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grupo
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Buscando sentido e técnica na abordagem discursiva de homens que exercem
violência contra as mulheres
Cláudia Natividade
Resumo: O objetivo deste artigo é discutir uma abordagem teórico-metodológica na
condução de grupos de homens que exercem violência contra as mulheres. Tal trabalho,
amparado pela Lei Maria da Penha (11.340/06), constitui-se como uma forma de
intervenção no problema da violência de gênero que tem em sua espinha dorçal as idéias
sexistas sócio-culturalmente construídas. As abordagens com homens tomam importância
neste momento histórico e, pela insipiência deste tipo de trabalho, torna-se necessário
buscar fontes teóricas e críticas que embasem discussões e práticas. Partindo de uma
abordagem discursiva buscar-se-a delinear o conceito de grupo reflexivo e a estratégia de
responsabilização dos autores de violência a partir das contribuições de Habermas e de
teorias feministas. Os conceitos de agir comunicativo juntamente ao de performatividade
tornam-se fonte de sentido e prática na condução de trabalhos de combate à violência de
gênero.
Palavras-chave: agir comunicativo, performatividade, atos de fala, masculinidade,
grupos.
Introdução:
Sempre que vamos falar sobre a violência contra as mulheres nos deparamos com
um campo minado. O problema tem interface com muitas áreas tais como os direitos
humanos, a justiça, a educação, a saúde, enfim com todo o contexto cultural de uma
época – e também de épocas passadas – que precisamos de um certo fôlego para
percorrer um caminho tão longo. Esta é certamente uma área de muitas delicadezas e as
ações no combate a este problema que ficaram (e se mantêm) invisíveis em muitos pontos
ainda são insuficientes, apesar dos grandes esforços realizados por grupos feministas que
tiveram o mérito de influenciar políticas públicas no combate à violência de gênero.
O trabalho apresentado aqui é fruto de uma intervenção realizada por uma ONG em
Belo Horizonte, chamada Instituto Albam, junto a homens que exercem a violência
contra mulheres. Este programa intitulado “Andros: homens gestando alternativas para o
fim da violência” faz parte de um programa maior do Judiciário que procurou responder
de forma diferenciada a questão da violência doméstica, ou seja, encaminhar os homens
agressores para grupos de reflexão de gênero. Trata-se, portanto de medida judicial
enquadrada na legislação brasileira como medida protetiva, pois os homens são
encaminhados para o grupo enquanto o processo judicial criminal está em andamento.
Tal tipo de intervenção é apontado em muitos países como uma forma de combate
terciária a violência de gênero porque acontece quando um conflito já se instalou.
O trabalho com homens teve início na década de 80 nos Estados Unidos e no Canadá
com o objetivo de complementar os programas de atenção e prevenção da violência
contra a mulher tendo em conta que a responsabilidade primária desta forma de violência
tem a ver com quem a exerce. Na década de 90 surgiram outras intervenções,
principalmente na Austrália, França, Reino Unido e nos países escandinavos. Nos países
da América Latina o primeiro a realizar este trabalho foi a Argentina, seguida de México,
Nicarágua e Costa Rica. No Brasil alguns trabalhos com homens já foram desenvolvidos,
mas poucos persistiram por causa, principalmente, das articulações jurídicas que lhes
faltaram. (CORSI, s.d.).
A violência contra as mulheres se produz em uma sociedade que mantêm um sistema de
relações de gênero que considera a superioridade dos homens sobre as mulheres designando
diferentes qualidades, papéis e espaços em função do sexo. Tal fato se traduz pela diferença
da socialização de homens e mulheres que acabam por desenvolver potencialidades que
colocam os homens em um lugar simbólico de exercício de poder (OLIVEIRA, 2004;
BOURDIEU, 1989). Na produção da violência estão envolvidos reforços culturais,
institucionais, subjetivos e relacionais sustentados pelas idéias sexistas de submissão das
mulheres. Os homens acabam por desenvolver habilidades de controle, maus tratos e
violência para assegurar uma posição dominante frente as mulheres.
