Cabral&Lima-Como Fazer Uma Historia de Familia

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    comum dizer-se que o que distingue entre si as cincias sociais o mtodo, oque no totalmente verdade: a rica histria da teoria antropolgica bem o com-prova. Contudo, h que reconhecer que, enquanto os grandes saltos tericostendem a ser absorvidos mais cedo ou mais tarde por todas as disciplinassocioculturais, as diferenciaes metodolgicas as diferentes formas de fazercincia tendem a seguir as rotas disciplinares. Trata-se de algo que decorrenecessariamente da aprendizagem da tarefa cientfica, que no se limita a trans-mitir atitudes ou disposies cognitivas mas que envolve o cientista como pes-soa social integral. pois comum que estas disposies metodolgicas (assimcomo as formas de vida que a elas esto frequentemente associadas) sejamtransmitidas mais pelo exemplo e pelo gosto, de professor/a a discpulo, do quepropriamente por ditames metodolgicos estritos e verbalizveis. A actividade

    cientfica , e nunca deixar de ser, uma actividade social total, praticada poragentes cujo processo de constituio segue trmites e processos inevitavelmen-te sociais. Claro que h regras; h processos que diferenciam a prtica e a apren-dizagem cientfica de outros tipos de prticas e aprendizagens; mas a naturezasocial dos elos humanos envolvidos no processo de criao cientfica indiscu-tvel.

    No quer isto dizer, contudo, que as metodologias cientficas no devamser elaboradas, discutidas e aprendidas. H indubitavelmente ganho em elabor--las de forma explcita, tanto para que a sua aprendizagem ultrapasse os limitesapertados dos departamentos universitrios, como para que se possam criarreas de debate mais alargado. Em particular, na antropologia sociocultural,

    ocorre um processo peculiar de silenciamento. De tal forma a identidade dadisciplina est ligada revoluo qualitativista malinowskiana, que a prticaantropolgica acaba por surgir como idntica e limitada observao partici-pante em lugares exticos. Esquece-se, desta forma, toda a complexidade darica herana metodolgica que nos foi legada por mais de cento e cinquenta

    COMO FAZERUMA HISTRIA DE FAMLIA:UM EXERCCIO

    DE CONTEXTUALIZAOSOCIAL

    Joo de Pina Cabral*

    e Antnia Pedroso de Lima**

    * Instituto de Cincias Sociais da Universidade de Lisboa.** Centro de Estudos de Antropologia Social (ISCTE).

    Etnogrfica, Vol. IX (2), 2005, pp. 355-388

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    anos de prtica disciplinar explcita.

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    Quantos e quantos antroplogos desen-volveram o conhecimento que nos legaram e que os tornou famosos de outrasformas, que no viajando perigosamente por terras longnquas!

    Por outro lado, a limitao observao participante errada historica-mente, porque os antroplogos do passado desenvolveram um complexo regis-to metodolgico que ultrapassa em muito os lugares comuns etnogrficos.2 Maisque isso, essa limitao perversa, porque obriga cada gerao a re-descobriros processos de recolha de informao. O resultado que os mtodos que tantasgeraes de antroplogos desenvolveram, normalmente em associao e noem confronto com a observao participante (tais como o mtodo genealgico, ocenso de aldeia, a museologia, o estudo de caso, a anlise situacional, a anlisede arquivos locais, o mtodo biogrfico, a histria oral, etc., etc.) acabam poraparecer como emprstimos de outras disciplinas!

    A proposta metodolgica que em seguida apresentamos emerge, assim,de uma longa tradio metodolgica e pretende evitar a invisibilidade da dis-cusso sobre metodologias na disciplina.3 Fomos beber inspirao em muitoslados: no mtodo genealgico; no mtodo biogrfico; nas metodologias dademografia; no mtodo de estudo de caso; nas novas metodologias de recolhade bases de dados qualitativas; etc. No quisemos limitar-nos velha antropo-logia do parentesco. Por isso, fomos procurar inspirao s novas metodologiasque tinham surgido nos anos 80 em torno ao estudo da unidade de residncia.Designmos o instrumento metodolgico que desenhmos Histria de Famlia.

    Ao longo dos anos fomo-nos apercebendo das capacidades heursticas

    do instrumento que tnhamos em mos e comemos a sistematizar um conjun-to de tcnicas, estratgias e orientaes metodolgicas que tornavam o exercciomais operativo. Para alm disto, o mtodo revelou-se valiosssimo nas nossasinvestigaes particulares, permitindo-nos acesso a toda uma srie de meios deanlise que reduziam algumas das perplexidades com que nos confrontvamosna realizao de investigao etnogrfica em contextos metropolitanos.4

    Com o passar dos anos, entre ns prprios e os nossos alunos, foram-seacumulando centenas de histrias de famlia que abordavam os meios sociais eas gentes mais diversificadas: famlias urbanas e famlias rurais, famlias do Nortede Portugal e do Sul, do interior e do litoral, de todos os estratos sociais. E no

    1 Datamos o princpio deste debate aproximadamente no incio da dcada de 1860, com Maine, Morgan,Frazer, Tylor, etc.2 Veja-se, por exemplo, Notes and Queries on Anthropology (1951) ou The Craft of Social Anthropology (Epstein1967).3 Ela foi desenvolvida no mbito do trabalho que realizmos, conjunta e separadamente desde 1986, nacadeira de Antropologia Social II da licenciatura em Antropologia do ISCTE, Lisboa. Gostaramos deagradecer a todos os alunos que, desde ento, fizeram parte do processo de avaliao da disciplina de An-tropologia Social II (alguns dos quais so hoje antroplogos com obra publicada), pois juntos testmos oslimites da proposta metodolgica que agora apresentamos.4 Cf. Pina Cabral (1991, 2003), Pina Cabral e Loureno (1993), Afonso (2002), Lima (2003).

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    s de Portugal, pois tambm de Macau e do Brasil, Moambique, Cabo Verde,etc. No referente a Portugal to s, o acervo que fomos acumulando de ano emano revela, sem margem para dvidas, que estamos perante um processo derecolha de informao de enorme utilidade. Por isso nos decidimos a dedicarestas pginas a uma tentativa de explicitao do mesmo.

    A Histria de Famlia

    A histria de famlia (doravante hf) uma metodologia de contextualizao socialde pessoas desenvolvida como resposta s novas necessidades metodolgicas le-vantadas pela investigao em contextos urbanos modernos, mas que pode serusada em qualquer outro contexto social. Durante os anos 80, conforme a nos-sas agendas de investigao se foram dirigindo mais e mais para contextos deaberta modernidade (ou, na verdade, ps-modernidade), fomos sentindo que aobservao participante, tal como ela era concebida nos manuais clssicos daantropologia, no respondia integralmente s nossas novas necessidades.

    Nos contextos metropolitanos onde nos encontrvamos, o etngrafo notinha frequentemente acesso ao tipo de familiaridades quotidianas que poss-vel ter em contextos demograficamente mais reduzidos e comunicacionalmentemenos complexos.5 Por outro lado, o facto do etngrafo residir, na sua vidaprivada e pessoal, nas proximidades do local de investigao dificultava o seudistanciamento das suas obrigaes quotidianas como membro de uma famlia

    e, mais em geral, como cidado. Tal situao dificulta a criao de contextos decontacto quotidiano e repetido com os informantes durante a realizao deuma pesquisa emprica. Urgia, portanto, desenvolver novas estratgias de apro-ximao ao terreno no para superar a observao participante mas para aexpandir e complexificar.

    Para a investigao qualitativa dispnhamos, na poca, essencialmentede dois mtodos. Ambos eram reconhecidamente teis mas insuficientes. Porum lado, a entrevista temtica semi-dirigida que, sendo da maior importn-cia, no cria facilmente formas de cumplicidade entre o investigador e o investi-gado. Sem o carcter livre e aparentemente desinteressado do hanging around dotrabalho de campo tradicional, o limite temporal do encontro tende a reduzir-

    se, tal como os tempos em que simplesmente se est presente, que so to im-portantes para que se ganhe confiana e se estreitem cumplicidades.

    No mbito de uma entrevista, ao fim de duas horas de conversa, os infor-mantes sentem que j nos disseram tudo o que ns procurvamos saber sobreum qualquer tema com o qual os tenhamos abordado. Ora, a experincia da

    5 Hoje em dia esta situao faz-se sentir cada vez mais pois, quanto mais as pessoas usam telefones e Internet,menos as comunicaes quotidianas entre elas so publicamente situveis.

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    etnografia mostra que, quem quiser evitar fazer etnografias que sejam discur-sos sobre discursos, i.e., quem quiser complexificar a viso do processo deenquadramento sociocultural que estuda, necessita de criar alguma familiarida-de no s com o que o entrevistado pensa mas com o contexto intersubjectivoem que o entrevistado pensa. Na ausncia de um hanging around prolongado esistemtico, como chegar a uma forma de contextualizao (como propor ummodelo daquilo que Hannah Arendt chama o nosso condicionamento humano)atravs de observaes nicas de pessoas falando em contextos scio-espaciaisunvocos, como o caso da entrevista? 6

    Por outro lado, tnhamos a histria de vida uma metodologia com-plexa e largamente experimentada no mbito da antropologia. Contudo, essametodologia evidenciava fortssimos problemas quando utilizada isoladamen-te; em particular, quando realizada repetidamente para cobrir um grupo consi-dervel de entrevistados escolhidos por razes de ordem temtica. O problema essencialmente um de contextualizao sociocultural. Se nos limitarmos a fa-zer histrias de vida a egos escolhidos segundo um perfil determinado (porexemplo, mulheres de meia idade profissionalmente activas, chefes de empresaou pescadores desempregados) arriscamo-nos a coleccionar uma srie de dis-cursos com um elevado contedo de autovalidao pessoal cujo contextointerpretativo ser necessariamente o contraste entre os lugares sociais (de clas-se, etnicidade ou gnero) que os entrevistados atribuam a si prprios e aoentrevistador. Em muitos casos, confrontar-nos-emos com discursos de redu-o de diferena; noutros casos, com discursos de reduo de um qualquer es-

    tigma social que os entrevistados desse tipo sintam que transportam. Perdere-mos a capacidade para enquadrar esses discursos nas prticas internas a umcampo complexo de relaes.

    Este tipo de consequncias mostra bem o que est em causa na crtica deBourdieu (1986) iluso biogrfica e as suas implicaes metodolgicas nascincias sociais contemporneas. Uma vez que a recolha de histrias de vidatende a tratar as vidas individuais isoladamente sem as integrar nos contextosrelacionais em que se inserem, o que nos faltava era um processo deenquadramento de ego. Uma vez que o mtodo biogrfico tornava difcil evi-tar um enfoque individualista e autovalidatrio, urgia desenvolver umametodologia que, limitada como todas necessariamente so, focasse o universo

    de relaes que em torno a ego se constitui sem se limitar a mostrar o ego no seudesejo autovalidatrio.

