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Dissertação de mestrado de Guillermo Caceres defendida em 2010 no programa de pós graduação em música da UFRJ, que fala sobre a restauração de discos e demais suportes mecânicos.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO — UFRJ
CENTRO DE LETRAS E ARTES — CLA
ESCOLA DE MÚSICA — EM
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
Guillermo Tinoco Silva Caceres
O TEMPO E O DISCO: ESTUDO ACÚSTICO E MUSICAL DA RESTAURAÇÃO E
REPLICAÇÃO FÍSICA DE REGISTROS SONOROS
Dissertação de Mestrado
Orientador: Dr. Leonardo Fuks
Rio de Janeiro
2010
2
Guillermo Tinoco Silva Caceres
O TEMPO E O DISCO: estudo acústico e musical da restauração e replicação física de
registros sonoros
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música, Escola de Música, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Musicologia/ Estudos do Som Musical
Orientador: Dr. Leonardo Fuks
Rio de Janeiro
2010
e-mail: [email protected]
3
4
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar a Deus, “que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade” (Filipenses 2:12).
Aos meus pais Alejandro e Dilma, pelo amor e apoio incondicionais.
À minha amada Adriana, pelas palavras de ânimo, pela companhia e pela cumplicidade em nossa peregrinação ao redor do mundo.
Ao meu orientador Leonardo Fuks, pelo incentivo, pelas idéias e pela paciência (incondicional).
Aos meus mestres, amantes da música, que me auxiliaram e me inspiraram ao longo de minha jornada até aqui: Ecléa Ribeiro, Luiz Senise, Paulo Peloso, Samuel Araújo, Luiz Wagner Biscainho, Sérgio Pires e Mayrton Bahia.
A Edwaldo Mayrinck e Alexandre Jardim, pela experiência e aprendizado que por fim culminaram nesta dissertação.
Aos meus amigos e familiares, pelo companheirismo e pelos momentos de distração entre um capítulo e outro.
5
RESUMO
CACERES, Guillermo Tinoco Silva. O Tempo e o Disco: estudo acústico e musical da restauração e replicação física de registros sonoros. 2010. 150 f. Dissertação (Mestrado em Musicologia / Estudos do Som Musical) — Programa de Pós-Graduação em Música, Escola de Música, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. Na tentativa de recuperar informações sonoras corrompidas por anos de
armazenamento, manuseio e desgaste físico, as técnicas de preservação e restauração fazem
uso das mais recentes tecnologias disponíveis para garantir que gerações futuras tenham
acesso à informação originalmente encontrada nos antigos suportes sonoros, minimizando
assim as distorções causadas pela passagem do tempo. O presente trabalho investigou como
os registros sonoros podem ser restaurados e preservados através de um estudo comparativo
de fontes musicais e técnicas. A intenção foi identificar as atuais limitações técnicas e as
possíveis implicações éticas associadas com tais atividades. A partir das informações
adquiridas ao longo dessa investigação, a última parte da dissertação apresenta um
experimento de baixo custo com o objetivo de avaliar a eficiência de um método para
duplicação de discos de 33 1/3 rpm por meios inteiramente físicos. Tal método pode tornar-se
uma técnica auxiliar útil para um número de situações onde o suporte original pode ser
substituído por uma cópia física funcional. Os fundamentos teóricos utilizados no presente
trabalho foram retirados de diversas fontes, incluindo artigos e recomendações de instituições
internacionais como AES, IASA, ASRC, British Library, Library of Congress e UNESCO,
assim como trabalhos de áreas relacionadas como tecnologia musical, arquivologia,
engenharia elétrica e musicologia. O presente trabalho pretende contribuir com a
implementação de iniciativas de preservação e restauração de registros sonoros, e também
para o treinamento de profissionais especializados que estarão diretamente envolvidos com o
cuidado e manuseio de fonogramas musicais fragilizados.
Palavras-chave: Preservação e restauração de áudio. Digitalização. Registros sonoros. Acervos
sonoros
6
ABSTRACT In an attempt to recover sound information corrupted by years of storage, handling and
physical wear, the restoration and preservation techniques make use of the latest available
technologies to ensure that future generations will have access to the information originally
found in the old sound carriers, thereby minimising distortions caused by the passage of time.
The present work investigated how sound recordings can be restored and preserved by
conducting a comparative study among technical and musical resources. The intention was to
identify current technical limitations and the possible ethical issues associated with these
activities. Based on the information acquired through this investigation, the last part of the
dissertation presents a low-cost experiment in order to evaluate the efficiency of a method for
duplicating a 33 1/3 rpm disc through entirely physical means. Such a method can become a
useful auxiliary technique to a number of situations where the original carrier can be replaced
with a functional physical copy. The theoretical fundamentals used in the present dissertation
were taken from several sources, including articles and recommendations from international
institutions such as AES, IASA, ASRC, British Library, Library of Congress and UNESCO,
as well as works from related fields such as musical technology, archivology, electrical
engineering and musicology. The present work aims at contributing with the implementation
of sound recording digitisation and preservation initiatives in sound archives and collections,
as well as with the training of specialised personnel that will be directly involved with the
care and handling of fragile sound recordings.
Keywords: Audio preservation and restoration. Digitisation. Sound Recordings. Sound Archives.
7
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ADC Analog-to-digital Converter
AES Audio Engineering Society
ASRC Association for Recorded Sound Collections
BBC British Broadcasting Corporation
BWF Broadcast Wave Format
CD Compact Disc
DAT Digital Audio Tape
DVD Digital Versatile Disc
EP Extended-play Disc
HD Hard Disk / Hard Drive
IASA International Association of Sound and Audiovisual Archives
ICA International Council on Archives
IFLA International Federation of Library Associations and Institutions
ILAM International Library of African Music
LP Long-play Disc
LTAS Long Term Average Spectrum
NARA National Archives and Record Administration
NRPB National Recording Preservation Board
PCM Pulse Code Modulation
RIAA Recording Industry Association of America
UNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization
VTA Vertical Tracking Angle
WAV Waveform Audio File Format
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
1 A PRESERVAÇÃO E A RESTAURAÇÃO NAS ARTES 17
1.1 A RESTAURAÇÃO SEGUNDO VIOLLET-LE-DUC 18
1.2 JOHN RUSKIN E A DEFESA DA PRESERVAÇÃO 20
1.3 ALOIS RIEGL E CAMILLO BOITO 21
1.4 A TEORIA DE RESTAURAÇÃO DE CESARE BRANDI 22
1.4.1 O Momento Metodológico 24
1.4.2 Possíveis interpretações para a Teoria de Brandi 26
1.5 POSSÍVEIS APLICAÇÕES PARA O CASO DO REGISTRO SONORO 28
2 A PRESERVAÇÃO E A RESTAURAÇÃO DE FONOGRAMAS NO
CONTEXTO DOS ACERVOS SONOROS 30
2.1 PRESERVAÇÃO VERSUS RESTAURAÇÃO 30
2.2 A REGRAVAÇÃO E A DIGITALIZAÇÃO COMO MEIOS DE
PRESERVAÇÃO 31
2.3 DELIMITANDO A ATIVIDADE DE RESTAURAÇÃO DE FONOGRAMAS 35
2.3.1 O Conceito de ruído para a preservação e a restauração 36
2.4 DIGITALIZAÇÃO E REVERSIBILIDADE 38
2.5 A PRESERVAÇÃO DA AUTENTICIDADE 40
2.6 A DEFINIÇÃO DE PRIORIDADES PARA A DIGITALIZAÇÃO 46
2.7 VARIÁVEIS DE DESTINO PARA A PRESERVAÇÃO DIGITAL 49
2.7.1 O formato do arquivo digital 49
2.8 VARIÁVEIS DE LEITURA DO SUPORTE MECÂNICO 51
2.8.1 Seleção do melhor exemplar 51
2.8.2 Escolha do equipamento de leitura 52
2.8.3 A velocidade adequada de reprodução 54
2.8.4 Limpeza e restauração física do fonograma 55
2.8.5 Etapa de leitura e digitalização 56
2.8.6 Métodos alternativos para a leitura de suportes mecânicos 57
2.8.7 Considerações finais sobre a leitura de fonogramas 60
9
3 ABORDAGENS DE RESTAURAÇÃO E PRESERVAÇÃO DE
FONOGRAMAS 62
3.1 A PROPOSTA DE PADRONIZAÇÃO DE WILLIAM STORM 62
3.1.1 Comentário de Brock-Nannestad 64
3.2 A TEORIA DE CONSERVAÇÃO OPERACIONAL DE BROCK-NANNESTAD 66
3.3 DIETRICH SCHÜLLER E A ÉTICA DE PRESERVAÇÃO E RESTAURAÇÃO 69
3.4 PETER COPELAND E A TEORIA DE CONSERVAÇÃO QUÁDRUPLA 70
3.5 ANGELO ORCALLI E A RI-MEDIAZIONE DO DOCUMENTO SONORO 73
4 TRATAMENTO DE GRAVAÇÕES HISTÓRICAS: RELAÇÕES
ENTRE PRODUTOR E OUVINTE, FABRICANTE E CONSUMIDOR 74
4.1 A FIDELIDADE SONORA SEGUNDO A RELAÇÃO
FABRICANTE-CONSUMIDOR 75
4.1.1 Definindo o conceito de fidelidade sonora 75
4.1.2 A Era Acústica e o conceito de fidelidade 76
4.1.2.1 O início da influência comercial 78
4.1.3 A fidelidade na Era Elétrica 79
4.1.3.1 Os audiófilos e o universo high-fidelity 81
4.1.4 A fidelidade hoje 83
4.2 ANÁLISE DE GRAVAÇÕES SEGUNDO A RELAÇÃO
PRODUTOR-OUVINTE 84
4.2.1 O papel do produtor 85
4.2.2 O diálogo entre as limitações técnicas e as decisões criativas 87
4.2.2.1 Limitações da Fase Acústica 88
4.2.2.2 Limitações na Fase Elétrica 92
4.2.2.3 Limitações na Era Digital 93
4.2.3 A relevância da pesquisa para a restauração e preservação de
fonogramas 94
4.3 CAPACITANDO PARA O EXERCÍCIO DA PRESERVAÇÃO 97
4.3.1 Capacitação pela experiência prática 97
4.3.2 Relação de fontes de informação sobre registros fonográficos 99
10
5 EXPERIMENTO DE DUPLICAÇÃO FÍSICA DE FONOGRAMAS EM
FORMATO DE DISCO 102
5.1 CONDIÇÕES E OBJETIVOS 103
5.2 CRITÉRIO PARA SELEÇÃO DA MATRIZ 104
5.3 VISÃO GERAL DO MÉTODO EMPREGADO 104
5.4 ETAPA DE DIGITALIZAÇÃO 107
5.4.1 Descrição da etapa de digitalização 108
5.5 ANÁLISE DE DADOS 110
5.5.1 Fase 1: fonograma musical 110
5.5.2 Fase 2: disco de teste 115
5.5.2.1 Varredura de frequências 118
5.5.2.2 Sinal individual de 1 kHz 120
5.5.2.3 Sinal individual de 100 Hz 122
5.5.2.4 Sinal Individual de 10 kHz 124
5.5.3 Análise de Correlação 126
5.6 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS 132
CONCLUSÃO 135
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 137
APÊNDICE A: DESCRIÇÃO DETALHADA DO PROCEDIMENTO DE
DUPLICAÇÃO FÍSICA DE FONOGRAMAS 144
11
INTRODUÇÃO
O registro sonoro alterou profundamente a relação do homem com a música. Desde
suas primeiras aplicações no século XIX, novas possibilidades se abriram para a produção,
apreciação, acesso e comercialização da música enquanto evento acústico codificado e
registrado em suporte físico — doravante denominado fonograma. Em paralelo com a criação
de um milionário mercado mundial pela exploração comercial ao longo de todo o século XX,
os pesquisadores encontraram no registro sonoro uma nova e fundamental ferramenta para o
estudo de práticas musicais outrora inacessíveis, e o fonograma foi acolhido por acervos em
todo mundo como uma poderosa fonte de informação para a musicologia comparativa.
Por outro lado, a tecnologia também trouxe problemas antes imprevistos: com o passar
do tempo, os métodos de registro sonoro começaram a ficar obsoletos diante de sua própria
evolução técnica, e os limites de durabilidade física dos registros fonográficos foram
duramente testados. Como contramedida, arquivos e coleções de todo o mundo
desenvolveram práticas de preservação, a fim de evitar a perda definitiva do patrimônio
cultural representado pelo fonograma.
Nos últimos anos, novos conhecimentos têm sido desenvolvidos no sentido de
prolongar a vida do registro fonográfico, bem como na tentativa de recuperar informações
anteriormente comprometidas. Nesse campo, a preservação e a restauração de áudio são
especialidades que buscam utilizar os mais recentes conhecimentos e recursos tecnológicos na
tentativa de minimizar e reverter os danos causados pela ação do tempo sobre o fonograma.
Assim, constituem atividades fundamentais para a manutenção da memória sonora.
Com o avanço da tecnologia digital, ao longo das últimas décadas, foi dado um grande
salto para a preservação de áudio em ambientes digitais, uma vez que se tornou possível
copiar o conteúdo de um fonograma para uma versão digital que não sofre perda de qualidade
durante sua leitura ou duplicação. A manipulação de áudio foi imensamente beneficiada com
a criação de ferramentas digitais muito mais precisas do que suas predecessoras analógicas, e
que com isso permitiram um nível de intervenção muito maior e com resultados de qualidade
superior. Tornou-se finalmente possível a correção de erros e falhas antes inimagináveis, o
que cada vez mais estimula o debate ético sobre até qual ponto é adequado “restaurar” um
registro fonográfico em nome de uma suposta “melhor qualidade”, sob o risco de ocultar ou
alterar de forma irreversível as informações originalmente portadas pelo documento sonoro
histórico.
12
Paralelamente, a tecnologia digital também provocou profundas mudanças na relação
produtor-consumidor do mercado fonográfico, abrindo caminhos para a exploração de novos
formatos de distribuição e consumo. Nesse contexto, o relançamento de gravações antigas e a
“readaptação” de sonoridades entre diferentes formatos como o LP e o CD demonstram a
fundamental importância que as ferramentas de restauração possuem mesmo para fins
comerciais.
Nos dias de hoje, o consumo de música através do computador se tornou lugar-
comum. Tanto consumidores quanto acervos e instituições acadêmicas de todo o mundo
reconhecem a importância da internet como uma grande ferramenta de distribuição de
registros sonoros. Em tal cenário, onde formatos de reprodução digital dominam a relação de
interação entre o ouvinte e o som gravado, as iniciativas de digitalização de fonogramas
constituem uma prática cada vez mais aceita — e provavelmente o único futuro possível para
milhões de registros fonográficos em todo o mundo.
É nesse momento histórico, após o surto inicial da revolução digital, que se inicia esta
dissertação sobre a preservação e a restauração de fonogramas. A mistificação do computador
como uma “caixa-preta” onde a digitalização ocorre de forma quase mágica, aliada com a
popularização de equipamentos e softwares de digitalização de sons e imagens voltados para o
público consumidor não-especializado são alguns dos fatores que podem contribuir para uma
relativa “banalização” em torno da prática de digitalização, de um modo geral. A discussão
em torno das possíveis implicações técnicas e éticas envolvidas no trabalho de digitalização
podem ser obscurecidas pela aparente simplicidade do pressionar de um botão. Com isso, a
falta de capacitação teórica e as restrições orçamentárias podem vir a ser consideradas, para os
acervos, barreiras maiores que os próprios limites da tecnologia de digitalização. Como
diferenciar preservação de restauração em um acervo digital? Quais devem ser os objetivos da
restauração? Como devemos digitalizar? Existem alternativas para a digitalização?
Tais questionamentos representam os principais objetivos deste trabalho: apresentar,
comparar e discutir os possíveis fundamentos teóricos, os objetivos e os aspectos éticos
envolvidos na preservação e na restauração de fonogramas em acervos sonoros, utilizando os
conhecimentos adquiridos para apresentar um experimento que visa a obter cópias físicas de
fonogramas em formato de disco sem o intermédio de um computador que possa servir, dentre
outros propósitos, como uma opção de treinamento para a capacitação de futuros profissionais
de preservação e restauração.
Para tanto, esta dissertação possui uma abordagem dividida em cinco partes principais.
No primeiro capítulo, é realizada uma breve investigação acerca das principais linhas de
13
pensamento que fundamentam a prática do trabalho de preservação e restauração nas artes
visuais, com a comparação de suas principais recomendações e pressupostos teóricos. Uma
maior ênfase é dada para a teoria de restauração de Cesare Brandi, utilizada como base de
referência teórica para a resolução de diversos pontos conflitantes ao longo dos demais
capítulos.
A segunda parte é constituída pela apresentação e discussão de alguns dos principais
fundamentos e conceitos que regem a preservação e a restauração no âmbito dos registros
sonoros. O propósito é tentar identificar e delimitar diferenças existentes entre as atividades
de preservação e restauração na realidade prática dos acervos, englobando as questões
técnicas mais pertinentes para o fluxo do trabalho. Paralelamente, são dimensionadas e
discutidas algumas das implicações que surgiram a partir do estabelecimento da digitalização
como meio de perpetuação para as informações contidas nos fonogramas originais, bem como
justificadas algumas exigências para a elaboração de uma estratégia de preservação
condizente com os padrões recomendados por organizações internacionais.
O terceiro capítulo consiste da comparação entre abordagens de preservação e
restauração de autores expoentes na área, incluindo a discussão das possíveis motivações
éticas e do contexto existente na época em que cada proposta foi desenvolvida. Quando
existentes, serão apontadas as semelhanças e prováveis equivalências entre as propostas
direcionadas para o registro sonoro e as abordagens oriundas das artes visuais apresentadas no
primeiro capítulo. A principal intenção é evidenciar os vários tipos de abordagens possíveis
para o tratamento de fonogramas, e o modo como se relacionam para compor o panorama
geral desse campo de conhecimento.
Ao longo da quarta parte, através de uma breve análise histórica, serão caracterizadas
algumas das possíveis relações entre o conceito de fidelidade sonora e a influência exercida
pela indústria, assim como as restrições e possibilidades artísticas que surgem a partir do
desenvolvimento de novas tecnologias de gravação e reprodução do som, principalmente ao
longo do século XX. Este capítulo possui um teor mais investigativo, e parte do pressuposto
de que tais informações constituem um possível núcleo básico de conhecimentos necessários
para que o profissional responsável pela execução do trabalho de preservação e restauração de
fonogramas seja capaz de tomar decisões objetivas e conscientes.
Por fim, a quinta e última parte será centrada na demonstração de um experimento de
baixo custo com o objetivo de testar a viabilidade para obtenção de cópias físicas a partir de
um fonograma em formato de disco, e assim funcionar como um recurso complementar à
digitalização que não acarrete riscos ao suporte original. Para que seja possível a análise dos
14
dados gerados pelo experimento, será necessária a análise sonora das gravações obtidas. Tal
análise será feita através de critérios subjetivos e objetivos, envolvendo desde a percepção
auditiva de ruídos e anomalias até a medição de atributos físicos do som, através da utilização
de softwares especializados. Ao final dessa quarta parte, mediante os resultados obtidos, o
experimento terá sua aplicabilidade avaliada enquanto recurso para a preservação e
restauração de fonogramas em contextos acadêmicos.
O presente estudo será baseado no conhecimento gerado por múltiplas fontes. Quanto
à ética do trabalho de preservação e restauração, serão consideradas como centrais a já
mencionada teoria de Cesare Brandi em um aspecto artístico geral, assim como as propostas
para preservação e restauração de fonogramas apresentadas por William Storm, Dietrich
Schüller, Peter Copeland e George Brock-Nannestad. Como referência para os procedimentos
de preservação de registros sonoros serão adotadas principalmente as recomendações para o
manuseio e tratamento de acervos geradas por instituições como Harvard University, Indiana
University, Library of Congress e British Library. Também será de grande relevância a
produção intelectual gerada por membros de organizações como a Audio Engineering Society
(AES), a International Association of Sound and Audiovisual Archives (IASA) e pela
iniciativa de preservação de memória cultural da United Nations Educational, Scientific and
Cultural Organization (UNESCO). Por fim, também serão consultados periódicos e artigos
brasileiros e internacionais nas áreas correlatas de musicologia e arquivologia.
A literatura encontrada nas especialidades de engenharia elétrica é rica no assunto de
restauração de fonogramas, e provavelmente uma das que abordam o tema de forma mais
direta, o que torna a consulta destas fontes indispensável para esta pesquisa. Contudo, o
presente trabalho não irá englobar as ferramentas matemáticas encontradas na bibliografia
porque o interesse maior é a discussão da ética envolvida em suas aplicações, e não a
investigação de seu funcionamento. Tal restrição também reflete uma limitação do próprio
autor, que não é qualificado para discorrer sobre aplicações matemáticas na restauração com a
mesma competência de um engenheiro.
Ainda assim, o texto da pesquisa não poderá dispensar alguns termos técnicos e
conhecimentos básicos das áreas de áudio, informática, acústica e música, sem os quais a
compreensão de boa parte do conteúdo estará comprometida. Não será prioridade neste
trabalho, portanto, o completo esclarecimento dos princípios básicos de cada uma de suas
áreas de interesse, e fica aqui recomendada a busca por uma bibliografia complementar que
possa suprir as necessidades do leitor nesse sentido.
15
Por fim, dentre as várias linhas de ação que derivam do campo da conservação e da
restauração de bens culturais, esse trabalho irá se conter nos aspectos mais próximos do
diálogo entre as áreas técnica e musical. Não serão abordados com profundidade, portanto, os
aspectos legais que regem a atribuição de direitos autorais sobre cópias e a distribuição de
fonogramas restaurados, assim como não serão desenvolvidas questões relativas ao
gerenciamento e organização do patrimônio, como o caso da implantação de sistemas de
catalogação digital e acesso remoto através da internet. Embora reconhecidamente
importantes, sua exclusão se justifica pelo não-enquadramento no foco de interesse central
desta dissertação.
Alguns dos possíveis problemas deste trabalho podem ser antecipados. Dentre estes, o
mais imediato é a questão da volatilidade tecnológica. Os avanços nos procedimentos de
restauração de áudio estão intimamente associados ao desenvolvimento de novas tecnologias
de reprodução e tratamento do som. Isto torna a restauração de fonogramas um campo
extremamente sujeito à rápida obsolescência de suas ferramentas. Embora esse trabalho não
possua um aspecto unicamente técnico, o surgimento de novas ferramentas de restauração
pode vir a alterar a relação do profissional restaurador com o objeto a ser tratado, de modo a
exigir alguma atualização das informações dispostas aqui. Portanto, referências específicas a
modelos de equipamentos e versões de softwares serão minimizadas neste texto, e em seu
lugar priorizadas as informações sobre suas funções dentro do processo, sendo admitidas
apenas algumas exceções, conforme o contexto.
Um segundo problema diz respeito à acessibilidade tecnológica. O custo de
equipamentos profissionais adequados para a realização de um trabalho de restauração
aceitável é inevitavelmente alto, e para muitos será proibitivo, pois não existem alternativas
baratas. Aliando esse problema com o anterior, podemos concluir que estes equipamentos
também apresentam um elevado índice de desvalorização, na ocasião em que novos modelos
são lançados. Isto os torna um investimento oneroso para instituições de acervos com
orçamentos limitados para a implantação de um núcleo de preservação e restauração próprio,
e pode custar a perda do patrimônio cultural. O próprio autor se encontra inserido nessa
realidade, e a eventual dificuldade de acesso a alguns equipamentos e acessórios pode tornar a
abordagem incompleta em alguns pontos, em especial no Capítulo 5. No entanto, existem
vários aspectos no trabalho em que a dependência tecnológica é perfeitamente contornável,
que serão explicitados conforme o caso.
O fator diferencial deste estudo será o ponto de vista adotado, neste caso o de um
pesquisador com formação musical acadêmica, em contraste com a predominância de
16
discussão técnica encontrada na literatura do assunto. Dessa forma, o público-alvo esperado
para esse trabalho é constituído, entre outros, de arquivologistas, musicólogos, músicos
instrumentistas, antropólogos, sociólogos e estudiosos interessados na restauração de
fonogramas em geral, além de técnicos e engenheiros encarregados de tarefas de restauração.
Com a crescente importância da preservação e da restauração de suportes sonoros em
instituições e acervos brasileiros, é esperado que o presente trabalho possa servir de auxílio
para a implantação de iniciativas de trabalho bem fundamentadas, assim como para a
capacitação de profissionais dispostos a perpetuar esse campo de conhecimento.
17
1 A PRESERVAÇÃO E A RESTAURAÇÃO NAS ARTES
Ao longo da história da música, são vários os exemplos de tradições e práticas
musicais que, em algum momento, foram alvo de esforço de preservação ou de resgate por
estudiosos de diferentes épocas e contextos. Em um passado histórico relativamente recente, o
registro sonoro em suporte físico (fonograma) se consolidou como uma forma de
representação do fenômeno acústico cujas peculiaridades o diferenciaram dos demais tipos de
representação musical. Ao contrário da preservação e da restauração de outros objetos
materiais que canalizam o fazer musical, como instrumentos e partituras, o fonograma é um
objeto que se destaca por conter informações que tanto podem ser o produto de um esforço
deliberado quanto uma ocorrência não-intencional. Dessa forma, qualquer intervenção sobre a
matéria física do fonograma pode resultar, muitas vezes, em uma intervenção direta sobre a
performance musical nele representada.
Tal relação entre matéria e evento acústico transforma o trabalho de preservação e de
restauração de registros sonoros em um caso único, que necessita de sólida fundamentação
teórica para que seja bem-sucedido. Dentre diversas fontes inicialmente consideradas como
referência, foi a vasta produção teórica direcionada para as artes visuais que forneceu as
melhores orientações para este presente contexto. Portanto, uma breve análise histórica do
desenvolvimento das correntes de pensamento presentes no trabalho de preservação e
restauração de pinturas, esculturas e edifícios pode servir como um valioso ponto de partida
para o trabalho com fonogramas.
Embora anteceda até mesmo a invenção do registro sonoro, o trabalho de preservação
e restauração com embasamento científico dentro das artes visuais pode ainda ser considerado
como um conceito recente na história da arte. Até o início do século XIX, por exemplo, boa
parte das atividades de restauração e preservação em arquitetura era de caráter experimental e
amador. Reiff (1971) comenta sobre os procedimentos até então empregados:
Aos restauradores era permitida uma grande liberdade em edifícios importantes. […] Os métodos usados em restauração […] também eram inadequados. Pedras degradadas frequentemente eram simplesmente escondidas atrás de uma fina peça nova, […] Para estátuas, buracos eram perfurados […] para sustentar uma haste de metal sobre a qual a cabeça ou o membro faltante seriam moldados.1 (REIFF, 1971, p. 26)
1 Esta e todas as demais versões do inglês para o português são de responsabilidade do autor.
18
É perfeitamente possível, até mesmo para uma pessoa leiga em arquitetura, escultura e
restauração, reconhecer que os procedimentos descritos por Reiff como sendo corriqueiros
para a época são hoje considerados invasivos e de efeito meramente paliativo, e que as obras
restauradas por tais métodos estavam sujeitas a um grande processo de descaracterização.
Essa situação começou a ser revertida apenas a partir do século XIX, quando surgiram os
primeiros estudiosos preocupados em discutir quais seriam os princípios teóricos e éticos mais
adequados para a prática da preservação e da restauração em arquitetura, assim como nas artes
visuais como um todo (KÜHL, 2005).
Tais princípios teóricos começaram a ser desenvolvidos a partir da produção
intelectual de vários autores, cujas visões e objetivos foram sendo alterados conforme o
contexto histórico e cultural vigente. A seguir, será apresentado um breve levantamento
cronológico do trabalho de alguns destes principais teóricos de restauração nas áreas de
pintura, escultura e arquitetura, no qual serão estabelecidas as principais características e
diferenças entre as correntes de pensamento.
1.1 A RESTAURAÇÃO SEGUNDO VIOLLET-LE-DUC
Um dos primeiros teóricos da restauração no século XIX, Eugène Emmanuel Viollet-
le-duc foi responsável por diversos grandes trabalhos de restauração na França, como o da
Catedral de Notre Dame de Paris e da cidade de Carcassonne, no interior do país. Sua
produção escrita atingiu ampla repercussão tanto na França quanto nos demais países
europeus. Uma de suas obras mais conhecidas é o verbete “Restauração”, originalmente
encontrado no Dictionnaire Raisonné de l´Architecture Française du XIe au XVIe Siécle, que
consistia de dez volumes publicados entre 1854 e 1868. Naquele verbete, a atividade de
restauração é assim definida por Viollet-le-duc (2007, p. 29): “Restaurar um edifício não é
mantê-lo, repará-lo ou refazê-lo, é restabelecê-lo em um estado completo que pode não ter
existido nunca em dado momento”.
Ao interpretar a definição de Viollet-le-Duc, Reiff (1971) sugere que a intenção
implícita em seu conceito de restauração não era a descaracterização intencional de uma obra
arquitetônica, como faziam diversos outros “restauradores” amadores até então, mas sim o
restabelecimento de cada elemento degradado de volta ao seu suposto estado original, mesmo
que tais elementos tenham sido individualmente incorporados à obra em momentos distintos
ao longo da história. Em um exemplo hipotético, um edifício construído no século X, com
elementos decorativos adicionados nos séculos XV e XVII, poderia ser restaurado no século
19
XIX segundo o conceito de Viollet-le-Duc em busca de um aspecto geral com todos os seus
elementos de diferentes épocas restabelecidos a uma aparência de “novidade” que pode
jamais ter existido de forma simultânea quando cada elemento foi originalmente incorporado
ao contexto da obra. O resultado poderia ser, portanto, um edifício do século X restaurado à
aparência homogênea de “novo” em pleno século XIX. Apesar dessa aparente liberdade
estética, Reiff defende que Viollet-le-Duc teve o mérito de trazer para a restauração a
pesquisa científica, para que suas investigações fossem capazes de revelar qual seria o estado
ideal que o trabalho de restauração deveria objetivar em cada elemento da obra.
Opositores ao trabalho de Viollet-le-Duc, no entanto, argumentam que sua busca por
um estado ideal do objeto restaurado era demasiadamente invasiva, pois admitia um nível
muito alto de intervenção que poderia chegar inclusive a substituir elementos originais em
nome de sua suposta e não comprovada unidade de estilo, destruindo assim a relação histórica
do objeto com o observador para priorizar uma aparência de frescor e rejuvenescimento
(KÜHL, 2005).
O trabalho de restauração de Viollet-le-Duc era visto inicialmente com admiração por
alguns e, com o passar do tempo, com desconfiança por muitos. Já no final do século XIX,
Camillo Boito (2008, p. 58) descreve a figura de Viollet-le-Duc como um alguém “[...] até há
pouco elevado aos céus por todos, agora afundado no inferno por muitos pelas suas mesmas
obras.” e com uma “[...] teoria cheia de perigos [...]”. Ainda assim, a filosofia de restauração
iniciada por ele se tornou muito influente ao longo do século XIX, e ainda hoje encontra
remanescentes em diversas áreas. Santos (2005) resume da seguinte forma a relevância e as
contribuições de Viollet-le-duc:
Apesar de sua racionalidade, lógica e coesão de idéias, sua forma dogmática e abusiva de atuar acabou por condená-lo ao ostracismo nas décadas seguintes. E somente muitos anos após sua morte é que suas teorias foram revistas e avaliadas dentro do contexto em que foram produzidas, evidenciando a contribuição do seu trabalho para o restauro contemporâneo, principalmente em relação à metodologia de projeto (importância dos levantamentos detalhados do edifício) e atuação calcada em circunstâncias particulares a cada projeto [...] (SANTOS, 2005, não paginado)
Portanto, podemos considerar que o maior mérito de Viollet-le-duc é provavelmente
sua iniciativa por ter associado uma rotina de pesquisa cuidadosa ao trabalho de restauração.
Isto contribuiu para a diferenciação entre restauração e “recriação deliberada”, ainda que suas
fontes imprecisas e métodos permissivos o tenham levado a cometer alguns excessos e
decisões equivocadas ao longo de sua carreira (REIFF, 1971).
20
1.2 JOHN RUSKIN E A DEFESA DA PRESERVAÇÃO
Com um ponto de vista bastante diverso ao de Viollet-le-duc, o crítico de arte inglês
do século XIX John Ruskin defendia fervorosamente a preservação de obras arquitetônicas ao
invés de sua restauração. Em seu texto A Lâmpada da Memória (2008), publicado
originalmente em 1849, como parte da obra As Sete Lâmpadas da Arquitetura, Ruskin sugere
uma postura não-intervencionista, argumentando que a restauração seria uma adulteração
histórica que deveria limitar-se apenas a medidas conservativas, em respeito à matéria
original.
Dentre os autores consultados, provavelmente a postura mais extrema de diferenciação
entre as atividades de preservação e restauração seja a de John Ruskin. Para Ruskin, os sinais
de passagem no tempo constituíam os principais elementos do esforço de preservação, pois
não seria possível copiá-los e, uma vez destruídos, jamais poderiam ser reconstituídos por
meios humanos. Ruskin assumia que qualquer tentativa de restauração estaria fadada a ser
apenas uma falsificação, pois seria inevitavelmente baseada em conjecturas. Quando
restaurado, um objeto tornar-se-ia um novo objeto, e deixaria de ser o objeto original. A visão
negativa que Ruskin possuía a respeito da restauração é explicitada em seus comentários,
como o fragmento a seguir:
Ela [a restauração] significa a mais total destruição que um edifício pode sofrer: uma destruição da qual não se salva nenhum vestígio: uma destruição acompanhada pela falsa descrição da coisa destruída. Não nos deixemos enganar nessa importante questão: é impossível, tão impossível quanto ressuscitar os mortos, restaurar qualquer coisa que já tenha sido grandiosa ou bela em arquitetura. (RUSKIN, 2008, p.79)
Assim, Ruskin atribui grande importância para os sinais da passagem do tempo que se
acumulam nas camadas mais externas da matéria. São esses sinais que, segundo ele,
representam o testemunho histórico do objeto diante do homem, e que por tal razão devem ser
considerados como o aspecto mais importante a ser preservado. Com uma linguagem
extremamente romantizada, Ruskin defende a preservação da forma mais ativa possível:
Zele por um edifício antigo com ansioso desvelo; proteja-o o melhor possível, e a qualquer custo, de todas as ameaças de dilapidação. […] não se importe com a má aparência dos reforços: é melhor uma muleta do que um membro perdido; e faça-o com ternura, e com reverência, e continuamente, e muitas gerações ainda nascerão e desaparecerão sob sua sombra. Seu dia fatal por fim chegará; mas que chegue declarada e abertamente, e que nenhum substituto desonroso e falso prive o monumento das honras fúnebres da memória. (RUSKIN, 2008, p.82)
21
Em outras palavras, quando nenhuma medida de preservação se mostrar mais
suficiente, Ruskin admite o fim do objeto. Ele indica preferir que o objeto se transforme em
ruína a permitir que o testemunho histórico corra o risco de ser irreversivelmente adulterado
pela inconsequente intervenção restaurativa.
A aparente aversão de Ruskin pela restauração pode ser melhor compreendida pela
análise de seu contexto histórico. Segundo o comentário de Maria Lucia Bressan Pinheiro, no
prefácio do livro, o texto foi escrito em um momento onde eram comuns a descaracterização e
o empirismo (RUSKIN, 2008). Muito provavelmente as tentativas de restauração na época de
Ruskin eram rudimentares e sem base científica, e a linha de pensamento de Viollet-le-duc —
que incentivava a restauração admitindo a renovação da matéria sem respeito aos sinais de
passagem do tempo — era dominante (REIFF, 1971; SANTOS, 2005).
Contudo, o elemento do pensamento de Ruskin que melhor se aplica ao presente
contexto é a noção de que a preservação precede a restauração: “Cuide bem de seus
monumentos, e não precisará restaurá-los.” (RUSKIN, 2008, p. 82). Ou seja, Ruskin
acreditava que um objeto não dependia da restauração para que fosse transmitido ao futuro,
mas apenas de sua conservação apropriada e vigilante.
1.3 ALOIS RIEGL E CAMILLO BOITO
Alois Riegl e Camillo Boito são apenas dois dentre vários outros exemplos de teóricos
posteriores a John Ruskin e Viollet-le-Duc que assumiram posições mais ponderadas no
diálogo entre preservação e restauração de obras arquitetônicas e objetos de arte.
O historiador de arte austríaco Alois Riegl (1858-1905) interpretava que a fronteira
entre objetos artísticos e objetos não-artísticos deveria ser tratada de forma relativa, pois
considerava ambos como representantes equivalentes perante a história, como testemunhas da
passagem do tempo. “O trabalho de Riegl fornece modelos para uma ligação entre a análise
de obras de arte com a história da percepção, explorando a relação entre monumentos e
memória, e analisando a natureza da modernidade visual.” (GUBSER, 2005, p.451). Através
de sua produção intelectual, Riegl influenciou o trabalho de preservação em arte ao
desenvolver as implicações estéticas e históricas da relação entre o objeto e o observador ao
longo de sua existência, trazendo para as atividades de preservação e restauração a
importância do valor documental do objeto.
Camillo Boito, teórico de arte italiano do século XIX, comenta sobre a restauração e a
preservação de artes visuais em sua obra Os Restauradores, opinando que “[...] uma coisa é
22
conservar, outra é restaurar, ou melhor, com muita frequência uma é o contrário da outra;
[...]” (2008, p.37). Através dessa declaração, Boito tem o cuidado de definir a restauração
como uma atividade distanciada da preservação, possivelmente como uma forma de
precaução contra o trabalho de restauração subjetivo e pouco fundamentado que por fim acaba
descaracterizando a obra que supostamente deveria preservar. A restauração, segundo Boito,
seria uma intervenção direta sobre a obra de arte, ao passo que a conservação se limitaria
apenas a procedimentos de prevenção e sem intervenção direta sobre a obra em si: “[...] não se
pode chamar restauração a qualquer operação que, não se intrometendo de fato naquilo que é
arte na obra antiga ou velha, busca apenas sua conservação material.” (BOITO, 2008, p.46).
