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A P R E N D E R Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação

Caderno Aprender Nº.10

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Page 1: Caderno Aprender Nº.10

A P R E N D E R Caderno de Filosofia

e Psicologia da Educação

Page 2: Caderno Aprender Nº.10

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Campus Universitário – Caixa Postal 95 – Fone/fax: 77 3424-8716Estrada do Bem-Querer, Km 04 – Módulo da Biblioteca, 1° andar

45083-900 – Vitória da Conquista-BAwww.uesb.br/editora - [email protected][email protected]

ReitoRProf. Abel Rebouças São José

Vice-ReitoRProf. Rui Macêdo

PRó-ReitoR de extensão e Assuntos comunitáRiosProf. Paulo Sérgio Cavalcanti Costa

diRetoR do dePARtAmento de FilosoFiA e ciênciAs HumAnAs Prof. João Diógenes Ferreira dos Santos

diRetoRA do dePARtAmento de ciênciAs HumAnAs e letRAsProfª Marina Helena Chaves Silva

diRetoR – edições uesbJacinto Braz David Filho

Comitê Editorial: Prof. Ms. Braulino Pereira de Santana, Prof. Dr. Gildásio Santana Júnior, Prof. Esp. Hugo Andrade Costa, Prof. Ms. Marcos Lopes de Souza, Profª Ms. Marilza Ferreira do Nascimento, Prof. Dr. Renato Leone Miranda Léda, Prof. Ms. Paulo Sérgio Cavalcanti Costa, Profª Drª Tânia Cristina R. Silva Gusmão, Profª Drª Zenilda Nogueira Sales.

O periódico Aprender é indexado nas seguintes bases de dados:

1. Index Psi Periódicos (BVS-Psi) - http://www.bvs-psi.org.br2. Clase, Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades, Universidad Nacional Autónoma de México - http://www.dgb.unam.mx/3. Sumários de Revistas Brasileiras-Funpec/RP - http://sumarios.org/4. Latindex - http://www.latindex.unam.mx/5. Edubase/Faculdade de Educação/Unicamp - www.bibli.fae.unicamp.br/catal.html

Catalogação na publicação: Biblioteca Central da Uesb

100 A661a

Aprender – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação. Ano 6, n. 10, jan./jul. 2008. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2008. Início da publicação: dezembro de 2003. Periodicidade: semestral.ISSN 1678-78461. Filosofia – Periódicos. 2. Psicologia. I. Universidade Estadual do Sudo-este da Bahia. II. Título.

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Page 3: Caderno Aprender Nº.10

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

A P R E N D E R Caderno de Filosofia

e Psicologia da Educação

ISSN 1678-7846APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano VI n. 10 p. 1-278 2008

númeRo esPeciAl:Heidegger e a Educação

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Copyright © 2008 by Edições Uesb

APRENDER – Caderno de Filosofia e Psicologia da EducaçãoDepartamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH)Departamento de Ciências Humanas e Letras (DCHL)

Universidade Estadual do Sudoeste da BahiaAno VI - n. 10, jan./jun. 2008

editoRes ResPonsáVeis

Prof. Ms. Leonardo Maia Bastos Machado - Uesb

Profª Ms. Zamara Araújo dos Santos - Uesb

editoRiA cientíFicA

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Prof. Ms. Reginaldo Santos Pereira - Uesb

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conselHo editoRiAl

Profª Drª Ana Elizabeth Santos Alves - Uesb

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Prof. Dr. José Carlos Araújo - Unitri

Prof. Dr. José Carlos Libâneo - UCGProf. Dr. Marcelo Ricardo Pereira - UFMG

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Profª Ms. Rosane Lopes Araújo Magalhães - Uesc

Prof. Dr. Silvio Gallo - UnicampProfª Drª Tania Beatriz Iwasko Marques - UFRGS

Prof. Dr. Walter Matias Lima - Ufal

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númeRo esPeciAl:Heidegger e a Educação