    No h solues completas e definitivas para estes desafios, mas h meiosde melhorar as nossas pesquisas e foi isso que procurmos: uma forma de inte-grar as velhas metodologias participativas, que procuram alargar o conhecimentodo etngrafo no sobre ego mas sobre o seu mundo de relaes atravs da

    6 Cf. Arendt (1993 [1958]) e para o conceito de contextualizao antropolgica, Pina Cabral (1991).

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    integrao da histria de vida com o mtodo genealgico. A nossa ideia foiencorajar relatos altercentrados em vez de autocentrados que no se constitus-sem apenas com base no relato do percurso de vida do entrevistado mas quepudessem ir mais longe: para que o etngrafo pudesse constituir um conheci-mento de ego mais polifacetado, evitando assim os piores desvios de umaetnografia assente sobre discursos autovalidatrios de minorao de estigma.

    fundamental, pois, para cada hf, levar a cabo vrias entrevistas, o quepermitir promover alguma intimidade entre ego e o entrevistador. Desta for-ma, poderemos passar dos relatos dos factos s experincias vividas e expres-ses emotivas sobre os mesmos. Conforme fomos testando o mtodo, fomosdescobrindo que os dados que assim coligamos sobre as experinciasmultifacetadas dos percursos de vida dos sujeitos se revelavam muito ricos,sobretudo quando analisados comparativamente. As informaes que obtnha-mos quando comparvamos vrias hf de um mesmo contexto social e de ummesmo perodo histrico, revelavam modos de relacionamento e de interpreta-o do mundo que, porque enformam as prticas quotidianas dos sujeitos, trans-cendem largamente as hf individuais. Olhadas no seu conjunto, estas histriasde famlia sobre um mesmo contexto forneciam um riqussimo universo emprico.

    Para alm do texto de Bourdieu, fomos tambm inspirados na poca poralguns ensaios de Daniel Bertaux, que propunha algo de muito semelhante aoque aqui tentaremos expor. Ao trabalhar sobre o processo de mobilidade socialem Frana, Bertaux foi confrontado com a perspectiva excessivamente indivi-dualista e economicista das teorias e correspondentes metodologias sociolgi-

    cas sobre o tema. Fugindo a uma concepo das pessoas como seres isolveis, osocilogo francs props-se integrar sempre os percursos sociais dos sujeitosnos universos familiares e sociais em que estes se inscreviam de forma a poderelaborar explicaes mais contextualizadas sobre esses complexos processossociais (cf. Bertaux e Bertaux 1988).

    Contudo, a principal inspirao veio do contacto repetido com um gru-po de investigadores reunidos por Martine Sgalen em Paris e Poitiers em maisde uma ocasio, investigando sobre a casa, a famlia e a pessoa na Europa(ver Gullestad e Sgalen 1997 [Fr. 1995] e Pina Cabral 1989). O grupo incluaJoan Bestard Camps, Marianne Gullestad, Marilyn Strathern, Anthony Cohen,Jeanette Edwards, Batrix Le Wita, Herv Le Bras e vrios outros.7

    Resumindo, uma histria de famlia (hf) um mtodo de anlise scio--antropolgica que tem por finalidade dar conta do percurso de vida de umsujeito social, integrando-o nas relaes intersubjectivas em que est envolvidoatravs da constituio do seu universo de parentesco. Enquadrar desta forma opercurso de vida de ego permite contextualizar os actores das nossas pesquisas

    7 Sugere-se a leitura da obra de Joan Bestard Parentesco y Modernidad (1998) como provavelmente a melhorentrada ao universo terico e analtico que por essa poca se ia construindo.

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    numa parte essencial da complexa teia de relaes que constitui a sua vida, es-capando ao reducionismo individualizante das descries biogrficas de umego nico. Neste sentido, atravs das hfpropomo-nos desenhar o universo de rela-es familiares de uma pessoa (um ego) e encontrar os processos de estruturao interna(sempre inacabados, est claro) do campo de relaes delimitado pelos horizontes des-se universo numa perspectiva temporal e dinmica que d conta do processo de constitui-o desse universo ao longo da vida de ego e daqueles que, por lhe estarem mais prximos,contribuem de forma decisiva para a sua constituio enquanto pessoa social .

    A crise do mtodo genealgico

    O mtodo de hfest fortemente associado a uma tradio multisecular de estu-do genealgico cujas razes emergem da histria das elites, no s da europeiacomo de muitas outras.8 No faremos aqui a histria do mtodo genealgico talcomo foi codificado para a antropologia por W. H. R. Rivers no incio do sculoXX (1910). Basta dizer que a genealogia veio a constituir um dos instrumentoscentrais da panplia metodolgica do perodo antropolgico clssico.9 A me-lhor introduo prtica antropolgica da metodologia genealgica continua aser, na nossa opinio, o ensaio de John Barnes publicado em The Craft of Social

    Anthropology (Epstein 1967).Porm, com a crtica ao parentesco que se inicia com a publicao de

    Rethinking Anthropology de Edmund Leach (1961), e cujos momentos cruciais

    so Rethinking Kinship and Marriage de Rodney Needham (1971),A Critique of theStudy of Kinship de David Schneider (1984) eAfter Nature de Marilyn Strathern(1992), as anlises sobre o parentesco caram em desuso nos meios antropolgi-cos e, consequentemente, o mesmo aconteceu utilizao do mtodo genealgico.H mesmo, hoje em dia, toda uma gerao de antroplogos a quem os professo-res simplesmente no ensinaram os velhos mtodos de anotao genealgica,por os considerarem inteis. Perdeu-se o beb com a gua do banho!

    No h dvidas de que, no passado, o mtodo genealgico frequente-mente naturalizava tendncias eurocntricas das quais os antroplogos vierama descobrir que se tinham de proteger e correspondia a uma viso biologsticados laos de parentesco, hoje universalmente abandonada pela disciplina.10

    8 Veja-se, por exemplo, a surpreendente semelhana entre os mtodos grficos a que recorriam os chinesesdo perodo Han para determinar genealogias exaltadas por exemplo, as estelas em que se desenha a des-cendncia de Confcio hoje expostas no Templo de Confcio em Qufu, Shandong e os desenhos de rvoresgenealgicas to comuns nos meios aristocrticos europeus dos sculos XVI a XX.9 Ver Notes and Queries on Anthropology (1951: 50 e seguintes). Pelo seu interesse intrnseco para quem hojequeira iniciar o seu trabalho de terreno, decidimos traduzir e transcrever aqui a passagem da verso de 1951desta obra onde se explica a relevncia do mtodo genealgico (ver Apndice I).10 Contudo, muitas acusaes apressadas tm sido feitas aos clssicos da antropologia, como bem demons-tra a seguinte chamada de ateno, retirada da verso de 1951 de Notes and Queries: The following method

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    Contudo, estamos em crer que, se partirmos de uma concepo das relaes deparentesco construda sobre a crtica destas duas tendncias, a metodologia deanotao genealgica volta a apresentar-se como sendo da mxima utilidade.Trata-se de uma forma disponvel e amplamente testada de sistematizar gran-des quantidades de informao sobre parentes, que pode perfeitamente ser adap-tada a qualquer sistema de parentesco que exista pois a flexibilidade do mto-do permite que ele se adapte s especificidades do contexto.

    Nos dias que correm, a maioria dos antroplogos ter dificuldade emaceitar simplesmente o tipo de generalizao com que John Barnes prefacia asua apresentao do mtodo: Em geral, diz-nos ele, cada ser humano ouhomem ou mulher, tem dois e s dois pais (um de cada sexo), pode ter irmos eirms (siblings) que partilham consigo de um ou ambos os pais, pode casar-se epode ter filhos (1967: 102). Quase meio sculo depois, o conceito de gnero foidesnaturalizado e complexificado (cf. Collier, Rosaldo e Yanagisako 1982); obinarismo automtico dos sexos biolgicos foi abandonado (cf. Mariza Corra2004); o conceito de filiao foi diversificado radicalmente (cf. Strathern 1988 ePina Cabral 2003); o conceito analtico de casamento foi praticamente deitado aoferro-velho da histria (Rivire 1971); a prpria noo do caixilho biolgico den-tro do qual ocorria a reproduo social (a relao Natureza/Cultura) foi profun-damente revista.11

    Em suma, o modelo fortesiano da universalidade da famlia elementardeixou de fazer qualquer sentido. Ser, pois, que o mtodo de anotaogenealgica deixa tambm de fazer sentido, j que ele assenta sobre um naipe

    mnimo de termos que poderiam presumir o velho modelo eurocntrico?12

    Trata-se de uma questo cujas implicaes so mais propriamenteepistemolgicas do que antropolgicas. Se adoptarmos uma postura cpticaniilista (do gnero da que presumida pela maior parte dos culturalistas ps-schneiderianos que hoje constituem o status quo antropolgico), ento cada cul-tura dever ser vista como um universo fechado sobre si mesmo e no existirmeio de superar a diversidade cultural. A questo a colocar : qual a naturezado conhecimento antropolgico e qual a sua relevncia? Se tal pergunta nobastar para nos avisar dos perigos implcitos nesse tipo de posicionamento, novaler ento a pena perguntarmo-nos em que medida se estar assim a natura-

    is necessary both for those employing an interpreter and for those who are familiar with the native language,because it is only by means of careful investigation into the kinship system that the exact significance of suchapparently simple words as mother, father, brother, and sister can be ascertained. (1951: 54) Para ns,falantes da lngua portuguesa, que frequentemente realizamos investigao em contextos socioculturaismuito distantes do nosso universo scio-histrico de origem usando o meio comum da nossa lngua mater-na, esta ressalva de que os termos relacionais mais simples podem esconder profundas divergnciasetnogrficas, dever ser particularmente til.11 Ver Strathern (1992) ou Bestard (2004).12 Terminologia utilizada na anotao genealgica: M mother; F father; Z sister; B brother; D daughter;S son; W wife; H husband.

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    lizar culturas? No ser essa tambm uma postura com fortes implicaesideolgicas, j no eurocntricas mas decididamente norteamericanocntricas?H que insistir sobre a necessria falncia intelectual de exerccios desta

    natureza alguns dos quais, por exemplo, chegaram ao absurdo de afirmar que,porque a teoria do parentesco de origem britnica, ela no acessvel aos estu-dantes portugueses de antropologia (Bouquet 1993)!13 Apesar de a reflexo deBouquet sobre os fundamentos culturais nas teorias sobre o parentesco na an-tropologia social britnica ser interessante do ponto de vista da demonstraodo enviesamento analtico que promovem, no podemos porm aceitar a con-cluso de que por essa razo os no britnicos no poderiam estudar parentesconos moldes desenvolvidos pela antropologia clssica. Se assim fosse, que dira-mos ento de uma descontextualizao cultural to mais radical quanto a queenvolveu, por exemplo, Henri Junod na sua tentativa de etnografar os Tsongade Moambique? E que sentido fariam os ensaios fundacionais de Radcliffe-Brown que assentam sobre esse material etnogrfico?14 Em suma, a questo nopode deixar de ser levantada: para que serviu, ento, toda a histria da antropo-logia?