É possível verificar nos discursos de homens que exercem violência contra mulheres um
sistema muito especial de racionalidade que justifica e minimiza seus atos de controle e
poder. Com o amparo teórico e prático de estudos linguísticos, o objetivo aqui é subsidiar
intervenções específicas de combate à violência de gênero que compoem atualmente as
políticas públicas nacionais implicadas neste tema.
Somos seres Linguísticos: encontros a partir do conceito de agir comunicativo
A impostância de se tematizar as abordagens linguísticas como formas de
expanssão nas intervenções com homens se dá porque esta é um tipo de comportamento
social, ou seja, ela tem uma “função” que é construída a partir das interações humanas.
Isso significa dizer que o social, mais do que o individual, está no centro de muitos
estudos linguísticos, e o que a linguagem individual realiza é interpretado como
resultante de vários relacionamentos sociais através dos quais esta foi estabelecida,
desenvolvida e mantida. Halliday (1973, 1978, 1986) afirma que a linguagem tem papel
central na constituição dos seres humanos, transmitindo os padrões por meio dos quais
aprendemos a agir como membros de uma sociedade (através de vários grupos, como a
família, a vizinhança...) e membros de uma cultura (os modos de pensar e agir, as crenças
e valores). Esta visão sistêmica implica no estudo sobre o que a linguagem pode fazer ou,
mais especificamente, o que o falante pode fazer com a linguagem, apontando, assim,
para a abordagem funcional da mesma, já que esta é uma forma de interação.
A visão funcional do sistema lingüístico implica na percepção da linguagem como
forma de comunicação em situações e contextos sociais que são desenvolvidos
culturalmente. O uso da linguagem está revestido por significados potenciais associados a
situações específicas e influenciadas pela organização social e cultural. Assim, o conceito
de significado potencial deve ser relacionado com um tipo de semântica social que
pressupõe o estudo do significado em um enquadramento sociológico. Halliday afirma
que o critério de estudo da linguagem deve ser “sociológico mais do que simplesmente
social — baseado em alguma teoria da estrutura social e da mudança social” (1978, p.
35).
Compondo reflexões e teorizações sobre a semântica social a partir da teoria dos
atos de fala, Habermas (1990, 2004) desenvolve importantes contribuições sobre as
formas de comunicação humana. Procurando delinear o que denomina pragmática formal,
este autor lança mão de conceitos tal como o de racionalidade para explicar os contextos
interativos modernos. A partir das contribuições weberianas e, consequentemente,
oriundo da teoria crítica, o conceito de razão marca a transposição de um mundo
tradicional, ligado aos aspectos míticos, sagrados e proféticos para um mundo moderno
marcado, na visão de Weber por (...) processos racionalizadores, (técnicos, formais, instrumentais, científicos)
onde os meios (normas, dinheiro, métodos) ganham autonomia sobre os fins,
servindo a vários “interesses” e facultando ao agente um controle maior das
ações e seus decursos, consoantes a existência de condições mais
universalizadas (burocracias, mercados), nunca antes encontradas (NOBRE,
1999, pg?).
Tal fenômeno, denominado por Weber como desencantamento do mundo, fez
com que a modernidade se tornasse uma jaula de ferro pela dominância da racionalidade
instrumental pautada, principalmente, por critérios de eficiência e sucesso que gerou a
diferenciação das estruturas simbólicas da ciência, da ética, do direito e da estética.
O conceito de racionalidade desenvolvido por Habermas se situa em um plano
mais otimista que acaba por conceber uma teoria dualista da sociedade na qual estariam
localizados de um lado, o mundo da vida, e de outro, os subsistemas econômico e
administrativo (Bannell, 2006). Assim, ao contrário da visão weberiana que concebe um
bloco único, Habermas (1990, 2004) enfatiza o conceito de mundo da vida como aquele
espaço de transmissão de culturas, integração social, socialização de indivíduos e
entendimento mútuo. Este espaço cambiante e, obviamente, influenciado pelos
subsistemas econômico e administrativo, contém a chave para a emancipação humana.
Atrelando o conceito de racionalidade a uma pragmática formal de uso da
linguagem em comunicação, este autor desenvolve o conceito de racionalidade
comunicativa – que pode ser tomado no seu sinônimo agir comunicativo – que se
caracteriza pela possibilidade de entendimento racional a ser estabelecido entre
participantes de um processo de comunicação. O agir comunicativo seria, pois,
processual e voltado para o consenso.
