o pluricitado art.227, caput, de nossa Carta Magna que, como vimos, institui a "Doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente" em nosso ordenamento jurídico.Constata-se, portanto, que o parágrafo único do dispositivo em estudo traz uma obrigação que apenas se soma a outras já previstas na Lei nº 8.069/90, enaltecendo a importância do Juízo da Infância e Juventude atuar como verdadeiro protagonista no processo de identificação e correção de falhas na estutura de atendimento à criança e ao adolescente existente no município, e não como mero órgão estático e burocrático que se conforma com a aplicação "torta" da lei diante das deficiências que sabe existir, dando o "jeitinho" que puder.A proposta da lei é clara: o "jeitinho" e o amadorismo no atendimento devem dar lugar a políticas públicas a serem deliberadas pelo Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, elaboradas e executadas por profissionais capacitados, que estejam articuladas numa verdadeira "rede" de atendimento que conduza à efetiva proteção integral do adolescente em conflito com a lei.A autoridade judiciária, assim como os demais integrantes dessa "rede" de atendimento (ou "Sistema de Garantias", como queiram), deve zelar para sua adequada implementação e funcionamento (daí a importância da contínua fiscalização da forma como os programas vêm sendo executados, ex vi do disposto nos arts.95 e 191, ambos da Lei nº 8.069/90), tomando as iniciativas que estiverem a seu cargo e/ou provocando aqueles que tenham competência para fazê-lo.Assim sendo, ao se ver impossibilitado de aplicar determinada medida de proteção e/ou sócio-educativa em meio aberto em razão da inexistência do programa de proteção ou sócio-educativo correspondente, cabe à autoridade judiciária não a adoção de uma solução mais rigorosa ao adolescente, mas sim a provocação de outros órgãos com vista à criação de uma estrutura de atendimento adequada, tanto para aquele caso em particular, quanto para outros similares que, cedo ou tarde, irão surgir e dela se beneficiar.Deixa-se de penalizar o adolescente para, na forma da lei, buscar a responsabilidade do Poder Público por sua omissão, beneficiando assim não apenas o sujeito do procedimento sócio-educativo, mas toda coletividade, valendo lembrar que cabe não apenas ao Ministério Público, mas também à Justiça da Infância e Juventude, "zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes..." (verbis - grifei), o que fatalmente irá importar na responsabilização do Poder Público na forma do previsto no art.98, inciso I c/c art.208 e par. único, todos da Lei nº 8.069/90.Art.9º. Cumpridos integralmente os 3 meses de privação de liberdade na forma do disposto no art.122, §1º, da Lei nº 8.069/90, será decretada a extinção da medida sócio-educativa originalmente aplicada, sem embargo da aplicação das medidas de proteção que se fizerem necessárias.O contido no presente dispositivo visa acabar com uma situação procedimental que, potencialmente, pode levar a uma solução teratológica, com evidentes prejuízos ao adolescente.

