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    ESPAO URBANO, FAMLIA E STATUS SOCIALO novo operariado baiano nos seus bairros

    Michel AgierI

    1. INTRODUO

    Emprica e teoricamente, no h somente um espao de refernciaque possa, por si s, circunscrever a posio social do novo operariadoem Salvador. H uma pluralidade de situaes relacionais imbricadasem que se formam os vrios fragmentos de sua identidade social. Sea fbrica, a cidade e a nao so espaos necessrios de refernciapara entender a formao de uma classe cujo peso local depende emgrande parte de sua especificidade profissional, do seu nmerolocalmente crescente e da existncia de um "novo operariado" ao nvelnacional (cf. Guimares e Agier, 1990; Castro, 1988 esses espaosmantm relaes dialticas com os espaos da casa, da vizinhanada casa, e do bairro (Althabe, 1987). Sem serem menos econmicose polticos que os primeiros, esses outros espaos trazem determinantesespecficos na configurao dos "traos" da identidade social do novooperariado baiano. A casa um espao onde o trabalhador ou vaiser chefe de famlia, devendo desempenhar, com isso, um certo papeleconmico definido no cdigo das relaes familiares. A vizinhana um quadro onde se tecem e se reproduzem relaes famaliares eextra-familiares de solidariedade, trocas de obrigaes e poderes,envolvendo numerosas despesas. O bairro funciona como signo deposio social na sua relao simblica com os outros bairros, e podeser metodologicamente "reconstrudo" como um "reduto" social quetem sua prpria linguagem de classificao dos indivduos e das famlias.Estudar as famlias do novo operariado baiano nos seus bairros deresidncia remete globalmente ao seu envolvimento no amplo domnioeconmico do consumo. Isolvel como um "sistema de signos" (Barthes,

    I

    Pesquisador-visitante do ORSTOM. (Institut Franais de Recherche Scientifique pourle Dveloppement en Coopration) no Centro de Recursos Humanos da UFBa. Umaprimeira verso desse texto foi apresentada ao Seminrio: "Nordeste, o que h denovo?", Natal, novembro de 1988.

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    Baudrillard, Veblen, etc), esse domnio foi considerado por Weber comoo lugar por excelncia onde se mostram os "grupos de status". Contraa tendncia "realista" de Weber (os grupos de status seriam realidades,distintas das classes sociais), Bourdieu, (1966) sugere uma abordagem"nominalista": no h prticas simblicas e outras no-simblicas; hprticas de todas as ordens cuja anlise decide enfocar o aspecto

    simblico. Reconstruindo metodologicamente uma "ordem propriamentecultural" como esfera relativamente autnoma do conhecimento, aanlise pode considerar cada prtica, qualquer que seja, como umsmbolo cujo significado dado por sua relao com outros smbolos.Logo, os grupos de status que remetem a esse aspecto simblico dasprticas e relaes sociais no so uma "parte" da realidade, mas,tanto quanto as classes, uma objetivao das prticas.

    Os grupos de status se expressam em "maneiras de estar", manei-ras de usar os bens disponveis caractersticos de uma condio social,isto , na terminologia weberiana, em "estilos de vida" mais ou menos"prestigiosos" e "honrosos". As prticas residenciais formam um con-junto de comportamentos em que se mostra a "maneira de estar" noespao urbano. Alm do mais, se a residncia o "fato consumado"a mobilidade residencial o fato "se construindo". Pode-se ver nelacomo um carter objetivo de uma condio de classe (as "condies

    de vida"), se constri: construo vivida pelos atores como uma "esco-lha", carregada, de imediato, de todos os seus componentes objetiva-mente distintivos, simblicos. Analisar a mobilidade residencial , por-tanto, analisar os determinantes da modificao de um fragmento (urba-no) de status, vivido individualmente, mas analisvel coletivamente, apartir das ntidas regularidades estatsticas que a suma dessas prticasidividuais apresenta. Isso permite verificar, num caso especfico, comoa formao da nova classe operria baiana simultaneamente a forma-o de um novo grupo de status1.

    2. RESIDNCIA E MOBILIDADE RESIDENCIAL DOS TRABALHADO-RES DO PLO PETROQUMICO

    A relao entre a residncia e o emprego evidencia-se, de imediato,na existncia de uma forte mobilidade residencial dos trabalhadoresdepois de ingressarem no Plo. Essa mobilidade envolve os dois terosdos trabalhadores, mas ela no se realiza imediatamente: ela pratica-mente nula no primeiro ano de empresa e muito pequena antes que

    1Os dados que sero usados nas anlises a seguir provm de trs fontes: 1) Dadoscolhidos em duas empresas petroqumicas do Complexo de Camaari, usando aquiapenas os itens relativos residncia dos trabalhadores; uma empresa estatal eemprega 1.070 trabalhadores; a outra, privada, tem 876 assalariados. 2) Observaesdiretas num sub-bairro dentro do bairro da Liberdade, em Salvador, incluindo umapesquisa com questionrio em 58 casas de trs "avenidas". 3) Levantamento detrajetrias profissionias, residenciais e familiares de 25 trabalhadores das indstriasde ponta, moradores desse mesmo sub-bairro.

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    o trabalhador alcance dois anos de empresa (ver Tabela 1). Essa "bar-reira" de dois anos coincide com o perodo de adaptao imposto porvrias empresas que o consideram um perodo probatrio no qual nose faz qualquer promoo. Para o trabalhador, tambm o prazo neces-srio para acumular algum dinheiro e conseguir a confiana da empresa.Objetivamente, a "estabilidade" que se adquire depois de dois anos

    a condio para afianar os emprstimos bancrios que permitirocomprar um apartamento ou construir uma casa. A maioria dos trabalha-dores parece "incorporar" esse prazo de espera, durante o qual elesdevem provar sua competncia e boa vontade profissionais.2

    A partir do terceiro ano, as mudanas passam a ser estatisticamentemais significativas (33% ds que tm de dois a trs anos na empresaj mudaram). Depois o fato se amplifica regularmente at alcanar opice entre os assalariados mais antigos: daqueles que tm mais dequinze anos de empresa, somente 2,9% ainda moram na mesmacasa que ocupavam quando do ingresso.

    Tabela n 1: Mobilidade residencial e tempo de empresaNENHUMA

    MOBILIDADEMOBILIDADE NOMESMO BAIRRO

    ' MOBILIDADE PARAUM OUTRO BAIRRO

    TOTALTEMPO DEEMPRESA

    Absol. % Absol. % Absol. % Absol. %0 a 1 anoMais de 1 a 2 anosMais de 2 a 3 anosMais de 3 a 5 anosMias de 5 a 10 anosMais de 10 a 15 anosMais de 15 anosSubtotalSem especificaoTotal

    201 95,3 9474 63 67.64 46,4235 24,1 3614,2 2 2,9695 37,2

    4 1,9 1612,6 1111,7 2820,3160 16,4 3011,9 1116,2260 13,9

    6 2,817 13,420 21,346 33,3581 59,5187 73,955 80,9912 48,9

    211 100127 10094 100 138100 976100 25310068 1001.867 10079 1.946

    Fonte: Dados levantados em duas empresas do Plo Petroqumico Pesquisa ORSTOM/CRH, 1967,A mobilidade residencial cresce principalmente pela mudana para

    um outro bairro que no o de origem (essa taxa vai aproximadamentede 20% entre os trabalhadores mais novos a 80% entre os mais antigos),enquanto a mudana de residncia no mesmo bairro sempre fraca(entre 12% e 20%). Isso sugere que a mobilidade residencial no apenas uma mera modificao do quadro material da organizao fami-liar, ms que tambm uma expresso das necessidades objetivas

    2"A ruptura" operada na trajetria social dos trabalhadores por mudanas decisivasdo quadro urbano (sobretudo quando se trata de acesso propriedade imobiliria)pode ser relacionado com outras rupturas marcantes nas histrias de vida: a conclusodo Z grau e/ou de uma formao profissionalizante; o fato de alcanar uma especia-lizao valorizada ou uma "profisso" que permita o acesso a uma carreira relativa-mente estvel e ascendente; o casamento e o nascimento do primeiro filho; o engaja-mento sindical etc. A acumulao dessas "rupturas" em biografias individuais, numespao de tempo relativamente reduzido (entre um e cinco anos) acaba por configurarum "segmento" relativamente homogneo e diferenciado, tanto do resto da mo-de-obra das novas indstrias quanto dos outros segmentos da sociedade baiana. Essesegmento passou o perodo probatrio de aceitao das regras sociais de funciona-mento da fbrica, e o portador do maior nmero de marcas de diferena social esimblica da categoria (cf Agier, 1990).

