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POESIA CADERNO 3

Caderno 3

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Caderno 3 da Enfermaria 6. Autores: André Domingues, Bruno Sousa Villar, Catarina Santiago Costa, César Rina, Daniel Francoy, Dirceu Villa, Ernesto von Artixzffski, Filipe Teles, Frederico Pedreira, Gonçalo Mira, Ismar Tirelli Neto, João Bosco da Silva, Júlia de Carvalho Hansen, Luís Quintais, Maria Sousa, Makki Ahtisaari, Marco Mackaaij, Miguel Cardoso, Nuno Brito, Otávio Campos, Patrícia Lino, Pedro Braga Falcão, Pedro Mexia, Raquel Nobre Guerra, Ricardo Domeneck, Rui Almeida, Susana Araújo, Vasco Macedo, Victor Heringer, João Moita, Manuel A. Domingos, Helena Bento & Rui Pedro Gonçalves, Cassandra Jordão & Hugo Milhanas Machado

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POESIA

CADERNO 3

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poesia

abril de 2015

Caso encontre este caderno, devolva, por favor, a: ........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................como recompensa: €..................................................

caderno 3

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Caderno 3poesia

Editores:José Pedro Moreira

Paulo Rodrigues FerreiraTatiana Faia

Capa e pormenores:João Alves Ferreira

Paginação:José Pedro Moreira

Impressão:Várzea da Rainha Impressores, S. A.

© Os Autores. Esta obra está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-

SemDerivações 4.0 Internacional.

ISBN: 978-989-691-370-0Depósito Legal: 390085/15

abril de 2015

Enfermaria 6

Fyodor BooksRua do Loreto, 13, S/L, Lisboa

[email protected]

www.enfermaria6.com

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Índice

André DominguesBruno Sousa Villar

Catarina Santiago Costa

César Rina

Daniel Francoy

Dirceu Villa

Ernesto von ArtixzffskiFilipe TelesFrederico PedreiraGonçalo MiraIsmar Tirelli NetoJoão Bosco da Silva

Júlia de Carvalho Hansen

Luís QuintaisMaria Sousa

Makki AhtisaariMarco Mackaaij

Miguel Cardoso

Nuno Brito

O calorCarmina suburbanaTarantellaPlutãoEstufaAstartéCampo de Santa Clara«Conheço apenas três estações

e não há»O poeta despede-se de algo

infinitoSmith & Wesson .22Primeira pressãoNo jardim abandonadoDois tipos de poetasDe Presa comumTrípticoResultados milagrososDavid Cronenberg e rãs

transmutantesOs livros são de natureza

mineralEcografia #3Podemos cantar uma canção

os doisCafé SampaSanto Agostinho no

intercidadesScuff marksLá (em alemão, Erlebnis)Um marinheiro = dois

marinheiros

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Otávio Campos

Patrícia LinoPedro Braga FalcãoPedro Mexia

Raquel Nobre GuerraRicardo Domeneck

Rui Almeida

Susana AraújoVasco MacedoVictor HeringerJoão Moita

Manuel A. Domingos

Helena Bento

Cassandra Jordão

How soon is now?Exercícios sobre a espera ICalifornianaSexta conjugaçãoPoema roubado aos índio

JívarosA nuvem HelenaMy back hurtsTexto para o menino que por

vezes me visita…«O homem que sente o calor

das pedras»«O homem lembra-se de

certas formas»Caixa de velocidadesPrometeuUm massacre em ParisPoesia diante do espelho da

morte: em torno de algumas ideias de Vergílio Ferreira e de Antonio Gamoneda

Ela está em toda a parte: algumas notas sobre a poesia

«Vou pegar na bicicleta e rodar tudo de novo até ser feliz»: à conversa com Rui Pedro Gonçalves

Entrevista a Hugo Milhanas Machado

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O calor

André Domingues

O calor cala a cena habitual, inunda de nudez e estátuas as nossas novas instalações. Despromove o equilíbrio fantasioso do corpo. Instaura uma regra movida a indisciplina, uma vida de estilo barroco minimal. Há um anjo na personalidade utópica da ventoinha. As horas adoecem por aí. Algumas, mais exageradas, chegam mesmo a morrer, sem darmos por isso. Os animais não dormem: derramam lentamente o seu instinto amador. As faces abandonam o seu âmbito mais ou menos prestável e pedem pão e liberdade às portas das grandes desfigurações.

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Carmina suburbana

Bruno Sousa Villar

Precisa-se de um nevermore, more than ever,Mas nenhum perigo de pássaro ominosoSe engancha no umbral da garganta,nenhuma mão se espeta num prego,

As rugas da espera são de expressão apática-Sem drama nem tragédia, porque nada,

Nada acontece, nada impõe a vida panicávelda sua presença, com os sentidos retesos,puxados até mais não num alarido de alarmesem parque de estacionamento

Nada, absolutamente, as coisas sucedem-senuma célere redundância de carrossel,de cores baças, confundíveis, indistintas, sem gritaria, gozo nem vertigemde feira, cíclicas,

Sempre as mesmas no relógio não rodandotédio nem desespero, não parado no seu loopmecânico de ponteiros sem somou mutismo impessoal de smartphone,

Com a lei do espírito do tempo sombreando,Os homens-sujo-mostruário, sem nenhumaAssombração, monstro, ameaça, apocalipse,Castigo, némesis,

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Vigiando esta escrita de severidade franzidade sobrolho matemático, esta área sem ária,leve ausência de metáfora, sinédoque, tropo, milagre,qualquer coisa

Uma coisa que seja que em causa ponha,subvertendo com a santidade musical do seu caos,a ordem genérica das não-espantosas coisas

Demasiado reais, içando-as içando-as em ombrosoperaticamente oh fortuna oh fortunacorais acima da sua própria condição

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E que, por acaso, a dança trepe, do mais plúmbeo deste esforço esforçado, Que o transe percussivo dos ossos acerte no mais raso deste

caso, nas carnes da terra, relha rítmica antes de se chamar cultivo,

lavradio, E que o mundo, por curiosidade, a isso assista, censurando,

celebrando, imitando, até ao desejo, mais raro, de matar por isso, atear desse êxtase estrito de estado limite, as decisões terminais da epidemia, da orgia, do sacrifício perguntando como quem não quer a coisa muito quem me dera morrer assim, que bicho lhe mordeu, me morda já

Tarantella

Bruno Sousa Villar

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A oriente lambia o sol da manhã aliviava o rubor da queimadura com um gole de água fria e um fio de azeite na língua. Perseguia-o o resto do dia até tombar na distracção do mar em vertigem sem veneração. Sonambulismo e nada mais.

Plutão

Catarina Santiago Costa

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Estufa

Catarina Santiago Costa

I

Pinte-se com materiais vizinhos:azul de metileno branco gaze tintura de iodo.Nos vértices os vasos,nos vasos feijões adultosgerminam pesamnos algodões húmidosesperam salvo-condutode regresso à vida e ao cafésem sabor a conchas.

II

A semente com arbóreo rebentosua e cozeembacia a campânula(no interior um microcosmos vegetativodo interior um universo côncavoperscrutam-se infinitos).

III

É domingo. Na estufaescuta-se a missa tridentina.Os hinos e o Salmo 22embalam a fotossíntesea melodia líquida expia a clínica botânica,adentra-nos na floresta equatorial,marco zero em todas as bibliotecas.

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césa

r ri

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En otra vidafuímos salto de oceánoy laberinto de huída.

En otra vida, Astarté,le aullamos a la lunaoscura del amanecer,y hasta los lobos aullaronde oírnos lamer,cal y hueso,carne contra la pared.

Astarté

César Rina

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césa

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na

Campo de Santa Clara

César Rina

Campo de Santa Claracon tu horizonte infinito,no hay rastro de tus virtudesni de tus viejos capítulos.

Campo de Santa Claracon un kiosko en el centro,turistas y cosmopolitasvienen a apagar sus sueños,limonada de fresas,sandwich de viento,en oro se pagan tus sillas,en oro de cuño nuevo.

Pero al Campo de Santa Claratambién van a parar los viejos,los del tiempo imperceptibley la mirada de cieno;sientan en los poyoscomo sentaron sus abuelosy ven el río al fondocorriendo hacia los oceános.

En el campo de Santa Clarahuele a porro añejo,son los jóvenes paradossin esperanzas ni espejos.Allí van a penarcon sus gorras y sus perros,

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para verse reflejadosen el poyo de los viejos.

Turistas y modernosquiseran ser viejoscomo esos jóvenes pérdidosen el malecón maltrecho.Ancianos y porretassueñan con ser viajerospara sentarse en el kioskoa ver pasar o Tejo.

Parroquianos y viajerosse miran con recelo,cada uno quisiera tenerlos pies en otro suelo.

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Conheço apenas três estações e não háano que não seja coxo – três estaçõesapenas: a da luzprolongada, a da luz estioladae a do regresso do calor.Retornam os dias e retornamos poemas sobre os seus ciclos.Olá, coração estragadocomo um piano deixado ao sol e à chuva,como uma aurora borealsobre a feiúra dos arrabaldes.

A avenida mais imunda é o iníciodo que chamo de casa: uma fileirade terrenos baldios com bichos mortosapodrecendo entre o mato e as pedras;torres emulando castelos de princesasou coqueiros de néon imitando praiasna entrada de motéis; carcaças de carros;depósitos de materiais de construçãodeixados ao léu; o entardecerregurgitado por máquinas fumarentas – a luz crua, escassa, puídaque resseca narizes e gengivase arreganha caninos que sentem fome.

O meu reino é uma legiãode cavalos magros, de prostitutas

«Conheço apenas três estações e não há»

Daniel Francoy

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de braços como gravetos e de rapazesaos quais a noite vême deposita ovos escuros em seus peitos abertos.Olá, inverno súbito nos estertoresde uma sexta-feira. Faz frio e o metaldas placas de trânsito e dos carros estacionadosé o fio de uma espada geladaa separar entranhas e a torturar o tédio.Por vezes chove e um bueirotransborda e retornam à sarjetalixos e ratos. Por vezesdorme-se se com o coração acariciadopor um sussurro brando, por uma garoa,e instala-se a suspeitade uma manhã, de um céu lavado estendido sobre a infinitude dos subúrbios calcinados.

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O poeta despede-se de algo de infinito

Daniel Francoy

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Hei de regressarmas será no invernoem alguma casadiante da praia:o tédio, o sal,a pele ferida,ferrugem que a noitepõe nas dobradiçasdas portas quebradase no coraçãoque ficou – brinquedotambém esquecido,carrossel de ferroque ainda gira entrerisos e ruínas.

No imenso amanhão início da chuvalava até os ossos,as gaivotas somamo branco ao branco,sombras e memórias(bafejo de nada)hei de regressarna aurora depoisdas questões inúteis:brindar com arsênico,

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abrir os pulmõesao vácuo estelar,escavar a luznos subterrâneos.

2

No imenso amanhãum bafejo de salo início da chuvaque lava até os ossosas gaivotas somandoo branco ao brancoe eu de regressosombra e memóriana aurora depoisdas cogitações inúteis:beber arsênicoabrir os pulmõesao vácuo nas nebulosasescavar a luzno claustro subterrâneoabandonar o meu nomeà sorte das raízes.

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eu v

illa

velha smith & wesson .22 ela engasgaagarra o dedo no gatilho a cada tiroo coice fuma, faísca no metal,olhos se contraem ao som ardido e o tiro explode na parede, sopra a cal;

revolução de 32, a colherque mexe o chánum maremoto

e veio a mim esse revólverenvolvido com seis balas num lençol,relíquia de um distantetio-avô

e veio a mim segredo de encerrar a violênciamá ferrugem perto do esmaltado

todos guardam souveniresrotulados na memória de aventuraou outra arte tão espúriae sem dizer convenientea noites e fogueiras e conversaque requentam feitos duros agora que o sol lhes parece –york a ricardo – demasiado luminoso.

Smith & Wesson .22

Dirceu Villa

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Primeira pressão

Dirceu Villa

todorov enfim admite que se lê a teoria e que não se lêem os livros e que isso não é nada bom

o pólen se desprende no ar brilhante flutua suave ao vento

giacomo, de cama, ouviu la stregaresguardou-se e recebeu a visitaque o ergueu pela primeira vez em muitas

magicam operari maritare mundum segredos alguns nos livros, outrosna vida, certamente não no explicarnão no expor, nada disso

como arrancar a borboletada crisálida ou extinguir na flor a forçade uma essência por pressão

cícero, o advogado ciceronede turistas no estoicismo,no estilo, espremendo grego, retirando a pequena abstração a fórceps, essentia a umbrosa sombra de sombra

folhear esta floresta encadernar sua vida com a garganta

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von

arti

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ski

No jardim abandonado

Ernesto von Artixzffski

no jardim abandonadode calmas alvascamas almaso passo pretorepousa sobre a neve

o calor a consumir-seo frio a possuir espaçosvazio virando vozes

terras escavadase o túmulo aberto a encher-se da chuva

em San Francisco teus olhos adormecemo abismo do teu filho em teu coloe os longos negros pelos dos cavalos

rubrocéusecothe wind whispers what could have been warm

a Francisco De Matteu

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eles

Dois tipos de poetas

Filipe Teles

Na gare de Lyon ouço música pop Não sei o que faço aqui com os guichets preenchidos de perguntas Em que lugar? Qual o cais para Grenoble? E espero, como tantas vezes. Jornais, revistas, sanduíches Humildes balcões húmidos repletos de publicidade

desinteressante Viagens circulares sem destino, de quem espera sem correr, sem vontade. A mulher de verde com óculos escuros O homem de fato a tentar esconder o coçado do colarinho O homem de fato a tentar disfarçar as sapatilhas O de sapatilhas a tentar arrebatar o porta-moedas da mulher

de verde Os gritos da velha que não sabe do marido que está mais

interessado na miúda loura Coca-cola que aqui se diz côcá Batatas fritas, frites, frites, E o cheiro imundo a óleo E espero com os miúdos que correm para lá do alcance dos olhos. Os papéis voam-me São os aviões na gare de Lyon

À minha frente, enquanto aguardo o autocarro, lê triste um livro - verso foleiro, mas o rosto era esse.

