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Bruno Latour Essa conferência, proferida no final de 2013 por Viveiros de Castro, é bastante longa e aconteceu no Centro de Estudos Ameríndios (CESTA/USP) em homengem a Curt Nimuendajú, que fez o primeiro trabalho moderno de etnologia, há exatamente 100 anos – em 1914 – em torno das lendas de criação e destruição e principalmente da destruição do mundo, como fundamento da religião dos xamãs Apopukuvas – Guarani. A palestra então também homenageia os guaranis que hoje são o símbolo concreto da ofensiva final contra os povos indígenas. Nimuendajú teve seguidores na antropologia, por exemplo, os trabalhos de Pierre Clastres e de Helena Clastres e vários outros etnólogos; hoje, sua perspectiva é retomada em teses e dissertações de mestrado. Para Niemandajú como para esses trabalhos recentes, os Guaranis tinham e tem um pensamento pleno, um pensamento especulativo, escatológico e cosmológico pleno de direitos. Ora, nós também, ocidentais brancos, estamos especulando e dando voltas em torno da questão do fim do mundo. As lendas científicas e outras do ocidente especulam cada vez mais esse tema e então tal especulação tornou-se um problema de todos. Muitas questões foram discutidas nessa longa palestra e eu vou me ater a duas delas: a) a catástrofe que nos espreita e b) a proposta política em curso trazida por Bruno Latour e Viveiros de Castro. a) É um equívoco chamarmos o perigo que nos espreita de ¨crise ambiental¨ e isso ficará claro a seguir quando o antropólogo demonstra quão mais sério é a nossa questão. Para ele, o mais importante problema que atravessamos é a entrada do planeta no antropoceno – a terceira época geológica do período quaternário e que, prevê-se, durará muito mais tempo do que a espécie que o batizou! Vale dizer, os efeitos da ação humana sob o sistema Terra durará mais que a própria espécie. O antropoceno – a era do homem – refere-se a um novo regime termodinâmico: e este é um mundo novo e não temos ideia do que vai acontecer. Temos claro uma série de projeções, de especulações – próxima, aliás, como

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Bruno Latour

Essa conferência, proferida no final de 2013 por Viveiros de Castro, é bastante longa e aconteceu no Centro de Estudos Ameríndios (CESTA/USP) em homengem a Curt Nimuendajú, que fez o primeiro trabalho moderno de etnologia, há exatamente 100 anos – em 1914 – em torno das lendas de criação e destruição e principalmente da destruição do mundo, como fundamento da religião dos xamãs Apopukuvas – Guarani. A palestra então também homenageia os guaranis que hoje são o símbolo concreto da ofensiva final contra os povos indígenas.

Nimuendajú teve seguidores na antropologia, por exemplo, os trabalhos de Pierre Clastres e de Helena Clastres e vários outros etnólogos; hoje, sua perspectiva é retomada em teses e dissertações de mestrado. Para Niemandajú como para esses trabalhos recentes, os Guaranis tinham e tem um pensamento pleno, um pensamento especulativo, escatológico e cosmológico pleno de direitos.

Ora, nós também, ocidentais brancos, estamos especulando e dando voltas em torno da questão do fim do mundo. As lendas científicas e outras do ocidente especulam cada vez mais esse tema e então tal especulação tornou-se um problema de todos.

Muitas questões foram discutidas nessa longa palestra e eu vou me ater a duas delas: a) a catástrofe que nos espreita e b) a proposta política em curso trazida por Bruno Latour e Viveiros de Castro.

a) É um equívoco chamarmos o perigo que nos espreita de ¨crise ambiental¨ e isso ficará claro a seguir quando o antropólogo demonstra quão mais sério é a nossa questão. Para ele, o mais importante problema que atravessamos é a entrada do planeta no antropoceno – a terceira época geológica do período quaternário e que, prevê-se, durará muito mais tempo do que a espécie que o batizou! Vale dizer, os efeitos da ação humana sob o sistema Terra durará mais que a própria espécie. O antropoceno – a era do homem – refere-se a um novo regime termodinâmico: e este é um mundo novo e não temos ideia do que vai acontecer. Temos claro uma série de projeções, de especulações – próxima, aliás, como vimos, dos Guaranis – de como o mundo vai acabar. Nosso cenário é tão inquietante hoje quanto o dos Guaranis.