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    de modificao dos "estilos de vida", articuladas com o processo geralde urbanizao da cidade e da Regio Metropolitana. A "escolha" donovo bairro, questo que a grande maioria das famlias trabalhadorasse colocou ou vai se colocar, contm um aspecto simblico e coletivoque ultrapassa as "intenes" e "decises" tomadas individualmente,acabando por configurar uma parte do status de segmento scio-pro-

    fissional analisado aqui.

    Os dois lados da cidade

    Em seu processo de urbanizao, Salvador tem tendido a "viraras costas" baa que foi o seu antigo cenrio. Esse "lado" da cidade o "lado da baa" est simblica e economicamente mais e maisdesvalorizado, enquanto o lado leste, oposto, espraiado ao longo daorla martima o "lado da orla" se valoriza mais e mais 3.

    No lado da baa, h uma populao mais pobre e de cor maispreta; h habitaes precrias; servios coletivos insuficientes; h su-jeira nas ruas mal asfaltadas e com sistema de esgoto saturado ouausente; montes de lixo acumulados nas entradas dos becos; h ainvaso dos Alagados na enseada; desmoronamento de casas nas

    encostas das colinas em tempo de chuva; usam-se os termos de "perife-ria" e "marginal" para designar a populao que ali mora. H tambmtraos do antigo e do velho: o Centro Histrico,' as velhas indstriasbaianas na Pennsula de Itapagipe; e as lembranas das fontes dariqueza antiga da cidade: o porto e os bancos.

    Essas imagens e realidades, passadas e presentes, acumuladas,compem um quadro imaginrio que funciona como um plo negativo.

    3Essa oposio "lado da orla"/"lado da baa" social e simblica, e no geogrficanem urbanstica. Partimos do aspecto simblico (as significaes unidas ao espaourbano) para entender a relao entre a mobilidade social e a mobilidade residencial.Esse simblico constri-se em cima de usos e imagens do espao. Nesse quadro,pode-se salientar a dualidade do espao urbano baiano: a cada lado, so unidosalguns usos e algumas imagens dominantes. Sendo assim, os termos de "baa" e"orla" usados aqui para traduzir essa dualidade no devem ser tomados ao p daletra em termos geogrficos ou urbansticos. Por exemplo: a baa geogrfica tem umtrecho que borda os bairros ditos "finos" da cidade (Vitria, Graa, Barra); mas essesbairros se integram, na dualidade simblica da cidade, ao lado da "orla" embora elestenham uma histria diferente dos bairros que compem a orla martima definida noslimites urbansticos. Por outro lado, h vrias "excees" dentro de cada ladosimbolicamente definido: algumas invases nos espaos residuais do "lado da orla":bairros de classe mdia tradicional no "lado da baa" (Ribeira, Monte Serrat). Porm,em ambos os casos, as tendncias do desenvolvimento urbano atual no contradizem,e pelo contrrio confirmam, a dualidade baa/orla: eliminao das invases do ladoda orla, modificao da composio scio-econmica dos antigos bairros "finos" quevo se aproximando, em termos sociais e habitacionais, dos novos modelos da orla;empobrecimento dos antigos bairros de classe media do lado da baa, etc. Em breve,enquanto as realidades urbanas apresentam vrias diferenas internas a cada "lado".essa dualidade simblica, recuperando a realidade dos usos e das imagens dominantesnum tipo especfico de "relao simblica" permeando o espao urbano, atua naformao subjetiva dos principais fluxos de mobilidade residencial.

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    Em termos sociais, raciais, arquiteturais, de equipamentos urbanos,de sade pblica, etc, esse lado recebe o valor negativo em cadatem da comparao com o resto da cidade.

    Entre os trabalhadores do Plo, os bairros desse "lado" da cidade ,expressam a mais forte queda no que concerne residncia: 44,6% da

    mo-de-obra morava ali, quando ingressou na empresa; 27,3% moranesse lado agora (ver Tabela 2).

    Paralelamente, a cidade reorienta-se para o lado do "novo", maisaberto para o Oceano e o sol levante. O lado da "orla" um espaourbano de servios coletivos mais abundantes e de melhor qualidade,de maior lazer praiano, e de moradias mais confortveis e seguras.Nesse lado, encontram-se e se desenvolvem os mais luxuosos "shop-ping centers" e centros empresariais; experimenta-se uma nova arquite-tura com intenes "ps-modernas". A referncia habitacional feitade imveis e condomnios protegidos. Todo um mundo de porteiros,zeladores, "office boys" e empregadas domsticas todos de cor compe o duplo necessrio desse espao de classes visveis; neces-sidade essa que remete tanto ao funcionamento das casas quanto configurao objetiva de um "estilo de vida" distinguido.

    As vantagens materiais de morar nesse lado da cidade so bvias.

    Os ganhos simblicos tambm, pelo fato de partilhar o espao comuma populao globalmente de pele mais clara e de condio econ-mica nitidamente melhor. Morar nesse lado significa o direito de convivercom a riqueza e de recuperar individualmente o status social global-mente associado a esse espao urbano.

    Na mobilidade residencial dos assalariados do Plo, os bairrosdesse "lado tm um saldo positivo global de 23,3% (passando de27,5% no momento do ingresso para 33,9% no momento atual).

    Destacam-se, enfim, espaos "intermedirios", tais como o bairrode Brotas e seus arredores (de "baixa classe mdia"), e sobretudoa periferia urbana do "Miolo", espao de urbanizao recente da cidade

    e o mais prximo do Plo (bairros e conjuntos de Cabula, Beiru, Pauda Lima, Mussurunga, etc). A rpida urbanizao desta zona do "Miolo"' se faz, principalmente, pela construo de vastos conjuntos habitacio-

    nais, que permite s camadas de rendas baixas e mdias tornarem-seproprietrias. Esses espaos intermedirios realizam, de uma maneirageral, o compromisso entre uma lgica de mobilidade social, que procura

    objetivamente desfazer-se das marcas simblicas dapobreza urbana, as possibilidades objetivas dadas pelonvel de renda e a oferta de moradia na cidade.Comparando a residncia no momento do ingresso nasempresas com a residncia atual, a zona perifrica do"Miolo" teve o maior saldo positivo entre todas as zonas dacidade (97,1%). Globalmente, os espaos "intermedirios"(Brotas e arredores, e Miolo) passam de 17,7% dasresidncias no momento do ingresso, para 26,2%

    atualmente.

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    Caminhos urbanos da mobilidade social

    Diferenas significativas, no que concerne s situaes urbanasde origem e mobilidade residencial, aparecem entre os estratos inferio-res e superiores da mo-de-obra.

    Os membros ou descendentes das classes mdia e alta, que seencontram entre os "colarinhos brancos" das empresas (a parte superiordos "estratos superiores" representados na Tabela 2), no vivenciamuma ruptura decisiva de meio social urbano quando chegam no Plo.Com efeito, mais da metade desse estrato j morava no "lado da orla"antes de ingressar nessas empresas.