Sumário

ApresentaçãoO lugar de Heidegger na reflexão filosófica alemã sobre EducaçãoLeonardo Maia, Pedro Duarte de Andrade e Rodrigo Ribeiro Alves..................7

ARtigos

Heidegger e a arte de questionarMarco Aurelio Werle.......................................................................................17

Heidegger e a Educação Edgar Lyra.....................................................................................................33

Heidegger educadorPedro Duarte de Andrade................................................................................57

Kant entre o ficcionalismo de Vaihinger e a fenomenologia de HeideggerZeljko Loparic.................................................................................................73

A determinação ontológica do Mundo: um perfeito a prioriSônia Barreto Freire......................................................................................101

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Freud se encaixaria no rol dos operários(Handwerker) das ciências naturais? Considerações heideggerianas acerca da psicanálise freudiana Caroline Vasconcelos Ribeiro.........................................................................123

Sobre a serenidade em Heidegger: uma reflexão sobre os caminhos do pensamento Ligia Saramago.............................................................................................159

A apreensão fenomenológica da vida fáctica em Heidegger Roberto Wu...................................................................................................177

Sobre o sentido de educarMarcelo Sodelli..............................................................................................203

A universidade na era da técnica – tarefas e desafiosWanderley J. Ferreira Jr.................................................................................223

Resenhas

Ser e VerdadeRodrigo Ribeiro Alves Neto...........................................................................257

Nos ventos da ambigüidade: Heidegger leitor de Nietzsche Pedro Duarte de Andrade.............................................................................263

Periódicos permutados.............................................................................271

Normas para publicação de trabalhos....................................................273

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Apresentação

O lugar de Heidegger na reflexão filosófica alemã sobre Educação

Leonardo Maia (Editor responsável)*

Pedro Duarte de Andrade**

Rodrigo Ribeiro Alves***

Formação é palavra-chave do pensamento filosófico alemão moderno. Na verdade, a própria literatura alemã, na figura de seu maior autor, já colocara o tema da formação, no final do século XVIII, em seu centro. Nos Anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, Goethe criava o gênero que mais tarde ficaria conhecido como “romance de formação” ou, em alemão, Bildungsroman. Não foi pequeno o impacto desta obra. Entre os românticos alemães, talvez ninguém mais do que Friedrich Schlegel explicitou isso, ao considerar o livro uma das três grandes tendências da sua época, ao lado da Revolução Francesa e da Doutrina da ciência, de Fichte.

númeRo esPeciAl:Heidegger e a Educação

* Professor de Filosofia da Uesb. Doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). ** Professor Substituto de Filosofia no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universi-dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor da Pós-Graduação Lato Sensu da PUC-Rio (Arte e Filosofia). Doutorando em Filosofia na PUC-Rio.*** Atualmente é Professor substituto no Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ. Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

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8 Leonardo Maia, Pedro Duarte de Andrade e Rodrigo Ribeiro Alves

Isso demonstra a importância da Bildung, isto é, da formação para o pensamento alemão moderno. Goethe não estava sozinho. Dentre os autores românticos e os filósofos idealistas, a tematização do problema da formação foi constante e contundente. Podemos quase acompanhar o próprio desenvolvimento do pensamento alemão através das múltiplas considerações que ele fez sobre a formação (na qual está encerrada a questão da educação) nesses últimos dois séculos. Mas será que esta história chega mesmo até os contemporâneos? Será que existe algo que podemos detectar como um “projeto” comum que diz respeito à investigação da formação? Será que ele alcança o pensamento, ainda, de Martin Heidegger?

É certo que há alguns pontos comuns capazes de definir, de início, senão todo um projeto de fundo, em sua totalidade, ao menos certas porções ou aspectos fundamentais da obra de diversos pensadores de todo o período, desde finais do século XVIII, seja na literatura, seja na filosofia mas, em especial, a partir de uma zona mista que parece se erigir entre ambas, talvez como um elemento formado dentro da consecução mesma desse projeto. Talvez, ainda, como o resultado mais visível de uma proliferação dos estudos pedagógicos que marca todo o período. Tanto que, como observa Ginzo, na sua apresentação dos Escritos Pedagógicos de Hegel, apenas “na segunda metade do século XVIII aparecem na Alemanha mais escritos e artigos sobre educação e ensino, do que nos três séculos anteriores”1.

