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3 Mª L P I O S R Interpelação ética das mulheres que exercem prostituição e são vítimas do tráfico com fins de exploração sexual

Interpelação ética das mulheres que exercem · 2019. 10. 22. · «INTERPELAÇÃO ÉTICA DAS MULHERES QUE EXERCEM PROSTITUIÇÃO» 5 1. Introdução No presente caderno “Interpelação

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Mª L���� ���PI�� � O������ � S�������� R������

Interpelação ética dasmulheres que exercem

prostituição e são vítimasdo tráfico com fins de

exploração sexual

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Mª L���� ���PI�� � O������ � S�������� R������

Interpelação ética dasmulheres que exercem

prostituição e são vítimasdo tráfico com fins de

exploração sexual

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COORDENADOR DE“CADERNOS DE ÉTICA EM CHAVE QUOTIDIANA”— Enrique Lluch Frechina

Professor na Universidad CEU Cardenal Herrera

CONSELHO ASSESSOR— Rafael Junquera de Estéfani.

Facultad Derecho (Espanha)UNED— Antonio Fuertes Ortiz de Urbina.

Investigador médico (Espanha)— Luis Mesa Castilla.

Institución Juan de Granada (Espanha)XXIII— Marta Iglesias López.

Asociación para la Solidaridad (Espanha)— Jerónimo Peñaloza Bastos.

Reitor da Fundação Universitária San Alfonso (Colômbia)

REDAÇÃO – ADMINISTRAÇÃOFundación Europea para el Estudio y Reflexión ÉticaC/ Félix Boix, 1328036 Madrid (España)www.funderetica.org | [email protected]

TRADUÇÃO- Margarita Ganuza Alsasua- Ana Margarida Pinto Gonçalves Ferreira

MAQUETACIÓN- Heliodora Sánchez Briongos

DESIGN / IMPRESSÃO- Mediación, imagen y comunicación

www.mediacioneimagen.com

DEPÓSITO LEGAL: M - 19204 – 2015ISSN: 2341-0388

cuadernos de

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ÍNDICE

1. Introdução 5

2. O fenómeno da prostituição e o tráfico com fins de exploração sexual 72.1. De que é que estamos a falar? Reproduzir ou reinventar novas definições? 72.2. Emigração, tráfico de seres humanos, prostituição 82.3. Uma tentativa de esclarecimento: 10

2.3.1. O que é o tráfico humano 102.3.2. Tráfico ilícito de emigrantes 112.3.3. Prostituição 12

2.4. O paradigma da complexidade 152.5. Tentando uma aproximação 162.6. Falamos desde onde? 17

3. Interpelações éticas das mulheres 213.1. A visível invisibilidade: “querem que nos escondamos para pensar que não existimos” 223.2. Eu reclamo-te, sociedade! 253.3. Desde o fundo... Socorro, socorro, socorro; grito e ninguém me escuta. 283.4. Mesmas situações, outras perspectivas... 29

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4. Algumas chaves para a interpretação 324.1. Desde a perspectiva dos direitos humanos 324.2. Direitos das mulheres e ética concreta 334.3. Um olhar antropológico 354.4. Uma abordagem de género 36

4.4.1. O estigma 374.4.2. Questões de linguagem 39

4.5. Um olhar crente 404.6. Um olhar desde o carisma Oblata 43

5. Sonhando futuros possíveis 475.1. Sem uma ética mundial não é possível uma nova ordem Mundial 475.2. E, entretanto, o quê? 49

6. Concluindo: A ESPERANÇA 55

7. Bibliografia 57

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«INTERPELAÇÃO ÉTICA DAS MULHERES QUE EXERCEM PROSTITUIÇÃO»

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1. Introdução

No presente caderno “Interpelação éticadas mulheres que exercem prostituição e sãovítimas do tráfico com fins de exploração sexual”parto de um princípio: todos e cada um doscidadãos e cidadãs de um país somosresponsáveis da vida moral do mesmo e é issoque pretendo reclamar desde o começo. Somosmais que espectadores daquilo que está aacontecer no âmbito da prostituição e do tráficode mulheres com fins de exploração sexual, aindaque admitindo que esta realidade na maioria doscasos é uma realidade invisível, silenciosa esilenciada.

Como cidadãos e cidadãs que procuramoso bem comum, não podemos virar a cara para olado, apoiar-nos no desconhecimento darealidade e, por sua vez, manter o imagináriocoletivo, tantas vezes estereotipado e produzidofrequentemente pelos meios de comunicação. Se o mundo é nosso e estamos chamados echamadas a construí-lo coletivamente, é-nosexigida uma atitude muito ativa e que pensemosque tudo o que fazemos ou deixamos de fazer nãoé indiferente e vai estar a favor ou contra umasociedade mais ou menos justa e igualitária. O papa Francisco, referindo-se ao tráfico depessoas com fins de exploração sexual, diz: É umavergonha. Um crime contra a humanidade... Temque haver uma tomada de responsabilidadecomum e uma vontade política mais decididapara conseguir vencer este problema. Na hora da abordar um fenómeno tãocomplexo como é o da prostituição, poderia surgir

Todos e cada um dos cidadãos e cidadãs de um país somos responsáveis pelavida moral do mesmo.

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a dúvida de se não estaremos diante de um feitoimpossível dado que, mesmo com todas asaproximações, com todos os estudos, com todasas tentativas e abordagens, os estereótipos vãopassando de geração em geração e, ainda hoje,continua a ser uma questão pendente sem umasolução clara.

Este caderno pretende facilitar aqueleselementos que possam ajudar à reflexão eaprofundamento do tema da prostituição, e assimchegar a ter um posicionamento crítico e, por suavez, contribuir e exigir, de acordo com osprincípios da subsidiariedade e a participação deque nos fala a Doutrina Social da Igreja, as pautasnecessárias para ir criando, entre todas as pessoasum futuro diferente.O trabalho será dividido em quatro blocos: O primeiro pretende uma aproximação teóricaao fenómeno da prostituição e sua vinculaçãocom os movimentos migratórios e com o tráficode seres humanos com fins de exploração sexual,tentando clarificar conceitos. No segundo bloco, deixamos que seja a própriavoz das mulheres que nos interpele através dosseus gritos da visibilidade e denúncia, através dassuas situações existenciais e das suasreivindicações de direitos. No terceiro oferecemos algumas chaves para ainterpretação a partir de diferentes perspectivas:direitos humanos, direitos das mulheres e éticaconcreta, a antropologia desde o Evangelho edesde o carisma da Congregação à que pertenço:Irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor, que temcomo missão viver um compromisso solidário

A prostituição eo tráficohumano

continuam a seruma questão

pendente

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com as mulheres que exercem prostituição noempenho de percorrer com elas um caminho deevangelização libertadora. No quarto, vamos fazer a tentativa de desenharalgumas pistas baseadas na nossa proposta deintervenção, que, ao implicar todos os atores,consiga uma mudança pessoal e da sociedade noseu conjunto. E, concluindo, uma chamada àesperança. O nosso agradecimento como Congregação, àFunderética por se oferecer para ser via para queas interpelações das mulheres que exercemprostituição e são vítimas de tráfico paraexploração sexual, possam chegar a diferentesâmbitos da sociedade e da Igreja, e pelaoportunidade que nos tem oferecido a nós. Estareflexão tem sido mais um motivo para viver comrenovada paixão o nosso seguimento de Jesus enosso compromisso com as mulheres.

2. O fenómeno da prostituição e o tráfico com fins de exploração sexual

2.1 De que é que estamos a falar? Reproduzir,reinventar novas definições?

Existem muitas e variadas ideiaspreconcebidas sobre a prostituição. Isto é umindicador da dificuldade que supõe poder definirglobalmente uma realidade que, quando se estáem contacto com a mesma, nos diz que é mutávele permanente, desconhecida e criticada, utilizadae rejeitada, invisível e real, mas sempreinterpelante. Se em geral, quando são tratados

O caderno quer ser uma chamada à esperança

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alguns temas (sociais, culturais, religiosos, etc.)não se podem ter colocações indiscutíveis eabsolutas, com certeza a prostituição é uma delas.Para uma realidade tão dinâmica e mutável, sobrea qual se fazem diferentes esboços ideológicos,legais e políticos, torna-se necessário resgatar decada um deles, aqueles elementos que sãocompartilhados por todas as posições: combater aprostituição infantil, o tráfico de seres humanos ea exploração sexual no exercício da prostituição.

Nos últimos tempos e, principalmente apartir da aprovação em Espanha do PlanoIntegral contra o Tráfico de Seres Humanos comFins de Exploração Sexual no final de 2008 (eposterior reforma do código penal em 2010)parecia que o tráfico com fins de exploraçãosexual se tinha tornado moda: os termos daprostituição, tráfico e exploração sexualconfundem-se no imaginário social, o quedificulta tanto a defesa dos direitos das mulheresque decidem exercer prostituição e pedem queseja reconhecida como um trabalho, como os dasque são vítimas de exploração.

2.2 Emigração, tráfico de seres humanos, prostituição

A emigração dos países pobres para ospaíses ricos tem existido sempre e na atualidadenão só continua, como em alguns lugares vaiaumentando. A globalização dos meios decomunicação que chegam até ao último canto doplaneta, juntamente com outros efeitos positivos,difunde o sonho de uma forma de vida feliz nos

É necessárioclarificar

conceitos parapoder defender

os direitos detodas as

mulheresimplicadas

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países ricos. Mas essas imagens pouco têm quever com a realidade que vão encontrar as pessoasque empurradas pela pobreza ou a violência sociale política dos seus países de origem, decidememigrar à procura de uma situação melhor. Orosto enganoso do bem estar próprio dos paísesdesenvolvidos converte-se para essas pessoas emexploração humilhações e perseguição legal. O tráfico de seres humanos e a prostituiçãonão podem desvincular-se desses movimentosmundiais de população, das correspondentespolíticas migratórias dos países de origem,trânsito e destino e, em definitivo, dasdesigualdades sociais e económicas.

