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Buscando sentido e técnica na abordagem discursiva de homens que exercem violência contra as mulheres Cláudia Natividade Resumo: O objetivo deste artigo é discutir uma abordagem teórico-metodológica na condução de grupos de homens que exercem violência contra as mulheres. Tal trabalho, amparado pela Lei Maria da Penha (11.340/06), constitui-se como uma forma de intervenção no problema da violência de gênero que tem em sua espinha dorçal as idéias sexistas sócio- culturalmente construídas. As abordagens com homens tomam importância neste momento histórico e, pela insipiência deste tipo de trabalho, torna-se necessário buscar fontes teóricas e críticas que embasem discussões e práticas. Partindo de uma abordagem discursiva buscar-se-a delinear o conceito de grupo reflexivo e a estratégia de responsabilização dos autores de violência a partir das contribuições de Habermas e de teorias feministas. Os conceitos de agir comunicativo juntamente ao de performatividade tornam-se fonte de sentido e prática na condução de trabalhos de combate à violência de gênero. Palavras-chave: agir comunicativo, performatividade, atos de fala, masculinidade, grupos.

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Buscando sentido e técnica na abordagem discursiva de homens que exercem

violência contra as mulheres

Cláudia Natividade

Resumo: O objetivo deste artigo é discutir uma abordagem teórico-metodológica na

condução de grupos de homens que exercem violência contra as mulheres. Tal trabalho,

amparado pela Lei Maria da Penha (11.340/06), constitui-se como uma forma de

intervenção no problema da violência de gênero que tem em sua espinha dorçal as idéias

sexistas sócio-culturalmente construídas. As abordagens com homens tomam importância

neste momento histórico e, pela insipiência deste tipo de trabalho, torna-se necessário

buscar fontes teóricas e críticas que embasem discussões e práticas. Partindo de uma

abordagem discursiva buscar-se-a delinear o conceito de grupo reflexivo e a estratégia de

responsabilização dos autores de violência a partir das contribuições de Habermas e de

teorias feministas. Os conceitos de agir comunicativo juntamente ao de performatividade

tornam-se fonte de sentido e prática na condução de trabalhos de combate à violência de

gênero.

Palavras-chave: agir comunicativo, performatividade, atos de fala, masculinidade,

grupos.

Introdução:

Sempre que vamos falar sobre a violência contra as mulheres nos deparamos com

um campo minado. O problema tem interface com muitas áreas tais como os direitos

humanos, a justiça, a educação, a saúde, enfim com todo o contexto cultural de uma

época – e também de épocas passadas – que precisamos de um certo fôlego para

percorrer um caminho tão longo. Esta é certamente uma área de muitas delicadezas e as

ações no combate a este problema que ficaram (e se mantêm) invisíveis em muitos pontos

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ainda são insuficientes, apesar dos grandes esforços realizados por grupos feministas que

tiveram o mérito de influenciar políticas públicas no combate à violência de gênero.

O trabalho apresentado aqui é fruto de uma intervenção realizada por uma ONG em

Belo Horizonte, chamada Instituto Albam, junto a homens que exercem a violência

contra mulheres. Este programa intitulado “Andros: homens gestando alternativas para o

fim da violência” faz parte de um programa maior do Judiciário que procurou responder

de forma diferenciada a questão da violência doméstica, ou seja, encaminhar os homens

agressores para grupos de reflexão de gênero. Trata-se, portanto de medida judicial

enquadrada na legislação brasileira como medida protetiva, pois os homens são

encaminhados para o grupo enquanto o processo judicial criminal está em andamento.

Tal tipo de intervenção é apontado em muitos países como uma forma de combate

terciária a violência de gênero porque acontece quando um conflito já se instalou.

O trabalho com homens teve início na década de 80 nos Estados Unidos e no Canadá

com o objetivo de complementar os programas de atenção e prevenção da violência

contra a mulher tendo em conta que a responsabilidade primária desta forma de violência

tem a ver com quem a exerce. Na década de 90 surgiram outras intervenções,

principalmente na Austrália, França, Reino Unido e nos países escandinavos. Nos países

da América Latina o primeiro a realizar este trabalho foi a Argentina, seguida de México,

Nicarágua e Costa Rica. No Brasil alguns trabalhos com homens já foram desenvolvidos,

mas poucos persistiram por causa, principalmente, das articulações jurídicas que lhes

faltaram. (CORSI, s.d.).