A base de tal teoria repousa na distinção de dois tipos de racionalidade e,
consequentemente de ação social: a racionalidade estratégica (ou agir estratégico) e a
racionalidade comunicativa (ou agir comunicativo). O primeiro, atribuido a Max Weber,
tem uma abordagem objetiva, sendo o segundo localizado por Habermas num espaço
intersubjetivo. Para distinguir o agir estratégico do agir comunicativo, Habermas (1990)
sugere que a interação humana pode se ater à coordenação de ações direcionadas para a
transmissão de informações, no primeiro caso, e à integração social no segundo. Assim, o
agir comunicativo é sempre dirigido ao entendimento e se baseia na capacidade dos
participantes de agirem cooperativamente com relação a seus “planos de ação, levando
em conta uns aos outros, no horizonte do mundo da vida compartilhado e na base de
interpretações comuns da situação” (1990, p.72).
O conceito de agir comunicativo está pois, apoiado numa concepção de
entendimento que remonta, linguisticamente falando (perspectiva), à teoria dos atos de
fala. Isto significa que para se entender uma proposição é preciso reconhecer as razões
através das quais ela está orientada por condições de verdade que podem ser validadas ou
criticadas. No caso do agir comunicativo – conceito interativo e orientado pela condição
de validade compartilhada – a dinâmica acontece de forma dialógica e, por isto, num
espaço intersubjetivo baseado num procedimento de argumentação racional.
A teoria dos atos de fala postulada por Searle e Austin (1999), expande a
abrangência da linguagem para além do sentido de dizer algo sobre o mundo dos fatos e o
estado das coisas, incluindo o sentido ilocucionário e perlocucionário dos proferimentos.
O ato ilocucionário é a força de um enunciado, ou seja, implica na condição de verdade
validada, por exemplo de uma promessa, uma ordem, uma pergunta, uma afirmação. O
sucesso dele depende pois, de uma validade normativa, contextualmente construída. O
ato performativo ou efeito perlocucionário é a consequência não gramatical de um ato
ilocucionário bem sucedido. Habermas (2004) afirma que as perlocuções são
analiticamente iteressantes porque uma afirmação, tal qual “você se comporta como um
porco”, tem uma meta perlocucionária de ferir o outro e, portanto vale como insulto. É o
mesmo caso das ameaças que se caracterizam como o “anúncio de uma sanção negativa
condicionada que adquire tal sentido pela referência explícita ao efeito perlocucionário de
intimidação” (2004, p.122).
Este autor afirma ainda que “em contextos estratégicos de ação, a linguagem
funciona, em geral, segundo o modelo de perlocuções” (2004, p.123). Assim, sob os
imperativos do agir racional orientado a fins, as interações estratégicas se dão entre atores
antagonistas que, no interesse dos planos de ação de cada um, exercem uma força
contrária nas atitudes preposicionadas um do outro. Neste contexto, as metas
ilocucionárias “só são relevantes como condição de sucessos perlocucionários” (2004,
p.123). A comunicação se torna indireta, pois não há uma base de veracidade
mutuamente pressuposta e a interação não almeja a motivação racional do ouvinte, mas
que este tire suas conclusões a partir do que o falante lhe diz indiretamente. O autor
acrescenta que:“sujeitos que agem estrategicamente supõem entre si que, na medida em que
decidem racionalmente, eles baseiam suas decisões em opiniões que eles
mesmos tomam por verdadeiras. Mas os valores de verdade que cada um deles
se orienta do ponto de vista de suas próprias preferências e objetivos não se
transformam em pretenções de verdade talhadas para um reconhecimento
intersubjetivo”(2004, p.124)
A cena interativa da comunicação orientada a fins e, consequentemente, seus
efeitos performativos, se transformam num caus relacional e são a base das relações de
conjugalidade violenta, foco deste artigo. Um pouco mais a frente retomarei esta idéia
argumentando a favor da construção do conceito de gênero enquanto performance
proposto por Butler (1990, 1993) delineando, assim, uma proposta de abordagem
discursiva para os grupos de homens que exercem violência contra mulheres.