Este fenómeno não é novo, mas, atualmenteestá marcado por características peculiares comosão: o género, já que atinge principalmente asmulheres como o setor mais vulnerável dapovoação, no seu empenho por conseguir umavida melhor para elas e para as suas famílias; e,por outro lado, a crescente desigualdade epobreza social e económica das zonas maisdesfavorecidas do planeta que se convertem,assim, num eficaz caldo de cultivo para o tráficode seres humanos.

A prostituição tem evoluído na medida emque o têm feito a globalização e a conseguinteexpansão do capitalismo em todos os setores,incluindo a indústria do sexo. Hoje, podemosdizer que a prostituição se tem convertido numconsumo de massas gestado por “multinacionais”e o sexo sabemos que sempre tem sido umagarantia de lucros.

O tráfico de seres humanos e a prostituição não podem desvincular-se dosmovimentos mundiais de população

O género e as desigualdades sociais e económicas, fazemaumentar as redesde tráfico de seres humanos

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2.3 Uma tentativa de esclarecimentoO Protocolo para Prevenir, Reprimir e

Sancionar a Trata de Pessoas, especialmenteMulheres e Crianças (também conhecido como oProtocolo contra o tráfico ilegal de pessoas) é umprotocolo da Convenção das Nações Unidascontra a Delinquência Organizada Transnacional.É um dos três Protocolos de Palermo; os outrosdois são o Protocolo das Nações Unidas contra oContrabando de Emigrantes por Terra, Mar e Ar eo Protocolo das Nações Unidas contra aFabricação e o Tráfico Ilícito de Armas de Fogoadotadas pelas Nações Unidas em Palermo, Itália,em 2000. O Protocolo de Tráfico Humano entrouem vigor a 25 de dezembro de 2003 e emfevereiro de 2014 tinha sido já reafirmado por 159estados.

2.3.1 . O que é o tráfico humano .Na definição que dá o Protocolo contra o

tráfico humano aparecem três elementosimportantes:

Uma Ação: captar, transportar, mover,acolher ou receber pessoas.

Alguns Meios: recorrendo à ameaça ou aouso da força ou outras formas de coação, aorapto, à fraude, ao engano, ao abuso depoder ou de uma situação devulnerabilidade, ou à concessão ou receçãode pagamentos ou benefícios para conseguiro consentimento de uma pessoa que tenhaautoridade sobre outra.

Com uma Finalidade: a exploração. Aexploração pode incluir, no mínimo, a

O tráficohumano

pressupõe umaação, algunsmeios e uma

finalidade deexploração.

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exploração da prostituição de outros, ououtra forma de exploração sexual, trabalhoforçado, ou serviços, escravidão, ou práticassimilares à escravidão, servidão ou remoçãode órgãos.

2.3.2 . Tráfico ilícito de emigrantes. O Protocolo das Nações Unidas contra o

tráfico ilícito de imigrantes por terra, mar e ar, foiadotado para prevenir e combater o tráfico ilícitode emigrantes, promover a cooperação entre osestados e proteger os direitos dos emigrantestraficados. Este Protocolo define “o tráfico ilícito”como:

Uma ação: facilitar a entrada ilegal de umapessoa num estado do qual dita pessoa nãoseja nacional ou residente permanente.

Uma finalidade: obter um benefíciofinanceiro ou outro benefício de ordemmaterial.

Entre o tráfico humano e o tráfico ilícito deimigrantes há uma série de semelhanças e dediferenças. Vamos neste momento assinalar pelomenos três diferenças que são fundamentais nahora de identificar as possíveis vítimas:

Consentimento. É no caso do tráfico ilícitode emigrantes; estes consentem no mesmo,ainda que muitas vezes seja realizado emcondições perigosas ou degradantes. Asvítimas do tráfico humano, pelo contrário,nunca deram consentimento, ou se o fizeraminicialmente esse consentimento tem perdido

O tráfico ilícito de emigrantes não é o mesmo que o tráfico humano

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todo seu valor pela coação, engano ou o abusodos traficantes.

Exploração. O tráfico ilícito termina com achegada dos emigrantes ao seu destino,enquanto que o tráfico humano implica aexploração persistente das vítimas de algumamaneira para gerar lucros ilegais para ostraficantes, pelo que as vítimas do tráficohumano são mais gravemente atingidas erequerem uma maior proteção.

Trans-nacionalidade. O tráfico ilícito ésempre transnacional, enquanto que o tráficohimano pode ser que não seja. Este pode terlugar independentemente de as vítimas seremmovidas para outro país ou estado ou sódeslocadas de um lugar para outro dentro domesmo país ou estado.

2.3.3. ProstituiçãoEm relação à prostituição, de todas as

definições existentes, incluindo a do dicionário daReal Academia Espanhola de Língua, ficaríamoscom aqueles elementos comuns a todas as formasde prostituição, tanto as que permanecem notempo, como às novas formas, incluídas as quesão exercidas através da Internet. Todas têm emcomum três elementos: sexo, atividade eremuneração. A combinação dos três elementos eas variações de cada um é o que nos aproxima dadefinição mais ajustada da prostituição.

Temos, pois, três conceitos, aos que teríamosque acrescentar mais um, contributo da reformado Código Penal de junho de 2010: a exploraçãosexual que, não tendo sido definida

A corretaidentificação dosdelitos é esencialpara a proteção

das vítimas e dassuas famílias

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convenientemente, na prática está a causar váriosproblemas na hora da identificação das vítimasdo tráfico humano para exploração sexual.

É imprescindível, como já foi dito, ter clara,apesar das dificuldades, a identificação de cadaum dos conceitos, com a finalidade de determinarem que medida a mulher que exerce prostituiçãoestar a fazê-lo livremente ou, pelo contrário, seruma vítima de exploração sexual do tráficohumano. A correta identificação é de tal modoimportante, que disto pode depender a vida davítima e da sua família. Contando com esta visãoglobal, é necessário assinalar, que neste Cadernofaremos referência unicamente a estes conceitosna medida em que estão relacionados com oexercício da prostituição.

Para começar, falar de prostituição é falar deuma atividade que pode ser exercida de formalivre ou forçada, enquanto que o tráfico humanocom fins de exploração sexual e o tráfico ilícito deemigrantes, são delitos: o primeiro contra aspessoas e o segundo contra as leis dos estados.Até ao momento, e mesmo com os avançosrealizados, não se tem conseguido umprocedimento efetivo de identificação e proteçãodas vítimas.

Tendo em conta que o tráfico de mulheres ecrianças para exploração sexual é uma realidadedinâmica e os procedimentos e trajetos utilizadossão mutáveis, é preciso avançar num exercício derevisão permanente de forma a obter uma visão omais global possível e a não nos perdermos emaproximações parciais, pouco úteis para umaintervenção posterior.

A prostituição é uma atividade nãocriminal enquantoque o tráfio humano e o tráficoilícito de emigrantes constituem crimes

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Existem diversas organizações que afirmamque, dado que praticamente a totalidade dasmulheres que exercem prostituição é imigrante (àvolta de 90%), a grande maioria delas é vítima detráfico humano . Frente a este esboço algunsnegam a existência do tráfico humano oureduzem-no a mínimos, amparando-se nainvisibilidade do fenómeno e da negação domesmo por parte de algumas mulheres.

A nossa colocação que parte da nossaexperiência de trabalho, coincide com o relatórioque, a 27 de setembro de 2013, o GRETA (Grupode Especialistas na luta contra o Tráfico de sereshumanos do Conselho da Europa) apresentousobre Espanha sob o nome “Report concerningthe implementation of the Council of EuropeConvention on Action against Traffickingg inHuman Beings by Spain”.

No relatório, o citado organismo aponta umasérie de recomendações de grande interesse paraa luta contra a o Tráfico de Seres Humanos queconfirmam a nossa visão da realidade:

Tráfico de seres humanos e prostituição não éa mesma coisa, ainda que mantenham umarelação.

Não existem estudos que avaliem dados. Porisso, não se pode manter que um 90% demulheres que exercem a prostituição sejamvítimas do tráfico humano.

Não se pode desanimar a petição daprostituição sob o pretexto da luta contra otráfico humano.

Desde o ano 2004, algumas cidades emEspanha (Bilbao, Barcelona, Málaga,

Umamesma

realidade comabordagens

diferentes

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Granada, Alicante) promulgaram ordenscívicas onde estabelecem a possibilidade demultar as prostitutas e/ou os seus clientes.Outros municípios estão no processo deinstalar estas ordens. Ainda, a FederaçãoEspanhola de Municípios e Províncias(FEMP) tem criado uma ordem municipalmodelo, com o objetivo de reduzir aprostituição em espaços públicos.

As consequências destas ordens municipaissão que as pessoas que exercem prostituiçãoprocurem áreas clandestinas dentro dacidade ou fora, em zonas afastadas ouisoladas, ficando assim numa situação demaior vulnerabilidade. Nestas circunstâncias,a detecção de casos torna-se ainda maisdifícil e com isto ficam expostas a uma maiorviolação dos direitos humanos, negando-lhesa proteção a que justamente têm direito edeixando o terreno livre para que quem lucracom a sua exploração, continue a agir comtotal impunidade.

2.4. O paradigma da complexidadeQueremos destacar que para a abordagem

dum fenómeno social tão complexo como é aprostituição e a sua vinculação com o tráficohumano, são precisas todas as ciências, todos ospontos de vista, todas as orientações, todas asperspetivas, pois à complexidade não se poderesponder com o olhar ingénuo, mas sim comuma abordagem irrevogável de direitos.

A partir do contacto direto com estarealidade e as reflexões feitas, percebemos que a

As medidas repressivas agudizam a vulnerabilidade das vítimas ao dificultar a sua identificação e proteção

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prostituição, como afirma Beatriz Gimeno, temque ver com tudo: com a ética e a moral namedida em que tem a ver com as relaçõeshumanas; com a sexualidade e com as diferentesconceções acerca do sexo; com a construção sociale o desejo; com a distribuição de papeis sociais esexuais e o desigual repartir de poder entrehomens e mulheres; com a renda material, mastambém simbólica; com o capitalismo, aexploração trabalhista, a pobreza, a globalização,as desigualdades; com o mercado e a lei da ofertae da procura; com o consumo exacerbado e anecessidade de satisfazer de imediato asnecessidades; com o individualismo sem conexãocom a comunidade.

