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    Frum Lingustico, Florianpolis, v. 9, n. 3, p. 195-202, jul./set. 2012...........................http://dx.doi.org/10.5007/1984-8412.2012v9n3p195

    A CONSTITUIO DOS SUJEITOS E DOS SENTIDOS: DO CANIBAL, DO HOMEMDESNATURADO E DO GOVERNANTE

    THE CONSTITUTION OF THE SUBJECT AND THE SENSES: THE CANNIBAL, THE VICIOUS MAN AND

    THE GOVERNOR

    LA CONSTITUCIN DE LOS SUJETOS Y SENTIDOS: DE CANBAL, DE HOMBRE DESNATURALIZADODE GOBERNANTE

    Zlia Maria Viana Paim* Universidade Federal de Santa Maria UFSM, Santa Maria, BR

    RESUMO: Neste artigo nos propomos a apresentar reflexes acerca da constituio dos sujeitos e dos sentidos no relato de viagemde lvar Nez Cabeza de Vaca, Comentrios, escrito em 1541 e publicado em 1555. Para tanto nos filiamos perspectiva tericada Anlise de Discurso, fundada na Frana por Michel Pcheux e institucionalizada no Brasil por Eni Orlandi. Neste estudoprocuramos mostrar como podemos compreender a constituio mtua entre sujeito, sentido e histria. Tratamos, assim, dasrelaes de fora que fundam os percursos de produo de sentido para uma sociedade como a nossa a partir de sequenciasdiscursivas recortadas no relato em anlise.PALAVRAS-CHAVE: discurso; sujeito; sentido; histria.

    ABSTRACT: In this paper we offer reflexions on the constitution of subjects and senses in lvar Nez Cabeza de Vaca report,Comentrios, written in 1541 and published in 1555. Based on the theoretical perspective of Discourse Analysis, founded in Franceby Michel Pcheux and institutionalized in Brazil by Eni Orlandi, we intend to present how the mutual constitution of subject,sense and history can be understood. Thus, we treat the force relations that founded the pathways of sense production for a societysuch as ours, from the discursive sequences selected in the report in question.KEYWORDS: discourse; subject; sense; history.

    RESUMEN: En este artculo se propone presentar reflexiones acerca de la constitucin de los sujetos y de los sentidos en relato deviaje de lvar Nez Cabeza de Vaca, Comentarios, escrito en 1541 y publicado en 1555. Para ello se toma como base la perspectivaterica del Anlisis del Discurso, fundada en Francia por Michel Pcheux e institucionalizada en Brasil por Eni Orlandi. En esteestudio hemos tratado de mostrar cmo podemos entender la mutua constitucin del sujeto, el significado y la historia. Tratamosas las relaciones de poder que subyacen en los caminos de la produccin de sentido para una sociedad como la nuestra a partir desecuencias discursivas cortados en el relato en cuestin.PALABRAS-CLAVE: discurso; sujeto; sentido; historia.

    1 INTRODUO

    Neste artigo, propomo-nos a apresentar reflexes acerca da constituio dos sujeitos e dos sentidos norelato de viagem de lvar Nez Cabeza de Vaca,Comentrios , escrito em 1541 e publicado em 1555. Paratanto, filiamo-nos perspectiva terica da Anlise de Discurso, fundada na Frana por Michel Pcheux einstitucionalizada no Brasil por Eni Orlandi. A noo que perpassa esse estudo como um todo a do sujeito.Ao considerarmos asmodalidades propostas por Pcheux ([1975], 1988, p. 213): aidentificao , a contra- identificao e adesidentificao do sujeito com a formao discursiva (FD) na qual se insere num determinadomomento histrico-social, privilegiamos amodalidade de identificao para o desenvolvimento deste estudo.Entendemos que o sujeito-relator sofre o processo de interpelao e est assujeitado a uma determinadaideologia, identificando-se plenamente com uma dada FD. Essa identificao/interpelao do sujeito estligada tambm produo dos sentidos, advindos do interdiscurso, a memria do dizer, que determina aFD com a qual ele deve identificar-se em meados do sculo XVI.