    No entanto a moradia nesse lado da cidade cresce de uma maneiraacentuada entre os estratos superiores: 24,9%. Esse aumento devido chegada de trabalhadores oriundos do lado mais pobre da cidade.Esses trabalhadores compem o "baixo" dos estratos superiores: Ope-radores III, Supervisores de Turno, Mestres eletricistas ou mecnicos,etc, que experimentaram rpida ascenso scio-profissional (alcan-ando os ltimos degraus da carreira profissional possvel para umoperrio) e, ao mesmo tempo, vo compondo a substncia do fluxoresidencial que leva do lado "negativo" ao lado "positivo" da cidade.Eles realizam, assim, de uma maneira ntida, uma ruptura no quadrode vida urbana. A mesma ruptura se realiza, embora de uma maneiramais fraca e menos "acabada", entre outra parte desse "baixo" dosestratos superiores que dirige sua mobilidade residencial para os espa-os "intermedirios", principalmente para bairros que j eram de "baixaclasse mdia" (Brotas e arredores). Eles interrompem assim, no "meiodo caminho", o percurso de mobilidade scio-residencial, como fazemos estratos inferiores, estes de maneira ainda mais bvia.

    Nos estratos inferiores, os fluxos de mobilidade residencial parecemmais lentos, mais difceis de realizar-se. A sada do "lado da baa" forte ( 34,3%), mas um tero dos trabalhadores desses estratosainda permanecem a. Enquanto aguardam uma mudana para o outrolado, ou para o "Miolo", eles ficam em apartamento alugado, ou emcasa cedida ou dividida com parentes. Outros compraram ou receberam(por herana ou por casamento) a casa onde moram, no meio urbanoonde cresceram e se socializaram e no qual dispem de redes sociaise familiares antigas, como veremos mais adiante. Os seus "investi-mentos" simblicos se concentram, ento, no aspecto exterior e interiorda casa (reforma, construo de andar, garagem, mobilirio da sala,etc.)

    Porm a saturao fundiria que existe nesse lado da cidade,bem como a escassez de equipamentos e servios coletivos locais,se chocam com a possibilidade mesmo limitada de pensar emalcanar uma re-classificao social e simblica. Por conseguinte, odeslocamento para a periferia de conjuntos habitacionais de camadasde rendas baixas e mdia do "Miolo", se torna tendencialmente a solu-o mais prtica e rpida para ajustar as necessidades de status comas possibilidades dadas pelas rendas reais e a poltica urbana.

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    Tabela 2: Mobilidade residencial segundo os estratos hierrquicos e de renda na empresa

    TOTAL" ESTRATOS INFERIORES- ESTRATOS SUPERIORES*ESPAOS

    URBANOS Residnciaao Ingresso Residnciaatual Saldo Residnciaao Ingresso Residnciaatual Saldo Residncia aoingresso Residnciaatual SaldoLADO DA BAA(Centro Histrico.Liberdade. SoCaetano, Itapagipe,Subrbio Ferrov.)LADO DA ORLA(Barra, Rio Vermelho,Pituba, Boca do Rio,Piat, Itapu)ESPAOSINTERMEDIRIOS(Brotas. "Miolo")FORA DE SALVADOR

    44,6%

    27,5%

    17,7%

    10,3%

    27,3%

    33,9%

    26,2%

    12,5%

    38,8%

    +23,3% 1-

    48,0%

    +21,4%

    49,9%

    18,8%

    19,4%

    11,9%

    32.8%

    22,7%

    29,3%

    15,1%

    34,3%

    +20,7% +

    51,0% -

    26,9%

    30.1%

    51,1%

    12,9%

    5,9%

    12,7%

    63,8%

    18,0%

    5,5%

    -57,8%

    +24,9%

    +39,5%

    6,8%

    Fonte: Dados levantados em duas empresas do Plo Petroqumico Pesquisa ORSTOM-CRH. 1987.

    "Devido ao carter incompleto de algumas fichas do pessoal levantadas nas duas empre-sas-amostra. h uma diferena nos totais absolutos entre os dados referentes "resi-dncia no momento do ingresso" (Total absoluto: 1.879) e "residncia atual" (Totalabsoluto: 1.928), e h 18 fichas sem nenhuma informao sobre a residncia. Portantoos saldos foram calculados a partir das percentagens.Os estratos (inferior superior) foram construdos tendo como base quatro "grupos" defini-dos a partir da observao da organizao do trabalho (cf Projeto "Regime fabril eformao de classe" CRH).1) Integramos nos "Estratos inferiores" da Tabela acima os trs primeiros grupos, isto

    :Grupo I: "Trabalho que no envolve nenhuma habilidade tcnica especial e executadosob orientao de outrem" (ex.: Auxiliar de Servios Gerais, Ajudante de Laboratrioou de Operao, Auxiliar de Produo ou de Manuteno).

    Grupo II: "Trabalho que exige alguma formao escolar, requer ou no habilidadeespecial, executado sob a orientao superviso de outrem" (Ex: Digitador, Almoxarife,Operador de Processo I, Analista I, Instrumentista I, Operador de Mquina, Auxiliar deSegurana Industrial).

    Grupo III: "Trabalho que requer habilidade tcnica, alguma formao escolar, respon-sabilidade sobre bens, executado sob superviso de outrem" (ex.: Secretria, Tcnicode Contabilidade, Operador de Computador, Inspetor de Segurana, Tcnico de Labora-trio II, Operador de Processo II, Instrumentista II e III, Mecnico II e III).2) Nos "Estratos superiores" da Tabela 2, consideramos os trabalhadores do quartogrupo, isto : Grupo IV: "Trabalho que exige formao escolar, habilidade tcnica e responsabilidadede superviso" (ex: Analista Qumico III, Projetista III, Operador de Processo III, Supervisor de Turno, Chefe de Turno, Coordenador de Produo, Auxiliar Tcnico de Manuteno, Mestre Eletricista ou Mecnico; Gerente Administrativo ou Comercial, Economista, Engenheiro).

    A mobilidade residencial para as cidades prximas ao Plo (Cama-arisobretudo) relativamente fraca, e nula no caso dos estratos superiores. Nototal, 87,4% dos assalariados das duas empresas referidas aqui moram emSalvador4. Os estratos inferiores vo um pouco mais que os outros paraCamaari. Mas isso no chega a configurar uma tendncia forte esignificativa. O que pode parecer a priori como um fracasso dos projetosoficiais de desenvolvimento urbano-industrial da

    4Segundo os dados do COPEC de 1986, 71,7% dos trabalhadores do Plo moramem Salvador e 14,9%, em Camaari (Pinho, 1989:19).

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    rea do Plo, torna-se um elemento coerente de uma estrutura derepartio urbana da mo-de-obra industrial, pelo menos quando setoma a Regio Metropolitana de Salvador como universo de referncia.

    A Regio Metropolitana, criada em 1974, um "territrio" polticoe econmico, que gira em torno do desenvolvimento das indstriasdinmicas. Quatro municpios da RMS, alm de Salvador, abrigam as

    instalaes industriais recentes do Complexo Petroqumico (Camaari),do Centro Industrial de Aratu (Simes Filho) e da Petrobrs (Candeias,So Francisco do Conde). Mas a grande maioria dos trabalhadorescontratados nas empresas dessas trs unidades mora em Salvador(83,8% em 1981) e transportada para as empresas por um sistemaparticular de transporte que "recolhe os passageiros praticamente porta da casa" (CONDER, 1982). Enquanto isso, a rea urbana emvolta das empresas, principalmente Camaari, acolhe uma populaomigrante (em 1980, 46% da populao de Camaari era formada pormigrantes), oriunda de reas sub-desenvolvidas e sem experincia detrabalho industrial, procura de um emprego subcontratado e precrio(Pinho, 1989). O rpido crescimento "favelado" de Camaari s seentende como parte de uma repartio scio-residencial das vriascategorias da mo-de-obra das novas indstrias no conjunto da RegioMetropolitana: 61% dos trabalhadores subcontratados do Plo Petro-

    qumico moram em Camaari, cidade onde 90% dos habitantes tmuma renda familiar que no ultrapassa trs salrios mnimos (Castro,1988:29).

    Parar, no meio, do caminho urbano da mobilidade social e participar,dessa maneira, do crescimento ultra-rpido da zona perifrica do "Mio-lo", parece ser uma trajetria "tpica" dos estratos inferiores da mo-de-obra contratada do Plo. Na criao dessa nova periferia, se configuramnovos quadros urbanos de vida familar, carecterizados por uma novahomogeneidade de condio econmica, e de trajetria profissional,social e residencial entre as famlias.