Por isto, na prostituição têm influência tantosfatores que qualquer intenção de dar explicaçõessimples e unidirecionais estaria a ocultar umaparte importante da questão. Se não se levam emconta todos os fatores apenas se passarão visõesparciais.

2.5. Uma tentativa de aproximaçãoPara poder fazer uma aproximação adequada

ao tema, têm que se deixar de lado as ideias epreconceitos que temos sobre a prostituição edeixar que seja a própria realidade que nos vaifalando. E nesse contemplamento da realidade,ao obsevar e analisar os comportamentos dehomens e mulheres, têm que se estabelecer nãosó as diferenças, mas também as desigualdades eas estruturas que as mantêm para poder aplicaras medidas necessárias e tornar efetiva aigualdade de oportunidades.

À complexidadehá que

responder comuma abordagemirrevogável dos

direitos

Para umaaproximação a

esta realidade érequisito

fundamentaldeixar à

margem asideias pré-

concebidas.

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A primeira pergunta que aparece quando sefala do fenómeno da prostituição é o tema dosnúmeros. Quantas? Desconheço fontes deinformação de quem se atreve a aventurar tanto onúmero de mulheres que exercem, como aporcentagem de homens usuários e a quantidadede dinheiro que é movimentada. Na minha longaexperiência nunca fui capaz de determinar onúmero, limitando-me a falar desde os factosreais de mulheres atendidas nos projetos Oblatas,os que oferecem algumas ONGs, os corpos eforças de segurança do Estado. Todos eles têmuma coincidência no perfil de mulheres que expli-citaremos de seguida, admitindo que, em todos oscasos, os dados podem supor a ponta de umiceberg do que se supõe que seja a totalidade dofenómeno.

Sempre a partir das mulheres atendidas, operfil é o seguinte:

No projeto e espaço de acolhimento no ano2013, das 121 mulheres atendidas, 97,6%eram emigrantes, mas temos de admitir queultimamente se esteja a produzir umaumento da prostituição de mulheresnacionais devido à crise económica.

São procedentes de diferentes países:Nicarágua, Bolívia, Honduras, República Do-minicana, Colômbia, Paraguai, Peru, Brasil,Camarões, Nigéria, Argélia, Espanha.

Em relação à sua condição de emigrantes ecomo já temos mostrado anteriormente, cabedistinguir o que é prostituição, tráfico depessoas e tráfico humano com fins deexploração sexual. Estes dois últimos com

As mulheres têm procedências geográficas muito diferentes

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dívidas altas adquiridas antes da viagem eque é para as mulheres a principalpreocupação devido às consequências quepode supor o não pagamento.

Mulheres jovens, e em grande percentagemcom filhos e familiares que deixaram no paísde origem, e que têm de manter com o enviode dinheiro a todo o custo.

Mas acima de tudo, são mulheres fortes,valentes, vulneráveis, que reivindicam, comuma grande resiliência, com capacidade paradecidir sobre si mesmas e sobre as suascondições de vida, mesmo que às vezes sejadifícil. São mulheres que tentam viver nummundo cheio de desigualdades económicas,de género, étnicas, culturais, religiosas... embusca de meios para melhorar as suascondições de existência.Mas, o que pensar da prostituição? A

prostituição tem provocado ao longo da históriatodo o tipo de reações e posturas que têm ganhoforma nas legislações de diferentes países e quevão desde a rejeição e a perseguição à aceitaçãoou, pelo menos a licença e a regularização.Atualmente, o debate de como abordar ofenómeno da prostituição encontra-se entre duasposturas principais, mas não únicas mantidasdesde ideologias feministas e de difícilconciliação: a abolicionista, que considera aprostituição como uma escravidão, alguma coisaque deve ser erradicada e acredita que são osclientes a causa principal da existência eperpetuação do fenómeno e a regulamentarista,que considera a prostituição um feito inevitável eque cumpre um fim social. Por isso, quando esta

As duas posturasextremas são a

abolicionista e aregulamentarista

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se exerce entre pessoas adultas e de forma livre evoluntária, tem de se ter em consideração que éum trabalho como os outros, com os direitos eobrigações sociais e trabalhistas de qualquertrabalhador.

Enquanto um setor apela aos direitoshumanos para defender a abolição, o outro fá-lo àliberdade pessoal de cada ser humano paradefender a regulamentação. A estas posturas têmque se anexar a das que defendem oabolicionismo absoluto, o proibido, onde todaatividade franca ou encoberta de prostituiçãodeve ser sufocada e reprimida legalmente,esquecendo que a repressão nunca tem sidosolução a nada e que medidas como as que têmsido adotadas em diferentes cidades espanholasque temos feito referência anteriormente, tãoaplaudidas por alguns setores, não têm feito maissenão aumentar a situação de vulnerabilidade dasmulheres devido a uma maior clandestinidade.

São evidentes as profundas contradições nosdiscursos que são mantidos hoje na Europa e nomundo nos debates sobre prostituição. Istomostra claramente a complexidade do tema epermite-nos perceber que na hora de adotarmedidas, estas recaem sobre a prostituição e nãosobre as causas que a originam.

Desde o nosso ponto de vista, a prostituiçãoé uma atividade que se realiza e mantemos queacima da atividade, sempre estará a pessoa e osvalores fundamentais da sua dignidade,autonomia, liberdade, etc. Este é o critériofundamental de nossa atuação.

As alternativas legais ao exercício, dada adiversidade de colocações (inclusive entre as

A centralidade da pessoa é critério fundamental da nossa ação.

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próprias mulheres que, em definitivo, são as maisatingidas) não podem passar por uma únicamedida legal, seja esta abolicionista ou deregulamentação. Quaisquer destas medidas sem-pre deixariam à margem um setor importante dasmulheres que a exercem, e com isto entraria emquestionamento uma justiça que tem de sersempre universal. Os direitos humanos de todas,a sua autonomia e liberdade têm de estar prote-gidos para que cada mulher projete para a suavida o que considere mais adequado. Queremosdeixar claro que o tráfico humano e o tráfico deemigrantes constituem crimes que têm de serperseguidos pela lei com reparação às vítimas.

2.6. Falamos desde onde? Como Congregação que há 150 anos que

vive um compromisso solidário com estasmulheres, a nossa opção metodológica passa pordar prioridade a um modelo de intervenção ondea voz das mulheres na primeira pessoa possa ser aque interpela e constrói novos marcosepistemológicos, que nos movem a rever aspráticas, ou projetar modelos sociais e marcosnormativos, sem que isto suponha a supressãodas contribuições que nos oferecem as ciênciassociais.

É impossível, quando se vive em contactocom essa realidade não se ver atingida por ela epor isso admitimos que a nossa visão esteja nanossa mente com os nomes, os rostos e ashistórias de vida que escutamos a cada dia. Isto,como não pode deixar de ser, faz com que a nossavisão seja parcial enquanto nos referimos

Optar por umaúnica medida

legal poria emcausa a

universalidadeda justiça

A voz dasmulheres, chave

para definir anossa posição na

realidade

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unicamente às mulheres conhecidas e não a todoo coletivo, e posicionadas pela mística que nosaproxima a elas. Isto leva-nos a não ser dogmá-ticas nos planos, a respeitar e aceitar que possamdar-se outros, com os quais, além do desenho,temos também pontos em comum.

3. Interpelações éticas a partir das mulheres.

Se o eco da tua voz se enfraquece, pereceremos.(Paul Éluard)

No presente capítulo queremos realçar asinterpelações que as mulheres que exercemprostituição e são vítimas do tráfico humano paraa exploração sexual nos fazem, expressadas nosseus próprios gritos e esperanças. Em coerênciacom o nosso planeamento, cedemos este espaçopara que sejam as mulheres, na primeira pessoa,que nos ofereçam uma lição magistral do quesupõe o exercício da prostituição e o contexto noque se realiza.

Na consulta que realizamos em 15 países anível congregacional (2009-2012) às mulheresque exerciam prostituição e eram vítimas dotráfico humano para a exploração sexual,recolheram-se aquelas situações que expressamas mulheres na forma de gritos, ou seja, clamorescarregados de sentido que solicitam ser ouvidos,compreendidos, assumidos e reproduzidos.

É interessante destacar que esta categoria de“grito” não é muito habitual no âmbito dainvestigação social, por isso, neste Estudo Con-gregacional, queremos tomar este termo, pois,

A nossa visão da realidade será sempre parcial e posicionada.

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longe de apresentar “opiniões”, optamos porindagar sobre situações vitais, que não podem ser“comentadas” como mero objeto de uma in-vestigação. Os gritos, tão audazes como intensos,provêm de mulheres portadoras de direitos; eentendemos que os direitos, quando são tãobrutalmente violados, não se sussurram, não secomentam, não se opina sobre eles... Só se gritam.

3.1. A visível invisibilidade: “querem que nos escondamos para pensar que não existimos”

Na apresentação que Soledad Becerril,Defensora do Povo, faz no relatório sobre o tráficohumano em 2012, expressa que “as vítimas destaescravidão são difíceis de reconhecer, masencontram-se muito perto de nós, mas por temor,por sentir vergonha de uma situação ou por sermuito duro reviver as circunstâncias nas que seencontram, não querem falar do problema. Sãovítimas invisíveis”.

O termo visibilidade faz referência àcapacidade das pessoas de “fazer visível” o queaparenta estar oculto, ou aquilo que não quer servisto, percebido ou conhecido pela sociedade. Osgritos das próprias mulheres permitem-nosconhecer as situações que sofrem diariamente eevita que nosso olhar se acostume a olhá-las semas ver, sem lhes prestar atenção, e descobrir quecomo nós, são sujeitos de direitos e obrigações einterpelam a nossa forma de como pensamos e asdefinimos.

“As pessoas pensam que estamos aquiporque queremos (...) não pensam de nós nadade bom (...) querem-nos longe, não nos querem,

As interpelaçõesdas mulheresrequerem ser

ouvidas,

compreendidas eassumidas e

exigem resposta

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as pessoas (...) não somos do seu interesse, falammuito de nós pelo que veem na televisão que ésempre mau”. “Isto não é nada fácil, é uma dormuito grande que a sociedade não nos veja comopessoas, mas como máquinas de sexo”. “Euquero ter direitos e não sentir-me menos queoutras pessoas”.