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fili

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eles

Não percebo o que lê. Triste porque parece não que tenha a certeza. Está na idade de ler livros tristes. Com as mãos a vibrar lentamente sobre páginas antigas As palavras sussurrando-lhe ao ouvido Cenas imaginadas, mais ricas do que o próprio textoMais húmidas do que a chuva Ou o balcão imundo Como se fazer-lhe mal fosse um primário desejo.

Apetece sair e dar uma boa caminhada entre os autocarros Respirar o ar puro, ou o fumo do escape, Ver luz Sem a voz repetida do anúncio dos cais de partida. Apetece mergulhar numa queda de água Bater a espuma nos ombros E sorrir um verde imaturo. Mas sou puxado de novo para a gare. Para a espera em viagens circulares sem destino, com as folhas

a fugirem-me, sem lugar onde sentar, apenas aquele com ela de frente segurando o livro como cálice sagrado sem fingimento só lágrimas e vibração religiosa.

Se falasse talvez eu desistisse de a admirar talvez tudo fosse muito mais normal e a cheirar a óleo como

tudo o resto. Há dois tipos de poetas, os que trabalham com imagens e os que produzem as imagens. Os últimos morrem por dentro e nós morremos pelos olhos. A única forma de estar verdadeiramente a salvo

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é ser cego Uma cegueira que corre em sentido anti-horário anti-vida que nos entra pelos olhos. Ou então fechá-los propositadamente sempre que doam. Quando a imagem fere e essa dor se mantém intimamente, como um silvo interminável. Se um dia penso numa cor, verde ou laranja, não preciso encontrá-la para sobre ela construir um poema. Mas se a cor, o verde ou o laranja, vem ter comigo,então posso cegar-me de dor.

São quase três horas. Olho-a uma última vez para deixar a ferida por cicatrizar embutida nos olhos por dentro - pelo menos por uns minutos, enquanto me durar a vontade.Não a deixo falar, não a quero ouvir, nem mexer. Deixá-la ali quieta é melhor. A vida é água fria com menos sabor do que a imaginação - pelo menos a minhade onde consigo domar o destino e despentear a realidade até ela gritar de prazer. Deixo-a girar ritmadamente as páginas sonhando-a como quero - sem que fale, nem me olhe.Melhor assim, sublimada, despenteada, irreal, quente.

Na gare de Lyon não há aviões. Há livros e lágrimas escondidas.

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De Presa Comum

Frederico Pedreira

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Primavera. Mas quem disse?É esta a luz que de quando emquando enterra o bico do lápis,o erro inteiro que se desprende,espuma escadeando em sala perdida.

O entardecer, entre outras coisas:tomando calmamente o fim do mundonum copo de cerveja morna.A conversa sempre difícil,palavras que olhadas cegam.

Nem no fim da madrugada, sentados na praça escura de pombos adormecidos,encontramos fim nalgum sentido.Tão tristes que então somos,há um ardor mas falta-nos a garganta.

Olhos devassados pelo vento, o riso de tão farto descola-se-nos dos dedos,e vencidos retomamos todos osobstáculos imbecis da noite:temos muito que fazer.

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Andamos até ao centro do ruído, ao círculo em que tudo se comove.Não sei falar de outra coisa:esta casa, vozes espantadas,risos que bafejam mais vida sobre a corrente daninha que nos amarra os pés.

Sentada no colo de ti mesma,num canto remexendo cabelos,nunca soubeste de tal encontro.A conversa entretida com seu arrombo,puxando varizes, convertendo noções,eu a morder o menos possível numa hora discreta para que chegues.

Mas a hora não avança nem resolvee eu pensei que estávamos juntos.Os meus sinais são teus papéis ilegíveisdeixados sobre a mesa, ardendo fundos num prato sujo. A persiana faz subir a luz: equação mirabolante.

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Aos ouvidos a reza, a partilha deste momento com mãos atadas sobre o peito.A tua reflexão nocturna, decorandoaqueles que querem morrer neste dia.Não são mais do que holofotes queimados osvultos de nenhures que te fazem companhia.Há dias com gosto, levadas de prazerque se desfazem sobre o nó do corpo.

Desatento passeio pelos teus ombros,medito nos claros limites do riso,não acalmo a besta que agorame cruza as mãos em despedida.Tu, eles, nós: pronomes do acaso,apodrecem com malícia no quintal.O cesto vazio da minha vida paraonde te trago: já disseste tudo,o nosso contrato quebrado.

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Ceder ao peso do amor, lembrar ocasiões, a conversa num feixe e o caso ainda indestrutível de certas cores.A crença: tão miserável se agora puxar pela cabeça.Regressa-se à casa de partida:raro conseguir sair deste lugar sema transfiguração, a ida ao caixoteque pobre se impinge.O amor ultrapassado:por respiração entendo jogo viciadoe quando saio não reconheçoo ponto assente, o até agora perdido.

5

Não nos atropelamos ou matamos por acaso. Vejo com surpresa como ainda lhe é bondosoo meu passar estreito, de ironias mansas lheé feito o meio sorriso e assim me devolve o silêncio por cada porta que atravessamos. Andamos de passos contados. Melhor, sigo-a eu, recomeçando com vagar openúltimo copo, atónito ao espelho. Reconheço-a, mas só ao ponto deperceber o seu modo abandonado de mim, manchado de feminino. É isso que gasta.Acho-me imenso de movimentos, como uma corda desfiada num chão de poeira.

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Longe da idade da família, cresce a certeza de ser uma só voz entre pulsos reflectores.Remexemos o baralho de horas e papéis; às vezes, é só a indecência de outra coisa morta debaixo da mesa.

Nunca mais comeremos da mesma pobreza fumegante: agora é a vez do cigano que bate à porta, arranca peles, mostra-te as melhores partes, experimenta tudo,esfrega-me o nariz no risco entontecido da tarde.

7

Rosto negro de tão curvado,como se perseguisses a desatenção,nem te pergunto pela urgênciada sílaba, a vertigem da fraga, não darei mais para o vestuário desta dor:tenta só equiparar a minha cabeça doente.

Estes poemas integram o livro Presa Comum, entretanto publicado pela Relógio d’Água. Versões anteriores dos poemas

foram previamente publicadas no blog da Enfermaria 6.

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Tríptico

Gonçalo Mira

I

Fosses tu um rio e euum seixolançado por mãos hábeispara te tocar a peleuma veze outra e outra e outra.E mergulhar em ti.

II

Ponho as mãos em conchadebaixo da torneira e penso:Como seria bom que aqui estivessese a abrisses.

III

Fosses tu o mare eu pedra que submergisse em tibrotando anéis concêntricos de pequenas vagascomo para te circunscrevernum abraçointeiro.

para a Estela Bento

«(...) É costume dos poetas, dedicam muito.»O Ano da Morte de Ricardo Reis, José Saramago

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Resultados milagrosos

Ismar Tirelli Neto

«Meu filho adolescente anda a ler os estoicos», ele disseuma janela domina(não há outra palavra para)relutância em admitir que a luz é âmbar(sendo as velas um perigo para o edifício inteiro)então escrevi a meu pai o médiconão excluía de todo a possibilidade de uma hérniaera Lídiaquem me respondia agora era o olho direitoou seja, a cirurgiavou perguntar mais uma vez «de quem é essa letra?»meus irmãos, bem entendido, não disseram nadativeram outra criaçãonão pude me conter quando ele se confessou triste por estar

ausente do consultório há mais de uma semana(estranho, não? a vida fora contemplando um bocado

monasticamentea ideia do suicídiopara ser acometido tão logo divisasse a curva dos trinta por

esse – como se diz? – «insuportável desejo de viver»)não, talvez nãolançou um olhar um depois do outro sobre eles e disse quero

a sua idade«será possível sem o recurso às cifras?»não eu não vou descansarnão eu não vou descansar até quenão vou aceitar não como não vou aceitar como não como não

como respostanão consigo cogitar dos fatores que levam um Indivíduo a

optar pela Medicina

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(ele pretende, de fato, reembolsar o atual amante de sua esposa pela passagem?)

e afinal quando eles chegam não configura exatamente distensão

pelo contrárioresta sempre engatilhado o medo de folhear aquele antigo volume e reencontrar-lhe uma mesma inflamação nas amígdalasnão comigo só (o caso de tão brandos reencontros)a caminho do cinema, vejo-me obrigado a explicar para minha mãe que nossa última entrevista não foi triste e simconstrutiva«é bom que a casa fica mais arrumada» simque mais que ela faz?ela domina (não há outra palavra para) certo configuro de

muros e telhase as cheíssimas sombras da vizinha broméliaconcordo –, isto não é vidasente-se nos quadris a troca de estaçãoretiro o casaco de seus referentesesta planta é de mau tomminha família inteira resolve colocar as diferenças de lado e

reunir-se num armazém do cais do portono intuito de me alertar para

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a si

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David Cronenberg e rãs transmutantes

João Bosco da Silva

Foi preciso um sonho para compreender a tua coisa por sapos, Panero, apesar

De não ter percebido a transpiração irónica do recalcamento, depois de ter

Assassinado uma chinesa velha num salão de ópio, e sentir aquela culpa que é medo

E ao mesmo tempo desejo de ser apanhado, ao estilo de Raskolnikov, se te dissessem

Que doze anos passavam e tu ficavam quase na mesma, esmagado por tudo o que

Entretanto deixaste para trás e te faz, mesmo que passado, não foram sapos,

Mas foram rãs, que não são o mesmo, não repugnam todos, tem algo de erótico

Na silhueta e na forma como estão húmidas, não fosse o sangue frio,

À beira de um rio que apesar de não o ser, em Portugal, a erva alta, mas fresca

Como nos Verões nórdicos, e rãs armadas em gatos pretos, atravessando um caminho

Sem destino, ao lado do rio, o rio sim, o mesmo onde o velho e o peixe, há doze anos,

Quando te armavas em Bandini de dezoito anos aos dezasseis, centenas de rãs,

De todos os tamanhos, de pernas bem torneadas em todo o comprimento no ar,

Cruzando o teu espaço à distância temporal de um passo, um deslumbramento quântico,

Num entardecer de floresta com o Sol ainda violento entre as folhas e a promessa

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De uma Lua vermelha, ou amarela, as rãs, verdes, amarelas, verdes e amarelas, azuis,

Vermelhas, todas apetitosas, estranhamente apetitosas e repugnadas pela

Minha intromissão no meu próprio sonho, cogumelos venenosos nos olhos,

Já a velha chinesa esquecida, nunca aconteceu, não nesta linha electroencefalográfica,

Foi um sonho, isto sim, é, o reflexo demasiado distorcido de um dia abusado pelo excesso

Dos olhos pela carne, ou da carne pelos olhos, numa clareira, uma exposição de raras rãs,

Enormes, homúnculos em frascos e redomas de vidro, rãs transmutantes, subitamente

Todas elas brinquedos antigos, a sorrir para um baú de sonhos partidos e esquecidos

Debaixo de tanta página arrancada à vida, ao ler a descrição da espécie, lembrei-me

De uma vez ver num Domingo de manhã, depois dos desenhos animados, uma ave

Que reproduzia todos os sons que ouvia, mesmo os artificiais, uma máquina fotográfica

Por exemplo, fez-se noite e tudo se tornou dentro, num divã, num quarto pequeno e escuro

Em Moledo, a tornar-se grande à medida que a escuridão crescia, e o medo, a morte,

A velha chinesa de volta, o medo tão grande, tão pesado quanto o vazio, asfixiante,

Tem que se acordar para respirar, inspirar fundo o fumo tóxico da realidade

Para lavar as cirvunvoluções do excesso de serotonina e da culpa por defeito.

Turku09/07/2014

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júli

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car

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nsen

Os livros são de natureza mineral. Alguns bebem-se outros se proliferam como água. Outros pedra, não fruta, rocha da onde brota a tua pele. Passa por cima uma formiga. Há capins vibrando vento e sol com sombra o musgo cresce, um mosquito entra na tua boca e você cuspindo cai na água que alguém numa cidade adiante distante, talvez sem mágoa vira a página bebe.