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Como já tive a oportunidade de salientar no artigo entitulado "breves considerações sobre o art.122, inciso III, da Lei nº 8.069/90", publicado na página do CAOPCA/PR na internet, os fundamentos e objetivos dessa modalidade de internação, também conhecida por "internação-sanção" (terminologia que como veremos adiante foi assimilada pela "Proposta"), são completamente diversos das demais hipóteses de aplicação da medida privativa de liberdade extrema, previstas no art.122, incisos I e II da Lei nº 8.069/90.Enquanto nestes casos (ato infracional praticado mediante grave ameaça ou violência à pessoa e em razão da reiteração na prática de outras infrações consideradas graves), a internação (ao menos em tese) é aplicada desde logo, face a gravidade do ato infracional praticado E, acima de tudo, por ter se mostrado necessária, como "único meio" de realizar o trabalho psicossocial de que o adolescente é credor (conforme art.112, §1º, c/c arts.100, 113 e 121, caput, todos da Lei nº 8.069/90), na hipótese da internação por descumprimento de medida, a privação de liberdade pode ocorrer mesmo tendo sido a infração praticada de natureza leve, haja vista que esta serve para dar um certo grau de "coercibilidade" às medidas originalmente aplicadas em meio aberto e mesmo à semiliberdade.Daí a razão, creio, de se falar que essa modalidade de internação possui um "caráter assecuratório", pois estaria servindo como uma verdadeira "espada de Dâmocles", pairando por sobre a cabeça do adolescente submetido a medidas em meio aberto para alertá-lo de que, em havendo o descumprimento reiterado e injustificável destas (assim apurado em procedimento contraditório próprio, em que seja garantida a ampla defesa ao jovem, com a intervenção de defensor habilitado, conforme art.5º, incisos LIV e LV, ambos da Constituição Federal), poderá ocorrer algo pior, qual seja, sua privação de liberdade. Sobre a matéria, interessante observar a recém-editada Súmula nº 265, segundo a qual "é necessária a oitiva do menor infrator (sic.) antes de decretar-se a regressão da medida sócio-educativa".Um dos grandes problemas hoje enfrentados é a aplicação sistemática e indiscriminada, dessa modalidade de internação, pelo período integral previsto no art.122, §1º da Lei nº 8.069/90, quando na verdade o dispositivo se refere ao prazo máximo para sua duração, que a exemplo do que ocorre com as demais modalidades de internação, é indeterminado (conforme art.121, §2º, primeira parte, da Lei nº 8.069/90), devendo ser condicionado unicamente à assimilação, por parte do adolescente, da importância e necessidade de que o mesmo se submeta ao comando da sentença impositiva da medida sócio-educativa original em meio aberto (ou semiliberdade), com sua predisposição em cumpri-la fiel e integralmente.Tendo em vista a inevitável incidência, mesmo para essa modalidade de internação, do disposto no art.121, §2º, primeira parte, da Lei nº 8.069/90, não é admissível, ao menos a princípio, que a autoridade judiciária estabeleça um prazo certo para duração da medida, notadamente quando tal prazo for o máximo previsto no citado art.122, §1º do mesmo Diploma Legal, pois é perfeitamente possível que o adolescente, passadas algumas semanas ou mesmo dias da internação, se proponha a cumprir a(s) medida(s) em meio aberto (ou de inserção em regime de semiliberdade) originalmente imposta(s), tendo assim a medida atingido seus objetivos e não mais se justificando a manutenção da privação da liberdade de seu destinatário, a bem do princípio constitucional da brevidade da internação, insculpido no art.227, §3º, inciso V, primeira parte de nossa Carta Magna e reproduzido no art.121, caput, primeira parte, da Lei nº 8.069/90.Assim sendo, nada impede que, poucas semanas ou mesmo dias após a internação do adolescente por descumprimento de medida anteriormente imposta (art.122, inciso III e §1º, ambos da Lei nº 8.069/90), uma vez que se obtenha do jovem o compromisso de que doravante irá se submeter ao comando da sentença e cumprir a medida originalmente aplicada, seja desde logo encaminhado, pela entidade encarregada de executar a medida privativa de liberdade, relatório fundamentado contendo prognóstico favorável à desinternação, independentemente de constar ou não, da decisão que decretou a privação