    Para entendermos o discurso desseoutro em outro tempo , buscamos entender o movimento dos sentidos; osdeslizes, as derivas prprias s condies de produo em que esto imersos. Acrescenta-se que, do ponto devista do analista de discurso, no h um centro, que o sentido literal, e suas margens, que so os efeitos

    * Ps-doutoranda do Programa Nacional de Ps-Graduao (PNPD/CAPES), Universidade Federal de Santa Maria (PPGL/UFSM/LaboratrioCorpus). E-mail: [email protected].

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    de sentido. S h margens. Por definio, todos os sentidos so possveis e, em certas condies deproduo, h a dominncia de um deles (ORLANDI, 1996, p. 144). Do ponto de vista do historiador, todaa margem delimita, ao mesmo tempo inclui e exclui, integra e divide, transita entre o diferente e o mesmo(NOVAES, 1999, p. 7). Significar, portanto, decorre de condies de produo compreendida, segundoOrlandi (1988, p. 85), como o contexto histrico-social, ideolgico, a situao, os interlocutores e o objetode discurso, de tal forma que aquilo que se diz significa em relao ao que no se diz, ao lugar social do quase diz, para quem se diz, em relao aos outros discursos, etc.

    Podemos dizer que os sujeitos e os sentidos se constituem concomitantemente, imbricam-se e apontam paradeterminada posio-sujeito no interior do discurso, a qual est em conformidade com o lugar scio-histrico e ideolgico em que o discurso foi elaborado. Esse lugar possibilita ao sujeito uma determinadatomada de posio diante do seu discurso, produzindo determinados efeitos de sentido. A partir desseposicionamento inicial, em nosso estudo sobre o sujeito e os sentidos, elegemos como objeto de anlise odiscurso do sujeito sobre o indgena guarani.

    Apresentamos, ento, algumas distines importantes para o desenvolvimento deste estudo: primeira, orelato de viagem o suporte textual a partir do qual se constri ocorpus; ele fornecer sequnciasdiscursivas recortadas em funo da questo a ser investigada. Segunda, o recorte, conforme Orlandi (1987,p. 140), no um segmento mensurvel em sua linearidade, e sim um pedao que o analista promove emfuno de seu trabalho e de seus objetivos. Terceira, procuramos estabelecer sequncias discursivas paralocalizar os pontos pertinentes aos processos em anlise que sero referidas como SD1, [...] SD5.Entendemos que h tomadas de posies do sujeito que se manifestam discursivamente, produzindodeterminados efeitos de sentido e no outros, sempre inscritas em uma FD que funciona como dominanteem condies de produo dadas; no caso deste estudo, a FD mercantilista-colonialista.

    2 O OLHAR PARA A HISTRIA

    Para dar conta da exterioridade que constitui o discurso, buscamos a conjuntura scio-histrica na qual seinsere o sujeito-viajante. Desde a descoberta, inmeros foram os viajantes que, financiados pelo Estado, pelaalta aristocracia, por academias cientficas ou s suas prprias custas, visitaram nosso pas. Nessaperspectiva, voltamos o olhar ao tempo que sucedeu s primeiras viagens exploratrias Terra de VeraCruz. Omito move os exploradores que se lanam em busca doEldorado , dorio de Ouro e dorio de Prata. Asnaus se sucedem mais ao sul de Vera Cruz, junto costa da terra, navegando um mar perigoso de guasmuito rasas ao longo de uma praia retilnea, plana, arenosa, de vegetao raqutica batida pelos ventos.

    Os exploradores se aventuram, abordando a terra dos charruas s margens de um rio que mais parecia ummar de gua doce, o Prata. Os charruas falavam outra lngua, diferente daquela falada ao norte, mas osprimeiros viajantes dessas paragens os portugueses quiseram entender que regio adentro existia um

    poderoso rei branco cujo reino era rico em ouro e prata . Esse novo mito abastece o imaginrio do explorador.