Boito, no entanto, não se opõe à restauração do mesmo modo que Ruskin, uma vez
que Boito admite a possibilidade de intervenção restauradora ao defender que a restauração é
preferível ao desaparecimento da obra. Através de uma analogia, Boito critica a postura de
Ruskin e defende a legitimidade da restauração de obras artísticas:
A arte do restaurador, volto a dizê-lo, é como a do cirurgião. Seria melhor (quem não o vê) que o frágil corpo humano não precisasse dos auxílios cirúrgicos: mas nem todos crêem que seja melhor ver morrer o parente ou o amigo do que fazer com que lhes seja amputado um dedo ou que usem uma perna de pau. (BOITO, 2008, p. 57)
Contudo, para ser considerada como um recurso aceitável, a restauração deveria ser
conduzida de forma criteriosa, em respeito à matéria original, limitando-se ao mínimo
necessário. Se, em último caso, forem indispensáveis intervenções mais profundas sobre a
matéria da obra artística, Boito recomenda que estas “[…] demonstrem não ser obras antigas,
mas obras de hoje.” (2008, p. 60). Ou seja, segundo Boito, qualquer alteração deve
permanecer distinguível para o observador no contexto de apreciação da obra, e não deve
colocar o tempo como reversível, sob pena de ser classificada como uma falsificação.
1.4 A TEORIA DE RESTAURAÇÃO DE CESARE BRANDI
Posteriormente, já no século XX, temos o surgimento da figura de Cesare Brandi
como um importante norteador dos princípios da restauração a partir de sua experiência com o
vastíssimo patrimônio cultural italiano, à frente do Intituto Centrale del Restauro de Roma
durante duas décadas. O raciocínio de Brandi para definir a atividade de restauração se inicia
a partir de uma concepção mais geral, onde a restauração é compreendida como “qualquer
intervenção voltada a dar novamente eficiência a um produto da atividade humana” (2004,
23
p.25). Paralelamente, temos a definição encontrada no Artigo nº4 da Carta de Restauração de
1972, que nos esclarece a diferença entre salvaguarda e restauração:
Art. 4º. Entende-se por salvaguarda toda e qualquer medida conservativa que não implique a intervenção direta sobre a obra; entende-se por restauração toda e qualquer intervenção voltada a manter em eficiência, a facilitar a leitura e a transmitir integralmente ao futuro as obras e os objetos definidos nos artigos precedentes. (BRANDI, 2004, p.229)
Essa definição inicial apresentada por Brandi é bastante similar à diferenciação
utilizada por Boito entre preservação e restauração, estabelecendo que a principal diferença
entre salvaguarda e restauração é o tipo de intervenção adotada, respectivamente, indireta e
direta. Desse modo, a restauração de algum modo interfere sobre a matéria da obra, enquanto
que a salvaguarda apenas busca uma solução passiva que não chega a interferir diretamente
sobre a matéria da obra de arte. Assim, temos que a salvaguarda pode significar meramente a
garantia de condições externas adequadas para a preservação do objeto, ao passo que a
restauração envolveria medidas mais intrusivas, que poderiam incluir etapas de limpeza
profunda, remoção da obra de seu local original, ou até mesmo a retirada de elementos
considerados como inválidos ou não-originais segundo algum critério. Logo, é interessante
perceber que tanto o termo salvaguarda quanto o termo restauração podem, por hipótese, se
referir ao propósito comum de transmissão da obra para o futuro.
Os limites para a atividade de restauração de Brandi são bem amplos e, aparentemente,
menos taxativos que as demais posições de outros teóricos analisados até o momento. Brandi
não desaconselha a restauração como Ruskin, e muito menos se permite chegar a um nível de
intervenção tão intrusivo quanto o de Viollet-le-Duc. Em vez disso, Brandi considera a
restauração como uma atividade capaz de trazer benefícios reais para a obra. O que fica claro
através de seu raciocínio é sua abordagem de restauração como uma atividade crítica,
responsável, e cuidadosamente amparada por uma complexa fundamentação teórica.
Contudo, mesmo ao abordar a restauração de forma potencialmente positiva, não é a
intenção de Brandi estimular a restauração desnecessária. Tal como as recomendações de
Camillo Boito, a intervenção restaurativa de Brandi também deveria permanecer limitada ao
nível mínimo necessário, para que se evitassem os excessos e as distorções provocadas por
restaurações equivocadas. Já no aspecto específico da intervenção de caráter preventivo, a
recomendação de Brandi é de certo modo similar à de Ruskin, ao defender que a prevenção de
riscos voltada para a conservação do objeto é preferível à sua recuperação através da
restauração tardia:
24
A restauração preventiva [prevenção] é também mais imperativa, se não mais necessária, do que aquela de extrema urgência, porque é voltada, de fato, a impedir esta última, que dificilmente poderá ser realizada com uma salvaguarda completa da obra de arte. (BRANDI, 2004, p.101)
Ao utilizar o termo “restauração preventiva”, percebe-se que a restauração para Brandi
não é apenas uma atividade de caráter corretivo, mas também de caráter preventivo. Dessa
forma, Brandi expande o significado do termo restauração ao incluir a intervenção direta
sobre a matéria da obra destinada à prevenção de riscos sob o mesmo objetivo primário de seu
conceito de restauração inicial: contribuir para a transmissão da obra para o futuro. Brandi
reforça essa associação definindo que:
[...] qualquer providência voltada a assegurar no futuro a conservação da obra de arte como imagem e como matéria, a que está vinculada a imagem, é igualmente uma providência que entra no conceito de restauração. Por isso, é só a título prático que se distingue uma restauração preventiva de uma restauração efetiva [...] (BRANDI, 2004, p. 101)
Assim, vemos que a restauração de caráter preventivo de Brandi pode, com alguma
liberdade, ser equiparada ao que outros autores como Ruskin e Boito possivelmente
reconheceriam como uma atividade de preservação. Portanto, dentro da teoria de Brandi, a
diferenciação entre preservação e restauração assume uma relação mais dinâmica, e é
colocada em segundo plano perante o objetivo primário de transmissão da obra para o futuro.
1.4.1 O Momento Metodológico
Quanto à aplicabilidade da restauração, Brandi adota uma diferenciação entre a
restauração de objetos de uso comum e a restauração de obras de arte. Para Brandi, a obra de
arte depende da experiência individual: a arte subsiste em forma de matéria física, e só se
completa quando experimentada pelo indivíduo. Tal experimentação induz uma recriação da
obra de arte na consciência individual do apreciador durante o momento de apreciação,
denominada por Brandi como reconhecimento.
A experiência cognitiva do reconhecimento de uma obra de arte é, segundo Brandi,
aquilo que irá ditar a postura diferenciada que a restauração da obra de arte exige em relação
ao objeto de uso comum. Para o caso da obra de arte, o papel da restauração não é delimitado
apenas pela devolução da funcionalidade, como seria no caso de um objeto de uso comum,
mas também exige que seja assumida pelo indivíduo a responsabilidade de lidar
25
simultaneamente com diversos outros fatores — de ordem estética, moral, espacial, histórica e
científica, entre outros — para que a obra de arte permaneça essencialmente inalterada
quando vier a ser apreciada por futuras gerações.
Somente após essa exposição inicial é que Brandi desenvolve a definição da atividade
de restauração específica da obra de arte de uma forma mais completa, como sendo “[...] o
momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física e na sua
dúplice polaridade estética e histórica, com vistas à sua transmissão para o futuro.” (2004,
p.30). É necessário, no entanto, interpretar com maior precisão os termos utilizados por
Brandi nessa definição, pois deles surgirão constatações válidas em nosso contexto. O próprio
Brandi reconhece a necessidade de melhor esclarecimento conceitual sobre o conceito de
momento metodológico, como demonstra o fragmento a seguir:
O que significa, pois, momento metodológico? O reconhecimento da obra de arte como obra de arte advém de modo intuitivo na consciência individual e esse reconhecimento está na base de todo futuro comportamento em relação à obra de arte como tal. Deduz-se disso que o comportamento do indivíduo que reconhece a obra de arte como tal, personifica instantaneamente a consciência universal, da qual se exige o dever de conservar e transmitir a obra de arte para o futuro. (BRANDI, 2004, p. 98-99)
Brandi escolhe o termo momento para representar que a restauração se configura no
instante que se reconhece que o objeto é válido para ser restaurado. Brandi abre espaço para
que compreendamos isto como uma etapa subjetiva e primordial. Se a pessoa ou entidade
encarregada de tal decisão não reconhece a relevância do objeto para que este seja transmitido
ao futuro, então a restauração nunca será efetivamente realizada. Mas quem, no entanto, seria
esse indivíduo que personifica a consciência universal, responsável pelo reconhecimento do
objeto a ser restaurado? No presente contexto, podemos apenas supor que tal pessoa deva ser
um especialista com qualidades, conhecimentos, critérios e autoridade suficientes que o
permitam eleger, avaliar e encaminhar o objeto para o tratamento adequado.
Já o termo metodológico é utilizado porque, a partir desse momento de
reconhecimento, resultará um conjunto de ações necessárias de empenho técnico que irão
ditar o tratamento ao qual o objeto será submetido a partir daquele instante, de modo a
assegurar sua subsequente transmissão. Tais ações serão inicialmente de caráter conservativo
imediato, no caso do objeto in situ, como por exemplo a remoção do objeto para um local
seguro longe de riscos ambientais que se impõem sobre sua consistência física. Um exemplo
possível seria o caso de um especialista que identifica a necessidade de remoção de uma
26
coleção de discos de seu inadequado armazenamento original (como no caso de um ambiente
com mofo e excesso de umidade) para um local com as condições ideais. Asseguradas as
condições externas adequadas, o especialista irá então determinar os tipos de tratamento
específicos que serão utilizados para cada exemplar, gerando assim um plano inicial de
intervenções restaurativas. A definição dessas ações resultará de um julgamento crítico, de
caráter ao mesmo tempo fenomenológico e científico, que tem início a partir da análise
criteriosa do estado físico do objeto. A intenção desse julgamento é formar um panorama
inicial acerca do nível de intervenção que esse objeto irá sofrer e, ao mesmo tempo, avaliar a
probabilidade de essa intervenção ser bem-sucedida para o restabelecimento da
funcionalidade do objeto. Mais uma vez é possível deduzir a importância de uma pessoa
capacitada para tal função.
Finalmente, a dúplice polaridade estético-histórica de Brandi compreende as duas
principais instâncias a serem respeitadas pela restauração. A instância estética se relaciona
com a percepção da obra enquanto arte, que torna possível atestar se a autenticidade do objeto
permanecerá, e se ele não irá sofrer descaracterização de sua unidade enquanto objeto de arte
durante a restauração. A instância histórica, por sua vez, se relaciona com o tempo histórico,
pela relevância e testemunho que o objeto apresenta diante da história humana.
Ao longo de todo o raciocínio de sua Teoria, Brandi mantém um constante diálogo
entre a avaliação estética e a avaliação histórica, pois as considera como os dois pilares de
uma atividade de restauração válida. A restauração passa a se tornar errônea para Brandi a
partir do momento em que desrespeita a estética, quando se altera a obra a ponto de causar a
falsificação de sua aparência, ou a partir do momento em que desrespeita a história, quando se
altera a obra a ponto de falsificar a passagem do tempo, apagando seu testemunho histórico.
1.4.2 Possíveis interpretações para a Teoria de Brandi
Em resumo, para Brandi, a restauração se inicia desde o primeiro momento durante o
qual um observador reconhece um objeto como digno de preservação, segundo seu próprio
julgamento enquanto indivíduo inserido e influenciado por uma determinada realidade
cultural, em um determinado momento histórico. A partir da constatação positiva, a
restauração de Brandi passa a englobar qualquer medida que tenha como objetivo a proteção
da obra para que esta venha a ser transmitida para o futuro. A própria definição estratégica
que surge no momento inicial sobre quais serão as medidas tomadas com relação ao objeto de
arte se torna, segundo Brandi, uma etapa tão ou mais importante que a posterior execução
27
prática de tais medidas, uma vez que é justamente essa etapa teórica que sintetiza o potencial
capaz de definir o curso do trabalho de restauração como um todo.
Como um exemplo prático para demonstração das definições de Brandi, consideremos
um disco de 78 rotações, em estágio moderado de degradação, encontrado no porão de uma
antiga residência. Sua perpetuação para o futuro dependerá, neste primeiro momento, de que
sua relevância artística e histórica enquanto objeto seja devidamente reconhecida por uma
pessoa capaz de tomar quaisquer medidas que se façam necessárias. Um indivíduo
completamente desconhecedor do objeto disco, ao entrar no porão e observar o exemplar, não
dispõe da compreensão de que ele deve ser preservado. Seu momento metodológico não se
realizou positivamente. Um segundo visitante, desta vez um idoso, é capaz de reconhecer o
objeto como um disco de 78 rotações, mas falha em reconhecê-lo como um exemplar raro e
passível de preservação. Caso este idoso o restaurasse, provavelmente o estaria fazendo com
base no preceito de que é um disco comum, e que portanto bastaria o restabelecimento de sua
funcionalidade enquanto disco-objeto: estar em condições de ser tocado por uma vitrola
compatível com seu formato. Por fim, caso este mesmo disco fosse encontrado por um
especialista em fonogramas antigos, e devidamente avaliado como um exemplar único,
qualquer intervenção direta sobre a matéria física e o conteúdo do disco haveria de levar em
consideração a sua condição de exemplar raro, e se submeter ao rigoroso diálogo entre seu
aspecto estético e sua representatividade histórica. Neste último caso, a restauração se
iniciaria a partir do momento que o especialista reconhece o disco, e prossegue à medida que
avalia e define quais ações serão tomadas para garantir a transmissão do objeto para o futuro:
desde sua remoção do local onde se encontra, até seu envio para uma empresa especializada e
sua posterior salvaguarda em um acervo de museu ou sob os cuidados de um colecionador.
Esse exemplo extremamente simplista ajuda a relacionar todo o processo de
preservação e restauração ao momento metodológico inicial proposto por Brandi, ou seja, ao
julgamento subjetivo que determina se uma determinada obra será ou não protegida, e como
se dará essa proteção. A prática se torna apenas uma etapa subsequente, que pode ser
controlada, experimentada e aperfeiçoada, mas que sempre estará subordinada às decisões
tomadas desde o momento metodológico de reconhecimento da restauração.
Essa visão crítica de Brandi onde a restauração é tida como uma atividade
contextualizada segundo um panorama cultural e associado com um momento histórico se
mostrou muito influente ao longo do século XX e constitui uma das principais bases para
outros teóricos da atualidade. O interesse de Brandi é formular uma teoria que possa servir
como uma referência para futuras práticas, e provavelmente por essa razão ele parte de um
28
ideal onde a restauração assume um sentido muito mais amplo, por vezes se assemelhando à
preservação. Por outro lado, Boito não possui a intenção de propor uma teoria como Brandi o
fez, e portanto se limita a comentar as práticas que observa a seu próprio tempo. Talvez por
isso Boito identifique uma distinção maior, onde as duas atividades cumprem propósitos
diferentes — e em alguns casos antagônicos. Finalmente, a posição de Ruskin é a mais
extrema, ao atribuir um caráter invariavelmente nocivo à restauração, admitindo a
possibilidade de que o objeto preservado venha a desaparecer. É importante considerar, no
entanto, que todos os pontos de vista foram importantes na fundamentação do processo de
preservação e restauração nas artes como um todo, cada um de acordo com seu tempo e
segundo seus próprios preceitos. No contexto desta dissertação, no entanto, a Teoria de
Brandi será utilizada de forma mais recorrente que as demais para embasar a discussão sobre
a preservação e a restauração de registros sonoros.
1.5 POSSÍVEIS APLICAÇÕES PARA O CASO DO REGISTRO SONORO
No caso específico da restauração de gravações musicais, em razão de a percepção
sonora ser um fenômeno intangível, os fonogramas servem apenas como suportes temporários
de uma performance musical, o que traz um cenário diferenciado de prioridades na definição
do trabalho de restauração e preservação, em comparação com outras artes.
Neste presente contexto da restauração de fonogramas, especialmente ao considerar a
Teoria de Brandi, temos que o conceito de obra de arte utilizado por Brandi deve ser
interpretado segundo um contexto mais geral e menos idealizado, pois é possível que um
fonograma possa assumir tanto aspectos da obra de arte de Brandi quanto aspectos de um
objeto de uso comum, dependendo de como se interpreta o fonograma.
Hipoteticamente, é possível considerar um exemplo que utilize o tipo de conteúdo do
fonograma como critério para a determinação do nível de tratamento. De acordo com esse
preceito, fonogramas com conteúdo musical exigiriam uma postura de restauração
diferenciada quando contrastados com fonogramas de conteúdo não-musical. Assim, uma
gravação do áudio de uma entrevista poderia não exigir o mesmo nível de amparo técnico que
a gravação de uma performance memorável de um célebre pianista. Neste caso, quanto mais
artístico julgássemos ser o conteúdo do fonograma, mais ele tenderia a se aproximar do
enfoque de Brandi para “obra de arte”, com os critérios, exigências e responsabilidades para
que a experiência da audição permanecesse essencialmente inalterada para gerações futuras.
Do mesmo modo, quanto menos artístico julgássemos ser o conteúdo do fonograma, mais ele
29
iria se aproximar do aspecto meramente técnico da restauração, que se restringe à devolução
de sua funcionalidade enquanto objeto.
Essa é, contudo, uma interpretação demasiadamente perigosa, pois depende de uma
avaliação subjetiva da parte da pessoa encarregada pela determinação do tipo de tratamento ao
qual o objeto irá se submeter. Além disso, esbarra na infindável questão sobre o que é ou não
considerado artístico em música, o que mesmo segundo Brandi é algo cuja percepção é
extremamente dinâmica, que pode variar conforme a época e o lugar. Para evitar tais dilemas,
portanto, todas as interpretações da Teoria de Brandi nesta dissertação consideram os registros
sonoros de forma igualitária, merecedores do melhor nível de tratamento, sem distinções
quanto à validade artística de seu conteúdo.
Quanto à distinção entre os conceitos de preservação e restauração, é possível
presumir que a restauração de áudio ainda possui um longo caminho de evolução, e que por
isso não há garantias de que todos os casos de restauração intencionem a transmissão para o
futuro em seu sentido mais direto, como sugerido por Brandi em sua Teoria. Vemos que, de
acordo com as circunstâncias, a restauração de fonogramas cumpre propósitos diversos da
preservação. Por essa razão, no presente contexto, é mais proveitoso que seja adotada uma
posição intermediária entre Boito e Brandi, pois não há aqui o interesse de se gerar uma nova
teoria como Brandi o fez, mas apenas de realizar uma comparação crítica entre práticas
correntes. Em outras palavras, interpretamos que a restauração e a preservação de registros
sonoros em alguns aspectos se diferenciam e em outros se complementam, conforme o caso.
30
2. A PRESERVAÇÃO E A RESTAURAÇÃO DE FONOGRAMAS NO CONTEXTO
DOS ACERVOS SONOROS
Embora a preservação, a restauração e a ética associada à sua prática ainda sejam
conceitos amplamente debatidos nas demais artes até os dias de hoje — e a restauração de
gravações apenas mais um reflexo dessa constatação — existem esforços que buscam definir
os conceitos de preservação e restauração em fonogramas quanto a seus principais aspectos:
seus limites, seus objetivos e seus procedimentos. Esses são os principais pontos de discussão
deste capítulo, que trata de alguns dos diversos aspectos teóricos e práticos voltados para a
salvaguarda das informações portadas pelo fonograma no contexto dos acervos sonoros em
geral.
2.1 PRESERVAÇÃO VERSUS RESTAURAÇÃO
Tal como previsto anteriormente, várias fontes reforçam que o trabalho de preservação
pode assumir propósitos distintos do trabalho de restauração no caso dos registros sonoros.
Dietrich Schüller, diretor do Phonogrammarchiv da Academia de Ciências da Áustria
(Österreichische Akademie der Wissenschaften), comenta:
O primeiro princípio arquivístico é a produção de um master 2 de preservação digital representando a transferência sem modificações do sinal do original. Qualquer restauração, “melhoria”, ou modificação subjetiva deve apenas ser realizada separadamente, em um segundo estágio, sempre permitindo que usuários futuros retornem ao master de preservação sem modificações. (SCHÜLLER, 2001, p. 620)
Essa separação entre o trabalho de restauração e a preservação presente no ponto de
vista de Schüller também é compartilhada por outros especialistas. James Nichols recomenda:
Deverá ser sempre realizado um backup dos dados de áudio PCM 3 primários, uma vez que a restauração é um processo subjetivo, sujeito a erros, revisões e melhorias no ofício. Toda restauração é um 'trabalho em andamento', então é sábio preservar os dados originais. (NICHOLS, 2001, p. 5).
2 Master é um termo em inglês usado para definir um fonograma (e, mais recentemente, também um arquivo de áudio digital) que será eventualmente utilizado como referência para a geração de outras cópias. Por vezes é traduzido como Matriz, mas a ocorrência do termo original em inglês se mostrou bastante frequente no meio de áudio profissional brasileiro. 3 PCM é o acrônimo de Pulse Code Modulation, ou Modulação por Código de Pulsos. É um padrão de codificação digital no sistema binário, onde as informações que descrevem a onda analógica original são transformadas em informações numéricas para permitir sua transmissão e armazenamento em sistemas digitais. Para maiores detalhes sobre princípios básicos do áudio digital consulte Serra (2002).
31
As opiniões de Schüller e Nichols delimitam de maneira prática a separação entre
preservação e restauração em registros sonoros. A restauração é incluída na mesma classe das
intervenções e “melhorias” subjetivas, o que a aproxima de um procedimento qualitativo. Ela
também é colocada como uma atividade posterior e isolada do procedimento de salvaguarda
que assegura a preservação, que é a obtenção do master digital, ou seja, de uma cópia de
preservação digital. Finalmente, Schüller e Nichols revelam não apenas similaridade com as
recomendações de Brandi, ao atribuir a importância do princípio da reversibilidade para a
restauração, como também adotam uma postura semelhante à sugerida por Boito, ao
abordarem a restauração com alguma reserva, como um procedimento de inerente risco contra
o qual deve haver precauções.
Além disso, Schüller associa de forma direta a preservação com o procedimento de
digitalização, e Nichols assume desde o início que a digitalização já foi realizada e que a
cópia digital é o objeto da preservação. A digitalização e suas implicações para a preservação
serão analisadas em maior detalhe na seção seguinte.
Em resumo, pode-se concluir que a preservação de registros sonoros se limita a
medidas de caráter preventivo, através da manutenção do estado físico do objeto visando à sua
perpetuação para o futuro, minimizando ou impedindo que a degradação causada pela ação do
tempo comprometa a informação contida no suporte. A restauração, por sua vez, busca o
retorno a um estado anterior ideal do objeto preservado e pode ser considerada como um
procedimento de maior teor subjetivo — e que nem sempre se mostra essencial para a
salvaguarda do objeto. Assim, no caso do som gravado, a restauração per se somente pode
ocorrer quando a preservação já se encontra assegurada, pois a primeira deve ser um
procedimento complementar a esta última, o que satisfaz a condição de reversibilidade
sugerida por Brandi e Boito. Logo, devemos ter o cuidado de interpretar corretamente o
contexto onde aparecem escritas, pois muitas vezes o termo restauração mantém implícito que
uma etapa de preservação esteja sendo realizada, ao passo que o inverso não se aplica:
preservar não significa necessariamente restaurar, pois não existe a princípio a intenção de
retorno a um estado anterior do registro sonoro ou de intervenção direta sobre seu conteúdo.
2.2 A REGRAVAÇÃO E A DIGITALIZAÇÃO COMO MEIOS DE PRESERVAÇÃO
A partir das possibilidades abertas pela utilização da fita magnética como um dos
principais formatos de armazenamento de áudio na segunda metade do século XX, a técnica
da regravação (rerecording) passou a integrar a rotina dos arquivos como uma etapa essencial
32
para a preservação de um fonograma em um acervo sonoro (NARA, 1993; STEWART,
1972). Conceitualmente, a regravação pode ser definida como um procedimento técnico de
transferência de informação de um suporte para outro, onde o conteúdo do suporte original é
reproduzido por intermédio de um equipamento de leitura, e o sinal então gerado é gravado
em outro suporte por intermédio de um equipamento de gravação. O objetivo do processo de
regravação em áudio é a geração de uma cópia, o fonograma secundário, o qual normalmente
é utilizado em substituição ao fonograma original ou primário.
O fonograma secundário normalmente possui um formato diferente do fonograma
primário, e a escolha desse formato de destino é feita com base em critérios de acesso,
capacidade de armazenamento, expectativa de durabilidade e fidelidade com relação ao
original. Outra característica importante desse procedimento é a necessidade de
monitoramento em tempo real por um operador, que é o indivíduo responsável pelo manuseio
dos fonogramas e pelos eventuais ajustes e correções durante a transferência (NARA, 1993, p.
43). Como exemplos, podemos citar regravações de fonogramas primários em formato de LP
para fonogramas secundários em formato de fitas de rolo ou cassettes, ou a regravação de
fonogramas primários em formato de fita de rolo diretamente para um computador — o que
configura um caso específico denominado digitalização.
No contexto dos arquivos atuais, a digitalização se tornou um procedimento
equivalente à regravação, exceto pelo fato de que não envolve a transferência de conteúdo de
um fonograma primário para um fonograma secundário, mas de um fonograma primário
diretamente para o armazenamento digital, através de um procedimento referido como
conversão analógico-digital, ou simplesmente conversão A/D 4. Com a consolidação da
prática de digitalização, as demais formas de regravação passaram a ser nominalmente
diferenciadas como analógicas. A transição da prática da regravação analógica para a
digitalização ocorreu de forma gradual, e ganhou forte impulso a partir da metade final dos
anos 1990, impulsionado pelo progressivo barateamento e o crescente aumento de capacidade
dos suportes de armazenamento digital.
Dietrich Schüller comenta sobre algumas mudanças que ocorreram na estrutura dos
acervos durante essa transição entre a prática de regravação analógica para a digitalização,
apontando algumas vantagens desse novo processo:
4 A conversão A/D em si é um processo automatizado que transcorre em tempo real, executado por um equipamento denominado conversor analógico-digital, normalmente abreviado para conversor A/D ou simplesmente ADC (Analog-to-digital Converter). Durante a digitalização, o operador é responsável pela definição dos parâmetros que serão utilizados para a criação do arquivo digital resultante (IASA, 2009).
33
Consequentemente novas estratégias foram desenvolvidas, desistindo do antigo conceito arquivístico de busca pelo suporte “eterno” e substituindo essa filosofia pela demanda para salvaguarda dos conteúdos dos suportes em formato digital para garantir a habilidade “eterna” de produzir gerações subsequentes de cópias idênticas (clones). […] Tais sistemas [de arquivos digitais] proporcionam não apenas um melhor acesso à coleção, eles também permitem a constante monitoração da integridade do sinal do material armazenado para proporcionar automaticamente uma "reatualização" de suportes em risco através da cópia dos dados ainda legíveis para um novo suporte. Adicionalmente eles permitem, com um gasto mínimo de força de trabalho, a migração dos conteúdos de tais armazenamentos para novos sistemas, quando os antigos se tornarem obsoletos. (SCHÜLLER, 2001, p. 619)
Luiz Wagner Biscainho reitera as vantagens da tecnologia digital sobre a tecnologia
analógica para a geração de cópias sem perda de qualidade:
Com a tecnologia digital, o armazenamento de áudio sofreu sua maior revolução desde a invenção do fonógrafo. Pela primeira vez, foi possível gerar cópias rigorosamente iguais, garantir a perenidade de uma matriz, utilizar recursos de processamento antes impensáveis e ter o controle sobre o binômio quantidade x qualidade da informação. (BISCAINHO, 2000, p.4)
Assim sendo, uma das grandes vantagens da digitalização vem a ser sua capacidade de
gerar sucessivas cópias idênticas a partir do arquivo master digital extraído do suporte físico
original, além de trazer melhorias diretas para o acesso e a distribuição de arquivos sonoros.
Copeland (2008) detalha algumas das condições através das quais é assegurada a igualdade
entre cópias em um sistema digital:
Uma vez que a codificação digital tenha sido atingida, ela pode a princípio durar eternamente sem degradação, porque gravações digitais podem a princípio ser copiadas indefinidamente sem sofrer nenhuma perda adicional de qualidade. Isto assume que: (1) a mídia sempre seja copiada no domínio digital antes que os erros se acumulem em demasia, (2) os erros (os quais podem ser medidos) sempre recaiam dentro dos limites do sistema de correção de erros (o qual também pode ser medido), e (3) após a correção de erros ter sido atingida, os dígitos básicos que representam o som não sejam alterados de nenhuma outra forma. Quando uma gravação digital passa através de tal processo com sucesso, é considerada como “clonada”. (COPELAND, 2008, p. 25)
Ou seja, Copeland nos permite compreender que a digitalização possui como
característica o fato de ser um procedimento mensurável e objetivo, cujo desempenho pode
ser controlado e otimizado para gerar uma versão digital de um suporte físico que não está
sujeita aos problemas de redução de qualidade entre diferentes gerações de cópias, antes
encontrados em formatos analógicos de armazenamento.
Contudo, a digitalização não é um procedimento necessariamente recente em acervos
sonoros, pois já era de certa forma utilizada durante gravações de campo e em regravações no
34
formato DAT 5 desde o final dos anos 80. Embora o DAT já fosse considerado um formato
digital em si, a diferença é que seu armazenamento ainda dependia de um suporte físico
magnético. A pequena fita magnética utilizada pelo DAT com o tempo provou ser um suporte
problemático e pouco confiável para uso em acervos pois ainda estava sujeita aos efeitos do
armazenamento e do desgaste físico, de forma tão ou até mais severa do que outros formatos
analógicos. A utilização mais recente do termo digitalização pressupõe a utilização de uma ou
mais cópias secundárias de um mesmo arquivo sendo armazenadas em discos rígidos (hard
discs ou HDs), que por sua vez podem estar compartilhados em uma rede de dados.
Graças à evolução dos meios de armazenamento digital e dos métodos de conversão e
acesso, a digitalização de arquivos sonoros tem alcançado uma nova dimensão ao longo dos
últimos anos. Embora ainda seja perfeitamente possível transferir o conteúdo digitalizado para
formatos portáteis de uso comum como o CD, o DVD ou o Blu-ray, o grande diferencial do
armazenamento digital é que este agora não depende mais de um suporte físico portátil para
sua reprodução ou armazenamento, uma vez que pode ser armazenado, acessado, distribuído e
reproduzido diretamente a partir de um computador. Uma vez digitalizado, o conteúdo sonoro
não está mais sujeito a perdas de qualidade entre cópias, e pode ser mantido inalterado por
tempo indefinido, desde que sejam tomadas certas precauções para com o sistema que
armazena e gerencia as informações. Casey & Gordon escrevem sobre essa tendência
crescente de utilização de formatos de arquivos digitais em acervos, em substituição aos
formatos de fonograma digitais tradicionais como o CD ou o DAT:
Existe um consenso geral entre arquivistas sonoros de que formatos de arquivos de dados são preferíveis ao invés de mídias físicas contendo faixas de áudio digital, como o DAT e o CD, pois garantem a segurança dos dados, o monitoramento da integridade dos dados, e o gerenciamento de instâncias de preservação. Nosso formato-alvo de preservação é agora o arquivo digital, que deve ser gerenciado a longo prazo de modo a garantir a integridade dos dados e permitir a tomada de decisões quando seu formato específico se torna obsoleto. Estes arquivos podem residir em vários tipos de mídias diferentes — fitas de dados, discos rígidos, discos ópticos — cada qual com suas próprias vantagens e desvantagens. A preservação de áudio, então, requer uma responsabilidade a longo prazo para com o arquivo digital. Se os arquivos digitais forem adequadamente criados e bem documentados, eles não apenas representam a melhor chance para a preservação do conteúdo intencionado, como também possuem algumas vantagens técnicas sobre qualquer cópia analógica que possa ser produzida, incluindo a possibilidade de utilização de processos automatizados na geração de cópias que possuem a mesma fidelidade aos arquivos originais. (CASEY & GORDON, 2007, p.33).
5 Introduzido em 1987, o formato DAT, acrônimo do inglês Digital Audio Tape (Fita de Áudio Digital), consiste de uma pequena fita magnética de 3.81mm de largura que armazena áudio digital em codificação PCM, permitindo taxas de amostragem de 32, 44,1 ou 48 kHz, em 16 ou 20 bits. Foi inicialmente utilizado com algum êxito, mas entrou em rápido declínio comercial ao longo das décadas de 1990 e 2000, e atualmente se encontra obsoleto.
35
Uma vez que a digitalização tem se tornado um recurso amplamente utilizado dentro
de acervos e coleções, e por causa de sua importância para a determinação da qualidade de
preservação do fonograma, é exatamente sobre sua prática que se concentram diversos
relatórios e estudos oriundos de organizações como a Audio Engineering Society (AES), a
National Recording Preservation Board (NRPB), a British Library, entre outras. Todos esses
esforços buscam a discussão sobre quais seriam os melhores métodos para se armazenar,
manusear e reproduzir o fonograma original de modo a extrair o maior número possível de
informações para a digitalização, e assim garantir sua preservação.
2.3 DELIMITANDO A ATIVIDADE DE RESTAURAÇÃO DE FONOGRAMAS
Conforme discutido anteriormente, a digitalização e a regravação representam os
principais procedimentos através dos quais se tenta assegurar a preservação do conteúdo dos
registros sonoros. Partindo do princípio defendido por Schüller (2001) de que a restauração
constitui uma etapa muitas vezes posterior à digitalização e de caráter complementar ao da
preservação, passemos agora para uma breve delimitação do campo de ação da atividade de
restauração de registros sonoros.
De um modo geral, ao nível da matéria física, pode-se considerar que as iniciativas de
preservação intencionam minimizar ou impedir que ocorram novas degradações no suporte do
registro sonoro, enquanto que a iniciativa de restauração busca, de algum modo, reverter
degradações já existentes. As degradações físicas são possivelmente a manifestação mais
visível do mau estado físico de um registro sonoro. Quando ocorrem na superfície de leitura
de um suporte mecânico, sob a forma de arranhões, rachaduras, mofo, desgastes e anomalias
diversas, essas degradações frequentemente resultam na manifestação de ruídos
caracterizados por estalos, variações de velocidade, distorções e outros efeitos audíveis ao
longo do conteúdo gravado (WILSON, 1965). Tais degradações são, de modo geral,
consideradas “indesejáveis” para o sinal sonoro, como atesta a definição inicial de Godsill &
Rayner:
A degradação de uma fonte de áudio será considerada como qualquer modificação indesejável ao sinal de áudio que ocorre como resultado do (ou subsequente ao) processo de gravação. Por exemplo, em uma gravação direta sobre o disco a partir de um microfone, as degradações poderiam incluir o ruído do microfone e do amplificador assim como do processo de corte do disco. Ruído adicional pode ser introduzido pelas imperfeições no material de prensagem, transcrição para outro suporte ou o desgaste do próprio meio. (GODSILL & RAYNER, 1998b, p.134)
36
Tal definição, portanto, não limita a degradação unicamente ao campo da matéria
física mas também a relaciona com o processo de gravação, o que apenas traz à tona novos
questionamentos: como são caracterizadas as degradações do sinal sonoro que têm origem ao
longo do processo de gravação? Quais ruídos estariam relacionados com essas degradações?
Por uma associação lógica, se for considerado que o trabalho de restauração intenciona
reverter degradações, então a atividade de restauração de fonogramas pode ser dividida em
dois momentos:
a) a restauração se concentra na neutralização da degradação encontrada na matéria física
do registro sonoro, buscando mitigar a causa do ruído — como, por exemplo, no caso
da restauração física de suportes mecânicos e magnéticos (ver 2.8.4);
b) a restauração se concentra na minimização dos efeitos decorrentes das degradações
(ruídos), muitas vezes através de intervenções diretas sobre o sinal sonoro por meio de
processamento digital.
Neste segundo caso, seria possível buscar a reversão de degradações que não se
encontram unicamente relacionadas com a etapa de leitura da matriz, mas também com o
processo de gravação desde sua origem, tal como sugerido pela definição de Godsill &
Rayner (1998b). Vemos que se torna necessário, pois, uma breve análise que possa amparar a
discussão a respeito da posição que o ruído assume em um trabalho de restauração.
2.3.1 O Conceito de ruído para a preservação e a restauração
A restauração, seja incluída como uma extensão de um propósito de preservação ou
como um recurso para a livre exploração subjetiva, ainda depende do controle humano em
algum momento. Apesar da proliferação de processos automatizados, ainda é o julgamento
humano exercido pelo restaurador que irá, através da identificação e avaliação de “ruídos”
encontrados no sinal sonoro, estabelecer os critérios para correção das degradações em um
registro sonoro. Se considerarmos a degradação como um fragmento portador de informação,
veremos que a informação — e, por relação, a autenticidade — pode também ser perdida
através de distorções causadas por um julgamento inadequado, a partir do momento que o
restaurador identifica e corrige uma falsa degradação. Godsill & Rayner (1998b, p.134)
comentam: “[...] não consideramos estritamente qualquer ruído presente no ambiente da
gravação tal como o ruído da platéia em uma performance musical como degradação, uma
vez que ele é parte da 'performance'.”. Em outras palavras, dependendo do tipo de ouvinte e
contexto, existem ruídos que são considerados como degradações (e portanto passíveis de
37
correção), assim como existem ruídos que não são considerados degradações, e são mantidos
inalterados.
Logo, a restauração deve respeitar a autenticidade do objeto como limite, segundo a
informação original contida nele, o que lança a restauração a um nível de debate
musicológico: como identificar quais são os fragmentos de informação passíveis de
intervenção restaurativa no contexto dos fonogramas históricos mantidos em acervos? O que
faz parte da performance? O que é considerado como ruído?
Longe de tentar dar início a qualquer discussão mais profunda (e inconclusiva) sobre
música e ruído, limitemo-nos à condição de que o ruído pode ser um conceito extremamente
dinâmico, fluído e situacional e que por isso, dentro de um contexto de restauração, depende
da correta determinação de parâmetros que permitam a avaliação do operador dentro de um
conjunto limitado de variáveis.