De imediato, poderíamos lembrar alguns tópicos que se destacam na expressão possivelmente mais filosófica das diversas concepções da Bildung. Dentre eles, o sentido orientativo (ao mesmo tempo o valor e o cuidado da idéia de formação) que surge ligado, em especial, a uma pesquisa e, igualmente, a uma distinção conferida à noção de origem (sob diversos aspectos e com diversas orientações), um determinado retorno à Grécia (que poderia ser tomado como um desdobramento desse mesmo interesse pela origem), o envolvimento com uma idéia de destino ou de destinação, que encontra também seu correlato aplicado na postulação de um determinado papel histórico do povo alemão, ou mesmo, num 1 Ginzo, A. Hegel y el problema de la educación. In: Hegel, G. W. F. Escritos pedagógicos. México: Fondo de Cultura Econômica, 1991. p. 8.

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9 Apresentação

sentido conceitual mais amplo, de um encaminhamento para uma mais indeterminada abertura ou uma idéia de futuro e de realização diferida, plenamente preenchida apenas a partir da categoria de futuro.

Pensadores como Herder, Lessing e mesmo Winckelmann estão no início de um despertar, ainda que incipiente, para o problema da formação que, mais tarde, culminaria na grande filosofia da história de Hegel, que não deixa de ser a tentativa máxima de investigar a formação de toda nossa cultura. Naqueles primeiros autores, a referência aos antigos gregos ganha o tom problemático de quem já não os aceita apenas como modelos eternos de grandeza a serem copiados, mas sim como exemplos a serem seguidos, justamente na medida em que foram fiéis ao seu tempo. Nós também deveríamos sê-lo. Em outras palavras: o relacionamento com o passado passa a ser decisivamente determinado pelas circunstâncias e necessidades do presente, que busca nele o seu próprio sentido formativo.

Esse desenho não deixa de ser curioso ou mesmo paradoxal: pois ele não apenas faz da formação uma experiência definitivamente temporalizada. Ele a considera segundo uma determinada ordem do tempo e, de modo geral, segundo uma intrincada inversão dessa mesma ordem. Presente, origem e futuro devem conjugar-se como o eixo propiciativo maior da formação. Mas ao tempo impõe-se uma série de dobras, ele vai e volta, vira e revira-se, em busca de um sentido que tanto parece estar de todo perdido e que só será aclarado pelo antigo ou pelo verdadeiro início, como também está colocado desde já, nunca antes tão presente, mesmo que sob a forma de questão. Seria Nietzsche, talvez, quem o teria melhor compreendido ou que parece melhor descrevê-lo (senão mesmo vivê-lo): pensar no tempo, a partir do tempo presente, mas para saltar por sobre ele e reencontrar, na página antiga da história e da filosofia, a seta que melhor aponta e indica o futuro. Pensar no tempo, contra o tempo, e sobretudo, numa situação intemporal ou extemporânea, fazendo do pensamento e da vida o lugar de uma experiência permanentemente intempestiva de formação.

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10 Leonardo Maia, Pedro Duarte de Andrade e Rodrigo Ribeiro Alves

Na resenha que faz de A Origem da Tragédia, Röhde, amigo de Nietzsche e grande helenista, parece evocar sinteticamente todos esses temas e, no fundo, seria igualmente difícil dizer que eles se perdem por inteiro no desenrolar do pensamento nietzschiano, bem como, por outro lado, que eles estejam radicalmente desligados de todo outro pensador alemão do período.