Gênero e performatividade
O conceito de gênero é um construto analítico que diz respeito à organização
social dos sexos. O plano conceitual central, para se entender o gênero, passa pela
diferenciação entre sexo e gênero, sendo que o primeiro se refere às características e
diferenças biológicas que correspondem a homens e mulheres, e o segundo, às
construções sociais e culturais que se desenvolvem a partir dos elementos biológicos.
Judith Butler (1990) comenta que o gênero não é um atributo fixo dado a alguém e deve
ser visto como uma variável fluida que muda em diferentes contextos e tempos. A autora
argumenta que o sexo (macho, fêmea) parece ser a causa do gênero (masculino,
feminino), que, por sua vez, causa o desejo (direcionado ao outro gênero). Isto parece
uma construção binária e a autora quebra esta lógica dizendo que o gênero e o desejo são
flexíveis, livres e não causados por outros fatores. Ela comenta que “não há identidade de
gênero atrás de expressões de gênero; a identidade é constituída performativamente pelas
várias expressões” (1990, p. 25). Em outras palavras, gênero é uma performance, é o que
fazemos em situações e formas diferentes mais do que o universal “quem é você?”.
Assim como a teoria dos atos de fala, o gênero não se limita ao que somos ou ao que
temos, mas se estende ao efeito produzido pelo que fazemos. Segundo Butler, “gênero é a
estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos entre o enquadramento
altamente regulatório que se congelou através do tempo para produzir a aparência de
substância, de um tipo natural de ser” (1990, p. 33).
Cameron et al. (1988) sugerem que a vantagem deste prisma se encontra na noção
de variedade de identidades de gênero que este pode gerar e, conseqüentemente, na
variedade performática que o comportamento pode assumir. A idéia da identidade não
deve ser conectada com uma essência, mas com um caráter performativo e construído.
Butler (1990) comenta que a configuração cultural do gênero é tomada como naturalizada
e hegemônica e afirma que, apesar disso, podemos encontrar mobilizações, subversões,
confusões e uma proliferação de gêneros e, conseqüentemente, identidades.
Segundo Scott (1995, p. 88), o gênero “estrutura a percepção e a organização
concreta e simbólica de toda a vida social”. Isto significa dizer que o gênero legitima e
constrói relações sociais, além de orientar as formas de decodificação e compreensão do
significado das interações humanas. Assim, o gênero se apresenta como um aparelho
semiótico socialmente e historicamente contextualizado, regulando relações homem-
mulher, homem-homem e mulher-mulher, conjugados em posições de assimetria. Alguns
pesquisadores focalizam ainda, que o gênero nasce de uma gramática sexual orientada
pelo patriarcado que tem o status de relação civil, hierárquica, material e corporificada
que invade, de forma rizomática, todo o mundo social (SAFFIOTI, 2004). Tal contrato
patriarcal, realizado entre os homens, faz com que a diferença sexual seja convertida em
diferença política e de poder argumentando contra a autonomia e reconhecimento das
mulheres.
Em termos performativos, as mulheres não são autorizadas a participarem
igualitariamente de espaços de poder - a não ser sob a experiência de muitas batalhas
travadas. Devem, no entanto, se posicionarem subjetivamente e objetivamente enquanto
pessoas incondicionalmente disponíveis para os outros. Esta articulação assimétrica
marca a constituição de homens e mulheres delegando espaços diferenciados para uns e
para outros. Um dos maiores desafios, portanto é tornar visível esta lógica de dominação-
exploração no nosso cotidiano. Segundo Saffioti (2004), Para a ordem patriarcal de
gênero é interessante que as mulheres sigam com as lentes de gênero e, para isto, não
deveriam ter consciência das tramas nas quais são envolvidas e, menos ainda das lógicas
que são (re)produzidas automaticamente, como é o caso do exercício de poder com base
numa relação de dominação.