Os livros são de natureza mineral

Júlia de Carvalho Hansen

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luís

qui

ntai

s

É uma imagem do tempodesenhando-se, flor, floração, fértil sombra, alma.

Ecos desfiam o perfilde Amélia, ombros,dedos, olhos, encéfalo,pétalas, sépalas,sonhos.

Ecografia #3

Luís Quintais

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mar

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Podemos cantar uma canção os dois

Maria Sousa

podemos cantar um canção os doisa valsa da matilde do waitsa voz do vinagre onde o álcool se transforma em som

algures no nosso oestecactos e bagaçoo blue valentine na kentucky avenue

uma lágrima numa longanoite sem fimporque esperamos?não seijuro que não sei sentada na bermajá tenho doses de noites amaisde esquinas e portasde adeus em adeuselas não suportam a separaçãonão choram mais porque secarami never talk to strangers

o som da cidadefica restabelecido e já não tenho horaso relógio paroue eu fiz um gesto obscenoe desapareci

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mak

ki a

htis

aari

No Café Sampao café é sumo de peúgas,os bolos, borracha da Sibéria,o vodka, metanol puro,não há serviço às mesas,mas, felizmente, o empregadoe caixaé casmurro e malencarado,calado como uma renaa pastar neve,e deixa-me em paz com a minhadepressãotamanho familiar.Ali estou sozinhocomo numaretrete privada.

Café Sampa

Makki Ahtisaari

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mar

co m

acka

aij

O cabelo dela era uma tentação de éguas selvagens.Indomáveis contornavam o seu rosto e pelo valedo pescoço corriam até às colinas do peito.E prendiam o meu olharnum êxtase de Santo Agostinho:Senhor, dai aos meus olhos a castidade – mas não ainda! Só para disfarçar, cada vez que as crinas delagalopavam na minha direcção, eu fazia penitência e flagelava a vistacom as borbulhas do garanhão ao seu lado.

Santo Agostinho no intercidades

Marco Mackaaij

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mig

uel

card

oso

Nós a quem foi ditoem reuniões em torno da tese

Break things up

Split paragraphs

Flag up new things

e sobretudo

Move the argument along

e mais liricamente

A few more signposts / less gentle nudging.

que era maio não era maiode resto usávamos mal o tempo mas é certoque víamos snooker até às 5que às 7 chegavam agentespara inspeccionar os nossos usos do espaçocontra inventários anterioresdo estado da matéria(levando em conta a passagem do tempoo inevitável wear and tear do mundo)

Nós em exílio rodeados do magro espóliode visitas à loja dos trezentospresos aos corpos ao fumo ao ecoao cotão solto à voz baixa a epígrafes

Scuff marks

Miguel Cardoso

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oso

à marginalia de fábulas mínimasa um pequeno dicionário de bolsoàs contas da luz aos rumores de riosocres do outro lado do mundo– essas veredas e cúpulas –víamos televisão com o fundo do ar a negrocomo num filmede um cineasta muito políticoembora para aguns algo sfumatoagora em fase intimista atonalde nus reclinados grandes planos de retinase torneiras – leu porventura rilkea mais - filmado talvez em Parisdentro de portas (e Paris seria a luzmovente e vento nas três janelas altasque mal abriam sendo que a luz era poucae não era Paris) ao longo de três mesesou quatro meses de desilusãona desilusão de finais dos anos 70que pedíramos emprestadae acordávamosera já noite num estúdio com um pequeno jardimnas traseiras ao lado de belíssimas pizzas finas:quatro ingredientes, 5 libras

que juntámos assimmantimentos para mais uma mudança de casae colhíamos já meio desfeitos livroservas desconhecidas sofás em óptimo estadoque um banco ao virar da esquinadeixara no meio da rua, nós que chorámosa morte de ratos, encontrámos máquinasde café krups no lixo, com o versoque nos parecera autobiográfico:

sligh leak, no frothing, otherwise fine.

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Lá (em alemão, erlebnis)

Miguel Cardoso

Para poeta a sério falta-me a concretudede ter um dia percorrido as ruas

as ruas todas

Precisaria para isso de me levantar mais cedoou mais tardee ter outra soltura rente ao chão

Se soubesse teria aprendidopor exemplo a manobrar binóculos de plásticopassando-o de uma mão para a outrapara maior ligeireza das vistasa caminho do café para o primeiro da manhãou de outro sítio onde talvez me conheçam vagamente

Há sítios onde me conhecem vagamente

Terei experimentado alguns cigarros fora do víciopara melhor custo-benefício

Mas o certo é que não percorri quase ruas nenhumasnão as percorri pelo menos como deve sere os meus amigos só bebem quando calhae às vezes cai-lhes mal

Passeio entre os néons quase sem dar por isso

É que terei percorrido talvez umas quantas ruas

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ou seja em termos poéticosisto é bem medido por medidas rigorosamente poéticasquase ruas nenhumas

Um dia que tentei melhor performancedeslizando no passeio sujo pelo meio de roupa velharente à parede e depois não tantotrês ou quatro pingos de goteiras escusas e tudomesmo entre os olhos e os óculoscomo mandam as regrasmas desencadeei acidentespor ir distraído com uma aranha nos cabelose a respirar o embalo de versosboca-a-boca com ângelo de lima

É que não vi verdadeiramente as ruasNão verei porventura verdadeiramente as ruasnão sou dos filhos certos de cesárioe o álvaro de campos apanhou-me já um pouco de ladopor causa de umas doses de artaud no liceu

(essas acertaram-me em cheio na pestanaque não usava ainda óculos na altura)

Vi quem tenha vistoisso vi e encostei-me fiz-lhes muitas festas nos péssei a geografia do calo e do tenromas eu próprioque sou dos filhos também não muito certos de pessanhapor via de coca-cola vídeos de terror e frank zappae também de pais embora não saiba ao certo comonão vi não verei não estou sequer bem a ver

mas talvez tenha tocado

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oso

por sorte certamenteo ponto onde coisas tocam noutras coisas

Fui lá com a língua

Este poema foi entretanto publicado em Fruta Feia (Douda Correria, 2014).

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nuno

bri

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Um marinheiro = dois marinheiros

Nuno Brito

Mãe, amiguei-me de um marinheiro e agora vou com ele para terra, Peço-te que enquanto isso te mantenhas à superfície ou que venhas a ela sempre que possas Trouxe-me um girassol - O caule e o pulso seguro pareciam um só é um marinheiro terra-tenente que me diz que o mar parece um deserto, e agora fui comprar linha dourada e faço um lenço bordado para lhe dar – Mãe, ele vai para terra firme, para o meio da terra firme, Uma cidade perigosa, os vícios humanos, drogas, tentações, passo o dia a costurar a renda no lenço: os três pastorinhos, uma aparição mariana, os doze passos da

vida de Zapata, todas as figurinhas que me ensinaste a bordar, Não faltará uma pomba com as duas patas partidas - Símbolo de quê? - Vai perguntar o meu marinheiro, sou um Coala mãe e ele é uma árvore, e então abraço-me a ele, e o tempo passa e passa até que um cartógrafo venha fazer um

mapa do tempo que será a nossa toalha, na nossa mesa da cozinha, a casa humilde mas aportuguesada onde todos serão

bem-vindos e onde haverá pão para todos, um pão para 5 ou um pão para 50, mas sempre um pão,

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nuno

bri

to

Sei que também agora sou um marinheiro porque Um

Marinheiro = Dois Marinheiros, espera uma carta minha, nela vou-te contar tudo o que se passa nesse mar onde agora caminhamos, esse estranho mar cheio de pó, pode ser o Arizona, Oaxaca ou

o vale de Arouca, mãe, um dia, eu e o marinheiro que também sou eu vamos nadar até ao meio dessa água, enquanto isso peço-te: não te deixes ir ao fundo, vamos levar um pequeno coala com sangue de pirata e seiva de pirata (árvore e girassol) Também dentro dele a música vai bombear o sangue para

todo o corpo, Vais-lhe segurar os dedos finos, as tuas memórias já lhe estão

ancoradas no peito, dentro dele memórias que nadam como cavalos marinhos no sangue azul da nossa família sem nome ou história, vais ver nos olhos dele os olhos da tua mãe e nas palavras dele

um eco que dança. Peço-te Mãe, enquanto estiver em terra firme, não te deixes ir ao fundo… Vai-te trazer uma caixa, lá dentro um girassol, uma granada e

duas asas, enquanto isso, anda à superfície muitas vezes: Que te puxe uma memória do Futuro, Que te puxem uns olhos que também são teus.

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otáv

io c

ampo

s

do Arthur

(de verdade)imagina

um recorte de revistade mim deitado numa cama uma foto do mundono fundo bem grande um pôster e uma sessãode fotografias

existe um nome técnico para vídeosfeitos de fotografias mas agoranão me lembro

eu no Brasil:Rio de Janeiroeu recortee aí uns recortes de sonsThe Smiths

e eu vou subindo

primeiro a parte direita sobena primeira foto meus pésporque eu estou deitado aíminha cabeça isso em fotos

sucessivasmuito rápidas

How soon is now

Otávio Campos

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otáv

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ampo

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não tão rápidasque não dê para perceber que são fotosindividuais

aí vou subindo assim e em menosde três segundos eu estou forado mundo o vídeo dura uns cincosegundos é o suficiente

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ampo

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Exercícios sobre a espera I

Otávio Campos

Eu não sei quanto a você, mas os peixes estão cada vez mais tristes nas fotografias

Desenho um jardim para as plantas onde ele entregaria o corpo cansado

De manhã compro ovos sou bem mais útil do que a tarde

De tarde molho as plantas de tarde fumo cigarros e estudo a arquitetura da casa

De tarde quebro os ovos amasso com farinha um bolo amarelo ofereço ao dia A casa antiga eu desenharia um peixe em cada parede abro de tarde um livro antigo

he knocks on the crown as though to dislodge a foreign body, peers into it again, puts it on again

De noite a casa tem fantasmas a casa sou eu sou a casa as luzes acesas um livro que queima lento

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otáv

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Eu ficaria pensando se não fosse aquilo tudo se não fosse aquilo tudo.

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Californiana

Patrícia Lino

To get to know you in CaliforniaI needed three airplanes, two bags and a gardening manual.I ate exactly fifteen avocados and drank exactly twenty two

coffeesbefore stealing a bike for myself. After I stole this red bikeI realized I wasn’t in Porto anymore. Too many palm trees.So I bought a little cup of coffee just to prove a point.As soon I found out that any kind of Californian coffee would

fit in such a small cupI abandoned the idea. Actio personalis moritur cum persona.And immediately after I took a bath in Del Playa, immediately

after the mountainsand the yellow I survived to a flu in California. And as soon

as the fever endedI wrote a poem about the noise of the tap in my Californian

kitchen.Later I got to know my condo’s cat one day during the morninglaying down on the sunny floor. I spoke with the cat for ten

minutesbecause a Californian cat is no different from any cat in the world.I carried a bed, ran a shopping car with both feet, read

Elizabeth Bishop and touched the biggest tree in the South before I met you in California. I

also bought a pair of pants, a cigarette pack and a lighter where it is written light

my fire because in California I have a bad taste for lighters. I told my first Spanish sentence chica, no puedo todavía

hablar español

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patr

ícia

lin

o

to a fortune teller in Santa Monica pier while eating shrimpsbefore you taught me Spanish mientras hablábamos sobre

nuestras vidas en Califórniaand then I realized that I could’ve known you in Guatemala,

Mozambique who knows if in Japanwhen I met you in California, just because I used to park this

same bike at your door even before I stole itand because your eyes have two colors, mostly because your

eyes have two colors

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ão

1

Não componho versos. Deixo-os.Não porque esteja na minha natureza a liberdade,não porque acredite nos deuses,não porque não saiba contar as sílabasaté formarem os sons do silêncio.Porque a minha alma nasceu sem ritmo,e as palavras têm de a dizer em acentos.Um dia hão-de dizer que fui músico.Foi um acaso do português,contingência certa da poesia.As palavras vencem sempre.

Sexta conjugação

Pedro Braga Falcão

2

Foste e nessa vertigem de seresvestiste as palavras com a incertezade quem nunca sorriu de vento.Sim, bem sabias que cedo ou tardeos monstros te encontrariam o rasto,deixadas as pedras, tomado o fio,para que te encontrassem à espera.A vítima cabal de quase tudo,e igualmente inocente de toda a glória:labirinto sem imagem ou espelho.Eras e nessa tortura de seresa ti própria te devias respeito -

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ão

em comunhão com os que te amaram.Agora já não inspiras. Renasces.Tens mesmo carne e mesmo sangue.És e nessa existência de seresjá não feres nem fazes sinuosaslinhas com que te não teces.E a palavra salvação, assim dita,despreocupada em toda a essência,faz sentido agora na tua boca,pronunciada ao acaso das sílabas.