Quando, na época do renascimento de uma formação cultural mais livre, a Europa se voltou para os únicos mestres dignos, os gregos, ela se baseou imediatamente nesse impulso socrático-alexandrino de fundamentação do mundo, e desde então os nossos melhores esforços se enraízam em um alexandrinismo intensamente acentuado. Mas o autor demonstra como essa direção dominante e exclusiva, embora nobre se considerada em si mesma, sufocou inteiramente as mais profundas capacidades da criatividade humana; demonstra também como o caminho tomado nos conduz sempre em círculos, a partir da noção profunda e delirante de que todos os abismos poderiam ser medidos com o metro da lógica; demonstra, finalmente, como o otimismo teórico herdado de Sócrates se transforma, dominando toda a nossa cultura, em um eudemonismo prático, que por sua vez se tornou uma exigência exaltada e ameaça desencadear gradativamente sobre essa cultura deteriorada um inferno de poderes destrutivos2.

Do tempo, do destino e do povo aponta o sentido formativo, ao mesmo tempo a partir da cultura, mas radicalmente contra ela... Por dentro mesmo dessa injunção, a formação sofre alterações decisivas. E, sobretudo, quanto aos seus fins. Ela não aponta para, não pode ser descrita na direção de um simples objetivo formador, sem que isso falseie ao mesmo tempo seu impacto cultural, e sua especial temporalidade, que, tampouco, será antecipada sob a forma de método. Ela apenas força e essa condição de forçamento é, talvez, a principal de uma nova paidéia.

2 röhde, E. Resenha (recusada) para a Literarische Zentralblatt. In: Machado, R. (Org). Nietzsche e a polêmica sobre O Nascimento da tragédia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. p. 39.

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11 Apresentação

No cenário contemporâneo, é Heidegger quem talvez expresse de forma economicamente mais simples essa conjunção de temas, e a idéia em si de formação em seu sentido ainda em aberto, ao retomar o problema sob forma de questão, ou melhor dito, ao estabelecer as condições de conversão desse tema em nova, ou em novas questões. Parece-nos exemplar a esse título, a porção final de sua conferência Hegel e os gregos que, justamente, de algum modo envolve mais uma vez todo o quadro que descrevíamos acima, ou seja, o de uma possível formação, e das condições pelas quais esta viria ligada ainda a um possível legado grego, à continuidade, orgânica, discreta ou mesmo simplesmente fragmentada pela qual ela alcança a modernidade e o sentido que ela pode ali então erigir (do qual interessar-nos-ia, evidentemente, em especial o aspecto formador e seus desdobramentos).

Nessa conferência, o objetivo de Heidegger, ele mesmo o admite ao final, é bem mais do que simplesmente determinar a forma da relação da filosofia hegeliana com os pensadores originários gregos. Trata-se de determinar essa relação no que ela diz respeito e compreende a determinação da própria relação nossa, de um pensamento atual e sua tarefa, com a filosofia antiga. E o que “está em jogo”, nesse curto texto sobre Hegel, é nada menos que a “questão do pensamento” enquanto tal, e a devida aferição da compreensão hegeliana acerca do período grego da filosofia só se faz relevante na medida em que ela favorece e aponta para uma possível resposta a tal questão. E, na resposta devida a esta questão, questão formativa, portanto, agora em Heidegger como antes, parece residir a pedra-de-toque da própria filosofia. De uma compreensão correta ou infeliz, dependem os próprios destinos do pensamento: “a questão do pensamento está em jogo”.

Hegel determina a filosofia dos gregos como o começo da “filosofia propriamente dita”. Esta, porém, permanece, enquanto a instância da tese e abstração, no “ainda não”. A plenificação na antítese e síntese não ocorre. [...] Hegel diz da filosofia dos gregos: “somente se consegue encontrar satisfação até um certo grau dentro dela”, a saber a satisfação do espírito para a certeza absoluta. Este juízo de Hegel sobre o insatisfatório da filosofia