    3. CASAS, FAMLIAS E STATUS SOCIAL NA LIBERDADE

    A abordagem monogrfica de um bairro se justifica por ser umexerccio preliminar (um pr-texto) permitindo entender como, de uma

    maneira geral, o meio social urbano "problematiza" uma classe social.Pelo fato de situar-se numa esfera organizada, mais obviamente, emvolta da "reproduo", essa abordagem pode-dar conta, com maisnitidez, da formao de status que est em jogo nas trocas sociais eeconmicas, pelas quais as famlias do novo operariado baiano entramem relao com os outros grupos e classes da cidade. Ela permiteentender como um meio social urbano carregado de passado, de smbo-los e de redes sociais inclusivas como o bairro da Liberdade problematiza o novo operariado, e como este "resolve" a questo dasua posio social nesse bairro ou fora dele.

    O bairro da Liberdade urbanizou-se a partir do incio deste sculo,ao longo de uma linha de bonde hoje extinta que seguia a antiga

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    estradas por onde, no passado, entraram em Salvador as tropas daIndependncia. Antiga rea perifrica, o bairro est agora completa-mente integrado ao tecido urbano central, se bem que se use aindacham-lo, s vezes, de "periferia", marca de distncia mais social queespacial.

    A Liberdade tinha, em 1984, uma populao estimada em cerca

    de 100.000 habitantes. uma rea de baixa renda, considerada comoum "bairro da classe trabalhadora", ou "bairro operrio" e "negro".Sua populao ativa se compe principalmente de trabalhadores subal-ternos de empresas tradicionais (porto, comrcio, indstrias alimentciasetc) e, recentemente, de indstrias "dinmicas" (petrleo, qumica, me-talurgia): em 1980, 18,1% da populao ativa do bairro trabalhava naindstria de transformao, enquanto, no conjunto-da cidade, essa taxaera de 14,7%. Encontram-se tambm pequenos e mdios funcionriospblicos, trabalhadores do comrcio, artesos e empregados doms-ticos.

    Segundo os dados da nossa pesquisa, 5,7% dos trabalhadorescontratados do Plo moravam nesse bairro no momento do seu ingressona empresa, o que colocava a Liberdade entre os bairros de maiorconcentrao da mo-de-obra. Uma pesquisa da CONDER, realizadaem 1981, sobre o transporte de trabalhadores,- encontrou uma taxa

    de 8% de assalariados do COPEC e do CIA morando no bairro, oque representava a maior taxa de residncia operria (CONDER, 1982).A condio social dos trabalhadores assalariados das novas inds-

    trias da Regio Metropolitana, quando relacionada ao resto da popula-o desse bairro e no ao conjunto da cidade , coloca-os global-mente nas faixas mais altas em termos de salrios e de acesso aosdireitos sociais. A reclassificao social dos "novos operrios" residen-tes no bairro, leva-os a vrias estratgias, todas determinadas pelasrelaes entre suas condies e posies de trabalhadores e de mora-dores. Para desvendar os vrios determinantes urbanos das suas prti-cas e "lutas" simblicas em torno do status, preciso busc-los nosquadros e nas representaes da "localidade" e da "socialidade" dobairro.

    Elementos de identidade local

    O sub-bairro do "Largo" ocupa um pequeno espao (aproxima-damente trs hectares e 2.000 habitantes) do vasto conjunto do bairroda Liberdade. Sua "representatividade" advm de suas caractersticasscio-econmicas, habitacionais e culturais e do fato de ser, comoos outros sub-bairros da Liberdade, um meio social com coerncia eidentidade prprias.

    Como nas demais partes da Liberdades, a existncia de uma ruade "entrada", partindo da rua principal, sugere um lugar "fechado".Essa sugesto se repete nas entradas dos "becos", "vilas", "avenidas"e outros corredores de acesso pedestre s casas, que formam umarede densa em redor da praa central desse sub-bairro.

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    Algumas linhas imaginrias delimitam o sub-bairro do Largo, No-mear diferentemente os arredores define um "centro", um "ns , distin-tos dos "outros". O prprio nome do local distinto daquele dos mapasda cidade, este ltimo correspondendo ao nome dado do exterior: cor-responde ao nome do bar que ficava na esquina da "entrada", antigoponto de parada do bonde. Oposto a esse nome externo, o nome

    produzido do interior olha para dentro; ele se refere ao espao central(geogrfica e socialmente) do local; o largo, lugar de trocas comerciaise sociais, ponto de encontro, de jogo e de festas

    Da mesma maneira, os espaos menores so nomeados por ter-mos que formam um "saber" local que quase inacessvel aos defora da "comunidade" (poucos aparecem no mapa). Cada nome remetea um fragmento da histria local; "Beco do Sabo", porque havia umafbrica caseira de sabo no fundo daquele beco; "Vila Gradil". porqueaquela entrada era fechada por uma grade; "Avenida da Bomba . por-que, antes da instalao da rede de gua nas casas, havia ali a bombad'gua que alimentava o bairro; etc. Outros nomes remetem a nomesde pessoas e famlias que foram os antigos proprietrios das travessase dos cortios.

    Nesses atos autnomos de nomear, expressa-se uma produode identidade, acumulada pela histria do bairro. O uso desses nomes. ,

    e o saber correspondente a eles so marcas de uma continuidade"qua-se-tnica" da identidade adscrita a esse espao. Quando, hoje, polticosvm procurar votos nessa populao, fazendo apelos " comunidadedo Largo...", ou "comprando" votos, financiando festas, etc.. nos limitesdesse espao-comunidade, eles recriam (mesmo que seja para seusprprios fins eleitorais) essa identidade local.

    Relaes de parentesco envolvem moradores em vrios pontosdo bairro. Com o desenvolvimento dos ciclos familiares, algumas casasantigas se desdobraram em vrios domiclios, os sibling procurandoficar perto uns dos outros. Outras famlias atraram parentes principal-mente genros vindos de outros locais, ajudando-os a instalarem-sena vizinhana . Redes familiares, mais ou menos extensas, permeiam

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    interessante notar a analogia dessa dicotomia nominal com a que se d freqen-temente nos etnnimos. onde h um nome dado pelos "outros" (outras etnias oucolonizadores) e um outro dado pela prpria etnia: A "leitura" tnica do bairro podeprosseguir para explicar no somente a importncia das fronteiras' para a definiodo grupo ou da identidade "contrastiva" pela qual ele existe em sociedades plurais (Barth1969). mas explicar tambm a sua identidade encaixada" (Cardoso. 1980). o que nosremete simultaneamente a uma definio "interna" e externa" (Adams. 1989): osvrios nomes de sub-bairro operam uma primeira diferenciao interna (ser do PeroVaz, da Avenida Peixe, do Japo, etc), que ceda espao ao nome do bairro.Liberdade, na relao com o resto da cidade (diferenciao externa"): a no ser que.como acontece tambm nas realidades tnicas, um local, tal como se fosse umsubgrupo, ocupa uma posio dominante na imagem e na estigmatizao do bairro(ou da etnia) e mantm seu nome prprio, como acontece com o nome "Curuzu" locuscentral da negritude que marca o bairro todo.

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    assim o espao do bairro. Embora as genealogias dos membros dosgrupos domsticos ultrapassem os limites do sub-bairro do Largo, hligaes genealogicas entre as casas locais, que tecem o quadro defundo das trocas quotidianas. O local no corresponde estritamente auma organizao familiar, mas um espao "familarizado". O paren-tesco real ou simulado nas maneiras de relacionar-se e de nomearvizinhos amigos bem como as formas institucionalizadas e "figuradas"de apadrinhamento, estruturam boa parte das redes sociais do Largo,fornecendo o cdigo "privado", relacional, das representaes e daspraticas do espao (Agier. 1990b).

    A vida "comunitria outra fonte de identidade para a populaodo Largo. O campeonato de futebol de salo, que se desenrola durantevrios meses na quadra do largo central, envolve cerca de 300 partici-pantes, repartidos em 15 equipes, sendo nove sediadas no prpriosub-bairro e seis em outros locais do bairro da Liberdade. O fato deessas ltimas equipes serem explicitamente "bem vindas" expressa oreconhecimento de que elas so "de fora".