    Voltemos citao de Barnes: no poder ela ser vista de outra forma?H que dar novo sentido expresso em geral, com que ele comea a frase.No ser verdade que, na maior parte dos casos das sociedades (histricas eactuais) descritas por antroplogos e historiadores, existem laos de um tipoaproximado da filiao materna e paterna tal como elas tm vindo a ser compre-endidas pela antropologia? No ser verdade que, em consequncia, existem

    quase sempre laos do tipo fraterno e sororal? No ser verdade que, se bemque existam sociedades em que tal no se verifique, a maior parte das crianasque so constitudas como novas pessoas sociais socializada em contextos emque existe um reconhecimento de uma relao social (de tipo conjugal) entreas pessoas que supostamente praticaram o acto de reproduo biolgica quedeu azo ao seu nascimento?

    Se assumirmos uma postura epistemolgica essencialmente realista, quepresuma que existem formas de superar, pelo menos parcialmente, o abismocomunicacional que a diferena cultural humana constitui, ento podemos no-vamente relanar o exerccio de comparao intercultural. A antropologia ne-cessita hoje de superar o niilismo culturalista e a economia acadmica da dife-

    rena que leva cada antroplogo a insistir na natureza absoluta das diferenasque a sua etnografia revela, sem sentir necessidade de comentar sobre a seme-lhana (semelhana essa que, sem dvida, existe; seno como teria sido possvelrealizar a etnografia?). H que praticar uma forma de realismo minimal que

    13 Marilyn Strathern reproduz esta viso como uma descoberta de natureza emprica no seu Discurso Inau-gural como Professora em Cambridge (1995).14 Cf. Junod (1962 [1927]) e Radcliffe-Brown (1952).

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    permita compreender a profunda diversidade cultural que a antropologia des-creve, evitando o absurdo de reduzir a humanidade ao solipcismo culturalista(ver por exemplo Lynch 1998).

    Christian Geffray termina com o seguinte comentrio a sua etnografiado parentesco macua (norte de Moambique), na qual demonstra centralmenteque os termos europeus pai e me no tm uma fcil adaptao ao contextocultural macua:

    A noo de parentesco deve, pois, ser dissociada das de paternidade, materni-dade ou consanguinidade, cada uma das quais constitui uma figura histricaparticular. H que ter em mente que a consanguinidade o princpio de trans-misso do sangue ou dos gametas dos nossos genitores como concepo da

    filiao legtima estritamente anlogo, quanto sua motivao tanto quanto sua finalidade, ao princpio de transmisso do nihimo o esprito dos ante-passados macua. Trata-se, em ambos os casos, de uma simbolizao do laosocial que associa uma criana autoridade de quem pretende, em seu prprionome ou em nome do seu grupo, ter transmitido a essa criana o esprito (onihimo) ou o gameta.

    As palavras pai, me, etc., no devem ser usadas na exposio cientfica deum dispositivo de parentesco domstico seno na medida em que a sua utilizaocrtica garanta o seu desaparecimento provvel no decorrer da investigao, porforma a permitir a apreenso do verdadeiro significado da prtica social e a reve-lao do significado exacto dos termos de parentesco. S nessa condio, poder ainterpretao etnolgica evitar tornar-se a elaborao intelectual interminvel dosefeitos de sentido produzidos pela substituio dos nossos gametas ao esprito dosantepassados dos nossos interlocutores. (1990: 163-4)

    Citamos esta passagem em toda a sua extenso porque ela revela interes-santemente a dependncia do conhecimento etnogrfico do prprio processoda sua constituio; mais, ela mostra como toda e qualquer etnografia s podecomear de um qualquer ponto de partida. Mas essa prpria noo de umponto de partida etnogrfico no dever ser tambm etnografada? Isto , por-que no examinamos ns o percurso de desenvolvimento do conhecimento queproduzimos quando fazemos etnografia? Ser que esse ponto de partida umponto de vista cultural unvoco? Ser que todos os etngrafos comeam neces-

    sariamente as suas etnografias a partir de uma espcie de barra comum que atal cultura ocidental? (cf. Pina Cabral 2005). Ser que o processo de desetno-centrificao (cf. Pitt-Rivers em Pina Cabral e Campbell 1992) que a antropolo-gia tem realizado atravs do seu sculo e meio de existncia (e toda a acumula-o de conhecimento etnogrfico anterior ao desenvolvimento da antropologiaacadmica) no tem efeito sobre o ponto de partida do etngrafo?

    H uma ressalva que deve sempre ser feita e que frequentemente a crti-ca culturalista antropolgica esquece. Assim a formula Merleau-Ponty:

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    Uma vez que estamos todos rodeados pela histria, depende de ns compreen-dermos que a verdade a que tivermos acesso dever ser alcanada, no custa,mas atravs da nossa inerncia histrica. Considerada superficialmente, a nos-sa inerncia destri toda a verdade. Enquanto eu defender o ideal de um espec-tador ideal, do conhecimento sem ponto de vista, s poderei ver a minha situ-ao como uma fonte de erro. Mas, mal reconhea que atravs dela estou en-xertado em toda a aco e todo o conhecimento que possa ter para mim signifi-cado, e que, passo a passo, ela contm tudo o que pode existir para mim, ento,o meu contacto com o social na finitude da minha situao -me revelado comoponto de origem de toda a verdade, incluindo a verdade cientfica. (1964: 109)

    Nesse sentido, o etngrafo no est especialmente protegido pelo facto daetnografia das sociedades urbanas contemporneas no apresentar normalmenteas dificuldades de adaptao terminolgica que se levantam em casos como odos macuas de Moambique (at porque a vida das grandes metrpoles con-temporneas frequentemente ocorre em torno a se no mesmo exclusivamen-te em uma das lnguas ocidentais que o colonialismo europeu vulgarizou: in-gls, francs, portugus, espanhol). Muitas vezes as pequenas diferenas com-parativas so as mais difceis de elucidar e a aparente universalidade dos ter-mos de parentesco pode esconder subtis diferenas (por exemplo, no tom dorelacionamento entre os gneros, na natureza dos laos de adopo, etc., etc.).

    Concluindo, a proposta que aqui fazemos que a longa tradio de utili-zao do mtodo genealgico um riqussimo capital intelectual que pode serusado criticamente na constituio de informao emprica densa sobre as for-

    mas de estar relacionado (relatedness), adoptando ns a definio de parentes-co proposta por Janet Carsten (2000), que o identifica como o campo desses queos egos das nossas etnografias sentem estar com eles relacionados de formantima e familiar e que tem vindo a ser desenvolvida de forma to criativa poretngrafos recentes (por exemplo Viegas 2003, MacCallum 2001).

    Uma hiptese de trabalho

    Uma ltima questo prvia merece a nossa ateno. Quando propomos umametodologia de histrias de famlia no queremos sugerir que toda a investi-

    gao antropolgica se deva limitar ao estudo do parentesco ou da famlia, nemsequer que o mtodo s seja til para os antroplogos da famlia.

    Com o passar dos anos e a experincia acumulada, temos verificado quehf um mtodo que permite explorar os aspectos mais variados das relaesprximas dos agentes sociais, que ultrapassa em muito o que tradicionalmentese concebe como famlia ou parentesco. Ao falar longa e detalhadamentesobre o seu percurso de vida, as suas relaes familiares, a histria da sua fam-lia e das relaes e opes dos que a compem, ego fala inevitavelmente de

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    contextos de sociabilidade, constrangimentos socioeconmicos, percursos esco-lares ou projectos educacionais. Ao faz-lo na perspectiva definida pela histriade famlia tornamos visveis as transformaes ocorridas entre as geraes. Acomparao dos materiais empricos provenientes de diversas histrias de fa-mlia permite-nos uma compreenso densa de contextos sociais a que no pode-ramos aceder de outra forma. Assim, sob o pretexto de elaborar a histria defamlia, o antroplogo tem a possibilidade de fazer uma verdadeira incursoetnogrfica ao universo relacional, referencial e existencial dos numerosos sujei-tos envolvidos nos relatos egocentrados.

    Alis, estamos convencidos que no possvel nem desejvel estudar afamlia enquanto um universo social relativamente estanque. Esta uma dasprincipais objeces que temos a muito do que se escreve como sociologia dafamlia e que assenta sobre metodologias quantitativas (ou metodologias qua-litativas no presenciais). Para quem, como ns, foi criado e continua a aderir aoenunciado metodolgico clssico do holismo, o estudo da famlia per se apresen-ta-se como indesejvel. Assim, h que insistir que toda e qualquer hf(ou melhor,toda e qualquer srie de hfrealizadas num dado contexto etnogrfico) deve serdirigida por interesses temticos que se encontram para alm dela e que apontempara um debate terico particular. Sem uma orientao, o exerccio de elabora-o da hfpode facilmente tornar-se num mero levantamento genealgico, o que pouco interessante do ponto de vista antropolgico.

    O que se pretende enquadrar socialmente as histrias das formas derelacionamento familiar de ego e dos seus parentes no tempo longo que lem-

    brado pela sua memria. Que material recolher sobre os parentes de ego? Queaspectos das relaes sociais enfatizar? Na recolha de materiais para a base dedados de parentes, temos de escolher itens que sejam relevantes em termos doprojecto de investigao especfico do etngrafo (h quem se interesse por reli-gio, por agrupamentos domsticos, por relaes profissionais, por formas deconsumo, por atitudes perante a morte, por questes de gnero). Para todosestes temas o mtodo de hfrevela-se altamente til, pois permite recolher infor-mao sobre experincias, reflexes, descries ou factos sobre o tema da nossapesquisa, mas sempre contextualizadas na teia de relaes e dimenses em quese constitui a vida de uma pessoa.

    Elaborar uma hfno , portanto, o objectivo final de uma pesquisa. No nos-

    so entender as hfso um instrumento metodolgico extraordinariamente til pa-ra recolher informao emprica sobre um dado contexto social, ou sobre umqualquer tema, no mbito de um projecto de investigao. Elaborar vrias hfnummesmo contexto tem precisamente como objectivo ver para l das particularidadesde cada caso e conhecer etnograficamente a densidade do contexto em que essasvrias hfse constituem. Para comear, h, portanto, que identificar em termos mui-to gerais o terreno onde se realizar a procura do ego (sobretudo do primeiroego).