Jacques Attali (1985) apresenta uma definição introdutória de ruído baseada na teoria
da informação, que considera um modelo de transmissão de uma mensagem entre emissor e
receptor:
Um ruído é uma ressonância que interfere com a audição de uma mensagem no processo de emissão. […] Ruído, então, não existe em si mesmo, mas apenas em relação ao sistema dentro do qual está inscrito: emissor, transmissor, receptor. A teoria da informação utiliza o conceito (ou melhor, metonímia) de ruído de um modo mais geral: ruído é o termo para um sinal que interfere com o recebimento de uma mensagem pelo receptor, mesmo que o próprio sinal interferente possua um significado para aquele receptor. Muito antes de lhe ser dada essa expressão teórica, o ruído sempre havia sido experimentado como destruição, desordem, sujeira, poluição, uma agressão contra as mensagens estruturadas pelo código. (ATTALI, 1985, p. 26-27)
À luz da definição de Attali, se o emissor da mensagem for considerado como sendo o
artista que executou a performance gravada e o receptor como sendo o ouvinte final, então o
ruído pode englobar toda interferência causada desde a gravação até a reprodução sonora,
incluindo desde as características de microfones e as características acústicas da sala de
gravação até as deficiências inerentes ao formato de suporte utilizado. Se, por outro lado,
consideramos o próprio registro sonoro como o emissor e o conversor A/D como o receptor,
então podemos restringir a abrangência do que pode ser interpretado como ruído apenas para
as falhas intrínsecas do sistema de reprodução e da conversão analógico-digital. Neste último
caso, por exemplo, um arranhão em um disco ou um problema no conversor A/D que causa
um estalo no sinal pode ser considerado um ruído, enquanto que as deficiências do microfone
utilizado por um intérprete no momento da gravação não seriam interpretadas como tal.
38
Hegarty (2007), por sua vez, acrescenta que o ruído depende fundamentalmente da
percepção e do julgamento do indivíduo que o recebe, possuindo uma forte relação com o
cenário histórico e cultural que o acompanha. Hegarty assim resume:
O ruído em si constantemente se dissipa, pois aquilo que é julgado ruído em um ponto é música ou significação em outro. Assim como o elemento perturbador, o ruído também deve ser pensado como constantemente em falha — falha em permanecer ruído, conforme se torna familiar, ou prática aceitável. […] identificar o ruído como uma parte da música é apenas o passo inicial; o próximo é enxergar o ruído como a relação entre aquele ruído primário, explícito e aquilo que não é ruído. Isto pode ser interno à peça, ou em como se relaciona com práticas institucionais, convenções musicais, sociedade como um todo, ou com tudo mais que pareça se opor ao ruído, mas intimamente conectado a ele e sua definição a qualquer tempo. (HEGARTY, 2007, p. ix)
Como lidar com algo que possui uma significação tão variada quanto o ruído em uma
gravação? Esse é provavelmente o ponto mais delicado de toda a discussão sobre restauração,
justamente porque é reconhecido por Hegarty como algo extremamente subjetivo e
contextual. Dependendo do referencial adotado pela restauração, observa-se que a eliminação
de ruídos e degradações pode ser útil tanto para uma atividade de restauração mais ousada e
exploratória, que busca a eliminação de ruídos relacionados com o processo de gravação,
quanto para uma iniciativa de preservação que busca apenas a representação do registro
sonoro original tal como encontrado no suporte físico, ou seja, sem as degradações e os ruídos
provocados pela etapa de leitura. Um estudo mais aprofundado sobre essas e outras
interpretações possíveis para ruído será apresentado no terceiro capítulo desta dissertação.
2.4 DIGITALIZAÇÃO E REVERSIBILIDADE
Uma vez selecionada a digitalização como o meio de preservação de registros
analógicos e como possível ponto de partida para uma posterior restauração, o grande desafio
que se apresenta é a extensa quantidade de variáveis envolvidas durante a seleção, o manuseio
e a reprodução das fontes primárias, que formam um conjunto de fatores capazes de
influenciar diretamente a qualidade sonora transferida para o conteúdo digitalizado.
De forma semelhante à regravação, os eventuais erros que ocorrem durante o processo
de digitalização irão acompanhar a cópia digital por toda sua vida útil, e só poderão ser
corrigidos mediante a repetição de todo o procedimento, ou através de ferramentas de
restauração. Tais erros podem ser causados por degradações físicas presentes na estrutura
material do suporte, por falhas durante a etapa de leitura ou por problemas no conversor A/D.
39
Contudo, uma etapa de digitalização concluída sem erros não significa uma
desobrigação para com o fonograma original. Por mais bem executada que tenha sido, a
transferência digital ainda pode estar sujeita à repetição, e mais uma vez a fonte original pode
se tornar necessária. Por isso, Schüller (2001, p.620) estabelece que: “O segundo princípio [da
preservação] é manter o original porque no futuro toda transferência previamente realizada
pode ser considerada insuficiente e uma nova transferência pode ser desejável.”
A repetição da etapa de digitalização para a correção de falhas e otimização do
processo só permanece viável enquanto o exemplar original ainda existir e permanecer em
condições de leitura. Surge um dilema, portanto, ao constatarmos que a própria leitura
convencional pode contribuir para o desgaste do original, pelo atrito e pelo manuseio
provocados ao suporte. Daí a necessidade de que a digitalização seja um procedimento
cuidadoso e bem planejado para que não cause desgastes desnecessários ao fonograma
original.
Sean Davies reitera a defesa pela manutenção do original, justificando que ele pode ser
necessário para a recuperação de informações ainda não vislumbradas:
Algumas compensações podem apenas ser possíveis com acesso ao registro original, e isto é verdade até no domínio digital, então é de importância vital que os originais não sejam destruídos simplesmente para economizar espaço ou custos: também é ingênuo assumir que nenhum desenvolvimento futuro irá permitir uma maior recuperação de informações do que as obteníveis no presente. (DAVIES, 1999, p. 2)
Copeland (2008) complementa a discussão ao afirmar que não são apenas os
desenvolvimentos tecnológicos que permitirão para uma melhor digitalização no futuro.
Copeland argumenta que também é necessário que sejam estudadas as relações entre artistas e
produtores no passado para que o pesquisador saiba discernir quais elementos da gravação
constituem falhas e quais elementos podem ser interpretados como decisões intencionais do
produtor da gravação original.
Se, por um lado, a evolução tecnológica pode prover melhores recursos para a
digitalização no futuro, por outro ela própria pode reforçar a necessidade de manutenção do
fonograma original. Assim como a tecnologia que o armazena, o formato do arquivo digital
está sujeito a um ritmo constante de obsolescência. Isto significa dizer que um arquivo
digitalizado em uma determinada época pode ser considerado “ultrapassado” alguns anos
mais tarde por causa da atualização dos padrões de formato. Isto é relativamente preocupante,
pois pode implicar a repetição do processo de digitalização para que se faça uso de padrões
mais atuais e supostamente de melhor qualidade — algo que com certeza já foi testemunhado
40
pela atual geração de engenheiros e operadores de áudio. O documento IASA TC03 confirma
essa característica “preliminar” da digitalização:
Por causa do potencial para melhorias no resgate de informações primárias e secundárias e da disponibilidade de resoluções digitais sempre crescentes, todas as transferências devem ser consideradas preliminares. Logo os suportes originais e equipamentos de reprodução adequados devem ser preservados quando possível. Entretanto, embora a possibilidade de uma nova transferência no futuro deva ser considerada, todas as transferências devem ser realizadas segundo os mais altos padrões disponíveis na época da transferência. Elas podem, futuramente, se tornar a última transferência dos originais. (IASA, 2005, p. 7)
Em resumo, a digitalização não pode ser considerada um procedimento definitivo e
nem completamente suficiente, uma vez que os padrões de exigência e as possibilidades
técnicas evoluem a cada ano, o que pode tornar necessário que uma digitalização seja refeita
para tomar vantagem da melhoria da qualidade sonora possibilitada por novas técnicas e
equipamentos. Tal argumento reforça a necessidade de armazenamento das gravações
originais por tempo indefinido, para que seja possível uma nova digitalização quando quer
que se prove necessário. Essa manutenção física dos originais pode acarretar custos não
previstos para algumas instituições, pois exige condições de armazenamento meticulosamente
controladas (MANNIS, 2008; HANS & DE KOSTER, 2004). Assim, a manutenção do
original é uma medida que garante a reversibilidade da operação de digitalização a qualquer
tempo, satisfazendo a condição de Brandi para com esse aspecto, evidenciada pelo Artigo nº 8
da Carta de Restauração de 1972:
Art. 8º. Toda intervenção na obra, ou mesmo na área a ela contígua, para efeitos do disposto no art. 4º, deve ser executada de modo tal, e com tais técnicas e materiais, que possa ficar assegurado que, no futuro, não tornará impossível uma nova eventual intervenção de salvaguarda ou de restauração. (BRANDI, 2004, p. 232)
2.5 A PRESERVAÇÃO DA AUTENTICIDADE
Uma vez que o trabalho de preservação e restauração de registros sonoros é baseado
na obtenção de cópias digitais dos suportes originais, surge um questionamento conceitual
sobre a correta aplicação do termo autenticidade, que é mencionado diversas vezes na
literatura técnica, e em alguns casos com significados conflitantes. Considerando
especialmente que o trabalho de digitalização não pode ser assumido como definitivo e está
sujeito à repetição por tempo indefinido, pergunta-se: a que nível pode uma cópia digital ser
considerada autêntica? A partir de qual momento pode suposta autenticidade ser perdida
41
através de alterações como a correção de ruídos? O intuito desses questionamentos não é
alcançar uma conclusão definitiva sobre as implicações da autenticidade, mas apenas uma
direção que se mostre suficiente dentro dos propósitos de preservação e restauração.
Segundo Walter Benjamin, a obra autêntica possui uma história atrelada a si mesma.
Essa história é compreendida tanto por sua passagem no tempo enquanto estrutura física,
quanto por seus registros de propriedade e funcionalidade ao longo de sua existência:
O aqui e agora do original constitui o conteúdo da sua autenticidade, e nela se enraíza uma tradição que identifica esse objeto, até os nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre igual e idêntico a si mesmo. A esfera da autenticidade, como um todo, escapa à reprodutibilidade técnica, e naturalmente não apenas à técnica. […] A autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo o que foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde a sua duração material até o seu testemunho histórico. (BENJAMIN, 1985, p. 167, grifo do autor)
A cópia digital pode ser interpretada dentro do contexto de Benjamin como o produto
de uma reprodução técnica. Logo, para Benjamin, a cópia não apenas é incapaz de reter a
autenticidade do original, como também pode diminuir o valor presencial da obra (definido
por Benjamin através do conceito de aura) ao permitir que a reprodução técnica alcance
contextos para os quais o original jamais se adequaria:
Mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra. […] Mesmo que essas novas circunstâncias deixem intato o conteúdo da obra de arte, elas desvalorizam, de qualquer modo, o seu aqui e agora. [...] O conceito de aura permite resumir essas características: o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é a sua aura. (BENJAMIN, 1985, p. 167–168)
Uma vez que Benjamin associa o conceito de autenticidade ao testemunho histórico da
obra, surge uma possibilidade de relação desse conceito com o pensamento de Ruskin (2008)
e Brandi (2004), que defendem veementemente a preservação do testemunho histórico do
objeto durante o trabalho de preservação e restauração para impedir a descaracterização da
obra.
Brandi em particular prediz que a alteração da matéria física pela restauração, seja pela
adição ou pela remoção dos elementos que constituem a obra, não só é capaz de apagar a
relação previamente existente entre o objeto e seu testemunho histórico como também pode
criar uma nova relação histórica em si mesma. Os dois fragmentos a seguir, extraídos da
Teoria de Restauração de Brandi (2004), fundamentam a lógica para o tratamento de
elementos que foram adicionados ou retirados da obra de arte:
42
Do ponto de vista histórico a adição sofrida por uma obra de arte é um novo testemunho do fazer humano e, portanto, da história: nesse sentido a adição não difere da cepa originária e tem os mesmos direitos de ser conservada. A remoção, ao contrário, apesar de também resultar de um ato e por isso inserir-se igualmente na história, na realidade destrói um documento e não documenta a si própria, donde levaria à negação e destruição de uma passagem histórica e à falsificação do dado. Disso deriva que, do ponto de vista histórico, é apenas incondicionalmente legítima a conservação da adição, enquanto a remoção deve ser sempre justificada e, em todo caso, deve ser feita de modo a deixar traços de si mesma e na própria obra. (BRANDI, 2004, p. 71)
Mais adiante em seu raciocínio, Brandi especifica as condições para a retirada da
adição pelo restaurador segundo a justificativa da instância estética:
É claro que se a adição deturpa, desnatura, ofusca, subtrai parcialmente à vista a obra de arte [segundo o julgamento estético], essa adição deverá ser removida e se deverá ter o cuidado apenas, se possível, com a conservação à parte, com a documentação e com a recordação da passagem histórica que, desse modo, é removida e cancelada do corpo vivo da obra. (BRANDI, 2004, p. 84)
Durante o curso da preservação e da restauração, tudo aquilo que for considerado
como um elemento de acréscimo documenta a si próprio, e representa automaticamente um
relato de seu tempo. Por outro lado, elementos removidos não documentam a si próprios, ou
seja, não há meios de se saber o que foi removido a menos que existam outras fontes de
informação que indiquem essa ocorrência. Brandi deixa claro que a falsificação nasce a partir
da ocultação de dados sobre uma alteração intencional, especialmente quando são retirados
elementos da obra. Portanto, por analogia, todas as remoções de elementos de um sinal sonoro
realizadas durante a intervenção de restauração devem ser documentadas, e toda
documentação sobre um registro fonográfico deve ser analisada para que seja possível
diferenciar quais delas foram alterações intencionais de informação.
Como exemplo prático, podemos citar um fonograma original em formato de disco do
início do século XX. Pode ser dito que esse disco retém o testemunho histórico em seu
próprio estado físico, que inclui sua capa, seu rótulo, suas relações de propriedade, enfim,
todas as informações secundárias que existem além do sinal sonoro codificado em seus
sulcos. Tal disco, segundo Benjamin, é um exemplar autêntico em si mesmo, pois contém um
relato de todo o intervalo de tempo desde sua gravação até o momento presente. Sua cópia
digital, por outro lado, é incapaz de reter a mesma autenticidade, por mais que seu conteúdo e
suas informações auxiliares sejam meticulosamente digitalizados. É como se a obra pudesse
ser reproduzida, mas sua passagem no tempo não. A representação digital reduz o valor
presencial do objeto e permite a colocação do objeto reproduzido em situações impossíveis ao
43
original, como neste caso o acesso à cópia digitalizada através de uma rede de dados pela
Internet ou a reprodução através de um computador com caixas acústicas de última geração.
À luz das idéias de Brandi, se essa mesma cópia digital fosse alterada, compensada ou
“melhorada” através da restauração, tudo que a restauração adicionasse ao sinal sonoro —
como alterações de dinâmica, ganhos em frequências, e outros elementos que podem
denunciar uma tendência passageira — estaria sujeito a um novo testemunho histórico, dessa
vez como parte da cópia digital. Em nenhuma instância a cópia sem alterações deve ser
apagada ou completamente substituída pela cópia alterada, pois são justamente as diferenças
apresentadas entre as duas versões que permitem avaliar o trabalho percorrido pela
restauração. A documentação produzida deve detalhar cuidadosamente quais foram os
procedimentos realizados pois, de acordo com o princípio da distinguibilidade proposto por
Brandi, todas as alterações de restauração devem permanecer facilmente identificáveis para o
ouvinte.
Em outro exemplo, considere agora uma canção gravada originalmente para um disco
de 78 rpm da década de 1930. Suponha que essa mesma canção seja digitalizada e restaurada
décadas após seu lançamento original com o propósito de servir como trilha sonora de um
filme, que porventura se torna um grande sucesso de vendas na Internet. Nesse tipo de
contexto comercial, é possível prever que grande parte das alterações sofridas pela cópia
digital para que a canção original se adapte às exigências de qualidade dessa nova encarnação
denunciem o gosto de uma época específica, que pode representar uma tendência meramente
passageira. Essa nova sonoridade adquirida pela canção digitalizada e restaurada pode ser
futuramente associada com o momento de resgate dessa canção, e não mais com a canção em
sua sonoridade e formato originais. Em outras palavras, embora a cópia digital restaurada
traga um novo êxito comercial através da reprodutibilidade técnica, a autenticidade dessa
versão “atualizada” da canção será relacionada apenas com a época em que foi relançada
como a trilha sonora de um filme, que é algo muito distante do contexto do disco original da
década de 1930. Ou seja, é possível compreender que a cópia digital apresenta nesse caso uma
nova relação de autenticidade, uma vez que é totalmente alheia ao testemunho histórico
associado à matéria do suporte original.
Assim percebemos, portanto, que pode existir uma relação entre autenticidade
(enquanto testemunho histórico) e documentação, pois é exatamente a documentação
produzida para detalhar as alterações feitas ao sinal que poderá, no futuro, ser determinante
para que se consiga estabelecer como surgiu essa nova relação de autenticidade. Contudo,
veremos que apenas a documentação das alterações sofridas pelo sinal sonoro não seria
44
suficiente para que fossem reveladas outras relações importantes para a compreensão desse
novo contexto comercial do exemplo anterior. Dados a princípio não relacionados com o sinal
sonoro, como o número de vendas da canção em CD, o gênero de filme no qual foi inserida e
a arte gráfica da embalagem podem revelar informações relevantes para trabalhos de pesquisa
posteriores em diversas áreas. Essas informações podem se tornar igualmente importantes
para reforçar a relação de autenticidade do objeto, e algumas delas podem ser até mesmo
externas ao objeto em si. Thibodeau (2001) desenvolve esse conceito de forma mais
detalhada, e estabelece uma relação entre autenticidade e registro dos dados de
contextualização:
Um dos elementos-chave que distinguem arquivos de outras instituições que preservam informação é que a responsabilidade essencial dos arquivos é preservar e entregar registros autênticos para gerações subsequentes de usuários. Registros são documentos acumulados no curso de atividades práticas. […] O que diferencia os registros dos materiais documentais em geral não é a sua forma, mas sua conexão com as atividades nas quais eles são gerados e recebidos. Se essa ligação é quebrada, corrompida, ou mesmo obscurecida, a informação no registro pode ser preservada, mas o registro em si mesmo estará perdido. […] Por exemplo, um mapa de Sarajevo é um documento, mas um mapa de Sarajevo que se sabe ter sido utilizado na elaboração de uma escolha de alvo que levou ao bombardeamento da embaixada chinesa é um registro essencial daquela ação. Uma diferença-chave entre o documento e o registro é a especificação do contexto da ação na qual o registro estava envolvido. A preservação de registros autênticos envolve a preservação dos próprios documentos e também suas conexões com as atividades nas quais eles foram usados. (THIBODEAU, 2001, não paginado)
Assim, Thibodeau defende que não basta buscar a preservação ou a restauração apenas
do objeto em si, pois a atribuição de autenticidade pode depender também da preservação das
fontes secundárias que contêm informações sobre o contexto do objeto que se intenciona
preservar. No caso da restauração de registros sonoros, Brock-Nannestad (2000) define que as
informações primárias nos fonogramas correspondem ao próprio sinal sonoro portado pelo
fonograma original e que as informações secundárias, por sua vez, englobam todos os dados
correspondentes ao contexto desse registro sonoro. Como exemplo de informações
secundárias, Brock-Nannestad cita os encartes dos discos, os rótulos de papel e qualquer tipo
de anotação sobre a gravação, assim como adverte que podem existir informações secundárias
contidas até mesmo dentro de ruídos inseridos no mesmo sinal associado com a informação
primária ou em degradações encontradas na matéria do suporte físico. “Tais informações
secundárias podem ser essenciais como fontes para um trabalho crítico, como por exemplo
quando a procedência ou autenticidade de uma gravação deve ser determinada.” (BROCK-
NANNESTAD, 2001b, p.2).
45
Então, pode-se dizer que a eliminação de informações secundárias é capaz de
comprometer a determinação de autenticidade de uma gravação. Brock-Nannestad (2000,
p.10) define a autenticidade de um fonograma como “o grau até onde ele preserva e entrega a
informação desejada ao tempo em que ela for requerida” e alerta que “existe a todo tempo
uma contínua perda de informação”. Em outras palavras, isto significa dizer que todas as
informações armazenadas pelo registro sonoro estão constantemente sujeitas a alterações e
perdas, e que por consequência a autenticidade também se encontra continuamente ameaçada.
Por essa razão, é necessário que todas as fontes auxiliares que comprovadamente
possuam (ou que possam vir a possuir) dados sobre a utilização e a contextualização do objeto
original também sejam contempladas pela estratégia de preservação. A negligência acerca da
perda de informações secundárias e a falta de documentação podem, em casos extremos, levar
ao engano durante a interpretação exigida para o tratamento de fonogramas degradados,
resultando em restaurações equivocadas. Uma exortação à necessidade de se analisar e gerar
documentação cuidadosa durante as etapas de preservação e restauração é encontrada na
continuação do Artigo nº8 da Carta de Restauração de 1972:
[...] Além disso, toda intervenção deve ser previamente estudada e justificada por escrito (último parágrafo do art. 5º) e de seu decorrer deverá ser elaborado um diário, que será seguido por um relatório final, com a documentação fotográfica de antes, durante e depois da intervenção. Serão ainda documentadas todas as pesquisas e análises eventualmente realizadas com o subsídio da física, da química, da microbiologia e de outras ciências. (BRANDI, 2004, p. 232)
Além da documentação minuciosa, o texto da Carta de Restauração chega a sugerir
uma integração de conhecimentos interdisciplinares para compor uma base de dados para
futuros pesquisadores. No contexto dos acervos sonoros, a preservação das informações
secundárias é claramente recomendada por instituições de referência, como é demonstrado
pelo fragmento a seguir, retirado do documento IASA TC-03 (2005):
Remover a informação primária do suporte original levanta a questão da futura autenticação do som. Usuários futuros, por razões dadas neste documento, podem apenas ter acesso à informação primária de um documento sonoro sob a forma de uma cópia em um novo suporte/sistema. Uma vez que o declínio do suporte ou a obsolescência do sistema tornar o acesso à informação primária de um documento sonoro possível apenas através do uso de uma cópia do suporte original, a importância da adequada informação secundária aumenta. Arquivos necessitam, portanto, gravar de uma forma sistemática as informações secundárias relevantes contidas no documento original e tornar essa informação acessível juntamente com a cópia da informação primária. Por esses meios, usuários futuros podem estar seguros da autenticidade dos dados primários. (IASA, 2005, p. 5)
46
Por fim, podemos concluir que a preservação de fonogramas deve objetivar não
somente a conservação do sinal do suporte original, mas também a salvaguarda das
informações contextuais relacionadas 6. A presença de informações contextuais não apenas
auxilia a atribuição de autenticidade de um registro sonoro, como também pode facilitar o
encaminhamento de uma atividade de preservação ou de restauração. De modo recíproco,
deve-se gerar documentação e relatos que viabilizem interpretações futuras acerca do material
que sofre intervenção hoje, agregando dados oriundos de vários campos de conhecimento.
2.6 A DEFINIÇÃO DE PRIORIDADES PARA A DIGITALIZAÇÃO
De um ponto de vista estritamente conservativo e prático, pode-se inicialmente supor
que a digitalização deva priorizar os suportes originais que correm riscos físicos imediatos,
especialmente para os casos onde é previsto que não haverá uma segunda oportunidade para
digitalização. Tal critério, no entanto, constitui uma medida de urgência, e pode ser aplicado
sem contestações apenas aos suportes em comprovado estado material crítico.
Contudo, existem ainda outros critérios, especialmente quando são consideradas as
limitações dos recursos disponíveis para a digitalização. Copeland (2008, p. 24) questiona:
“Por exemplo, no mundo de hoje com recursos muito restritos, qual deve ter prioridade
máxima: mídias vulneráveis, mídia em máxima demanda, ou mídia que poderia resultar em
maior conhecimento?”. Em sua Teoria de Conservação Operacional 7, Brock-Nannestad
(1998) admite que a perda de informações é algo inevitável, argumentando que é pouco
provável que uma iniciativa de digitalização realista consiga abranger todas as informações
existentes dentro de um conjunto de objetos destinados à preservação. Sendo assim, defende a
seleção consciente de exemplares para preservação, utilizando como critério uma estimativa
de demanda futura pelas informações contidas em cada suporte a ser preservado.
Por sua vez, Hans & de Koster (2004) argumentam que a digitalização que prioriza
apenas fonogramas em risco pode se tornar financeiramente desvantajosa, especialmente em
casos onde a implantação imediata de melhorias nas condições de armazenamento for menos
dispendiosa. Paralelamente, o estudo dos padrões de consulta às informações preservadas
pode revelar dados valiosos para a realocação de recursos para digitalização, resultando em
um melhor aproveitamento de recursos técnicos e humanos na estrutura do acervo. No
fragmento a seguir, Hans & de Koster demonstram como uma estratégia de digitalização bem
6 Para uma relação de possíveis fontes de informação para registros fonográficos consulte a seção 4.3.2. 7 Consulte também a seção 3.2.
47
organizada pode ser capaz de otimizar o fluxo de operação do acervo, trazendo benefícios a
curto prazo:
Quando iniciou seu projeto de digitalização em meados dos anos noventa, a CBC Radio-Canada decidiu analisar o uso que tinha de seus arquivos. O estudo resultante mostrou que 50% dos pedidos eram por conteúdos de programas que haviam sido transmitidos nos 12 meses precedentes. Como resultado, a CBC Radio-Canada decidiu 'estancar o sangramento'. Colocou um fim na adição constante de fitas ao digitalizar em primeiro lugar as gravações de suas transmissões presentes. (HANS & DE KOSTER, 2004, p. 3)
Ao participar de um procedimento de regravação de cilindros antigos para fitas
magnéticas no início da década de 1980, Seeger & Spear (1987) enumeraram as principais
dificuldades que sua equipe encontrou ao longo do processo:
[...] Nós encontramos alguns desafios no processo de regravação. Estes incluíram (1) uma ignorância de muitos a respeito das tradições musicais envolvidas. (2) cilindros danificados. (3) processos de gravação não identificados. (4) velocidade irregular do cilindro, e (5) documentação inadequada. [...] (SEEGER & SPEAR, 1987, p.8).
É interessante perceber que apenas duas dessas cinco dificuldades listadas possuem
relação direta com o estado material e a reprodução técnica do fonograma (Itens 2 e 4),
enquanto que as restantes possuem natureza externa à gravação em si. Se uma estratégia de
preservação viesse a ser retrabalhada apenas a partir dessa única referência, a maioria dos
esforços seria direcionada para o estudo das tradições musicais em (1), e para a identificação
dos contextos de cada gravação por análise discográfica em (3) e (5). Esse caso específico
seria um mero indicativo de como um bom trabalho de preservação e digitalização pode não
depender apenas de competência e precisão técnica.
Além dos apresentados, vários outros fatores políticos, econômicos, jurídicos
(autorais), financeiros, administrativos e técnicos podem alterar a atribuição de prioridades
durante a digitalização. Até mesmo a própria digitalização pode ter consequências sobre a
estrutura do arquivo como um todo, e isso também deve ser considerado. Um exemplo de
acervo que optou por priorizar a digitalização e para isso teve de alterar sua estrutura de
gestão é encontrado em Drews & Von Arb (2008). Neste exemplo, um arquivo público
norueguês teve que firmar uma parceria com uma instituição privada especializada em
digitalização para conseguir obter os meios técnicos necessários para assegurar a preservação
de seu acervo em formato digital.
48
Em outro exemplo, Araújo Junior (2008) descreve o caso do acervo sul-africano
ILAM (International Library of African Music), cujos organizadores se encontraram em um
dilema ao se depararem com uma oportunidade de obtenção de apoio técnico especializado
para a digitalização de seu acervo, por intermédio de uma instituição norueguesa. Como
condição, o arquivo sul-africano deveria permitir a disponibilização de materiais de caráter
cultural exclusivo para a instituição estrangeira durante o processo. Em situações como essa,
diante da variedade de objetos encontrados em acervos, é possível que existam restrições
específicas para certos registros e gravações que podem incluir desde problemas autorais até
restrições de cunho religioso — como por exemplo o registro de melodias cantadas por uma
tribo indígena durante cerimônias exclusivas para os membros daquela tribo. Isso demonstra
que, em alguns casos, uma iniciativa de digitalização motivada pela dependência tecnológica
e pela carência de recursos pode exigir uma delicada avaliação, pois nem sempre a melhor
alternativa técnica se traduz em pleno benefício para o acervo de origem, seja por motivos
éticos, políticos ou mesmo culturais.
É importante considerar também que a responsabilidade do gestor sobre a digitalização
não termina com a obtenção do arquivo digital. Valle Junior (2003) e Gladney (2001), entre
outros, ressaltam que a preservação das informações viabilizada pela digitalização somente
permanecerá assegurada enquanto houver uma política de manutenção de longo prazo, que
pode incluir desde sistemas específicos de acesso e armazenamento até a implementação de
procedimentos de verificação de autenticidade digital que possam atestar que o arquivo
preservado não foi corrompido ou alterado ao longo de seu armazenamento. A negligência
para com a preservação de longo prazo pode, sozinha, comprometer toda uma iniciativa de
preservação.
Informações e exemplos adicionais sobre a definição de prioridades para a
digitalização e suas implicações para a gestão de acervos são abundantes na literatura, e
demandam uma análise cuidadosa que ultrapassa o propósito deste trabalho. Dentre as
referências mais voltadas para acervos sonoros, pode ser citado o documento IASA TC03
(2005), além do manual de Copeland (2008), Casey & Gordon (2007) e Gladney (2001).
Também é importante a consulta de publicações provenientes de instituições de preservação
como International Council on Archives (ICA), International Association of Sound and
Audiovisual Archives (IASA), International Federation of Library Associations and
Institutions (IFLA) e United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization
(UNESCO).
49
2.7 VARIÁVEIS DE DESTINO PARA A PRESERVAÇÃO DIGITAL
Além da definição de prioridades, outro aspecto inicial decisivo para a preservação
digital é a escolha do formato de destino e o tipo de acesso que o arquivo digitalizado irá
prover. Quais são as exigências de qualidade para a digitalização? Qual a função que a
digitalização deverá cumprir além da preservação? Qual será o formato de arquivo necessário
para isso? Como o arquivo digital será armazenado? Como será catalogado? Esses são apenas
alguns dos questionamentos que formam uma estratégia de digitalização completa. Mesmo
que o profissional envolvido com a operação técnica da digitalização não tenha
responsabilidade sobre algumas dessas decisões, muitas delas irão influenciar diretamente a
maneira como a digitalização será conduzida tecnicamente.
Um exemplo que detalha os requisitos para a digitalização pode ser encontrado em
King (2001). Em seu artigo, King relata algumas decisões do programa de digitalização da
BBC RADIO 1 de Londres, que possui um vasto acervo sonoro de grande demanda
internacional. Entre as decisões envolvidas, King enumera os critérios utilizados para a
escolha do formato de arquivo de preservação, decisões sobre o tipo de armazenamento e
acesso, assim como sobre o método de catalogação e o fluxo de trabalho adotados.
2.7.1 O formato do arquivo digital
Talvez a decisão mais diretamente relacionada com o aspecto prático da digitalização
seja a escolha do formato de arquivo digital, uma vez que é nessa decisão que culminam todos
os esforços realizados para a leitura do fonograma primário. Existe uma infindável discussão
sobre qual é o formato de arquivo mais adequado para a digitalização de preservação, que
envolve basicamente atributos objetivos de qualidade, tais como a frequência de amostragem
(sample rate)8, a resolução dinâmica (bit depth)9 e recursos para metadados (metadata)10.
8 Sample rate, também conhecido como Taxa de Amostragem, é o número de amostras por segundo do sinal analógico coletadas pelo conversor A/D para criar uma representação digital do sinal, onde o valor de cada ponto de amostra é transformado em um número de base binária (SERRA, 2002). Valores típicos de Sample Rate incluem 44.1, 48, 88.2, 96 e 192 kHz. Neste último caso, 192 kHz significam 192.000 amostras em 1 segundo. 9 Bit depth é o termo que define o número de algarismos binários que serão utilizados para registrar cada ponto da amostragem. Quanto maior o número de algarismos, melhor será a resolução durante a representação do sinal digital. Valores típicos de bit depth giram em torno de 16, 20 e 24 bits. 10 “Metadata (ou metadados) são dados sobre dados. Uma gravação digital pode ser acompanhada por vários tipos de metadata, incluindo descritivos (ex. lista de músicas), administrativos e técnicos (ex. uma descrição do equipamento de áudio utilizado na transferência digital, ajustes do equipamento, e o tipo de compressão de dados utilizada).” (NRPB, 2006, p. 12).
50
Por causa das características de resolução digital e capacidade de inserção de
metadados, foi observada uma forte preferência pela utilização do formato de arquivo digital
.BWF (Broadcast Wave Format) na literatura técnica mais recente. O formato .BWF foi
adotado com sucesso em instituições de preservação, como os acervos das universidades de
Harvard e Indiana (CASEY & GORDON, 2007), além de ser oficialmente recomendado pelo
documento IASA TC04 (2009). Contudo, existem ainda outros formatos possíveis de
arquivos digitais capazes de cumprir as exigências de preservação, tal como o formato .WAV
(Waveform Audio File Format), que é um formato de arquivo sem perdas ainda muito
utilizado no meio de áudio profissional, mas que possui a diferença de não oferecer tantos
recursos para a associação de metadata quanto o formato .BWF.
Sobre as recomendações específicas de sample rate e bit depth para a preservação,
concluiremos segundo a opinião de Schüller (2001):
Voltando à questão da suficiência dos presentes formatos ou resoluções digitais, até mesmo uma discussão superficial seria demasiadamente ambiciosa neste contexto. A partir da experiência dos últimos 20 anos nós sabemos que resoluções que foram aceitas como satisfazendo “de longe” todas as expectativas qualitativas, se tornaram menos aceitáveis quando resoluções mais altas chegaram ao alcance geral. Pode ser previsto que esse debate nunca irá acabar […]. Em resumo, pode ser estabelecido que qualquer utilização prévia de padrões inferiores aos do respectivo ponto de retrospecção será lamentada. (SCHÜLLER, 2001, p. 619)
Mesmo entre vários conversores A/D operando com parâmetros de sample rate e bit
depth iguais, o melhor desempenho é frequentemente atingido por equipamentos de maior
custo11. A escolha do formato de arquivo, por sua vez, irá depender dos objetivos de
preservação do acervo, com uma atual tendência para os formatos .WAV e .BWF 12 (NRPB,
2006; IASA, 2009).
Convém lembrar que a conversão A/D constitui apenas uma das etapas responsáveis
pela qualidade final da digitalização. Não existe lógica em utilizar um conversor A/D de
última geração sem que haja uma limpeza adequada do suporte original e sua posterior leitura
através de um bom equipamento. Assim, temos que a melhor recomendação é a utilização da
maior resolução digital que a tecnologia atual permitir, contanto que seja assegurado um nível
de qualidade compatível para todos os demais elementos da estrutura de digitalização. 11 Apesar do alto custo normalmente associado com os melhores modelos de conversores A/D, não há razão para economia em um equipamento que será tão primordial para o resultado final da digitalização. Acervos sonoros de instituições como Harvard e Indiana nos Estados unidos foram digitalizados com a utilização de conversores A/D que custam pelo menos alguns milhares de dólares cada (CASEY & GORDON, 2007). 12 O formato de arquivo .MP3 é completamente inadequado para a preservação de áudio (IASA, 2009). Sua utilização dentro de um acervo está confinada a casos específicos como o acesso remoto online. Nesse propósito, o arquivo .MP3 é extraído a partir da cópia digital de maior qualidade, tanto .WAV como .BWF.
51
2.8 VARIÁVEIS DE LEITURA DO SUPORTE MECÂNICO
Dentro do fluxo de trabalho da digitalização de preservação, a leitura do fonograma
original pode ser considerada como uma etapa essencialmente técnica e de maior caráter
prático. Assim como a etapa prática da restauração de Brandi (2004), a leitura do fonograma
pode ser compreendida como uma consequência do esforço de pesquisa teórica e de decisões
estratégicas de preservação, que vão desde o correto levantamento discográfico até a definição
de prioridades e procedimentos de trabalho. Em outras palavras, é esperado que a etapa de
leitura do fonograma seja uma das últimas etapas dentro do processo de digitalização, pois
seus objetivos já devem estar definidos de antemão.
A leitura para a digitalização efetiva dos fonogramas ainda é uma etapa que representa
um considerável desafio técnico, e durante a qual provavelmente surgirão dificuldades ainda
não previstas. Seeger & Spear (1987), juntamente com Owen (1981), Copeland (2008), Welch
(1972), Casey & Gordon (2007), dentre outros, em algum momento alertam sobre a
importância da participação de profissionais especializados e experientes na função de
transcrição. Além disso, Casey & Gordon (2007) e NRPB (2006) recomendam
especificamente a implementação de etapas de treinamento para a capacitação de profissionais
pela própria instituição responsável pelo acervo, que se tornariam posteriormente
responsáveis pelo manuseio e pela rotina de manutenção do acervo físico e digital.
2.8.1 Seleção do melhor exemplar
Antes do início da digitalização em si, deve ser realizada a seleção dos exemplares de
fonogramas que servirão como a fonte primária para a extração de informações. A
recomendação geral é que se utilize o melhor exemplar disponível de cada fonograma (NRPB,
2006; IASA, 2005; BROCK-NANNESTAD, 2001b). Muitas vezes, em um acervo, a seleção
de exemplares para digitalização estará limitada a um único exemplar original, como no caso
de gravações etnográficas e entrevistas (SEEGER, 1986; BRADY, 1999). Mas ainda assim é
válido que os originais sejam comparados com as cópias analógicas de regravação
previamente realizadas pelo acervo, para que se confirme se o original ainda é o exemplar que
apresenta a melhor qualidade (IASA, 2009). É importante que o acervo busque informações
sobre a possível existência de cópias de um determinado fonograma em outras localidades
externas, tanto para assegurar que o trabalho será feito sobre o melhor fonograma disponível
quanto para se informar se esse fonograma já não foi anteriormente digitalizado por alguma
52
outra instituição. Copeland (2008) recomenda ainda que o plano de digitalização seja
estruturado de tal forma que, caso um exemplar de melhor qualidade venha a ser descoberto
posteriormente, o processo possa ser repetido sem transtornos ao fluxo de trabalho do acervo.