Mudança climática é na verdade um dos parâmetros para compreendermos a atual crise. Há muitos outros parâmetros – que delineiam muitas outras mudanças – para medir essa crise.

Antropoceno, apesar de ter o nosso nome, não nos elogia! O que se quer dizer com ele é que a humanidade tornou-se uma força geofísica. Alguns argumentam que não é a humanidade inteira que se tornou uma força geofísica, mas o capitalismo, as classes dominantes, as sociedades privilegiadas e, principalmente, os países que consomem combustíveis fósseis e energia em geral, mas isso tem efeitos sobre a população de todo o planeta. O problema é que a população inteira do planeta tende a adotar os padrões de consumo energéticos modelados nos padrões de consumo dos países que conduzem as ¨locomotivas antropocênicas¨, os países que conduzem as mudanças climáticas.

Então, há uma espécie de inversão de figura-fundo que caracteriza a relação entre humanidade e ambiente! Retomemos a argumentação: antropoceno designa o fato de que a

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humanidade se tornou uma força geofísica.O nome Gaia vem também junto à noção de antropoceno, só que no sentido inverso. A Terra tornou-se um personagem, um interlocutor político, ao mesmo tempo que o homem tornou-se uma força geo-política. É como se tivéssemos nós, os homens, passado para o fundo e a Terra tivesse passado para a frente. Uma inversão súbita entre figura e fundo que só pode dar errado! É uma inversão fantasmagórica e aterrorizante e nela desaparece a noção de escalas: uma escala de tempo geológica e uma escala de tempo antropológica – essas escalas eram de ordem e magnitudes completamente diferentes. O que se vê hoje é o colapso dessas escalas a tal ponto que há mudanças na estrutura da atmosfera, na circulação dos ventos que se modificam em um tempo mais rápido que os sistemas sociais! E isso é, no mínimo, irônico e, no máximo, aterrorizante.

Essas considerações levam a outra implicação: à ideia do fim da natureza como um pano de fundo imóvel ou muito lento contra o qual nós evoluímos, contra o qual podíamos medir e calibrar nossas ações. O que estamos vivendo hoje é a inversão das escalas, o colapso das escalas.

Dito de outra maneira trata-se da ideia mesmo de destruição do ambiente; num certo plano a noção de ambiente desapareceu visto que houve uma interiorização – introspecção – do homem, e as plantas e animais passaram a ser lidos como internos ao ambiente humano e não mais o homem como parte do ambiente!

Isabella Stengers, filósofa belga, recusa a ideia de crise ambiental, recusa a ideia mesmo de crise – a ideia de crise supõe que se vá sair dela e nós não vamos sair do que está acontecendo, porque já aconteceu, nós estamos vivendo os efeitos da ação humana que há muito aconteceu. Isabelle Stengers prefere o termo catástrofe ambiental e muitos insistem que essa é uma visão catastrofista, melancólica, pessimista – dessa mesma visão partilhavam, segundo Nimuendajú, os Guaranis na figura dos xamãs Apokokuvas-guarani entre 1905 e 1912, período de sua pesquisa. Esse pessimismo, dizia o etnólogo no início do século XX, era próprio de uma raça, próprio de um povo cansado de lutar, cansado de ser perseguido. Para os Guaranis, a própria terra estava cansada. Mas como veremos os Guaranis não são apenas pessimistas, pois imaginam também uma renovação do mundo. Tudo isso, e principalmente o pessimismo e a melancolia, ecoa a nossa situação atual.