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    Porm, antes de entrarmos na especificao dos vrios passos da investi-gao, h que realizar algumas consideraes gerais sobre os parmetros concep-tuais que sustentam o nosso projecto metodolgico:

    (A) Horizontes

    A expresso horizontes do parentesco usada aqui para dar a entender queestar relacionado um fenmeno expansivo (tipicamente egocentrado) em queos limites do universo de parentes recordado por ego no so do tipo fronteiramas do tipo horizonte. Com isto queremos dizer que so vagos e so potencial-mente mveis. Ao longo destes anos de prtica do mtodo temos verificado que possvel levar um ego a lembrar-se de muitos mais parentes do que se lembra-ria (a) se no estivesse a fazer um exerccio de recordao estimulado pela nossainsistncia para falar de todos os seus parentes de que se lembra, dando o mximode informao possvel sobre cada um deles; (b) se no lhe permitssemos recorreraos meios mnemnicos que o contexto quotidiano de coisas e pessoas que o rodeialhe fornece por exemplo, tanto fotos e cartas como a memria de quem com elevive quotidianamente e de quem ele sabe que pode depender.

    Contudo, limites existem e isso que relevante. Queremos dizer queexistem zonas de relacionamento em que a pessoa em causa tem uma relaogenealogicamente distante com ego i.e. est a deixar de ser parente de ego,ou como se diz em Portugal para explicar que essa pessoa se situa nesse mesmohorizonte de parentesco, ele ainda meu parente ou ela ainda minha pri-

    ma. E que fique bem claro que esse processo no igual em toda a parte. Ahistria da antropologia tem-nos mostrado que diferentes contextossocioculturais produzem diferentes tipos de horizontes de parentesco e distin-tos sistemas simblicos e cosmolgicos para atribuir sentido s diversas formasde relacionamento. Por exemplo, a existncia de linhagens ou de casas (nosentido de Lvi-Strauss de socit maison, cf. 1981: 166-7) altera radicalmente oprocesso de definio de um parente.

    (B) Parentesco

    O parentesco promove um tipo de relacionamento que se constitui atravs do

    processo de integrao entre a reproduo biolgica e a constituio social dapessoa. Na larga maioria das sociedades e contextos sociais at hoje estudadospor antroplogos, essa integrao o principal processo pelo qual a pessoa ob-tm as suas solidariedades primrias que, por sua vez, a constituem enquantopessoa desde o incio da sua vida fsica.15 Na largussima maioria dos casos dos

    15 No vamos entrar aqui em grandes discusses terminolgicas. Recomendamos Os contextos da antropolo-gia (Pina Cabral 1991) e Parentesco y Modernidad de Joan Bestard(1998)para um aprofundamento da matria.

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    seres humanos conhecidos, estes laos nunca os abandonam completamente atao fim das suas vidas fsicas e, est claro, para alm delas ainda, enquanto ofacto de essas pessoas terem existido continuar a constituir um plo de agnciasocial relevante para outros agentes sociais, bem para alm da sua morte.

    Dito de outra forma, h muitas maneiras de construir relaes de paren-tesco e de lhes atribuir significado o registo etnogrfico , felizmente, suficien-temente rico para que um erudito possa passar a sua vida inteira a explorar aquesto sem jamais a conseguir esgotar mas compreender o significado e arelevncia das relaes assim constitudas um factor incontornvel doenquadramento dos agentes sociais. No h nenhum contexto socioculturaldurvel que tenha sido registado pelas cincias sociais at hoje em que no te-nham existido fenmenos que poderamos considerar latu sensu do tipo do pa-rentesco.

    Assim, h dois aspectos definicionais que merecem a nossa especial aten-o. Como no sabemos de antemo a forma como o nosso ego est relacionadocom aqueles que considera os seus parentes, nem sabemos partida o significa-do e a importncia que atribui a essas relaes, propomos que, para finsmetodolgicos de hf, parentesco aquilo que o entrevistado achar que parentesco .16

    Parte da habilidade do etngrafo consiste em ir apurando isso mesmo conformevai conversando com ego sobre os seus parentes e sobre as relaes que comeles mantm. um processo defuzzy logic: ns conhecemos o cerne do que egopensa que parentesco e depois, atravs de um processo de interaco dinmi-ca, vamo-nos aproximando de um modelo do que ele trata como sendo um pa-

    rente.

    No texto metodolgico fundacional do perodo clssico, o Notes and Queries on Anthropology (1951), kinship definido nos seguintes termos: Kinship is relationship actually or putatively traced through parent-child orsibling relations, and recognized for social purposes. (p. 75) Posta assim, na sua mxima generalidade, adefinio parece continuar a ser bastante til aproximando-se do conceito de estar relacionado de Strathern(1998, cf. Carsten 2000). Note-se, porm, que a definio exclui a afinidade, tratando-a como algo de dife-renciado do parentesco o que caracterstico das terminologias anglo-saxnicas de parentesco e que asdiferencia importantemente dos sistemas continentais associados s lnguas romnicas, nas quais os laosde afinidade so tratados como constituindo um tipo de parentesco. Por isso a famosa introduo de RobinFox se chama em ingls Kinship and Marriage (1974) e a no menos importante colectnea de Rodney NeedhamRethinking Kinship and Marriage (1971) correctamente traduzida para francs como La parent en question(1971a) e no parent et mariage.16

    Achar aqui uma simplificao, est claro. que se levantam duas questes candentes e altamenteproblemticas para a teoria antropolgica: (a) a questo da conscincia (isto , o que conscientementepensado, por relao ao que feito e pensado sem que seja possvel ao agente propriamente formul-lo) e (b)a questo da expresso ( que h muitas coisas que ns sabemos, e sabemos que sabemos, para as quaisno temos imediatamente meios lingusticos de expresso). Por isso, achar, aqui, nesse sentido mais geral,cobre tanto (i) as formulaes explcitas sobre parentesco, como (ii) as formas de actuao mais ou menosconscientes que reflectem a existncia de uma concepo de parentesco, como ainda (iii) as implicaes dasaces das pessoas e da cultura material de que se rodeiam (tipicamente representaes de parentes ouobjectos que lembram esses parentes ou ainda prottipos de relacionamento como, por exemplo, osprespios que se encontram um pouco por toda Europa na poca do Natal) sobre o que possa ser parentes-co para eles.

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    Estamos, portanto, a defender uma formulao no-cognitivista do pa-rentesco, que evita a implicao de que h na cabea de ego uma representa-o, de um modelo definido do que um parente. Ora, o que leva um ego aclassificar uma outra pessoa como parente pode no ser descritvel por ele (pro-por modelos ou prottipos das categorias sociais operantes no uma funode ego mas do etngrafo) e no necessariamente formalizvel em termos abs-tractos (podendo revelar-se deslizante e sujeito a circunstancialismos).17Alis, aexperincia sugere que, na grande maioria de contextos etnogrficos, precisa-mente assim que as coisas se passam.

    Acontece que, pelo menos nos contextos que temos estudado em Portu-gal, h dois tipos de processos de expanso e de retraco que so clssicos.No queremos com isto dizer que so nicos, mas sim que, porque so muitocomuns, constituem bons exemplos de como os horizontes do que um parenteso escorregadios.

    Um dos processos de expanso tipicamente constitudo pelas situaesque os antroplogos do perodo clssico chamavam parentesco fictcio ouparentesco espiritual (ver Pitt-Rivers 1973), resultantes do compadrio catli-co ou das suas extenses agnsticas, que agora comeam a ser to frequentesem Portugal.

    O outro o das amizades (ver J. Cuc 1984) constitudas por casais (porvezes, mas no sempre, resultantes de alianas entre pessoas do mesmo gneroconstitudas durante a juventude por um dos membros desse casal). No momentoem que estes tm filhos, o outro casal frequentemente assume um papel de paren-

    tesco para com esses filhos que demarcado pela utilizao da expresso tio/tiapor parte do jovem sem que o membro da gerao superior o chame por sobri-nho/a a forma de tratamento usando um termo de parentesco assimtrica. 18

    Os processos de retraco que temos encontrado so igualmente inte-ressantes. Mais uma vez, no possvel limitar a gama de casos, mas em Portu-gal temos encontrado duas situaes de retraco de parentesco que so am-plamente exemplificativas do que temos em mente. A primeira a retraco declasse: isto , ego tende a conhecer melhor os parentes que lhe esto maisprximos em termos de classe econmica e educacional ou que lhe esto imedi-atamente acima.19 Pelo contrrio, os que lhe esto a baixo numa hierarquizaoscio-econmica difusa tendem a ser menos vivamente lembrados, sendo

    mesmo esquecidos na gerao seguinte. Nesses casos, os horizontes do seu uni-verso de parentesco tendem a retrair-se.

    17 A maioria das categorias em causa so politticas, cf. Needham 1975.18 Urge lembrar que, apesar deste tipo de uso de tio/tia estar em expanso em Portugal entre as classesmdias como forma de apelao, no h como confundir os casos em que ego afirma ele quase como sefosse meu filho, foi criado aqui connosco junto com os meus filhos, mais prximo do que muitosparentes, ela como se fosse minha tia que representam formas de proximidade relacional que, sendomuito importantes para os sujeitos so, por essa razo, associadas a relaes de parentesco.19 Conhecer melhor no sentido de saber mais coisas sobre, por exemplo, nome, profisso, gostos, etc.

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    O segundo residencial. Ego tende a ter informao mais rica sobre quemvive prximo ou sobre quem vive na casa ou no local de onde a famlia originria (e isso pode ser formulado de muitas maneiras diferentes). Osoutlaying kin tendem a ser menos ricamente conhecidos. Alis, os dois processos(classe e residncia) tendem a combinar-se. Podemos encontrar fenmenos des-ta natureza por exemplo nos bairros populares onde as relaes sociais seconstituem articulando parentesco, vizinhana e actividade profissional (Lima1992) tanto quanto entre a burguesia portuense (Pina Cabral 1991), j que emcontextos urbanos modernos h tendncia a um reagrupamento das famliasem bairros claramente marcados em termos de perfil de classe.

    Na verdade, por relao vizinhana residencial, o processo concomitantemente expansivo e retractivo. Em Portugal, tipicamente (e tantoem contextos rurais como urbanos), os laos de proximidade residencial cru-zam-se tanto com o parentesco como com a insero de classe, sobretudo no seuaspecto scio-educacional. que, por um lado, a recorrncia entre ns de taxaselevadas de homogamia e, por outro, a tendncia constituio de vicinalidades(cf. Pina Cabral 1991), resultam numa complexificao (que expande para um ladoe retrai para outro) das fronteiras entre vizinhana e parentesco.