Buscando sentido nos conceitos de reflexão e responsabilização
Quando tematizamos a sociedade moderna, inevitavelmente falamos de um amplo
processo de mudança que abala “os quadros de referência que davam aos indivíduos uma
ancoragem estável no mundo social” (HALL, 1997, p. 7). O conceito de reflexividade
aparece neste contexto para marcar uma nova forma relacional instituida na vida social,
capaz de romper com práticas e preceitos preestabelecidos. Tal movimento ocorre devido
à disposição de revisão da maioria dos aspectos das atividades sociais, bem como das
relações materiais com a natureza, que se processam de forma intensa influenciadas por
novos conhecimentos e informações. A reflexividade pode ser entendida como a versão
moderna das expectativas do pensamento iluminista, não no sentido em que poderia
revelar um conhecimento seguramente fundamentado dos mundos social e natural, mas
no sentido de que ela mesma “solapa a certeza do conhecimento” (GIDDENS, 2002, p.
26).
O palco da modernidade é tomado por intimidades (GIDDENS, 1993), problemas
pessoais, crises e sofrimentos que se relacionam com o panorama social, na medida em
que as circunstâncias sociais não podem ser consideradas separadas da vida pessoal e
nem pano de fundo para ela. Segundo Giddens, “ao enfrentar problemas pessoais, os
indivíduos ativamente ajudam a reconstruir o universo da atividade social à sua volta”
(2002, p. 18). Para ele, a esfera das relações pessoais oferece espaços de intimidade e
auto-expressão inconcebíveis nas sociedades tradicionais, dando origem à reflexividade.
A conseqüência disto é que a auto-identidade tem que ser constantemente alimentada por
narrativas biográficas coerentes, embora constantemente revisadas, num contexto de
múltiplas escolhas.
O conceito de reflexividades está pois, relacionado ao conceito de racionalidade e,
para Weber, não significa que ela “implica, no âmbito societário, o primado do agente
sobre as condições sociais” (NOBRE, 2004, p.31). Isto se deve porque Weber realçou
menos o agente e a consciência da sua ação, deslocando suas análises para uma
racionalidade reflexiva ao tematizar o encadeamento coerente de ações das sociedade
modernas. No entanto, “seja para efeito de conhecimento, seja para efeito de
posicionamento, justifica-se, assim a premissa da reflexividade para demarcar o sentido
do exercício da racionalidade em Weber” (apud, p.31).
Para Habermas, os conceitos de racionalidade e reflexividade se aproximam com
mais intimidade na medida em que no próprio conceito de agir comunicativo – que supõe
um entendimento mútuo e pretenções de validade intersubjetivamente reconhecidas e
voltadas para o consenso – há a pressuposição de um jogo reflexivo. Assim, o quantun de
ação relacionado ao agente se torna significativo e decisivo na interação pois, este se guia
pelo interesse e pelo entendimento. Ademais, o próprio conceito de mundo da vida –
como pano de fundo implícito e pré-reflexivo – se sustenta a partir de uma dinâmica de
ligação interna e/ou coordenação de ações que levanta problematizações e pretenções de
validez criticáveis no instante da pronúncia, ou seja, trata-se de uma forma interativa de
se pensar a comunicação.
Habermas aposta na reflexão como força esclarecedora e enfatiza que através dela
podemos fazer uma crítica à ideologia, ou seja, daquilo que se encontra escondido nas
opiniões, preconceitos ingênuos e visões do mundo, pois “ela é capaz de captar e detectar
os contextos de ação sistematicamente distorcidos, os elementos não entrevistos de
coação e de dominação” (SIEBENEICHLER, 1898, p.83). Para Habermas a reflexão é
“tributária de uma relação dialógica prévia e não paira no vácuo de uma interioridade
constituída independentemente da comunicação” (HABERMAS, 2004, p.100). Isto quer
dizer que as pretenções de validade – base da racionalidade dos proferimentos – se
conjuga com a posse reflexiva de tais proferimentos, ou seja, elas remetem uma à outra.