Qualquer tipo de gravação que venha a ser produzida dentro de contextos comerciais
também é uma forte candidata para apresentar mais de uma fonte primária possível. Tais
fontes podem existir sob a forma de diversas versões de fitas master, como demonstra
Feldman (1986) no trecho a seguir:
[...] Quando estiver trabalhando com materiais analógicos mais antigos, esteja certo de que você possui a melhor versão disponível — tanto tecnicamente quanto artisticamente — antes que você transfira o material […] Sempre use o master original, não uma cópia que foi equalizada para o corte do disco. Se a fita original possuir ajustes de equalização e alterações de nível anotadas, determine se estas alterações foram feitas por razões artísticas ou para compensar as limitações do LP. Você pode ter que considerar a remixagem a partir da fita multipistas original se as fitas estéreo disponíveis não forem de qualidade adequada. (FELDMAN, 1986, p. 934)
No contexto original desse fragmento, Feldman dirige suas recomendações para
engenheiros de som responsáveis pela digitalização de fitas de master originais, dentro do
propósito comercial de produzir uma versão em CD de um álbum originalmente lançado em
formato analógico. Vemos que estas recomendações, mesmo pertencentes a um contexto
comercial de produção de versões digitais (CD) a partir de fontes analógicas (LP), não estão
distantes das decisões confrontadas pela realidade da digitalização de preservação. Um ponto
interessante das palavras de Feldman é que ele se preocupa em alertar para que seja
identificado se as alterações encontradas foram decisões artísticas ou se foram alterações
feitas para compensar as limitações do meio original. Essa definição de intencionalidade é
amplamente debatida por Copeland (2008) em seu diálogo entre subjetividade e objetividade,
e será melhor analisada ao longo da quarta parte desta dissertação.
2.8.2 Escolha do equipamento de leitura
Uma das decisões que possui maior impacto durante a etapa de leitura é a escolha de
um equipamento de leitura que possa cumprir todos os requisitos de reprodução do fonograma
original. Os critérios para tal escolha variam desde a compatibilidade do equipamento com o
formato do fonograma até a disponibilização de controles que permitam o ajuste preciso das
variáveis de reprodução. Cada equipamento de leitura pode ser composto de diversas partes,
também passíveis de seleção individual, onde cada uma pode assumir um peso diferente na
53
função de transferência de informações. Um bom exemplo seria o caso do toca-discos,
constituído basicamente por uma base giratória, agulha, cápsula, braço e, eventualmente, pelo
circuito pré-amplificador de phono13 embutido; cada uma dessas peças pode ser
individualmente selecionada entre diversos modelos existentes no mercado especializado,
com diferentes resultados na qualidade final do som.
Diante da variedade de equipamentos disponíveis, existe um debate constante sobre
qual seria o tipo de equipamento de leitura mais apropriado para a execução de fonogramas
em uma digitalização de preservação: devem ser utilizados equipamentos modernos
especialmente projetados para a reprodução de formatos antigos, ou os antigos equipamentos
originais da época do fonograma?
Fontes como Schüller (2001), Owen (1981), Copeland (2008) e o documento IASA
TC-04 (2009), dentre outras, recomendam a utilização dos mais modernos equipamentos de
leitura em um contexto de preservação. Contudo, aplicações específicas podem exigir a
reprodução do fonograma através de equipamentos originais, como o caso digitalização que
objetiva a reconstituição histórica, sugerida por Storm (1983), Schüller (1991), Brock-
Nannestad (1989), e Orcalli (2006).
A reconstituição histórica é uma abordagem que visa a simular, em vários níveis, um
suposto ambiente de audição baseado no perfil de um ouvinte em uma determinada época.
Muitas vezes, o propósito de reconstituição histórica torna necessário que seja realizada uma
digitalização orientada para a obtenção de resultados específicos, pois certas características
acústicas são inerentes ao conjunto de variáveis de leitura decorrentes da utilização de um
equipamento de reprodução antigo. Um exemplo seria a utilização de agulhas e modelos de
toca-discos da década de 50 para digitalizar um LP da mesma época, ou a utilização de uma
máquina de fita de rolo original da década de 1970 para a reprodução de fitas gravadas
naquela mesma década 14.
13 O pré-amplificador de phono é um dispositivo responsável pela amplificação e pela equalização do sinal segundo uma curva de equalização pré-estabelecida, e que deve ser colocado entre a saída do sinal de áudio do toca-discos e a entrada do conversor A/D. O padrão da curva de equalização para discos LP foi introduzido a partir da metade da década de 1950 pela RIAA, e se tornou uma referência mundial para a indústria fonográfica desde então. Contudo, discos produzidos pelo processo elétrico antes da introdução da curva RIAA utilizam diversos outros tipos de curvas de equalização, o torna necessária uma pesquisa discográfica individual para que o sinal seja devidamente reconstituído (COPELAND, 2008; IASA TC-04, 2009). Para este último caso das curvas de equalização variáveis, é ideal que seja utilizado um modelo de pré-amplificador de phono que permita o ajuste customizado de curvas de equalização, o que limita a escolha a alguns poucos modelos especializados. 14 É importante mencionar que existe ainda outra recente tendência de reconstituição histórica que não envolve a utilização de equipamentos de reprodução obsoletos, denominada de Digital Audio Antiquing. Essa vertente faz uso de uma cópia digital do fonograma para, a partir dela, “simular” a qualidade de reprodução de fonogramas históricos pela inserção de ruídos e efeitos sonoros associados com uma determinada época, através de ferramentas de processamento digital. Maiores detalhes podem ser obtidos no artigo de Välimäki et al (2008).
54
Ao se comparar a digitalização voltada para a reconstituição histórica com a
digitalização destinada apenas para a preservação do fonograma, conclui-se que
provavelmente não seriam escolhidos os mesmos modelos de agulha e toca-discos para os
dois casos, e que por consequência pode haver uma grande disparidade de qualidade de
reprodução entre um sistema antigo e um moderno. Por agora, conclui-se apenas que existe a
possibilidade de uma divisão de procedimentos neste ponto da escolha do equipamento de
leitura, de acordo com o propósito que a digitalização assumir.
2.8.3 A velocidade adequada de reprodução
Embora a indústria fonográfica tenha estabelecido alguns padrões de velocidade de
leitura para formatos mecânicos e magnéticos ao longo da história, diversos fatores
contribuem para a imprecisão em torno desses valores. Por essa razão, tanto fonogramas em
formato de disco e cilindro quanto fonogramas em formato de fita magnética necessitam de
confirmação sobre qual seria a velocidade apropriada de reprodução em cada caso 15. Tom
Owen (1981) expõe algumas dificuldades para a determinação da velocidade adequada de um
fonograma:
Para afinar com precisão registros sonoros históricos para uma transferência arquivística válida não se pode depender unicamente da partitura e de afinadores de sopro quando conteúdo musical estiver envolvido. Outros fatores devem ser levados em consideração: era o 'Lá' 440 o padrão em uso no tempo e local da fonte original? Em se tratando de um cantor, será que ele transpôs o tom original na hora da gravação, tal como fez Caruso com 'Di quella pira' em sua famosa gravação? Aqui é onde musicólogos e historiadores devem ir ao resgate através de materiais publicados disponíveis. (OWEN, 1981, p.4)
O trabalho de pesquisa discográfica e de análise de fontes secundárias são importantes
ferramentas para a determinação da velocidade correta. Sem referências claras, a
determinação de velocidade se transforma em um verdadeiro jogo de adivinhação. Para casos
onde não existem informações de apoio, Seeger & Spear (1987) descrevem uma tática de
determinação de velocidade dos cilindros a partir da análise da “naturalidade” da pronúncia de
consoantes cantadas durante a gravação. O relatório da NRPB (2006) também cogita algumas
possibilidades alternativas para que se determine a afinação original de uma gravação:
15 Um panorama sobre a história de evolução da velocidade de rotação em registros sonoros pode ser encontrado em Warren Rex Isom (1977) e em Copeland (1991; 2008).
55
A audição especializada é o primeiro passo na determinação da velocidade de reprodução. […] Especialistas em música ou linguagem podem ser aptos para determinar a afinação correta com base em seu conhecimento sobre o conteúdo do programa. Adicionalmente, os participantes da discussão recomendaram a escuta em busca de ruído ambiental elétrico de baixo nível de linha de energia (50Hz para gravações européias, 60Hz para norte-americanas). A verificação do hum [ruído] elétrico com equipamento de teste pode ajudar na determinação da velocidade de reprodução correta. Engenheiros de preservação de áudio devem estar cientes de que a velocidade pode variar ao longo da gravação. Isto é particularmente verdade para gravações de campo. (NRPB, 2006, p. 9)
Copeland (2008) acrescenta ainda outras considerações sobre a afinação de
instrumentos que podem auxiliar na determinação da velocidade correta de reprodução:
Sempre houve uma tendência dos músicos em afinar seus instrumentos para cima para um 'brilho extra', e existem algumas evidências de que os padrões de afinação se elevaram lentamente mas de forma consistente ao longo dos séculos como consequência. Existiram muitas tentativas de padronizar a afinação de modo que instrumentos diferentes pudessem tocar juntos; mas o acordo internacional definitivo não veio até 1939, depois de mais de quatro décadas de gravações utilizando outros 'padrões'. (COPELAND, 2008, p. 91)
Pela lógica, conclui-se que o trabalho de pesquisa musicológica e discográfica deve
idealmente anteceder o procedimento técnico de digitalização para que se obtenha o máximo
de proveito das informações secundárias, incluindo possíveis referências à velocidade correta
de reprodução. De posse dos valores apropriados, basta que o operador ajuste o equipamento
de reprodução e atente para possíveis variações de velocidade que venham a ocorrer ao longo
da duração do registro sonoro — o que pode tornar necessárias outras intervenções corretivas.
2.8.4 Limpeza e restauração física do fonograma
Uma vez selecionado o melhor exemplar, é necessário que se realize a limpeza da
superfície de leitura do fonograma. A limpeza do registro sonoro, seja em formato de disco,
cilindro ou fita, pode se revelar um procedimento complexo dependendo do tipo de material e
do nível de degradação em que o objeto se encontra. Em casos extremos, é necessária a
aplicação de técnicas especiais, que devem sempre ser embasadas por dados científicos.
(OWEN, 1981; CASEY & GORDON, 2007; FESLER, 1983; HESS, 2006).
Por vezes, poderá ser verificada a necessidade de uma intervenção mais direta e
profunda sobre a matéria estrutural do fonograma juntamente com a limpeza do suporte,
denominada de restauração física (CASEY & GORDON, 2007). Em alguns casos, o termo
56
restauração pode estar até mais associado com a intervenção física do que com a intervenção
digital sobre o sinal sonoro, como evidenciado pelo manual de preservação da NARA (1993):
h. Restauração. Restauração inclui a limpeza e a reabilitação de gravações sonoras danificadas ou em deterioração. Ações específicas incluem lavagem, desempenamentos, estabilização de discos rachados e outras ações com o propósito de reabilitar gravações em risco de perda e prepará-las para a cópia em um suporte mais estável. (NARA, 1993, p. 42)
Contudo, no presente contexto, considera-se por restauração física o tipo de
intervenção que utiliza técnicas voltadas para minimizar ou reverter degradações e anomalias
que ocorrem exclusivamente sobre a matéria física do suporte e que possam reduzir ou
impedir a leitura eficiente do registro. Dentre tais técnicas, estão incluídas a correção da
superfície empenada de discos, o tratamento de fitas magnéticas em estágio avançado de
deterioração, o tratamento de rachaduras e até mesmo a “montagem” física de fragmentos
estilhaçados de discos ou cilindros (COPELAND, 2008; CASEY & GORDON, 2007; HESS,
2006).
2.8.5 Etapa de leitura e digitalização
Uma vez que o registro sonoro tenha sido devidamente selecionado e limpo, e todas as
informações e condições técnicas necessárias tenham sido asseguradas, o fonograma estará
finalmente apto a ser submetido ao processo de leitura e digitalização. Além das etapas de
calibração associadas com cada tipo de equipamento de leitura, existem ainda outras variáveis
que envolvem a seleção de determinadas peças e recursos que podem alterar o resultado
sonoro final (BAUER, 1977).
Como exemplo prático, considerando a leitura de um mesmo exemplar de disco, uma
combinação de um determinado modelo de agulha com um determinado modelo de braço de
um toca-discos poderá entregar diferentes resultados do que aqueles obtidos por outros
modelos e combinações. Neste momento, surgem diversos pontos de indecisão. Como saber,
por exemplo, qual o melhor tipo de agulha para cada disco? Copeland (2008) defende que a
experiência prática do operador é crucial para a seleção do tipo de agulha mais adequado para
a reprodução de um disco. O relatório da NRPB (2006), mais ponderado, divide suas
recomendações entre a experiência prática e a análise científica, sugerindo que uma medição
microscópica dos sulcos pode auxiliar na seleção da agulha que mais se adapta ao tamanho do
57
sulco de leitura. Por fim, Owen (1981) utiliza e recomenda a análise microscópica de forma
sistemática dentro de sua metodologia de transcrição.
De uma forma geral, registros em formato de disco podem ser reproduzidos por
diversos modelos de toca-discos diferentes, com a utilização de diversos tipos de agulhas,
outros tantos modelos de braços, ajustes de forças de leitura e VTA16, entre outros parâmetros.
Cada combinação destes elementos pode ainda ser otimizada pela calibração adequada, pela
restauração física, pela escolha da curva de equalização correspondente e pela utilização de
métodos não-convencionais de leitura — como a redução intencional da velocidade de
reprodução para compensação de ondulações na superfície do disco, entre outros
(COPELAND, 2008; WELCH, 1972; KOGEN, 1977; BAUER, 1977).
Registros em formato de fita magnética dependem, dentre outros fatores, da limpeza
adequada do equipamento e do suporte magnético, da escolha correta do equipamento
conforme o formato da fita, de ajustes de bias 17 e azimuth 18, da correta desmagnetização das
cabeças de leitura, além de outros alinhamentos diversos. Tal como ocorre com o formato de
disco, a leitura de fitas magnéticas também pode ser beneficiada por técnicas de leitura pouco
convencionais, como o pré-aquecimento de fitas em forno imediatamente antes de sua leitura
e a utilização de velocidades não-padronizadas, entre diversas outras (HESS, 2006;
BUBBERS, 1998; CASEY & GORDON, 2007; COPELAND, 2008; IASA, 2009).
Fonogramas em formato de cilindro, dada a sua raridade, normalmente necessitam de
equipamentos de leitura construídos sob medida para que seja possível a digitalização de seu
conteúdo. Dependendo do equipamento e do cilindro, diferentes modelos de agulha e
velocidade de leitura podem ser experimentados. Maiores detalhes podem ser obtidos nos
artigos de Fesler (1983), Owen (1981) e Nichols (2001).
2.8.6 Métodos alternativos para a leitura de suportes mecânicos
Especialmente para o caso dos suportes mecânicos em formato de disco e cilindro,
temos acompanhado ao longo das últimas décadas o surgimento de novos métodos de
16 VTA (Vertical Tracking Angle ou Ângulo de Tração Vertical) é uma opção de ajuste encontrada em alguns modelos de toca-discos que permite modificar o ângulo de inclinação existente entre a haste da agulha de leitura em sua visão lateral e a superfície do disco (BAUER, 1977, KOGEN, 1977). 17 Bias é o nome dado a um tipo de sinal de alta frequência que, quando aplicado ao sistema de gravação magnético, auxilia na obtenção de uma faixa de resposta mais linear, melhorando a qualidade da gravação. O controle para ajuste de Bias está presente apenas em equipamentos de leitura de fita de uso profissional. 18 Azimuth é o termo que identifica o ângulo existente entre a cabeça de leitura e a superfície da fita magnética. Em discos, o termo se refere ao ângulo entre o eixo vertical da agulha em sua visão frontal e o eixo horizontal da superfície do disco, que idealmente deve ser 90º (CASEY & GORDON, 2007)
58
extração do sinal sonoro capazes de alterar profundamente o conjunto de variáveis de leitura,
eliminando algumas limitações inerentes ao método convencional baseado na utilização de
agulhas em contato físico com a superfície do suporte.
Dentre as possibilidades mais promissoras, Schüller (2001) considera as alternativas
de reprodução óptica, sobre a qual cita algumas vantagens:
Um bom exemplo é a reprodução óptica de suportes mecânicos. Várias tentativas têm sido feitas a esse respeito e soluções para alguns tipos de suportes são oferecidas no mercado. O problema da reprodução de formatos históricos como cilindros e discos instantâneos [acetatos] ainda não está resolvido, embora estes suportes de alta fragilidade fossem se beneficiar por esse método não-invasivo de reprodução. (SCHÜLLER, 2001, p. 619)
O conceito de reprodução de registros sonoros por meios ópticos não é
necessariamente recente, pois já foram identificadas várias patentes anteriores a 1980 que
fazem menção a algum tipo de leitura sem contato físico (BROCK-NANNESTAD, 2001a).
Foi somente a partir da década de 1980, no entanto, que esse princípio se desenvolveu e veio
ganhando contornos cada vez mais viáveis, imensamente beneficiados pelos avanços das
técnicas de processamento digital.
O princípio da reprodução de suportes mecânicos por intermédio de leitura óptica
possui algumas vantagens imediatas sobre os métodos convencionais de leitura por agulha,
além de permitir diferentes possibilidades para a extração de informações do suporte original.
A seguir, são listadas algumas dessas vantagens:
a) por não depender mais do contato de uma agulha com a superfície do registro, elimina
o desgaste físico provocado pela fricção durante a leitura (LABORELLI et al, 2007);
b) a leitura óptica já fornece uma representação digital, o que elimina a necessidade de
um conversor A/D convencional, além de ser capaz de melhorar a razão sinal-ruído e
diminuir a distorção harmônica antes provocada pela agulha (BOLTRYK et al, 2008);
a) é capaz de gerar menor distorção linear, especialmente no caso de fonogramas em
formato de disco (LABORELI et al, 2007);
b) pode permitir a extração de informações a partir de sulcos muito desgastados, pela
detecção das melhores trajetórias de leitura ao longo do sulco, aproveitando as
superfícies menos afetadas pela degradação (FADEYEV & HABER, 2003);
c) permite a extração de informações a partir de superfícies com rachaduras, ondulações,
arranhões, e outras condições onde a leitura pelo método tradicional resultaria na
perda da trajetória da agulha (LABORELI et al, 2007; BOLTRYK et al, 2008);
59
d) permite a extração de dados a partir de suportes fragmentados, que posteriormente
podem ser reconstruídos através do processamento digital das imagens adquiridas
(HENSMAN & CASEY, 2007);
e) pode ser mais facilmente adaptado para a leitura de diferentes formatos de suportes do
que sistemas baseados em agulha (FADEYEV& HABER, 2003).
Atualmente estão sendo desenvolvidos diversos métodos de leitura óptica que
apresentam ligeira variação de desempenho e aplicação entre si. Dentre os pesquisados,
podem ser citados desde métodos que fazem uso de mapeamento tridimensional da camada
superficial do suporte mecânico através da análise do relevo dos sulcos por sensores de
imagem (BOLTRYK et al, 2008; FADEYEV & HABER, 2003) até métodos baseados na
análise de padrões de reflexão de cores na superfície do fonograma (LABORELLI et al,
2007). Outros métodos incluem a análise de mosaicos montados a partir de imagens
bidimensionais para discos com modulação lateral (HENSMAN & CASEY, 2007) e métodos
mistos, que utilizam simultaneamente o princípio de reflexão de feixe de laser e a leitura
tradicional por agulha (TOHRU & YASUYUKI, 2006).
De um modo geral, a grande desvantagem dos métodos citados continua sendo a
necessidade de minuciosa limpeza física dos suportes mecânicos antes de sua leitura. Boa
parte dos sistemas de leitura óptica ainda não é capaz de efetuar uma distinção automática das
partículas de sujeira presentes na superfície do suporte. Portanto, tal como ocorria no processo
de leitura por agulha, a limpeza continua sendo essencial para a remoção de partículas que
possam interferir na interpretação dos dados extraídos por meios ópticos, embora a severidade
dos ruídos decorrentes de contaminação por sujeira possa ser menor do que o normalmente
verificado durante a leitura convencional por agulha (BOLTRIK et al, 2008).
As consequências da leitura óptica para a digitalização de fonogramas seriam enormes.
Contanto que as fontes originais ainda estejam preservadas, sua digitalização poderia
eventualmente ser refeita através destes novos e não-invasivos métodos de leitura
(SCHÜLLER, 2001). Embora já existam algumas alternativas comerciais 19, as limitações do
sistema ainda são muitas. As vantagens teóricas são bastante promissoras, mas o estado atual
de tais tecnologias ainda não alcançou um nível de viabilidade prático para a realidade de
muitos acervos. Assim, é possível que a degradação física dos suportes originais venha a
impedir uma melhoria de qualidade na digitalização por meios ópticos, considerando o tempo
19 Um exemplo é A ELP Laser Turntable, que é comercializada pela empresa japonesa ELP (http://www.elpj.com) desde o final da década de 1990, e utiliza um método de leitura baseado na reflexão de feixes de laser que acompanham o relevo dos sulcos no disco. Assim como as outras técnicas apresentadas, esse sistema ainda depende da limpeza física adequada do disco para um desempenho satisfatório.
60
que tais métodos de leitura ainda levarão até se encontrarem plenamente aperfeiçoados e
disponibilizados para acervos sonoros com poucos recursos. Logo, a curto prazo, a utilização
de métodos tradicionais de leitura por agulha permanece a opção mais plausível e imediata.
2.8.7 Considerações finais sobre a leitura de fonogramas
Devido ao grande número de variáveis, é exatamente durante a etapa de leitura que
existem as maiores divergências para a reprodução do fonograma original. Cada configuração
diferente de equipamentos, ajustes e técnicas utilizadas para a reprodução do fonograma
original pode vir a revelar ou a ocultar determinadas características acústicas da gravação.
Tais características podem ser julgadas como desejáveis para um contexto específico de
restauração, ao passo que seriam inapropriadas para um contexto mais neutro de preservação,
conforme demonstrado pelo exemplo da reconstituição histórica.
O esquema da Figura 1 representa apenas uma dentre as diversas interpretações
possíveis para descrição de uma estrutura geral de preservação baseada na digitalização de
fonogramas por métodos de leitura convencional. Dentro da possibilidade apresentada, a
restauração é colocada em função de um objetivo de preservação, e está relacionada tanto com
uma medida de tratamento físico sobre a matéria estrutural do suporte mecânico que visa a
otimizar a extração de informações durante a etapa de leitura quanto com uma possibilidade
de tratamento para o sinal já digitalizado.
No entanto, podem existir casos onde a restauração assume propósitos diversos, como
o de um contexto comercial ou de uma iniciativa de reconstituição histórica, que podem exigir
etapas de digitalização específicas para seus propósitos. Para tais cenários, as variáveis de
leitura podem ser utilizadas como uma ferramenta a mais para a obtenção dos resultados
almejados, que por vezes podem ser contrários às práticas desejáveis de preservação.
Por causa dos diferentes propósitos de preservação e restauração, não há como existir
uma única abordagem que possa, ao mesmo tempo, satisfazer plenamente todos os contextos
possíveis de digitalização. Diante deste fato, ao longo das últimas décadas, profissionais e
estudiosos da área de preservação de registros sonoros têm elaborado diferentes metodologias
de regravação e digitalização, dividindo-as segundo o propósito exigido pelo contexto de
preservação e/ou restauração. A comparação entre algumas dessas propostas será o principal
objetivo do próximo capítulo.
61
Figura 1: Esquematização de uma possível estrutura geral de preservação, englobando as etapas de tratamento, leitura (convencional), digitalização, restauração digital e armazenamento digital para fonogramas em formato de disco. As setas indicam o fluxo da informação desde a fonte (suporte mecânico) até o seu armazenamento digital. Do lado direito, próximo de cada elemento, é apresentada uma listagem simbólica de alguns dos fatores direta ou indiretamente capazes de influenciar a qualidade do sinal para cada etapa.
62
3 ABORDAGENS DE RESTAURAÇÃO E PRESERVAÇÃO DE FONOGRAMAS
O diálogo ponderado entre a objetividade normalmente requerida pela preservação e a
subjetividade frequentemente associada com a restauração representa talvez a maior barreira
para os profissionais da área. Os pesquisadores que atuam dentro das especialidades da
engenharia de processamento de sinais procuram, em geral, destituir o ruído de sua
subjetividade e lançá-lo para a objetividade. De acordo com algum parâmetro previamente
estabelecido, tenta-se quantificar e reverter o ruído através de ferramentas que são aplicadas
diretamente sobre o sinal sonoro digitalizado (GODSILL & RAYNER, 1998a; CANAZZA,
2007; BISCAINHO, 2000).
Por outro lado, temos a produção teórica de alguns engenheiros que, semelhantemente
aos autores analisados no primeiro capítulo, buscam definir as diretrizes capazes de orientar
um trabalho de preservação e de restauração em acervos sonoros. É pela discussão teórica
acerca dos diferentes propósitos e métodos que podem existir dentro de uma iniciativa de
preservação e restauração que, a partir de cada cenário, torna-se possível trabalhar com um
número definido de possibilidades.
A seguir, serão comparadas algumas dessas diferentes propostas de profissionais e
estudiosos oriundos das áreas técnica, onde cada autor apresenta sua própria visão ao
diferenciar as ações relacionadas com a preservação das ações relacionadas com a
restauração. É interessante antecipar que algumas propostas, devido à época na qual foram
escritas, se inserem dentro da prática de regravação para meios analógicos, embora não haja
impedimento para que sejam reinterpretadas segundo o contexto mais atual da digitalização.
3.1 A PROPOSTA DE PADRONIZAÇÃO DE WILLIAM STORM
William D. Storm, em seu artigo “A proposal for the establishment of international re-
recording standards” (1983), chama a atenção para a então falta de padronização na
regravação de fonogramas, assim como para a falta de estudos e de comunicações sobre
experimentos de regravação. Essas deficiências estariam impedindo a implantação de um
grande esquema de práticas padronizadas e recomendáveis entre os acervos, transformando
todo o processo de preservação em um grande “exercício de preferência pessoal”, uma vez
que a falta de padrões abre a possibilidade para várias interpretações subjetivas que seriam
divergentes à busca pelo som original. Assim, Storm introduz uma série de sugestões acerca
63
da adoção de padrões, tanto para os métodos quanto para os equipamentos que realizam a
regravação, advertindo que suas proposições “não são de forma alguma completas, mas que a
esperança é que elas irão estimular críticas construtivas e discussões posteriores.” (1983,
p.30).
Storm propõe três condições que antecedem a elaboração de padrões na regravação de
fonogramas históricos. A primeira condição define a preservação do som da gravação como o
objetivo principal. A segunda reforça a importância do procedimento de regravação, uma vez
que é através dele que se consolida o processo de preservação. Por último, Storm alerta que a
implementação e a investigação de técnicas para a padronização de regravações exige pessoas
com especialização técnica, uma vez que a falta de conhecimentos específicos relacionados
aos equipamentos e técnicas de gravação do passado podem induzir ao erro, pois são muitas
as variáveis que exigem a atenção do operador durante a regravação.
Respeitadas essas condições, Storm propõe dois grupos de ação distintos para
regravações, aos quais ele denomina Tipo I e Tipo II. As regravações Tipo I intencionam a
preservação do som histórico, definido por Storm como “a perpetuação do som de uma
gravação original tal como ela era inicialmente reproduzida e ouvida pelas pessoas da época”
(1983, p.29). Trata-se da reconstituição de um cenário acústico histórico cuja padronização de
procedimentos, segundo Storm, seria capaz de aproximar os resultados de regravações Tipo I
realizadas em localidades distintas.
As regravações do Tipo II, por sua vez, intencionam a preservação do som do artista,
definido por Storm como a “recriação do som ao vivo de um artista” (1983, p.29). Para esse
tipo de regravação, Storm recomenda que “[...] é desejável extrair um sinal melhor do que
aquele que o equipamento de reprodução original era capaz de produzir, e minimizar os ruídos
que eram inerentes ao sistema [...]” (1983, p. 34). Essas regravações teriam um teor mais
experimental, mas idealmente deveriam também apresentar resultados aproximados, caso
fosse estabelecido um padrão.
Em seguida, para cada um dos dois Tipos, Storm recomenda uma série de etapas
contendo sugestões para a padronização de ações quem permitissem conduzir aos resultados
almejados. Adicionalmente, Storm propõe a padronização de ambientes de escuta
disponibilizados em acervos, tanto para equipamentos quanto para características acústicas,
para que os resultados uma vez atingidos com a padronização das etapas de regravação
permanecessem inalterados até o ouvinte final.
Storm é pouco claro ao definir alguns conceitos que formam a base do entendimento
de suas proposições. A idéia de busca por um suposto som original, por exemplo, é um ponto
64
delicado e evitado por autores posteriores, já que é uma situação hipotética e perigosa, tal qual
demonstrava ser o suposto estado original discutido desde muito cedo nas teorias de
restauração voltadas para as artes visuais, principalmente no caso de Viollet-le-duc (KÜHL,
2005). Vemos que também existe uma mistura de práticas de preservação e restauração nos
procedimentos de regravação sugeridos, com intervenções objetivas ao lado de intervenções
subjetivas, uma vez que nenhum dos dois Tipos de regravação sugeridos por Storm é
completamente neutro.
A maior importância desse artigo, no entanto, não reside em sua precisão ou
abrangência, mas em seu relativo pioneirismo. Conforme informado pelo próprio autor na
nota introdutória ao texto de 1983, esse conteúdo já havia sido previamente apresentado em
conferências de 1979 e 1980, e já durante esse intervalo de tempo Storm alega que “alguns
dos pontos levantados provaram ser controversos” (1983, p.26). Mesmo com algumas
incongruências, o artigo de Storm foi mencionado repetidas vezes em trabalhos posteriores de
outros autores, que fizeram uso de suas proposições como ponto de partida para outras
propostas mais atuais e completas.
3.1.1 Comentário de Brock-Nannestad
Uma das respostas mais diretas oriundas da comunidade acadêmica sobre o artigo de
William Storm partiu de George Brock-Nannestad, que em 1989 produz o artigo “A comment
and further recommendations on 'International Re-recording Standards'” (1989). Brock-
Nannestad foca seu comentário principalmente em dois aspectos mencionados por Storm: a
abordagem proposta para reconstrução histórica, e a proposta de padronização de
procedimentos e equipamentos em contextos arquivísticos.
Em oposição à prioridade estabelecida por Storm em torno do processo de regravação,
Brock-Nannestad estabelece que os objetivos na utilização de fonogramas não são outros
senão a preservação, a distribuição e a restauração, em ordem de maior para menor urgência,
e os define da seguinte forma:
A preservação é acionada quando o artefato, o original, é valioso ou frágil demais para ser usado diretamente em tentativas repetidas de utilização. A distribuição é usada quando vários arquivos se auxiliam na utilização da gravação. Restauração é a atividade direcionada a restabelecer tanto o som original no estúdio de gravação da época quanto o som original disponível para o ouvinte ocasional (história sonora). (BROCK-NANNESTAD, 1989, p.156)
65
Após a delimitação conceitual, Brock-Nannestad enquadra o texto de Storm como
restrito unicamente ao campo de restauração — termo esse que nem sequer é mencionado por
Storm. Com isso, Brock-Nannestad ajuda a estabelecer a diferença entre preservação e
restauração em registros sonoros, que será reforçada por outros especialistas adiante. Além
disso, Brock-Nannestad critica o objetivo de Storm pela busca de condições idealizadas de
audição (o som original), alegando que o importante a se resgatar é “[...] o sinal, e não o som
[...]”, justificando que “[...] devemos nos comprometer primariamente com o artefato, o objeto
per se [...]” (1989, p.157) e não com o artista ou com a reconstrução histórica, como havia
sugerido Storm. Em outras palavras, Brock-Nannestad defende que a preservação do objeto é
mais imediata e importante do que a restauração em busca de uma sonoridade específica.
Com relação à idéia apresentada por Storm sobre reconstrução histórica, podemos
facilmente constatar o ponto criticado por Brock-Nannestad: é muito difícil restringir um
cenário hipotético geral de audição histórica a um único modelo de equipamento ou ambiente
acústico de reprodução. Brock-Nannestad defende que a reconstituição histórica admite
diversas abordagens igualmente válidas, que dependem do contexto social e acústico que se
deseja reconstruir. Esse aspecto de reconstrução histórica será posteriormente enriquecido
pela análise de outros autores.
A principal alegação de Brock-Nannestad contra a proposição de padronização de
Storm é que a padronização de métodos de regravação e de equipamentos seria na prática um
processo dispendioso e pouco eficiente. Em seu lugar, Brock-Nannestad sugere a adoção de
sinais padronizados de calibração inseridos juntamente com a regravação dos fonogramas
originais, sob o argumento de que seria possível reverter as alterações geradas por diferentes
equipamentos de leitura sobre um sinal sonoro através da análise dos efeitos sofridos por um
sinal de referência conhecido. Com a ajuda deste sinal de referência, a calibração técnica
permite que seja atingido um mesmo padrão de qualidade sonora através da compensação das
diferenças de leitura detectadas, sem a necessidade de que haja padronização extrema dos
equipamentos e ambientes acústicos que representam os meios de reprodução do fonograma.
Ou seja, a calibração individual baseada em um sinal de referência conhecido seria a chave do
processo de padronização, e poderia ser implantada com custos muito inferiores àqueles
envolvidos na substituição de equipamentos de leitura e ao tratamento acústico de ambientes
de escuta.
Alguns anos depois, Brock-Nannestad apresentaria sua própria proposta para a
implementação de uma metodologia de preservação e restauração em arquivos, definida como
“Teoria de Conservação Operacional”, que será analisada em seguida.
66
3.2 A TEORIA DE CONSERVAÇÃO OPERACIONAL DE BROCK-NANNESTAD
Embora seja um pesquisador atuante em acervos sonoros, a intenção de Brock-
Nannestad é fundamentar sua abordagem utilizando conceitos gerais de preservação de bens
culturais para apenas depois enquadrar aspectos mais específicos acerca de acervos sonoros.
A Teoria de Conservação Operacional (Operational Conservation Theory) é aplicável
principalmente para a preservação de fonogramas, incluindo a etapa de regravação de seu
conteúdo mediante a digitalização, e sua posterior disponibilização pelo acervo. No contexto
dessa teoria, a preservação é o foco principal da discussão, enquanto que a restauração em si
serve apenas como um instrumento complementar e circunstancial, dependente dos interesses
do ouvinte final.
A teoria de Brock-Nannestad é baseada no conceito de informação, cujo termo
informação é definido pelo autor como “[...] tudo aquilo que um indivíduo pode extrair do
objeto, usando quaisquer meios disponíveis para ele [...]” (2000, p.11). Partindo do princípio
de que todos os objetos que nos cercam são portadores de informação em potencial, o autor
caracteriza a diferença entre informação e função da seguinte maneira:
Obviamente esses objetos não foram todos feitos apenas para prover informação, mas muitos — talvez a maioria — foram feitos para ter uma função ou propósito útil. Quando sua função se desgasta eles podem ser reparados, reassumindo assim sua função, mas isto modifica a informação. Ou eles podem ser mantidos em sua condição de desgaste — o que retém alguma informação, e sua função agora é diferente, tal como a de um artefato de museu ou item de colecionador. Uma das funções importantes é aquela de símbolo — o objeto simboliza algo que a algum tempo é importante para o homem. (BROCK-NANNESTAD, 2000, p.11)
É interessante notar uma possível proximidade desses conceitos apresentados por
Brock-Nannestad com a teoria de Brandi (2004). Brandi define uma separação entre objetos
de uso comum e objetos reconhecidos como “obras de arte” a partir de sua funcionalidade. A
restauração de um objeto de uso comum teria como objetivo apenas restabelecer sua
funcionalidade enquanto objeto, enquanto que a restauração de um objeto reconhecido como
“obra de arte” exigiria, além do restabelecimento de sua funcionalidade, outros critérios e
procedimentos diferenciados. Em Brandi, a chave do processo é a ação de reconhecimento de
um objeto como “obra de arte”, que pode com alguma liberdade ser equiparada à
possibilidade de alteração de funcionalidade levantada por Brock-Nannestad para um objeto
que deixa de possuir sua função original para se tornar um “artefato de museu”. A ação de
reconhecimento em Brandi pode ser comparada com o critério de seleção proposto por Brock-
67
Nannestad, uma vez que ambas envolvem o julgamento que por fim irá determinar a
condução do trabalho de preservação/restauração. Claro que, no presente contexto, devemos
ampliar o significado de “obra de arte” de Brandi para englobar qualquer objeto que venha a
ser julgado como alvo de preservação/restauração — no caso, o registro sonoro.
Após definir o conceito de informação, Brock-Nannestad chama a atenção para o
processo de seleção das informações que irão constituir o alvo da preservação: “Apenas
aquelas variáveis que foram conscientemente selecionadas de acordo com o propósito
intencionado é que poderão ser consistentemente disponibilizadas para usuários futuros.”
(2000, p.2). Mais adiante, Brock-Nannestad completa que: “Não optar por uma escolha
significa desselecionar o todo, e isto pode muito facilmente levar à perda total da relevância
do objeto.“ (2000, p.15). Em outras palavras, a omissão em reconhecer a necessidade de
seleção de um número limitado de informações para a preservação pode comprometer a
preservação de todas as informações, principalmente quando se verifica que os recursos
existentes são incapazes de garantir a preservação plena de todo o conjunto de objetos.
Ao considerar a seleção consciente como o filtro por meio do qual as informações
primárias e secundárias contidas em um fonograma irão atingir o usuário final, Brock-
Nannestad centraliza seu critério de seleção em torno da expectativa de demanda prevista para
o acesso das informações que serão preservadas. Para conseguir estimar tal demanda, Brock-
Nannestad sugere que sejam traçados perfis baseados nos interesses de supostos usuários
futuros para os fonogramas de acordo com o contexto de preservação. Dentre outros
possíveis, Brock-Nannestad define inicialmente três perfis principais de escuta para classificar
os tipos de demanda para acesso aos arquivos: escuta de nostalgia, escuta de reconstituição
histórica, e escuta para análise científica. As principais características de cada perfil estão a
seguir:
a) Nostalgia: pode ser definida como uma escuta sem pretensões acadêmicas, que
pretende satisfazer apenas o gosto pessoal do ouvinte;
b) Reconstituição histórica: para o ouvinte interessado na audição do fonograma tal como
ele era reproduzido em uma determinada época, de forma semelhante ao previsto na
abordagem de Storm (1983), também mencionado em Brock-Nannestad (1989);
c) Análise científica: caracterizada pelo ouvinte que possui interesses específicos na
audição de um fonograma, que neste caso pode ditar a necessidade de uma restauração
com o objetivo de destacar certas características sonoras em detrimento de outras.