    Ao primeiro explorador espanhol do rio da Prata, Pedro de Mendona, outorgado o ttulo deadelantado ecapito geral com privilgios em troca dos quais assume compromisso de povoar as terras para suaMajestade o Rei Carlos V e incorpor-las cristandade. A expedio de Pedro de Mendona funda ao sul docontinente a sua base de operaes, a feitoria deBuen Aire e medida que sobem o rioBuena Esperanza,

    Assuncine Candelria . Destas, somente Assuncin resiste aos ataques dos charruas e querandis.

    Com a morte doadelantado e com seu sucessor desaparecido em busca das terras do poderoso rei branco, aregio do rio da Prata passa a ser governada por Domingos Martnez de Irala que instituiu o sistema deencomiendas 1. O Conselho das ndias determina que Irala permanea no cargo at ser nomeado um novoadelantado, com deveres e direitos contratados perante a Coroa espanhola.

    Como segundoadelantado contratado um navegador que retorna Espanha aps longa aventura entre osndios americanos: dom lvar Nez Cabeza de Vaca que, durante dez anos, percorre dezoito milquilmetros desde seu naufrgio na Flrida. Durante este perodo, junto com outros trs nufragos,

    1 Neste sistema o europeu era o senhor de terras a quem o indgena, enquanto vivesse, prestava tributos em servio pessoal.

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    atravessa o territrio americano e entra em contato com importantes tribos como os sioux e os zuni. Cabezade Vaca escreve sobre sua aventura em seu primeiro relato de viagem,Naufrgio . Com sua nomeao,investe 40 mil ducados de sua fortuna confiante na descoberta do rei branco, de suas cidades imponentes,templos e tesouros grandiosos.

    O relato dessa segunda aventura publicado, em 1555, com o nome deComentrios , o qual se analisa a

    seguir. Esse o primeiro relato de viagem ao sul do Brasil, o qual foi elaborado a partir da expedio deCabeza de Vaca, iniciada em Santa Catarina em 1541, rumo Assuncin, no Paraguai, seu destino final, esede de seu breve governo. Neste estudo, recortamos na materialidade lingustica sequncias discursivasque se referem viagem entre Santa Catarina e Assuncin [SD2 a SD4] e ao governo de Assuncin [SD1 eSD5].

    2.1 O sujeito-canibal

    O ano 1541, no h consenso entre Portugal e Espanha sobre os limites de suas posses. Para os primeiros,a linha de Tordesilhas passa pelo sul da ilha de Santa Catarina, altura de Laguna e, para os segundos, adivisa se situa muito mais ao norte, na capitania de So Vicente. Somam-se a esse problema poltico-administrativo, os itens contratuais de Cabeza de Vaca com a Coroa espanhola. Esses determinam que, se onovoadelantado tivesse sucesso, teria direito a nomear seu sucessor e a posse de toda a colnia do Rio daPrata, com suas duzentas lguas de costa atlntica at o litoral de Santa Catarina. No entanto, se o sucessordo primeiroadelantado reaparecesse, Cabeza de Vaca assumiria o lugar de seu preposto e ganharia, a ttulode compensao, o governo e explorao, por doze anos, da ilha de Santa Catarina.

    O verdadeiro relator dessa expedio, Pero Hernndez, ocupa o lugar social de escrivo; no entanto, seurelato se insere na sociedade e na cultura europeia do sculo XVI como sendo de autoria de Cabeza de VacaCom relao produo da autoria dos relatos de viagem, Orlandi observa que

    o relatado no era baseado na observao direta dos fatos, mas na obteno de dados por fontes relatadase no era escrito por quem assinava como autor. No entanto os produtos dessa faanha no perdiam asua institucionalidade: eram considerados fidedignos e legtimos. [...] muitas vezes eles nem conviveram

    com os ndios ou viveram os fatos; contam o que lhes contavam as fontes (ORLANDI, 1990, p. 108).Entendemos que a fidelidade e a legitimidade do relato em questo relevam tambm do fato de PeroHernndez ser escrivo; isto , oficial que escreve documentos de f pblica a servio da Coroa espanholaObservamos que o relator faz referncia a ritos de antropofagia que se estendem por meses e que abarcamdesde o aprisionamento, a engorda e a matana da vtima, o que aponta para narrativas idnticas, repetiesque se originam no fato de que a fonte era a mesma: os intrpretes. O ritual de antropofagia descritoatravs de parfrases, como forma de reiterar sentidos j produzidos, advindos do interdiscurso. No relatoem anlise, o ritual de antropofagia assim discursivisado:

    (SD1) Essa nao dos guaranis fala uma linguagem que conhecida por todas as outras castas daprovncia e come carne humana de todas as outras naes que tm por inimigas. Quando capturam uminimigo na guerra trazem-no para seu povoado e fazem com ele grandes festas e regozijos, danando ecantando, o que dura at que ele esteja gordo, no ponto de ser abatido. Porm enquanto est cativo, doa ele tudo o que quer comer e lhe entregam suas prprias mulheres ou filhas para que faam com elasseus prazeres. So essas mesmas mulheres que se encarregam de trat-lo e ornament-lo com muitasplumas e muitos colares que fazem de ossos e de pedras brancas. Quando est gordo, as festividades soainda maiores. Os ndios se renem e adeream trs meninos de seis ou sete anos de idade e colocam-lhesnas mos umas machadinhas. Chamam ento um ndio que tido como o mais valente entre eles,colocam-lhe uma espada de madeira nas mos, que chamam de macana, e o conduzem at uma praaonde o fazem danar. Terminada a dana, dirige-se para o prisioneiro e comea e golpe-lo pelos ombros,segurando o pau com as duas mos. Depois bate-lhe pela espinha e em seguida d seis golpes na cabea,o que ainda no suficiente para derrub-lo, pois impressionante a resistncia que possuem,especialmente na cabea. Somente depois de muito bater com aquela espada, que feita de uma madeiranegra muito resistente, que consegue derrubar o prisioneiro e inimigo. A ento chegam os meninoscom as machadinhas, e o maior deles, ou o filho do principal, o primeiro a golpe-lo com a machadinhana cabea at fazer correr sangue. Em seguida, os outros tambm comeam a golpear e, enquanto estobatendo, os ndios que esto em volta gritam e incentivam para que sejam valentes, para que tenhamnimo para enfrentar as guerras e para matar seus inimigos; que se recordem que aquele que ali est jmatou sua gente. Quando terminam de mat-lo, aquele ndio que o matou toma o seu nome, passando

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    assim a chamar-se como sinal de valentia. Em seguida, as velhas pegam o corpo tombado, comeam adespeda-lo e a cozinh-lo. Depois repartem entre si, sendo considerado algo muito bom de comer, evoltam s suas danas e cantos por mais alguns dias, como forma de regozijo (CABEZA DE VACA,[1555] 2003, p. 144-145).

    Em primeiro lugar, o sujeito-relator aproxima duas formas verbais: fala e come. O complemento de caduma dessas formas faz parte do conhecimento sobre o Novo Mundo, reitera sentidos j produzidos, mas aaproximao das duas acentua a diferena entre o europeu e seu objeto discursivo, os guaranis. Esses sodescritos como sujeitos que dominam a lngua de comunicao entre as diferentes castas e comem seusinimigos de guerra. A referncia lngua falada, ao mesmo tempo em que humaniza o indgena, justifica aaliana que busca o explorador frente ao leitor europeu para quem se dirige. No entanto, outros efeitos desentidos emergem em falam a mesma lngua aquele que produz o efeito de poder e unidade do guarani eaquele que produz o efeito de dominao desse pelo explorador atravs da lngua escrita.

    A seguir, h necessidade de legitimar o discurso, de dar veracidade aos fatos observados. O relator coloca-se, ento, como testemunha ocular ao enumerar: trs meninos, seis ou sete anos, seis pauladas; aonomear: uma espada, chamam de macana; ao qualificar: impressionante a resistncia que possuemespecialmente na cabea, o maior deles, ou o filho do principal, as velhas e a madeira negra muitresistente. A especificidade do testemunho reside no fato de que o enunciado sobre a realidade inseparvel da autodesignao do sujeito que testemunha, resultando a formulao eu estava l ou pude euprprio testemunhar (RICOEUR, 2007, p. 172). Em nosso estudo, o testemunho torma digno de f esserelato institucionalizando-o como prova documental para a histria e legitimando-o enquanto fonte desaber para a representao do Brasil no sculo XVI.