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grega é pronunciado a partir da consumação e plenitude da filosofia. No horizonte do idealismo especulativo a filosofia dos gregos permanece no “ainda não” da plenitude. Ora, atentemos para o enigmático da Alétheia, que impera sobre o começo da filosofia grega e sobre a marcha de toda a filosofia, então a filosofia grega também se mostrará para nosso pensamento, como um “ainda não”. Mas, é o “ainda não” do impensado, não um “ainda não” que não nos satisfaz, mas um “ainda não” para quem nós não bastamos e que não somos capazes de satisfazer”3

Talvez, com isso, caiba a Heidegger o papel de realizar uma maravilhosa inversão. De nos ter quem sabe, afinal, colocado no caminho mais próprio da formação, mas por considerá-la justamente como o contrário de um termo e de um desfecho. Essa formação, como preparação, efetivamente, não pode não ser senão uma formação para a formação, um encaminhar-se para o aberto. Essa formação com vistas apenas ao aberto, ela mesma uma abertura da qual se poderá falar infinita e indefinidamente. Formação que só pode e poderá ser dita através da expressão: ainda não.

*

Essa experiência de incompletude se deve ao fato de que, para Heidegger, o percurso histórico da cultura ocidental em sua unidade essencial – a Metafísica – está inserido no seio de uma passagem do fim da tradição para um outro começo. Somos seres do “não mais” e do “ainda não”. Trata-se, de certo modo, da experiência de um profundo esvaziamento da idéia mais tradicional de “formação” e, ao mesmo tempo, de um apelo prenhe de transformação. O século XX foi um século vespertino e o homem de hoje vive a experiência de uma transição. O “ainda não” reside na experiência dessa passagem que nos reivindica um esforço por reconquistar a tradição em sua essência para o futuro. Por isso dizia Heidegger: “pensado historicamente, o acabamento é futuro4”.

3 Heidegger, M. Hegel e os gregos. In: Sobre a essência do fundamento / A determinação do ser do ente segundo Leibniz / Hegel e os gregos. São Paulo: Duas Cidades, 1971, p. 124-125.4 heidegger, M. Nietzsche, Metafísica e Niilismo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, trad. Marco Casanova, 2000, p. 117.

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13 Apresentação

O acabamento da tradição faz ressoar no presente o vigor de futuro do passado, colocando sempre de novo o pensamento como um desafio por vir. É neste sentido que Heidegger nos diz: “a possibilidade de acesso à história funda-se na possibilidade de um presente poder realmente compreender-se como sendo algo futuro5”. O fim da tradição transforma o pensamento por meio da renovação crítica da sua relação com o passado. Como assevera Nietzsche: “é, pois, pelo poder que ele tem de fazer servir o passado à vida e de refazer a vida com o passado, que o homem se torna homem6”. Mas se a própria idéia de “formação” que está na base do projeto dessa civilização se dirige hoje ao seu estágio final, trata-se de um processo histórico de transformação que se corresponde ao modo pelo qual o pensamento ocidental tem assumido o seu começo. Para dizer com Heidegger: “a tradição não nos entrega à prisão do passado e irrevogável. Transmitir, délivrer, é um libertar para a liberdade do diálogo com o que foi e continua sendo”7.

Recuperar o “ainda não” pensado da Metafísica consiste em recuperar a existência histórica do homem como sempre de novo digna de ser pensada em sua força de constituição que jamais se esgota em formas constituídas. O pensamento aquiesce esse desafio histórico à medida que se liberta para assumir a tensão criadora entre aquilo que sempre foi, continua sendo e apela por vir a ser sempre outra vez pensado como pela vez primeira. Neste sentido, o pensamento guarda o porvir sempre e a cada vez que “mostra de novo o ser como o que deve ser pensado e, de tal modo que o que deve ser pensado permaneça enquanto tal no horizonte do homem8”. A existência humana consiste, para Heidegger, em uma dinâmica de realização na qual continuamente vigora a abertura do ser. Enquanto existe, o homem é continuamente reivindicado pelo desvelamento do ser. Em toda a história do Ocidente ressoa essa reivindicação inesgotável de ser na qual o homem insiste e