Como exemplos, podem ser citados o pesquisador interessado na análise da pronúncia
68
de um cantor ou o ouvinte interessado em analisar o ruído de fundo do ambiente de
uma gravação.
Esses perfis de escuta têm o objetivo de prover auxílio durante a implementação do
trabalho de preservação, atuando como guias para a seleção dos fonogramas que serão de fato
preservados. Brock-Nannestad defende que: “Se não é esperado que exista demanda futura
para um tipo particular de material então este não será considerado como merecedor de
preservação.” (2000, p.3). A restauração, dentro dessa proposta, serviria apenas como um
complemento para os objetos já preservados, com o papel de auxiliar o ouvinte final a obter
um dos três perfis de escuta citados acima.
Para Brock-Nannestad, a preservação somente se justifica pelo acesso. O propósito é
tornar o material disponível para seu usuário final, selecionando exemplares que serão
conservados, disponibilizados e restaurados em detrimento de outros. Essa seleção é
considerada tolerável, mesmo que não seja inteiramente objetiva ou impessoal, pois irá
permitir que os esforços técnicos se concentrem em um número reduzido de objetos, ao invés
de aplicar os recursos disponíveis para uma preservação menos eficiente de um grande
número de objetos. Sobre essa otimização de recursos, Brock-Nannestad se justifica:
Minha conclusão é que a transferência de todo ou do máximo possível de conteúdo não é viável, e chega a ser fútil se não existe demanda atual por um acesso total consciente a esse conteúdo. É muito melhor e mais barato garantir que o acesso seja facilitado, mesmo a cópias mutiladas e esperar por pedidos vindos do usuário final pelo conteúdo que era disponibilizado ao usuário original. Certamente, haverá uma perda de informação, mas por que a área de áudio deveria ser diferente das outras áreas onde armazenamos representações culturais? (BROCK-NANNESTAD, 2000, p.4)
Em resumo, a Teoria de Conservação Operacional de Brock-Nannestad possui um
caráter essencialmente prático de implementação, uma vez que visa a otimizar os recursos
disponíveis para a preservação de fonogramas através da seleção consciente dos exemplares,
que serão primeiramente preservados e posteriormente contemplados pela restauração. Essa
abordagem tem como principal objetivo atender a uma futura demanda de um suposto
público-alvo, para o qual os registros sonoros serão preservados e preparados segundo perfis
pré-definidos. Ao obedecer critérios estabelecidos a partir de uma previsão de demanda, a
seleção consciente de Brock-Nannestad admite a exclusão de objetos e a consequente perda
de informação, em prol do melhor aproveitamento dos recursos técnicos, humanos e
financeiros para a preservação de fonogramas.
69
3.3 DIETRICH SCHÜLLER E A ÉTICA DE PRESERVAÇÃO E RESTAURAÇÃO
Ainda a partir das proposições de Storm, Dietrich Schüller escreve o artigo “The
Ethics of Preservation, Restoration, and Re-Issues of Historical Sound Recordings” (1991),
que trata principalmente das possíveis direções dentro do processo de regravação, abrangendo
possibilidades acadêmicas e comerciais. Embora ciente do artigo de Storm, mencionado
diversas vezes em seu texto, Schüller prefere desde o início criar sua própria abordagem para
a regravação de preservação, para apenas depois apontar alguns pontos em comum com as
sugestões de Storm sobre reconstituição histórica.
Tal como Brock-Nannestad, e diferentemente de Storm, Schüller baseia sua análise
sobre a representatividade do fonograma enquanto suporte de um sinal — e não sobre o som
enquanto fenômeno intangível — utilizando-o como ponto de partida para chegar a uma
definição sobre quais podem ser os vários objetivos da regravação. A partir disto, caracteriza
duas abordagens gerais: a primeira de caráter acadêmico, objetivando a fidelidade histórica, e
a segunda de caráter comercial, que admite a reinterpretação subjetiva. Dentro da abordagem
geral que busca a fidelidade histórica, Schüller estabelece três níveis distintos:
a) Nível A: A gravação tal como era ouvida em sua época de origem, objetivando a
reconstituição histórica, equivalente ao Tipo I de William Storm. Envolveria a seleção
criteriosa de equipamentos de reprodução de época, contextualizados de acordo com a
posição social do ouvinte, como sugerido por Brock-Nannestad (1989);
b) Nível B: Busca a melhor representação do sinal tal como encontrado no registro
fonográfico, reproduzido por equipamentos modernos, com toda a calibração
necessária para que seja feita a melhor reprodução possível. Limita-se a corrigir
apenas os erros de leitura do registro sonoro, e pode ser enquadrado como o propósito
mais adequado para fins de preservação;
c) Nível C: Uma extensão do Nível B, que busca, além da melhor reprodução possível, a
correção de alterações do sinal provocadas pela própria tecnologia de gravação da
época. Dessa forma, ultrapassa o limite tecnológico imposto pelo fonograma e admite
a restauração de degradações relacionadas com o processo de gravação, tal qual
sugerido pela definição “restauração ideal” feita por Godsill & Rayner (1998b, p.134).
Pela diferença de propósitos, vemos que a escolha do equipamento de leitura para a
regravação do Nível A pode admitir o uso de equipamentos originais antigos. Para os Níveis
B e C, Schüller defende a reprodução de fonogramas através de equipamentos modernos,
enquanto que para o Nível A essa condição é opcional. Isto torna necessário que o propósito
70
de regravação seja definido entre os Níveis A, B e C antes da etapa de leitura, para que a
escolha do equipamento de leitura seja a mais apropriada.
Diante da classificação de Schüller, notamos que há uma mistura entre procedimentos
de preservação e procedimentos de restauração, uma vez que o autor não faz uma distinção
clara desses dois conceitos. É possível prever que a restauração seria utilizada apenas como
um procedimento complementar para correção de ruídos, especialmente para o caso do Nível
C e, em menor grau, para o Nível B. Posteriormente, Schüller passaria a diferenciar melhor a
atividade de preservação da atividade de restauração, como demonstra em seu artigo
Preserving the Facts for the Future: Principles and practices for the transfer of analog audio
documents into the digital domain (2001), onde coloca a restauração como uma etapa de
menor prioridade e posterior à digitalização de preservação.
De forma geral, Schüller sugere pontos em comum com os outros autores. Em seu
artigo, são defendidas a diferenciação entre diversos contextos possíveis para a “reprodução
histórica”, o respeito pelo sinal sonoro original contra alterações não-fundamentadas, o
reconhecimento de uma vertente de aplicação comercial e a necessidade de que todas as ações
tomadas sejam minuciosamente documentadas de modo a tornar possível que sejam refeitas
(princípio de reversibilidade), considerando a hipótese de que conhecimentos técnicos futuros
possam vir a melhorar os resultados obtidos através de processos atuais.
Schüller não faz comentários sobre a padronização de métodos e equipamentos
proposta por Storm. Ao invés disso, instruções sobre a calibração de equipamentos são
enumeradas ao longo das recomendações para as etapas de regravação.
3.4 PETER COPELAND E A TEORIA DE CONSERVAÇÃO QUÁDRUPLA
Em 2008 foi disponibilizada a obra Manual for Analogue Restoration (COPELAND,
2008), que consiste da compilação póstuma de recomendações e comentários do autor Peter
Copeland ao longo de seus vários anos de carreira como Gerente de Preservação do acervo
sonoro da British Library. Pelo fato de Copeland utilizar um estilo de escrita que transmite
uma visão por vezes bastante pessoal, seu texto requer uma contextualização mais detalhada
do que a exigida pelos demais autores analisados.
Copeland revela que seu manual foi escrito, como ele próprio descreve, "[...] do ponto
de vista de um profissional de gravação de som em um arquivo nacional público". (2008, p.
10–11). Por causa desse histórico de Copeland como engenheiro profissional inserido em um
ambiente de trabalho arquivístico onde tal formação era inicialmente vista com certa reserva,
71
Copeland se mostra ciente das diferenças existentes entre uma abordagem de preservação
baseada em valores objetivos e uma abordagem baseada em valores subjetivos. O principal
propósito de Copeland em seu Manual é promover a adoção de práticas objetivas e o controle
de práticas subjetivas no contexto da preservação de fonogramas, associando seu
conhecimento e experiência às exigências de preservação.
Segundo Copeland, "A maior parte desse manual é feita para facilitar o processo de
reprodução de forma a recuperar a informação — o som — sem nenhuma distorção
intencional ou não-intencional." (2008, p. 13). Nesse contexto, o som deve ser compreendido
como fenômeno físico, e não como uma resposta cognitiva: "a natureza objetiva das pressões
sonoras é o que um arquivista sonoro pode (e deve) preservar no presente" (2008, p.3). De
modo semelhante, segundo Copeland, a informação também deve ser quantificada
objetivamente:
Apesar da idéia de 'informação' como sendo uma propriedade fundamental da matéria, para um engenheiro analógico 'informação' é uma medida objetiva da qualidade de uma gravação. É obtida multiplicando-se a faixa de frequência, pelo número de decibels entre a energia do mais alto sinal não-distorcido e a energia do ruído de fundo. (COPELAND, 2008, p.14)
Apesar de ser um ponto evitado por outros autores, e mesmo admitindo em seu texto
que existe abertura para discordâncias, Copeland insiste que sua prioridade é a preservação do
"som original". Neste fragmento, Copeland contrasta o propósito de preservação que busca a
recuperação do “som original” com o propósito que identifica como “exploração”: "Eu
considero que recuperar o 'som original' deve sempre ser o primeiro passo, não importando o
que aconteça a ele depois. [...] Mas eu espero que minhas considerações também sejam úteis
quando a exploração for a força motriz, em vez da preservação. (COPELAND, 2008, p. 7)
À luz dos demais autores, caso o conceito de "som original" de Copeland seja
interpretado como um propósito de preservação que busca a máxima objetividade, então é
possível equiparar o "propósito de exploração" ao que outros autores como Brock-Nannestad
(2000) e Schüller (2001) definiriam como restauração: uma etapa posterior, complementar e
de caráter subjetivo e exploratório. Em outras palavras, Copeland admite que a prioridade
deve ser a preservação do original em todas as suas características, não importando se depois
ele venha a ser utilizado como base para uma versão subjetiva.
Assim, ao basear os procedimentos práticos de preservação em critérios objetivos com
o intuito de auxiliar o processo de obtenção do "som original", Copeland formula uma
abordagem multifacetada de preservação ao qual chama de Teoria de Conservação Quádrupla
72
(Quadruple Conservation Theory). Essa teoria admite quatro abordagens principais dentro da
preservação que se concretizam sob a forma de três cópias, além da manutenção do próprio
fonograma original, cada uma contendo diferentes versões de regravação. Estas versões
podem ser resumidas a seguir:
a) Original - conservação da fonte original pelo máximo de tempo possível;
b) Cópia de arquivo (the archive copy) - geração de uma cópia o mais próxima
possível do original em seu estado atual, incluindo ruídos provocados por
degradações, sem intervenções de qualquer tipo;
c) Cópia objetiva (the objective copy) - geração de uma cópia que admite correções
feitas com base em critérios científicos, a partir de informações objetivas;
d) Cópia de serviço (the service copy) - geração de uma cópia com propósito de
“exploração”, permitindo que o som seja alterado de acordo com critérios
subjetivos, em caráter experimental.
Ao interpretar o uso das ferramentas de restauração segundo a Teoria de Conservação
de Copeland, é possível estabelecer que o Original e a Cópia de arquivo permaneceriam
isentos de qualquer intervenção de restauração. A Cópia objetiva, por sua vez, requer a
utilização de ferramentas de restauração para a correção de ruídos e degradações com
fundamentação científica, estritamente orientada por fontes confiáveis. Por fim, a Cópia de
serviço admite uma aplicação mais livre das ferramentas de restauração, sem o rigor exigido
pela Cópia objetiva. Segundo Copeland, não existe a obrigação de que sejam sempre obtidas
todas essas cópias, pois em certas ocasiões duas delas podem ter resultados iguais entre si, ou
mesmo alguma delas pode ser omitida. Copeland adverte apenas que não se deve almejar uma
cópia objetiva a menos que haja condições, profissionais e conhecimentos para tal.
Por ter sido escrito ao longo de um intervalo de pelo menos uma década, antes de ser
editado em 2008, alguns aspectos do texto de Copeland não acompanharam a evolução
tecnológica. Por exemplo, Copeland em seu manual reconhece a existência da digitalização
apenas como possibilidade futura, e não como prática estabelecida em um contexto de
preservação. Por esse motivo, sua teoria é baseada no conceito preservação através da
regravação analógica, de forma semelhante a Schüller (1991). Apesar de tais pontos de
desatualização, a relevância do manual de Copeland ainda é grande, uma vez que seu texto
também engloba muitas informações e recomendações práticas sobre procedimentos de leitura
de diversos tipos de formatos analógicos, incluindo as etapas de tratamento e interpretação de
dados, sempre com uma linguagem didática e explicitamente direcionada aos técnicos
responsáveis pela operação de preservação em arquivos.
73
3.5 ANGELO ORCALLI E A RI-MEDIAZIONE DO DOCUMENTO SONORO
Angelo Orcalli, juntamente com Sergio Canazza, são dois dos principais
representantes italianos no campo da preservação e restauração de fonogramas. Ao longo de
diversas publicações, em uma tentativa de condensar a ambivalência existente no trabalho de
preservação e restauração, Canazza e Orcalli cunharam o termo italiano Ri-mediazione para
definir o conjunto de possibilidades de tratamento a que um fonograma pode se submeter. O
termo Ri-mediazione pode ser traduzido como um conceito intermediário entre a “Re-
midiação”, enquanto transferência de conteúdo entre suportes diferentes, e a “Re-mediação”,
enquanto tratamento e correção de degradações encontradas. As propostas de Ri-mediazione
são apresentadas e comentadas por Angelo Orcalli (2006), que considera cinco tipos de
diferentes de abordagem para tratamento de registros sonoros:
a) Abordagem Conservativa, destinada à preservação, que busca a representação do
fonograma original em formato digital com a maior neutralidade possível, tal qual
o Nível B de tratamento da abordagem de Schüller (1991);
b) Abordagem Documental, que busca o resgate do som acústico através da
engenharia reversa do processo de gravação até o momento de captação, tal qual
sugerido pelo conceito de “restauração ideal” de Godsill & Rayner (1998b), e
equivalente ao Nível C de tratamento da abordagem de Schüller (1991);
c) Abordagem Sociológica, que busca a reconstituição histórica do fonograma
conforme supostamente apreciado em sua própria época, semelhante ao que foi
proposto por Storm (1983) e pelo Nível A de Schüller (1991);
d) Abordagem Reconstrutiva, que visa a recriar a sonoridade supostamente
intencionada pelos autores do fonograma a partir de evidências objetivas.;
e) Abordagem Estética, de propósito comercial, que consiste de uma intervenção
guiada por critérios variáveis, restaurando a informação do fonograma de acordo
com o padrão aceito pelo mercado atual, conforme previsto por Schüller (1991).
Como vemos, embora Orcalli não acrescente nenhuma nova abordagem de tratamento
para registros sonoros, seu mérito maior é a comparação, a discussão e o aprofundamento das
possibilidades anteriormente levantadas por outros autores, principalmente pelos trabalhos de
Storm e Schüller. A fundamentação teórica aplicada ao exercício da preservação e da
restauração de fonogramas encontrada no trabalho de Orcalli é a mais consistente dentre todos
os autores pesquisados, e um indicativo disso é o fato de que foi o único autor que menciona
diretamente a aplicação da Teoria de Cesare Brandi para o trabalho com fonogramas.
74
4 TRATAMENTO DE GRAVAÇÕES HISTÓRICAS: RELAÇÕES ENTRE
PRODUTOR E OUVINTE, FABRICANTE E CONSUMIDOR
Antes que se possa colocar em prática o trabalho de restauração, o pesquisador deve
estar consciente de sua própria posição enquanto ouvinte inserido em uma realidade sonora
diferente daquela em que o fonograma foi gerado, o que caracteriza uma distância temporal e
cultural entre o restaurador e o objeto a ser restaurado. Eis que é possível traçar um paralelo
para essa relação com base na teoria de Cesare Brandi (2004). Conforme discutido na Seção
1.4, a Teoria de Brandi propõe que a restauração seja orientada por duas instâncias: a estética
e a histórica. Somente após consultar essas duas instâncias é que o restaurador estará apto a
reconhecer e respeitar a distância cultural e temporal que o separa do objeto, e assim evitar
que a obra de arte seja descaracterizada durante o processo de restauração.
Para Brandi, o objeto artístico é autônomo. Seu tempo é imutável em si mesmo,
atemporal, e possui um eterno presente que é diferente do presente histórico do observador.
Durante o momento de contemplação do objeto, Brandi defende que é o observador quem
deve se abstrair de seus preceitos para possibilitar a sua imersão no tempo autônomo da obra,
e não o contrário. A distorção começa a ocorrer quando o observador, ao não reconhecer a
distância entre ele mesmo e o objeto, força a associação da obra atemporal com a época
histórica em que esta é contemplada. Assim sendo, o observador sujeita a obra à visão de um
tempo estranho, de acordo com interpretações, modismos, gostos e estética vigentes. Sobre
isso, Brandi comenta que:
Pedir-se-á à obra para descer do pedestal, suportar a gravitação do tempo em que vivemos, na própria conjugação existencial de que a contemplação da obra nos deveria extrair. E então, em se tratando de uma obra de arte antiga, será exigida dela uma atualidade que pode ser sinônimo de moda ou valer como tentativa de devolução da obra a finalidades que, quaisquer que sejam, serão sempre estranhas à forma, a que não competem finalidades dessa sorte […] Essas vicissitudes não são, por certo, indignas de história, mas são, sim, história e história da cultura, entendida como gosto atual, seleção interessada para certos fins e, portanto, em consonância com um dado pensamento. Essa história será com certeza legítima e indiscutivelmente útil, e poderá ser campo de considerações preciosas para a leitura da própria forma, mas jamais será história da arte. (BRANDI, 2004, p.56)
O que viria a ser a “história da cultura” sugerida por Brandi no contexto dos registros
fonográficos? Quais são as características de modismos e preferências peculiares ao registro
sonoro que se excluem da história da música enquanto arte? Ao longo deste capítulo, tais
questionamentos serão investigados através da análise histórica da interação da sociedade com
75
as tecnologias de gravação de som, com enfoque particular para as relações entre produtores e
ouvintes, fabricantes e consumidores.
4.1 A FIDELIDADE SONORA SEGUNDO A RELAÇÃO FABRICANTE-CONSUMIDOR
Na restauração de fonogramas históricos, a distância entre o restaurador e o ouvinte
pode ser compreendida a partir da história do registro fonográfico e de sua aceitação pela
sociedade, pela comparação das diferentes expectativas e critérios que cunharam a noção de
fidelidade sonora como um meio de avaliação de qualidade do som gravado ao longo dos
séculos XIX e XX. Essa expectativa por um nível de qualidade sofreu importantes alterações
a respeito do que seria o aceitável e o desejável em termos de reprodução sonora ao longo dos
anos, tanto por razões de capacidade técnica quanto por fatores culturais. Dessa forma, a
compreensão das nuances que compõem a noção de fidelidade sonora ao longo das épocas é
importante para a realização de um trabalho de restauração bem fundamentado, que permita
ao restaurador identificar até qual ponto e sob quais critérios é possível se buscar a qualidade
sonora de um registro fonográfico.
4.1.1 Definindo o conceito de fidelidade sonora
Ao tentar definir o termo fidelidade sonora, Jonathan Sterne se baseia na filosofia por
trás desse conceito: afirma que a fidelidade sonora é “[...] muito mais sobre a fé na função
social e na organização das máquinas do que sobre a relação de um som com sua ‘fonte’”
(STERNE, 2003, p.219), e complementa:
Fidelidade, afinal, é a qualidade de confiança a algum tipo de pacto ou acordo. A própria escolha do termo fidelidade (aplicado ao som pela primeira vez em 1878) indica ao mesmo tempo a fé na mídia e a crença de que a mídia pode se manter fiel, a crença de que a mídia e seus sons podem se manter fiéis ao acordo de que dois sons são o mesmo som. (STERNE, 2003, p. 221-222)
Sterne basicamente associa o conceito de fidelidade ao conceito de credibilidade, tanto
no sentido de crença quanto no sentido de confiança. O termo fidelidade assume assim um
significado de validação, como uma espécie de medida de qualidade que atesta o nível de
funcionalidade de um dispositivo, assim como sua eficiência ao reproduzir uma referência de
comparação, neste caso um fenômeno acústico.
76
A possível confusão entre os termos fidelidade e autenticidade demanda uma melhor
diferenciação entre os mesmos. Para tanto, será analisada novamente a definição de Walter
Benjamin, desta vez com um novo enfoque:
Mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra. […] Mesmo que essas novas circunstâncias deixem intato o conteúdo da obra de arte, elas desvalorizam, de qualquer modo, o seu aqui e agora.” (BENJAMIN, 1985, p. 167–168, grifo nosso)
Percebe-se que Benjamin, ao fazer a distinção entre a percepção exterior do objeto
físico e o seu conteúdo, supõe uma condição na qual o conteúdo permanece inalterado mesmo
após a reprodução técnica do objeto. Temos, portanto, que o conteúdo inalterado respeita a
condição de concordância que caracteriza a relação de fidelidade proposta por Sterne.
Segundo esse cenário, a fidelidade se relaciona ao conteúdo, enquanto que a autenticidade se
relaciona com o inteiro do objeto físico, em sua qualidade presencial e histórica. Como
exemplo, podemos supor que mesmo que seja obtida uma cópia digitalizada de um fonograma
que possua fidelidade com relação ao conteúdo original, ainda teríamos a autenticidade
material comprometida, porque a digitalização enquanto reprodução técnica é incapaz de
repetir a autenticidade histórica associada à matéria do objeto original. Em outras palavras,
assumimos que pode existir fidelidade ao longo da transmissão de conteúdo entre diferentes
suportes mesmo que a autenticidade, enquanto testemunho histórico, permaneça atrelada
apenas ao objeto físico original.
4.1.2 A Era Acústica e o conceito de fidelidade
Com relação ao início da história do registro sonoro, a noção de fidelidade estava
vinculada principalmente ao nível de compreensão da linguagem falada, validando as
máquinas como capazes de fornecer um registro confiável para essa função, que fosse capaz
de manter a clareza das palavras pronunciadas. Peter Copeland (1991, p. 7) comenta que “[...]
no início o principal objetivo era atingir e manter alguma inteligibilidade [...]”, pois o próprio
fonógrafo de Edison havia sido criado com a intenção de servir primordialmente como um
gravador de voz para escritórios, como um substituto do estenógrafo20 (COPELAND, 1991;
BRADY, 1999). Outro exemplo que indica a preocupação inicial com a inteligibilidade é
20 Estenografia ou taquigrafia são métodos de escrita simplificada que permitem a transcrição de diálogos em tempo real.
77
encontrado nos relatos de Graham Bell acerca dos primeiros testes de conversas telefônicas,
onde “a articulação era perfeita — e eles não possuíam nenhuma dificuldade em entender um
ao outro” (STERNE, 2003, p. 274).
Desde quando começaram as primeiras aplicações musicais para o fonógrafo de
Edison, a partir da década de 1890, o termo fidelidade não era mais relacionado apenas com a
inteligibilidade, mas a “[...] qualidade do tom era o novo critério [...]” (THOMPSON, 1995, p.
138.). Segundo Fernando Iazzetta (1997, p. 25), “[...] o padrão de escuta que esses aparelhos
almejavam se espelhava no modo de escuta vigente na época, ou seja, o da escuta baseada na
experiência auditiva das apresentações ao vivo.”. O referencial de qualidade para a avaliação
da fidelidade do aparelho era o som real: quanto mais a reprodução do cilindro ou do disco se
assemelhasse à experiência da performance real, maior era a fidelidade, e melhor era
considerado o equipamento.
Desde muito cedo já existiam relatos em que admiradores do fonógrafo de Edison
analisavam a eficiência desses equipamentos em registrar sons, afirmando ser “[...] impossível
dizer a diferença entre a gravação e o original.” (COPELAND, 1991, p. 71). Vários testes
auditivos com ouvintes em diferentes épocas — conhecidos como tone-tests — foram
realizados a fim de se atestar a eficiência do registro sonoro em sua capacidade de imitar o
som de uma fonte real, que não raras vezes rendiam elogios à fidelidade do aparelho.
(THOMPSON, 1995; COPELAND, 1991)
Embora não descarte completamente a validade desses padrões iniciais de resposta ao
fonógrafo, Erika Brady (1999) alerta que tais padrões não devem ser interpretados sem
reservas, uma vez que muitos deles foram baseados em relatos pouco objetivos, e
posteriormente reaproveitados dentro de contextos comerciais e jornalísticos. Brady comenta:
Embora essas narrativas de primeiro contato possam inicialmente ter sido mais ou menos fiéis aos contornos de um evento particular em termos de conteúdo, sua posterior reformulação de estrutura e estilo é em termos cada vez mais jocosa. O leitor, presumido como conhecedor, era encorajado a enxergar com cúmplice e condescendente divertimento aqueles desafortunados, almas benignas ignorantes do fantástico dispositivo de Edison. (BRADY, 1999, p.28)
À medida que o fonógrafo foi se tornando um objeto de uso comum na sociedade, os
relatos sobre sua aceitação foram recebendo contornos anedóticos e caricaturais, e se tornaram
um elemento recorrente nos anúncios comerciais protagonizados por indivíduos
marginalizados na sociedade. Segundo Brady, essa marginalização alcançou inclusive alguns
relatos etnográficos que, influenciados pelo etnocentrismo então vigente, destacavam a
"ingenuidade" de indivíduos de outras culturas diante de sua reação ao primeiro contato com
78
o fonógrafo de Edison. Outros relatos etnográficos mais neutros, no entanto, revelam que
indivíduos de algumas das tribos indígenas pesquisadas reagiam ao fonógrafo demonstrando
uma inesperada aceitação, com uma atitude de indiferença que era justificada pelos próprios
indivíduos por meio de explicações místicas. Para eles, Edison nada mais era do que um
privilegiado por ter sido a ele revelada tal máquina, esta de origem claramente sobrenatural.
Logo, registros que alegam ter ocorrido um aparente "deslumbramento" do público
diante do fonógrafo — incluindo relatos de uma suposta fidelidade — devem ser devidamente
contextualizados e possivelmente isolados a um momento apenas inicial de contato de um
determinado grupo com a nova tecnologia, um momento que não perdurou por muito tempo
nos países desenvolvidos, sendo logo suplantado pela distorção e caricaturização dos fatos
para objetivos comerciais.
4.1.2.1 O início da influência comercial
Não houve demora alguma para que fabricantes de equipamentos reprodutores
percebessem o potencial do termo fidelidade como uma poderosa ferramenta de propaganda.
A fidelidade baseada na equiparação do som gravado com a performance ao vivo foi, em
especial, exaustivamente explorada como uma forma de divulgação e de aprovação das
“aptidões musicais” do fonógrafo e do gramofone. Já nas primeiras décadas do século XX, a
ênfase pela fidelidade de cada novo aparelho lançado tomava como base a proximidade de sua
reprodução com o som ao vivo para legitimar o suposto bom desempenho.
Diante de vários anúncios comerciais de aparelhos de reprodução, Sterne identifica os
elementos da linguagem-padrão utilizada no discurso da fidelidade sonora como sendo a “[...]
narrativa de progresso técnico; a crença na transparência do som reproduzido; o desejo pelo
tom puro; e a equivalência entre a música ao vivo e gravada.” (STERNE, 2003, p. 275).
Relatos da época apresentam uma visão mais crítica e menos idealizada sobre a
expectativa de qualidade em torno do registro fonográfico. Daubeny (1920) demonstra estar
plenamente ciente das limitações do gramofone ao identificar que alguns instrumentos eram
mais reprodutíveis do que outros, assim como ao apontar que a seleção do repertório gravado
incluía preferencialmente obras curtas e já consagradas, em detrimento de obras de maior
duração e representantes de novas tendências musicais. Sobre a tecnologia de gravação
acústico-mecânica da época, Daubeny opina que:
79
É irracional esperar que uma reprodução de gramofone em todos os aspectos se iguale à performance original, embora esse seja comumente o ponto de vista adotado por muitos críticos, que também questionam por que a maioria das obras deve por necessidade ser brutalmente cortada e mutilada para trazê-las para dentro do escopo de uma única 'parte' ou gravação. Mesmo assim, fazendo-se todas as concessões possíveis, muitos pontos ainda atingem o gramofonista, fazendo com que ele se maravilhe quando lê sobre as 'novas' e revolucionárias melhorias em gravação realizadas durante anos recentes. Fabricantes podem anunciar tudo isto, mas para o crítico leigo a gravação de gramofone não fez nenhum progresso apreciável ao longo da década passada. (DAUBENY, 1920, p.486)
Vemos que, já em 1920, existia um forte apelo comercial em torno da evolução
técnica, como um indicativo do discurso qualidade que viria a ser largamente adotado pelos
fabricantes durante décadas seguintes. Desse modo, surge a questão: até que ponto não seria
esse comportamento de equiparação do som gravado com o som ao vivo uma consequência da
influência exercida por estratégias de publicidade adotadas por grandes empresas?
Curiosamente, a aplicação do termo fidelidade com embasamento técnico só veio a ser
realidade após a década de 1920, quando foram desenvolvidos os primeiros equipamentos
capazes de medir os parâmetros físicos do som de modo a permitir estudos sistemáticos de
comparação entre fontes sonoras (THOMPSON, 1995). Logo, as informações acerca da noção
de fidelidade sonora oriundas das últimas décadas do século XIX e das primeiras décadas do
século XX devem ser interpretadas como sendo de teor altamente qualitativo (e
potencialmente tendencioso), uma vez que sua verificação ainda não poderia ocorrer de
maneira objetiva devido à falta de recursos e ferramentas para tal.
4.1.3 A fidelidade na Era Elétrica
Com a evolução tecnológica das técnicas de gravação para o sistema elétrico e o
surgimento do cinema falado a partir do final da década de 1920, a concepção de realismo
sonoro começa a mudar. A criação de realidades sonoras fictícias deixou de ser exclusividade
de programas de rádio e de algumas poucas gravações narrativas, e passou a dar suporte para
o imaginário cinematográfico (COPELAND, 1991). As novas técnicas de gravação
permitiram a criação de sonoridades artificiais, pois se tornou possível o controle dos níveis
sonoros a partir da introdução de microfones elétricos, promovendo um distanciamento da
“realidade” das gravações acústicas até então. Gradualmente, o ouvinte foi se familiarizando
com as novas possibilidades sonoras, e os aparelhos reprodutores de som, em sua crescente
popularidade, passaram a dominar o universo da audição musical em detrimento da
apreciação da música ao vivo (STERNE, 2003; COPELAND, 1991; BESSA, 2004).
80
Ao longo das décadas seguintes, as máquinas passaram a fornecer cada vez mais
recursos de controle, conforme os ouvintes se familiarizavam com os meios de reprodução
sonora. Os manuais dos equipamentos começaram a detalhar melhor sua operação para que
fossem atingidas “condições ideais” de reprodução. Aos poucos, os ouvintes começaram a
tomar consciência das sutis diferenças de sonoridade do som gravado, e a usá-las como
referência para a avaliação de fidelidade entre diferentes equipamentos. Sterne comenta:
Tudo isto significa que era esperado que os ouvintes aprendessem a discernir entre os vários tipos de tecnologias de reprodução sonora. Eles iriam afinar sua técnica auditiva, tornar-se-iam conhecedores das várias nuances da perfeição do tom, e assim aprenderiam a distinguir entre o verdadeiro e o falso, ou pelo menos estariam aptos a construir suas próprias realidades auditivas. (...) Então surgiu um conjunto de técnicas para discernir as várias qualidades do som em paralelo com o discurso de fidelidade. (STERNE, 2003, p. 267).
Como consequência, a referência de fidelidade sofreu mais uma mudança. O
significado do termo passou a não ser mais relacionado apenas com o evento musical real ou
com a performance ao vivo, mas “[...] com relação ao padrão imposto pela própria tecnologia
de gravação” (IAZZETTA, 1997, p. 25). Quanto ao julgamento acerca da fidelidade dos
equipamentos de reprodução, Sterne (2003, p. 275) afirma que “[...] o melhor disponível ou o
preferível se tornou um substituto para a verdade.”. A diferença de desempenho de um
modelo de equipamento, quando comparado com outros, começou a ser utilizada como um
parâmetro de avaliação da fidelidade em si mesma.
Os argumentos comerciais para a divulgação de novos modelos de equipamentos
refletiram essa mudança de referencial para a avaliação de qualidade. Gradualmente, as
empresas passariam a utilizar em seus anúncios termos técnico-científicos com o objetivo de
convencer o consumidor de que cada novo equipamento representaria um novo “salto” de
fidelidade. Este relato original de uma carta de 1954 expõe a confusão de conceitos aos quais
os consumidores da época estavam sujeitos, quando fabricantes utilizavam termos
supostamente científicos para validar o desempenho de seus equipamentos:
Qualquer dia da semana fará aumentar as numerosas alegações de 'alta-fidelidade', 'resposta de 50 a 15000cps,' 'reprodução sem distorções,' etc. Outras alegações são feitas para 'som estereofônico,' 'som inteiramente dimensional,' 'som 3-D,' e quase tudo mais que o propagandista puder imaginar. […] O público está devidamente confuso, e quem pode culpá-los. De um lado eles ouvem que 'alta-fidelidade' é uma coisa um tanto elusiva, a ser obtida apenas pela seleção cuidadosa dos componentes de mais alta qualidade com o custo de várias centenas de dólares. Do outro lado, anúncios de certos fabricantes reputáveis dizem a eles que um fonógrafo de mesa com preço de aproximadamente 100 dólares irá entregar uma reprodução melhor do que a fonte original. (HELD, 1954, p. 111)
81
O relato de Held sutilmente revela duas tendências da indústria em sua época: a
primeira, voltada para o consumidor leigo, busca atribuir características fictícias de fidelidade
para equipamentos de baixo custo; a segunda envolve uma mitificação do termo alta-
fidelidade (do inglês high-fidelity, ou meramente hi-fi), associando-o com uma classe de
equipamentos que representa o ápice do desenvolvimento tecnológico na reprodução de som.
4.1.3.1 Os audiófilos e o universo high-fidelity
Essa última tendência identificada por Held constitui uma classe de consumo de elite
que movimenta um rico mercado especializado de equipamentos de reprodução de som de
alto desempenho, denominados de audiófilos. Em seu artigo Golden Ears and Meter Readers:
The contest for epistemic authority in audiophilia, Perlman (2004) busca caracterizar o perfil
e os objetivos desses entusiastas de high-fidelity:
A valorização da reprodução precisa — fidelidade ao original — como uma virtude suprema do áudio data desde os primeiros dias do fonógrafo, mas é sustentado mais vigorosamente pelos audiófilos. Eles defendem bastante explicitamente não apenas que o padrão pelo qual todo equipamento de áudio é julgado é a precisão, mas que a referência máxima de precisão é o som da música ao vivo. Sua fé na existência de uma verdade sonora incondicional é simbolizada pelo termo […] O Som Absoluto […] que é frequentemente definido como sendo 'o som de música acústica ao vivo sendo tocada em espaço real'. (PERLMAN, 2004, p. 789)
É possível afirmar, portanto, que a referência do som ao vivo continua a existir até hoje
para a classe de audiófilos e demais segmentos especializados do mercado audiovisual, de
modo semelhante ao que ocorria nas primeiras estratégias comerciais dos fonógrafos do início
do século XX. As estratégias de divulgação comercial continuam a sugerir, tanto por palavras
quanto por imagens, que os equipamentos anunciados possuem desempenho equiparável ao
som dos instrumentos em ambientes acústicos reais. Talvez não por coincidência, esses eram
os mesmos argumentos utilizados desde o início do século XX para a divulgação de
equipamentos de fabricantes como Victor e Edison. Assim, pode ser dito que o relato de Held
(1954), mesmo após 50 anos, ainda permanece surpreendentemente atual.
As Figuras 2 e 3 apresentam dois casos de equivalência entre o som gravado e o som
ao vivo, ambos retirados de contextos comerciais recentes. É possível constatar o destaque
ocupado pela imagem do alto-falante nos dois exemplos, reforçados por palavras e termos que
induzem à associação com o bom desempenho, tais como “natural sound” (Figura 2) e
“authentic fidelity” (Figura 3).
82
Figura 2: Anúncio retirado do catálogo de produtos da linha Natural Sound 2007 da Yamaha, que sugere uma equivalência do som gravado com o som ao vivo nos mesmos moldes utilizados para a publicidade do fonógrafo no início do século XX. O slogan diz: “Alto-falantes: quando os alto-falantes são Yamaha, o som é natural”.
Figura 3: Reprodução da tela inicial do website da fabricante dinamarquesa de equipamentos de áudio profissional Dynaudio, que traz como slogans as frases: “Fidelidade autêntica” e “Reviva a música”.21
21 Retirado de http://www.dynaudio.com em fevereiro de 2010.
83
4.1.4 A fidelidade hoje
O conceito de fidelidade atualmente se encontra muito diluído de seu significado
inicial. Estamos inundados de informações sobre formatos de áudio, equipamentos de
reprodução e padrões de qualidade extremamente instáveis. O mercado voltado para o público
audiófilo coexiste com o mercado de consumo leigo e com o mercado de áudio profissional e,
para todos esses casos, a indústria renova a cada dia o ideal de fidelidade sonora. Walter
Welch argumenta que “A indústria de gravação, através de seus meios de propaganda, quer
fazer com que todos acreditem que ela está no topo da verdadeira alta fidelidade na
reprodução de som, mas isto simplesmente não resiste a análise.” (WELCH, 1972, p. 85).