    Os guaranis, por sua vez, esto imersos num mundo em que as foras da natureza exercem um importantepapel. Esses praticam a antropofagia como culto mgico em que a diviso e distribuio das partes do corpoentre o grupo fortalece e atualiza temas como o do sacrifcio, da identificao e da comunho. O ritualconduzido pelo Paj convoca as foras da natureza para o xito de suas colheitas e de suas guerras. Oeuropeu ao pens-lo como ritual que faz parte da religiosidade dos guaranis, tenta por isso mesmo apag-locomo tal e dar incio circulao de determinados enunciados. Da a referncia ao canibalismo ser umaconveno dos relatos de viagem e constituir momentos peculiarmente potentes para a identificao das

    relaes de contato e para o estabelecimento dos modos de representao do outro.

    2.2 A servido voluntria

    Na representao do outro, a primeira leitura dos recortes a seguir ressalta a cordialidade, a hospitalidadedas numerosas aldeias de guaranis e a fartura de alimentos que oadelantado encontra na sua entrada pelaterra. O que se constitui neste relato foi o papel de senhor das terras percorridas e o papel daqueles queocupavam a terra, mas no eram seus donos:

    (SD2) Chegaram a trs povoados de ndios, situados muito prximos um do outro, cujos senhoresprincipais se chamavam Airiri, Cipoyay e Ticanguanzu. Quando esses ndios souberam de sua chegadasaram para receb-los, carregados de muitos mantimentos e muito alegres, demonstrando grande prazercom sua vinda. De sua parte, o governador tambm os recebeu com grande prazer e amizade e, alm depagar-lhes o preo que valiam, deu aos ndios principais muitos presentes, inclusive camisas, o que osdeixou muito contentes. Esses ndios pertencem tribo dos guaranis, so lavradores que semeiam omilho e a mandioca duas vezes por ano, criam galinhas e patos da mesma maneira que ns na Espanha,possuem muitos papagaios, ocupam uma grande extenso de terra e falam uma s lngua. Mas tambmcomem carne humana e tanto pode ser dos ndios seus inimigos, dos cristos ou de seus prprioscompanheiros de tribo. gente muito amiga, mas tambm muito guerreira e vingativa (CABEZA DEVACA, [1555] 2003, p. 129).

    (SD3) Era impressionante ver o medo que aqueles ndios tinham dos cavalos. Para que os cristos acavalo no os ameaassem, eles logo procuravam dar-lhes galinha, mel e outras coisas de comer. [] oscristos e os cavalos, que eram personagens estranhos por aquelas terras. [...] Seguindo seu trajeto poraquelas terras, o governador e sua gente chegaram a um povoado dos guaranis, cujo senhor principal,chamado Pupegaje, saiu a caminho para receb-los, muito alegre e trazendo mel, patos, galinhas, milho,farinha e outras coisas. Atravs do intrprete, o governador lhe agradeceu a acolhida, fez-lhe opagamento e ainda deu para o principal muitos presentes, entre eles tesouras e facas. Deixou os ndiosdesse povoado to alegres e contentes, que pulavam, danavam e cantavam de prazer (p. 131).

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    Ao nomear os sujeitos para atribuir-lhes acontecimentos, tornam-se mais determinveis as referncias.Nomear Airiri , Cipoyay , Ticanguanzu (SD2), Pupegaje (SD3 ) determinar o desconhecido familiar,atribuir-lhe um acontecimento, determinar-lhe o complemento, estabilizar o sentido que poderia ser outro.Uma vez estabilizado, o sentido governado pela reciprocidade, pela idealizao das relaes entre viajantese guaranis. Desse modo, os guaranis foram descritos no seu modo de servir carregados de muitosmantimentos (SD2), demonstrando grande prazer (SD2) trazendo mel, patos, galinhas, milho, farinha e

    outras coisas (SD3) e o governador no seu modo de pagar o preo que valiam, deu aos ndiosprincipais muitos presentes, inclusive camisas (SD2), deu para o principal muitos presentes, entre elestesouras e facas (SD3).