De uma visibilidade exigida a umainvisibilidade desejada. “que não saiba a minhamãe nem o meu filho; não sabem o que eu faço, enão tenho outro meio para alimentá-los...”“Desde o primeiro momento que se começa naprostituição, a pessoa começa a fazer umprograma de vida como uma mentira, tem deescondê-lo à família, aos amigos, a todos. Écomo se não existisses”. “O meu marido sim, sabeda minha vida e está-me sempre a lembrá-lo,mas ele vive disso e não faz nada”. “Os clientestambém têm medo de ser reconhecidos e pedem-nos que não os reconheçamos”.

A depressão começa a fazer-se sentir:“Nestes momentos não vou ao hospital porquenão me quero curar, pois sei que a minha vidanão vale nada”. “Estou a tremer de frio e decansaço, estou neste lugar desde as seis horas damanhã e não consegui os 25 euros para pagar ohotel”. “Aqui perdes não só o ritmo de vidanormal, mas o sentido; o ciclo é trocado, dormesquando as pessoas estão acordadas e vivesquando as pessoas dormem, assim tornas-teinvisível”.

“Quando queres deixar a prostituição voltasnovamente porque te sentes fragilizada, é comose ficas a dar voltas num círculo fechado quevoltas sempre ao mesmo lugar (...)” “Que os

Em algumas ocasiões pede-se invisibilidade

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clientes te toquem o corpo, é um vazio e naverdade é muito doloroso e dói mais ainda pornão poderes expressá-lo”. “A prostituição é umamoeda de duas caras, mas as pessoas nãoquerem ver a outra cara”. “Por que é que aspessoas nos julgam, mas não nos oferecemnenhuma alternativa? Não crê que é injusto? Euquero deixar isto. Colo papéis nos postes esemáforos, mas nada. Quem me oferece umtrabalho?”

“Desci de um avião com milhares de sonhosque ficaram encerrados durante dois anos naúnica rua da Itália que conheci; lá tive que meprostituir para pagar a dívida. Quanta solidão!As pessoas passam, mas não te veem e o únicoolhar permanente é o do homem que me controladesde a janela do bar. Dizem que soutestemunha protegida, mas ninguém pode fazer-te invisível nem proteger-te do teu própriomedo: mesmo querendo passar despercebida,sentes sempre os olhos de alguém que pensas quete está a seguir. Diz o M. que com o tempoacabamos por nos habituar...”

“O facto de ser uma mulher que trabalha naprostituição, é motivo para nos condenar asuportar os maus tratos deles...”

Nas palavras das mulheres, fica remarcada avulnerabilidade dos seus direitos e a falta deoportunidades; a questão de género como aspetofortemente discriminador numa estrutura socialpatriarcal e como a prostituição está associada aoutras problemáticas que implicam as mulheres,as situações de começo e ocultação daprostituição, as consequências físicas, os seus

Deixar aprostituição

pode ser muitodifícil

A prostituiçãosupõe

vulnerabilizaçãode direitos e

falta deoportunidades

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anseios de sair da prostituição e as necessidadeseconómicas de que padecem.

3.2. Eu te reivindico, sociedade!Os gritos de denúncia pretendem manifestar

uma situação de injustiça que as mulheressofrem. São situações de múltiplos ataques à suadignidade. São gritos que buscam um eco e anecessidade de mostrar sistemas de corrupção eestruturas sociais que atentam contra os seusdireitos e por sua vez as fazem vítimas.

Desde realidades marcadas pela pobreza, asmulheres denunciam a natureza da prostituição.“Nos pequenos povoados onde há fome enecessidade, as filhas são mandadas ao trabalhosexual... Por isso, o trabalho sexual é uma opçãode trabalho quando não há outro. Nos mesmospovoados alguns nadam em riqueza sem ter feitonada, enquanto outras temos que dedicar-nos aisto. Ninguém vai pôr a mão?”.

“Como é possível que não haja mínimospara todos e que a riqueza esteja tão malrepartida? Somos pessoas, não objetos sexuais.Temos direitos”.

“Que não sejamos maltratadas e nosmarquem por exercer ou por ter exercido aprostituição; há muita humilhação, rejeição, dore algumas chegam a suicidar-se”. “Estamostodos os dias com pessoas diferentes e nãosabemos o que nos acontecerá, muitas vezes nãosabia se sairia de lá viva... é uma sensaçãohorrível e a isto chamam de trabalho fácil”. “Eusinto medo, não se pode viver assim”.

As denúncias provocam por momentos a indignação das mulheres.

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Somos interpeladas como sociedade epedem-nos uma participação naquelas questõesque lhes convêm. “A nível geral, supostamentesão tomados acordos legais, sempre sem sermosconsultadas, sem nos ouvirem, e marcam datascomemorativas para acabar com a violência namulher, mas só acontece uma semana antes euma semana depois da data... assim a vidasegue como sempre, aborreces-te (sic) econtinuamos a aguentar”.

”Precisamos de mais segurança; onde estou,a escuridão faz-se presente e estou só”. “Só umavez a mulher dum cliente encontrou-nos e bateu-nos. Não sofri os golpes, sofri a sua dor”.

“Os governos deveriam apoiar mais asmães solteiras, pois para elas, sozinhas, é muitodifícil a vida... Onde estão os pais, pois os filhossão dos dois”.

Não se pode expressar melhor o que significao estigma: “É uma vida triste e suja por mais quenos lavemos, no nosso íntimo sentimos queestamos sujas; é uma nódoa sempre”. “Diante dador de ser mulher, pior ainda ser prostituta,parece que a única solução é calar”. “Aprostituição existe porque há quem a procura:os homens”. “Quero ser ouvida e tratada melhor,ser vista como uma mulher normal”.

Na medida em que as mulheres se sentemmais fortes, o nível de denúncia cresce: “Exijorespeito por parte dos donos e donas dosnegócios e dos clientes; estou cansada deaguentar e no final têm que ver que sou eu quelhes pago”. Alguns vizinhos faziam-mechantagem; diziam que se não me deitava comeles, diriam à minha família qual era o meu

A prostituiçãoestá

estigmatizada

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trabalho. No início fiquei com medo, pois afamília não sabe àquilo a que me dedico. “Depoisameacei-os, que contava às suas mulheres, eassim assunto encerrado”. “Que estamos aquiporque queremos? Ninguém quer estar aqui,pergunta a qualquer uma e elas o dirão”.

“Somos as putas (sic) do povoado esomos tratadas com desprezo; não sabem quemuitas vezes o fazes por necessidade e não podesou não sabes fazer outra coisa; nós somos, aqui,o último”. “Na sociedade sinto-me marcada,criticada, isolada por eles e pela minha família eisto também é violência”.

Quando as mulheres se referem às forças desegurança, revelam por um lado como sãovitimadas: "A polícia não acredita em nós, dizque nós o procuramos por ser prostitutas”. “Apolícia está sempre atrás de nós. Quando fazema ronda, fico muito indignada, pois sinto quesomos varridas até nos amontoarem, comoquando se varre o lixo, e pergunto-me: Por quetemos que aguentar isto? Ninguém pode pararisto? Que nos deixem em paz e deixem de sercobradas multas injustas”. “No final de tudocontinuamos a ser violentadas pela polícia,instituição, sociedade e por mesmas”.

Em relação à justiça: “Para os juízes a nossapalavra não conta, não tentam compreender-nos”. “Para as autoridades somos pessoas semvalor”. “Não temos proteção; isso é o queacontece; a polícia nunca está do nosso lado”.“Os governos não se fixam em nós para poderajudar-nos. Nem se questionam porque estamosneste trabalho; as autoridades não seaproximam a ajudar e pela falta de documentos

A sociedade assinala a mulher que exerce a prostituição

A justiça não valoriza a mulher que exerce prostituição

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não podemos pedir ajuda”. “Há assédio dasociedade e das autoridades, somos perseguidascomo se fôssemos delinquentes, proxenetas,mafiosas, traficantes”.

3.3. Desde o fundo... Socorro, socorro, socorro;grito e ninguém me escuta.

Mostram-nos os seus sentimentos maisprofundos, onde se percebe, além da suafragilidade, a sua capacidade de resiliência.

“No trabalho temos que aguentar os olharesdas pessoas e, precisamente, não nos olhos. Porque não nos olham nos olhos? De que têmmedo?”. “Temos que calar, o que muito nos dóinão poder gritar, aos quatro ventos como somosmaltratadas e difamadas”.

A convicção e a certeza da sua dignidade levaas mulheres a ter a certeza: “Vou sair, tenho quesair, pois isto não é vida para mim, nem para osmeus filhos”. “Quero reconstruir de novo aminha vida”. “Procuro trabalho noutras coisas:vendo cosméticos, procuro a vida, assim, o factode me sentir mal... posso vê-lo menos”.” O meuirmão era alcoólico, conheceu uma mulher davida, ela tirou-o do vício e já não bebe; e dizemque não somos boas e solidárias”. “Já não querocontinuar nos bares, desejo trabalhar noutrascoisas....”

Nestes sentimentos que brotam desde o maisprofundo, aparece a experiência de um Deuspróximo, atento à escuta, próximo das suas vidas,atento às suas reclamações... “Perguntei a Deus:Até quando estes sofrimentos Senhor”?“Continuo a pedir a Deus que me proteja de

A mulher queexerce

prostituiçãoexperimenta a

existência deum Deuspróximo

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clientes violentos”. “Todos os dias de manhãquando faço a minha oração, peço por todas asminhas colegas e peço-lhe que as minhascrianças tenham um bom futuro, não como eu”.

Existe uma convicção: “Deus escuta-nos,tenho certeza”. “Senti que Deus estava próximo,que me dava muita força, mesmo que nemsempre tenha constatado a sua presença”. “Eunão posso falar com Deus se estou no prostíbulo:sei que está presente e parece-me uma falta derespeito”. “Quando vou à rua, as minhaslágrimas não são de água, são de sangue; choroe peço a Deus que me ajude”.

Também nos falam da fé, das buscasreligiosas e a relação com um Deus que estápresente nas suas vidas quotidianas e nos seusprojetos de vida, lugares habituais onde seexpressa a dimensão espiritual das pessoas.