    A mesma centralidade se manifesta nas prticas religiosas. A casade Umbanda, instalada no prprio largo central, famosa no bairropor atender adeptos vindos "de longe" e pertencendo s camadas supe-riores da sociedade urbana.6O mesmo ocorre com o pequeno terreirode Candombl de Caboclo (tambm situado no permetro do largo) ecom outras casas-de-santo menores, que se espalham pelas travessase avenidas: todos pretendem atrair pessoas de fora. baseados nas redespessoais e no prestgio dos seus pais e mes-de-santo.

    Mas o mais "identificador" se encontra, talvez, nas "turmas" antigos grupos de amizade nos quais todas as confidncias so feitase onde se conferem os apelidos que nomeiam as pessoas, onde sefazem as "brincadeiras e se encontram ajudas, onde circulam as infor-maes sobre empregos e "biscates" e se joga futebol, domin, damasou baralho, onde se organizam blocos carnavalescos e quadrilhas deSo Joo. Essas "turmas" tm lugares preferidos de encontro, demar-cando, assim, o espao com a memria de suas histrias. Objeto predi-leto da "sociografia das redes" e das anlises, interacionistas, justa-mente porque condensam prticas no contempladas pelas abordagensconvencionais das estruturas sociais globais, as "turmas" podem seranalisadas como um caso emprico de rede definida "por sua ancoragemnum ponto particular das estruturas sociais" (Hannerz, 1983: 226)

    A formao das equipes de futebol de salo do bairro do Largo uma tradio especfica dessas "turmas". As equipes (aproximada-mente 20 pessoas inscritas para cada uma) se formam a partir de

    ' Conta-se, no bairro, que a me-de-santo dessa casa enriqueceu muito rapidamentegraas generosidade de alguns fregueses. Dizem tambm que foi atravs dessesadeptos bem posicionados que ela conseguiu empregos para seus filhos: um numservio pblico e um outro numa empresa do Plo.

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    um ncleo inicial de trs ou quatro pessoas que constituram turmasantigas (algumas datam do incio dos anos sessenta). Essas turmasdesenvolvem, alm dos jogos de futebol, vrias outras atividades: orga-nizao de passeios, "babas" e jogos de voleibol na praia, grupos deSamba, quadrilhas juninas e blocos carnavalescos.

    A partir dos dados sobre 12 equipes (as 9 do prprio Largo e 3

    de seus arredores), podemos identificar, em sete casos, os "pontosdas estruturas sociais" onde esses grupos se ancoravam: dois so oproduto de relaes de trabalho na mesma empresa (sendo uma aPetrobrs) reforadas ou ampliadas por relaes de vizinhana; um formado por um ncleo de cinco (antigos) colegas da mesma escola;trs so o produto de relaes de parentesco (ncleos de dois ou trsirmos) ampliadas na vizinhana; um vem de uma relao nascida porcontigidade residencial. Em cinco casos as equipes foram formadas por"amigos de infncia" ou "colegas que batiam baba na quadra", queremetem convivialidade da socializao no bairro. As "torcidas" dasequipes so formadas por vizinhos, colegas, parentes, "primas enamoradas".

    As "turmas" so redes sociais plurifuncionais. As suas manifes-taes "pblicas" (como a formao de equipes de futebol num torneio)permitem observ-las e situ-las na descrio do sistema local de rela-

    es sociais. Mas essas manifestaes so apenas ocorrncias particu-lares da funcionalidade dessas turmas. Elas apresentam outras manifes-taes, menos visveis, que garantem a sua funcionalidade global naorganizao da vida social do bairro e das vidas individuais dos seusmoradores. esse tipo de constatao que leva Hannerz a analisar oconjunto da cidade, no final das contas, como "a rede das redes"(Hannerz, 1983).

    Como no caso da "familiarizao" do espao pelas relaes deparentesco e aliana, as "turmas" expressam a existncia de um uso"privado" isto , vivido em termos relacionais, afetivos e morais dos espaos estruturados nos quais se formam (famlia, empresa,escola) e de uma integrao igualmente "privada" no espao do bairroonde se consolidam, amplificam e atuam. Num jogo complexo de sime-tria, essas redes podem voltar aos "pontos das estruturas sociais" ondeelas (ou outras) se ancoraram, quando, por exemplo, atuam como meiode informao ou de apoio na busca de um emprego.

    A insero dos "novos operrios" no bairro se manifesta pela suapresena nessas turmas (como veremos mais adiante) e pelo fato deterem adquirido, ao longo da trajetria familiar, os vrios saberes "qua-se-tnicos" e os cdigos "quase-familiares" do local. Estes ltimos per-meiam a estrutura hierarquizada das posies sociais no bairro, comopassaremos a ver agora.

    A REPRESENTAO LOCAL DAS POSIES SOCIAIS

    A configurao scio-econmica do Largo corresponde, grosso mo-do, do conjunto da Liberdade. Dois teros dos grupos domsticos

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    tm renda que no ultrapassa cinco salrios mnimos (dados de abril1988), o leque de variao raramente ultrapassando dez salrios mni-mos. Os que esto em atividade so empregados na prestao deservios (empregadas domsticas, lavadeiras, costureiras), estivadoresdo Porto, mestres e serventes da construo civil, pequenos empre-gados do comrcio (vendedores de loja, bancrios), comerciantes eartesos autnomos, trabalhadores contratados e subcontratados dosestratos inferiores do Plo Petroqumico, do Centro Industrial de Aratue da Petrobrs. As rendas superiores se encontram entre alguns dospequenos patres artesos, negociantes (proprietrios de apartamentosalugados no bairro ou scios de pequenos negcios da construocivil), transportadores, e parte dos assalariados contratados das inds-trias "dinmicas".

    Por sobre essa repartio das rendas e dos empregos, os sujeitosproduzem sua prpria descrio da hierarquia social local, que se confi-gura tambm como um sistema de relaes entre os vrios statusclassificados pela descrio.

    H, em primeiro lugar, as "famlias do largo", que moram no perme-tro da praa central e nas suas ruas adjacentes. So casas de famliasantigas, descendentes de comerciantes e de funcionrios pblicos m-dios. Certas casas mostram nas suas fachadas, graciosas, mas freqen-temente deterioradas, os anos de sua construo: 1920, 1930. Algumasfamlias transformaram totalmente suas casas antigas entre os anos1940 e 1960. Nelas moram, agora, vrias geraes de uma mesmafamlia em casas de dois ou at trs pavimentos ou ocupando domiclioscontguos nos antigos quintais das casas. Alguns proprietrios (porherana ou casamento) de casas de famlias antigas se tornaram peque-nos locatrios imobilirios: imveis, geralmente de trs pavimentos,foram construdos para negcio nos anos sessenta, no permetro dolargo central. O mesmo aconteceu tambm em ruas adjacentes e emalgumas "avenidas" ou travessas melhor providas.

    Descendentes dos "grupos de status intermedirios" da Bahia daprimeira metade deste sculo (Azevedo, 1959), essas "famlias do largo"so tradicionalmente vistas como as mais abastadas. Elas ocupam aposio dominante na hierarquia local, mesmo se, de fato, todas elas

    no se encontram mais no alto da escala econmica. Sua posiosocial foi constituda atravs de prticas familiares, imobilirias e relacio-nais no mbito local. Toda "famlia do largo" se caracteriza pelo fatode podei; agrupar um conjunto de siblings e suas respectivas famliaselementares numa casa s ou num alinhamento de casas contguas.Alm do mais, os grupos domsticos so ampliados por "agregados"e filhos de criao, um dos meios utilizados de dominao poltica na assistncia ou na "caridade" sobre os elementos mais pobresda parentela ou da rede local de sociabilidade.

    Essas famlias tm descendentes geralmente "bem formados"; al-guns so engenheiros, professores, mdicos, sados do bairro para o"lado da orla" sem desfazer, entretanto, os laos sociais com os

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    quais suas histrias familiares os ensinaram a reproduzir as posiessociais superiores.