    Os guaranis formam um todo homogneo: falam uma s lngua, ocupam grandes extenses de terra,comem carne humana que pode ser dos seus inimigos, dos cristos ou de seus prprios companheirode tribo (SD2). Para o sujeito-relator, o guarani ocupa grandes extenses de terra e possui muitospapagaios (SD2), constituindo-os como sujeitos sem lei, sem propriedade privada, so enunciados que justificam a razo da apropriao e do governo de Cabeza de Vaca. Para ns, o europeu, ao tomar posse doespao desconhecido, toma posse, tambm, da lngua desconhecida, estabilizando-a na escrita. H umbatimento entre o acontecimento, com o gesto de posse e a constatao da necessidade desse saber, e ahistria, o aprendizado pelo intrprete e a gramatizao mais tarde pelos jesutas.

    Nas sequncias discursivas (SD2 e SD3), os encontros com os dirigentes locais, que formam os elementosbsicos do processo discursivo, so negociaes apenas, nas quais o governador procura assegurar suasobrevivncia e salvo-conduto em troca da oferta de bens ou tesouros europeus. No obstante, alm dessasiscas , tinham outro trunfo: o medo que aqueles ndios tinham dos cavalos (SD3). O conhecimento cristos a cavalo no descrito pelo europeu como mudana histrica na forma de vida guarani. Dessemodo, o sujeito-relator identifica-se a FD dominante, atualizando sentidos de lacuna e falta no modo deconhecimento atribudo ao guarani. Dando continuidade ao nosso estudo, observemos os recortes a seguir:

    (SD4) Era comum, portanto, os ndios irem frente abrindo caminho []. Quanto mais perto chegavatanto maior era a recepo, com mulheres e crianas se colocando em fila para oferecer vinho de milho,po, pescado, batata, galinha, mel, veado e muitas outras coisas, que repartiam graciosamente e, depois,em sinal de paz, levavam as mos para o cu (CABEZA DE VACA, [1555] 2003, p. 140).

    (SD5) O enorme batalho de ndios que os seguia se estendia por mais de uma lgua, garbosamenteformado, com todos os ndios marchando ordenadamente, exibindo suas plumagens e pinturas, bemcomo seus arcos e flechas ornamentados. Depois deles no corpo de batalha, seguiam o governador com sua gente a cavalo, e logo a infantaria dos espanhis, com os arcabuzeiros e balisteiros. Vinham a seguiras mulheres, que carregavam a munio e os mantimentos dos espanhis, j que os ndios levavam seusmantimentos em meio a seu prprio batalho (p. 152-153).

    O guarani discursivisado dispem-se naturalmente a servir Cabeza de Vaca, o outro no descritoindividualmente, mas como constituinte de uma fila (SD4) mulheres e crianas - ou de enormebatalho (SD5) ndios e deles - sempre numerosos e abrindo o caminho na paz e na guerra com seuarcos e flechas ornamentados (SD5). Na paz, as mulheres oferecem vinho de milho, po, pescado, batatagalinha, mel, veado e muitas outras coisas (SD4) e, na guerra, carregavam a munio e os mantimentosdos espanhis (SD5). O governador, por sua vez, dispensa aos indgenas bom tratamento e comanda suagente, os espanhis que formam a infantaria e so determinados pelas armas que portam comoarcabuzeiros e balisteiros (SD5). Os guaranis so os outros; isto , gente de ningum e sem comandoEsse outro serve ao governador como ponta de lana e animal de carga.

    Paradoxalmente, os indgenas vo se tornando visveis; isto , os referentes ganham visibilidade graciosamente, levavam as mos para o cu (SD4), marchando ordenadamente, exibindo suasplumagens e pinturas (SD5) e ao mesmo tempo vo sendo apagados porque determinados por outro. Osguaranis so sujeitos sem voz constitudos como servidores voluntrios. O governante das terras, Cabezade Vaca, em nome da Coroa espanhola, assume seu papel e recebe os guaranis que encontra pelo caminhocom amabilidade, distribuindo favores e bloqueando direitos, pagando o preo justo pelos alimentos,assumindo o papel de senhor diante de seus vassalos.