A violência contra as mulheres se produz em uma sociedade que mantêm um sistema de

relações de gênero que considera a superioridade dos homens sobre as mulheres designando

diferentes qualidades, papéis e espaços em função do sexo. Tal fato se traduz pela diferença

da socialização de homens e mulheres que acabam por desenvolver potencialidades que

colocam os homens em um lugar simbólico de exercício de poder (OLIVEIRA, 2004;

BOURDIEU, 1989). Na produção da violência estão envolvidos reforços culturais,

institucionais, subjetivos e relacionais sustentados pelas idéias sexistas de submissão das

mulheres. Os homens acabam por desenvolver habilidades de controle, maus tratos e

violência para assegurar uma posição dominante frente as mulheres.

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É possível verificar nos discursos de homens que exercem violência contra mulheres um

sistema muito especial de racionalidade que justifica e minimiza seus atos de controle e

poder. Com o amparo teórico e prático de estudos linguísticos, o objetivo aqui é subsidiar

intervenções específicas de combate à violência de gênero que compoem atualmente as

políticas públicas nacionais implicadas neste tema.

Somos seres Linguísticos: encontros a partir do conceito de agir comunicativo

A impostância de se tematizar as abordagens linguísticas como formas de

expanssão nas intervenções com homens se dá porque esta é um tipo de comportamento

social, ou seja, ela tem uma “função” que é construída a partir das interações humanas.

Isso significa dizer que o social, mais do que o individual, está no centro de muitos

estudos linguísticos, e o que a linguagem individual realiza é interpretado como

resultante de vários relacionamentos sociais através dos quais esta foi estabelecida,

desenvolvida e mantida. Halliday (1973, 1978, 1986) afirma que a linguagem tem papel

central na constituição dos seres humanos, transmitindo os padrões por meio dos quais

aprendemos a agir como membros de uma sociedade (através de vários grupos, como a

família, a vizinhança...) e membros de uma cultura (os modos de pensar e agir, as crenças

e valores). Esta visão sistêmica implica no estudo sobre o que a linguagem pode fazer ou,

mais especificamente, o que o falante pode fazer com a linguagem, apontando, assim,

para a abordagem funcional da mesma, já que esta é uma forma de interação.

A visão funcional do sistema lingüístico implica na percepção da linguagem como

forma de comunicação em situações e contextos sociais que são desenvolvidos

culturalmente. O uso da linguagem está revestido por significados potenciais associados a

situações específicas e influenciadas pela organização social e cultural. Assim, o conceito

de significado potencial deve ser relacionado com um tipo de semântica social que

pressupõe o estudo do significado em um enquadramento sociológico. Halliday afirma

que o critério de estudo da linguagem deve ser “sociológico mais do que simplesmente

social — baseado em alguma teoria da estrutura social e da mudança social” (1978, p.

35).

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Compondo reflexões e teorizações sobre a semântica social a partir da teoria dos

atos de fala, Habermas (1990, 2004) desenvolve importantes contribuições sobre as

formas de comunicação humana. Procurando delinear o que denomina pragmática formal,

este autor lança mão de conceitos tal como o de racionalidade para explicar os contextos

interativos modernos. A partir das contribuições weberianas e, consequentemente,

oriundo da teoria crítica, o conceito de razão marca a transposição de um mundo

tradicional, ligado aos aspectos míticos, sagrados e proféticos para um mundo moderno

marcado, na visão de Weber por (...) processos racionalizadores, (técnicos, formais, instrumentais, científicos)

onde os meios (normas, dinheiro, métodos) ganham autonomia sobre os fins,

servindo a vários “interesses” e facultando ao agente um controle maior das

ações e seus decursos, consoantes a existência de condições mais

universalizadas (burocracias, mercados), nunca antes encontradas (NOBRE,

1999, pg?).

Tal fenômeno, denominado por Weber como desencantamento do mundo, fez

com que a modernidade se tornasse uma jaula de ferro pela dominância da racionalidade

instrumental pautada, principalmente, por critérios de eficiência e sucesso que gerou a

diferenciação das estruturas simbólicas da ciência, da ética, do direito e da estética.