    Enquanto as "famlias do largo" ocupam (ou ocupavam) as casas-da-frente, as avenidas do bairro se formaram nos "quintais-da-casa".Entre essas, a terminologia local distingue a posio social inferior de"famlias carentes das avenidas". Nos meios mais pobres, as famlias de

    renda mais baixa so geralmente chefiadas por mulheres e os chefes defamlia ocupam os empregos mais "informais", mais precrios oumenos qualificados; isto , empregos desvalorizados no mercado detrabalho, que impedem qualquer estabilidade profissional ou de renda.

    Nessas avenidas de "famlias carentes", dois elementos se relacio-nam regularmente com o fato da casa ser chefiada por mulher: 1) aextrema pobreza do grupo domstico, ou seja, a impossibilidade daexistncia social da casa considerada apenas a renda monetria adqui-rida no mercado de trabalho; 2) a proximidade espacial e a intervenopermanente de uma rede de parentes localizados fora da casa.

    H, nessas casas e em redor delas, uma distribuio ds funesfamiliares (residenciais, reprodutoras, socializadoras) cujo quadro oespao familiar inclusivo. A implicao dos outros estratos sociais na"sobrevivncia" das casas pobres do bairro se d atravs das redesfamiliares e das vrias formas de proteo das casas (apadrinhamento,

    laos "de considerao", circulao das crianas acolhidas como "filhosde criao"). Logo, h uma repartio objetiva dos poderes sobre acasa e seus filhos, que se faz nas relaes, vitais, entre os gruposdomsticos pobres e matri-centrados e seu espao familiar e extra-fa-miliar localmente disponvel.

    A posio das "famlias carentes das avenidas" na estrutura dasrelaes sociais do sub-bairro do Largo se define, pois, a partir dsua condio "social desvalorizada e a partir das redes e dos valorespessoais e familiares. Estas redes permitem-nas "negociar", entre asrelaes familiares e de patronagem, sua sobrevivncia em troca dedependncia e de reproduo do status dominante das casas que assustentam. o domnio do "cdigo da casa" na sua maior abrangncia(Da Marta, 1985).7

    Nas redes de proteo dependncia das "famlias carentes",encontram-se vrias famlias do grupo "intermedirio" d hierarquia

    social do Largo. Nesse ltimo grupo, "bancrios", "comercirios", "do-queiros", "marinheiros", "pedreiros", e outros trabalhadores relativa-mente estveis nas atividades assalariadas de baixa e mdia renda,artesos e comerciantes autnomos, chefiam famlias que so ditas"equilibradas".8Fora da pobreza, localizadas entre o alto e o baixo

    7 Os quatro pargrafos precedentes apresentam, de uma forma muito resumida e esque-matizada, as anlises desenvolvidas em outro texto sobre as famlias (notadamenteas casas matri-centradas) de uma das avenidas pobres desse bairro (Agier, 1990b).

    8Esse qualificativo se refere tanto ao desenvolvimento estvel dos ciclos familiares,quanto ao nvel de consumo ou insero no mercado de trabalho.

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    da hierarquia de status, essas famlias moram tambm em avenidas.Mas essas so mais largas e tm casas de maior conforto; travessase vilas nas quais se vem casas de mais de um andar, s vezescarros na entrada.

    Os seus grupos domsticos so auto-suficientes e eles se encon-tram em proporo significativa entre os padrinhos e madrinhas das

    "famlias carentes". Nestas ltimas casas, eles tm tambm parentes(irms, me, sobrinhos) junto aos quais eles cumprem "obrigaes deajuda. Seu status social se sustenta num equilbrio difcil entre aproximidade da pobreza (nas suas histrias pessoais e familiares, enas suas relaes familiares e extra-familiares atuais) e o afastamentodela e de todas as marcas de "excluso" da sociedade de classesque ela concentra.

    Se a pobreza das "famlias carentes'' o domnio das classes"invisveis" (Santos, 1988:13) e da inveno permanente de novos usosdas relaes sociais, a problemtica das "famlias equilibradas dasavenidas" de consolidar sua presena entre as classes 'visveis'' demodo a situar-se do lado da "cidadania" nessa dicotomia observadae pensada pelos prprios sujeitos, nas suas relaes com asinstituies da sociedade global, entre a cidadania e a excluso. Apossibilidade de usar apelaes ocupacionais para designar as pessoas

    ("doqueiros", "comercirios" etc), significando integrao social, umaNessa mesma problemtica se situam as estratgias familiaresque diferenciam as famlias "equilibradas" das "carentes". Famliasmais estveis, profissional e economicamente, tm maiores possibi-lidades de desenvolver ciclos familiares completos e, portanto, deconseguir "normalizar-se" e institucionalizar-se. O casamento oficial(civil e religioso) ocorre na trajetria matrimonial dos homens dessegrupo intermedirio do bairro, no to como uma prtica familiarpropriamente dita, mas como um smbolo da relao entre o "ego"masculino e a sociedade global, entre a sua famlia e o Estado. . embreve, uma prtica de "cidadania". Esse elemento propriamentepoltico se incorpora formao do status social. Isso se traduz, estatisti-camente, numa relao direta entre o tipo de unio conjugai e o nvelda renda do homem chefe de famlia, como podemos verificar atravsde um levantamento em trs avenidas do bairro, destacando os 33homens chefes de famlia, sua renda pessoal e sua situao matrimonial.

    O que aparece nesses dados, , em primeiro lugar, a importnciadas tentativas de estabelecer a institucionalizao das unies: 26 entre33, ou seja, quase 80% dos homens se casaram. Mas aparece tambmuma forte instabilidade dessas situaes oficializadas, instabilidade essaque toca principalmente os homens de renda inferior. Nas situaesmatrimoniais atuais, no h nenhum casado oficial na faixa de rendasat 1 salrio mnimo; eles so 36,4% na faixa de 1 a 3 salrios mnimos.43% na faixa de 3 a 5 salrios mnimos, e finalmente 60% na faixadas rendas superiores a 5 salrios mnimos.

    De uma maneira ntida, a estabilidade do casamento oficial crescecom o nvel da renda. O relativo xito profissional e econmico dos

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    chefes de famlia dos grupos intermedirios do bairro se desdobra ese consolida num "xito" matrimonial. Este. por sua vez. confere umreconhecimento legal famlia fundada na figura do "homem provedor"e acrescenta um elemento poltico formao do status do trabalhadorchefe de famlia.

    To logo se comea a ascender socialmente, tm incio as "lutas"

    simblicas para afastar-se da condio social de pobreza. Esse "jogo"de posies se organiza objetivamente por referncia pobreza, tratadacomo refugo (Bourdieu. 1966:24). A problemtica das "famlias equili-bradas das avenidas", que ocupam a posio intermediria na classifi-cao hierarquizada das casas do bairro, se da num jogo penoso deadscrio social que oscila entre os smbolos da pobreza e da classemedia.

    Ambos os termos, "pobreza" e "classe mdia", so ao mesmotempo vagos no plano das condies scio-econmicas (at que limitesuperior de renda se pobre? A partir de que patamar de consumose e da classe media?) e fortes em termos de demarcao de status.A pobreza, presente nas redes sociais e familiares das classes popu-lares em busca de estabilidade e ascenso social, e tambm simbolica-mente presente na sua memria: lembrana de um estado combatido,rejeitado, mas ainda inscrito no universo das possibilidades (em tempo

    de crise, pode-se "recair" nela). Ao nvel da sociedade global, a pobrezae representada como um estado de excluso, uma posio de no-cida-dos, guardada nas "classes invisveis".

    Por outro lado. a "classe mdia" se impe como um modelo urbanode consumo, de uso do espao (residencial e ldico) e de participaopoltica. Ela monopoliza a produo dos signos de distino social eda fala poltica, enquanto a pobreza se concentra nas lutas de sobrevi-vncia econmica e no mutismo publico.

    E a partir dos grupos intermedirios e de sua problemtica declassificao social que se pode entender a posio das famlias traba-lhadoras do novo operariado no bairro.