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    3 O DIREITO NATURAL

    A operao ideolgica legitimadora do direito natural do senhor sobre seus servos, parte da idia de queDeus, como legislador supremo, ordena hierarquicamente os seres segundo sua perfeio e grau de poder, edetermina as obrigaes de mando e de obedincia entre esses graus, em que o superior comanda esubordina o inferior, o qual naturalmente lhe deve obedincia. Os indgenas so incapacitados para se regerpor si mesmos, para exercer a soberania e administrar seus domnios. Por esse motivo, devem sersubmetidos a outros povos de nvel cultural superior, as ditas naes polidas do mundo. justo, normal ede acordo com alei natural que todos os homens probos, inteligentes, virtuosos e humanos dominem todosaqueles que no possuem essas virtudes. Seplveda argumenta com base na lei natural que:

    Es creencia que tales son los pueblos brbaros e inhumanos apartados de la vida civil, conductamorigerada y prctica de la virtud. A stos les es beneficioso y ms conforme a derecho natural el queestn sometidos al gobierno de naciones o prncipes ms humanos y virtuosos, para que con el ejemplode su virtud y prudencia y cumplimiento de sus leyes abandonen la barbarie y abracen una vida mshumana, una conducta morigerada y practiquen la virtud2 (SEPLVEDA, [1549], 1996, p. 23)

    Mais tarde, em 1550, Juan Gins Seplveda em debate com Bartolom de Las Casas defende a tese daservido voluntria, segundo a qual a liberdade uma facultas da vontade humana, isto , um poder

    escolher, um poder agir, um poder fazer ou no fazer, sendo uma faculdade, alienvel; isto , intransfervelvoluntariamente para outro, de sorte que a servido, sendo voluntria, no injusta, ilegal ou ilegtima.Dois anos antes, o jovem La Botie ([1548], 1997, p. 27) defineservido voluntria como um vciomonstruoso que a natureza nega ter criado e a lngua recusa por nome. Vcio das sociedades divididas queconsiste em um nmero infinito de pessoas no s a obedecer, mas a servir e ainda por cima querer faz-lo.Nas palavras de La Botie:

    se acaso nascessem gente completamente novas, que no estivessem acostumadas sujeio nemsoubessem o que a liberdade, que tudo ignorassem sobre uma e outra coisa, incluindo os nomes, e lhesfosse dado a escolher entre o serem sujeitas ou viverem livres, qual seria a escolha delas? Uma coisa certa, porm: os homens, enquanto neles houver algo de humano, s se deixam subjugar se foramforados ou enganados (LA BOTIE, [1548] 1997 p. 30-31).

    Nesse sentido, no importa discutir se a liberdade natural, provado como est ser a escravido umaofensa para quem sofre, escreve La Botie (p. 27). Para Clastres (1997, p. 64-65), esse autor transcendetoda a histria conhecida para dizer: outra coisa possvel. O que ele descobre resvalando assim para forada histria, isto de ser histrica a sociedade onde o povo sente o desejo de servir; de ter data denascimento e de algo, seguramente, ter ocorrido para, partindo da liberdade, os homens carem na servido.Nessa queda da sociedade na submisso voluntria de quase todos a um s, reside o sinal de uma perdahumilhante porventura irreversvel: o homem novo, produto do infortnio, este ser, difcil de nomear edescrever, ohomem desnaturado .

    Para Clastres (1997, p. 69), os selvagens de antes da civilizao, os povos de antes da escrita, as sociedadesde antes da histria: so seguramente as chamadas sociedades primitivas, primordiais por sedesenvolverem na ignorncia da diviso, primeiras por existirem antes do fatal infortnio. Entendemosque existe uma relao entre o corpo sem discurso, desnudo e a fora de trabalho desenraizada, despojada edisponvel, que os exploradores europeus to desumanamente e incansavelmente lutam para criar em suasbases no exterior. O estado de natureza emerge como um estado relacionado perspectiva de intervenotransformadora por parte da Europa: um vasto projeto de colonizao e escravizao. No entanto, odiscurso que idealiza as relaes entre os indgenas guaranis, Cabea de Vaca e sua gente o dahospitalidade guarani e o do governo justo.