    Finalmente, h que no esquecer a possibilidade de ocorrncia de situa-es de pura excluso (silenciamento, amnsia estrutural, como se che-gou a dizer): esses casos em que o etngrafo acaba por descobrir que houvepessoas que, por virtude de um estigma, de opes ideolgicas religiosas oupolticas diferentes, ou porque optaram por sair do grupo tnico, foram pura e

    simplesmente excludas da memria familiar e consequentemente, esquecidaspassadas uma ou duas geraes.20 Os casos das famlias em que a memria pas-sada perdura ao longo de muitas geraes so normalmente aqueles que estoassociados a situaes em que h muitos bens (sejam eles materiais, simblicos,culturais ou financeiros) para passar s geraes seguintes.

    O universo familiar de ego (que o etngrafo pretende esquematizar) ,portanto, construdo por ele (pela sua memria, pelas suas vivncias, pela suaavaliao das pessoas e situaes que foram mais marcantes nos diversos pero-dos da sua vida) assim como pelas pessoas e pelas coisas21 que mais proxima-mente o rodeiam. O resultado que obtemos , portanto, a verso de ego da his-tria da sua famlia e no a verdadeirahistria da sua famlia. Se fizermos o mes-mo exerccio com outro membro da famlia, de outra gerao ou com outro tipode vivncias, o resultado ser certamente diferente.

    20 Em Portugal, por exemplo, encontrmos casos de excluso deste tipo em famlias oriundas do semi-conti-nente indiano.21 Insistimos neste aspecto, j que a natureza social dos objectos materiais que rodeiam os agentes sociaisno constituda por eles de novo a cada momento; o mundo material apresenta-se sempre como social-mente pr-constitudo, pelo que afecta constantemente os agentes sociais nas suas opes (sociais e cultu-rais, est claro).

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    (C) Ego

    As entrevistas so, em princpio, realizadas apenas a uma pessoa: o ego. Con-tudo, comum que, no decorrer da pesquisa, ego recorra a outras pessoas e aobjectos de memria (fotos, cartas, genealogias, placas funerrias, etc.) para res-ponder a certas questes e completar certos pormenores.

    O mtodo dehfcontempla centralmente tais situaes: a regra de ouro nada de purismos individualistas nem de prises a regras muito estri-tas! que uma pessoa tambm no algo que tenha fronteiras claras. Amemria de qualquer um de ns no de forma alguma uma base de dadosdeterminvel. Pelo contrrio, o nosso quotidiano constantemente feito de me-mrias partilhadas com coisas e com pessoas. Alis, aqui at temos um muitobom exemplo da lgica latouriana (Latour 1994 [1991]) de hibridismo sujeito/objecto.

    Quantas vezes encontramos casais em que h uma diviso explcita dotrabalho de memria, de tal maneira que um deles se especializa em certasquestes e o outro noutras? to vulgar como as pessoas fazerem-se rodear defotografias ou documentos escritos que reavivam a memria. O prprio con-ceito de memria, com as suas implicaes de coisa determinada e cognitivamentesituada, muito enganador nesta matria.

    Em suma, quando se faz uma hf, h que deixar fluir o processo hque deixar que ego recorra e se rodeie do que e de quem achar bem. O pro-cesso de construo com ego da hf, e deve ser, interactivo; to interactivo

    para o etngrafo como para ego e o mais frequente que, na sucesso deentrevistas, se descubra que um bom ego (i.e., um ego que se entusiasmacom a procura) est a fazer investigao para completar o material. Nose preocupe que isso altere a fiabilidade dos dados, porque, afinal, no podehaver tal coisa como uma hf verdadeira ou completa. Deixe que egoassim pense se lhe aprouver, pois lhe permite mais gozo, mas no se engane oetngrafo.

    (D) Conhecer

    Ns queremos captar o que ego sabe sobre os seus parentes. Mas que isso de

    saber? J vimos que, por um lado, parentes uma categoria deslizante eque, por outro, o tal conhecimento pode no ser sedeado constantemente namente consciente de ego, pelo que este poder ter que o ir procurar a outro stio.Agora a questo : que isso que ele sabe sobre essas pessoas que determinacomo parentes? Aqui o limite o cu, como se diria em ingls. No h fim parao que algum sabe sobre outra pessoa com quem interagiu intersubjectivamentede forma intensa (e, portanto, constitutivamente para ambos). Compete aoetngrafo escolhero que quer. Porm, temos clara conscincia que ego s nos fala

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    do que quer e sobre os aspectos que pensa que nos podero interessar.22

    Haqui, portanto, um conjunto de opes, tanto de ego como do investigador, querevelam claramente que estamos perante a hffeita por aquele ego e por aqueleetngrafo num momento histrico particular.

    A este propsito levantam-se duas consideraes centrais. A primeira que urge escolher itens de conhecimento que surjam como relevantes para ouniverso de parentesco de ego (no caso portugus, por exemplo: o nome, a resi-dncia, a naturalidade, a profisso, o nvel educacional, etc.). Isto , procure-seperceber o que que, para ego e os seus parentes, qualifica o gnero de pessoaque ele/a [o parente em causa] . Esta vaga categoria fascinante, at porque,frequentemente, verificamos que contm formas de descrio psicologizadas(bom tipo, gaja porreira, megera, pessoa intratvel, etc.) que, quandocomeamos a analisar os dados, acabam por revelar-se menos irrelevantes doque possam parecer primeira vista. Estas categorias dizem-nos muito sobre oprprio ego, sobre as suas concepes de vida, sobre a sua concepo do mun-do.

    Mas o aspecto principal, ainda no referido, deste tema do conhecimen-to a intensidade do saber. H processos de intensificao e desintensificaode conhecimento que correspondem a maior ou menor relevncia relacional.Ora, tal pode resultar de proximidade tipicamente scio-educacional mastambm do seu contrrio; j vimos, por exemplo, que em Portugal ocorre, comfrequncia, um processo de esquecimento para baixo e avivao para cima., por vezes, fcil determinar estas assimetrias da memria mesmo quando se

    estuda um nico ego muito mais ainda, se fizermos hfde pessoas relacionadasentre si.

    Por exemplo, quando analisamos a informao que ego nos deu sobretodos os parentes do seu universo total de parentesco a totalidade da genealo-gia que construmos e a comparamos com as informaes particulares que nosdeu sobre cada um dos seus parentes e sobre as relaes que mantm com cadaum deles, vemos claramente que h diferentes universos de relacionamento ede conhecimento, e que essas diferenas correspondem a diferenas na formade fazer parentesco com cada um deles. A anlise dessas diferenas, a com-preenso das razes e motivaes para estabelecer ou no relacionamentos maisou menos fortes com este ou aquele parente constituem excelentes pistas de

    reflexo para a compreenso das relaes de parentesco que estamos a tentarcompreender.

    Nos horizontes, a intensidade do conhecimento tende a reduzir-se: porexemplo, ego j no sabe o nome prprio do parente; no tem a certeza da sua

    22 E ainda isto uma simplificao. Todos sabemos que h coisas que talvez at preferssemos no referirmas que no nos sentimos capacitados para silenciar e h outras coisas que no temos o menor pejo depassar de lado. O poder simblico funciona na nossa mente sempre na margem da nossa conscincia.

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    profisso; no sabe se tem dois filhos ou um filho e uma filha; no sabe ondemora nem se lembra do nome do seu cnjuge. Este processo de deterioraodo conhecimento no horizonte tem um especial interesse para ns, pelo querevela sobre quais os factores relevantes de qualificao de pessoas no mundosocial que ego habita, mostrando que, sem relao, no h parentesco efectivo.A anlise do tipo e da quantidade de informao que os nossos interlocutoresnos do sobre os parentes nos horizontes do seu universo sugere que h umarelao clara entre o conhecimento detalhado de um familiar e a proximidadeinter-subjectiva e relacional que com ele ego mantm sabemos mais coisassobre as pessoas com quem interagimos do que sobre aqueles com quem nomantemos relaes prximas com alguma regularidade.

    Mas h tambm uma relao directa entre a importncia simblica e oprestgio social dos parentes e o conhecimento que ego tem deles, independen-temente da intensidade e frequncia dos seus contactos pessoais sabemos maiscoisas e falamos publicamente mais das pessoas importantes da nossa famliado que sobre aquelas que no se destacam socialmente por nenhuma razo. Oscasos de sociedades em que existem linhagens ou em que existiram processosde distanciamento migratrio do azo a processos de intensificao de conheci-mento do gnero aqui explicitado.

    Os estdios do processo

    O que se segue uma proposta de estdios de aproximao realizao de umahf. No propomos mais do que um prottipo, a ser interpretado e adaptado porcada etngrafo; tanto criativamente, na relao que desenvolve com o seu ego efamlia, como tematicamente, em termos da especializao temtica preferenci-al da sua etnografia. Qualquer utilizao mecanicista de uma propostametodolgica, pelo menos nas cincias sociais, enganadora. No h dois con-textos iguais; para se tirar os mesmos proveitos de contextos diferentes neces-srio adaptar criativamente os instrumentos metodolgicos de que dispomostornando-os culturalmente significativos. Assim, o etngrafo deve abordar oprocesso de realizao de cada hfcomo algo de novo e diferenciado.

    1 momento: constituio do terreno

    Como em todas as pesquisas empricas, uma parte substancial da nossa visodo terreno depende tanto da especificidade deste como das maneiras particu-lares como cada investigador nele se integra e se relaciona com as pessoas que aencontra. Esta questo relevante pois condiciona largamente a forma como seconduz o estabelecimento de contactos com a populao e a entrada nas rela-es sociais locais. Por exemplo, eu posso querer estudar padres ou freiras no

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    norte de Portugal e ser sobrinho de um padre ou de uma freira, o que facilmenteme introduzir aos meios clericais da zona onde quero estudar; posso ser filhode uma professora e ter acesso facilitado a pais de alunos; etc. Mas posso tam-bm ser portugus, branco e catlico e querer estudar curandeiros guineensesmuulmanos o que exigir de mim um trabalho mais prolongado, tanto emtermos bibliogrficos (porque j no h parte nenhuma do mundo onde umetngrafo no tenha ido antes de ns e um historiador escrito uma tese dedoutoramento!) como relacionais. O 1 momento consiste, portanto, em de-terminar um terreno em termos da hiptese de trabalho que nos guia.

    2 momento: procura de ego

    Ao longo da pesquisa, o antroplogo vai-se relacionando com diversas pessoas.De entre estas, algumas, pelas suas caractersticas pessoais ou particularidadesde vida, revelam-se mais ou menos interessantes e dispostas a colaborar na ela-borao de uma hf. preciso encontrar pessoas que se queiram tornar egos dashfque os investigadores querem realizar.