b) Bruno Latour entende hoje que estamos em um estado de guerra; ele diz também que há uma diferença fundamental entre estado de guerra e estado de polícia, pois na guerra não há árbitros, não há um terceiro termo. A guerra se decide entre duas partes, sem árbitro. E nessa guerra estão de um lado os Humanos e ele diz isso com evidente ironia. Os Humanos, para Latour, somos nós, os modernos que pretendem conquistar todo o planeta para o padrão de consumo americano. Aos Humanos Latour opõe os Terranos – os habitantes da Terra. E é preciso decidir de que lado estamos nessa guerra. Latour diz também que essa de-cisão não será tomada tendo como base argumentos científicos e isso porque o consenso científico é maciço no sentido de que existe uma grande crise ambiental e que essa crise é de origem antrópica, antropocênica e, todavia, esse consenso não impede que haja contestação! Não é bem assim dizem uns; não é antropocênica dizem outros. Assim, a ciência pode apresentar dados irrefutáveis e isso não impedirá e não impede a controvérsia e a continuidade da ordem existente. E isto porque a controvérsia não é entre ciência e não-ciência, mas é uma

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controvérsia política; é uma controvérsia em torno do tipo de Mundo, do tipo de Terra que queremos viver. Trata-se então de uma disputa de valores. Os índios são uma espécie de resposta viva: eles estão a nos apontar que existe outra forma de viver, outros Mundos além daquele dos brancos!

Lembro também que – para Viveiros de Castro – os climatocéticos são negacionistas, por analogia, com os historiadores que diziam e dizem que não houve extermínio em massa dos judeus, não existiu a shoah e isso tudo não passa de conspiração do Estado de Israel! São os negacionistas. Os que estão preocupados com a catástrofe ecológica também chamam os que põe em dúvida a crise atual de negacionistas: negam o óbvio e através da negação afirmam em que Mundo querem afinal viver!

No final de sua última conferência, em fevereiro de 2013, em Edimburgo a respeito da Gaia e do Antropoceno, Bruno Latour diz que há uma guerra entre os Terranos e os Humanos. E então ele nomeia os Humanos: são os modernos. Ou seja, os Humanos não é para ele o Homo Sapiens. Os Humanos são todos os entes que fazem parte da modernidade, do projeto moderno e então inclui entre os Humanos os computadores, os animais domésticos, as armas químicas, os cachorros policiais. Todos esses entes fazem parte do exército dos Humanos. Os Terranos não se sabe, todavia, bem quem são. Quem seriam os Terranos se pergunta Latour? Ali estariam todas as espécies em extinção (sementes/ animais/água/ar/humanos/polo norte/terra), inimigos naturais dos Humanos, ameaçados ontologicamente. Mas entre os Terranos, claro, está estão também humanos. São o ¨povo de Gaia¨, numa ficção positiva do termo. O ¨povo de Gaia¨ está em oposição ao ¨povo da Natureza¨ que são os modernos, que acreditam em uma natureza transcendente, com leis únicas, absolutamente racional, dominável e controlável – uma ficção negativa do termo.

Latour se pergunta: é possível aceitar como ¨povo de Gaia¨, a pachamama, a deusa natureza, de que falam os ameríndios e outros povos não modernos? Para Latour, esses povos têm se adaptado à retórica ambientalista ocidental para, compatibilizando suas cosmologias e seus projetos existenciais, serem ouvidos pelas sociedades dominantes do hemisfério norte. Latour não acredita que esses povos possam fazer parte do ¨exército dos Terranos¨. Parece que há nesses povos respeito pela Terra, mas só parece, pois são impotentes na medida que sua tecnologia é fraca e sua população ínfima. Esses povos, de acordo com Latour, chamados de tradicionais sem tecnologia, em pequenos número, não tem um modo de vida que os qualifique para o ¨exército dos Terranos¨.

Para Viveiros de Castro, é exatamente isso que Latour lê como impotência que pode ser um recurso crucial para um futuro pós-catastrófico que, diga-se de passagem, Latour acredita que vai acontecer. Para o antropólogo brasileiro somos nós os brancos industrializados, em rede, estabilizados farmacologicamente que terão que ¨descer¨ – ¨perder as proporções gigantescas de vida¨ – e isso em todos os sentidos.

Pergunta-se ainda Viveiros de Castro: será que são de fato minorias e o pequeno número demográfico deve ser levado em conta como propõe Latour? A ONU estima oficialmente em 370 milhões de pessoas o número de minorias indígenas no planeta – estariam encapsuladas nos Estados Nação, mas não coincidiriam com os Estados Nação Ou seja, enfatiza Viveiros:a minoria não é tão minoria assim. É pois um ¨exército de Terranos¨ considerável!…