    4 CONSIDERAES

    Entendemos que o sujeito e o sentido se constituem mutuamente no discurso, pressupondo uma tomada deposio por parte do sujeito relator em relao FD dominante no momento scio-histrico. As sequncias

    2 Acredita-se que assim so as naes brbaras e desumanas, estranhas vida civil e aos costumes pacficos. A essas naes benfico e mais dacordo com o direito natural que sejam submetidas ao imprio de prncipes e de naes mais cultivadas e humanas, de modo que graas virtudedos ltimos e prudncia de suas leis, eles abandonam a barbrie e se adaptam a uma vida mais humana e ao culto da virtude. (Traduo nossa).

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    discursivas recortadas no relato analisado do a conhecer o sujeito governador Cabeza de Vaca , aoatribuir-lhe o comando das relaes estabelecidas com o indgena guarani e com os espanhis. O sujeito-relator enfatiza esse papel estabelecido no discurso pelo uso do nome governador. O sujeito relatorelabora representaes de tomadas de posio do sujeito-governador, posies que o constituem comosujeito identificado FD mercantilista-capitalista. A partir da constituio do sujeito indgena guarani, ooutro, como servidor voluntrio, construdo o sujeito governador-justo, fundando o discurso que idealizaa relao governador e governado.

    O sujeito-relator determina sentidos sobre o outro, contribuindo para a ritualizao e a circulao dedeterminados enunciados. O guarani o canibal amigo, ocupante de uma grande extenso de terra, falantede uma mesma lngua, sujeito coletivo, massa homognea servidora. Esse discurso determina efeitos desentido para o indgena guarani no projeto colonial. Redundncia, descontinuidade e irrealidade soalgumas das principais coordenadas para constituir o outro com neutralidade e cega repetio. Nessaperspectiva, o procedimento discursivo do outro que nos conta a produo do imaginrio necessrio para aformao de um pas a ser colonizado; para concretiz-lo como um projeto, constitu-lo na sua especificidadcomo objeto simblico. Nesse discurso, encontramos modos de tomar posse( ORLANDI, 1990, p. 19).

    No entanto, sentidos podem ser fundados l onde outros esto instalados, atualizando a propriedade quereside na elaborao de uma nova tradio, resignificando o que veio antes e instituindo uma memriaoutra. Segundo Orlandi, os discursos estabelecem uma histria que, na perspectiva discursiva, produo desentidos:

    Ela se organiza tendo como parmetro as relaes de poder e de sentidos, e no a cronologia: no otempo cronolgico que organiza a histria, mas as relaes com o poder (a poltica). Assim, a relao daAD com o texto no extrair o sentido, mas apreender a sua historicidade, o que significa se colocar nointerior de uma relao de confronto de sentidos. A relao com a histria dupla: o discurso histricoporque se produz em condies determinadas e projeta-se no futuro, mas tambm histrico porque criatradio com o passado, e influencia novos acontecimentos (ORLANDI, 1990, p. 35).

    O outro que nos conta lana seu olhar a novos lugares, a terras novamente e novamente descobertas,procurando controlar discursivamente a diferena. O que importa aqui est na extenso e na intensidade das

    novas experincias, de um sentido que se move paralelo a tudo que se oferece de verdadeiramente novo:novos mitos, novo homem, novo espao, novas promessas de riquezas. A ambiguidade dos caminhos e overossmil dos discursos unem-se ao silenciamento da alteridade. O indgena no o outro constitutivo doeuropeu porque ser a-histrico (Orlandi, 1990), a sua historicidade constitutiva silenciada. O queprocuramos mostrar, ao longo deste estudo, o funcionamento dos sentidos que se do por evidentes edefinidos no discurso do sujeito identificado FD mercantilista em meados do sculo XVI.

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    Recebido em 21/07/12 Aprovado em 21/11/12