O conceito de racionalidade desenvolvido por Habermas se situa em um plano

mais otimista que acaba por conceber uma teoria dualista da sociedade na qual estariam

localizados de um lado, o mundo da vida, e de outro, os subsistemas econômico e

administrativo (Bannell, 2006). Assim, ao contrário da visão weberiana que concebe um

bloco único, Habermas (1990, 2004) enfatiza o conceito de mundo da vida como aquele

espaço de transmissão de culturas, integração social, socialização de indivíduos e

entendimento mútuo. Este espaço cambiante e, obviamente, influenciado pelos

subsistemas econômico e administrativo, contém a chave para a emancipação humana.

Atrelando o conceito de racionalidade a uma pragmática formal de uso da

linguagem em comunicação, este autor desenvolve o conceito de racionalidade

comunicativa – que pode ser tomado no seu sinônimo agir comunicativo – que se

caracteriza pela possibilidade de entendimento racional a ser estabelecido entre

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participantes de um processo de comunicação. O agir comunicativo seria, pois,

processual e voltado para o consenso.

A base de tal teoria repousa na distinção de dois tipos de racionalidade e,

consequentemente de ação social: a racionalidade estratégica (ou agir estratégico) e a

racionalidade comunicativa (ou agir comunicativo). O primeiro, atribuido a Max Weber,

tem uma abordagem objetiva, sendo o segundo localizado por Habermas num espaço

intersubjetivo. Para distinguir o agir estratégico do agir comunicativo, Habermas (1990)

sugere que a interação humana pode se ater à coordenação de ações direcionadas para a

transmissão de informações, no primeiro caso, e à integração social no segundo. Assim, o

agir comunicativo é sempre dirigido ao entendimento e se baseia na capacidade dos

participantes de agirem cooperativamente com relação a seus “planos de ação, levando

em conta uns aos outros, no horizonte do mundo da vida compartilhado e na base de

interpretações comuns da situação” (1990, p.72).

O conceito de agir comunicativo está pois, apoiado numa concepção de

entendimento que remonta, linguisticamente falando (perspectiva), à teoria dos atos de

fala. Isto significa que para se entender uma proposição é preciso reconhecer as razões

através das quais ela está orientada por condições de verdade que podem ser validadas ou

criticadas. No caso do agir comunicativo – conceito interativo e orientado pela condição

de validade compartilhada – a dinâmica acontece de forma dialógica e, por isto, num

espaço intersubjetivo baseado num procedimento de argumentação racional.

A teoria dos atos de fala postulada por Searle e Austin (1999), expande a

abrangência da linguagem para além do sentido de dizer algo sobre o mundo dos fatos e o

estado das coisas, incluindo o sentido ilocucionário e perlocucionário dos proferimentos.

O ato ilocucionário é a força de um enunciado, ou seja, implica na condição de verdade

validada, por exemplo de uma promessa, uma ordem, uma pergunta, uma afirmação. O

sucesso dele depende pois, de uma validade normativa, contextualmente construída. O

ato performativo ou efeito perlocucionário é a consequência não gramatical de um ato

ilocucionário bem sucedido. Habermas (2004) afirma que as perlocuções são

analiticamente iteressantes porque uma afirmação, tal qual “você se comporta como um

porco”, tem uma meta perlocucionária de ferir o outro e, portanto vale como insulto. É o

mesmo caso das ameaças que se caracterizam como o “anúncio de uma sanção negativa

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condicionada que adquire tal sentido pela referência explícita ao efeito perlocucionário de

intimidação” (2004, p.122).

Este autor afirma ainda que “em contextos estratégicos de ação, a linguagem

funciona, em geral, segundo o modelo de perlocuções” (2004, p.123). Assim, sob os

imperativos do agir racional orientado a fins, as interações estratégicas se dão entre atores

antagonistas que, no interesse dos planos de ação de cada um, exercem uma força

contrária nas atitudes preposicionadas um do outro. Neste contexto, as metas

ilocucionárias “só são relevantes como condição de sucessos perlocucionários” (2004,

p.123). A comunicação se torna indireta, pois não há uma base de veracidade

mutuamente pressuposta e a interação não almeja a motivação racional do ouvinte, mas

que este tire suas conclusões a partir do que o falante lhe diz indiretamente. O autor

acrescenta que:“sujeitos que agem estrategicamente supõem entre si que, na medida em que

decidem racionalmente, eles baseiam suas decisões em opiniões que eles

mesmos tomam por verdadeiras. Mas os valores de verdade que cada um deles

se orienta do ponto de vista de suas próprias preferências e objetivos não se

transformam em pretenções de verdade talhadas para um reconhecimento

intersubjetivo”(2004, p.124)

A cena interativa da comunicação orientada a fins e, consequentemente, seus

efeitos performativos, se transformam num caus relacional e são a base das relações de

conjugalidade violenta, foco deste artigo. Um pouco mais a frente retomarei esta idéia

argumentando a favor da construção do conceito de gênero enquanto performance

proposto por Butler (1990, 1993) delineando, assim, uma proposta de abordagem

discursiva para os grupos de homens que exercem violência contra mulheres.