3

Adeus - disse - com ar de montanha -fosse como fosse haveria sempre caminhopara quando as pedras fossem terra.Não que partisse sem regressar,apenas porque gostava de o dizer -- adeus - como se fosse tempo de existir.Uma a uma, silvestres, as folhasnão tem recordação de ela partir,quando nos vales os rochedos sorriemcom o sol entre os braços.Nem quando sair é em silênciodeixa de haver som no horizonte.Ela agora, penosamente agora, faz horasaté ter alguém de quem se despedir.Porque tão bem lhe fica essa palavrana doce cor dos seus lábios.

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ão

4

Odiamos a palavra imaginação porque ela acorda,odiamos o choro da criança que desperta,odiamos o ritmo dos outros, o amor dos outros,e gostamos de falar sobre a democracia,comovemo-nos com os líderes que precisam deste mundo,odiamos o desprezos dos anarquistas, desprezamos os sábios,odiamos os que não se convencem do aqui, da certa ciência,odiamos os que nos acenam com a incerteza,e de dentes arreganhados, incrédulos, gordos e ridículos,ou fracos, magros e possuídos de miséria gritamos«Utopia, utopia», de peito pleno, convictos, acusamoso que não pode ser, o que não dá para ser.Maldito, maldito seja quem inventou formade negar que somos capazes de tudo.Utopia? Estarmos plenamente nós, em cheio?Àquilo que sabemos ser difícil, escondidos,chamamos confortavelmente impossível.Ah, e como amamos os que tentaram e falharam,o deus que tentou e acabou ferido,o que quase provou a morte na fome,o que morreu mártir de uma causa possível,como amamos o herói que na vitória perdeu,o amante que amou até ao momento da morte,o descobridor do mundo que já existia,como amamos as virtudes do mais idolatradoquando cai no erro de ser humano.Escudamo-nos na indiferença do impossível.Ah, é tão fácil dizer que não dá. Não dá.Não temos tempo. Rimos. Não temos tempo.Que coisa horrível. Não temos tempo para o impossível.Mas no fundo, aqui entre as tripas, o fígado, os rins,sabemos que somos uns fáceis aldrabões, uns logros,

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e até nos alegramos que alguém inventasse a utopia.Sim, ainda bem que nos podemos defender de nós,e fechar os olhos e simplesmente ignorar que todos,todos, todos nós somos perfeitamente capazes.Ah, mas não o digamos assim às claras,não o apregoemos no fórum, nas escadas, no senado:calemo-nos antes à espera que nada aconteça.Essa é verdadeiramente a nossa utopia.

5

Mandem fechar o mundo.Sentem-se e insultem-se. Porquê esperar?Se lá fora não morrem,nunca se acaba de comer,têm sempre fome, que desgraça,que suma inconveniência.Mandem trancar os relógios,façam filas certas para a revolução,levem-na até aos salõese discutam-na na Assembleia.Mandem fazer pouco do futuroe exijam tudo por escrito,não vá o diabo fazê-lo feito.Que outros descarreguem nos vossos ombrosa solidão dos que vos acompanham.Não sejam fortes. Não se usaa força quando batem.Empunhem vossas loucurascom a vaidade dos certos.E mais do que tudo, façam-se,façam-se doutores em políticae generais em estratégia.

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Rasguem os quartéise bombardeiem o Senado,com toda a humanidade,para bem deles. Os coitados.Mandem pôr um mapa na cabeçaaos que se abrigam da chuvae calem-nos quando houver sol.Orientem o norte para longee o conhecimento para a vossa imagem.Ronquem, ressonem, apareçamque no fim a mesa estará cheia.E mandem acabar com os finais.Assim como está, está muito bem.

6

Não sabiam sequer que navegavampor mais mar que houvesse.Para eles a água não tinha terracomo quando aprenderam a ter sonhose a calar o que aprenderam.Numa parte deles nasceram âncorasque os fizeram por pouco tempo pescadores,chamando redes à sua prisão de cais.Outros foram morrendo afogadosà procura de terem de respirar.Outrora não havia rios nem ventose os vulcões faziam falésias no gelo,e os roncos dos meninos adormecidosmimavam as luas que se formavam.O tempo de uma esquisita chuvaque se vertia como um pássaroe sibilava como uma áspide.

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Tomavam o seu veneno de madrugada -se soubessem onde estava o norte -e já quase doentes comiam o que havia.Quem nasceria primeiro, que ruínafaria templos na memória deles?De quem há eco só a poesiaguarda o pouco que se perdeu,aquele nada de milhões de pensamentosque faz uma espécie ter músicae nascer para navegar.

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Poema roubado aos índios Jívaros

Pedro Mexia

Fazes uma cabeça humana tão pequenade um indefeso amor que te foi dado.

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A nuvem Helena

Pedro Mexia

A nuvem Helena que conduziu os helenos e ainda conduzé um espectro do Egipto, uma estátua de bruma,escreveu Eurípides. Helena avança e diz:

é parecida comigo, quase igual,reconheço-a mas não sei quem é, um eu de éter,fizeram-me desaparecer e deram à guerra

uma imagem, a minha famae a minha forma, mas eu estive escondida numa névoa, decisão dos deuses que fazem o que não temem

porque um deus nada deve, de modoque é deles a dualidade e o desdobramento,mas o remorso é meu, que estou inocente,

homens combatem em meu nome, disputam a belezaque é céu e abismo,e morrem amigos, irmãos, generais,

cavalos, dez anos em batalha dez vezesamarga, ilusão do sangue que correpor causa do meu sangue ausente,

«um nome pode estar em muitos sítiosmas um corpo não», e eu comovida e desgostosa,a querer responder

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ao que tantos perguntam: «é por uma sombraque sofremos?», «é por um fantasma?».Isso porém não seria honrado:

Tróia é imortal, Helena eterna, e eu apenas uma nuvem.

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rra

My back hurts

Raquel Nobre Guerra

to Alexander the Great,whom I would nurse forever

My back hurts when I bend the sun.Because I carry your stiffand proper head with no pats.

Someone mentioned love, a riota blueness, a pig head but my songson, it is a song with no offense.

And I

With the events of its kind(I believe they are all set)

I your mammaout with cigarettes

filled with caress

Sail your head on my stoat red lapsteady please with giddiness and Ido it at last. Your head, my laptripping fingers on your strap and Ido it fast with cutter hands.

But then I believe no nothing serves wellno one is lipping so heavily this debtas you swell, so I tremble and its immense.

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And I

I just want a portion of petty thingsto shut me down on a bedroom hallor a coffee. I say black and there it isI say black and there he is clothingthe one thing that can be clad.

And I your sis’victress on my dress

I mean if you’re aware

I have learned nothing but your headyour bare head with no spring coming in.

But then again a punnet of regretbecause no nothing is tied, sirno nothing at all, as you said.But my hands, sir, my legswhy do they lie within a stuck foil?

(So that begins what I have said.)

And Iface down

I am

The sorority of little things comingfrom hand to hand crowning my heirforever and ever again and againfor the slip of others to pour and declareword by word mouth to mouthlove and bleach at your despair.

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And I

I just want the hole site of the holewhere it deepens as I sit and gowith everything to the very end of it all.Let me convince you how extraordinaireI shed, you gulp. I nick, you go.

And II guess

I Just want you on my favourite bedtrite sheets with gloves as welland the milky swannery for the rest.Milk to the swans, do you understand?As we loop as we pause as we look at it close.

hmm hmm hmm, hmm hmm hmmthis gothic love song

As my back hurts so and so.As your head comes as your head goesrolling gently through my toesagainst this winter of jaded coats.

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rica

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dom

enec

k

Texto para o menino que por vezes me visita, quando se cansa de meninas, e que doravante chamarei de Maximin, como se este fosse o

último bilhete de Elagabalus a Hierocles

Ricardo Domeneck

Como o sol que incha e cresce, Maximin, são teusa pujança, o tônus e a tesura. Quem-me-dera pudesse dar-te todos os dias o que é digno de tua condição cesariana, ou fosse eu a carruagem conduzida por tua potência equina, oxalá eu o cavalo que montas com maestria, charioteer, eu, tua cheerleader, que vivo da caridade do teu epidídimo, ora deixa-me descansar o pescoço extenuado sobre teu corpo esponjoso, meu cabelo confundindo-se com teus parcos pelos púbicos, já quase públicos, Maximin, tanta é a segurança com que te exibes no mercado e na ágora, maximiza-me em tua perene intermitência, diariza tuas doações tão fluidas sobre meu rosto,

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icar

do d

omen

eck

je vien, tu viens, então vem e quebra com teus sucos meu jejum, Maximin, minimiza minha idade, mexe-me contigo em mim, tantas são, miríade, as posições possíveis entre cavalgadura e montaria, Maximin, machuca-me à prostrada, naquele pontículo entre delícia e cicatriz, pois os cães pretorianos já se aproximam para arrastar-me aos gritos desse trono que usurpo quando te cansas do vúlveo e escalamos a torre de marfim, mas ainda assim trono onde se crê que alguma menina melhor sentaria, Maximin, e já sabemos qual será nosso fim.

De Odes a Maximin (inédito).

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«O homem que sente o calor das pedras»

Rui Almeida

O homem que sente o calor das pedrasQue pisa de seu não tem nada,Ainda vive, sonha. O homemSonha e o calor das pedrasLimpa a noite dos livros.

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rui a

lmei

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O homem lembra-se de certas formasDas nuvens quando o sol nasciaNo Inverno. Recortes de figuras

Alimentados pelo ocaso. Acima,Muito acima do seu alcanceE sem peso. O homem acorda,

A memória tange-lhe a parte Do corpo onde se abrigamAs imagens mais nítidas.

«O homem lembra-se de certas formas»

Rui Almeida

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Caixa de velocidades

Susana Araújo

O carro arde, é verão, falha-me a embraiagem (confesso que tenho medo). É por Monsanto que sigo para recuperar no opifício do comercial centro a celeridade e beijar as montras do auto-conhecimento. Faço aquisições, toco na pele do pêssego. Posso porque conheço tão bem o curso que me transporta para onível menos umcomo a famíliade feudatáriosda qual descendo.respiro o condicionadoar e a consolação deum austeroestacionamento.

Está escuro está fresco

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reina o silêncio. Regresso ao vermelho lugar e espera-me aí – ar gasoso e suspenso o garagista com olhos de Cristo e é com mãos nos bolsos que me aponta o dedo. De mão dada com o meu saco plástico, não me mexo. De olhos fechados conto até três (como Ele pede) mas é ponto assente:Pulverizados podem seguir outros corpos em nuvens isentas financeiros túneis ou vias rápidas mas face ao ultimato não concedo Penso em nós – súbditos amantes no fundo do saco de polietileno – e simplesmente não desapareço.

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Prometeu

Vasco Macedo

Havia um grito de carneos desapossados clamavam por elequeriam um novo ideal para lavar as suas vidasandavam entre esquinas onde bruxas empunhavam galos mortosnão só de espanto mas também de medo ontológicopor esta beata vita que levamos

Era um corpo penteado por poemasagora receitados num manual de portuguêso bom gosto da burocracia outorgava bênçãoscom as quais todos queriam adormecersincronizar o seu respirar e sonhose Houve até quem tenha heroicamente encostado o ouvidono peito da ínclita mulher bestadescobrindo prosódia contudo no bater orgânico do cânone

E seriam os revolucionários afinal pós-materialistas snobespor o terem olhado do fundo do seu desprezo?E seriam os poetas marginais obscenospor terem subido às cúpulas das catedrais dos impériospara escrever com a merda dos esgotos queremos mentiras novas?