    STATUS SOCIAL E IDENTIDADE LOCAL DO NOVO OPERARIADO

    Quando se fala. no bairro, das "famlias equilibradas dos industriais",se apontam em geral as casas dos trabalhadores das indstrias

    dinmicas". Ser um "trabalhador do Plo"9 uma maneira de identifi-cao social, distinta das outras "classes definidas pela terminologia

    social do local.Essas famlias de trabalhadores das novas indstrias tm muitas

    ligaes diretas familiares ou amicais com pessoas do grupo"intermedirio" apresentado acima. Por serem geralmente oriundos

    9Mesmo que seja nos estratos inferiores designados acima (Tabela 2: auxiliares deproduo, de servios gerais, operadores de processo I e II, auxiliares de seguranaindustrial, instrumentistas, eletricistas etc).

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    Tabela 3: Composio dos grupos de dependentes declarados empresa, por estratos hierrquicos e de renda na empresa

    ESTRATOS INFERIORES ESTRATOS SUPERIORES TOTALPOSIO DOSDEPENDENTES EM RELAOAO TRABALHADOR

    N? Absoluto % N Absoluto % N Absoluto %

    Esposa/CompanheiraFilho(a)MePaiOutros parentesOutros dependentes(no parentes)Total dos dependentesTotal dos trabalhadores

    819 24,12116 62,2214 6,359 1,7

    158 4,636 1,13402 100,01413

    367 28,5814 63,1

    54 4,214 1,131 2,4

    9 0,71289 100,0533

    1186 25,32930 62,5268 5,7

    73 1,6189 4,1

    45 1,04691 100,01946

    Tamanho mdio dos grupos de

    dependentes

    2,41 2,42 2,41

    Fonte: Dados levantados em duas empresas do Plo Petroqumico Pesquisa ORSTOMCRH, 1987.

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    desse grupo de status "intermedirio", eles partilham com ele umamesma simbologia do status social, dominada pelas figuras referenciaisda pobreza e da classe mdia.

    Em termos de organizao familiar, nota-se uma amplificao doprocesso de diferenciao estabelecido pelo grupo intermedirio. Umcerto "tipo" de organizao domstica se destaca na comparao des-sas novas famlias trabalhadoras com as casas dos outros "grupos"do bairro. Diferentes das famlias extensas do "alto" (famlia nuclear,agregados e filhos de criao, s vezes juno de vrias famlias nuclea-res); e diferentes das famlias "parciais" (Azevedo, 1966), chefiadaspor mulher, das avenidas mais pobres; as casas dos trabalhadoresdas novas indstrias baianas apresentam alguns "traos" homogneos.A seguir resumiremos esses traos.

    1) Essas famlias se compem geralmente do casal com poucosfilhos (dois ou trs entre os mais jovens, at cinco ou seis entre osmais velhos); os agregados so raros, fora da acolhida, s vezes, dame do chefe de famlia. portanto um tipo de famlia conjugai simples(pai, me, filhos) que prevalece nessas casas, diferenciando-se do seuambiente local.

    Os dados levantados nas duas empresas petroqumicas j referidasconfirmam, desse ponto de vista, as observaes feitas no bairro da

    Liberdade. As famlias dos trabalhadores tm um tamanho mdio de3,4 pessoas, e a composio dos grupos domsticos (apreensvel apartir do conjunto dos dependentes declarados s empresas) mostraa predominncia da famlia nuclear (esposas e filhos representam 87,8%dos dependentes) e o pouco peso dos agregados. Interessante notarainda que a presena da me e dos "agregados" em geral diminuiquando se passa dos estratos inferiores para os estratos superioresda empresa, indicando que a eficcia do "modelo individualista" maisdeterminante que o efeito mecnico do aumento da renda monetria(esse aumento podendo, em outros "modelos", suscitar um aumentoparalelo dos "agregados").

    O "tipo" familiar, que parece funcionar como referncia para ostrabalhadores do bairro estudado aqui, se encontra mais realizado nascamadas superiores da sociedade baiana que no se encontra noseu bairro, mas nas suas empresas.

    2) O grupo domstico se auto-sustenta. Isso o distingue das famliasmais pobres e o afasta um pouco de um referencial importante dobairro; a "familiarizao" da estrutura social. Esses grupos continuama participar das trocas monetrias e de servios de seu crculo familiar,mas esse tem menos eficcia na vida quotidiana das casas. De fato, aempresa ocupa (atravs da concesso de "salrio indireto") um espaoque era (na histria familiar) ou que (em outras famlias) ocupadopelas redes familiares e locais: emprstimo de dinheiro, acesso casaprpria, cuidado dos filhos de baixa idade, sade familiar, etc.

    3) Nesses grupos domsticos, a figura do "homem provedor" estrelativamente mais realada do que nos grupos inferiores. O statussocial dos trabalhadores reforado por seu status familiar honroso.

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    4) A oficializao do casamento se realiza sistematicamente, eas casas do a aparncia de abrigar famlias estvais, "equilibradas"e encaixadas na legalidade.

    5) Embora a representao sobre o trabalho da mulherinspiradasnas regras locais da honra sugira que a atividade feminina fora dacasa uma "vergonha", contradizendo a figura do homem "provedor",outros discursos e prticas se desenvolvem. Ao discurso "da honra" pelo qual a mulher "no precisa (mais) trabalhar" se ope umdiscurso "reivindicativo". Neste ltimo, a mulher pode "dar uma fora",ela pode mesmo participar substantivamente no oramento familiar.Essa atitude se refere explicitamente s condies de trabalho dohomem, a suas competncias profissionais e s necessidades criadaspela passagem para um novo estilo de vida, em breve necessidades ejustificaes que se formam no ambiente fabril10.

    6) Outros fatos "novos" aparecem, como, por exemplo, o fato deter e querer poucos filhos para poder responsabilizar-se por uma famliacujo tamanho seja condizente com o salrio atual e com o previsto nacarreira do trabalhador; ou, ainda, o fato de pensar em "projetos devida" para a famlia. Esses incluem, alm dos projetos "demogr-ficos"j mencionados, programaes de consumo de bens durveis esemidurveis, projetos residenciais, e projees profissionais para osfilhos. Essas ltimas projees so forjadas na experincia "mo-derna" do pai e incluem tambm a previso da formao escolar eprofissional necessria para alcan-las.

    A simples existncia de "projetos familiares" distingue essas fam-lias das suas vizinhas, mais pobres ou de insero scio-profissonalmais frgil, que vivem de urgncias e no tm a mesma "disponibilidade"para inserir a imagem da sua prpria representao futura na formaopresente do status social da famlia.

    Todos esses fatos e pensamentos ditos em torno da famlia sosimultaneamente, no contexto das relaes sociais e da hierarquia dosstatus nesse bairro, as marcas simblicas da "distino" e da identifi-cao do segmento do novo operariado baiano que ali vive.

    As diferenas constitudas por suas condies scio-profissionais,por suas prticas familiares, pela existncia entre eles de um referencialde "classe" e uma nfase individualizante adquirida nos espaos sociaisde trabalho, tudo isso determina a "estranheza" de sua posio socialno bairro. Estranheza que se expressa no fato de que, do ponto devista de suas rendas, eles alcanam (e s vezes, ultrapassam) as fam-lias do "alto" da hierarquia do bairro, enquanto no h, no bairro e

    10Uma indicao da repartio dessas duas atitudes opostas dada pelos nmerosextrados de 25 estudos de trajetria de trabalhadores do novo operariado, moradoresdo bairro. Sendo 18 casados, 10 tm esposas que trabalham (9 como assalariadasfora de casa professoras do primrio e secundrio, auxiliares de enfermagem, escritu-rrias, vendedoras de loja; e uma manicure em casa); as 8 outras esposas no tmemprego.

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    na sua estrutura social, um lugar previsto para eles. Isto : um lugarque os distinga das outras famlias de trabalhadores assalariados (deempresas comerciais, de transporte, do porto ou das indstrias tradicio-nais). Assim se expressa, nessa "problemtica" de posio, a "novida-de" do "novo" operariado no antigo bairro.