Em paralelo com toda essa influência comercial, também as grandes mudanças
tecnológicas nos sistemas de reprodução de som induzem à aceitação de novos
comportamentos de escuta, que por sua vez passam a servir como os próprios referenciais
para a avaliação de uma tecnologia anterior. Dessa forma, o CD substituiu o disco LP, e com
ele elevou as expectativas de fidelidade de um registro sonoro, ao eliminar os estalos e
chiados que estavam culturalmente associados com a reprodução de um LP. De modo similar,
também a transição do sistema mono para estéreo nas décadas de 50 e 60 e a transição do
sistema de gravação acústico para o sistema elétrico a partir da década de 20 contribuíram
para a alteração do nível de expectativa de qualidade diante de um registro sonoro e,
juntamente com muitas outras pequenas inovações (SCHOENHERR, 2005), contribuíram
para a construção de degraus de fidelidade para a expectativa de qualidade do registro sonoro.
Essa relativização do conceito de fidelidade, em que os meios de reprodução sonora se
encontram distanciados culturalmente, temporalmente e tecnologicamente entre épocas com
diferentes critérios de qualidade, dificulta muito o estabelecimento de um padrão fixo para a
percepção sonora que possa servir como uma referência para que o restaurador reconstitua a
expectativa do ouvinte. Dietrich Schüller alerta que “[...] as novas tecnologias e o novo
comportamento auditivo sempre irão estimular tentativas de reinterpretação de gravações
antigas por meios técnicos modernos.” (SCHÜLLER, 1991, p. 1016). Isto é um alerta de que
o restaurador está inserido em um ambiente sonoro que pode inconscientemente induzir
distorções no julgamento da qualidade sonora de gravações geradas sob outros contextos.
A título de exemplo, retomemos a aplicação de uma abordagem de restauração
associada com o contexto de fidelidade. Para o trabalho de restauração que intenciona a
reconstituição histórica — previsto nas abordagens de Storm (1983), Schüller (1991) e Orcalli
84
(2006) — torna-se necessário, pois, um conhecimento dos hábitos de escuta do tempo e lugar
da gravação a ser restaurada para uma correta ambientação e definição das expectativas do
restaurador segundo as próprias expectativas do ouvinte médio para o qual a gravação foi
originalmente destinada. Em alguns casos, tal abordagem pode exigir a reprodução do
fonograma através de equipamentos originais criteriosamente selecionados segundo sua
representatividade, assim como a simulação da posição do ouvinte e do ambiente acústico
típico de escuta da época.
4.2 ANÁLISE DE GRAVAÇÕES SEGUNDO A RELAÇÃO PRODUTOR-OUVINTE
Ao se investigar a história de evolução técnica dos métodos de gravação e reprodução
de som, e ao se comparar essa história com a expectativa de qualidade que guia o conceito de
fidelidade, é possível identificar uma tendência do público consumidor leigo, em grande parte
influenciada pelo discurso comercial, de acreditar inicialmente que novos equipamentos e
técnicas serão necessariamente melhores do que os anteriores (MORTON, 2000).
Em contraste, entre os consumidores mais críticos e no meio profissional de áudio é
igualmente comum encontrar exemplos na história em que tecnologias consideradas como
“obsoletas” foram, em um primeiro momento, substituídas por tecnologias mais recentes
apenas para gerar, ao longo do tempo, um gradual movimento de retorno para tecnologias do
passado, sob diversas justificativas. Esse é o caso, por exemplo, dos audiófilos que mantém o
“culto” ao disco de vinil - considerado em si uma tecnologia obsoleta pela grande indústria
(PERLMAN, 2004); dos músicos que preferem utilizar amplificadores “valvulados” em vez
de equipamentos transistorizados; e dos ouvintes que contestaram as melhorias trazidas pelo
advento da gravação elétrica, alegando que a veracidade então apresentada pelas gravações
acústicas seria distorcida com a introdução do microfone (WELCH, 1972; COPELAND,
1991).
Esse duelo entre comportamentos de credibilidade e oposição diante de novas
tecnologias encontra equivalentes até mesmo na digitalização de preservação. Diante do
contínuo (e aparente) progresso da tecnologia de digitalização, com novos e mais eficientes
conversores e computadores sendo lançados a cada ano com resoluções digitais cada vez mais
altas, alguns acreditam que a tecnologia futura sempre irá permitir transferências de
informação mais precisas do que a tecnologia atual. Ao comentar especificamente sobre esse
assunto, Copeland (2008) levanta seus próprios argumentos:
85
Francamente, eu não estou completamente convencido por esse argumento, porque com uma aproximação científica nós podemos frequentemente quantificar os efeitos da tecnologia, e decidir se a tecnologia futura poderá ou não oferecer qualquer melhoria. […] Ao invés disso, eu temo que a gravação de som irá se tornar mais e mais 'à prova de tolos', e eventualmente nós iremos esquecer as relações entre artistas e engenheiros do passado. Se nós não entendemos essa relação, é provável que não entendamos de que modo o equipamento de gravação foi usado, e seremos incapazes de reproduzir os sons corretamente, mesmo com tecnologia perfeita. Eu devo ilustrar o ponto com o mesmo exemplo que mencionei acima. Ao apreciar música popular quando eu era jovem, eu geralmente sabia quais distorções eram deliberadas — a guitarra na mixagem pop — e sabia quais eram acidentais; mas eu não devo assumir que esses pontos serão sempre apreciados no futuro. Na verdade, eu suspeito fortemente que a passagem do tempo irá tornar mais difícil para os operadores futuros apreciarem o que agora é subliminar. (COPELAND, 2008, p.7)
Copeland é enfático ao assumir sua posição contra a crença de que apenas a evolução
tecnológica, por si só, será capaz de possibilitar melhores procedimentos de preservação no
futuro, e revela em seu argumento um novo e importante fator a ser considerado: a “relação
entre artistas e engenheiros do passado”. Segundo Copeland, o conhecimento sobre essa
relação é capaz de definir como e com quais propósitos os profissionais responsáveis pela
gravação faziam a intermediação entre a fonte gravada, os equipamentos disponíveis e os
resultados obtidos. Em outras palavras, tão importante quanto a tecnologia disponível é o
conhecimento de como os equipamentos eram utilizados para a produção de gravações. Sem
esse conhecimento, Copeland prevê que será cada vez mais difícil discernir os eventos
sonoros que representam decisões artísticas intencionais daqueles que constituem falhas não-
intencionais. Isto pode afetar diretamente a preservação e a restauração de áudio, dependendo
da metodologia que se pretende aplicar.
Portanto, para que seja obtido esse conhecimento sobre a relação entre artistas e
engenheiros, tal como sugerido por Copeland, deve-se primeiro analisar um pouco a função
exercida pela figura do engenheiro de som, para que em seguida seja possível estimar com
maior precisão quais teriam sido os possíveis objetivos e recursos permitidos pelas
tecnologias de gravação da época. Finalmente, diante de tais informações, o pesquisador
poderá aventurar-se na busca pelo som originalmente intencionado em um contexto de
restauração exploratória, que também é antecipado por Copeland (2008).22
4.2.1 O papel do produtor
Muitas das decisões para viabilizar uma gravação são feitas principalmente pela
pessoa que se encontra em uma posição de controle na gravação, a qual se torna responsável 22 A “busca pelo som original” também é uma abordagem prevista por Orcalli (2006)
86
pela intermediação entre a fonte sonora e os recursos técnicos. O controle da gravação é uma
função essencialmente prática desde o início da história do registro sonoro, e inicialmente não
dependia de formação acadêmica especializada. Apesar disso, seu impacto sobre o resultado
de uma gravação é muitas vezes subestimado e colocado em segundo plano. Segundo Horning
(2004), essa função existe desde muito antes da denominação de “técnico”, “engenheiro” ou
“produtor” ser atribuída à divisão de trabalho da indústria fonográfica, e sua importância se
estende para além de um âmbito unicamente comercial. Horning afirma que:
Desde as primeiras gravações, a captação de uma performance ao vivo em cilindro ou disco exigia manipulações sutis do equipamento de gravação pelo operador, mesmo quando havia poucas possibilidades para manipulação. Na verdade, pode-se dizer que nunca houve uma gravação que não exigisse alguma intervenção, embora o nível de intervenção variasse imensamente, desde um toque de 'eco' até a montagem de uma gravação a partir de múltiplas performances editadas. […] Mesmo as tão chamadas gravações “ao vivo” eram — e são — o produto de manipulação, edição criteriosa e uma miríade de outros aprimoramentos. […] O que pode ser menos aparente é a extensão até a qual performances gravadas sempre foram engenhadas, mesmo antes que as pessoas que operavam os controles fossem referidas como 'engenheiros'. (HORNING, 2004, p. 704).
Até mesmo as insuspeitas gravações de campo feitas por pesquisadores estão sujeitas
ao condicionamento de variáveis com o objetivo de se coletar a melhor representação possível
para um dado evento sonoro. Anthony Seeger faz um alerta para que as gravações de campo
sejam devidamente interpretadas como produto de uma série de escolhas conscientes e
inconscientes feitas pela pessoa que a coleta:
Enquanto nós estamos todos cientes do tremendo papel dos produtores de gravações na música popular, e das possibilidades que laboratórios de gravação modernos proporcionam para a criação de canções, […] poucas pessoas que realizam gravações em campo hoje consideram ser elas mesmas produtores. Ainda assim todo etnomusicólogo que faz uma gravação está na verdade produzindo aquela gravação. Nenhum arquivo preserva sons. O que ele preserva são interpretações de sons — interpretações feitas pelas pessoas que executaram a gravação, e seus equipamentos. […] Simplesmente ao ligar o gravador irá se produzir “alta-fidelidade”. Mas fidelidade a quê? O posicionamento incorreto de um microfone pode produzir uma boa gravação de um pé batendo ou barulho de motor. Decisões sobre qual tipo de microfone utilizar, onde ele será posicionado, e como o volume está ajustado, todas determinam qual tipo de som o arquivo irá obter e estará apto a preservar e disseminar. (SEEGER, 1986, p. 269–270)
Conclui-se que todas as gravações de campo, assim como as gravações em contextos
comerciais, estão invariavelmente sujeitas à proporção entre decisões artísticas e técnicas. A
mais importante ferramenta para o pesquisador ou restaurador que irá trabalhar com esse tipo
de material continua sendo, como sugere Seeger (1986), a documentação apropriada sobre o
87
contexto, gerada pelo pesquisador de campo no momento da gravação. Seeger conclui,
ironizando:
Somos todos produtores. Talvez deva haver um prêmio Emmy [sic] para a mais bem produzida gravação de campo. Pelo menos, todos os pesquisadores de campo deveriam reconhecer que eles são uma parte integral do processo de preservação musical. Os arquivos estão cheios de sons produzidos que frequentemente não são documentados como tal. (SEEGER, 1986, p. 270)
4.2.2 O diálogo entre as limitações técnicas e as decisões criativas
Algumas abordagens de preservação e restauração, como as de Storm (1983) e Orcalli
(2006), admitem a possibilidade de um tipo de restauração que intencione resgatar o “som
original” no momento de captação ou o “som originalmente intencionado pelo
artista/produtor”. Para ambos os casos, existe uma grande lacuna de interpretação: Afinal,
como identificar quais eram as limitações que os produtores e artistas deveriam contornar? E
como diferenciá-las das decisões baseadas em critérios artísticos? Como saber qual elemento
sonoro sofreu alteração ao longo do processo de gravação? Como vemos, é um desafio que se
desdobra em múltiplos caminhos. Uma das maneiras possíveis de responder essas questões é
determinar critérios que permitam uma distinção da intencionalidade ou não-intencionalidade
das alterações que são identificadas no som da gravação. A seguir, será analisada a
viabilidade de tais objetivos dentro da restauração de fonogramas, através de um breve
levantamento histórico das limitações técnicas impostas pelos meios de gravação e
reprodução de som.
Por mais que o discurso de fidelidade de cada época já tenha comparado a gravação
com a performance real, vemos que qualquer tecnologia de gravação condiciona, em maior ou
menor grau, os eventos sonoros registrados a um conjunto limitado de aspectos. Em outras
palavras, qualquer gravação é, antes de tudo, uma seleção de certos eventos sonoros em
detrimento de outros, de modo que é impossível, em termos científicos, que exista uma
fidelidade absoluta. De acordo com essa visão, Brock-Nannestad revela que:
Uma vez que uma gravação é um relato de um evento sonoro real, o número de variáveis no evento sonoro real representadas pela gravação é finito e menor que o número presente in situ. Por exemplo, em muitas gravações de campo, nem mesmo uma simples característica tal como o nível sonoro absoluto da música indígena pode ser coletada das gravações, porque o nível gravado é ajustado para se adequar ao meio de gravação. (BROCK-NANNESTAD, 2000, p. 1–2)
88
Esta seleção de variáveis sugerida por Brock-Nannestad pode ocorrer de três formas
principais: 1) Pode ter sido uma decisão intencional do produtor ou engenheiro da gravação
baseada em critérios artísticos; 2) Pode ter sido uma decisão intencional do produtor ou
engenheiro da gravação baseada em critérios técnicos, com o objetivo de contornar limitações
encontradas na tecnologia de gravação; 3) Pode ser uma consequência não-intencional das
características inerentes da própria tecnologia utilizada para a gravação. Esses três pontos
constituem alguns dos critérios de avaliação dentro da abordagem de preservação de Schüller
(1991).23
As limitações impostas pela tecnologia de gravação de cada época condicionaram
desde a duração das performances até decisões sobre arranjos, seleção e substituição de
instrumentos, controle de dinâmica e impostação de voz na interpretação musical, além de
terem estimulado o desenvolvimento de técnicas para compensação destes problemas, que por
fim acabaram se tornando ferramentas criativas e convenções amplamente aceitas. Pode ser
dito que a evolução tecnológica caminha lado a lado com a exploração artística, como assim
resume Burkowitz (1977):
Se nós refletirmos sobre o centenário das técnicas de gravação, e também tentarmos extrapolá-las para o futuro, nós devemos compreender que de 1877 até o final dos anos 1940 todo passo que o meio [de gravação] fez em direção à evolução foi feito por engenheiros que adicionaram peça por peça à perfeição do cenário instrumental. Os feitos artísticos então ocorreram por vezes como um resultado daquilo que havia se tornado possível tecnicamente. (BURKOWITZ, 1977, p. 873)
A cada ano surgem novos estudos e teorias acerca dos efeitos e consequências que as
limitações dos meios de gravação e reprodução trouxeram para o processo criativo de
composição musical, como por exemplo os trabalhos de Bessa (2004) e Cardoso Filho &
Palombini (2006). A seguir, serão apresentadas de forma introdutória algumas dessas
principais limitações, em ordem cronológica dividida segundo a tecnologia empregada.
4.2.2.1 Limitações da Fase Acústica
Ao longo da fase acústico-mecânica, que se estende desde a invenção do fonógrafo até
meados da década de 1920, as limitações técnicas eram muitas. Tanto fonógrafos (que
23 A questão da intencionalidade aqui proposta pode assumir diferentes aspectos na literatura técnica. Copeland (2008) discute amplamente sobre decisões objetivas e subjetivas no contexto de uma gravação, de forma que os itens (2) e (3) poderiam ser reinterpretados como objetivos, enquanto que o item (1) poderia se enquadrar dentro das decisões subjetivas. Esse é um tratamento simplista, mas serve para alertar sobre outras possíveis abordagens.
89
utilizavam sistema de cilindro) quanto gramofones (que utilizavam discos) estavam
igualmente dentro das limitações impostas pelo processo de gravação acústica. Além das
implicações causadas pela falta de padrão de velocidades (ISOM, 1977), o tempo de gravação
era normalmente restrito a pouco mais de 3 ou 4 minutos, e era algo extraordinário quando um
registro ultrapassava os 6 minutos de duração (COPELAND, 1991). Disto resultava que o
repertório gravado era ditado pelo que era possível gravar com essa duração. Essa duração
limitada dos registros fonográficos chega a ser inclusive comentada por Theodor Adorno, que
avalia as consequências para a seleção de repertório dos fonogramas lançados na época:
A única coisa que pode caracterizar a música de gramofone é a inevitável brevidade ditada pelo tamanho do prato do vinil. Aqui também uma pura identidade reina entre a forma da gravação e aquela do mundo na qual é tocada: as horas de existência doméstica que se esvaem juntamente com a gravação são demasiado esparsas para que seja permitido ao primeiro movimento da Eroica se desdobrar sem interrupção. Danças compostas de tediosas repetições são mais adequadas nessas horas. Alguém pode desligá-las a qualquer momento. (ADORNO & LEVIN, 1990, p. 58)
Essa posição de Adorno é bastante similar à de Daubeny (1920): ambos consideram a
duração dos registros fonográficos da época como insuficiente, e concluem que isso favorecia
a popularidade de formas musicais de curta duração baseadas em repetições, em detrimento
de formas orquestrais de grande duração. A pesquisa desse tipo de informação pode se
mostrar muito útil para revelar dados importantes para a análise de padrões de consumo na
indústria fonográfica do século XX.
Além de seu limitado tempo de gravação, o processo de gravação acústica também
exigia diversas restrições na esfera da interpretação musical, que de forma indireta
contribuíram para definir o “som característico” dos registros gravados na época. O elevado
nível de ruído gerado pelo atrito entre a superfície e o suporte durante a gravação e
reprodução, associado com a limitada resposta de frequência e com a pouca sensibilidade
dinâmica de um sistema inteiramente acústico-mecânico exigiam uma intensa readaptação do
comportamento de compositores, técnicos e intérpretes para que se tornasse possível a
produção de um disco ou cilindro com resultados satisfatórios para o ouvinte final. Aos
poucos, artistas e produtores compreenderam que a performance com o propósito de gravação
podia se tornar algo completamente diferente da performance direcionada para o público.
“Conseguir uma boa gravação era, então, uma questão de resposta tonal, assim como uma
questão de condicionar o artista a um tipo inteiramente diferente de performance.” (STERNE,
2003, p. 238, grifo do autor).
90
Olson (1977) escreve sobre as limitações de sensibilidade, que afetavam a distribuição
espacial dos músicos no ambiente acústico da sala de gravação:
O problema neste tipo de gravação [acústica] é obter pressão sonora suficiente no diafragma de modo que uma amplitude adequada da agulha seja obtida para proporcionar uma efetiva modulação no sulco para sua reprodução por um sistema de reprodução mecânico-acústico. Todos os intérpretes são agrupados na abertura do cone. As fontes mais fracas são posicionadas na periferia do aglomerado. Obviamente, no caso dos vocalistas, aqueles com vozes mais potentes, em geral, produzem as melhores gravações. (OLSON, 1977, p. 682)
O controle da intensidade sonora na gravação final possuía relação direta com a
distância entre a fonte sonora e o cone de captação. Para a obtenção de resultados
satisfatórios, alguns músicos solistas precisavam ser orientados sobre sua proximidade com
relação ao cone de captação, e era necessário que mudassem de posição ao longo da
performance para alcançar a proporção de intensidade sonora desejada entre seu instrumento
e os demais. Tais restrições impostas pela falta de sensibilidade da captação acústica
influenciavam a relação do engenheiro de gravação com os artistas, sobre a qual Horning
(2004) explica:
Uma das mais importantes habilidades era saber onde posicionar vozes e instrumentos na frente do cone de gravação, e ser apto para convencer artistas que estavam acostumados com a liberdade de movimento a permanecerem onde fossem instruídos. Por causa da fraca energia acústica dos instrumentos de corda, eles tinham que estar diretamente dentro do cone, […] Vocalistas, por outro lado, tinham de se mover de acordo com as instruções do profissional de gravação. (HORNING, 2004, p. 706)
A limitada faixa de resposta em frequência do método de gravação acústico-mecânico,
por sua vez, implicava que o sistema era incapaz de registrar com eficiência sons muito
graves ou muito agudos, o que restringia o foco de captação para a região média do espectro
audível. Tal característica, associada com a falta de sensibilidade dinâmica, favorecia o timbre
de alguns instrumentos em detrimento de outros. Brock-Nannestad (2002, p. 2), ao comentar
sobre a sonoridade de tais gravações, afirma que “A qualidade do som era tal que pode ser
impossível para o ouvinte contemporâneo determinar precisamente quais instrumentos foram
realmente utilizados”. Por essa razão, muitos arranjadores necessitavam reorganizar a
instrumentação das obras musicais que iriam ser gravadas para que obtivessem a melhor
distribuição sonora ao final da sessão, daí a relativa popularidade de conjuntos musicais
formados por metais em detrimento de instrumentos de cordas. Torick (1977) descreve que:
91
Partituras eram frequentemente rearranjadas para proporcionar um melhor balanceamento musical. Por exemplo, fagotes seriam os substitutos dos violoncelos e as tubas dos contrabaixos. Sem a flexibilidade de controle de ganho manual ou automático das mesas de mixagem modernas, lenços na frente do cone substituíam os atenuadores, e a variação dinâmica das performances era intencionalmente restrita. (TORICK, 1977, p. 881)
Apesar de todas essas limitações, alguns estudiosos argumentam que uma “vantagem”
do processo de gravação acústico-mecânico era sua relativa fidelidade ao evento sonoro real,
principalmente se comparado com a manipulação elétrica dos níveis sonoros mais tarde
possibilitada pela utilização de microfones para captação. Walter L. Welch afirma que: “Uma
grande vantagem do processo direto de gravação acústica era sua comparativa imutabilidade.
Um tenor que possuía uma voz potente produziria um som equivalente; um [tenor] com uma
voz leve não poderia fazê-lo.” (WELCH, 1972 p.88). Essa característica da gravação acústica
de alguma forma facilita a reconstituição do ambiente sonoro acústico original, por causa da
relação direta entre fenômeno acústico e registro mecânico, o que não ocorre com registros
manipulados eletricamente (SCHÜLLER, 1991; ORCALLI, 2006).
No caso das gravações etnográficas realizadas através do processo acústico-mecânico,
a falta de um local apropriado para a gravação poderia comprometer o registro coletado em
campo, uma vez que a sensibilidade dos equipamentos era ainda mais reduzida em ambientes
abertos. Entretanto, relatos diversos indicam que alguns etnógrafos buscaram alternativas
engenhosas para contornar essa situação.
Conforme discutido na Seção 4.2.1, assim como ocorria com as gravações de cunho
comercial, também as gravações etnográficas estavam sujeitas a alterações em seu contexto e
em seu modo de captação para contornar as limitações técnicas existentes, de modo a alcançar
um melhor resultado final. Sterne reforça essa constatação ao afirmar que a performance
gravada para fins etnográficos pode ser considerada também um evento construído, um
artifício, “[...] como um instrumento da música em lugar da música em si” (STERNE 2003, p.
322). Brady (1999) também chega a uma conclusão semelhante, a partir de sua própria
experiência ao longo do trabalho de regravação de fonogramas em acervos:
Era perturbador para mim, no entanto, os relatos dos primeiros procedimentos de trabalho de campo sugerirem que os coletores levavam em consideração as capacidades do fonógrafo, e às vezes escolhiam limitar o tamanho do conjunto e o uso da instrumentação, selecionando cantores cuja qualidade vocal iria registrar melhor nos cilindros. Eles buscavam a excelência técnica tanto quanto a representação das normas de performance dentro de uma cultura. (BRADY, 1999, p. 6)
92
Assim, até mesmo os pioneiros etnógrafos do início do século XX estavam
conscientes da artificialidade presente no registro fonográfico, uma vez que se preocupavam
em instruir os participantes da performance para que cantassem a uma distância apropriada e
com intensidade adequada, a fim de que a gravação fosse tecnicamente a melhor possível.
Desse modo, é muito difícil assumir que qualquer performance gravada possa ser interpretada
como sendo o “evento sonoro originalmente intencionado” sem que haja restrições. Uma
restauração que tente resgatar tal “sonoridade original” deve estar, antes de tudo, muito bem
fundamentada em informações que assegurem a viabilidade daquilo que se intenciona obter.
4.2.2.2 Limitações na Fase Elétrica
A partir da fase elétrica, a relação entre o intérprete e o registro sonoro começa a
mudar profundamente. A gravação passa agora por processos elétricos intermediários que
possibilitam um maior poder de controle da parte do produtor sobre o resultado sonoro. A
partir de meados da década de 1920, as limitações técnicas foram sendo progressivamente
aperfeiçoadas por inovações da engenharia da época. Olson (1977) afirma que muitas das
restrições impostas pelo processo acústico-mecânico foram eliminadas pela introdução do
microfone e da amplificação elétrica, o que permitiu que instrumentos cuja sonoridade era
antes prejudicada pelo sistema acústico fossem, a partir de então, gravados de forma eficiente,
como o piano e instrumentos de percussão:
Em meados da década de 1920 os desenvolvimentos do microfone condensador, do amplificador eletrônico valvulado e da máquina de corte de discos elétrica proporcionaram os meios para a gravação elétrica de discos. O advento da gravação elétrica tornou possível gravar todas as vozes e instrumentos musicais porque não existe limitação da intensidade de fontes sonoras em contraste com a gravação acústico-mecânica com a qual apenas vozes e instrumentos musicais vigorosos poderiam ser gravados. (OLSON, 1977, p. 677)
A partir da introdução das técnicas de gravação elétrica e ao longo das décadas
seguintes, surgiram diversas outras inovações tecnológicas que deram uma crescente
liberdade ao produtor, ao reduzir cada vez mais as limitações técnicas. Podem ser destacadas,
dentre outras: a introdução de múltiplos microfones em uma mesma sessão de gravação; o
desenvolvimento de microfones dinâmicos e condensadores; a utilização da reverberação
como recurso artístico; a introdução de equipamentos com circuitos transistorizados; e o
desenvolvimento das mesas de mixagem e de vários outros equipamentos periféricos para
controle do timbre e da dinâmica das fontes sonoras (SCHOENHERR, 2005; BURKOWITZ,
93
1977; CHANAN, 1995). Todas essas inovações, associadas com uma compreensão cada vez
maior dos fenômenos acústicos no ambiente de gravação, permitiram que o produtor ganhasse
progressivamente mais espaço para decisões artísticas, e aos poucos o estúdio se transformou
em um instrumento em si mesmo (HORNING, 2004; THÉBERGE, 1997; DAY, 2000).
Apesar disso, é importante lembrar que as limitações técnicas não estão restritas
apenas a formatos antigos e distantes. Até mesmo formatos analógicos mais recentes como o
LP ainda estavam sujeitos a algumas limitações em plena década de 1980, mesmo após vários
anos de aperfeiçoamento das técnicas de produção comercial. O produtor, por exemplo, não
poderia descuidar dos ruídos provenientes da soma de múltiplas pistas em fitas, dos picos de
sinal em altas frequências, do nível excessivo de graves, do nível geral da gravação e nem da
separação entre os canais estéreo, sob o risco de se obter um sinal incompatível com as
exigências de masterização do LP. Se essas condições não fossem respeitadas, o
procedimento de corte do disco que daria origem à matriz poderia acabar por reduzir o tempo
de gravação disponível ou mesmo diminuir a amplitude geral do sinal da cópia final
(FELDMAN, 1986).
Para evitar que tais problemas chegassem até os estágios finais de prensagem, era
recomendável que produtores e engenheiros minimizassem suas causas desde o início, durante
o processo de gravação e mixagem, conciliando as limitações impostas pelo formato de
destino da gravação com suas intenções artísticas. Tais comprometimentos se tornaram
praticamente inexistentes quando o formato de destino final era o formato digital do CD, ao
invés do LP de vinil. Sobre a produção destinada para o lançamento em CD, Feldman (1986,
p. 930) informa que : “O engenheiro de mixagem não precisa se preocupar com essas
limitações do disco analógico, exceto com as considerações artísticas usuais”.
4.2.2.3 Limitações na Era Digital
Com os atuais sistemas de gravação digital, algumas limitações técnicas ainda
existem, mas podem ser consideradas mínimas quando comparadas com as limitações
existentes na era acústico-mecânica. É possível afirmar que a gravação em suportes digitais é
a que possibilita a maior liberdade possível para o produtor e o artista. A manipulação do som
possui hoje muito mais relação com as preferências artísticas do que necessariamente com a
compensação de limitações técnicas, e são essas preferências artísticas que em geral
determinam a demanda que orienta o mercado de equipamentos de áudio profissional
(THÉBERGE, 1997; HORNING, 2004; FELDMAN, 1986).
94
Contudo, ainda existem fatores impostos pelo custo e pela acessibilidade de aquisição
de equipamentos apropriados, especialmente no Brasil. Equipamentos de precisão em geral
apresentam custos elevados e são de difícil aquisição, ao passo que as alternativas de baixo
custo desses equipamentos normalmente possuem desempenho limitado, embora sejam mais
facilmente encontrados no mercado nacional.
Como exemplo, embora exista a tecnologia que possibilita a captação de um evento
sonoro com uma relativa veracidade espacial — através, por exemplo, da utilização de
gravações binaurais 24 como as sugeridas por Welch (1972) — tais recursos ainda são muito
pouco difundidos e normalmente possuem um custo de implementação elevado, uma vez que
suas aplicações no mercado de áudio profissional são bastante específicas e sua demanda é
relativamente pequena quando comparada com outros métodos de gravação.
Por outro lado, a praticidade e a discrição de gravadores portáteis são por vezes
características desejadas pelos pesquisadores de campo, apesar das inúmeras limitações
técnicas para a captação acústica encontradas em modelos de gravadores de baixo custo.
Como exemplo, gravações de campo de uma cerimônia religiosa ou de uma entrevista de
longa duração podem exigir um equipamento de gravação portátil o suficiente para ser
mantido no bolso e que consiga funcionar ininterruptamente por várias horas sem a
necessidade de troca de bateria. Neste contexto específico, mesmo que a qualidade de
captação do gravador escolhido não seja a mesma oferecida por outros modelos, sua
característica de portabilidade será preferível à qualidade de gravação. A partir da
consideração de situações semelhantes ao exemplo apresentado, pode ser previsto que a
tecnologia de gravação irá imprimir a “marca” de suas limitações até mesmo em algumas
gravações mais atuais, ainda que de forma não-intencional.
4.2.3 A relevância da pesquisa para a restauração e preservação de fonogramas
Todas as informações apresentadas na seção anterior mal conseguem apresentar o
universo de relações existentes entre o produtor e a tecnologia de gravação de cada época, e
não representam mais do que um panorama introdutório ao assunto. A iniciativa de
preservação ideal deve envolver uma etapa de pesquisa bem mais detalhada, capaz de enfocar
especificamente o período de gravações que será trabalhado pelo acervo.
24 Gravação binaural é um método de gravação de som que intenciona simular a sensação espacial de um ambiente acústico real para o ouvinte final. Para tanto, necessita de microfones especiais durante a captação do som e da utilização de fones de ouvido durante sua reprodução. Maiores detalhes sobre técnicas de gravação de som tridimensional podem ser encontrados em Gunzi (2008).
95
Como exemplo, ao considerar um contexto de preservação, o conhecimento sobre as
relações entre o produtor, a fonte sonora e o meio de gravação previsto por Copeland (2008)
pode ajudar a determinar quais elementos da gravação foram motivados por limitações do
próprio meio, e dessa forma orientar as possíveis ações corretivas. Um exemplo direto de
aplicação seria a diferença na determinação de tratamento corretivo entre os Níveis 2 e 3 da
abordagem de Schüller (1991), e entre as versões da Teoria de Conservação Quádrupla de
Copeland (2008).
Por outro lado, no contexto mais específico da restauração, tais conhecimentos sobre
as relações entre produtor/fonte/meio poderiam auxiliar o restaurador a percorrer um caminho
reverso àquele traçado pelo produtor da gravação original. A partir de um produto finalizado,
ele deve primeiramente compreender quais foram os procedimentos utilizados para que se
chegasse a tal resultado, para então tornar-se capaz de enumerar quais foram as prováveis
motivações e intenções do artista ou do produtor original. Com base nesse mapeamento, ele
finalmente estaria em condições de tentar recuperar informações específicas inicialmente
obscurecidas ao longo do processo de gravação — caso a restauração intencione uma seleção
interessada prevista por Brock-Nannestad (2000) e Orcalli (2006) — ou ainda de tentar
reconstituir, caso seja realmente possível, a intenção artística original do produtor ou o
ambiente acústico real captado pela posição do microfone durante a gravação — objetivo este
previsto principalmente por Storm (1983), Schüller, (1991) e Orcalli (2006).
Um exemplo prático de como uma determinada inovação tecnológica pode interferir
profundamente no trabalho de restauração pode ser encontrado no caso da introdução da fita
magnética após a Segunda Guerra Mundial (SCHOENHERR, 2005). Aos poucos, a utilização
da fita magnética em sistemas multicanal para a gravação de diferentes takes para cada
instrumento acaba por destruir a certeza de que uma gravação foi feita a partir de uma única
performance simultânea (CHANAN, 1995). Desde o final da década de 1970 e início da
década de 1980, com a introdução de diversos modelos de equipamentos de reverberação
artificial, tornou-se cada vez mais difícil identificar um suposto “ambiente acústico original”
de uma gravação comercial, uma vez que até mesmo esse suposto ambiente acústico pode ter
sido fruto de uma simulação artificial intencionada pelo produtor. Um empenhado trabalho de
pesquisa poderia, no máximo, identificar quais modelos de equipamentos e quais recursos
poderiam ter sido utilizados para a criação de tal ambiente virtual — o que por si só pode
revelar informações importantes sobre o método utilizado na gravação. Contudo, a
restauração do “ambiente acústico original” se tornaria algo pouco plausível, e provavelmente
seria também pouco desejável nesse caso em específico.
96
Portanto, percebe-se que é uma tarefa extremamente pretensiosa tentar recuperar o
som original do evento acústico de uma gravação, assim como tentar definir as intenções
originais do autor da gravação. A confirmação da fidelidade de uma gravação com relação ao
fenômeno acústico real se torna um ideal cada vez mais distante quando temos acesso apenas
ao conteúdo gravado e não possuímos fontes confiáveis de informação auxiliar. Mesmo que
tal gravação tenha sido realizada objetivando a neutralidade na representação dos eventos
sonoros, o acúmulo de decisões inconscientes do produtor original juntamente com as
limitações do sistema gravador podem facilmente desviar o restaurador de seu objetivo.
Assim, sem as informações apropriadas, qualquer tentativa de interpretação de uma
gravação pode correr o risco de se tornar enganosa, e resultar em conclusões errôneas. Como
exemplo, Erika Brady relata sua própria experiência ao constatar a falta de conhecimentos de
usuários do acervo ao consultarem regravações de cilindros:
Também outro usuário da coleção, um respeitado etnomusicólogo, estava preparado para concluir baseando-se na audição de gravações de arquivo que as canções de índios americanos na virada do século possuíam uma média de quatro a seis minutos de duração — a duração da maioria das gravações em cilindro. […] Eu fiquei esmorecida. Estaria eu gastando meus dias de trabalho em tarefas técnicas tediosas e exigentes [de regravação] apenas para vê-las resultar em conhecimentos acadêmicos enganosos e suposições errôneas? Eu comecei a considerar meios pelos quais as capacidades técnicas do fonógrafo de cilindro, uma vez bem compreendidas mas agora esquecidas, haviam afetado o conteúdo. (BRADY, 1999, p.6)
Vê-se que um pesquisador, por desconhecer que os cilindros de gravação utilizados
pelo fonógrafo dificilmente ultrapassavam os cinco ou seis minutos de duração 25, considerou
a duração das performances gravadas como uma decisão deliberada dos autores, e não como
uma consequência das limitações da tecnologia utilizada na época. Seeger & Spear (1987)
narram ainda outro episódio ocorrido durante sua experiência ao acompanhar a regravação de
cilindros severamente danificados para fitas de rolo no início da década de 1980:
Às vezes o que soava como uma percussão não era percussão alguma, mas uma rachadura no cilindro. Um exame cuidadoso de uma gravação que foi descrita por técnicos anteriores como 'homem cantando com percussão' mostrou que o barulho que se assemelhava a uma percussão era produzido pelo choque da agulha acertando uma rachadura. Quem sabe que teorias sobre ritmos nativo-americanos poderiam ser desenvolvidas utilizando-se fitas que gravaram rachaduras. […] Um erro conceitual similar também ocorreu quando uma mancha de bolor em uma parte de um cilindro produziu um som interpretado como um chocalho. (SEEGER & SPEAR 1987, p.11)
25 A duração das gravações feitas com cilindros de cera era variável. Em gravações de cilindros comerciais, a duração média variava de 2 até no máximo 4 minutos, dependendo do tipo de cilindro e do modelo de equipamento (COPELAND, 1991). Alguns modelos de fonógrafo eram especialmente modificados para permitir um maior tempo de gravação para registros em campo, e continuaram a ser utilizados para pesquisa em campo mesmo após a popularização das gravações elétricas ao longo das décadas de 20 e 30 (BRADY, 1999).
97
O que se observa através desses exemplos é que conhecimentos específicos sobre as
limitações dos meios de gravação de cada época e sobre o processo de preservação de
registros sonoros ainda são menos difundidos na comunidade de pesquisadores ligados à
música do que o ideal, e isso muitas vezes resulta em erros e enganos semelhantes aos
descritos por Seeger e Brady. De modo equivalente, as declarações de Seeger e Brady podem
também ser interpretadas como um alerta contra estratégias de preservação que consideram
com muito mais prioridade a preservação do conteúdo sonoro do fonograma do que as
informações secundárias que permitiriam sua adequada interpretação. Além disso, a falta de
conhecimentos do operador a respeito de informações secundárias omitidas pode alcançar
proporções graves quando ocorre em um contexto de preservação em acervos digitalizados, ao
se admitir a hipótese de que um erro de digitalização possa vir a ser multiplicado por cópias
digitais subsequentes e equivocadamente interpretado pelos usuários finais do acervo.
4.3 CAPACITANDO PARA O EXERCÍCIO DA PRESERVAÇÃO
Como minimizar a ocorrência de erros de interpretação durante as etapas de
preservação, restauração e durante a posterior interpretação dos registros sonoros na ocasião
de seu acesso? Conforme a discussão ao longo da seção anterior, vemos que a boa informação
e a capacitação adequada podem ser a chave para prevenir esse problema, e que ambas são de
igual modo necessárias tanto para os profissionais e técnicos do acervo quanto para os
pesquisadores que acessam as gravações que lá se encontram. Além das etapas de treinamento
teórico, serão discutidos ainda dois itens que podem contribuir para uma capacitação
diferenciada, sendo estes a experiência prática e a relação de fontes adequadas de pesquisa.