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de liberdade do jovem, prazo certo para sua duração, disposição que se presente, por afrontar o citado art.121, §2º, primeira parte da Lei nº 8.069/90, é nula de pleno direito (em especial se, desde logo, impuser o prazo máximo previsto em lei), não tendo assim qualquer força vinculante.Tão logo seja protocolado o referido relatório, a exemplo do que ocorre com os demais pedidos e feitos de interesse de crianças e adolescentes, que como dito acima, por princípio constitucional (art.227, caput da Constituição Federal), gozam de prioridade absoluta de apreciação pelo Poder Judiciário, deve a autoridade judiciária competente dele abrir vista ao Ministério Público (conforme previsto no art.201, inciso II e art.153, in fine, ambos da Lei nº 8.069/90), à defesa (conforme art.67 da "Proposta") e, por decisão fundamentada, prontamente decidir pela desinternação ou não do adolescente, devendo no primeiro caso determinar o prosseguimento da execução da medida original, com as intimações e advertências necessárias, inclusive junto aos pais ou responsável pelo jovem.A preocupação do dispositivo em comento foi em deixar claro que, em sendo atingido o prazo máximo de internação por descumprimento de medida anteriormente imposta previsto no art.122, §1º, da Lei nº 8.069/90, o adolescente deverá ser imediatamente colocado em liberdade (inclusive sob pena da prática do crime do art.235 da Lei nº 8.069/90), com o decreto da extinção da medida originalmente aplicada, que terá então perdido seu objeto e não mais poderá ser revista (até porque presume-se que já foi ao menos tentada sua substituição por outra, ex vi do disposto no art.113 c/c arts.99 e 100, todos da Lei nº 8.069/90) ou dar ensejo a novos decretos de internação similares.Tal conclusão decorre, dentre outros fatores, relacionados à interpretação sistemática, lógica e teleológica do Estatuto da Criança e do Adolescente, da constatação de que, caso houvesse o prosseguimento da execução da medida originalmente aplicada após atingido o período máximo de internação previsto no art.122, §1º da Lei nº 8.069/90, a persistência de seu reiterado descumprimento por parte do adolescente poderia levar a internações sucessivas, pela mesma prática infracional, que ao final poderiam resultar na absurda situação de que, por um único ato infracional de natureza leve, permaneceria o adolescente internado por um período superior ao máximo previsto no art.121, §3º do citado Diploma Legal, para a internação sócio-educativa em tese (e sempre em tese, posto que sua aplicação não é obrigatória e nem deve ser a regra, mesmo nessas situações) destinada a infrações de natureza grave. De outra banda, caso houvesse a continuidade da execução da medida anterior, porém agora sem a possibilidade de internação quando de seu descumprimento reiterado e injustificável, a contumácia do adolescente poderia levar ao descrédito da medida e do Sistema de Justiça da Infância e Juventude, com resultados antipedagógicos (e deletérios) óbvios.Assim sendo, em havendo a comprovação, em incidente de execução ou procedimento próprio, no qual se garanta ao adolescente o contraditório e a ampla defesa, do descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta, a internação-sanção deve ser aplicada por prazo indeterminado, e após a colocação do adolescente em liberdade, novas internações similares, pelo mesmo ato infracional, terão como limite máximo o remanescente do prazo máximo previsto no art.122, §1º, da Lei nº 8.069/90, que após atingido, deverá provocar a extinção do procedimento respectivo de modo a não permitir que, em razão dele, continue o adolescente a receber medidas e a ser privado de sua liberdade por seu descumprimento.Faculta-se, é claro, a aplicação e/ou ou continuidade da execução de medidas de cunho unicamente protetivo, mas agora sem qualquer coerção ao adolescente, que deverá ser adequadamente trabalhado para a elas se submeter.Como tive a oportunidade de destacar no artigo acima citado, antes de se pensar em, apressadamente, responsabilizar o adolescente pelo descumprimento da medida anteriormente aplicada (em meio aberto ou em regime de semiliberdade), importante que sejam apuradas as condições em que a medida está sendo executada pela entidade

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respectiva, devendo-se em primeiro lugar analisar o projeto sócio-educativo elaborado, sua proposta pedagógica, a capacitação dos encarregados de sua execução, enfim, deve-se procurar verificar se a resistência demonstrada pelo jovem não é resultante de uma completa inadequação do programa de atendimento e/ou falta de condições materiais e humanas da entidade que o executa, que pode perfeitamente ser a verdadeira causa do problema.