Gênero e performatividade

O conceito de gênero é um construto analítico que diz respeito à organização

social dos sexos. O plano conceitual central, para se entender o gênero, passa pela

diferenciação entre sexo e gênero, sendo que o primeiro se refere às características e

diferenças biológicas que correspondem a homens e mulheres, e o segundo, às

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construções sociais e culturais que se desenvolvem a partir dos elementos biológicos.

Judith Butler (1990) comenta que o gênero não é um atributo fixo dado a alguém e deve

ser visto como uma variável fluida que muda em diferentes contextos e tempos. A autora

argumenta que o sexo (macho, fêmea) parece ser a causa do gênero (masculino,

feminino), que, por sua vez, causa o desejo (direcionado ao outro gênero). Isto parece

uma construção binária e a autora quebra esta lógica dizendo que o gênero e o desejo são

flexíveis, livres e não causados por outros fatores. Ela comenta que “não há identidade de

gênero atrás de expressões de gênero; a identidade é constituída performativamente pelas

várias expressões” (1990, p. 25). Em outras palavras, gênero é uma performance, é o que

fazemos em situações e formas diferentes mais do que o universal “quem é você?”.

Assim como a teoria dos atos de fala, o gênero não se limita ao que somos ou ao que

temos, mas se estende ao efeito produzido pelo que fazemos. Segundo Butler, “gênero é a

estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos entre o enquadramento

altamente regulatório que se congelou através do tempo para produzir a aparência de

substância, de um tipo natural de ser” (1990, p. 33).

Cameron et al. (1988) sugerem que a vantagem deste prisma se encontra na noção

de variedade de identidades de gênero que este pode gerar e, conseqüentemente, na

variedade performática que o comportamento pode assumir. A idéia da identidade não

deve ser conectada com uma essência, mas com um caráter performativo e construído.

Butler (1990) comenta que a configuração cultural do gênero é tomada como naturalizada

e hegemônica e afirma que, apesar disso, podemos encontrar mobilizações, subversões,

confusões e uma proliferação de gêneros e, conseqüentemente, identidades.

Segundo Scott (1995, p. 88), o gênero “estrutura a percepção e a organização

concreta e simbólica de toda a vida social”. Isto significa dizer que o gênero legitima e

constrói relações sociais, além de orientar as formas de decodificação e compreensão do

significado das interações humanas. Assim, o gênero se apresenta como um aparelho

semiótico socialmente e historicamente contextualizado, regulando relações homem-

mulher, homem-homem e mulher-mulher, conjugados em posições de assimetria. Alguns

pesquisadores focalizam ainda, que o gênero nasce de uma gramática sexual orientada

pelo patriarcado que tem o status de relação civil, hierárquica, material e corporificada

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que invade, de forma rizomática, todo o mundo social (SAFFIOTI, 2004). Tal contrato

patriarcal, realizado entre os homens, faz com que a diferença sexual seja convertida em

diferença política e de poder argumentando contra a autonomia e reconhecimento das

mulheres.

Em termos performativos, as mulheres não são autorizadas a participarem

igualitariamente de espaços de poder - a não ser sob a experiência de muitas batalhas

travadas. Devem, no entanto, se posicionarem subjetivamente e objetivamente enquanto

pessoas incondicionalmente disponíveis para os outros. Esta articulação assimétrica

marca a constituição de homens e mulheres delegando espaços diferenciados para uns e

para outros. Um dos maiores desafios, portanto é tornar visível esta lógica de dominação-

exploração no nosso cotidiano. Segundo Saffioti (2004), Para a ordem patriarcal de

gênero é interessante que as mulheres sigam com as lentes de gênero e, para isto, não

deveriam ter consciência das tramas nas quais são envolvidas e, menos ainda das lógicas

que são (re)produzidas automaticamente, como é o caso do exercício de poder com base

numa relação de dominação.