Nenhuma oferta de leitura grátis se oferece ao viandantejá nos tinha dito o profeta quando ainda havia filólogosque dominavam o suficiente as raízes das palavraspara compreenderem uma não desprezível réstia da carcaçausada por um habitante da profundeza do mar

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As ondas salpicam-nos a peleÉ um factoMas ainda não sabemosComo lamber a crosta do sal

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Um massacre em Paris

Victor Heringer

você pode não fazer nada que é uma ação que se resolve em si mesma

você pode estar no trabalhovocê pode não saber o que é Charlie Hebdoquem: um homem rico, um senador da républiquevocê pode não falar francêsvocê pode ter certeza da pronúnciaTchárli à l'anglaise, Ebdô à la French

você pode não saber o que é um hebdomadáriovocê pode não saber o que é um arrondissementvocê pode não saber que a av. Paulista fica a 9401,51km do

20º arrondissementa 9401,51km de distânciavocê pode se sentir desconfortável

você pode ver os cartuns que seus amigos postam no Facebookvocê pode ver os cartuns dos cartunistas mortosvocê pode rir

você pode nunca abrir uma edição do Charlievocê pode achar de mau gostovocê pode achar de péssimo gostovocê pode concordar com o Christopher Hitchensvocê pode ser um enfant terriblevocê pode achar melhor não mexer com a religião dos outrosvocê pode não querer saber quem são os Le Penvocê pode saber que nem todo mundo é terroristavocê pode achar os desenhos tão banais

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você pode ler as notícias sobre o ataquevocê pode ler os live updates do NY Times e do Guardianvocê pode ser um homem branco vivendo no Brasilvocê pode ser uma mulher branca vivendovocê pode ser um homem muçulmanovocê pode ser uma mulher muçulmanavocê pode ser um bisneto de muçulmanavocê pode ser um homem mulato nascido no Brasilvocê pode ser um homem coreano recém-chegado ao Brasilvocê pode ser um menino de Moçambique

você pode ver repetidas vezes na TV um homem branco sendo carregado de maca até uma ambulânciavocê pode notar que os tênis dele são Adidasvocê pode nunca mais esquecer que os tênis eram Adidaspretos com 3 listras brancase que ele estava sem camisa

você pode ver repetidas vezes na TVo policial deitado tomando tirosnos headphones os tiros são tão altosvocê pode arrancá-los de um susto

você pode ver repetidas vezes na TVum filminho de celular feito por amadoresno topo de um prédiovocê pode ter amigos em Parisvocê pode ter conhecidos em Parisvocê pode não conhecer ninguém em Paris

você pode pensar somos viciados em informaçãovocê pode ter vontade de comprar cigarros depois de 10 anos

sem fumarvocê pode comprar cigarros quando sair do trabalho

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você pode andar ida e volta na avenidavocê pode pegar chuva na idavocê pode não pegar chuva na voltavocê pode notar a fronteira azul/cinza no céuvocê pode imaginar que a chuva anda mais rápido quevocê pode ver como a noite vem caindovocê pode saber que já é madrugada

você pode ouvir Mendelssohnvocê pode ouvir Eduardo Paniagua e o Ibn Baya Ensemblevocê pode ler as mesmas notícias cinco vezesvocê pode ouvir os statements dos heads of statevocê pode não se importar tanto com o que dizem

você pode ler que uma mulher que trabalha no prédio mandou uma SMS a um amigo dizendo estou viva há muita morte ao meu redorsim, eu estou lá os jihadistas me pouparamvocê pode ficar intrigado com o estou lávocê pode não saber o que é Allahu Akbar

você pode querer ligar para a sua mãevocê pode olhar os meninos tão atléticos na ruavocê pode pensar que o seu gosto para homens é clássicovocê pode ter um gosto grego para homensvocê pode ao mesmo tempo ser lucian-freudiano em mulheresvocê pode ver que o mundo também tem gorduras e

descoloraçõesvocê pode preferir o mundo

você pode ver que ninguém está arrancando os cabelos em SPvocê pode ver a fila de carros para entrar no shoppingvocê pode ver que o labrador do seu vizinho está crescendoainda ontem era filhote

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você pode não dizer nada no Facebookvocê pode não ler os comentários que deixaram nas notícias

de Facebookvocê pode ser de esquerdavocê pode se espantar com um corte de cabelo na ruavocê pode ler o que um grande crítico dissevocê pode achar uma pena as mortes do Wolinski do Cabuvocê pode pensar porém na arrogância ocidentalvocê pode pensar de fato na arrogância ocidentalvocê pode se perguntar se um brasileiro é ocidental você pode se sentir ocidentalvocê pode não sentir nadavocê pode ouvir uma palestra de 40min do Edward Saidvocê pode se sentir pós-colonialvocê pode achar que é cedo demais para o Saidvocê pode lembrar que ele falou dos atentados de Oklahoma

Cityvocê pode não saber quem bombardeou Oklahoma Cityvocê pode comprar pasta de dentevocê pode sorrir com a promoção

você pode ler na revista Jacobinque é melhor se prepararvocê pode ver que já vem o coice antimuçulmanovocê pode pensar ai a Europa se avacalhandovocê pode achar que é cedo demais

você pode pensar nos limites do humorvocê pode sentir nojo do sangue desenhado nos cartuns-tributosvocê pode ver uma fotos dos seus amigos no topo da pedra

do Lemevocê pode acompanhar até às 21h41 Tignous Cabu Charb,

Wolinksi +8

você pode lembrar que os últimos anos não têm sido bons

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você pode checar as notícias da Petrobrásvocê pode checar todos os sapos do Panamá morreramvocê pode ler os ensaios do Foster Wallace sobre tênisvocê pode não ficar obcecado com o Charlie Hebdo

você pode lembrar que tem feito novos amigosvocê pode lembrar que amanhã já é quinta-feiravocê pode tomar espumante porque acabou a cervejavocê pode se sentir mal porque espumante é bebida de festavocê pode tomar espumante num copo de requeijãovocê pode querer fazer um brinde ao Jonathan Swift

você pode de repente sem saber bem por quêvocê pode desenhar um pequeno Maomé secreto em seu caderno

São Paulo, 7 de janeiro de 2015 - 22:11

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Poesia diante do espelho da morte:em torno de algumas ideias de Vergílio

Ferreira e de Antonio Gamoneda

João Moita

La poesía no sería posible – no existiría –si no supiésemos que vamos a morir.Antonio Gamoneda, El lugar de la reuniónO terror da morte nasce com o balanço do que se perde.Vergílio Ferreira, Invocação ao meu corpo

É sobejamente conhecida a frase de André Malraux, retirada do romance L’Espoir, na qual o autor francês diz mais ou menos o seguinte: é a morte que transforma a vida em destino. Com efeito, uma vida eterna seria uma vida que constante-mente se adiaria, uma vida inconclusa, um perpétuo devir que deixaria em permanente suspensão o significado último dos nossos actos. Apurar as consequências das nossas deci-sões seria tarefa vã: elas jamais deixariam de se actualizar e de se reproduzir. À sua frente estaria o infinito, a totalidade em potência, um horizonte de expectativas tão amplo que seria legítimo que cada um pensasse a cada momento que a sua vida até então tinha sido apenas preparação para uma nova vida que então começasse. Todos os nossos gestos se esvazia-riam sem intenção derradeira que os sancionasse, e a memória seria ferida por cauterizar, ilegível cicatriz. Seria então – e não antes – que o homem estaria verdadeiramente condenado à sua liberdade.

É a morte, ou antes, é a consciência que temos de que vamos morrer, que põe a vida em perspectiva. É ela que a circunscreve e lhe dá unidade, e é através dessa consciência

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que ela adquire sentido, ou seja, que se apreende a si mesma como destino. Em suma, é porque morremos que nos senti-mos viver.

Mas entre viver e sentirmo-nos viver há uma brecha que se abre, um espaço intermédio, desconhecido dos animais, por onde o fluxo vital que nos anima se escoa e se projecta para fora de si como uma espécie de excesso ou de saldo da nossa vida. A percepção do excesso que nos constitui é o que nos dá a consciência que temos de nós mesmos, e é através dela que começamos a existir, isto é, a conceber-nos como projecto ontológico que extravasa a mera observância dos processos biológicos que garantem a nossa sobrevivência.

Esta brecha que se abre entre as limitações fisiológicas e o anúncio de um mais ilimitado para preencher configura o domínio daquilo a que Vergílio Ferreira convencionou chamar interrogação, noção que opunha à noção mais rasa de pergunta. Para ele, «uma pergunta não interroga: uma pergunta diz a resposta. Porque uma pergunta está do lado do problema a resolver, do ainda simplesmente desconhecido; e a interrogação está do lado do insondável. A pergunta desen-volve-se na clara horizontalidade; a interrogação, na obscura verticalidade. Como em jogo de cabra-cega, em que há seres à nossa volta, a pergunta orienta-se entre os que lhe não pertencem até achar o que procura. Mas a interrogação não encontra, porque nada há para achar»[1]. Uma interrogação, segundo Vergílio Ferreira, não espera resposta, isto é, não sabe a resposta. Uma interrogação lança-se sobre o abismo não para reivindicar uma solução, mas para preencher essa brecha entre o vivermos e o sentirmo-nos viver-para-a-morte com um apelo que parte de nós e se estende até ao intangível onde embate com a violência de uma inquietação.

[1] Ferreira: 2011. 22.

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A interrogação nada sabe porque ela é, como a poesia para Antonio Gamoneda, «antes sensible que inteligible»[2], tem mais a ver com a nossa existência do que com a nossa inteli-gência, com a nossa sensibilidade do que com o nosso enten-dimento, com a inacessibilidade da nossa subjectividade do que com a objectividade concreta das coisas que nos rodeiam e nos são dadas a conhecer. Ou melhor ainda, a interrogação, como a poesia para Antonio Gamoneda, apresenta-se sob a forma de um não saber sabendo, para usar a fórmula plas-mada por São João da Cruz que Gamoneda costuma invocar em entrevistas, uma douta ignorância que se assombra mais do que se esclarece ao desvelar a sabedoria inarticulável do espanto.

Vemos, pois, que é a nossa condição de seres mortais – somos os únicos seres mortais, que para o ser é preciso disso ter-se prévio conhecimento – que torna possíveis experiên-cias como aquela que nos é proporcionada pela poesia (mas não é exclusivo da poesia), durante as quais se processa um como que aprofundamento da vida, ou em termos gamone-deanos, uma intensificação da vida, que faz a nossa existência confrontar-se consigo mesma em face daquilo que a nega, ou seja, a própria morte. Um poema, ou, para o efeito, qualquer emanação artística autêntica ou qualquer experiência existen-cial profunda, implica sempre uma interrogação no sentido vergiliano do termo, ou, para fazermos a ponte com a frase de Malraux, uma interrogação ao destino[3].

Creio ser por essa razão que Gamoneda teima em distin-guir as noções de poesia e de literatura. Para ele, uma e outra não se confundem: «la literatura es ficción y la poesía reali-dad, (…). La literatura representa o se refiere, la poesía crea y

[2] Gamoneda: 1997, 10.[3] Título do estudo que Vergílio Ferreira dedicou ao seu congénere Malraux.

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revela. Dicho de otra manera: la poesia no imita a la vida, es una parte de la vida, una emanación de la vida»[4]. Ou ainda: «En la poesia están nuestro sufrimiento y nuestro gozo; y ese vínculo vivo entre la poesia y la existencia hace que no sea ficción»[5]. A ficção não interroga, pergunta. Ela representa e, ao fazê-lo, recria as condições exteriores a uma escala mais manuseável, possibilitando com essa redução uma interioriza-ção do objecto externo sobre o qual se debruça. Esse é o modo de operar não só da literatura (conceito que não exclui muita da poesia que hoje se escreve), mas, por exemplo, das ciências exactas e das ciências económicas ou sociais. A poesia, porém, não representa, é ela mesma uma realidade, quer dizer, ela é a realidade da nossa intimidade, uma extensão da vida, uma «emanação» do que há de excessivo no nosso sofrimento e no nosso gozo. Ela é, portanto, uma manifestação subjectiva que não pode ser nunca inteiramente compreendida a não ser pela pura sensibilidade que interroga a perfeição do silêncio: «escuché hasta que la verdad dejó de existir en el espacio y en mi espíritu, / y no pude resistir la perfección del silencio»[6], diz-nos o poeta numa passagem de Descripción de la mentira.

Em Antonio Gamoneda, a poesia nasce da escuta atenta do silêncio, mais do que de uma predisposição ou de uma expansão comunicativa. O que o poema venha a dizer, Gamo-neda só o sabe depois de este se revelar na escrita. O poema aparece quando a consciência de si se torna permeável à consciência musical primordial que há em nós[7] para tradu-zir, através da linguagem desvinculada da referencialidade

[4] Palomo, 145-6.[5] Ibidem, 151.[6] Gamoneda: 2010, 177.[7] Para aquilatarmos a verdade desta asserção basta pensarmos na forma como os bebés reagem à música; tema, de resto, desenvolvido por Antonio Gamoneda no opúsculo de 2013, Fonación, palabra y escritura, pensamiento poético.

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convencional, o ritmo do ser. Esta linguagem desvinculada de referencialidade não é mais do que linguagem simbólica, isto é, linguagem provida da sua própria realidade, da sua própria fisicalidade: «los hechos artísticos son necessariamente hechos sensibles (primariamente existenciales, por tanto) y […] suponen una física, es decir, un cuerpo: el cuerpo de los símbolos. Lo cual no es obstáculo sino condición para que, simultáneamente, los símbolos sean y propogan un realidade intelectual»[8]. Linguagem simbólica, portanto, que comporta em si uma realidade intelectual irredutível a qualquer exterio-ridade. Daí que Gamoneda afirme ainda que «en la poesia, el acto de generación del pensamento va ligado a la aparición del lenguaje»[9]. Quer dizer: em poesia, o significado coin-cide com o significante, o poema concreto não se distingue da consciência poética de que emana. Ou melhor ainda: o poema configura a experiência relatada por Vergílio Ferreira no romance que o tornou famoso da aparição de nós a nós mesmos, quando a atenta escuta do silêncio em que medra o fulcro da nossa existência cala o ruído que nos rodeia e faz emergir a harmonia que precede o nosso modo de sermos quotidianos, psicológicos ou externos a nós mesmos. Esse é, tanto quanto a minha própria experiência me pôde ensinar, o único sinal inequívoco de que o que sentimos diante de uma obra de arte constitui uma legítima experiência de fruição estética.