5 Idem. O conceito de tempo. Cadernos de tradução, São Paulo: Usp, n. 2, p. 37, 1997.6 nietzsche, f. W. Da utilidade e dos inconvenientes da história para a vida. Lisboa: Presença, 1976. p. 110.7 heidegger, M Que é isto, a Filosofia? In: “Conferências e Escritos Filosóficos”. São Paulo: Nova Cultural, col. Os Pensadores, traduções e notas de Ernildo Stein, 1996. p. 29.8 Idem. A tese de Kant sobre o ser. In: “Conferências e Escritos Filosóficos”. São Paulo: Nova Cultural, col. Os Pensadores, traduções e notas de Ernildo Stein, 1996. p. 226.

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na qual o ser se torna histórico. O que está posto em causa e reivindica a nossa atenção no pensamento reside na questão sobre como se determina essa abertura do ser, a partir de onde ela se funda e como ela atinge o homem e o requisita. Recuperar a “História do Ser” em sua essência para o futuro significa, portanto, recuperar nossa presença no mundo como um desafio de libertação para que a reivindicação que as coisas fazem ao homem enquanto ele existe seja sempre a dinâmica de uma conquista, um empenho que nunca deixe de nos provocar, nos incitar e nos surpreender. É nessa medida que, para Heidegger, “tanto mais urgente permanece uma reflexão que se põe à escuta da tradição, que não seja arrastada pelo passado, mas que medite o presente9”.

De início e na maioria das vezes, as experiências de pensamento que formam nossa cultura e formaram nosso mundo falam em nós e por nós sem sequer nos darmos conta. Este é o principal motivo para nos engajarmos na tarefa de recuperar a tradição para o futuro: de imediato e muitas vezes, estamos no domínio de uma tradição de pensamento a despeito de nós, e não nos conheceremos nem seremos livres em nossos valores e nossas ações imediatas e futuras se negligenciarmos o sentido desse pensamento que nos toma as rédeas da formação. Esse sentido reside nas reflexões e discussões empreendidas pelos filósofos desde os gregos. É por isso que precisamos de apropriação do passado que medite o presente, pois, em seu percurso histórico, a tradição não apenas nos entrega o que fomos e nos convida a ser o que somos, mas, sobretudo, responsabiliza-nos pelo que nos tornamos.

Nas artes, na política, na moral e na ética das ações cotidianas, na técnica, nas ciências e, obviamente, na metafísica, pensamos e falamos nas culturas e línguas ocidentais com os conceitos e as articulações instauradas pelas discussões filosóficas desde os gregos. Com tais conceitos e idéias nos dispomos a entender e lidar com o mundo, visto que deram início a instituições e tradições filosóficas, científicas, culturais, morais, políticas, etc. que vigoram até nossos dias. As que fundam e principiam a nossa “formação”, conferindo o sentido de

9 A tese de Kant sobre o ser. In: “Conferências e Escritos Filosóficos”. São Paulo: Nova Cultural, col. Os Pensadores, traduções e notas de Ernildo Stein, 1996. p. 227.

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15 Apresentação

nossa compreensão e ação. Conceitos que, se os usamos sem refletirmos sobre seus sentidos, tecerão nossos mundos a despeito de nós mesmos – porque são as idéias em que viemos a ser o que somos e, sobretudo, que guardam o poder do que ainda havemos de ser e fazer. É por que o ser jamais poderá estar totalizado numa uniformização de estruturas que a realização do pensamento jamais se deixa realizar e se fixar num saber sistemático e definitivo, isto é, não está nunca acabada em uma configuração determinada, pois o pensar somente se realiza por meio da dinâmica circular de uma conquista que exige um eterno retorno à proveniência de sua própria essência, um eterno retorno à origem de sua própria essencialização.