3.4. Mesmas situações, outras perspetivas...Que se deixe de lado a dupla moral e se

reconheça como trabalho... Por que não respeitara minha liberdade?

“Nuca me violentaram, nem a nível físiconem moral. Tem que se fazer respeitar”. “Omelhor que pode acontecer é a legalização daprostituição para uma melhor qualidade de vidadas prostitutas com direitos e deveres”. “Vejo-ocomo um trabalho normal; tenho da parte damanhã outro serviço, mas continuo aqui”.“Ganha-se dinheiro mais rápido e mais do quenuma casa de família”. “E a satisfação sexual ealegria que sentes quando te pagam e quando

Algumas mulheresexercem prostiruição como mais um trabalho

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alguém me dá alguma coisa em troca e isso meajuda”.

Falam-nos também da satisfação que lhes dáo exercício da prostituição porque “ajuda-me amanter-me vaidosa”, e ao mesmo tempo destaca-se o exercício da prostituição como uma eleiçãode vida. “Poder trabalhar na prostituição por umtempo. É uma solução frente à falta deemprego”. “Só exerço prostituição quandopreciso”. “Hoje sou uma nova mulher, aprendimuitas coisas boas nesta vida”. “Vejo quealgumas mulheres se prostituem como eu e sãovalorizadas, têm ocupado outros espaços”.

Em relação a pedidos de direitostrabalhistas, os gritos de reivindicação dasmulheres são categóricos quando solicitamigualdade e normalização: “Os planos de casasque nos davam eram para mulheres emexercício da prostituição e não queremos umbairro para nós só, mas uma casa comoqualquer outra pessoa e família”. “Estarasseguradas no trabalho; que os donos se façamresponsáveis de uma pessoa em momentosdifíceis”. “Justiça e direitos, que a associação demeretrizes defenda os nossos direitos”.

Destaca-se a legalização da prostituição:“Tem que ser legalizada. Penso que os clientesnos tratariam melhor, porque agora pensamque somos objetos e pessoas sem sentimentos. Sea legalizam, poderíamos ter condições detrabalho e quando chegássemos a idosasteríamos direito a uma pensão.” “Que sejaconsiderado como trabalho, não como umtrabalho fácil, que não é, mas outros trabalhostambém não são fáceis”. “Deveria estar

Reivindicam-sedireitos para a

mulher queexerce

prostituição

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legalizada a prostituição em locais e condiçõespara isso, tendo as mulheres e clubes as suasobrigações e direitos: seguros, reforma esalários dignos”. “Esta seria uma forma detrabalhar mais segura”.

Os direitos que pedimos referem-se a “que obanco de previsão social nos facilite poderfornecer dados de que somos trabalhadorasautónomas, mas que não apareça a palavraprostituta na reforma”. “Graças à prostituiçãotenho começado o curso de medicina, agora nãopreciso de nada”. “Tenho poucas lembrançasnegativas, saí sempre bem. Sempre mevalorizei”.

Sublinha-se que “é um trabalho com o qualse consegue dinheiro e sempre o tenho quandome faz falta”. “Ajuda a manter a família emesmo com tudo isto que supõe exercê-la, querogarantias de saúde e higiene”. Pelo menos podescomer e dar também aos teus filhos”.

Como conclusão deste capítulo, podemosdizer que se nos remontarmos às origens da nossaCongregação, a obra iniciada por José MariaBenito Serra e Antonia Maria de Oviedo faz agora150 anos, podemos descobrir que os seusdiscernimentos surgiram de uma sentidaobservação e escuta de clamores. Lamentos quetocaram as suas entranhas e desencadearam umaprofunda resposta misericordiosa pessoal paraacompanhar as mulheres na tarefa de recuperaros direitos arrebatados por uma sociedade queexclui.

Hoje, o mesmo que naquela época,continuam-nos a chegar as vozes de mulheres detodas as partes do mundo. A nossa tarefa é

Há que escutar e observar o clamor das mulheres

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recolhê-las, abrir-nos às suas interpelações etratar de compreender os seus desejos eesperanças, para reconhecer nesta experiência, aoportunidade da graça, (kairós) de que Deuspassa pelas suas vidas e pela nossa.

4. Algumas chaves para a interpretação“Pensar sem comprometer-se é inútil e

comprometer-se sem pensar é perigoso”. (Natividad de la Red)

4.1. Desde a perspetiva dos direitos humanosAdela Cortina lembra-nos que, ainda que

algumas legislações se inspirem neles, os direitoshumanos são exigências éticas, não mandadoslegais. A sua condição ética tem um caráter deexigência para todas as pessoas e conservam o seualento profético, e desde aí o seu caráter deprotesto e indignação.

Quando boa parte da humanidade não acedede forma sistemática ao seu pleno exercício (asinterpelações que nos fazem as mulheres são boaprova disso), devemos refletir sobre a definiçãodos direitos humanos e sobre tudo aquilo queimpede o “direito a ter direitos”.

Em Espanha temos uma Constituiçãodemocrática que se baseia em alguns valoresiniciais: que todos os seres humanos, não só oespanhol tem direitos: civis, políticos,económicos, sociais e culturais. A todos elesteríamos que acrescentar o direito a viver em paze num ambiente saudável, sem contaminação esem barulho.

Os direitoshumanos são

uma exigênciaética para todas

as pessoas

Há que reflectirsobre aquilo queimpede o acesso

aos direitoshumanos a

algumas pessoas

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Causa vergonha constatar que, mesmo tendoos espanhóis reconhecido estes direitos e tendo-se comprometido com eles, a lógica de ummercado que declara essencial o crescimentoeconómico por cima das pessoas e do bemcomum, unido à cultura da satisfação pessoal e“salve-se quem puder”, está a gerar injustiça e aexpulsar da sociedade os “excedentes humanos”.Se todos continuam a reconhecer estes direitos ese compromentem com as pessoas vítimas dosistema, estão a tempo de reconduzir a situação.

Devemos introduzir a ética e o olhar crítico àsinstituições que não cumprem bem suasfunções...

Debater não só a reorientação da nossaatuação coletiva, mas de como fazê-lo.Demonstrar que não só se trata de opçõesrealistas e possíveis, mas ainda que são muitomelhores para o progresso da sociedade do queaquelas baseadas noutros objetivos distanciadosdas necessidades das pessoas.

4.2. Direitos das mulheres e ética concretaEm relação aos direitos humanos das

mulheres, o professor Marciano Vidal propõe doiscritérios básicos para iluminar o discurso éticodas situações onde estão implicadas diretamente:a dignidade pessoal da mulher e a sua igualdade(enquanto sujeito de direitos) com o homem. Estadupla afirmação leva-nos a duas implicações:reivindicação ética da igualdade, que comportaautonomia e reciprocidade entre pessoas iguais, adenúncia ética das desigualdades e asdiscriminações. Hoje, como ao longo da história,

É preciso retificar a história e devolver às pessoas excluídas o que por direito lhes corresponde

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as principais fontes discriminatórias continuam aser a raça, o sexo e a classe social.

Os movimentos feministas têm tido um papelmuito importante na visibilidade da situação demarginalização generalizada das mulheres noexercício dos direitos humanos, como um reflexoda desigualdade de género e da hegemoniamasculina dominante. Mas a igualdade moral,política e jurídica entre os géneros não implicadesconhecer as diferenças biológicas para atendercom equidade às diversas necessidades. As dife-renças orgânico-corporais implicam uma dis-tinção do trato em assuntos como os direitossexuais e de reprodução.

A construção social dos géneros pode darlugar a uma multiplicidade de formas deconvivência familiar, social e conjugal, masnenhuma destas formas de relação pode estarmantida na violência nem na imposição pela forçade um género sobre outro. A prostituição forçadae o tráfico humano com fins de exploração sexualsão os expoentes mais claros da violência que seexerce sobre as mulheres e um ataque sistemáticoaos direitos fundamentais.

A ética cristã, em palavras de Marciano Vidal“tem de decantar-se a favor de um feminismoradical de libertação integral; um feminismo ondea emancipação das mulheres caminhe articulandoa libertação de outras alienações e marginaliza-ções que sofrem os seres humanos, e mais aindaos mais fragilizados”.

Perante adesigualdadeimpõem-se a

reivindicaçãoética e a

denúnica

As diferençasorgânico-corporais

implicam umadistinção de

trato

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4.3. Um olhar antropológicoA importância deste olhar é que se trata de

um olhar autocrítico que tem em conta aspessoas, que é responsável e que se comprometecom a transformação da realidade e a abordagemdas problemáticas sociais.

Ter este olhar implica tentar deixar de lado ospróprios preconceitos sobre o fenómeno e tratarde o ver desde os olhos das mulheres. Um olharque exige colocar-se no seu lugar e desde aquiexpor a intervenção social. Para isso não hámelhor via que conviver e sentir o mais e omelhor possível.

É a atitude que conta. Colocar-se na situaçãoexistencial das mulheres, de compreender o seuestado emocional, tomar consciência íntima dosseus sentimentos, entrar na sua experiência,deixar que os seus sofrimentos e as suasesperanças toquem as nossas entranhas parapoder assumir a sua situação, é esquecer-se nomomento de si mesmo e caminhar com o calçadodo outro durante um pedaço de caminho.

Neste olhar antropológico não podemos darcertezas de nada. É necessário perguntarmo-nospor que existe a prostituição e por que é quenestes momentos acontece assim e não de outrafora e a que interesses serve.

Ter em consideração o fenómeno, não comoum feito isolado, mas em relação ao contexto emque o mesmo se movimenta. Passar da ideia deque a prostituição é um feito individual aconcebê-lo como um fenómeno social que nosatinge, a toda a sociedade.

Há que deixar de lado os preconceitos e ver através dos olhos das mulheres

Porque é que existe prostituiçãoe porquê desta maneira?

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Este olhar crítico, que começa por umasensibilidade que nos permite perceber o queacontece, precisa da contribuição das ciênciassociais para poder interpretar além do que vemose planificar uma adequada intervenção.

4.4. Uma abordagem de géneroO tratamento da prostituição não pode

realizar-se sem uma análise desde a perspectivade género. Os dados que são trabalhados sobre aprostituição indicam que esta é exercida de umaforma na sua impressionante maioria pormulheres e crianças, enquanto que osconsumidores da prostituição são na sua maioriahomens.