4.3.1 Capacitação pela experiência prática
Davies (1999) prevê que, por causa da crescente tendência da atual geração de
trabalhar com o áudio apenas em sua forma digital, no futuro será cada vez mais difícil
encontrar pessoas capazes de lidar com tecnologias analógicas. Mesmo nos dias de hoje, já se
percebe que o profissional analógico tem se tornado uma pessoa cada vez mais especializada
e rara. Por tal razão, a necessidade de que sejam plenamente capacitados novos profissionais
para o exercício das tarefas exigidas pela preservação e restauração de registros sonoros em
acervos é diligentemente reforçada por textos de referência como William Storm (1983),
Casey & Gordon (2007), NRPB (2006) e IASA (2005), dentre outros.
98
Além de conhecimentos teóricos relacionados com a função, alguns estudiosos
sugerem que a experiência prática também é fundamental para a plena compreensão dos
aspectos envolvidos nas atividades de preservação e restauração. O conhecimento prático
adquirido pelo contato direto com equipamentos e técnicas de gravação originais de
determinadas épocas pode ajudar o operador e o pesquisador de hoje a alcançarem uma visão
mais concreta acerca das limitações tecnológicas encontradas pelos primeiros usuários de um
dado registro sonoro.
John Fesler, durante seu trabalho de transcrição de uma coleção de cilindros de cera
gravados por Lionel Mapleson26 no início do século XX nos Estados Unidos, justifica a
abordagem prática como uma importante ferramenta de ensino para guiar a expectativa de
qualidade do engenheiro moderno acerca de tecnologias obsoletas:
Em outras palavras, para se descobrir os melhores meios para recuperar informação sonora dos cilindros e gravações de Mapleson daquela época, seria inteligente que o engenheiro e arquivista moderno realmente aplicasse a tecnologia de Edison de 1900 e fizesse algumas gravações de amostra usando equipamentos e técnicas originais. […] Uma vez isto feito, é possível ter um padrão de música gravada ou mesmo de tons de teste em gravações de cilindro para se comparar com as gravações originais. Se nós sabemos o que pode ser alcançado com o equipamento original, nós temos um melhor padrão para se julgar o original. (FESLER, 1983, p. 674)
De forma similar, no artigo Authenticity in the Reconstruction of Historical Disc
Recording Sessions, Brock-Nannestad (1998) se propõe a refazer todas as etapas da produção
de um fonograma de cera da fase acústica, desde a sessão de gravação até a obtenção do
registro sonoro final. Por meio desse experimento, ele intenciona gerar dados que venham a
permitir um melhor entendimento sobre as limitações tecnológicas daquele momento
histórico, assim como esclarecer a razão de algumas decisões tomadas pelos antigos
produtores musicais quanto à sonoridade das gravações originais a partir das limitações
encontradas.
Considerando os argumentos apresentados, vemos que o treinamento baseado no
manuseio prático de equipamentos e tecnologias obsoletas pode complementar a formação
teórica de profissionais de preservação e restauração, assim como auxiliar pesquisadores e
estudiosos a reavaliarem suas expectativas e pré-concepções acerca da qualidade sonora de
um determinado formato de gravação.
26 Lionel Mapleson foi responsável pela gravação de dezenas de cilindros contendo performances realizadas no Metropolitan Opera de Nova York no início da década de 1900. As performances registradas por Mapleson não eram realizadas especificamente para o registro sonoro, e por isso Mapleson contava com condições de captação acústica inadequadas mesmo para os padrões da época (FESLER, 1983).
99
Por causa de sua importância para a preservação e a restauração, o profissional que
lida diretamente com as etapas de leitura, digitalização e processamento digital deve ser
devidamente orientado segundo seu próprio papel enquanto ouvinte, e conscientizado sobre as
nuances que incorporam a história da interação entre o registro fonográfico e a sociedade.
Para isso, este profissional deve estar preparado como profundo conhecedor das tendências,
preferências e hábitos de escuta que caracterizam o gosto de cada época, e ao mesmo tempo
estar apto a se localizar no labirinto da evolução tecnológica do suporte sonoro.
4.3.2 Relação de fontes de informação sobre registros fonográficos
Outra grande dificuldade que surge durante a etapa inicial de pesquisa por informações
secundárias é o levantamento de fontes de informação confiáveis sobre um registro sonoro ou
um período ou local específico de gravação. Alguns autores dedicam sua pesquisa a enumerar
e discutir possíveis fontes para o trabalho de levantamento de informações discográficas. No
apêndice do artigo “What are the sources for the noises we remove?”, por exemplo, Brock-
Nannestad (2001b) lista um grande número de possíveis fontes de informações secundárias
que podem estar presentes nos suportes mecânicos e magnéticos e em suas respectivas
embalagens e itens acompanhantes. Tais fontes de informação incluem desde a análise de
“impressões olfatórias” até informações sobre o acabamento, o peso e a composição química
dos materiais utilizados na fabricação do suporte.
Paralelamente, o artigo Technical History as an Aid to Archiving and Restoration de
Sean Davies (1999) se propõe a detalhar e discutir algumas das fontes mais relevantes para
obtenção de informações sobre equipamentos e formatos analógicos de reprodução sonora, de
modo que possam servir como um guia específico para o trabalho de pesquisa promovido pelo
acervo para fins de digitalização ou restauração. Ao todo, Davies lista 12 tipos de fontes de
informação, sem ordem de importância, e comenta sobre o provável nível de credibilidade de
cada uma:
1) Artigos acadêmicos, que muitas vezes são contemporâneos às próprias tecnologias
que descrevem, mas que podem ser limitados por segredos industriais ou pelo
próprio conhecimento da época;
2) Materiais publicitários dos fabricantes, que variam desde confiáveis até
extremamente errôneos (ver seção 4.1.2);
3) Manuais técnicos dos fabricantes, em geral considerados mais confiáveis do que os
materiais de cunho publicitário;
100
4) Relatórios sobre a resposta de usuários, que podem revelar práticas de utilização
ou tipos de problemas apresentados por determinado modelo de equipamento;
5) Livros contemporâneos, que podem instruir sobre práticas correntes;
6) Informações de origem militar, que podem revelar detalhes tecnológicos
exclusivos;
7) Memórias pessoais de engenheiros experientes, que devem ser devidamente
interpretadas com base em mais de uma fonte, se possível;
8) Publicações que anunciam inovações de pesquisadores, em contextos acadêmicos e
comerciais;
9) Equipamentos de gravação originais de cada época, que podem servir como uma
referência para a análise de técnicas de gravação, embora seja provável que tais
equipamentos não estejam mais em suas condições operacionais originais;
10) Gravações de teste destinadas à calibração de equipamentos, que podem revelar
dados sobre parâmetros e ajustes para o desempenho adequado dos componentes
responsáveis pela leitura do suporte;
11) Livros e embalagens contendo registros de gravações em estúdios, que podem
revelar dados técnicos importantes sobre as etapas de gravação;
12) Busca por patentes relacionadas, que podem servir como referência histórica para
comprovação de datas.
Portanto, vemos que mesmo essas sugestões iniciais de fontes feitas por Davies já são
por si só capazes de manter um pesquisador ocupado por um tempo considerável — o que
justificaria a alocação de um especialista nesta função. Copeland (2008) reforça a importância
da pesquisa discográfica, e a considera tão fundamental quanto o próprio trabalho técnico:
Tudo isso significa que alguém qualificado para fazer trabalho discográfico pode ser mantido tão ocupado quanto o próprio operador de som. Os dois devem trabalhar em colaboração próxima também por outra razão. Frequentemente os fatores técnicos dependem da data da gravação, ou de sua data de publicação; logo, o operador (ou o gestor) pode precisar dessa informação antes que o trabalho se inicie. (COPELAND, 2008, p. 19)
Até mesmo informações aparentemente simples como a identificação da data e do
local de uma gravação podem fazer toda a diferença para o tratamento de um registro sonoro.
Mais adiante em seu texto, Copeland supõe um exemplo prático de como poderia ser
implementada uma rotina de trabalho de preservação devidamente equilibrada entre as
exigências de pesquisa discográfica e os procedimentos técnicos:
101
Assim, um dia de trabalho pode consistir em o operador e o pesquisador discográfico trabalharem juntos em uma área de poucos recursos tecnológicos para decidir sobre coisas como velocidades de reprodução, qual a melhor cópia ou cópias para transferir, e se as alternativas são ou não as mesmas. A inserção de catálogo pode ser iniciada ao mesmo tempo, e talvez descrições faladas possam ser pré-gravadas. Também há tempo para se pesquisar qualquer coisa que prove necessitar de investigação. As verdadeiras transferências de 'alta-tecnologia' poderiam então ocorrer em uma data posterior com eficiência muito maior. (COPELAND, 2008, p. 21)
Ao sugerir que o trabalho prático se torna mais eficiente quando antecedido pela
pesquisa prévia e pela preparação adequada, Copeland se aproxima do fluxo de trabalho
idealizado por Brandi (2004), que defende que a teoria é possivelmente a etapa mais
importante para o processo de preservação e restauração, pois é justamente quando se define a
estratégia que irá orientar a atividade prática. Portanto, vemos que as fases de pesquisa e
capacitação demandam inicialmente um esforço considerável, mas que será ao final
recompensado pela maior eficiência e fluidez durante a realização do trabalho técnico.
A preservação e a restauração adequadas em geral têm início na boa informação.
Quando nada se sabe sobre o contexto de gravação da fonte sonora, então essas atividades
terão muito pouco no que se basear além do empirismo. Se não é possível (e quando será?)
atingir uma "restauração perfeita", que então seja pelo menos claramente informado ao
ouvinte a história daquela gravação, em respeito ao princípio da distinguibilidade sugerido
por Brandi (2004) e Boito (2008). Isto é necessário para que se anule a interferência do
operador que, inconsciente da (ou inconformado com a) neutralidade diante da preservação,
reescreve sutilmente a história. E espera-se que, afinal, também o ouvinte não queira ser
enganado porque, como defende Brandi (2004, p. 89), a nostalgia e a falta de limites talvez
sejam as atitudes mais enganosas diante da restauração ilegítima, pois admitem que o tempo
pode ser reversível à vontade.
102
5 EXPERIMENTO DE DUPLICAÇÃO FÍSICA DE FONOGRAMAS EM FORMATO
DE DISCO
A preservação e a restauração de suportes sonoros mecânicos seriam
significativamente beneficiadas através da elaboração de um processo que permitisse a
duplicação física de um fonograma de forma eficiente. Uma cópia física ideal seria capaz de
substituir o fonograma original por tempo indefinido, preservando o suporte original dos
desgastes físicos causados durante o manuseio e a leitura por métodos convencionais. Assim,
na duplicação física, a transferência de informação não seria entre diferentes formatos de
suporte — como normalmente é o caso com a digitalização/regravação — mas sim para o
mesmo tipo de formato.
Tais vantagens seriam de especial importância para a linha de restauração que visa a
reconstituição histórica, uma vez que permitiria que a cópia física substituísse o fonograma
original durante a leitura por equipamentos obsoletos, evitando desgastes desnecessários
causados por condições de leitura desfavoráveis. Ao vislumbrar essa possibilidade, Copeland
comenta sobre as dificuldades existentes para uma abordagem de reconstituição histórica
válida:
Existem grandes parcelas de especialização e gosto envolvidas nisto, que não podem ser mantidas por métodos de livros de receita. Além disso nós iríamos necessitar de uma coleção enorme de tais equipamentos [de leitura], possivelmente um exemplar para cada metade de década e cada formato, para satisfazer quaisquer exigência histórica legítima para soar de acordo com o que os criadores originais ouviam. E iríamos inevitavelmente causar muito desgaste à nossa coleção de gravações originais, pois não possuímos meios satisfatórios de produzir réplicas modernas de gravações originais. (COPELAND, 2008, p.8)
Uma das possíveis aplicações secundárias para a duplicação física de um fonograma
seria a sua utilização como uma fonte alternativa durante os processos de regravação e
digitalização, ou meramente como um substituto imediato para a consulta e o manuseio
público em instituições e acervos. Em casos mais extremos, a cópia poderia constituir uma
alternativa particularmente válida para situações em que o fonograma original se encontra em
estado crítico ou casos em que o suporte original não possa ser livremente disponibilizado
para a leitura.
Todas essas possíveis aplicações, no entanto, dependem de que a cópia física apresente
um nível de qualidade satisfatório e — acima de tudo — que o procedimento para sua
obtenção não traga nenhum tipo de risco para o suporte original.
103
Assim, verificada a demanda, foi determinado um objetivo principal: elaborar e testar
a eficiência de um procedimento de duplicação de gravações por meios físicos, que pudesse
servir de alternativa ao fonograma original em uma diversidade de situações, e auxiliar em
algumas necessidades observadas em instâncias de restauração e preservação em geral. Ao
longo deste capítulo, será demonstrada e discutida a viabilidade da duplicação física de
fonogramas através da apresentação e análise de um experimento de caráter empírico.
5.1 CONDIÇÕES E OBJETIVOS
Este experimento possui como foco a duplicação de um fonograma em formato de
disco. A escolha do formato mecânico de disco em detrimento do formato mecânico de
cilindro se justifica pela grande popularidade atingida pelos suportes em disco, que se traduz
na disponibilidade imediata de exemplares para o experimento. Mesmo que não sejam
tratados diretamente por este experimento, os fonogramas em formato de cilindro podem ser
contemplados através de algumas alterações da técnica aqui apresentada, mas a
disponibilidade de exemplares para teste neste caso seria consideravelmente mais restrita,
dada sua raridade e fragilidade. Por sua vez, a duplicação física de formatos magnéticos não
seria plausível, uma vez que seu princípio de funcionamento difere completamente do dos
fonogramas em disco.
O objetivo central é a geração de uma cópia que seja a mais próxima possível do
original, que possa ser reproduzida e manuseada em substituição ao original, e que se
mantenha capaz de desempenhar funções práticas dentro de um contexto de preservação e
restauração de fonogramas em acervos sonoros. O experimento somente será justificável caso
a cópia apresente um nível de qualidade suficiente, que permita ser reproduzida sob as
mesmas condições de leitura necessárias para a sua matriz. A escolha dos materiais deverá
levar em conta esta prioridade.
Para favorecer a reprodutibilidade deste experimento, todos os materiais envolvidos
devem ser de fácil aquisição e custo acessível, contanto que tal economia não venha a
comprometer o nível de qualidade da cópia final. Também é desejável que não seja necessário
o uso de ferramentas especializadas ou de condições cujo custo inviabilize sua
implementação. Paralelamente, o método deve se manter simples e de fácil assimilação em
todas as suas etapas, de modo a permitir que seja executado por pessoas com pouca ou
nenhuma experiência no manuseio de produtos químicos. De modo complementar, deve ser
descartada a utilização de produtos perigosos ou com severas restrições de manuseio, para que
104
também não haja risco algum para a saúde do usuário e nem para a integridade do disco
original. Este experimento não pode representar nenhum tipo de risco para o fonograma
original, pois deve antes de tudo buscar preservá-lo.
5.2 CRITÉRIO PARA SELEÇÃO DA MATRIZ
Para a realização deste experimento, decidiu-se que os exemplares selecionados
seriam discos de vinil de velocidade 33 1/3 rpm com 17,5 cm de diâmetro. Tal decisão foi
motivada principalmente pelo fato de que discos de vinil nos formatos LP, EP e single de 33
1/3 rpm são de fácil aquisição, e se encontravam imediatamente disponíveis no início deste
experimento. Paralelamente, os equipamentos e peças necessários para a reprodução desses
formatos também são mais facilmente encontrados no mercado especializado, ao contrário do
que ocorre com formatos mais antigos como o disco de 78 rpm. A preferência pelo formato
compacto de 17,5 cm de diâmetro foi motivada pela economia do material utilizado durante a
duplicação, e de nenhuma forma impossibilita a adaptação do procedimento para discos de
maior diâmetro.
O formato LP de 33 1/3 rpm é caracterizado por possuir microssulcos, o que exige
uma resolução muito maior do que a que seria necessária para duplicar um disco composto de
sulcos largos (78 rpm). Dessa forma, se o experimento se mostrar capaz de duplicar
satisfatoriamente um disco em microssulco, serão grandes as chances de que o mesmo
princípio também funcione com eficiência equivalente ou até mesmo superior para discos de
sulco largo.
5.3 VISÃO GERAL DO MÉTODO EMPREGADO
O experimento de duplicação física aqui descrito foi dividido em duas fases distintas,
que se diferenciam unicamente pelo conteúdo da fonte selecionada. Uma vez selecionadas as
fontes, o procedimento de duplicação em si consistiu na produção de um molde negativo de
borracha de silicone a partir do fonograma original, que então foi utilizado para gerar a cópia
positiva através de seu preenchimento com resina epóxi. Para cada fase foi produzido um
molde de silicone, e a partir de cada molde foram extraídas duas cópias. Ao final do processo
as cópias estavam prontas para ser reproduzidas sob as mesmas condições de leitura exigidas
pelo original. A descrição detalhada dos materiais e métodos utilizados para este
procedimento de duplicação é apresentada no Apêndice A.
105
Para a primeira fase, foi selecionado como matriz um fonograma contendo uma
gravação de uma performance musical, a partir de uma coleção de discos lançados pela
Funarte durante a década de 1970. Tal coleção possuía vários exemplares iguais de um
mesmo álbum, todos sem uso e em perfeito estado de conservação, o que proporcionou ao
experimento uma segurança adicional para o aperfeiçoamento do método sem que houvesse o
risco de danificar um exemplar único e insubstituível. Não houve nenhum julgamento a
respeito da qualidade da performance musical.
Para a segunda fase, em vez de um fonograma de conteúdo musical, foi selecionado
um fonograma contendo sinais de teste. A dificuldade de obtenção deste tipo de disco em
particular condicionou o experimento ao único exemplar de testes disponível. Apesar desta
limitação, o disco de teste apresentava um diâmetro igual ao do disco utilizado como matriz
original para a Fase 1, o que de alguma forma aproximou as condições das duas etapas.
Figura 4: Aparência externa dos dois discos utilizados no experimento. À esquerda, o disco utilizado como matriz durante a Fase 1. À direita, o disco de teste utilizado como matriz durante a Fase 2.
As duas fases foram realizadas com o intervalo de alguns meses entre si, e a princípio
não apresentaram alterações significativas no método de duplicação, embora a experiência
prática adquirida ao longo da primeira fase possa ter, de alguma forma, contribuído para a
realização da segunda.
As cópias da Fase 2 foram obtidas segundo o mesmo método adotado para a Fase 1,
com duas pequenas diferenças: na Fase 2, o molde não recebeu aplicação de silicone para
nenhuma das duas cópias, e a primeira cópia extraída recebeu como teste uma fina tela de
tecido sintético a fim de proteger e facilitar sua extração do molde. Adicionalmente, a
primeira cópia da Fase 2 também recebeu a adição de um corante de cor preta para permitir
106
sua posterior identificação. A segunda cópia, por sua vez, não recebeu a cobertura da tela e
nenhum corante, resultando em um disco incolor e ligeiramente opaco.
Após a duplicação, os originais e suas respectivas cópias foram reproduzidos por um
sistema de leitura apropriado e digitalizados segundo as orientações estabelecidas pelas
instituições de preservação abordadas ao longo do Capítulo 2 27. Uma vez digitalizados, o
sinal sonoro de cada exemplar foi analisado por intermédio de softwares específicos, e o
resultado obtido a partir de cada análise foi comparado com os demais, tornando possível a
avaliação da eficiência do procedimento de duplicação física dentro de parâmetros objetivos.
Figura 5: Molde de silicone ao lado dos fonogramas originais utilizados nas
Fases 1 e 2.
Figura 6: Cópia de resina à esquerda comparada com o disco original à direita.
27 Consulte NRPB (2006), Casey & Gordon (2007), IASA (2009) e Copeland (2008).
107
5.4 ETAPA DE DIGITALIZAÇÃO
Para a leitura e digitalização dos fonogramas, foram respeitadas as mesmas
recomendações práticas de fontes de referência adotadas para a digitalização de acervos
(CASEY & GORDON, 2007; NRPB, 2006). Por causa das restrições impostas pelo limitado
acesso tecnológico no contexto deste experimento, a utilização de alguns modelos de
equipamentos não reflete o que seria inicialmente considerado como ideal para um acervo de
padrão internacional, embora seja ainda possível uma análise que forneça informações
válidas. O quadro a seguir detalha a relação de equipamentos utilizados:
ITEM MODELO/DESCRIÇÃO
Toca-discos: Technics SL-1600MkII
Braço: Original do toca-discos
Cápsula: Ortofon OM-5E
Agulha: Ortofon OM-5
Pré-amplificador de phono: TC750 RIAA Phono Preamp
Cabos: Monster Cable StudioLink, 4 x 60 cm de comprimento cada, com conectores desbalanceados RCA.
Conversor A/D: RME Fireface 800 com referência de clock interno.
Formato do arquivo digital: .WAV / 96 kHz / 24 bits.
Software de gravação e edição:
Sony Sound Forge 7.0 Build 214 e Sony ACID 7.0
Monitoração: Monitores Dynaudio BM5a e fones de ouvido Sony MDR-7509hd
Quadro 1 – Relação de equipamentos e formatos utilizados
Tanto quanto possível, tentou-se manter a uniformidade de condições de leitura entre
as duas fases, a fim de evitar grandes discrepâncias nos resultados finais. Para isso, os
108
fonogramas das duas fases foram digitalizados em uma única sessão, através dos mesmos
equipamentos.
A tabela a seguir detalha os valores dos ajustes de leitura realizados para cada uma das
fases, considerando que foram listados apenas os parâmetros de ajuste permitidos pelo
equipamento de leitura utilizado:
PARÂMETRO FASE 1 FASE 2
Velocidade: 33 1/3 rpm 33 1/3 rpm
Tracking force: 1,75g 2,5g
Anti-skating: 1,75 2,5
VTA: 5,5mm 5,5mm
Quadro 2 – Relação dos parâmetros de leitura adotados para a reprodução dos fonogramas das Fases 1 e 2
Os originais foram a referência adotada para o alinhamento dos componentes de
leitura do toca-discos durante a digitalização. Houve a intenção de manter a leitura das cópias
sob as mesmas condições que demonstraram ser suficientes para a leitura apropriada dos
originais de cada fase. Portanto, os eventuais erros que ocorreram durante a leitura das cópias
foram apenas anotados e permaneceram sem correção.
5.4.1 Descrição da etapa de digitalização
Antes de sua reprodução, tanto os originais quanto suas respectivas cópias foram
lavados por imersão parcial em uma mistura de aproximadamente 70% de água destilada,
25% de álcool isopropílico e 5% de detergente neutro, e em seguida posicionados
verticalmente até que a evaporação do líquido retido na superfície de leitura estivesse
completa. A agulha (OM5) foi limpa a cada intervalo de leitura, através do procedimento
recomendado pelo manual do fabricante (Ortofon). O conversor A/D recebeu o sinal gerado a
partir do pré-amplificador de phono, acrescido de um ganho de aproximadamente de 12 dB do
estágio de amplificação de entrada da interface RME, para os dois canais. Durante a leitura, o
sistema de monitoração foi desligado e a monitoração foi feita unicamente por fones de
ouvido, a fim de evitar a indução de ressonâncias na agulha. Nenhuma ocorrência de
saturação do sinal analógico foi registrada durante a digitalização.
109
A ordem de reprodução e as adversidades encontradas durante a digitalização de cada
fonograma estão detalhadas no Quadro 3, a seguir:
SEQUÊNCIA FONOGRAMA OBSERVAÇÕES
1 Fase 1: Original (Banda Cabaçal do Ceará)
Parâmetros de leitura ajustados segundo a Tabela 2.
A transcrição ocorreu perfeitamente.
2 Fase 1: Cópia 1 (Amarela)
Na primeira tentativa de leitura, ocorreu uma perceptível variação de velocidade. Foi constatado que a causa era a falta de aderência entre o verso liso da cópia e a base de borracha do toca-discos. Como solução, foi adicionado um peso extra de cerca de 100 gramas sobre o rótulo do disco para aumentar a aderência e possibilitar a reprodução adequada.
3 Fase 1: Cópia 2 (Transparente)
O manuseio desta cópia fez surgir uma pequena rachadura em uma parte fragilizada da borda externa. Por essa razão, a leitura da primeira faixa do disco permaneceu incompleta. A reprodução foi normalizada a partir da segunda faixa em diante, e não prejudicou a continuidade do procedimento.
4 Fase 2: Original (Disco de Teste)
O fonograma original, desde antes de sua duplicação, apresentava uma deformação de relevo em sua borda (warp). Com isso, o parâmetro de tracking force teve de ser reajustado para 2,5g, e o anti-skating para 2,5, para que a agulha não perdesse o contato com o sulco do disco ao passar pela deformação. A deformidade não foi eliminada para que houvesse uma chance de avaliar a eficiência do procedimento de duplicação ao lidar com este tipo de adversidade.
5 Fase 2: Cópia 2 (Transparente)
Os ajustes de tracking force e anti-skating permaneceram em 2,5g e 2,5, respectivamente, para igualar as condições de leitura entre o original e as cópias. Mesmo assim, a leitura desta cópia foi problemática. A agulha perdeu contato em diversos pontos, especialmente a partir da metade da reprodução.
6 Fase 2: Cópia 1 (Escura)
A leitura desta cópia foi menos problemática do que a anterior. A agulha pulou com maior frequência apenas durante os 4 minutos iniciais, mas se estabilizou após esse tempo.
Quadro 3 – Relatório da etapa de digitalização dos fonogramas das Fases 1 e 2.
110
5.5 ANÁLISE DE DADOS
5.5.1 Fase 1: fonograma musical
Para a Fase 1, a Cópia 1 recebeu a adição de um corante de cor amarela em seu
polímero, produzindo um disco de aspecto amarelado e opaco. A Cópia 2 permaneceu incolor,
sem a aplicação de corantes. Após a etapa de digitalização, os três arquivos digitais referentes
ao original e as duas cópias da Fase 1 foram importados para o software de edição multipista
Sony ACID 7.0 apenas para que fosse possível a visualização simultânea dos três arquivos.
Uma vez dentro do software, os três arquivos foram sincronizados entre si de acordo com
referências visuais fornecidas pela própria forma de onda do sinal registrado, e em seguida foi
selecionado um segmento de 1 minuto de duração para ser usado como base de análise. A
Figura 7 mostra uma seção da tela do software com o gráfico dos três arquivos devidamente
sincronizados e identificados:
Figura 7: Visualização gráfica dos três arquivos digitalizados e sincronizados para um trecho de um minuto de duração, com o original na posição superior, a cópia 1 na posição intermediária e a cópia 2 na posição inferior. O gráfico representa a variação de amplitude no eixo vertical e o tempo no eixo horizontal, em segundos.
111
Figura 8: Visualização gráfica simultânea dos três arquivos digitalizados de uma seção ampliada do trecho entre 14 e 26 segundos da Figura 6, com o Original na posição superior, a Cópia 1 na posição intermediária e a Cópia 2 na posição inferior. O gráfico representa a variação de amplitude no eixo vertical e o tempo no eixo horizontal, em segundos.
Uma breve inspeção visual das Figuras 7 e 8 permite identificar a ocorrência de
distúrbios na forma de linhas verticais ao longo das Cópias 1 e 2. Tais distúrbios indicam a
presença de ruídos de caráter impulsivo no arquivo, percebidos auditivamente como pequenos
“estalos”. Uma análise visual superficial dos gráficos sugere inicialmente uma melhor
eficiência da Cópia 1 quando comparada com a Cópia 2. Excetuando-se a ocorrência dessas
anomalias, o gráfico que representa o sinal musical aparenta similaridade entre as três versões.
Como um primeiro recurso para investigação das diferenças existentes entre o original
e as cópias, foi realizada uma análise do tipo Long-Term Average Spectrum (LTAS), através
do plugin de visualização Voxengo SPAN v2.1 28, escolhido por sua capacidade para gerar
gráficos sobrepostos de dois sinais por vez.. As Figuras 9, 10 e 11 a seguir representam a tela
de visualização gerada pelo plugin, onde cada gráfico apresenta uma linha formada por pontos
que indicam a média de amplitude em decibéis (de -96 até 0 dB) para as frequências do
28 Disponível para download gratuito em <http://www.voxengo.com/product/span>, acessado em 22 fev. 2010.
112
espectro audível (de 20 Hz a 20 kHz) ao longo do trecho de 1 minuto delimitado na Figura
7. Como parâmetros de análise, o software utilizou em suas configurações internas uma
leitura de 32768 samples com sobreposição (overlapping) de 50%, e tempo de retenção de
100 segundos.
Figura 9: Gráfico LTAS do trecho de 1 minuto de um sinal musical, que descreve variação em amplitude em dB no eixo y e a faixa audível de frequências em Hz no eixo x. A linha azul representa os valores médios de amplitude do Original e a linha vermelha representa os valores médios de amplitude da Cópia 1.
Figura 10: Gráfico LTAS do trecho de 1 minuto de um sinal musical, que descreve a variação de amplitude em dB no eixo y e a faixa audível de frequências em Hz no eixo x. Neste gráfico a linha azul representa os valores médios de amplitude do Original e a linha vermelha os valores médios de amplitude da Cópia 2.
113
Figura 11: Gráfico LTAS do trecho de 1 minuto de um sinal musical, que descreve a variação de amplitude em dB no eixo y e a faixa audível de frequências em Hz no eixo x. Neste gráfico a linha azul representa os valores médios de amplitude da Cópia 1 e a linha vermelha os valores médios de amplitude da Cópia 2.
A análise dos gráficos LTAS apresentados nas Figuras 9, 10 e 11 foi menos
influenciada pelos distúrbios impulsivos do que a visualização amplitude/tempo das Figuras 7
e 8, e possibilitou uma melhor compreensão do desempenho das cópias com relação ao
original. Uma constatação positiva foi que os gráficos das cópias indicaram diversos pontos
de similaridade ao longo do espectro quando comparados com o original. As maiores
diferenças se concentraram especialmente nas faixas de frequências abaixo de 80 Hz e acima
de 2 kHz. Na comparação dos gráficos das Figuras 9 e 10, pode-se perceber uma melhor
eficiência da Cópia 1, que na Figura 9 apresenta maior proximidade ao gráfico do Original do
que a Cópia 2 na Figura 10. O gráfico da Figura 11, que sobrepõe os valores das Cópias 1 e 2,
demonstra que a linha da média para a Cópia 2 está acima da linha da Cópia 1, o que sugere
que a maior ocorrência de ruídos impulsivos elevou a média de amplitude da segunda cópia.
Com isso, a Cópia 1 pode ser considerada mais precisa do que a Cópia 2.
Para proporcionar um novo ângulo de comparação entre o desempenho dos originais e
suas cópias, foi realizada uma análise espectral complementar, desta vez através do aplicativo
de visualização Photosounder Versão 1.7.3, capaz de gerar espectrogramas a partir do arquivo
de áudio digitalizado. Assim, os mesmos segmentos apresentados pela Figura 7 foram mais
uma vez processados, e o gráfico resultante apresentado nas Figuras 12, 13 e 14, a seguir:
114
Figura 12: Espectrograma do trecho de 1 minuto do sinal musical extraído do Original. O eixo x representa o tempo em segundos e o eixo y representa o espectro audível em hertz. A variação de contraste indica a diferença de intensidade de amplitude para uma determinada frequência em um dado momento, onde pontos mais claros correspondem a frequências de maior intensidade e pontos mais escuros a frequências de menor intensidade.
Figura 13: Espectrograma do trecho de 1 minuto do sinal musical extraído da Cópia 1. O eixo x representa o tempo em segundos e o eixo y representa o espectro audível em hertz. A variação de contraste indica a diferença de intensidade de amplitude para uma determinada frequência em um dado momento, onde pontos mais claros correspondem a frequências de maior intensidade e pontos mais escuros a frequências de menor intensidade.
Figura 14: Espectrograma do trecho de 1 minuto do sinal musical extraído da Cópia 2. O eixo x representa o tempo em segundos e o eixo y representa o espectro audível em hertz. A variação de contraste indica a diferença de intensidade de amplitude para uma determinada frequência em um dado momento, onde pontos mais claros correspondem a frequências de maior intensidade e pontos mais escuros a frequências de menor intensidade.
115
Na visualização dos espectrogramas das Cópias 1 e 2 (Figuras 13 e 14) é possível
identificar vestígios da ocorrência dos mesmos ruídos impulsivos visualmente identificados
nos gráficos das Figuras 7 e 8. Desta vez, os ruídos impulsivos são representados como uma
série de finos traços verticais, especialmente destacados no trecho de silêncio entre
aproximadamente 16 e 21 segundos. Mais uma vez, pode ser identificada maior concentração
de ruídos impulsivos no gráfico da Cópia 2 (Figura 14) do que no gráfico da Cópia 1 (Figura
13). É interessante apontar que os distúrbios impulsivos abrangem uma grande parte do
espectro audível, dada a extensão dos traços verticais que os representam.
A partir da análise dos gráficos apresentados, é possível concluir que a Cópia 1 foi
superior à Cópia 2 no trecho analisado. Entre os prováveis fatores que possam ter contribuído
para a superioridade da Cópia 1, pode ser considerado o fato de que a Cópia 1 foi a primeira
cópia a ser extraída do molde. Com relação à presença de ruídos impulsivos em ambas as
cópias, algumas prováveis causas são a limpeza insuficiente da superfície do disco original e
do molde, bem como a formação de bolhas microscópicas ao longo do processo de obtenção
do molde e das cópias.
Em uma análise qualitativa, uma breve audição dos trechos selecionados permite
rapidamente destacar a superioridade da Cópia 1. Apesar da ocorrência incessante de ruídos
impulsivos, ainda é possível identificar com clareza o conteúdo musical. Com a exceção de
erros de leitura isolados, as duas cópias permitem ser reproduzidas e manuseadas da mesma
forma que o original, o que é um indicativo prévio de que podem de fato existir aplicações
práticas para este experimento.
5.5.2 Fase 2 : disco de teste
A utilização de sinais de referência conhecidos já é uma prática desde muito
recomendada para contextos de preservação, através de conceitos como o Rosetta Tone
(HELMUT, SCHÜLLER & PICHLER, 1992) e das próprias recomendações de Storm (1983)
e Brock-Nannestad (1989). Para o contexto deste experimento, a utilização de sinais de teste é
útil para gerar condições mais facilmente mensuráveis para a avaliação da eficiência das
cópias com relação ao original. Como matriz, foi utilizado um disco de 17,5 cm e 33 1/3 rpm
contendo sinais de teste. O disco selecionado é de fabricação nacional e foi possivelmente
direcionado ao mercado amador de entusiastas de áudio, o que detrai um pouco da
confiabilidade dos sinais de teste informados pelo fabricante. A Figura 15 a seguir reproduz a
frente e o verso da capa do disco:
116
Figura 15: Fotografia da frente e do verso da capa do disco de teste utilizado como
matriz para a Fase 2 do experimento.
O lado selecionado para cópia foi o lado B, cujo conteúdo é descrito no rótulo do
disco, reproduzido na Figura 16, a seguir:
Figura 16: Ampliação do rótulo do disco de teste, que descreve o
conteúdo do Lado B, copiado pelo experimento.
Conforme previamente descrito, este disco possuía uma deformidade em sua borda
externa, que causou problemas para a leitura durante a etapa de digitalização dos fonogramas
descrita no Quadro 3. A deformidade é detalhada na Figura 17, a seguir:
117
Figura 17: A deformidade da borda externa do disco de teste vista por quatro ângulos diferentes.
Para esta segunda fase, a Cópia 1 foi identificada pela adição de um corante negro em
sua composição, e a Cópia 2 permaneceu incolor, sem a aplicação de corantes. Após a etapa
de digitalização, os três arquivos digitais referentes ao original e as duas cópias da Fase 1
foram importados para o software de edição multipista Sony ACID 7.0 apenas para que fosse
possível a visualização simultânea dos três arquivos. Uma vez dentro do software, os três
arquivos foram sincronizados entre si de acordo com referências visuais fornecidas pela
própria forma de onda do sinal registrado.
118
Figura 18: Representação gráfica simultânea dos três arquivos digitalizados do disco de teste, mostrando o trecho correspondente aos três sinais de teste de 1 kHz, 100 Hz e 10 kHz, com o original na posição superior, a cópia 1 na posição intermediária e a cópia 2 na posição inferior. O gráfico representa a variação de amplitude no eixo vertical e o tempo no eixo horizontal.
A Figura 18 permite constatar a existência de ruídos impulsivos nos gráficos das
Cópias 1 e 2, com maior severidade para a Cópia 2. As descontinuidades no gráfico da Cópia
2 ocorreram por impossibilidade de leitura contínua, causada pela deformação da borda do
disco. Adicionalmente, a regularidade das anomalias presentes no gráfico da Cópia 2 indica
um tipo severo de ruído cíclico. Embora tais adversidades fossem suficientes para o descarte
da Cópia 2 neste trecho, ainda foi possível restringir a análise de forma a contornar os efeitos
causados pela deformidade da borda do disco.
5.5.2.1 Varredura de frequências
O primeiro trecho analisado foi a primeira faixa do disco de teste, que consiste de um
sinal senoidal que faz uma varredura de frequências entre 50 Hz e 12 kHz (segundo
informações do rótulo do disco de teste). O objetivo não era confirmar a precisão do valor
medido com o valor informado pelo fabricante do disco, mas sim comparar a proximidade
entre os valores medidos das cópias e o valor do disco original.
O primeiro passo para análise foi a avaliação do espectro de frequências, novamente
realizada através do plugin Voxengo Spam. Optou-se por não utilizar o gráfico LTAS, baseado
na média dos valores para cada ponto, pois para tanto seria necessário que todos os arquivos
119
possuíssem exatamente a mesma duração — o que não ocorreu por consequência das
descontinuidades provocadas pelos erros de leitura. Ao invés do LTAS, foi utilizado o gráfico
do espectro audível contendo apenas os valores máximos de amplitude registrados durante a
varredura de frequências. Dessa forma, a análise não foi comprometida pela descontinuidade
dos arquivos de áudio digitalizados.
Figura 19: Gráfico do espectro sonoro audível, registrado ao longo do sinal de varredura de freqüências. Os valores máximos de amplitude do fonograma Original estão representados pela linha azul, e os valores máximos de amplitude da Cópia 1 estão representados pela linha vermelha. O vale entre 100 e 200 Hz no gráfico da Cópia 1 é indício de uma descontinuidade na leitura durante este trecho da varredura.
Figura 20: Gráfico do espectro sonoro audível, registrado ao longo do sinal de varredura de freqüências. Os valores máximos de amplitude do fonograma Original estão representados pela linha azul, e os valores máximos de amplitude da Cópia 2 estão representados pela linha vermelha.