Buscando sentido nos conceitos de reflexão e responsabilização

Quando tematizamos a sociedade moderna, inevitavelmente falamos de um amplo

processo de mudança que abala “os quadros de referência que davam aos indivíduos uma

ancoragem estável no mundo social” (HALL, 1997, p. 7). O conceito de reflexividade

aparece neste contexto para marcar uma nova forma relacional instituida na vida social,

capaz de romper com práticas e preceitos preestabelecidos. Tal movimento ocorre devido

à disposição de revisão da maioria dos aspectos das atividades sociais, bem como das

relações materiais com a natureza, que se processam de forma intensa influenciadas por

novos conhecimentos e informações. A reflexividade pode ser entendida como a versão

moderna das expectativas do pensamento iluminista, não no sentido em que poderia

revelar um conhecimento seguramente fundamentado dos mundos social e natural, mas

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no sentido de que ela mesma “solapa a certeza do conhecimento” (GIDDENS, 2002, p.

26).

O palco da modernidade é tomado por intimidades (GIDDENS, 1993), problemas

pessoais, crises e sofrimentos que se relacionam com o panorama social, na medida em

que as circunstâncias sociais não podem ser consideradas separadas da vida pessoal e

nem pano de fundo para ela. Segundo Giddens, “ao enfrentar problemas pessoais, os

indivíduos ativamente ajudam a reconstruir o universo da atividade social à sua volta”

(2002, p. 18). Para ele, a esfera das relações pessoais oferece espaços de intimidade e

auto-expressão inconcebíveis nas sociedades tradicionais, dando origem à reflexividade.

A conseqüência disto é que a auto-identidade tem que ser constantemente alimentada por

narrativas biográficas coerentes, embora constantemente revisadas, num contexto de

múltiplas escolhas.

O conceito de reflexividades está pois, relacionado ao conceito de racionalidade e,

para Weber, não significa que ela “implica, no âmbito societário, o primado do agente

sobre as condições sociais” (NOBRE, 2004, p.31). Isto se deve porque Weber realçou

menos o agente e a consciência da sua ação, deslocando suas análises para uma

racionalidade reflexiva ao tematizar o encadeamento coerente de ações das sociedade

modernas. No entanto, “seja para efeito de conhecimento, seja para efeito de

posicionamento, justifica-se, assim a premissa da reflexividade para demarcar o sentido

do exercício da racionalidade em Weber” (apud, p.31).

Para Habermas, os conceitos de racionalidade e reflexividade se aproximam com

mais intimidade na medida em que no próprio conceito de agir comunicativo – que supõe

um entendimento mútuo e pretenções de validade intersubjetivamente reconhecidas e

voltadas para o consenso – há a pressuposição de um jogo reflexivo. Assim, o quantun de

ação relacionado ao agente se torna significativo e decisivo na interação pois, este se guia

pelo interesse e pelo entendimento. Ademais, o próprio conceito de mundo da vida –

como pano de fundo implícito e pré-reflexivo – se sustenta a partir de uma dinâmica de

ligação interna e/ou coordenação de ações que levanta problematizações e pretenções de

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validez criticáveis no instante da pronúncia, ou seja, trata-se de uma forma interativa de

se pensar a comunicação.

Habermas aposta na reflexão como força esclarecedora e enfatiza que através dela

podemos fazer uma crítica à ideologia, ou seja, daquilo que se encontra escondido nas

opiniões, preconceitos ingênuos e visões do mundo, pois “ela é capaz de captar e detectar

os contextos de ação sistematicamente distorcidos, os elementos não entrevistos de

coação e de dominação” (SIEBENEICHLER, 1898, p.83). Para Habermas a reflexão é

“tributária de uma relação dialógica prévia e não paira no vácuo de uma interioridade

constituída independentemente da comunicação” (HABERMAS, 2004, p.100). Isto quer

dizer que as pretenções de validade – base da racionalidade dos proferimentos – se

conjuga com a posse reflexiva de tais proferimentos, ou seja, elas remetem uma à outra.

