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SOFIA CARVALHO ESCREVEU ILUSTROU ADÍLIA LOPES

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SOFIA CARVALHO

ESCREVEU

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ADÍLIA LOPES

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Texto: Adília LopesIlustrações: Sofia CarvalhoDisciplina: Ilustralçao IniciaçãoCurso: Design de ComunicaçãoEditora Rabo de Cágado1ª Edição | 1 exemplarJaneiro 2013Faculdade de Belas-ArtesLisboa

UMA EDIÇÃO

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CACOSADÍLIA LOPES

SOFIA CARVALHO

ESCREVEU

ILUSTROU

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O padre Azevedo suspirava de alívio. Era prior da paróquia de Nossa Senhora

do Terço. O dia de Natal chegava ao fim sem incidentes de monta.

Na missa das 8h, a missa da aurora ou dos pastores, as velas tinham ficado apagadas porque não havia fósforos nem isqueiros.

O sacristão, o Sr. Carlos, perguntara se alguém tinha lume. As beatas, umas velhotas cheias de casacos e de mantas que mais pareciam umas cebolas, tinham olhado umas para as outras. Claro que não tinham lume! Os sobrinhos-netos e os afilhados-netos fumavam charros e injectavam-se com heroína, agora elas nunca tinham fumado um cigarro. Se calhar a droga tinha chegado à sacristia da igreja de Nossa Senhora do Terço e o Sr. Carlos também já fumava marijuana pelo menos.

Na missa das 10h tinham entrado na igreja três cães e sete malucos. Um dos malucos, o Anastácio, tinha ido até ao ambão enquanto a Dona Ermelinda gaguejava a ler Isaías. Arrancara o missal e gritara “Isaías sou eu, sua grande cabra. Endireitai as veredas do Senhor.” A Dona Ermelinda já estava habituada ao Anastácio “Calma, Sr. Anastácio, calma. Tenho aqui um rebuçado para si”. Os outros seis malucos e os três cães andaram a vaguear pela igreja e a benzer-se diante de todos os santos. A maluca Esmeralda apontou para Jacinta e Francisco

ADÍLI

A LOP

ES

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e riu-se, riu-se, riu-se. Depois ajoelhou-se diante dos pastorinhos e de Nossa Senhora de Fátima. Na igreja de Nossa Senhora do Terço todos estavam habituados à entrada dos malucos e dos cães.

Na missa das 11h tinha entrado um pretalhão muito grande que fora até ao altar e bebera o vinho da santa ceia. Era um homem de uns trinta anos, aproximou-se do microfone e começou a cantar “Sou um órfão de Angola. Sou um órfão de Angola”. O padre Azevedo sentiu-se inspirado pelo Espírito Santo e, mal o pretalhão se foi embora, pediu à assembleia para rezarem uma Ave Maria pela paz em Angola.

Malucos, cães, pretos e drogados não faltavam na igreja de Nossa Senhora do Terço. O padre Azevedo chegava assim ao fim da missa das 18h30 do dia de Natal. Tinha falado das crianças na homilia. Mas ali só havia velhas que já nem se lembravam do que era a menstruação. Só faltava dar a beijar o Menino Jesus. Tudo estava a correr bem quando subitamente o Menino Jesus saltou das mãos do padre Azevedo, caiu ao chão e partiu-se em tantos bocados quantos as velhotas que estavam na igreja de Nossa Senhora do Terço. Setenta e sete bocadinhos de Menino Jesus no chão. Mas ninguém se apercebeu de que aquilo não tinha acontecido por acaso, que era um milagre. E ninguém se deu ao trabalho de contar os cacos.O Sr. Carlos trouxe pá

e vassoura e varreu do chão os restos do Menino Jesus beijado por quarenta bocas com mau hálito, com dentes postiços ou nenhuns dentes, com aftas, com bâton e com o lábio superior coberto por buços que fariam inveja a muito guarda republicana. Trinta e sete velhotas foram para casa sem ter beijado o Menino Jesus. Mas iam radiantes. Muitas nunca tinham dado um beijo na boca. Muitas não davam um beijo na boca há mais de

quarenta anos. Muitas nunca tinham dado e recebido com gosto um beijo na boca. Pelo menos tinham que contar.

A Dona Ermelinda chegou a casa. Vivia com outra velhota que era meio criada, meio dama de companhia, meio parenta, meio amiga, meio inimiga. “Sabe lá, Lavínia, o que aconteceu hoje ao padre Azevedo.” E contou. “O padre Azevedo tem mãos de manteiga, é o que é”, comentou Lavínia.

Mas o padre Azevedo estava intrigado. Pela primeira vez na vida temia e tremia diante do Menino Jesus. Foi ao caixote do lixo da sacristia, sem o Sr. Carlos ver, e contou os cacos. Contou as hóstias. Faltavam setenta e sete hóstias e havia setenta e sete cacos.

O padre Azevedo então, à vista do Sr. Carlos, fez uma coisa esquisita. Engoliu com água benta os setenta e sete cacos do Menino Jesus. Tiveram de o operar e acabou os dias no Júlio de Matos a gritar:

- “Eu comi o Menino Jesus”.

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