120
A comparação visual entre os gráficos das Figuras 19 e 20 torna possível constatar
que, ao menos em termos de resposta de frequência, as duas cópias físicas apresentaram um
desempenho bastante similar ao fonograma original dentro da faixa de 50 Hz a 12 kHz
determinada pelo sinal de teste. As maiores divergências, no entanto, ocorreram na faixa do
espectro inferior a 100 Hz, mas que podem estar relacionadas a pulsos esporádicos de baixa
frequência provocados pelas descontinuidades de leitura.
5.5.2.2 Sinal individual de 1 kHz
A segunda faixa do disco de teste original contém um sinal com forma de onda
senoidal e frequência informada de 1 kHz. Neste passo, deve ser averiguado até que ponto as
cópias são capazes de reproduzir o mesmo sinal, em termos de frequência e amplitude. Para a
geração do gráfico, a faixa de frequências escolhida foi de 900 Hz até 1100 Hz. O limite
superior para a faixa de amplitude foi de -35 dB, e o limite inferior foi de -110 dB. A duração
dos fragmentos analisados foi de aproximadamente 17 segundos para o Original, 16 segundos
para a Cópia 1 e 11 segundos para a Cópia 2.
Figura 21: Espectrograma tridimensional para o sinal de 1 kHz do fonograma original, onde o eixo x representa a frequência em Hz, o eixo y representa a amplitude em dB e o eixo z representa o tempo em segundos.
121
Figura 22: Espectrograma tridimensional para o sinal de 1 kHz da Cópia 1, onde o eixo x representa a frequência em Hz, o eixo y representa a amplitude em dB e o eixo z representa o tempo em segundos.
Figura 23: Espectrograma tridimensional para o sinal de 1 kHz da Cópia 2, onde o eixo x representa a frequência em Hz, o eixo y representa a amplitude em dB e o eixo z representa o tempo em segundos. Através da comparação dos gráficos das Figuras 21, 22 e 23, pode ser constatado que
o pico que de amplitude que representa a frequência de 1 kHz sofreu um perceptível
“alargamento” de sua base nas Cópias 1 e 2, quando comparadas com o Original. Tal
“alargamento” da base do pico de amplitude sugere a ocorrência de uma ligeira modulação de
122
frequência, cuja provável causa podem ter sido a combinação entre uma sutil distorção da
circunferência do molde ou da cópia durante o processo de duplicação e erros de leitura
provocados pela replicação nas cópias da deformidade presente na borda do disco original. O
aumento do nível médio de amplitude nos vales dos gráficos das Cópias 1 e 2 indica a
elevação do nível de ruído de fundo, que pode ser facilmente confirmada durante a audição
dos respectivos trechos. Especificamente para o gráfico da Cópia 2 (Figura 23), a aparência
uniforme do ruído de fundo foi causada por um distúrbio presente neste trecho do disco, que
gerou um ruído impulsivo cíclico de grande amplitude. Com base na comparação dos três
gráficos das Figuras 21, 22 e 23, portanto, a Cópia 1 pode ser considerada como a mais
próxima do original para esta freqüência de 1 kHz.
5.5.2.3 Sinal individual de 100 Hz
O processo de análise para a terceira faixa é bastante similar ao da faixa anterior.
Desta vez, o sinal senoidal possui uma frequência de 100 Hz. Para a geração do gráfico, a
faixa de frequências escolhida foi de 50 Hz até 200 Hz. O limite superior para a faixa de
amplitude foi de -35 dB, e o limite inferior foi de -110 dB. A duração dos fragmentos
analisados foi de aproximadamente 17 segundos para o Original e a Cópia 1 e 12 segundos
para a Cópia 2.
Figura 24: Espectrograma tridimensional para o sinal de 100 Hz do fonograma original, onde o eixo x representa a frequência em Hz, o eixo y representa a amplitude em dB e o eixo z representa o tempo em segundos.
123
Figura 25: Espectrograma tridimensional para o sinal de 100 Hz da Cópia 1, onde o eixo x representa a frequência em Hz, o eixo y representa a amplitude em dB e o eixo z representa o tempo em segundos.
Figura 26: Espectrograma tridimensional para o sinal de 100 Hz da Cópia 2, onde o eixo x representa a frequência em Hz, o eixo y representa a amplitude em dB e o eixo z representa o tempo em segundos.
Através da comparação dos gráficos das Figuras 24, 25 e 26, percebe-se que o nível
do pico para a frequência de 100 Hz praticamente não sofreu redução para as Cópias 1 e 2. A
modulação de frequência anteriormente encontrada no sinal de 1 kHz também foi menos
perceptível para a frequência de 100 Hz, tanto no original quanto para as duas Cópias. Por
outro lado, o nível de ruído de fundo sofreu acréscimo para a Cópia 1 em comparação com o
124
gráfico do Original. A Cópia 2 apresentou novamente problemas com distúrbios impulsivos, o
que dificulta um dimensionamento exato do nível de ruído de fundo.
5.5.2.4 Sinal Individual de 10 kHz
Finalmente, o quarto sinal do disco de testes é um sinal senoidal de 10 kHz, cujo
procedimento de análise permanece similar aos dois sinais anteriores. Para a geração do
gráfico, a faixa de frequências escolhida foi de 9000 Hz até 11000 Hz. O limite superior para
a faixa de amplitude foi de -35 dB, e o limite inferior foi de -110 dB. A duração dos
fragmentos analisados foi de aproximadamente 16 segundos para o Original, 13 segundos
para a Cópia 1 e 17 segundos para a Cópia 2.
O sinal de 10 kHz se situa na zona do espectro de freqüências que apresentou a
menor eficiência segundo os gráficos LTAS apresentados nas Figuras 9, 10 e 11. De maneira
geral, as duas cópias de ambas as fases apresentaram um aumento progressivo do nível de
ruído acima de frequências em torno de 2 kHz. A diferença de nível de ruído para esta parte
superior do espectro chegou a registrar valores em torno de 12 dB para a faixa entre 10 kHz e
20 kHz (Figura 10).
Figura 27: Espectrograma tridimensional para o sinal de 10 kHz do fonograma original, onde o eixo x representa a frequência em Hz, o eixo y representa a amplitude em dB e o eixo z representa o tempo em segundos.
125
Figura 28: Espectrograma tridimensional para o sinal de 10 kHz da Cópia 1, onde o eixo x representa a frequência em Hz, o eixo y representa a amplitude em dB e o eixo z representa o tempo em segundos.
Figura 29: Espectrograma tridimensional para o sinal de 10 kHz da Cópia 2, onde o eixo x representa a frequência em Hz, o eixo y representa a amplitude em dB e o eixo z representa o tempo em segundos.
A comparação dos gráficos das Figuras 27, 28 e 29 para este sinal de 10 kHz permite
constatar que ambas as Cópias apresentaram um nível de ruído de fundo mais elevado do que
o Original, com ligeira vantagem para a Cópia 1. Além da elevação do nível de ruído de
fundo, ambas as Cópias apresentaram indícios de modulação de frequência, tal como havia
sido verificado para o sinal de 1 kHz. Houve também uma redução de amplitude mais
126
acentuada para a Cópia 2, da ordem de aproximadamente 3 dB, o que representa o pior
desempenho para as cópias dentre os demais sinais analisados (1 kHz e 100 kHz). Com isso, a
Cópia 1 mais uma vez reitera a superioridade sobre a Cópia 2.
5.5.3 Análise de Correlação
Como última etapa de análise do experimento, foi realizada a análise da correlação
entre amostras de trechos dos originais das cópias físicas, a fim de que fossem gerados dados
que facilitassem a compreensão da eficiência da cópia dentro de parâmetros objetivos. Com
base na tendência apresentada pelas etapas de análise anteriores, foi selecionada apenas a
primeira cópia de cada molde das Fases 1 e 2, pois a segunda cópia apresentou uma redução
de qualidade que não justificaria sua inclusão nesta etapa.
A primeira dificuldade para uma análise da correlação entre pontos de dois arquivos de
áudio diferentes é uma consequência da própria natureza do procedimento de digitalização do
sinal analógico. Se um mesmo suporte mecânico fosse submetido a uma série leituras e
digitalizações consecutivas, mesmo que se utilizassem sempre os mesmos ajustes e
equipamentos, ainda assim poderia ser dito que cada um dos arquivos digitais resultantes seria
“diferente” dos demais. Em outras palavras, a digitalização dificilmente irá coletar as
amostras numéricas de um sinal analógico complexo exatamente nos mesmos pontos, mesmo
que fossem replicadas todas as condições de leitura para que isto ocorresse. Embora esta
imprecisão seja muitas vezes considerada imperceptível por alguns entusiastas (PERLMAN,
2004), ainda pode ser percebida através de ferramentas de análise, e pode ser até certo ponto
considerada uma “distorção” do sinal original, o que alimenta infindáveis debates sobre qual
seria a melhor taxa de amostragem para a preservação (SCHÜLLER, 2001, IASA, 2009,
CASEY & GORDON, 2007).
Para o caso da análise de correlação, esta imprecisão da amostra digital dificulta o
sincronismo entre dois arquivos digitais, pois é necessário que cada ponto da forma de onda
original seja comparado com seu equivalente mais próximo na forma de onda da cópia. A
consequência desta aproximação é que existe um pequeno nível de defasagem capaz de
influenciar no cálculo do coeficiente de correlação. Para minimizar ao máximo este efeito, foi
necessária, portanto, uma edição manual e uma análise criteriosa para que fosse possível
determinar o ponto de sincronismo mais adequado para o cálculo da correlação. Ao considerar
que todos os arquivos foram digitalizados a uma taxa de amostragem de 96 kHz e resolução
de 24 bits, é provável que esta aproximação não apresente efeitos perceptíveis para o ouvinte.
127
Para a análise da Cópia 1 da Fase 1, foi selecionado um trecho de 0,1 segundo do
fonograma original, assim como o trecho equivalente da Cópia 1. As Figuras 30 e 31 a seguir
ilustram a seleção do ponto de sincronismo para os trechos selecionados da Fase 1:
Figura 30: Seleção do ponto de sincronismo para o início do trecho de análise. Cada ponto na linha do gráfico representa uma amostra individual (sample).
Figura 31: Visualização ampliada do ponto de sincronismo mais aproximado entre os dois arquivos. Cada ponto na linha do gráfico equivale a uma amostra individual (sample).
128
A ampliação do ponto de sincronismo apresentada na Figura 31 revela a ligeira
defasagem entre as duas posições, que é menos perceptível na visualização da Figura 30. Uma
vez definidos os pontos de referência, os dois arquivos foram separados em dois canais
(esquerdo e direito), e em seguida cada canal foi subdividido em 10 pequenas partes com 0,01
segundo de duração cada. Tal divisão proporcionou 960 pontos de amostragem por parte, com
um total de 9600 pontos e 0,1 segundo de duração para o trecho total incluindo todas as 10
partes. A divisão dos arquivos é delimitada na Figura 32 a seguir:
Figura 32: Divisão adotada para o cálculo do coeficiente de correlação para os arquivos de áudio da Fase 1, com o Original na posição superior e a Cópia 1 na posição inferior.
A segmentação dos arquivos de áudio gerou um total de 44 fragmentos. Cada
fragmento foi exportado em formato de texto, contendo os valores discretos de cada ponto de
amostragem. Essa lista de valores foi inserida em uma planilha, onde foi realizado o cálculo
do coeficiente de correlação de Pearson entre o conjunto de valores de cada parte do Original
e o conjunto de valores da parte equivalente da Cópia 1. Os Quadros 4 e 5 a seguir
relacionam os valores do coeficiente de correlação de Pearson (ρ) para fragmentos
equivalentes dos canais esquerdo e direito, respectivamente.
129
Original - Fase 1
(canal esquerdo)
Cópia 1 - Fase 1
(canal esquerdo) Coeficiente de Correlação
(ρ)
Parte 1 Parte 1 0,988
Parte 2 Parte 2 0,978
Parte 3 Parte 3 0,877
Parte 4 Parte 4 0,873
Parte 5 Parte 5 0,844
Parte 6 Parte 6 0,610
Parte 7 Parte 7 0,620
Parte 8 Parte 8 0,886
Parte 9 Parte 9 0,938
Parte 10 Parte 10 0,812
Partes 1 a 10 Partes 1 a 10 0,852
Quadro 4 – Relação de coeficientes de correlação para trechos equivalentes do canal esquerdo dos arquivos da Fase 1.
Original - Fase 1
(canal direito)
Cópia 1 - Fase 1
(canal direito) Coeficiente de Correlação
(ρ)
Parte 1 Parte 1 0,989
Parte 2 Parte 2 0,978
Parte 3 Parte 3 0,881
Parte 4 Parte 4 0,896
Parte 5 Parte 5 0,858
Parte 6 Parte 6 0,635
Parte 7 Parte 7 0,661
Parte 8 Parte 8 0,897
Parte 9 Parte 9 0,945
Parte 10 Parte 10 0,836
Partes 1 a 10 Partes 1 a 10 0,865
Quadro 5 – Relação de coeficientes de correlação para trechos equivalentes do canal direito dos arquivos da Fase 1.
130
Para os fonogramas da Fase 2, o processo de obtenção dos coeficientes de correlação
foi o mesmo apresentado para a Fase 1. No entanto, apesar de o Original da Fase 2 ser um
disco de sinais de teste, o trecho selecionado para análise foi o da narração que apresenta cada
sinal. Dessa forma, foi possível obter uma impressão da eficiência da cópia para gravações de
voz sem o acompanhamento de instrumentos musicais.
Primeiramente, foi estabelecido um ponto de sincronismo entre os dois arquivos
(Original e Cópia 1) para o trecho contendo a narração. A partir da referência, os arquivos
foram separados em dois canais (esquerdo e direito), e em seguida cada canal foi subdividido
em 10 partes com 0,01 segundo de duração cada. A divisão proporcionou 960 pontos de
amostragem por parte, com um total de 9600 pontos e 0,1 segundo de duração para o trecho
total incluindo todas as 10 partes. A divisão dos arquivos da Fase 2 é delimitada na Figura 33
a seguir:
Figura 33: Divisão adotada para o cálculo do coeficiente de correlação para os arquivos de áudio da Fase 2, com o Original na posição superior e a Cópia 1 na posição inferior.
A segmentação dos arquivos de áudio gerou novamente um total de 44 fragmentos.
Cada fragmento foi exportado separadamente em formato de texto, em um arquivo contendo
os valores discretos de cada ponto de amostragem. Essa lista de valores foi inserida em uma
planilha, onde foi realizado o cálculo do coeficiente de correlação de Pearson entre o conjunto
de valores de cada parte do Original e o conjunto de valores da parte equivalente da Cópia 1.
131
Os Quadros 6 e 7 a seguir relacionam os valores do coeficiente de correlação de
Pearson (ρ) para fragmentos equivalentes dos canais esquerdo e direito, respectivamente.
Original - Fase 2
(canal esquerdo)
Cópia 1 - Fase 2
(canal esquerdo) Coeficiente de Correlação
(ρ)
Parte 1 Parte 1 0,982
Parte 2 Parte 2 0,980
Parte 3 Parte 3 0,980
Parte 4 Parte 4 0,973
Parte 5 Parte 5 0,974
Parte 6 Parte 6 0,984
Parte 7 Parte 7 0,989
Parte 8 Parte 8 0,995
Parte 9 Parte 9 0,997
Parte 10 Parte 10 0,976
Partes 1 a 10 Partes 1 a 10 0,981
Quadro 6 – Relação de coeficientes de correlação para trechos equivalentes do canal esquerdo dos arquivos da Fase 2.
Original - Fase 2
(canal direito)
Cópia 1 - Fase 2
(canal direito) Coeficiente de Correlação
(ρ)
Parte 1 Parte 1 0,994
Parte 2 Parte 2 0,976
Parte 3 Parte 3 0,979
Parte 4 Parte 4 0,980
Parte 5 Parte 5 0,971
Parte 6 Parte 6 0,982
Parte 7 Parte 7 0,989
Parte 8 Parte 8 0,994
Parte 9 Parte 9 0,997
Parte 10 Parte 10 0,977
Partes 1 a 10 Partes 1 a 10 0,979
Quadro 7 – Relação de coeficientes de correlação para trechos equivalentes do canal direito dos arquivos da Fase 2.
132
O maior valor para o coeficiente de correlação foi atingido na Parte 8 referente ao
canal direito da Fase 2 (Quadro 7), onde ρ = 0,997. No entanto, o maior valor geral de ρ para
um trecho completo (Partes 1 a 10) é encontrado na correlação do canal esquerdo da Fase 2,
onde ρ = 0,981 (Quadro 6). Os menores valores ocorreram nas Partes 6 e 7 de ambos os
canais da Fase 1 (Quadros 4 e 5), onde ρ < 0,7. Após uma rápida consulta aos arquivos
originais, foi verificado que os trechos das Partes 6 e 7 da Cópia 1 (Fase 1) apresentaram uma
ligeira defasagem com relação aos fragmentos correspondentes do sinal original, para ambos
os canais. Tal defasagem pode ter sido causada por um erro da agulha de leitura neste ponto
específico, e se normalizou na Parte 8 em diante. De uma forma geral, os coeficientes de
correlação foram maiores para os arquivos da Fase 2 do que para os arquivos da Fase 1.
Apesar disso, não existem dados suficientes para concluir se realmente existe superioridade da
Fase 2 sobre a Fase 1, pois seria necessário que fosse realizado um levantamento mais
abrangente.
5.6 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A análise da correlação dos sinais digitalizados a partir de ambas as fases trouxe
resultados positivos para o experimento. Foi revelado que o método consegue alcançar um
índice de correlação tão alto como ρ = 0,997, ainda que para um pequeno fragmento de 0,01
segundo. Isto torna possível prever que, através do controle das condições ideais, o
experimento é capaz de atingir um nível significativo de semelhança com o original. No
presente cenário, entretanto, ainda são vários os obstáculos a serem vencidos para que um
controle suficientemente elevado das condições seja alcançado.
Um dos primeiros pontos passíveis de melhoria é a ligeira modulação de frequências
constatada através da análise dos sinais individuais de teste da Fase 2. Este tipo de modulação
pode ter sido causado principalmente por distorções da circunferência da cópia com relação
ao original, além da perfuração imprecisa do orifício central. As distorções da circunferência
podem ser uma consequência da deformação do molde durante seu processo de extração e
cura, o que exige que sejam observadas as condições ideais para que a cura do molde seja
homogênea, e para que a separação do molde curado não envolva a aplicação de forças que
causem sua deformação. Uma das possibilidades que se revelam a partir deste problema é a
manipulação do formato do molde para a correção de suportes originais previamente
deformados ou com perfuração irregular, que pode ser explorada em futuras versões deste
método.
133
Outros problemas foram apontados pelos resultados apresentados pelas análises dos
sinais de teste individuais e da varredura de frequências da Fase 2. Embora os gráficos dos
sinais individuais de 100 Hz, 1 kHz e 10 kHz indiquem que as perdas de amplitude do sinal ao
longo do processo de duplicação são mínimas — ao menos na faixa de frequências abaixo de
10 kHz — as análises LTAS dos espectros de frequência das Fases 1 e 2 revelam uma
tendência de elevação contínua do nível de ruído de fundo a partir de cerca de 2 kHz, o que
contribui para uma sensação qualitativa de perda de qualidade entre original e cópia. Apesar
disso, as cópias de melhor desempenho apresentaram uma resposta de relativa fidelidade na
faixa entre 80 Hz e 2 kHz, como por exemplo a Cópia 1 da Fase 1 (Figura 9).
Um dos problemas mais frequentes, além da elevação do nível de ruído de fundo, foi a
elevada ocorrência de ruídos de natureza impulsiva nas cópias das duas fases. A causa mais
provável para este problema é a contaminação da superfície do molde negativo pelo contato
com partículas presentes na superfície do disco original e no ar ambiente, além da formação
de bolhas durante o processo de obtenção do molde e das cópias.
As cópias de segunda geração (Cópias 2) apresentaram uma ocorrência de ruídos
impulsivos mais frequente do que as cópias de primeira geração, e em alguns casos a leitura
foi impossibilitada, como na Cópia 2 da Fase 2. A superioridade da primeira geração de
cópias obtidas a partir de cada molde indica que o molde perde sua eficiência ao longo de
cópias consecutivas, possivelmente pelo desgaste de sua superfície. Por esta razão,
recomenda-se a extração de apenas uma cópia de resina a partir de cada molde de silicone.
Algumas soluções possíveis para o controle do nível de ruído de fundo e para a
diminuição da ocorrência de estalos são o isolamento e a purificação do ambiente do
experimento, associado com um procedimento de limpeza da superfície da matriz que seja de
máxima eficiência. A formação de bolhas, por sua vez, pode ser minimizada através do
aperfeiçoamento do processo de aplicação da primeira camada do molde sobre o suporte
original, e pela utilização de borrachas de silicone de diferentes viscosidades.
Este procedimento utilizou resinas de uso geral, e isto pode ter contribuído em parte
para restrições no desempenho das cópias. Existem grandes chances de que o trabalho com
resinas feitas sob encomenda facilite a eliminação dos problemas relacionados com ruídos e
possibilite cópias de maior precisão. O contato com diferentes fabricantes e com profissionais
especializados neste tipo de material pode contribuir diretamente nessa direção.
Diante de tais limitações, deve ser considerado o fato de que este experimento utilizou
discos de microssulco de 33 1/3 rpm. Por analogia, é possível prever que tais problemas de
qualidade percebidos ao longo da etapa de análise tenham um efeito menos perceptível sobre
134
formatos mais antigos como o disco de sulco largo (78 rpm) e o cilindro. Uma evolução
lógica para este experimento seria a averiguação desta hipótese com a adaptação do método
apresentado para a duplicação desses dois suportes mecânicos.
Algumas possibilidades de aplicação antes imprevistas surgiram ao longo do curso do
experimento. Por exemplo, foi cogitado se o contato da superfície do suporte original com o
silicone utilizado para a obtenção do molde poderia proporcionar uma forma de limpeza física
da superfície do fonograma, considerando que o material possui capacidade para adentrar os
sulcos do disco e retirar partículas de sujeira ali depositadas.
Outra possibilidade de aplicação é a utilização do procedimento para que se obtenha
uma cópia inteira a partir de um suporte original anteriormente fragmentado, onde os pedaços
do disco quebrado seriam reunidos em uma espécie de armação que possibilitaria a extração
de um molde único. Esta aplicação em particular seria de grande valor para digitalização de
discos quebrados, uma vez que a leitura do disco por aparelhos convencionais é
impossibilitada nestas condições. Aplicações como essas são plausíveis diante dos resultados
obtidos, e podem ser futuramente desenvolvidas em trabalhos paralelos. Contudo, é possível
que existam muitas outras possibilidades ainda não vislumbradas neste presente trabalho.
De um modo geral, a iniciativa demonstrou ser promissora, e é provável que o futuro
desenvolvimento da técnica apresentada neste experimento proporcione resultados ainda mais
satisfatórios. O próprio aperfeiçoamento das ferramentas de análise do sinal pode permitir
uma melhor compreensão das diferenças apresentadas entre original e cópias. Paralelamente,
o desenvolvimento do procedimento de obtenção do molde também pode contribuir
diretamente para o aumento do nível de qualidade verificado. Assim, é esperado que o
envolvimento de profissionais de áreas complementares como especialistas em materiais
sintéticos e análise de sinais possa contribuir imensamente para a evolução dos métodos aqui
propostos.
135
CONCLUSÃO
A fundamentação teórica baseada em autores voltados para a restauração e
preservação no campo das artes visuais demonstrou ser uma abordagem válida, pois foram
identificadas várias congruências entre as teorias discutidas e as práticas atuais de tratamento
de suportes sonoros. Dentre as similaridades, podem ser citados os princípios de
distinguibilidade e reversibilidade para as intervenções realizadas, além da importância da
documentação e da avaliação crítica. Desta forma, é recomendável que estudos mais
aprofundados sobre as linhas de pensamento de preservação e restauração oriundas de outras
especialidades artísticas sejam considerados para embasar futuras discussões sobre a
preservação e restauração de suportes audiovisuais.
Sobre as abordagens específicas para o tratamento de registros sonoros, apresentadas
no decorrer do terceiro capítulo, pode-se dizer que não é possível destacar apenas um autor
cujas recomendações sejam incontestavelmente superiores às dos demais. As propostas
individuais provaram ser complementares entre si, e sua comparação revelou mais
similaridades do que divergências, o que contribui para a consideração coletiva dos autores
apresentados.
Ao longo deste trabalho, ficou clara a importância exercida por profissionais de
preservação e gestores de acervos no conjunto de atividades e decisões que compõem uma
estrutura de preservação eficiente e bem-elaborada. Paralelamente, a figura do restaurador
provou ser central para a obtenção de resultados adequados para cada contexto específico,
especialmente durante a identificação de pontos passíveis de restauração e a execução das
medidas corretivas cabíveis. Nesse sentido, o adequado treinamento para este tipo de função,
principalmente em contextos de preservação, não pode ser subestimado.
Finalmente, com relação aos resultados apresentados pelo experimento de duplicação
física, é possível concluir que o experimento foi bem-sucedido em seu objetivo primário de
produzir uma cópia capaz de ser manuseada e reproduzida tal como o suporte original. A
cópia de resina demonstrou ser capaz de suportar com êxito as mesmas condições de leitura
aplicadas ao original, e não exigiu nenhum tipo de adaptação do equipamento de leitura para
sua execução.
A análise da eficiência das cópias digitalizadas com relação aos seus respectivos
originais apresentou resultados promissores. A maior precisão foi observada para sinais na
faixa de frequências entre 80 Hz e 2 kHz, onde a análise espectral média dos trechos avaliados
demonstrou uma correspondência muito próxima entre os valores de amplitude dos sinais de
136
originais e cópias. Na faixa de frequências acima de 2 kHz, entretanto, foi detectada uma
crescente elevação do nível de ruído, o que indica uma progressiva diminuição da eficiência
do método em altas frequências. As alterações detectadas em cada cópia na faixa de
freqüência abaixo de 80 Hz, por sua vez, puderam ser atribuídas a ruídos esporádicos de baixa
freqüência presentes em vários dos trechos analisados.
O tipo de ruído mais comum apresentado pelas cópias foi o ruído impulsivo, com
sonoridade semelhante a estalos de curta duração e grande amplitude. A ocorrência deste tipo
de ruído foi atribuída a um número de causas prováveis que inclui, entre outras, a limpeza
insuficiente da superfície do disco original, além da formação de bolhas e a contaminação por
impurezas durante o processo de obtenção do molde. A recorrência e a amplitude dos ruídos
impulsivos foram agravadas nas cópias extraídas a partir de um molde já utilizado. Com isso,
a recomendação é de que seja extraída apenas uma cópia a partir de cada molde, a fim de que
se mantenha um melhor nível de qualidade.
Apesar da presença de ruídos nas cópias inexistentes no original, a análise do
coeficiente de correlação para pequenos fragmentos de 0,01 segundo indicou um bom nível de
proximidade para trechos equivalentes dos originais e cópias, com coeficientes tão altos
quanto ρ = 0,997. Isto é um indício de que, uma vez identificadas e combatidas as causas dos
ruídos apresentados pelas cópias, o método proposto possui capacidade para gerar cópias de
maior precisão.
De acordo com o desempenho apresentado, a atual versão do experimento pode ser
recomendável para diversas aplicações nas quais o presente nível de qualidade atingido seja
considerado como suficiente. Caso este experimento seja reproduzido em um contexto de
restauração, seu alinhamento mais provável é com a corrente de reconstituição histórica, uma
vez que as cópias obtidas possuem capacidade para serem reproduzidas através de
equipamentos de leitura antigos, sob condições de leitura onde até mesmo os níveis de ruído
detectados podem se tornar menos aparentes. Contudo, de acordo com as limitações
apresentadas, não é recomendável que a duplicação física de discos substitua o procedimento
de digitalização em contextos de preservação. De qualquer modo, o resultado do experimento
pode ser considerado como positivo, e até mesmo surpreendente, especialmente quando são
consideradas as características artesanais do método proposto.
137
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144
APÊNDICE A: DESCRIÇÃO DETALHADA DO PROCEDIMENTO DE
DUPLICAÇÃO FÍSICA DE FONOGRAMAS
MATERIAIS NECESSÁRIOS
O quadro a seguir relaciona os materiais e ferramentas utilizados com sua função,
adicionando algumas observações:
ITEM FUNÇÃO / OBSERVAÇÕES
Balança de medição com leitura entre 0.1g e 200g e precisão de +/- 0.05g
A balança deve possuir um sistema adequado para o posicionamento do recipiente contendo a borracha de silicone.
Borracha de silicone pura Utilizada para a obtenção do molde. Diferentes tipos de silicone alteram a rigidez do molde.
Agentes catalisadores para a borracha de silicone e para a resina epóxi
Diferentes catalisadores e proporções de mistura podem alterar o tempo de trabalho com o molde e acelerar o processo de cura.
Resina epóxi e corante
Utilizada na obtenção da cópia positiva a partir do molde. O corante é um elemento opcional. Diferentes tipos de resina alteram a dureza final da cópia.
Recipientes de tamanhos diversos
Recipientes que serão utilizados para a mistura dos componentes e para o posicionamento do disco durante a extração do molde. Preferencialmente de metal ou de vidro.
Luvas cirúrgicas e espátulas de vidro
Para possibilitar o espalhamento do material sobre a superfície do disco durante a obtenção do molde e evitar a contaminação por contato manual.
Massa de modelar infantil Elemento opcional para demarcação do furo central.
Vaselina ou silicone Elementos opcionais para impedir a aderência do silicone ao rótulo do disco.
Quadro 8 – Relação de materiais utilizados no experimento, acompanhados de observações sobre sua função no procedimento.
Os principais materiais de todo o experimento são a borracha de silicone e a resina
epóxi, acompanhadas de seus respectivos catalisadores, que são utilizados para a obtenção do
molde negativo e da cópia positiva. A composição exata desses materiais é protegida por
145
políticas comerciais dos fornecedores, e por tal razão seguem nomenclaturas e codificações
internas, impossibilitando equivalências com materiais de fornecedores diferentes. Essa
constatação nos obrigou a realizar testes com vários tipos de materiais até que encontrássemos
aqueles que melhor se adequassem aos requerimentos impostos pelo procedimento de
duplicação. Dependendo do tipo de catalisador e do tipo de mistura, o processo de cura pode
ser acelerado ou retardado, o que permite diferentes tempos de trabalho para a aplicação do
material antes que a cura se inicie.
OBTENÇÃO DO MOLDE NEGATIVO
Uma vez obtidos todos os materiais necessários, prossegue-se para a etapa de obtenção
do molde de borracha de silicone que desempenhará o papel de imagem negativa da superfície
do disco. As etapas estão detalhadas a seguir.
Passo 1
O primeiro passo envolve a limpeza do disco original, de modo a eliminar traços de
gordura, poeira e demais impurezas da superfície. Existem diversos métodos válidos de
limpeza para formatos mecânicos de disco, e a escolha do melhor método envolve diversos
fatores que vão desde a análise do tipo de material até a disponibilidade de materiais
adequados. Recomenda-se que seja feita uma limpeza meticulosa, tal como seria adequado
para a reprodução do disco durante a etapa de digitalização. É importante que se consulte
fontes de referência para procedimentos de limpeza, tais como o manual de Copeland (2008) e
as diretrizes da IASA (2009) e NRPB (2006).
Passo 2
Com a utilização dos recipientes e da balança de medição, deve ser obtida uma mistura
entre a borracha de silicone e seu catalisador na proporção de 10 partes de borracha de
silicone pura para 1 parte de catalisador. Durante o experimento, foi verificado que uma
mistura com aproximadamente 51,7g (47g de borracha de silicone misturada com 4,7g de
agente catalisador) foi o suficiente para cobrir a superfície de um disco de 17,5cm de
diâmetro. Contudo, pode ser necessária a adição de uma quantidade maior, dependendo da
espessura que se deseja obter para o molde. É desejável que se escolha de um tipo de silicone
que não deixe o molde muito rígido e nem muito maleável, para que não venha a quebrar ou a
se deformar durante sua extração.
146
Figura 34: Mistura manual da borracha de silicone com o agente
catalisador. Passo 3
O disco original deve ser posicionado sobre uma forma de metal ou de plástico
adequada, que possua um diâmetro ligeiramente maior que o diâmetro do disco, de forma a
permitir que se forme uma borda para o molde. Durante o posicionamento do disco sobre a
forma, é importante que seja demarcado o orifício central. O rótulo também deve ser
protegido para que não haja contato entre o rótulo e a borracha de silicone, o que pode ser
feito através da aplicação de uma película plástica.
Figura 35: Disco original posicionado sobre um suporte
metálico para obtenção do molde negativo. Passo 4
A mistura de borracha de silicone é então aplicada uniformemente sobre a superfície
do disco, com especial atenção para evitar a formação de bolhas de ar sobre a parte gravada. É
recomendável a aplicação do silicone em várias camadas, das quais a primeira é a mais crítica,
pois é a que possui contato direto com o sulco do disco. É essencial que não se deposite poeira
147
sobre a superfície do disco nesse momento, uma vez que qualquer impureza pode contaminar
o molde e as cópias subsequentes. Com a mistura mantida a aproximadamente 25ºC e uma
proporção de 10 partes de silicone para 1 parte de catalisador, o tempo de trabalho antes da
cura foi de aproximadamente 1 hora.
Figura 36: Detalhe da aplicação da primeira camada da mistura de silicone e catalisador
para a obtenção do molde.
Figura 37: Superfície do disco coberta com a segunda camada de silicone e catalisador.
Passo 5
Uma vez totalmente coberto com a espessura ideal de silicone, após a aplicação de
várias camadas, deve-se aguardar a cura completa do molde. O tempo de cura pode variar
dependendo da temperatura ambiente e da proporção de catalisador na mistura. Neste
contexto, a etapa de cura foi feita à sombra e sob temperatura ambiente.
148
Figura 38: Molde dentro da forma aguardando o tempo de cura.
Passo 6
Uma vez curado, o molde deve ser extraído com cuidado para evitar rachaduras e
deformações. A retirada do molde antes do tempo recomendado de cura — bem como a cura
irregular de sua superfície — pode inutilizar o molde e distorcer sua circunferência, o que
causa variação de velocidade de leitura na cópia e problemas de afinação.
Figura 39: Detalhe do molde pronto para receber a resina.
Partículas externas de poeira ou detritos podem causar a contaminação da superfície de
contato entre o disco original e o molde ainda fresco, o que resulta em ruídos e anomalias para
todas as gerações subsequentes de cópias extraídas.
149
Durante a obtenção do molde, considerando as medidas proteção do rótulo, não foi
observado nenhum tipo de dano ao suporte original. No presente contexto, o material da
superfície do disco não sofreu desgaste ou alterações, e em algumas ocasiões foi observado
que o contato com a borracha auxiliou indiretamente na limpeza da superfície do disco
original. Não há garantia, no entanto, de que tal procedimento permaneça sempre inerte para
todos os tipos de materiais de discos além do vinil. É necessário que sejam realizados testes
específicos para que se certifique a segurança do método para aplicação em outros materiais.
Ao longo de diversas tentativas de duplicação, constatou-se que o rótulo foi a parte
mais vulnerável do disco, especialmente durante seu contato com o molde. Durante as
tentativas preliminares de obtenção do molde que não respeitaram medidas de proteção para o
rótulo, foram verificados o surgimento de pequenas manchas e a aderência de pequenos
pedaços de borracha no papel. A aplicação de um filme plástico ou de algum outro tipo de
material de proteção pode reduzir sensivelmente tal risco. Fica recomendada uma cuidadosa
avaliação dos efeitos deste procedimento e do melhor tipo de proteção para cada rótulo.
OBTENÇÃO DA CÓPIA POSITIVA Quando o molde de silicone se encontrar completamente curado e limpo para o
recebimento do polímero, procede-se da seguinte forma para a obtenção da cópia positiva:
Passo 1
Deve ser providenciado um recipiente completamente livre de impurezas para a
mistura da resina epóxi e de seu catalisador. A proporção adotada para a mistura foi de 5
partes de resina para 1 parte de agente catalisador, que devem ser misturados manualmente
por alguns minutos até que se obtenha uma substância de aparência homogênea. O acréscimo
de corantes pode ser feito neste momento, mas não é fundamental para o procedimento.
Passo 2
O molde curado de silicone deve ser posicionado sobre uma base plana, com o lado do
negativo para cima, cuidando para que não se acumulem partículas de poeira ou nenhum outro
tipo de impureza em sua superfície. A mistura de resina deve ser aplicada sobre o molde de
maneira uniforme, e a formação de bolhas no líquido deve ser diligentemente evitada. Durante
as primeiras cópias realizadas neste experimento, foi aplicada uma fina camada de silicone
líquido sobre a superfície interna do molde com a intenção de facilitar a posterior retirada da
150
cópia positiva curada. Esta ação posteriormente demonstrou ser ineficiente, e não é
recomendada.
Passo 3
Após a aplicação, é necessário aguardar o processo de polimerização da resina dentro
do molde. O tempo de cura pode variar dependendo da temperatura ambiente e da proporção
de catalisador na mistura.
Passo 4
Após a cura, a extração da cópia positiva deve ser feita com cuidado para que não se
danifique o molde. O orifício central e as bordas representam pontos críticos. Embora um
mesmo molde permita a obtenção de cópias sucessivas, existe uma tendência de a primeira
cópia extraída ser a cópia de maior precisão. A análise dos resultados apresentados no
Capítulo 5 ajuda a confirmar essa suspeita.
Passo 5
Uma vez extraída a cópia positiva, deve ser realizado o acabamento para que o novo
suporte se torne apto a ser reproduzido por um aparelho de leitura convencional. Para tanto,
deve ser feita a perfuração adequada do orifício central do disco, observando a referência de
alinhamento indicada pela marca da perfuração do molde. Opcionalmente, podem ser
eliminadas as arestas e sobras de resina das extremidades do disco. É essencial que a cópia
obtida passe por um procedimento de limpeza para retirar resquícios de silicone depositados
sobre sua superfície, através dos mesmos procedimentos utilizados para limpeza de discos de
vinil. A Figura 40 apresenta o aspecto externo do disco, antes da etapa final de acabamento.
Figura 40: Cópia de resina com corante amarelo à esquerda e detalhe dos sulcos à direita.