Para compreender a dimensão ética dacorporeidade, temos de fazer uma distinção entresexo e género. A diferença biológico-corporalentre homens e mulheres corresponde ao sexo. Ogénero, por sua vez, é construído por traçospsicológicos e sociais que determinam formas deconduta a cada sexo. Aprendemos a comportar-nos como homens ou como mulheres na vidasocial, distinguimos que tipo de atividades eatitudes são “próprios” de cada sexo. E assim têmsurgido os estereótipos.

A equidade de género é um princípio éticofundamental, pelo qual a opressão e exploraçãodo sexo feminino pelo masculino sãoinadmissíveis e exige a denúncia de toda a ideiaou ação que considere as mulheres inferiores elhes negue os seus direitos básicos de igualdadede oportunidades, ou que tente usá-las comosimples meios para algum fim sem o seu

A sensibilidade éo primeiro passo

paracompreender a

realidade

A dimensão éticada corporeidadeexige diferenciar

entre sexo egénero

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consentimento ou por meio de coação ouviolência. Isto denomina-se machismo. Quandose considera as mulheres incapazes de conduzir-se por si mesmas, inferiores em capacidadesintelectuais ou como se fossem “menores deidade” que devem ser guiadas por homens,inclusive com o pretexto de “protegê-las”,estaríamos falando de sistema patriarcal.

As diferenças biológicas entre os sexosmostram a diversidade e riqueza das pessoas, masnão significa que os homens sejam superiores àsmulheres ou vice-versa. Por isso não se justificade nenhuma forma a desigualdade e a hierarquiaentre os géneros, no sentido moral, jurídico oupolítico.

Conforme isto, a prostituição é umainstituição que serve à manutenção da atualordem de género. Todo o sistema patriarcalconfirma-se, estabiliza-se e naturaliza-se atravésda produção e reprodução desta prática queainda, não sendo a única, pode-se considerar asua importância pela quantidade de elementosque são conjugados.

4.4.1. O Estigma

Em sociologia, estigma é uma condição,atributo, traço ou comportamento que faz comque o seu portador seja incluído numa categoriasocial cujos membros se generalizam numaresposta negativa e são vistos como culturalmenteinaceitáveis ou inferiores.

O sociólogo estadunidense Irving Goffman,na sua obra “Estigma: A identidade deteriorada”reflete sobre as situações quotidianas do

Fazer justiça é respeitar as diferenças

A igualdade de género é um princípio ético fundamental

O corpo da mulher como espaço de libertação e não como objecto de exploração e violência

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indivíduo, sempre próximas pelos sistemas deestigmatização social e de inclusão. Enfatiza ofacto de que a relação de estigma se estabeleceentre um indivíduo e um grupo com um conjuntode expectativas, pelo qual cada um deles joga àvez de estigmatizador e estigmatizado.

A prostituta é o protótipo da mulherestigmatizada. É nomeada e por sua vez édesonrada com o apelativo “puta” (sic). O estigmapersiste nas sociedades atuais. Somos tolerantesno social da prostituição, inclusive podemosassociá-la aos ambientes de ócio, mas não somosassim sobre a mulher que a exerce que continua aser catalogada como “puta”, com caráter dedesprezo, negativo e humilhante.

Dolores Juliano, referindo-se ao estigma,define-o como uma marca ou sinal sobre umgrupo. O estigma é socialmente construído ecumpre uma função social diferenciando entre asmulheres boas e as más, sancionando assegundas. Leva, como temos visto nasinterpelações, uma forte carga, chegandoinclusive ao sentimento de culpa e à necessidadede ocultar a sua atividade, o que lhes supõe umavida dupla. E por último, é dentro do exercício daprostituição o elemento que gera maiorsofrimento e o mais difícil de superar, porqueperdura no tempo, inclusive depois de terabandonado a atividade. O exercício tem-seencarnado nelas de tal modo que se constitui umenorme desafio: voltar a si mesmas e à dignidadeinerente a todo ser humano.

Desde a perspetiva das pessoas queestigmatizam, a estigmatização provoca a suadesumanização, ameaça e aversão ao outro e a

O estigma gerasofrimento e é

difícil de superarporque perdura

no tempo

O estigma afetatanto as pessoas

e gruposestigmatizados

como aosestigmatizadores

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despersonalização dos demais através decaricaturas estereotipadas.

4.4.2. Questões de linguagem

Esta estigmatização repercute-se perfeitamentena linguagem. Basta que façamos uma passagempelos piores insultos dirigidos tanto a mulherescomo a homens, referindo-se à sua mãe, parapoder captar a situação e ao que nos fica se naverdade queremos erradicar esta linguagem etodo o seu conteúdo estigmatizante.

A linguagem tem uma grande importânciaporque entendemos que determina a visão domundo, que possui uma coletividade e por isso,estrutura a percepção da realidade e influenciapoderosamente as atitudes e o comportamento.

Ao longo da história da nossa Congregação, alinguagem tem ido evoluindo e adaptando-se àsnovas realidades. Desde o termo “mulheresmarginalizadas”, passando por “mulheresprostituídas”, “em contexto de prostituição”, “emsituação de prostituição”, “mulheres que exercemprostituição”.

Parece-nos que, neste momento, a deno-minação que melhor reflete a nossa percepção darealidade, as nossas atitudes e o nosso modelo deintervenção é o de “mulheres que exercemprostituição”, se bem na linguagem habitual paranos referirmos a elas utilizamos unicamente otermo “mulheres” e como se pode ver, utiliza-seem vários momentos deste caderno. Isto situa-nos, a nós e a elas, num plano de igualdade.

“Que exercem prostituição”. Esta maneiradiferencia a pessoa da atividade que desenvolve; é

A linguagem não é ingénua, expressa a visão da realidade e influencia as atitudes

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ampla e nela cabem todas as mulheres comindependência do tipo de prostituição queestejam no exercício. A não utilizar o termomulheres prostituídas é, em consideração àsmulheres, sujeitos ativos de direitos e deveres eno passivo, com capacidade para assumir oprotagonismo da sua vida. Por esta mesma razão,a palavra vítima é utilizada unicamente, nos casosde tráfico humano e de exploração sexual quandosão consideradas vítimas de crimes.

4.5. Um olhar crente

Olhar a realidade da prostituição forçada e otráfico humano de mulheres para a exploraçãosexual com os olhos de Deus produz doissentimentos fundamentais: compaixão diante detanto sofrimento e indignação pela injustiçaevitável de alguns seres humanos para outros.

Nos reiterados e sangrentos episódios que asvítimas destes delitos se veem obrigadas aprotagonizar e sofrer, descobre-se um ataquesistemático ao projeto que Deus tem sonhadosobre as pessoas, o mundo e a história humana.

A dignidade do homem e da mulher tem a suaraiz no desígnio criador de Deus: “a imagem deDeus os criou, homem e mulher os criou” (Gn.1,27). O mais elementar sentido de igualdade esolidariedade exige reconhecer o outro comopessoa, superando toda a tentação de convertê-loem objeto com o qual satisfaz os própriosinteresses individuais e egoístas.

“ Mulheres queexercem

prostituição”reflete a nossa

perceção, asnossas atitudes e

aforma deintervir

A prostituiçãoforçada e o

tráfico humanocom fins deexploração

sexual é umataque

sistemático aoprojeto de Deus

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Este princípio da dignidade humana alcança asua culminação em Jesus que o expressa numnovo paradigma: a igual dignidade entre homense mulheres numa sociedade patriarcal, a judeo-palestiniana, que comparte com as outrassociedades do Mediterrâneo e do PróximoOriente antigos, os valores e pautas fundamentaisde conduta correta que caracterizam este tipo demoral patriarcal.

Seria anacrónico apresentar Jesus como umprecursor do feminismo, comprometido na lutapara conseguir a igualdade de direitos do homeme da mulher. Não obstante, a sua fé no reino deDeus e a sua defesa dos últimos, levou-o a colocarem crise os costumes, as tradições e as práticasque oprimiam as mulheres naquela sociedade.

É no encontro entre Jesus e uma mulher commaneiras de prostituta, no que se sublinha comodiante da atitude “pouco decente”que Jesus, emvez de a recusar, acolheu-a com gosto e defendeu-a de umas testemunhas indignadas. O caráterescandaloso do episódio deriva do desprezo que amoral patriarcal alenta para com a prostituta epara o estereótipo da mulher que se comportacomo ela. Entender a função que esta forma derecusa tem no funcionamento do sistemapatriarca permita captar o significado contra-cultural e integrador da atitude de Jesus.

Jesus foi criando na sua consciência umprojeto absolutamente original. A irrupção dacompaixão de Deus no mundo, a dignidade dosúltimos como meta, a consciência da sua missãoque cura e a oferta de perdão, provocaram umgrande escândalo e hostilidade para com Jesusdurante a sua atividade na Galileia.

O novo paradigma de Jesús: a igual dignidade entre homens e mulheres

“Eu não te condeno, vai em paz. Mulher, a tuafé te salvou.”

A compaixão é umprincipio de ação que desafía os esquemas convencionais

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De acordo com este projeto, a primeira tarefados seguidores de Jesus não é celebrar cultos,elaborar teologia, pregar moral, mas curar,libertar do mal, tirar da depressão, sarar asociedade, ajudar a viver de maneira saudável.Esse programa terapêutico é o caminho do Reinode Deus.

Bastaria introduzir esta dimensão de Jesusque cura na Igreja, para que tudo mudasse: aliturgia, a teologia, a ação pastoral. Algumascoisas cairiam, outras seriam transformadas,muitas seriam canalizadas de forma maisevangélica. Assim se cumpriria o sonho de Jesus:comunidades que curam no meio da sociedade,marca do Deus “amigo da vida”.

Como o fez Jesus, a análise ética do tráfico demulheres faz-nos ir contra corrente. O modelo deser que gera o “pensamento materialista eeconomicista” que domina na nossa cultura põeem evidência que quando a pessoa não éreconhecida e amada na sua dignidade, ficaexposta às formas mais aberrantes e humilhantesde instrumentalização e de exploração. Paulo VIno seu discurso à Federação AbolicionistaInternacional (FAI) em 1966, já tinha qualificadoeste tráfico como “indigno comércio que com todarazão pode considerar-se como a forma maisdegradante da escravidão moderna e vergonha dasociedade”.