Então:

“a racionalidade de uma pessoa mede-se pelo fato de ela se expressar

racionalmente e poder prestar contas de seus proferimentos adotando uma

atitude reflexiva. Uma pessoa se exprime racionalmente na medida em que se

orienta performativamente por pretenções de validade; dizemos que ela não

apenas se comporta racionalmente, mas que é racional, quando pode prestar

contas de sua orientação por pretenções de validade. Também chamamos esse

tipo de racionalidade de plena responsabilidade” (apud, p. 102)

O conceito de responsabilização aparece neste contexto como a própria

capacidade que, conectada ao conceito de reflexividade, faz com que uma pessoa possa

se posicionar diante do que ela pensa, faz e diz. Isto implica numa atitude reflexiva do

sujeito cognoscente para 1)- suas relações epistêmicas, ou seja, suas opiniões e

convicções; 2)- suas relações técnico-práticas que dizem respeito às atitudes de um

sujeito agente para com sua atividade orientada a fins; e 3)- suas relações morais-práticas

que supõe a reflexão sobre suas ações articuladas com um projeto de vida próprio, no

contexto de uma biografia individual, mas entrelaçada com formas coletivamente dadas

de vida (HABERMAS, 2004).

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Este movimento de responsabilização exige o distanciamento da perspectiva

egocêntrica, ou seja, a capacidade de descentrar-se de si-mesmo e centrar-se nas

consequências performativas de suas ações. Reflexão e responsabilização presupõe então,

uma espécie de afastamento no qual entram em tema toda a racionalidade inerente à

estrutura e ao procedimento da argumentação.

Buscando técnica na abordagem discursiva de homens que exercem violência contra

mulheres

Aqui pretendo fazer a análise dos dados que consiste numa interação oral entre um

homem do grupo e os coordenadores que buscam colocar a prova as opiniões sexistas

dele (as relações epistêmicas da racionalidade) argumentando que suas atitudes

orientadas a fins (os efeitos ilocucionários), tem efeitos destrutivos sobre outras pessoas

(os efeitos perlocucionários). Busca-se assim, inaugurar momentos reflexivos e de

responsabilização na qual o sujeito tenha subsídios para questionar suas relações morais,

éticas e práticas com o mundo.

Considerações finais:

Neste artigo procurei explicitar um pouco mais o desafio de se pensar um recorte

teórico-metodológico que possa ser aplicável na intervenção com homens que exercem

violência contra mulheres. Tal perspectiva, formulada a partir de uma intervenção psico-

educativa, se pautou por uma abordagem discursiva nos grupos reflexivos que fazem

parte de minha prática profissional. Como um campo em expansão e que carece de

tecituras teóricas para concretizar tal abordagem, afirmo a importância desta intervenção

ser pautada por uma técnica consciente que evite muitas ciladas quando lidamos com

homens violentos dentre elas as tendências de minimização, justificação e invisibilidade

de atos violêntos que são, difíceis de tipificar e reconhecer.

Dentro do campo da psicologia que é o meu campo de origem, afirmo a

necessidade de diálogos com outros campos do saber dentre eles a linguística, a

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sociologia, a antropologia, as ciências políticas, a educação e a filosofia, sempre pautados

por recortes sócio-históricos. Retomando as contribuições que a linguística e a filosofia

(como pontos mais explorados neste artigo) podem trazer para orientar tais propostas,

gostaria de salientar, principalmente a importância das abordagens linguísticas que

orientam meus estudos atuais.

Como um conjunto de sentidos, o sistema da linguagem oferece o entendimento

de que o uso comunicativo de expressões exprimem intenções, representações, estados de

coisas e estabelece relações sociais. Esta última, objeto de interesse particular da

psicologia social, pode ser decodificada por muitas bases teóricas da linguística que,

aliada a pontos pertinentes da psicologia formam um casal harmonioso. Especificamente

falando, abordar discursivamente a produção do significado de um ato de fala produzido

por um sujeito diz sobre as condições racionais em que ele se pauta (as condições de

validade de uma proposição ou a produção de significados enquanto valores de verdade),

os desdobramentos de tais produções de sentidos (as metas ilocucionárias) bem como as

relações que se estabelecem entre os participantes a partir de tais enunciados (os efeitos

perlocucionários ou performativos). O descortinamento desta maquinaria seria suficiente

para trabalhar com sujeitos e com coletivos as inserções deles no mundo como atores

ativos e sociais. Ademais, coloca o humano e sua subjetividade (para utilizar uma

expressão explorada pela psicologia) instanciada por contextos sociais e históricos,

trazendo para este conceito uma dinâmica dialógica na qual exterior e interior participam

articulados na constituição de sujeitos, fatos muitas vezes negligenciados por

determinados aportes teóricos que privilegiavam ora um aspecto, ora outro.

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