Então:
“a racionalidade de uma pessoa mede-se pelo fato de ela se expressar
racionalmente e poder prestar contas de seus proferimentos adotando uma
atitude reflexiva. Uma pessoa se exprime racionalmente na medida em que se
orienta performativamente por pretenções de validade; dizemos que ela não
apenas se comporta racionalmente, mas que é racional, quando pode prestar
contas de sua orientação por pretenções de validade. Também chamamos esse
tipo de racionalidade de plena responsabilidade” (apud, p. 102)
O conceito de responsabilização aparece neste contexto como a própria
capacidade que, conectada ao conceito de reflexividade, faz com que uma pessoa possa
se posicionar diante do que ela pensa, faz e diz. Isto implica numa atitude reflexiva do
sujeito cognoscente para 1)- suas relações epistêmicas, ou seja, suas opiniões e
convicções; 2)- suas relações técnico-práticas que dizem respeito às atitudes de um
sujeito agente para com sua atividade orientada a fins; e 3)- suas relações morais-práticas
que supõe a reflexão sobre suas ações articuladas com um projeto de vida próprio, no
contexto de uma biografia individual, mas entrelaçada com formas coletivamente dadas
de vida (HABERMAS, 2004).
Este movimento de responsabilização exige o distanciamento da perspectiva
egocêntrica, ou seja, a capacidade de descentrar-se de si-mesmo e centrar-se nas
consequências performativas de suas ações. Reflexão e responsabilização presupõe então,
uma espécie de afastamento no qual entram em tema toda a racionalidade inerente à
estrutura e ao procedimento da argumentação.
Buscando técnica na abordagem discursiva de homens que exercem violência contra
mulheres
Aqui pretendo fazer a análise dos dados que consiste numa interação oral entre um
homem do grupo e os coordenadores que buscam colocar a prova as opiniões sexistas
dele (as relações epistêmicas da racionalidade) argumentando que suas atitudes
orientadas a fins (os efeitos ilocucionários), tem efeitos destrutivos sobre outras pessoas
(os efeitos perlocucionários). Busca-se assim, inaugurar momentos reflexivos e de
responsabilização na qual o sujeito tenha subsídios para questionar suas relações morais,
éticas e práticas com o mundo.
Considerações finais:
Neste artigo procurei explicitar um pouco mais o desafio de se pensar um recorte
teórico-metodológico que possa ser aplicável na intervenção com homens que exercem
violência contra mulheres. Tal perspectiva, formulada a partir de uma intervenção psico-
educativa, se pautou por uma abordagem discursiva nos grupos reflexivos que fazem
parte de minha prática profissional. Como um campo em expansão e que carece de
tecituras teóricas para concretizar tal abordagem, afirmo a importância desta intervenção
ser pautada por uma técnica consciente que evite muitas ciladas quando lidamos com
homens violentos dentre elas as tendências de minimização, justificação e invisibilidade
de atos violêntos que são, difíceis de tipificar e reconhecer.
Dentro do campo da psicologia que é o meu campo de origem, afirmo a
necessidade de diálogos com outros campos do saber dentre eles a linguística, a
sociologia, a antropologia, as ciências políticas, a educação e a filosofia, sempre pautados
por recortes sócio-históricos. Retomando as contribuições que a linguística e a filosofia
(como pontos mais explorados neste artigo) podem trazer para orientar tais propostas,
gostaria de salientar, principalmente a importância das abordagens linguísticas que
orientam meus estudos atuais.
Como um conjunto de sentidos, o sistema da linguagem oferece o entendimento
de que o uso comunicativo de expressões exprimem intenções, representações, estados de
coisas e estabelece relações sociais. Esta última, objeto de interesse particular da
psicologia social, pode ser decodificada por muitas bases teóricas da linguística que,
aliada a pontos pertinentes da psicologia formam um casal harmonioso. Especificamente
falando, abordar discursivamente a produção do significado de um ato de fala produzido
por um sujeito diz sobre as condições racionais em que ele se pauta (as condições de
validade de uma proposição ou a produção de significados enquanto valores de verdade),
os desdobramentos de tais produções de sentidos (as metas ilocucionárias) bem como as
relações que se estabelecem entre os participantes a partir de tais enunciados (os efeitos
perlocucionários ou performativos). O descortinamento desta maquinaria seria suficiente
para trabalhar com sujeitos e com coletivos as inserções deles no mundo como atores
ativos e sociais. Ademais, coloca o humano e sua subjetividade (para utilizar uma
expressão explorada pela psicologia) instanciada por contextos sociais e históricos,
trazendo para este conceito uma dinâmica dialógica na qual exterior e interior participam
articulados na constituição de sujeitos, fatos muitas vezes negligenciados por
determinados aportes teóricos que privilegiavam ora um aspecto, ora outro.
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