Os princípios permanentes da doutrina socialda Igreja: a dignidade da pessoa humana (que emqualquer outro princípio e conteúdo encontramfundamentação), o bem comum, asubsidiariedade e a solidariedade brotam doencontro com a mensagem evangélica e suas

A missão dosseguidores deJesús é curar,

libertar, sarar asociedade e

ajudar a viverdignamente

O sonho de Jesusé fonte de

transformaçãosocial e eclesial

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exigências compreendidas no mandamentosupremo do amor a Deus e ao próximo, e najustiça.

O papa Francisco define o tráfico de pessoascom “um crime contra a humanidade, umaverdadeira forma de escravidão que se estendepor todos os países e que atinge as pessoas maisvulneráveis da sociedade: a mulheres e jovens,crianças, pessoas com deficiências, aos maispobres”.

Faz uma chamada desde o princípio desubsidiariedade e solidariedade, dizendo que“juntos podemos e devemos comprometer-nos apor fim a este horrível comércio. Precisa-se deuma tomada de responsabilidade comum e deuma vontade política mais decidida paraconseguir vencer este problema.Responsabilidade para quem tem sido vítima dotráfico de pessoas, para tutelar os seus direitos,para assegurar a sua incolumidade e a dos seusfamiliares, impedir que os corruptos e oscriminosos fujam da justiça e tenham a últimapalavra sobre as pessoas. Uma intervençãolegislativa adequada nos países de origem, detrânsito e de chegada, também com a finalidadede facilitar a emigração regular, pode reduzir oproblema”.

4.6. Um olhar desde o carisma Oblata

O carisma que temos recebido responsabiliza-nos historicamente de uma proclamação: a doEvangelho, que é humanização e libertação paraas mulheres que exercem a prostituição. Estatarefa passa pelo encontro com a realidade

O mandamento doamor e da justiça são a origen da luta contra a prostituição e o tráfico humano

O novo paradigma eclesial consiste em suprimir o sofrimento humano e reduzir as fronteiras da pobreza

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cultural e pelo empenho de nos introduzir nummodo de viver: o que faz transparente a missão deproclamar a dignidade das mulheres e o amor deDeus para elas. É fundamental para nóstransmitir a mensagem da Redenção.Expressamo-lo em acolhimento, misericórdia eirmandade universal.

Isto constitui o paradigma onde se concentraa vida da Oblata. “A nossa espiritualidadeconsiste em caminhar sob as pegadas de Jesus,olharmo-nos nos exemplos e ações da sua vida efazermo-nos em tudo semelhantes a Ele”. Coloca-nos a olhar para o projeto que Deus tem para ahumanidade e de maneira especial para asmulheres para quem somos enviadas; faz-nosdescobrir que elas são a nossa razão de ser nomundo e na Igreja, o nosso espaço vital esacramento e move-nos para oferecer umaresposta na que, como diz Dietrich Bonhoeffer noseu ensaio “A Igreja e a questão judia”: “Não nospreocupemos só com as vítimas da máquina detortura, mas temos que chegar a parar amáquina... Só o que levanta a sua voz em favordos judeus (poderíamos dizer em favor dasmulheres) pode entoar cânticos gregorianos”.

Por isso, é nosso trabalho abordar o tema docorpo das mulheres numa espiritualidade nova.Reivindicamos o corpo da mulher como espaço delibertação e não como objeto de exploração eviolência. Denunciamos a dupla moral quedurante séculos condenou e continua a condenaro corpo e a sexualidade feminina, negando-ascomo espaço gozoso do encontro entre o humanoe o sagrado.

A proclamaçãodo Evamgelho éhumanização e

libertação

Deus tem umprojeto

libertador

O corpo e asexualidade

femenina sãoespaços delibertação

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Afirmamos que este projeto libertador, numasociedade marcada pelo neoliberalismo e aglobalização onde as novas e grandes pobrezasatingem de maneira especial as mulheres, éresponsabilidade de todos e todas. A famíliaOblata participa nele compartilhando a boanotícia de Jesus com as mulheres desde atitudesde compaixão, justiça, gratuidade e esperança.

Esta mística traduz-se em aplicações práticasque, como veremos adiante podem sercompartilhadas por qualquer pessoa eorganização que se sinta interpelada por estarealidade. No projeto no qual trabalho temos emconta os seguintes critérios: partir da realidadeprescindindo de ideias preconcebidas e com umaatitude de alerta para descobrir as mudanças quevão acontecendo e poder oferecer respostasadequadas. Neste conhecimento é imprescindívelescutar as mulheres e fazer nossa a sua tristeza ea sua angústia, a sua alegria e a sua esperança.

Aplicar uma perspetiva de género que tenhaem consideração a inter-culturalidade e ocaráter inter-religioso que apresentam asmulheres.

As mulheres como sujeitos: a atenção éintegral, abarcando todas as áreas epossibilitando o empoderamento tanto noplano individual como no coletivo. Queadquiram confiança em si mesmas, que sejamassertivas, que consigam fortaleza espiritual,política, social, económica para dar umimpulso a mudanças positivas das situaçõesnas quais vivem, que tomem decisões e, emdefinitivo que ajam como sujeitos de direitos.

Realizar um projeto libertador é responsabilidade de todas as pessoas

Critérios para a ação

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A nível grupal, criação de grupos de apoioentre elas de forma a motivar o resto para queparticipem na elaboração de propostas e naexecução e avaliação das mesmas, na procurade emprego e numa rede de solidariedade eapoio que continue quando finalize o projeto.

Quanto à forma de intervenção:

O trabalho realiza-se a nível de equipainterdisciplinar, contando com a participaçãodas mulheres na contribuição doconhecimento, geração de ideias, propostas,avaliação das mesmas, etc.

Considerar a intervenção com uma visãoestratégica quanto ao processo que pode seravaliado: assim permite-nos ver as vitórias eavançar.

A normalização e inclusão nos serviços queoferece o bairro, a cidade, nos quais se podemincorporar dada a sua situação de falta dedocumentação, ou melhor, se possuempermissão de residência e trabalho nosserviços que são oferecidos a todo o povo. Deforma nenhuma criar duplicidade de serviços.

Coordenar-se com outras entidades emovimentos de cidadãos, estabelecendolinhas de ação conjunta de sensibilização edenúncia social e participando nosmovimentos.

Atuação permanente. Os projetos e ações sãomarcados em realidades com muitasmudanças e requerem, para conseguir os

Formas deintervenção

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objetivos marcados, a atualização dosconhecimentos e ferramentas para aintervenção. Concretiza-se no compromissoinstitucional e individual, por deixar-seinterpelar pela realidade, fazer esforço deanálise, síntese de aquilo que observamos,discussão e desenvolvimento de processos demelhora contínua em todas as atividades,recursos, ações e procedimentos.Tudo isso desde os nossos valores: dignidade

da pessoa, humanidade, justiça social, defesa dosDireitos Humanos, liberdade, igualdade,solidariedade, empoderamento.

5. Sonhando futuros possíveis

5.1. Sem uma ética mundial não é possível umanova ordem mundial.

O nosso mundo atravessa uma crise dealcance radical que não pode ser contempladaunicamente como uma crise da economiamundial, mas que está intimamente ligada àecologia e à política mundial. Os novos caminhosrequerem novas respostas. Sem uma éticamundial, valores vinculantes, alguns critériosinamovíveis e umas atitudes básicas pessoais nãoé possível uma nova ordem mundial.

Como foi dito na apresentação, todos somosresponsáveis na procura de uma ordem mundialmelhor. Não só temos uma dignidade inviolável edireitos, mas também uma responsabilidadeintransferível das consequências do nosso modode agir ou de deixar de fazê-lo.

Todos somos responsáveis pela procura de uma ordem mundial melhor

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Se de verdade queremos ter uma posturacrítica e comprometida com a realidade global, enela, com a prostituição forçada e a o tráfico demulheres e crianças para a exploração sexual istoé imprescindível:

Que o compromisso com os direitos humanos,com a liberdade, a justiça, a paz e aconservação da Terra, constituam a base éticasobre a qual se assente a vida pessoal e aorganização social.

Uma mudança de mentalidade em cadapessoa e na opinião pública para poder mudaro rumo da história. Nisso jogam um papelprimordial os meios de comunição. Estes têmo poder de reproduzir um discurso alternativoao atual, criar correntes de pensamento econverter-se assim, em agentes desensibilização e transformação social. Asociedade tem direito a uma informação quenão responda a determinados interesses, masque esteja fundada na verdade, na liberdade,na justiça e na solidariedade.

Uma mudança das atuais estruturas: umsistema económico ético que dê prioridade àpessoa e ao bem comum, acima das ganânciase acumulação da riqueza. Uma adequadapolítica na que o Estado e os seus diferentespoderes, o mercado, os movimentos sociais,unidades de convivência, organismospopulares, ONGs, cidadãos, quem for, com assuas competências diferenciadas, participeativamente na transformação das atuaisestruturas geradoras de exclusão.

Cremos queoutro mundo é

possível enecessário

A mudança dementalidade

produz mudançade estruturas

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Pensar que a pluralidade de expor dediferentes tradições religiosas e culturais nãodevem ser obstáculos que nos impeçam detrabalhar de maneira conjunta ativamente,contra quaisquer das formas dediscriminação, exclusão e a favor de umamaior humanização.

A humanidade precisa, ainda, detransformações sociais e ecológicas, recuperara força transformadora que nasce do interiorde cada pessoa e o esforço comum paraconseguir uma ética do consenso com base nodiálogo e o respeito dos outros.

Vivemos em momentos onde o reclame daética parece que está a ficar na moda: a éticaempresarial, a ética ambiental, a ética legal, aengenharia ética, a ética da comunicação, aética do ciberespaço, a bioética, etc.Revitalizar a ética e a moral que tãourgentemente precisamos, leva-nos adescobrir o potencial ético e de solidariedadeque já existe em cada pessoa, nas nossassociedades e grupos para juntos irmosconstruindo um futuro diferente.