Mas certamente que as palavras do próprio Vergílio Ferreira nos ajudarão a compreender melhor do que se trata esta aparição de nós a nós mesmos. Exorta ele:

Desce do teu corpo ao teu espírito, desce da tua vida inte-rior ao centro infinitesimal donde ela procede, onde ela é o fulgurante início de realizar-se. Colado a ti, identificado

[8] Gamoneda: 1997, 11.[9] Palomo, 155.

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com a tua própria luz, absoluto de ti, então verás brotar essa fulguração indistinta que és tu, essa pura realidade de estares sendo, essa indiscriminada força de estares vivo e que nada caracteriza porque nada a define nem pelo que és para ti nem pelo que és para os outros (…).[10]

Se a poesia não nos ajuda a fazer esta descida, se ela não tratar de fazer regredir a linguagem à música que precede a inteligibilidade do discurso, se ela não atestar o excesso de uma presença, então talvez a poesia não seja já bem poesia mas apenas literatura. Eis porque afirmo, talvez de forma abusiva – mas é um risco que assumo –, que a experiência relatada por Vergílio Ferreira não diverge muito da experiência que para Antonio Gamoneda está na génese da criação poética.

Mas que potencia esta experiência da aparição de nós a nós mesmos senão o terror que nos toma quando em nós soa o alarme de descobrirmos que aquilo que somos está condenado à inexistência, para usar uma palavra recorrente na última reunião de poemas de Antonio Gamoneda? Qual a urgência de nos inteirarmos daquilo que nos integra, de nos reconhecermos na totalidade do que somos, se precisa-mente essa totalidade, isso que nos descobrimos em inteira necessidade, não viesse marcado com o estigma de extinção? Quando a morte se revela aos nossos olhos como inescapá-vel evidência, quando nos sentimos soçobrar ao peso de um invencível destino que saldará todos os nossos actos numa conta sem resto, então ergue-se em nós o rumor de uma inter-rogação que tem como limite esse «muro sem plausibilidade para lá»[11], esse espelho sem ângulo morto onde projectamos aquilo que vamos entregar à morte: «toda mi actividad poética se deduce de “la contemplación de mis actos en el espejo de

[10] Ferreira: 2011, 69.[11] Ferreira: 2004, 46.

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la muerte”»[12], diz Antonio Gamoneda em entrevista, citando um verso de Descripción de la mentira. E Vergílio Ferreira, por sua vez:

Quem sou? (…) E desde quando comecei a sê-lo? Deve ser útil sabê-lo, o que é que está dentro de mim? para ao menos saber o que vou entregar à morte. (…) Fluido esboço de formas ocas de névoa, vejo-as. Instantâneas imagens do que passou. Farrapos avulsos de. São coisas que vagas, não consigo integrá-las no tecido uno de mim – que é que posso dar à morte? São coisas dispersas, mas elas devem ter formado o que sou que ignoro – o que posso dar à morte?[13]

«Saber quem morro»[14], eis uma das grandes obsessões dos dois autores reunidos neste ensaio, obsessão que nunca deixou de se fazer sentir em Vergílio Ferreira e que Antonio Gamoneda volta a plasmar na já mencionada colectânea de 2012, Canción Errónea, incitando-se a si próprio e incitando a um tu (o tu na poesia de Antonio Gamoneda é sempre uma instância problemática[15]) para que este «[Restaure] cada día / [s]u pacto luminoso con la muerte»[16], isto é: contempla-te cada dia diante do espelho da morte, repete todos os dias o movimento de identificação de ti com aquilo que em ti morre, com aquilo que em ti se consome, com aquilo que em ti vai caminhando para a morte. Em suma: intensifica através do esquecimento a tua memória.

[12] Palomo, 24.[13] Ferreira: 2004, 111.[14] Ibidem, 170.[15] A mais das vezes esse tu tem um destinatário mais ou menos identificável, mas pode tratar-se também de um desdobramento do eu enunciador, e pode muito bem ser ambas as coisas em simultâneo (e eu creio que é frequentemente).[16] Gamoneda : 2012, 136.

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Em Gamoneda, memória e esquecimento não se disso-ciam, uma implica sempre o outro. Diz o poeta: «la memoria es siempre conciencia de pérdida (recuerdo lo que ya no tengo o lo que ya no es); conciencia, por tanto, de consunción del tiempo correspondiente a mi vida y, por esto mismo, concien-cia de ir hacia la muerte»[17]. Se a memória, por ser consciência de perda, activa em nós a percepção de irmos em direcção à morte, ela é responsável ao mesmo tempo e por essa mesma razão pela consciência de sermos intrinsecamente constituí-dos por esquecimento: diante do espelho da morte reflecti-mos tudo o que perdemos, tudo o que deixámos de ser, tudo o que votámos e nos votou ao esquecimento, isto é, tudo o que já não existe e jamais voltará a existir. Daí precisamente que o vocábulo olvido seja um dos vocábulos mais recorrentes na poesia de Antonio Gamoneda, ou que ele circunscreva a sua poesia a territórios delimitados por símbolos como o do frio ou como o da luminosidade branca sem objecto onde incida:

Amé las desapariciones y ahora el último rostro ha salido de mí.

He atravesado las cortinas blancas:

ya sólo hay luz dentro de mis ojos.[18]

Ou, mais revelador ainda, esta frase retirada da introdução ao livro onde relata as memórias da sua infância, Un armario lleno de sombra: «En el olvido están los recuerdos»[19].

Temos, pois, que a poesia enquadra a amplitude do nosso ser no espelho branco da morte, reflectindo não bem a súmula das nossas experiências, mas activando em nós a consciên-

[17] Palomo, 24.[18] Gamoneda: 2010, 407.[19] Gamoneda: 2009, 5.

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cia dolorosa de nos estarmos a afastar irremediavelmente do tempo sagrado das nossas vidas em direcção a um tempo sem tempo e todo irradiação sem referência para as nossas coorde-nadas. Sabemos então quem fomos e aterramo-nos por estar-mos progressivamente a deixar de o ser. Mas essa consciência agónica é, tanto para Antonio Gamoneda como para Vergí-lio Ferreira, o expediente que temos à nossa disposição para procedermos a uma revalorização da vida[20] que a reintegre na assunção do milagre que é o simples facto de a vida nos ter acontecido.

É através dessa assunção operada, quer pela poesia, enten-dida em sentido restrito como acto existencial por excelên-cia, quer por outras formas de aceder a um aprofundamento da existência, como a experiência da aparição de nós a nós próprios, que se processa a transmutação da consciência agónica que a irredutibilidade da morte faz nascer em nós em alguma coisa que implica uma forma muito particular de prazer. Antonio Gamoneda é contundente a esse nível: «La poesía es consolación, es liberación, es transformación del sufrimiento en algo que conlleva placer. (…) Es una trans-mutación tremenda»[21]; e, mais à frente, noutra entrevista reunida na colecção de entrevistas que temos vindo a citar: «La poesía existe porque sabemos que vamos a morir (…). (…) cuando la conciencia y el miedo mortal se intepenetran con la poesía, tal conciencia y tal miedo son indisociables de una forma de placer»[22]. Trata-se de uma certa aparência de lucidez que proporciona ao ser humano talvez o mais alto a que a sua vida aspira, sabendo que não pode aspirar a vencer

[20] «A meditação da morte não é pois um fim, mas um meio de valorizarmos a vida (…) meio, em suma, de encararmos a sério esse facto extraordinário que é a vida do homem.» (Ferreira: 1991, 42.)[21] Palomo, 20.[22] Ibidem, 34.

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a morte. É por isso que Gamoneda pode dizer num verso tão límpido quanto terrífico de Descripción de la mentira: «Yo, en los manjares prévios a la muerte, hallo mi lucidez»[23]; ou ainda que formule em Ardén las pérdidas a expressão tão para-doxal quanto evidente: «lucidez sin esperanza»[24]; ou, por fim, que diga numa verso de Canción Errónea: «Sé / feliz sin espe-ranza»[25].

Felicidade sem esperança, encontro do lado de cá com a breve fulguração, ou antes, para usar o título certeiro de Vergílio Ferreira, com a alegria breve da existência sem mais nada a explicá-la, esta mentira extraordinária – outra palavra recorrente na poesia de Gamoneda – de vivermos até que o cansaço sobrevenha – e nos últimos poemas de Gamoneda ele começa a sobrevir – e exponha «un antíguo extravio: / ir de la inexistencia / a la inexistencia», para que enfim possa-mos dizer com Antonio Gamoneda: «Ahora / he de amar mi propia muerte / y no sé morir. // Qué equívoco»[26].

Dou por último a palavra a Eduardo Lourenço, que num ensaio sobre a prosa de Vergílio Ferreira, que podia muito bem ser um ensaio sobre a poesia de Antonio Gamoneda, diz supremamente, como é seu hábito, aquilo que, titubeando, tenho tentado expor nesta comunicação: «a morte é a vida negada, mas nessa negação a sua suprema fulgurância. É sobre um fundo de morte que se recorta a “breve alegria” em que Vergílio Ferreira resume, num dos seus mais perfeitos roman-ces, a essência mesma da aventura humana. (…) Até se pode dizer – resume o pensador português – que é a partir do espe-lho da morte [sublinhado meu] e nesse espelho que a vida se concentra e se perfaz como sentido»[27].

[23] Gamoneda: 2010, 184.[24] Idem, 465.[25] Gamoneda: 2012, 51.[26] Ibidem, 28-9.[27] Lourenço: 1993, 101.

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E eis como o nosso corpo precário e falível se torna «corpo precário e glorioso»[28].

Referências

Ferreira, Vergílio, Espaço do Invisível 2 (2.ª ed.), Lisboa, Edito-rial Bertrand, 1991.

——————, Para Sempre (14.ª ed.), Lisboa, Editorial Bertrand, 2004.

——————, Invocação ao meu corpo (4.ª ed.), Lisboa, Quet-zal Editores, 2011.

Gamoneda, Antonio, El cuerpo de los símbolos, Madrid, Huerga y Fierro editores, 1997.

——————, Un armario lleno de sombra, Barcelona, Galaxia Gutenberg – Círculo de Lectores, 2009.

——————, Esta luz – Poesía Reunida (1947-2004) (2.ª ed.), Barcelona, Galaxia Gutenberg – Círuclo de Lectores, 2010.

——————, Canción Errónea, Barcelona, Tusquet Edito-res, 2012.

——————, Fonación, palabra y escritura, pensamiento poético, Galicia, Editorial Trifolium, 2013.

Lourenço, Eduardo, O Canto do Signo – Existência e Literatura (1957-1993), Lisboa, Editorial Presença, 1993.

Palomo, Carmen (ed.), El Lugar de la Reunión – Conversa-ciones com Antonio Gamoneda, Burgos, Editorial Dossoles, 2007.

[28] Ibidem, 123.

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Ela está em toda a parte:algumas notas sobre a poesia

Manuel A. Domingos

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Fui ao talho. Queria comprar carne para grelhar. O talhante pegou num pedaço de carne e disse que era muito bom, de qualidade. Pegou na faca que lhe pareceu mais afiada e cortou um bife. Era um grande bife. Cheguei a casa e temperei-o: sal, ervas aromáticas, alho. Fiz as brasas. Deixei que elas esmore-cessem um pouco, para que a carne grelhasse lentamente. A carne lá grelhou. Parecia suculento, tinha boa cor. Era rijo. Pensei no talhante. Será que alguma vez leu um verso? É possível. Será que alguma vez escreveu um verso, um poema? É possível. Mas, certeza, só tenho esta: ele pegou na faca que lhe pareceu mais afiada, cortou um bife, entregou-mo e eu paguei.

§

Quando se fala de poesia também se fala de poetas, como se um fosse impossível sem o outro, e vice-versa. Quando falamos de poesia temos «tendência a olhar para ela como um ente metafísico que escapa às regras do raciocínio» ( João Camilo); quando falamos de poetas temos tendência a encará- -los como os únicos seres capazes de «captar» esse ente metafí-sico. Aí reside o problema: a poesia e os poetas são demasiado «divinizados».

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Se aceitarmos o pressuposto de que vivemos numa época de dúvida, aceitamos que toda a verdade é hipotética e provisória. Daí chegamos à poesia. Não quero com isto dizer que a poesia é a verdade, nem tão pouco que é hipotética e provisória. A poesia é. As poéticas – essas sim – são hipotéticas e, sobretudo, provisórias. Não nos podemos esquecer que «uma coisa é a poesia, e outra coisa são as formas que ela adquire em cada cultura ou época» (Antonio Cicero). Podemos perguntar: que forma para a poesia hoje? que poética? Responder a estas duas questões implicaria, em primeiro lugar, definir poesia. Contudo, não podemos colocar de lado o risco que é tentar definir algo que, porventura, não é susceptível de ser definido, explicado, reduzido a compêndios. Tentar definir poesia será um esforço inútil, pois muito dificilmente será encontrada uma definição geradora de consenso. É claro que eu tenho uma definição de poesia, mas é a minha definição de poesia. Ela é susceptível de conter todas as contradições e fragilida-des inerentes a uma definição não geradora de consenso (se é que existem definições geradoras de consenso). Assim, qual-quer tentativa para estabelecer uma poética é, também, inútil.