    Um dos elementos decisivos na escolha de um ego a sua disponibilida-de de tempo e a sua disposio favorvel para connosco pois necessriorealizar vrias entrevistas (nunca menos de trs para cada ego) relativamentelongas, o que torna o exerccio da hffrequentemente um pouco pesado para oego. Pode acontecer ser necessrio fazer 10 entrevistas a um mesmo ego, noscasos em que a sua memria e interesse pelo exerccio que lhes propomos o

    entusiasme a ponto de no querer parar. A caber ao antroplogo avaliar quan-do atingiu o ponto de saturao de informao (cf. Bertaux 1988) para imporum fim recolha emprica.

    Encontrar o primeiro ego pode no ser muito fcil ou rpido. Este pro-blema tende a diminuir com a escolha dos egos seguintes pois, por um lado, nsprprios conhecemos melhor os condicionamentos locais dos egos; por outrolado, porque comum eles/as passarem palavra uns aos outros, pelo quesurgem fenmenos at, por vezes, de competio pela ateno do etngrafo. Oconhecido efeito bola de neve o melhor para obter outros egos de seguida,desde que a relao com o primeiro tenha sido bem sucedida.

    Para alm da explicao das razes de ser da realizao de uma hf, a

    entrevista preliminar com um possvel ego deve contemplar o preenchimentode uma ficha de identificao que permitir traar um perfil de ego.

    Cada etngrafo definir a sua prpria ficha de identificao, e esta temde ser elaborada para cada pesquisa pois o seu contedo depende de onde seest e dos objectivos da pesquisa. Contudo, em contextos europeus, pelo me-nos, ela deve contemplar: (a) nome, (b) idade, (c) naturalidade, (d) condioconjugal, (e) residncia actual, (f) n de filhos e filhas, (g) educao e/ou nvel deliteracia, (h) profisso e brevssima histria profissional, (i) nacionalidade/s (e

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    se houve alterao), (j) profisso dos pais. Para alm destes elementos pode incluir--se tudo o que, podendo ser perguntado de forma simples e respondido inequivo-camente, lhe ocorra como til. Com base nesta ficha temos uma caracterizao ge-nrica de ego e da sua famlia que nos permite aferir do interesse desse caso para anossa pesquisa e definir linhas de orientao para as entrevistas seguintes.23

    H, porm, situaes em que no possvel coligir todos estes dados.Por exemplo, em So Tom, um colega nosso descobriu que a inquirio siste-mtica sobre nomes de pessoas e a consequente posse de listas de nomes erauma actividade altamente suspeita luz do complexo de crenas sobre a bruxa-ria (seno tambm por virtude da relao ambgua com o oficialato estatal Valverde 2000). Esteja atento a esse tipo de situaes e os seus inerentes riscos mais tarde, quando detiver a confiana de cada entrevistado, talvez se revelepossvel obter esses dados com mais franqueza.

    Por estas razes no propomos aqui mais do que disposies gerais adap-tveis s necessidades de cada contexto e aos interesses de cada pesquisador.Contudo, vale a pena sublinhar que, dependendo do contexto que analisamos edas temticas principais da nossa pesquisa, outras perguntas podem ser inclu-das nesta ficha inicial. Por exemplo, h contextos de classe alta no Brasil ou emHong Kong onde faria sentido perguntar que clube social que a famlia patro-cina; h contextos de classe mdia baixa em Portugal, entre homens, onde fazsentido saber qual o clube de futebol por que torcem; h contextos em que tilsaber onde esto os pais enterrados ou em que templo confuciano se encontramas suas plaquetas ancestrais; saber a alcunha (bras. apelido) da famlia ou da

    casa; a escola onde vo os filhos; o templo que patrocinam; a frequncia departicipao nos cultos ou a frequncia na visita aos supermercados.

    Antes, depois ou durante o preenchimento da ficha, o etngrafo deve irintroduzindo perguntas abertas cujas respostas mais lhe facilitaro o trabalhode conhecer o ego e, ao mesmo tempo, permitiro ao ego estar preparado para aeventualidade de futuras entrevistas para realizar hf.

    tambm importante no deixar de escrever no seu caderno de campotudo o que lhe tenha parecido relevante em torno da entrevista e do entrevista-do mesmo, e sobretudo, se este respondeu a todas as perguntas da ficha adigesto temtica do que se passou de toda a relevncia futura. No esque-a que, para alm de tudo, o momento de conversa para a elaborao de hf um

    momento de observao etnogrfica, onde as diversas dimenses da interacopara alm dos dados fornecidos sobre a hfso elementos empricos relevantes.23 Manter esta grelha importante para podermos ter um conjunto de informao igual para os diversosegos das vrias hfque vamos realizar. Claro que se verificarmos que necessrio fazer alteraes propostainicial no devemos hesitar excessivamente e devemos adaptar a grelha s exigncias do contexto. Todavia,no devemos ir demasiado longe nessa alterao para que no se descubra no fim de vrias hfque se fizeramperguntas diferentes a pessoas diferentes e no se tem sries contnuas de respostas, o que inviabiliza acomparao entre elas.

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    3 momento: o percurso biogrfico

    Tendo escolhido o seu ego e combinado com ele o primeiro encontro, h quecomear por fazer o enquadramento do ego de forma a identificar quais astemticas e as questes que podem ser relevantes e/ou problemticas ao longodo processo de recolha de informao. Comece por efectuar sries de perguntassobre processos temticos definidos previamente como especialmente relevan-tes (tanto em termos do contexto como das questes tericas que orientam onosso trabalho). Lembre-se de realizar este questionamento tendo em menteuma lgica de natureza temporal (isto , identifique, se possvel, percursospois o que se pretende ver the family in the making e no apenas reunir umconjunto cumulativo de factos da sua histria).

    A partir da nossa experincia de utilizao deste mtodo propomos asseguintes temticas iniciais como estratgia para pr as pessoas a conversar maislongamente e a contar histrias e experincias vividas, o que nem sempre fcil:(a) histria residencial, (b) histria educacional, (c) histria profissional, (d) his-tria de migrao, (e) histria conjugal, (f) histria relacional. Se, por exemplo, aquesto residencial se relevar interessante para o seu projecto ento convmcaptar o percurso biogrfico de ego nesse aspecto, mesmo antes de comear arecolher o material genealgico. De preferncia, sonde o ego: faa uma srie deperguntas abertas mas dirigidas. Para voltar ao mesmo exemplo: Quando nas-ceu, em que casa que vivia? A casa era dos seus pais? Quando foi concebido,os seus pais j l moravam? Se, para dar outro exemplo, a questo da nomea-

    o informal for relevante, ser ento necessrio questionar ego sobre as dife-rentes alcunhas (bras. apelidos) que foi recebendo durante a sua vida.

    Frequentemente, muito til perceber desde o incio se h uma histriade migrao ou deslocao residencial e de que tipo, tanto em ego como na suafamlia, sabendo situar ego por relao a esse movimento. Por exemplo, imagi-ne-se que ego foi o nico que no emigrou; ou que ego emigrou temporaria-mente como todos os homens da sua famlia. Essa pode ser uma boa porta departida para as entrevistas seguintes e para uma melhor compreenso destahistria de famlia

    Seja como for, muito importante que, em cada entrevista, se demonstre aego que se analisaram os resultados obtidos no encontro anterior. Isso contribui

    para melhorar a relao pois ego v que o etngrafo esteve empenhado em traba-lhar a informao que deu e maximiza o tempo da nova entrevista por seu lado,o antroplogo saber de que se est a falar, no se perdendo na teia de inmerosparentes que lhe foram dados a conhecer de rompante. Mostrar a ego uma versopreliminar de um mapa genealgico que desenhmos dos parentes de quem elenos falou na entrevista anterior tem-se revelado uma estratgia bem sucedida.

    Em sntese no devemos esquecer duas coisas: (a) nunca deixe de tirarnotas no seu caderno de notas em que narra os detalhes da situao depois de

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    sair de uma entrevista por princpio, no confie na sua memria posterior; (b) importante comear logo desde o incio do trabalho a fazer esquemas de arru-mao do material que for recolhendo, porque assim poder melhor seguir onexo da memria de ego nas entrevistas subsequentes.

    4 momento: a base de dados de parentes

    Chegamos, ento, ao aspecto mais moroso, mas tambm mais fascinante das hf:a constituio de uma base de dados que inclua todos os parentes (ver ressal-vas acima) que ego diz possuir (ver extenses acima) classificados segundoparmetros que os possam enquadrar por relao aos factores considerados re-levantes em termos do campo de interesse analtico do etngrafo. Esta a partemais cansativa da hf tanto para ego como para o antroplogo pois, depen-dendo da extenso do universo de ego a tarefa pode demorar vrias entrevistasde vrias horas.

    A experincia ensinou-nos que a melhor maneira de organizar a quanti-dade de dados que vamos coligindo (pode chegar a vrias centenas de paren-tes) ir elaborando um mapa genealgico da famlia medida que a recolhaevolui. Assim, aps cada entrevista, cada elemento da famlia que nos foi dadoconhecer deve ser (i) inserido na genealogia que vamos construindo (ver Qua-dro 1) e (ii) devemos atribuir-lhe um nmero para o inscrever na base de dadosde parentes tendo cuidado para que a sua descrio cubra todos os elementosde caracterizao que identificmos inicialmente como sendo importantes (ver

    Quadro 2), sem esquecer de insistir para que (iii) ego descreva o tipo de relaoque com ele/a teve ao longo do seu percurso de vida.

    H uma longa e erudita tradio de elaborao de anotaes genealgicasque se tornou dominante no campo da antropologia social e que corresponde aum consenso sobre esta matria. Tentar inventar novos sistemas de anotaoem vez de melhorar o sistema existente internacionalmente seria, quanto a ns,um grave erro que s serviria para confundir etngrafos e leitores. Identificar arelao com ego atravs dos smbolos que a antropologia clssica usava para oefeito tem revelado ser o sistema mais eficaz: M me; F pai; Z irm; B irmo; D filha; S filho; W mulher; H marido.

    Com efeito, este conjunto de smbolos permite identificar descritivamen-

    te a maior parte das relaes de parentesco referidas por ego e permite faz-lode maneira compreensvel a nvel internacional para qualquer pessoa com ummnimo de treino antropolgico. A utilizao desta terminologia nas tabelas deparentes permite identificar com rapidez a relao de determinado parente comego e, portanto, onde seria o seu lugar num mapa genealgico. Um recurso li-vre e criativo a estes velhos smbolos liberta-nos das implicaes biologizantese eurocntricas que tm sido identificadas no modelo fortesiano de famlia ele-mentar.

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    O que est em causa neste sistema egocentrado de caracterizao de pa-rentes, a identificao e encadeamento de laos didicos defiliao,fraternidadeou conjugalidade. Assim, comece sempre por ego, de tal forma que a filha da tiapaterna FZD = Ego pai (F) irm (Z) filha (D); a irm da mulher do tiomaterno MBWZ = Egome (M) irmo (B)mulher (W) irm (Z).