Neste sentido, o “ainda não” do impensado não nos dá acesso ao desenrolar de acontecimentos numa acumulação progressiva. O acontecer histórico do pensamento não se inscreve na linearidade sucessiva do tempo cronológico. A representação sucessivo-linear do tempo não atinge o âmbito de realização desse acontecer, pois não vê que o duplo movimento no qual se insere toda “formação” consiste na dinâmica criadora de uma circularidade. Inserido nesse círculo, o pensamento é lançado tanto numa retrospecção, na qual se apropria do começo de sua história conquistando a memória do impensado que nele se abriga, quanto numa prospecção, na qual avança na conquista do a-se-pensar. Não se trata, assim, de mera regressão, pois se Heidegger torna imperioso um recuo, para dizer com Nietzsche: “ele recua como quem quer dar um grande salto10”. Mas um tal salto, por outro lado, não pode se definir como uma mera progressão. A retrospecção não incide sobre o “já pensado” num passado que se conserva atrás de nós e que precisaria ser nostalgicamente restaurado, mas sobre o que tendo sido experimentado pelo pensamento no começo de sua história, mas impensado em seu decurso, está sempre vigente no presente e retorna sempre de novo à espera de um futuro; isto é, à espera de uma prospecção que, por sua vez, não se define como a projeção de um avanço que abandona o pensado como a “seqüela de cargas do passado”, e sim como um avanço que se

10 nietzsche, f. Além de bem e mal. Trad. Paulo C. Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 189.

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16 Leonardo Maia, Pedro Duarte de Andrade e Rodrigo Ribeiro Alves

move somente por meio de uma retrospecção apropriadora do impensado que em todo pensado constitui o a-se-pensar.

*

Com este número, o APRENDER – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação chega à sua decima edição, número significativo por todos os motivos. Que ele seja a ocasião de uma celebração e de um agradecimento.

A todos os colegas, membros da Editoria científica, Conselheiros, à Direção e aos funcionários da Edições Uesb, às Administrações da Universidade no correr desses anos de existência da publicação, e a todos os colegas que têm contribuído para o aprimoramento e para essa tenra longevidade do caderno, nosso mais sincero Obrigado.

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Heidegger e a arte de questionar

Marco Aurelio Werle*

Resumo: O artigo pretende aproximar a filosofia de Heidegger do tema da educação, por intermédio da exploração do caráter essencialmente questionador de seu pensamento. O texto Que é isto – a filosofia? servirá como fio condutor de abordagem.

Palavras-chave: Heidegger. Filosofia. Educação. Filosofia contemporânea.

Heidegger and the art of challenging.

Abstract: The purpose of this paper is to relate Heidegger’s philosophy to the theme of education through the study of the essentially challenging character of his thought. The text What’s this - the philosophy? will function as a guiding thread.

Key words: Heidegger. Philosophy. Education. Contemporary philosophy.

Heidegger não escreveu propriamente nenhum texto sobre educação1. E se quisermos relacioná-lo a esse tema, é necessário tomar

* Doutor em Filosofia pela Universidade de São paulo (USP). Professor do Departamento de Filosofia da USP e Bolsista Produtividade do CNPq, nível II.1 O termo “educação” sequer é relacionado no Dicionário Heidegger, de Michael Inwood. Por outro lado, há estudos no Brasil que tangenciam o tema, por exemplo, a coletânea Todos nós ... ninguém. Um enfoque fenomenológico do social, acompanhado de uma tradução do trecho sobre o “a gente” [das Man] de Ser e tempo; além disso, Aprendendo a pensar, de E. Carneiro Leão.