§

A poesia é, na maior parte das vezes, confundida com a forma que pode adquirir. A poesia é independente da forma. Mas a forma não é independente da poesia. A poesia é a essência da forma e não o acidente. Eu posso argumentar, ou até mesmo afirmar, que esta ou aquela forma é ou não é válida. Todavia, eu não posso argumentar, ou até mesmo afirmar, que este ou aquele poema é ou não é poesia.

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É claro que ao defender isto eu poderei cair naquilo que alguns chamam de banalização da poesia. Sempre conside-rei este termo infeliz, pois ele deriva duma mentalidade que ainda acredita na sacralização e divinização da poesia. Nada há, quanto a mim, de mais errado. A poesia, sendo, está acessí-vel a todos. Não é necessário conhecer uma qualquer ciência oculta para a poder decifrar, pois todas as tentativas para deci-frar a poesia são, quanto a mim, inúteis: a poesia nunca foi, nem é, indecifrável. Ela apenas é.

§

A sacralização da poesia, por parte de alguns pensadores, é a principal responsável pelo afastamento dos leitores. Dessacra-lizar a poesia é fundamental. Dessacralizar o poeta também. O poeta não é um super-homem, nem é alguém que comu-nica com os deuses. Ele é apenas humano. Como ser humano que é: incorre em erros. E um desses erros talvez seja dedicar- -se à poesia.

§

Imaginemos que o verdadeiro e único objectivo da poesia é comunicar. Ora muito ficaria por dizer, dirão alguns. Ou: tudo ficaria dito, dirão outros. Assim sendo, imaginemos antes que o verdadeiro e único objectivo da poesia é não ter qualquer verdadeiro e único objectivo. Digo isto pela simples razão de acreditar (e reitero mais uma vez) que a poesia é: «Não é útil, nem inútil. É.» (Henrique Fialho). Mas, questionemos: será possível atribuir objectivos à poesia? Terá, de facto, a poesia

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um objectivo? Acredito que não, pois penso que atribuir um objectivo (ou objectivos) à poesia é/será reduzi-la a algo que ela não é. Uma coisa é certa (embora nada em poesia o seja): a poesia é tudo aquilo que é, menos aquilo que querem que ela seja.

§

Dilthey defende que a poesia tem uma relação especial com a concepção do mundo, relação essa que deriva do facto da poesia usar a linguagem como meio, o que possibilita a sua expressão lírica. Para este autor a poesia tem um único objec-tivo: compreender a vida a partir de si mesma, «deixando que as suas grandes impressões nela actuem em plena liberdade.». Chamo a atenção para a última parte da frase: plena liberdade. A liberdade é, sem dúvida, um elemento fundamental em toda a expressão poética. Acreditando que não existe uma única forma para a poesia (pois isso seria contrário à poesia), mas sim formas, a poesia tem em si a possibilidade de ver, valorizar e configurar a vida de modo ilimitado. Deste modo, a forma que a poesia pode adquirir parte, sem dúvida, da experiência vital, única e livre do poeta.

§

O poeta. Esse ser que é capaz de ver para lá do ver, pois do alto da sua torre de marfim – longe da turba embrute-cida, inculta, barulhenta, incapaz de vislumbrar a beleza de um verso – constrói um mundo melhor. O poeta sabe que a poesia pode salvar o mundo. Não lhe basta que salve só o dia. É claro que esta ideia de poeta não me interessa. Ser poeta não é ser mais alto, nem maior, nem toda essa bazófia que nos

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impingiram na escola. Ser poeta é ser um homem, ou mulher, como os outros. E por falar em escola (e quando digo escola também poderia dizer academia): ela é, talvez, uma das maio-res inimigas do poeta e da poesia. Contudo, o seu papel pode passar pela desmistificação do poeta e da poesia. Só através de uma desmistificação é que se pode fruir livremente a poesia, compreender (se possível) livremente o poeta.

§

Quando menos espera, o homem «realiza um dia o encon-tro decisivo com os seus limites» (Eduardo Lourenço). Um desses limites, quanto a mim, é a poesia. Não quero com isto dizer que a poesia é limitadora ou limitada, muito pelo contrário. Mas é ao confrontar-se com a poesia – com as suas infinitas possibilidades e formas –, que o homem é confron-tado com um dos seus limites. Simplificando: o homem, na verdade, nunca aprendeu a nadar, e quando chega à poesia deixa de ter pé.

§

Pensemos, um pouco, sobre a chamada poesia hermética. Afinal, o que é isso de poesia hermética? Pensemos em Peirce quando se refere à clareza ou não das ideias e dá um exemplo de termi-nologia filosófica: «uma ideia clara é definida como uma que é apreendida de tal forma que será reconhecida onde quer que se encontre, de modo que nunca será confundida com outra. Se esta clareza faltar, dir-se-á então que é obscura». Apesar de Peirce dar este exemplo para criticar uma certa falta de clareza de alguns lógicos, o mesmo não será feito para criticar uma certa falta de clareza de alguns poetas. Contudo, é nesta

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questão da clareza que surge toda a polémica em torno das actuais formas da poesia: se um poema não é suficientemente claro, é obscuro e logo hermético; quando um poema é dema-siado claro, acontece o oposto, com a desvantagem de poder ser considerado como um não-poema (o que não deixa de ser poético) ou poesia de urinol (o que também tem a sua piada).

§

A necessidade de um halo metafísico na palavra poética não é, quanto a mim, assim tão necessário. Às vezes é impedimento para o fruir da poesia: «a mais velha ideia ainda em voga é/que se não consegues entender um poema é/quase certo que é/um bom poema» (Charles Bukowski). Socorri-me destes versos para exemplificar uma ideia que ainda hoje perdura entre nós. Tal ideia, muitas vezes, degenera em preconceito – algo que é muito feio em poesia, pois a poesia é tudo menos preconcei-tuosa. Não me revejo na ideia de que a palavra poética deva cortar com a representação da realidade, procurando, dessa maneira, transgredir. E não me revejo na ideia de que a repre-sentação da realidade é sinónimo de segurança, tranquilidade, certeza. Haverá algo mais inseguro, intranquilo e incerto do que a realidade?

§

Será possível uma renovação das «actuais» formas da poesia? Será possível uma poesia livre, sem estar agrilhoada a estéticas, a manifestos? Tendo em conta o que se passa com as «actuais» formas da poesia portuguesa, parece que tal é impossível, pois essas «actuais» formas perduram há mais de vinte e cinco anos. Isto é: existe uma clara divisão, divisão essa fruto de

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supostas estéticas e supostos manifestos. De um lado, aqueles que vêem na metáfora exagerada, nas imagens mirabolantes, a única possível e válida forma poética. Do outro, aqueles que recusam a metáfora exagerada e as imagens mirabolantes, preferindo antes a «realidade». No entanto, a poesia é só uma. A forma de a representar é que é diferente.

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«Vou pegar na bicicleta e rodar tudo de novo até ser feliz»: à conversa com

Rui Pedro Gonçalves

Helena Bento

Na casa desconhecida há um pátio com glicínias. Ouve-se o relógio da igreja. São os sinos, a brindar com o seu «cântico nos beirais». Há uma cozinha com uma grande chaminé, umas escadas em pedra, e um piano, «sempre tocado a quatro mãos», que guarda as impressões digitais para o futuro. Há uma sala onde se joga às cartas, «um rei, uma vitória, uma dama de espadas». Alguém puxa de um trunfo, rendido na certeza de poder baralhar, de novo, o destino, e encontrá-lo, nova-mente, ao amanhecer. É a carta da «juventude». A que vale mais e leva tudo à frente. Num dos quartos ouve-se Beethoven, quinta sinfonia, e noutro fala-se do Zeca, da Carla e da Maria. Há um livro onde «tudo se escreve». Está guardado na cave, onde a casa «estende os seus braços e ergue-se em tourada numa possível lezíria onde os sismos recuam a medo». Na casa grande da Granja, arde um fogo, «por motivos que o fogo não entende», e noutra casa há uma capela onde há anos brotaram objectos que estavam enterrados, uma sala com um palco e portas tapadas, e talvez pessoas emparedadas.

Rui Pedro Gonçalves nasceu em 1973, na freguesia de Pontével, concelho do Cartaxo. Fez ali a escola primária. Depois foi estudar para o Cartaxo, para o Colégio Marce-lino Mesquita, que já não existe. Fez a escola secundária ainda no concelho, e quando entrou na universidade, no curso de Geografia, na Faculdade de Letras, mudou-se para Lisboa. Viveu durante alguns anos na capital e depois voltou para o Cartaxo, para Pontével, para a terra da infância e para

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a casa de família, uma casa «muito grande e muito antiga, com muitos quartos, um espaço por onde já passaram várias gerações».

O primeiro livro saiu em 2004, Uma Terra chamada Imagi-nário, com ilustrações de Inês Xavier. Foi publicado pela Câmara Municipal do Cartaxo, como recompensa por ter ganho o Prémio Literário Marcelino Mesquita, que distin-gue os melhores trabalhos inéditos nas modalidades de teatro, prosa e poesia, e que é atribuído pela Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos.

É nessa terra chamada imaginário que descobrimos que houve uma bicicleta: «nessa velha bicicleta / que ainda guar-das no teu quarto de brinquedos/ atravessámos o vento/ ao som dos pedais da infância», e que essa bicicleta, como vamos saber depois, foi muito importante: «Parece mentira/ Mas foi um engano essa infância/ de cerejas./ O pior de tudo/ foi um furo no pneu/ havia a minha bicicleta/ e isso foi muito impor-tante.»

Os pais tinham uma casa agrícola, que vinha do tempo dos avós de Rui. Produziam vinho e tinham uma exploração florestal. Quando a madeira tinha de ser cortada, de sete em sete anos a dos eucaliptos, e um bom par de anos no caso dos pinheiros, Rui ajudava os pais, assim como a irmã, mais nova, que também escreve. Foi criado com os avós paternos. O avô era produtor de vinho e tinha uma relojoaria. Tinham gran-des propriedades de terra. Os avós maternos, com quem teve pouco contacto, também eram agricultores. Hoje, já poucas pessoas vivem da terra. Em parte, é essa a «história de certas famílias do Ribatejo e de outros lugares do país.»

Começou a escrever poesia «mais a sério» depois dos vinte, «vinte e poucos anos». Não se lembra do primeiro poema. Começou, e continuou, por incentivo dos amigos, que liam o que escrevia e gostavam. Estava na faculdade, no curso de Geografia, que afinal não era bem aquilo que ele queria.

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Então? «Uma profissão ligada à terra». «A coisa que eu mais gosto é de trabalhar com a terra. Depois vem a poesia, em segunda, terceiro ou até em quarto lugar.» Antes passava as tarde de inverno no café, mas agora escreve sobretudo à noite. «Tenho uma visão prática do dia. Gosto de me levantar cedo, fazer o que tiver a fazer, e isto [a poesia] não é uma obrigação, é um prazer que vem depois das coisas obrigatórias.» Também não lê durante o dia. «Não consigo conceber estar dias inteiros a ler, para mim não faz sentido.» Então? Caminha e cuida das plantas, e trata das tarefas ligadas à casa. E nos anos em que consegue colocação, ensina Geografia.

Mas voltemos à bicicleta. Entre casas reais e imaginárias, esses «organismos que ardem por dentro», houve portanto uma bicicleta. «A bicicleta é para mim a coisa mais palpá-vel e mais materializável que talvez exista na minha vida.» A bicicleta serviu para tudo, para fazer amizades, descobrir ruínas e terriolas, andar dentro de casa e fugir dos cães. E o poema, o tal que fala duma infância de cerejas e de um furo no pneu, continua: «O mesmo será dizer que andei por aí/ A buzinar aos cães e aos velhos/ E a fazer trim/ Nos trilhos das formigas.»

Houve, aliás, várias bicicletas. Verde, azul, verde, e agora uma de montanha, porque apesar de a bicicleta estar guar-dada naquele «lugar feliz da nossa cabeça, onde as memórias boas estão guardadas», e onde as raparigas e os rapazes cres-cidos em desespero ainda vão dormir à cama da mãe, o poeta escreve: «Ainda tenho uma bicicleta obsessiva/ no rebentar das ondas do mar/ da minha solidão». E noutro poema: «Vou pegar na bicicleta/ E rodar tudo de novo/ Até ser feliz.»

Em 2006, Rui Pedro Gonçalves publicou o livro Noites na Granja (edição de autor). Na primeira página há uma citação de um livro de Gógol, o Noites na Granja ao Pé de Dikanka, que ajuda a explicar o título do seu livro. Diz assim: «Petró dormiu dois dias e duas noites seguidos. Ao terceiro dia acor-

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dou e pôs-se a olhar demoradamente para todos os cantos da sua casa, mas foi em vão que tentou lembrar-se de alguma coisa: a sua memória era como o bolso de um velho sovina, donde ninguém consegue tirar um tostão.» Uma epígrafe que, de resto, não podia ser mais enganadora. O que se segue é um exercício de memória, de recuperação, de regresso a casa, à infância e à bicicleta, ensaiado ao longo das páginas deste documento pessoal. Um bocado como o homem do cais que atira as coisas todas para o rio, sapatos, chapéus, livros, um frigorífico, um elefante, presos a uma corda, e depois, já em velho, volta para vir buscá-las e levá-las para aquele lugar feliz da cabeça. Os últimos versos de um dos poemas dizem assim: «À noite/ Ainda de janela aberta à grande planície,/ Ouvía-mos os cânticos da terra e a sua transpiração mediterrânica./ Sem o sabermos,/ Íamos fundando raízes no interior de nós/ E, depois, adormecíamos na frescura do pinhal/ E dormía-mos muito, muito.»