    Pode haver pessoas que tm a mesma relao com ego (por exemplo,primeiro filho ou segundo filho; irmo mais velho e irmo mais novo; primeiramulher, segunda mulher, terceira mulher para o caso tanto faz se serial ou

    conjuntamente). Isto torna-se especialmente relevante no tanto na identifica-o do parente em causa como dos encadeamentos de parentesco com ego atra-vs desse parente.

    Serialize esses casos recorrendo a uma numerao segundo um qualquerpadro de ordenamento que seja etnograficamente relevante. Normalmente aprioridade temporal o parmetro mais til. Por exemplo: irmo mais velho,B1; filho do irmo mais velho, B1S; primeira mulher, W1; irm da primeira mu-lher, W1Z; etc. Mas podemos pensar numa srie de situaes em que outrosfactores se tornem mais relevantes para a atribuio desta numerao do que oincio da relao (por exemplo, quando h uma hierarquia entre as diferentescasas de cada uma das mulheres de um marido polgamo).

    No de prever que se venha a deparar com situaes sociais recorren-tes e estveis em que no sejam reconhecidos laos de relacionamento do tipo

    Ego

    ? F

    :+

    ? S'

    D F O M

    O W/H Ego D B O Z

    O D D S

    Quadro 1 Construir a genealogia (exemplo).D

    homem; O mulher; gnero desconhe-cido; ou = relao conjugal; relao fraterna. 24

    24 Tome em conta com as dificuldades inerentes ao conceito relao conjugal. Por exemplo, frequenteencontrarem-se contextos sociais em Portugal ou no Brasil onde o matrimnio universal no de todo umfacto a presumir. Nesses casos, ento, pode usar o smbolo para relao conjugal como significando filiaopartilhada e desenvolver um outro smbolo, p.ex. # ou , para indicar que, para alm de partilharem afiliao, esto casados ou tm uma relao conjugal de tipo estvel. frequente recorrer ao smbolo paraindicar relao conjugal terminada.

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    dos laos que a histria da antropologia identifica comofilialoufraterno. J quanto conjugalidade, bem possvel que ocorram contextos sociais em que o conceitoseja quase totalmente irreconhecvel. H casos asiticos em que isso tem sidosustentado o exemplo dos Nayar ficar para todo o sempre como o seu prot-tipo (cf. Leach 1961). Tal especialmente importante quando os laos de filiaono estiverem de forma alguma associados a laos de conjugalidade entre ospais. Nesses casos, devemos simplesmente abdicar dos termos paraconjugalidade (W, H).

    H que notar, porm, como j vimos, que nos contextos onde predominaa famlia matrifocal (cf. Smith 1973), to comuns nas regies atlnticas ondeexistiu escravatura, no isso que se passa. A a conjugalidade existe e rele-vante, s que pode no ser frequente e pode surgir sob mais do que uma formamais ou menos institucionalizada. Nesses casos, mais uma vez, sempre que sen-tirmos necessidade, devemos adaptar os smbolos s necessidades etnogrficas(ver nota 24).

    Torna-se necessrio aqui, porventura, fazer um caveat: h situaessocioculturais onde se observam tipos de laos de extrema proximidadeinterpessoal que so (em todos os aspectos relevantes) identificados como pa-rentesco mas que no correspondem gama de relaes bsicas mais comum-mente descritas pelos antroplogos (filiao, fraternidade e conjugalidade). Noscasos em que essas relaes constituem partes importantes do universo de pa-rentesco dos egos, somos obrigados a inclu-las nas genealogias e, a, talvez sejamesmo til inventar um novo smbolo.

    Temos em mente exemplos do gnero da instituio de xar que co-mum no sul de Moambique.25 Nesses casos far todo o sentido inventar umnovo signo que permita ao etnlogo inserir essas pessoas na base de dados. Porexemplo, para xar, porque no X?

    Em suma, no devemos hesitar em adaptar, inventar ou desdobrar umsmbolo sempre que a etnografia o exija. Devemos, no entanto, ser cuidadosos,pois a soluo que adoptarmos no incio deve ser mantida at ao fim para que osdados das vrias hfrecolhidas sejam comparveis.

    Temos ouvido, entre colegas cuja lngua acadmica principal no o in-gls, um outro tipo de objeco de cariz nacionalista segundo a qual, porqueno escrevemos em ingls, deveramos adoptar um sistema de anotao

    genealgica baseado na lngua em que se escreve. Contudo, j que o que est emcausa um sistema tcnico universal de caracterizar parentes (tal como o siste-

    25 Usamos a palavra xarde origem tupi comum no Brasil e que hoje a mais frequentemente usada emMaputo para referir em portugus pessoas que partilham de um elo social por virtude de terem o mesmonome pessoal (informao que agradecemos a Ana Bnard da Costa). A instituio foi estudada com imensodetalhe e qualidade etnogrfica por David Webster (1976:193 e seguintes), que lhe chama em ingls namesakee, em Chopi, nyadine.

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    ma mtrico ou a caracterizao molecular) e no a produo de texto, tal argu-mento parece-nos despropositado e anti-cientfico, pois conduziria a um au-mento da confuso analtica em vez da sua simplificao.

    Para alm de tudo o mais, existe uma razo de ordem substantiva paramanter o sistema clssico derivado originalmente da lngua inglesa: o facto daanotao genealgica ser ego-centrada. Para fazer a nossa base de dados, temosque referir todos os parentes a ego, pois ele/ela o cerne do universo relacionalque pretendemos construir. Assim, em portugus ou francs (e em tantas outraslnguas) a nossa prtica lingustica leva a um alter-centramento (dizemos ofilho da irm da me de ego ou a filha do irmo do pai de ego, pelo que ofoco referencial se situa no em ego mas no parente em causa). J em ingls, orecurso ao gerundivo permite fazer referncias ego-centradas (egos motherssisters son = MZS ou egos fathers brothers daughter= FBD). Em suma, o facto dosistema clssico classificar os parentes a partir de ego facilita a representaodas suas relaes genealgicas e familiares.

    H ainda um outro factor que deve ser especialmente referenciado. Oslaos que este sistema de anotao identifica so encadeamentos de relaes deparentesco (filial, fraterno ou conjugal) de tipo didico [FBD = (filha do irmo) +(irmo do pai) + (pai de ego)]. Acontece que no h como separar parentesco devida familiar.26

    Existem relaes familiares de enorme importncia para a forma como osparentes se relacionam: relaes que fazem referncia a entidades sociaissuprapessoais mais ou menos corpreas, para utilizar a formulao fortesiana

    (cf. Pina Cabral 1991: 117-124). No h limite para a diversidade nesta matria, masdois tipos vagamente definidos so bastante comuns na literatura antropolgica:as socits maison (onde as unidades socialmente mais relevantes so do tipo do-mstico casas, households); as sociedades linhageiras (onde existem grupos corpreosde parentes formados atravs da descendncia, cf. Pina Cabral 1991: 146-147). Ali-s, existem at muitos casos em que os dois sistemas so relevantes.

    No deixe de estar atento a estas formas de classificar parentes para criargrupos familiares. Assim, na tabela de parentes, cada parente dever, sempreque for o caso, incluir uma entrada que identifique a casa onde a pessoa habi-ta ou a linhagem a que pertence, caso seja essa a melhor qualificao do queencontra. mesmo til numerar casas ou linhagens quando se tratam de siste-

    mas com fortes implicaes sociolgicas locais. Nos mapas genealgicos queconstruir, ser-lhe- depois possvel desenhar crculos em torno aos grupos co-residentes ou aos grupos de descendncia, de forma a perceber como estes seencadeiam e situam relacionalmente.

    26 Esta foi, alis, a grande descoberta que, nos anos 1970, acabou com a antropologia do parentesco en-quanto rea autnoma de teorizao ver, por exemplo, a forma como Leach desmonta o parentescokiriwina (1971).

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    Passemos, pois, ao lado prtico da recolha de informao sobre cada pa-rente que deve ser anotada na tabela de parentes (ver Quadro 2). A finalidade construir uma base de dados com todos os parentes que ego nos refere. Come-cemos, ento, por perguntar a ego quem a sua me e quem o seu pai; 27 quefilhos tiveram; se tiveram filhos de uma nica relao ou de vrias; se essesfilhos so todos igualmente reconhecidos por eles; como se chamam esses fi-lhos; se eles prprios tiveram filhos; quantos irmos tem o pai e a me e assimpor diante.

    A ideia ir alargando o leque de conhecimento a partir das relaes ini-ciais de filiao, fraternidade ou conjugalidade.28 Basicamente, pretendemos criaruma base de dados em que cada entrada corresponda a um parente/relao. Para cadaparente, dever ser recolhido um naipe de dados mnimos que permitiro siste-matizar a informao que temos sobre ele/a em parmetros semelhantes aosque temos para todos os parentes. No decorrer da inquirio sobre estes paren-tes, porm, muito se aprender sobre todo o contexto de vivncia familiar emque ego se insere: a natureza da coabitao domstica, a natureza das relaesmatrimoniais dominantes e das divergentes, o estilo preferencial dos laos defiliao, a tessitura dos laos entre irmos, etc., etc.

    Nunca demais lembrar que, durante as entrevistas, devemos estimularego a falar sobre a relao que mantm com cada um destes parentes, dandoconta dos seus aspectos prticos (frequncia, locais de encontro, etc.) e da natu-reza afectiva da relao; insistindo para que ego conte histrias e episdios so-bre cada pessoa ou grupo familiar de quem vai falando. Por esta razo, a recolha

    dos dados deve ser feita recorrendo simultaneamente a dois tipos de registo: (a)a tabela de parentes, onde se anotaro os dados referentes a cada parente; (b) olivro de notas de campo, onde se anotaro todo o gnero de informaes refe-rentes s relaes entre estas pessoas, s descries das experincias da vidarelacional de ego.

    Falemos, ento, da forma como se cria a tabela de parentes (ver Quadro2). H trs classes de entradas: (i) as que devero estar presentes em todas as hf,porque so as que permitem a constituio de uma base de dados comparativa;(ii) as que so recomendadas por serem de interesse relativamente universal; e(iii) as que dependem dos temas que orientam a nossa investigao.

    27 Ou os termos locais mais prximos destes, ver Geffray acima.28 Vale a pena voltar a enfatizar que os pressupostos biologsticos e conjugais dos clssicos no podem, hoje,guiar a nossa investigao. Em primeiro lugar deve-se perguntar ao informante o nome da sua me, amulher de cujo tero ele nasceu; depois o nome do homem com quem ela se casou, o que o gerou. (Notesand Queries 1951: 54). O biologismo desta proposta e o pressuposto de universalidade do lao conjugal sopatentes. Contudo, tendo ns acesso s teorias locais referentes transmisso de substncias que constituema filiao nesse contexto cultural, podemos facilmente adapt-las s necessidades da nossa investigaogenealgica.