5.2. E, entretanto, o quê?“São coisas pequenas. Não acabam com a

pobreza, não nos tiram do subdesenvolvimento,nem socializam os meios de produção e de

mudança... Mas podem desencadear a alegria defazer e traduzi-la em factos”.

(Eduardo Galeano)

Neste trecho vamos sugerir uma série depautas, algumas delas extraídas da proposta de

Reclamamos uma ética do consenso perante uma sociedade fragmentada

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intervenção que estamos a desenvolver nosprojetos de Irmãs Oblatas, expressadaanteriormente, e que entendemos que podem serassumidas por qualquer pessoa ou organizaçãocom convicções éticas.

Em tudo, e tendo em consideração afinalidade deste caderno, queremos exporalgumas perguntas que ajudem à reflexão e queunidas a novos questionamentos que possamsurgir da sua leitura, gerem respostas quesuponham uma implicação ativa, uma mudançade paradigma no qual as mulheres que exercemprostituição e são vítimas do tráfico para aexploração sexual, ocupem o lugar que lhescorresponde na sociedade e na igreja.

As propostas passam por:

Escutar a realidade desde uma atitude ativa,deixando-nos interrogar pelo que observa-mos, ouvimos e recebemos através dainformação que oferecem os meios decomunicação: rádio, jornais, televisão, redessociais, internet... e adotando uma atitudecrítica, capaz de ver além do que aparece.Procurar os porquês da notícia, o conteúdo, aforma como é transmitida.

As mulheres que exercem prostituição einclusive as vítimas do tráfico humano, estãomuito perto de nós. Visíveis e por sua vezinvisíveis. Ocupam espaços públicos e, porvezes, a sua presença gera conflitos. Qual é onosso posicionamento diante deste dilema?Quais as razões que temos para manter anossa postura? Onde a fundamentamos?

Há perguntasque esperam

respostas

Há que escutarpara

compreender

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Aproximar-nos à realidade da prostituição,que não é necessário que seja física, supõeaprender a olhar em todas as direções, tentaradotar uma atitude empática que nos permitaperceber o que sentem as mulheres que aexercem e compreender a sua situação. Estaatitude empática ajuda a desmistificar edesmontar os tópicos que tantos obstáculoscolocam no reconhecimento das mulheresque a exercem como sujeitos de direitos ecidadãs.

É importante ter em conta que o modo comopercebemos o mundo, certamente é subjetivo.A educação que recebemos, os valores comque fomos educados, os códigos culturais, sãoos elementos com que ciframos e deciframoso mundo que nos movemos.Palavras de Ward L. Kaiser: “A transformação

do mundo começa com a transformação dasnossas mentes e a renovação das nossas mentescomeça com a transformação das imagens queintroduzimos nelas: as imagens que penduramosnas nossas paredes e as que levamos nos nossoscorações”.

Desde aqui poderíamos fazer-nos uma sériede perguntas: Qual é a nossa percepção daprostituição? E das mulheres que a exercem? Porque existe a prostituição e por que nestemomento histórico é exercida desta forma? Qualpode ser a causa de que sendo o tráfico de pessoasuma violação flagrante dos direitos humanos naqual as mulheres se convertem em mercadoria,não provoque alarme social? Qual pode ser arazão para que esta prática se perpetue ao longoda história?

Aprender a ver

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Se queremos de verdade fazer uma reflexãoprofunda sobre a prostituição, é imprescindívelter em conta o sentir e pensar das própriasmulheres que realizam esta atividade: a suaexperiência de vida e as suas propostas concretas(no segundo bloco temos uma informação amplaa respeito). Considerá-las pessoas adultas quesabem o que querem e que têm direito a decidirsobre aquilo que lhes atinge.

Ouvir as mulheres facilitará quebrar oimaginário social que quando representa aprostituição o faz colocando o rosto da mulher, aestigmatiza e a rejeitada, enquanto se esquece dooutro agente em questão, o chamado cliente ouaquele que prostitui (dependendo da ideologia),amparando-o como coletivo na invisibilidade, anormalidade e o anonimato.

Em dita reflexão, não pode faltar também aimplicação ativa dos homens, pois são agentesnecessários para a manutenção deste fenómeno.Tem que se continuar a questionar como vivem asua masculinidade e a forma de relacionar-se comas mulheres. Que papéis estão dispostos a jogarna luta contra a violência verbal, física,psicológica, sexual? Estão dispostos também aparticipar ativamente para conseguir umaigualdade real do género ou, pelo contrário, veemo avanço nessa direção como uma ameaça?

É preciso mudar o paradigma onde o mundose organiza e a relação existente entre géneros. Secada dia vai ganhando forças o holístico, se tudoestá conectado, então as relações pessoaistambém o estão. É importante começar a ver ummundo mais conectado, mais feminino, mais de

Diz-me o quepensas e dir-te-ei

como és

As mulheres têmvoz, mas não

espaço

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acordo com a globalização do amor, dareciprocidade, do respeito.

É necessário levar até o fim um trabalho desensibilização e conscientização de toda apopulação. A prostituição forçada e o tráfico comfins de exploração sexual entendidas comoviolência de género, não são só atos individuais,mas manifestam o tipo de sociedade que estamosa construir. Realmente temos assumido comosociedade que a prostituição forçada e tráficohumano é um assunto que nos incumbe a todacidadania?

Como a família, a escola, as paróquias comoprimeiras unidades de socialização, educam asmeninas e os meninos em igualdade de direitos,de repartimento de poder e responsabilidades derespeito mútuo? Que tipo de masculinidade efeminilidade é transmitido na infância comomodelos idênticos e de integração positiva dooutro?

Se como já foi dito, a linguagem não é neutra,teríamos que começar por analisar a linguagemque é utilizada quando se agride, as piadas quesão contadas em relação às mulheres, etc., eperguntar-se se o que há por trás de certasexpressões, simplesmente são uma rotina semmedir consequências nas pessoas que escutam?Ou pelo contrário, expressa de verdade apercepção que se tem da realidade e oposicionamento frente a ela?

Não partimos de zero. Centenas de organizações e pessoas

esforçam-se dia a dia para aliviar e superar estasituação. O trabalho voluntário e a solidariedade

Perante a invisibilidade dos “clientes”... Pelo menos os homens

A prostituição o tráfico humano são assuntos que nos tocam a todos os cidadãos

Prevenir é melhor que curar

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são sumamente valiosos. A solidariedade ajuda,mas não alcança tudo. Os cortes que estamos apadecer enquanto sociedade estão a atingir demaneira extraordinária estas mulherespessoalmente e como coletivo. Não se trata só decortes sociais, mas também de cortes em direitosfundamentais que estão a exigir ir além daassistência.

Isto implica reconhecer que a participação éum direito a intervir na vida social e política dolugar onde se vive e desde aí, exigir do Estadonas suas diferentes demarcações, a gestão de umarealidade à qual tem que dar resposta, evitando aexclusão e com garantias de direitosfundamentais como são: o acesso à saúde públicae universal, a educação, a justiça gratuita, etc., demaneira que possam melhorar as condições devida, combater os elementos ilegais e oferecer adevida proteção às vítimas.

As organizações, incluídas as organizações demulheres que exercem prostituição e as diferentesconfissões religiosas, têm uma contribuiçãocentral para que este desafio se concretize, poissão as que estão dia a dia vivendo de perto estarealidade e conciliando o realismo com a utopia,trabalhando por conseguir um presente e umfuturo de mais vida e mais cidadania.

O nível de participação será diferente deacordo com as possibilidades pessoais e /ou degrupo. Certamente na cidade ou vila onde se vive,existem organizações que podem oferecerdiferentes atividades para outras pessoas:voluntariado a diversos níveis, foruns de reflexão,debates, etc. E nos lugares onde não existamrecursos de atenção, supõe um desafio à

A participaçãosocial é um

direito

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criatividade de quem se sente interpelado paraimplicar-se nesta realidade.

E os outros, o quê? Antes de implicar-nos, bem pessoalmente ou

como grupo, é preciso analisar a missão, visão evalores de cada uma das organizações e discernirqual é que nos parece que poderia estar a oferecerum melhor serviço de qualidade, tanto a respeitodas mulheres como do seu nível de incidência nasociedade.

Aqueles que realmente se sintaminterpelados, mas não seja possível a suaimplicação direta, têm sempre o recurso àbibliografia, às oportunidades que hoje oferecemas redes sociais, a internet ou a diálogos compessoas que trabalhem neste campo, para fazeruma aproximação à realidade.

O importante é que toda a ação, pequena ougrande, produza um efeito multiplicador noscírculos de relação: família, trabalho, amizades,centros de estudos, etc. E se oriente a construir,efetivamente com outros e outras, um nós plural,soberano e cidadão que exija, concretize e amplieas políticas públicas e a justiça restauradora queas mulheres e crianças precisam. As que os seusdireitos exigem. As que todos devemos: possíveise urgentes.

6. Como conclusão: A ESPERANÇA

Isto não é nada utópico se o olharmos desdeas relações interpessoais que Jesus nos ensinou econsiderarmos que são universais pela carga dehumanização que contribuem. Só desde a cultura

Analizar para compreender e decidir

Construir espaços de cidadania é tarefa de todos

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“samaritana” , de quem vai pela vida com os olhosabertos e percebe em profundidade o que sucedeno seu caminho é capaz de desfazer-se das suasseguranças, das suas ideias preconcebidas para seaproximar das pessoas e para as perceber talcomo elas gostariam de ser percebidas. Mulherese homens que são capazes de tocar, colocar oazeite da compaixão nas feridas, deixar que as“pessoas feridas” ocupem o nosso espaço físico eo coração e assim ir implicando, como osamaritano fez com o estalajadeiro a outraspessoas. Assim, só assim, podemos cuidar darealidade destas mulheres e deixar que elas seconvertam em bênçãos para nós.

É verdade que não se conseguirá de um diapara o outro, mas trata-se de um processogradual e que é possível realizar. A nossa posturacomo crentes não pode ser de adaptação ao“status quo", mas uma postura radical, que vai àraiz, que para nós é tanto como voltar aoEvangelho e, por isso mesmo, provocará umanova ordem e uma relação fecunda entre ocuidado das pessoas, a justiça e a transformaçãosocial.

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