    No que concerne a suas prticas residenciais, alguns conseguem,

    atravs da herana, do casamento ou de relaes extrafamiliates, osmeios que lhes permitem assentar-se nos espaos "residuais" das fam-lias do largo ou do grupo "intermedirio". Ou seja: eles reformam rapida-mente casas que eram de taipa, quando foram compradas, ou cons-trem uma casa prpria no fundo do quintal de uma "casa da frente".

    Enquanto no existe um "lugar" social e espacial correspondenteao novo status que eles introduzem no bairro situao que os levarialogicamentea procurar outros bairros residenciais muitos esto forte-mente inseridos no bairro enquanto "moradores". Tm afilhados nasfamlias "equilibradas" e "carentes" das avenidas, participam das "tur-mas" do bairro e da vida associativa local.

    Os trabalhadores das indstrias do Plo, do CIA e da Petrobrsrepresentam uma parte importante dos participantes das equipes defutebol do bairro, como aparece na listagem abaixo dos participantesdo ltimo torneio promovido pela Liga local: num total de 123 partici-

    pantes que podemos identificar, sendo 91 trabalhadores: 22 (24,2%)trabalhavam no Plo, CIA ou Petrobrs; 6 (6,6%) em indstrias tradicio-nais e de construo; 33 (36,2%) no comrcio, bancos ou transportes;24 (26,4%) em servios (oficinas, vigilncia, etc); e 6 (6,6%) na adminis-trao pblica.

    Ademais, muitos deles participaram da montagem do bloco carna-valesco do bairro e so conhecidos pelos apelidos que eles ganharamh muito tempo nas suas "turmas", que continuam com a mesma com-posio heterognea no que se refere ocupao de seus membros.

    Essa insero nas redes locais e, conseqentemente, a identidadequase tnica que a encontram (produto de uma socializao onde oslaos pessoais permeiam a organizao social) determinam as tenta-tivas presentes de criar para suas famlias um lugar residencial prprio,por entre os espaos tradicionais dos grupos intermedirios e do "alto".

    Mas as suas necessidades de um novo "estilo de vida" introduzem,

    ento, prticas inusitadas no local; comprar, reformar, e mordernizaras casas com muito mais rapidez do que os outros; encher as casasde signos de status e modernidade (aparelhos eletrodomsticos, televi-sores em cores e vdeo-cassete), saturar a sala com mveis svezes de estilo "antigo", mas, mais freqentemente, com mveis "mo-dernos" de madeira de pinho.

    Essa acumulao de despesas, que visa compor famlias de umanova ordem, se integra simultaneamente ao conjunto dos smbolosda diferena social que se impe sobre esse meio "popular". A "disponi-bilidade" para pensar um projeto de famlia, para conceber as estratgiasde despesas de acordo com esses projetos, e para realizar essas despe-sas, lhes confere um peso especfico na recomposio da ordem de

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    status no bairro. Desse ponto de vista, os "novos operrios" exercemuma certa "liderana" na reorganizao das relaes sociais nos bairrospopulares da cidade.

    4. OUTROS ESPAOS

    Localizado social e espacialmente no "lado da baa", o bairro daLiberdade teria tendncia a "rebaixar" o status das famlias desse novosegmento operrio ao nvel dos outros trabalhadores assalariados ea mant-lo num sistema de relaes sociais cuja "familiarizao" perdeuum pouco de sua funcionalidade na organizao domstica das "novas"famlias.

    Enquanto isso, a reorganizao urbana, que se desenvolveu parale-lamente ao desenvolvimento industrial e econmico da regio, ofereceespaos "prontos" para esses trabalhadores. Principalmente em algunsbairros do "lado da orla" (Pituba, Amaralina, STIEP) e nos conjuntoshabitacionais da periferia do "Miolo".

    Tabela 4: Mobilidade residencial dos assalariados do Plo oriundos dobairro da Liberdade

    Mobilidade residencial' N. abs. %

    Ficaram na Liberdade Saram daLiberdade TotalOrientao da mobilidade residencial:Outros bairros do "lado da baa"Bairros do "lado da orla"Espaos intermedirios(inclusive "Miolo")Total

    57 52,851 47,2

    108 100,006 11,817 33,323 45,1

    (17) (33,3)51 100,0

    Fonte: Dados levantados em duas empresas do Plo Petroqumico PesquisaORSTOM/CRH, 1987.

    De fato, as "decises" individuais de reorientao urbana das fam-lias so praticamente pr-definidas dentro de poucas possibilidades.Dois tipos de questes "estratgicas" se movem nesses limites. Umaconfronta os pesos relativos, por um lado, da insero social em siste-mas de relaes locais e seus cdigos "quase-tnicos" e "quase-fa-miliares" e, por outro lado, da insero nos referenciais profissionais,ideolgicos e estatutrios da vida fabril.

    Mas os trabalhadores no tm disposies iguais para poder identi-ficar-se com a "modernidade" da nova coletividade industrial baiana.As suas trajetrias levam-nos a formas diferenciadas de insero indus-

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    trial e de auto-identificao (Agier e Castro, 1989; Guimares e Agier,1990). Essa confrontao de posies sociais na fbrica e no bairroatravessa a formao global da identidade social dos trabalhadores.Ela se traduz, entre outras coisas, na imobilidade residencial de maisda metade dos trabalhadores que morava no bairro da Liberdade nomomento do seu ingresso nas duas empresas do Plo j referidas e

    que continuam morando no mesmo bairro agora. (Tabela 4).Uma segunda questo "estratgica" se coloca na determinao

    dos bairros de destinao para aqueles que optam por sair do seubairro. Por um lado, os bairros do "lado da orla" esto mudando decarter. H poucos anos definidos como bairros de classe mdia, elesso progressivamente ocupados pelos trabalhadores das indstrias "di-nmicas" que fazem deles lugares prediletos de ascenso social. Dao qualificativo polmico de "dormitrios do Plo" dado a esses bairros11. Defato, se desenha no lado da orla, uma correspondncia entre umaidentidade profissional explcita nos estratos superiores dos trabalha-dores do Plo e seu posicionamento urbano.

    Para os trabalhadores vindos de bairros populares e pertencendoaos estratos inferiores da mo-de-obra das indstrias dinmicas, osbairros de classe mdia e alta continuam de acesso difcil. Ir morarnum apartamento de um conjunto habitacional na periferia do "Miolo";

    mudar, por conseguinte, o quadro de vida familiar; realizar, assim, umdistanciamento geogrfico e social das redes familiares e extra-fami-liares de socializao; e encontrar-se l junto a outras famlias trabalha-doras cuja condio de classe semelhante (insero no mercado detrabalho, nvel de renda, nvel de escolarizao, estilo de vida, tipo deorganizao familiar); essa a figura tendencialmente dominante damobilidade residencial do novo operariado sado da Liberdade.

    Os fracassos de tais tentativas de mobilidade, resultando na voltade algumas famlias para seu bairro de partida por causa do afasta-mento e do isolamento desses conjuntos indicam que, para aquelesque continuaram nesses novos espaos, a "escolha" foi apenas a incor-porao, consciente ou no, dos vrios determinantes objetivos queanalisamos aqui.

    A distribuio da mo-de-obra industrial pela malha urbana da Re-gio Metropolitana opera um ordenamento dos determinantes locais

    da formao de grupos diferenciados de status entre o novo operariadobaiano. Deveria acrescentar-se, assim, ao modelo fornecido pela rela-o entre o "lado da baa", o "lado da orla" e a periferia dos conjuntoshabitacionais do "Miolo", a cidade "segregada" de Camaari (Pinho,1989). Seria possvel, ento, estabelecer as correspondncias objetivasentre essas quatro "figuras" urbanas, por um lado, e os vrios nveis

    11"[O Plo] fez da cidade um dormitrio das fbricas do Plo, com bairros inteiros, comoa Pituba, crescendo freneticamente para atender s novas exigncias de morada"(Depoimento do prefeito de Salvador, Senhor, 27/06/88, p22, em: (Castro, 1988: 30).

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    de integrao profissional, por outro lado, para esclarecer, enfim, asposies distintas, nas hierarquias de status social que produzem asmarcas "culturais" do novo operariado, dos trabalhadores localizadosnesses diferentes espaos urbanos e profissionais.

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