Rui Pedro Gonçalves é também autor de Diques (2007) e Nitratos do Chile (2010), título que vem do painel de azulejos que ainda hoje se encontra em muitas localidades portugue-sas, «Adubai com Nitrato do Chile», o adubo natural que era usado na agricultura, e que o avô, segundo conta, provavel-mente terá usado para enriquecer a terra. O título presta-lhe por isso homenagem.

Em 2009, participou num livro de textos e poemas publi-cado pela editora Averno, Merry Christmas, que reúne autores como Alberto Pimenta, Fernando Cabral Martins, Manuel de Freitas, Renata Correia Botelho, entre outros, e em 2012 participou em Ruindade, o livro dos poetas «Ruis»: Rui Caeiro, Rui Pires Cabral, Rui Pedro Gonçalves, Rui Miguel Ribeiro e Rui Azevedo Ribeiro. Tem também poemas publi-cados em alguns números da revista Telhados de Vidro, editada por Manuel de Freitas e Inês Dias.

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Este ano publicou Um Rapaz à Procura da sua Idade, pela editora Do Lado Esquerdo. O livro abre com uma dedicatória a Bernado Sassetti: «Era uma vez um rapaz que gostava de tocar piano. Aprendeu a tocar, pois não conseguia ter gaivotas entre quatro paredes. Um certo dia, o piano ficou fechado e o rapaz foi ter com as gaivotas. Ainda foi a tempo de registar umas certas notas musicais, mas deixou-as consigo, por ser tarde nesse dia de Maio». Rui não chegou a conhecer o pianista, mas admira a música dele. «Tem um bocado a ver com a bicicleta, com o movimento da bicicleta. É uma música circular, obsessiva, como se andasse sempre em círculo.» Como se quisesse rodar tudo de novo até ser feliz.

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Entrevista a Hugo Milhanas Machadoa propósito do seu mais recente livro, Onde

fingimos dormir como nos campismos[1]

Cassandra Jordão

Salamanca, seis e três da tarde, crepúsculo. O poeta encontra-se três minutos atrasado. Nunca se deu o caso de entrevistar um poeta e pergunto-me se haverá alguma especificidade em relação a outro tipo de escritores. De acordo com as informações de que disponho, os poetas tendencialmente vestem-se como hipsters e são pessoas muito interessantes. Têm também fama de ser gente difícil: Byron dormia com a irmã, Fernando Pessoa gostava bastante a atirar para o demasiado de bagaço e aguardente, Manuel António Pina tinha gatos. Enquanto pondero estas questões, um ciclista em equipamento completo passa pela montra do café. O seu meio de locomoção: a bicicleta, evidentemente. Cinco minutos passados a prender o veículo com três cadeados (bicicleta de corrida, investi-mento considerável), o indivíduo aproxima-se. Apresenta-se como sendo o poeta que devo entrevistar, Hugo Milhanas Machado. Duvido dele, mas não há sinais de hipsters neste tranquilo café de Salamanca. O poeta senta-se e a entrevista começa.

Podia-nos falar um pouco da sua poesia? Tem consciência de que este livro não é muito fácil de ler? Confesso que gostei de quase tudo o que entendi, mas não podia ser um pouco mais lírico?

[1] Enfermaria 6, Lisboa, dezembro de 2014. A versão online do livro pode ser encontrada em https://enfermaria6.squarespace.com/hugo-mi/

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Agradeço-lhe, em primeiro lugar, ter vindo aqui ao meu encontro e por ter lido este livro. Mas vai desculpar-me, não poderei dizer muito mais. Julgo que não me cabe defender como são ou como poderiam ser estes poemas, e muito menos ambiciono que o leitor os entenda como eu os entendo. São poemas, encontros de linguagem, jogos, diversões, pontos quentes na fala. Sim, reconheço que aquelas palavras também querem dizer qualquer coisa, mas julgo que essa preocupação é bem capaz de me sobrar. Nem sei se gostar das coisas tem realmente a ver com o entendimento delas. Gostar de uma pessoa, por exemplo: quando entendemos porque gostamos começamos a deixar de gostar, ou a perder o sentido do gosto, não acha?

Quando começou a escrever poesia? De acordo com uma fonte anónima[2], partiu a cabeça na fonte da escola. Há alguma relação?

Sim, é verdade, estaria talvez na segunda ou terceira classe. Nunca tinha pensado no assunto nesses termos e há muito tempo que não me lembrava disso, mas pode guardar certa relação. Se me coloca a pergunta é porque alguma coisa terá que ver. Recordo o impacto contra a pedra, a minha profes-sora a mexer-me na cabeça e os dedos cobertos de sangue. Mas realmente só escrevi o primeiro poema uns anos depois, no sexto ou no sétimo ano do básico, e para impressionar uma colega de turma. A conquista falhou, mas comecei a interes-sar-me pela brincadeira.

A sua poesia é bastante original no contexto da poesia Portuguesa contemporânea, uma verdadeira experiência de estranhamento da linguagem. Como é que descobriu que esta era a forma de expressão que era mais adequada para escrever os seus poemas?

[2] Obrigada, Isabel Milhanas Machado!

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Não sei se será muito original ou não, mas simpatizo com a formulação. Como disse há pouco não vejo grande pertinên-cia em explicar ou defender como escrevo os poemas ou como armo os livros que depois publico. Posso sim recomendar algumas leituras ou resenhas muito atentas a partir de livros meus que de certo modo me permitem ver tudo isto desde fora, perspectivar as leis de construção que se vão intuindo nos livros. Refiro-me a textos de Nuno Dempster, Manuel Margarido, Rui Alberto Costa ou Henrique Manuel Bento Fialho, que aproveito para agradecer.

Este livro intitula-se Onde fingimos dormir como nos campismos. Fale-nos um pouco da sua relação com o campismo. De acordo com a mesma fonte, com dezasseis anos foi acampar sozinho para Vila Praia de Âncora devido a questões amorosas. Agustina Bessa-Luís tem um livro inti-tulado Canção diante de uma porta fechada mas você montou, por assim dizer, a tenda à porta dela. Descreveria isto como um comportamento relacionado com o modo como entende a poesia?

Tempos giros, esses. Recordo bem essa aventura, e lembro- -me que tinha um caderno comigo onde ia apontando umas coisas. Mas a minha experiência campista tem sobretudo que ver com Peniche, com o mar de Peniche, com as praias, as noites de vento e estrelas a céu aberto, a malta de lá. O meu livro anterior, Uma pedra parecida, junta poemas quase todos eles escritos no Parque Municipal de Campismo de Peniche, suponho que para começar a dar nome às coisas, às magias de um tempo de miúdo que se ia apagando.

Desde que chegou que lhe quero fazer esta pergunta. Não pude deixar de reparar que depila as pernas. Porque é que os atletas depilam as pernas? Não nos quer convencer de que pedala mais rápido por causa disso, pois não?

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Não, é mesmo pelo estilo. Já viu o bronze? É um creme bom que a malta utiliza para melhorar a exsudação das pernas. Mas agora fora de brincadeiras, a depilação permite uma melhora transpiração dos tecidos, não duvide, e portanto um comportamento muscular mais fresco, movimentos mais definidos. Mas não deixa de ser engraçado que numa ou noutra situação me distingam num grupo de poetas como o das pernas depiladas.

O facto de depilar as pernas influencia a sua poesia?Sim, sem dúvida. Da mesma forma que lavar a louça depois

das refeições. Tenho muitas ideias pequeninas enquanto cumpro estas tarefas. Quando faço a barba, por exemplo, ou quando engomo a roupa pela manhã.

Quais os escritores que mais o influenciam?À cabeça, Roberto Bolaño. Li tudo, uma e outra vez, estive

três anos a ler a obra de uma ponta a outra, a procurar textos dispersos, publicações antigas. Agora em Fevereiro inaugura em Madrid o «Archivo Bolaño», uma exposição que esteve no ano passado em Barcelona. Bolaño é uma verdadeira escola, mas a gente lê e não se apercebe que está na sala de aula. Os ritmos de narração, os tons, a intensidade do texto, é tudo brutal, contundente, rigoroso. Além de Bolaño, e por motivos muito particulares em cada caso, uma equipa grande e polié-drica: Nuno Bragança, Ruy Belo, António Ramos Rosa, João Cabral de Melo Neto, Jaime Gil de Biedma, Leopoldo María Panero, Javier Cercas, J.D. Salinger, Paul Auster, Haruki Murakami.

Vivendo há cerca de uma década em Salamanca, contaria autores contemporâneos espanhóis entre as suas influências? Miguel Delibes também tinha uma coisa com bicicletas.

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Sim, Miguel Delibes era um apaixonado pela bicicleta. Curiosamente, e talvez esteja a par, trabalho com uma editora de ciclismo, La Biciteca, dirigida pelo meu amigo Manu Martín, e o primeiro título que publicámos foi justamente um livro de Delibes, Mi Querida Bicicleta, um pequeno tesouro, deveria ler. Cheguei a Salamanca com vinte e um anos, de modo que muitas das leituras mais sérias que tenho feito nestes últimos tempos são em língua castelhana, não neces-sariamente autores espanhóis. Temos uma colecção admirá-vel de poetas novos: Ben Clark, Luna Miguel, Fernando de las Heras, Andrés Catalán, Elena Medel, Carmen Cama-cho, entre outros, todos muito jovens. E quanto a narrado-res contemporâneos a lista é poderosíssima: Enrique Vila- -Matas, Alberto Méndez, Javier Cercas, Javier Tomeo, Ana María Matute, Rafael Chirbes, muitos.

Mantém um programa de rádio na Rádio Universidad de Salamanca Historias de la Musica Portuguesa. A música é importante para o seu trabalho de poeta? Que músicos portugueses destacaria? Não podia escrever poemas com um estilo mais directo, ao género de António Variações?

Sim, julgo que a música é fala muito vizinha dos meus poemas. Sabia que um escritor e crítico português de que lhe falei há pouco, Henrique Manuel Bento Fialho, escreveu em tempos numa nota sobre uma plaquette minha, Plato chico, que me via como uma espécie de DJ frustrado? Algo assim, não recordo com precisão, mas parece-me em todo o caso uma observação pertinente. O ritmo, o convite para a dança, o movimento, o compromisso entre paisagem acústica e corpo, recordo que sincronizava tudo isto, e só posso estar de acordo. E sim, gosto de meter música, de «pinchar», como aqui dize-mos. Falando em António Variações, é dele uma das minhas canções favoritas, a «Sempre Ausente».

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Contaria outras formas de arte que não a literatura entre as suas influências?

Com certeza, julgo que o poema trabalha contra tudo aquilo que o ensinou a ser linguagem, ou a ser em lingua-gem. Veja bem, contra e contra, encostado e em estado de oposição, temos estas coisas boas na nossa língua. Filmes ou certa sequência fílmica, fotografias, determinado retrato, uma canção, um achado sonoro, um elemento gráfico, qual-quer coisa que mexeu de tal forma nas minhas palavras que depois permitiu o seu reencontro em forma de poema. Mas não penso só em discursos artísticos, creio mesmo que qual-quer evento que nos é dado experimentar se pode converter num elemento gerador de inquietação, de estranhamento, de fecundação. O deporto, por exemplo. Agora só ando de bici-cleta, mas sabia que em tempos joguei andebol e cheguei a treinar a equipa cá da terra? Devo umas quantas frases ou versos a muitos daqueles treinos na pista, enquanto imagi-nava com os meus colegas movimentos e fantasias dentro do 40x20, o perímetro em que as coisas do andebol devem acon-tecer, do mesmo modo que as dos poemas acontecem dentro das palavras que o compõem. Ou quando escrevo um poema de catorze versos e o penso ao lado de um jogo a ser disputado em duas partes de trinta minutos.

Neste livro tem um poema intitulado «O Benfica». Parece-lhe bem mencionar esse clube num poema? Não podia ter optado por uma influência explícita de José Miguel Silva («Bayern de Munique 1 X Porto 2 – Artur Jorge 1987»)?

Podia mesmo, até porque em Abril do ano passado escrevi um poema em Lisboa que levava um «33» no título, mas talvez fique para outro livro. Gostava de ler?

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Caderno 3, publicado pela Enfermaria 6, foi composto em caracteres Adobe Caslon

Pro, e impresso na Várzea da Rainha Impressores em papel Coral Book Creme 80g, durante o mês de abril de 2015. Uma versão digital desta publicação encontra-se disponível em www.enfermaria6.com, em cujo blogue os textos que a compõe foram

previamente publicados.

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POESIA

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