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    (i) Entradas que devem estar sempre presentes:

    (i.i) Nmero de referncia todas as entradas de uma base de dados devemser referenciadas por um nmero. Este nmero deve ser atribudo segundo aordem de recolha e no deve ter qualquerrelao com o parente em causa oucom a sua relao com ego. Assim, por exemplo, se a um irmo de ego for atri-budo o nmero 5 e a um outro, por s ter sido referido mais tarde, for atribudoo nmero 45, no seja tentada a re-arrumar a numerao. A relao entre onmero de referncia e o parente deve ser aleatria.29 Lembre-se ainda de dois outrosprincpios: a srie de nmeros deve ser completa e no deve ser repetida. As-sim, nunca deixe nenhum buraco em branco na numerao (do gnero dedeixar dois ou trs nmeros em branco para mais tarde os atribuir a algumparente desse ramo da famlia que ainda no tenha sido referido) e nunca sejatentado a iniciar sries duplas (do gnero: parente 153 e parente 153a).30

    (i.ii) Relao genealgica com egocada parente deve ser referenciado pelarelao genealgica que tem com ego. A adopo de um sistema de anotaogenealgica deve ser sempre feita com um esprito crtico. H, pois, que adoptar ametodologia ao caso especfico que encontrar. Por exemplo, se descobrir queentre a populao que estuda frequente haver uma genitora (que socialmen-te reconhecida como tal) e uma me de criao (que constitua um elo paraoutros laos de parentesco), ser obrigada a adaptar o sistema de anotao cls-sico para que estas duas relaes no se confundam e sejam claramenteidentificveis, tanto na genealogia como nos quadros informativos. J discuti-

    mos outros casos de adaptao referentes a laos de tipo conjugal ou a xars.Mas outros exemplos poderiam ser dados para laos de tipo fraterno.

    (ii) Entradas que so recomendadas:

    (ii.i) Nome uma das caractersticas interessantes deste tipo de dado nassituaes sociais que temos estudado at hoje que h um horizonte de nome-ao para alm do qual ego deixa de saber os nomes dos seus parentes oupassa a saber s alguns aspectos (por exemplo, a alcunha pela qual so conheci-

    29 Haver quem nos acuse de estarmos a presumir a iluso biogrfica bourdieuana: de presumir que osparentes (como pessoas) so mnadas fechadas sobre si mesmas. Mais uma vez, porm, estando ns vigi-lantes no referente a esse perigo, abdicar da possibilidade de constituir uma base de dados por essa razoparece-nos errado em termos do que poderamos chamar uma economia do conhecimento.30 Na sua apresentao do mtodo genealgico, Barnes insiste sobre a necessidade de arrumar os parentesem mapas separados: for orderly presentation, each of the constituent cognatic stocks in the informantskindred should first be entered on a separate chart. (1967: 105). Trata-se de uma reaco caracterstica dequem presume um background linhageiro de tipo africanista. No caso da constituio de mapas genealgicos,a estratgia parece-nos adequada (sobretudo, na verdade, se estivermos face a uma sociedade linhageira);para a realizao da base de dados de parentes, porm, no recomendamos anotaes separadas.

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    dos; o nome de famlia pelo qual so referidos; o sobrenome mas no o nomepessoal ou, alternativamente, o nome pessoal mas no o sobrenome; o nome dacasa; etc.). A determinao do desenho interno ao universo de parentes deego desse horizonte de nomeao frequentemente um factor importante paracompreender o funcionamento estruturado do universo parental. Lembre-se deque, normalmente, h mais do que um processo de nomeao pessoal (por exem-plo, alcunhas versus nomes; prenomes, sobrenomes e alcunhas; etc.)

    (ii.ii) Residncia ou Descendnciadependendo das situaes, um ou am-bos estes princpios de classificao de parentes deve sempre ser tido em causa.A que casa pertence, em que casa nasceu, em que aldeia habita, a quecl pertence, etc.? Este gnero de pergunta no pode ser determinado univer-salmente e depender muito do que ego lhe d a entender como o termo impor-tante de referir a questo.31

    (ii.iii) Situao conjugal- aqui, mais uma vez, os termos em que esta ques-to se pe variar dependendo das lgicas locais de classificao deste tipo deelo social.

    (ii.iv) Filiao nmero de filhos e, se possvel, de que mes/pais.(ii.v) Termo de referncia como chama ego a esse parente e como lhe

    chama ele?

    (iii) Entradas que dependem dos temas que orientam a nossa investigao:

    Estas sero escolhidas em termos da sua hiptese de trabalho. Temos frequente-mente verificado que questes como tipo de trabalho (profisso), data e local denascimento, histria migratria, local onde est enterrado (para os que morreram,claro) so perguntas de interesse muito geral. Outras haver, tal como tipo de com-portamento religioso, situao de classe, nvel educacional, pertena a grupos detipo optativo (clubes, associaes, terreiros, etc.) que possam assumir grande rele-vncia local. A tabela que construir depender tanto da hiptese de trabalho quedirige o estudo como dos princpios que se forem verificando relevantes, conformeo seu conhecimento da sociedade local for aumentando.

    Concluso

    Os dados fornecidos pela tabela de parentes e os mapas genealgicos que comeles se podem construir podem posteriormente ser tratados comparativamentecom outras hf,permitindo assim conhecer melhor os modos genricos de consti-

    31 Por exemplo, entre os Chopi de Moambique, seria a casa, a vizinhana, o sub-chefato e o chefato, deforma cumulativa (ver Webster 1976).

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    tuir relaes familiares num dado contexto sociocultural e num dado perodotemporal. Cada investigador utilizar os dados da forma que melhor lhe convi-er em termos tanto das questes locais como da sua hiptese de trabalho. Nonos alargaremos, pois, sobre esse aspecto. Parece-nos, contudo, importante sali-entar trs tipos de benefcios analticos que podem ser extrados da realizaode hf.

    Ao ser obrigado a questionar ego e arrumar a informao que ele lhe vaidando, a familiaridade do etngrafo com os sistemas de classificao locais derelacionamento ir aumentando. Tornar-se- patente quais os princpios de clas-sificao mais relevantes e como que eles se relacionam com factores extra-

    familiares de toda a natureza. O pressuposto inicial de que haver laos pareci-dos com os que a histria da antropologia identifica como filiao e comofraternidade (siblinghood) e de que poder haver laos de tipo conjugal, irdando lugar a um conhecimento mais e mais aprofundado dos sistemas locaisde constituio de seres relacionados.

    Em segundo lugar, a relao entre prottipo cultural e realidade prticaclassificatria surgir em toda a sua fora. Inevitavelmente, o etngrafo e egoencontrar-se-o perante casos de parentes cuja situao social no enquadra oschaves prototpicos localmente vigentes. Como que ego d volta as estas ano-malias? Com o desenvolver do processo, o etngrafo (e, por vezes, tambmego) acaba por descobrir que, afinal, no se tratam assim tanto de anomalias e

    que existem formas estandardizadas para lidar com elas (o exemplo que nosocorre a forma como, no Alto Minho, onde a conjugalidade era um valor do-minante, se lidava com a ilegitimidade recorrente ver Pina Cabral 1989).

    Mas podem at surgir diferentes sistemas em confronto no interior damesma famlia. Um de ns, no decorrer do seu primeiro exerccio genealgico,

    Quadro 2 Construir uma tabela de parentes.32

    15HODomRFRP

    HJR

    1RPH

    5HVLGrQFLDRX

    32 Apresentamos aqui um exemplo de uma grelha para recolha de informao de hfque, voltamos a insistir, um exemplo, uma proposta e no um modelo a aplicar a qualquer hf.

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    realizado em Moambique nos anos 70, deparou-se com um tio e um sobrinho(ZS) que referiam termos de relacionamento diferentes. O primeiro usava a ter-minologia matrilinear tradicional na lngua dos Nyanja; o segundo a termino-logia swahili, que para ele era mais moderna e menos problemtica, j queno presumia a matrilinearidade sistema que tanto o tio como o sobrinho con-sideravam problemtico em termos da f crist a que aderiam.

    Mais ainda, os laos de parentesco do azo a direitos e deveres que sorelativamente estandardizados. Na prtica, contudo, os valores dominantes eos nveis de identificao podem entrar em conflito.33 Surgem quase sempresituaes contraditrias. Ora, para tais situaes, frequente existirem soluesrecorrentes. Os informantes muitas vezes encontram dificuldade em formularessas solues, ultrapassando a contradio entre os valores. Para o etngrafo,porm, atravs da hf, torna-se possvel perceber recorrncias nessas solues (oexemplo que nos ocorre a contradio entre valores empresariais e sucessofamiliar tal como se verifica entre as grandes famlias empresariais lisboetas ver Lima 2003).

    Em terceiro lugar, existem fenmenos de natureza agregada que os en-trevistados desconhecem de todo mas que se revelam da maior importnciapara a compreenso da forma como a sociedade local funciona. Temos em men-te exemplos do tipo de processos de natureza sistmica, resultantes da operaode constrangimentos particulares sobre valores e conceitos locais, que nem oetngrafo nem o nativo podem conhecer ex ante. Um dos exemplos mais co-muns a existncia de estratgias de escolha matrimonial (cf. Bourdieu 2002)

    e a sua alterao devido a alteraes totalmente externas ao sistema familiar(por exemplo, as alteraes que ocorreram entre os euroasiticos de Macau as-sociadas mudana na situao poltica da cidade em 1976, quando o exrcitoportugus foi retirado cf. Pina Cabral e Loureno 1993).

    Outros exemplos, porm, poderiam ser aduzidos. Numa anlise de hffeitasa euroasiticos de Macau, descobriu-se que o conhecimento dos nomes de famliados parentes estava sistematicamente limitado, de tal forma que os laos de paren-tesco matrilaterais de etnia chinesa eram tornados inoperantes porque esqueci-dos. Outro caso ainda: no estudo de hfrealizadas em Lisboa, tornou-se patenteque o formato geral do universo de parentesco (o desenho geral do mapagenealgico) se alterava dependendo da existncia ou no de bens herdveis circu-

    lando na famlia. Surgia, assim, uma tendncia ao achatamento em termos de n-veis genealgicos dos universos em que no existiam tais bens e ao aprofundamentodos que os detinham (ver Pina Cabral 2003: 135 e seguintes).

    laia de concluso preliminar para esta proposta, gostvamos deenfatizar dois aspectos em que este tipo de metodologia se pode revelar inova-

    33 Ver o conceito de limites do interesse adaptado ao estudo de um caso de histria de famlia em PinaCabral (2003: 25-53).

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