númeRo esPeciAl:Heidegger e a Educação

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano VI n. 10 p. 17-31 2008

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18 Marco Aurelio Werle

a noção de educação em uma perspectiva mais ampla, ou seja, aproximá-la de seu sentido filosófico, que se conservou, na época moderna, de modo privilegiado, no termo alemão Bildung [formação]. A importância desse termo para a tradição humanista foi acentuada por Hans Georg Gadamer, ao citar W. von Humboldt, em Verdade e método. A Bildung se refere a uma educação total, interior e exterior, inclusive sensível do ser humano, que leva em conta o desenvolvimento imanente de todas as suas possibilidades e potencialidades, ao contrário da formatio, que se volta mais para o desdobramento de faculdades ou de talentos e se orienta por preceitos oriundos do exterior.2 Desse modo, a Bildung se impõe como um dever ou uma máxima individual, que o homem escolhe por si e para si, “er bildet sich selbst”, não sendo, portanto, educado de “fora para dentro” por um mero cultivo de habilidades. O meio e o fim desaparecem nesse processo, pois o alvo não consiste apenas em adquirir algo, como se aquilo que se aprendesse pudesse ser em seguida novamente abandonado. Para Gadamer, foi Hegel quem “elaborou de modo mais penetrante” o conceito de Bildung, segundo suas várias acepções.3

Independentemente dos vínculos que essa noção tem com o desdobramento da subjetividade na época moderna, pode-se sem dúvida dizer que há uma certa Bildung no pensamento de Heidegger, que inclusive se encontra na origem da fascinação que esse pensamento radical ainda exerce hoje sobre nós. Entretanto, essa dimensão não está primeiramente nas “teses filosóficas” de Heidegger, mesmo porque é problemático afirmar que suas reflexões constituem uma “filosofia”, em sentido clássico. O pensador da Floresta Negra sempre se moveu no limiar do fim da filosofia, o que implicou, ao mesmo tempo, a constatação da facticidade de um novo início, de uma nova era em que finalmente se daria [sich ereignen] o pensamento original, como atividade destituída de pressupostos conceituais previamente definidos. Dessa forma, a marca da filosofia de Heidegger está essencialmente ligada ao ato de questionar e de interrogar, sendo, portanto, nesse sentido profundamente educativa ou formadora. Antes de afirmar o mundo, o

2 Wahrheit und Methode, p. 8-9.3 Idem, p. 9-12: Bildung como conhecimento, trabalho e socialização, teórica e prática.

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ente, a verdade, etc., cabe à filosofia interrogar-se a si mesma e instalar-se no ser ou, quem sabe, no nada, tendo em vista essa questão crucial para o homem, formulada como questão fundamental da metafísica, logo na abertura de Introdução à metafísica: “Warum ist überhaupt Seiendes und nicht überhaupt vielmehr Nichts?”4

Esse carácter interrogativo se reflete no modo de apresentação e na forma da maioria dos textos de Heidegger, que ora têm por título uma pergunta: O que significa pensar?; Que é metafísica?; Que é isto – a filosofia?; Para quê poetas? Quem é o Zaratustra de Nietzsche? ora afirmam no título a noção de pergunta: A questão [Frage] da coisa; A questão [Frage] da técnica; Sobre a questão do ser [Seinsfrage]. Acrescente-se a isso, ainda, os vários textos que denotam a noção de procura por respostas, traduzida na metáfora do “caminho” [Weg]: Caminhos da floresta; Marcas do caminho; Caminho do campo; A caminho da linguagem.5 Tudo indica que estamos aqui diante de um pensamento que recusa a forma tratadística e aponta para uma certa suspensão do pensamento. A brevidade de muitos dos ensaios de Heidegger remete menos à explanação de uma doutrina pesada do que à formulação ou detecção de certos problemas ou tarefas para o pensamento. E certamente os leitores de Heidegger devem se lembrar da experiência de certos ensaios que, em geral, nos deixam mais confusos do que estávamos antes de nos debruçar sobre eles e colocam mais perguntas do que respostas.

Como situar esse aspecto interrogativo do pensamento de Heidegger? Seria ele apenas um mero fingimento ou uma mania do “jargão da autenticidade” (segundo o diagnóstico de Adorno)? Parece-me antes que esse gesto está inscrito no próprio ato de filosofar e alojado no cerne de uma concepção de filosofia, que consiste em nos reconduzir para aquele espanto [thaumázein] que se colocou pela primeira vez com a alvorada da atividade crítica humana, a saber, com os gregos,

4 [Por que é em geral o ente e não antes em geral o nada?], p. 1.5 A publicação da Gesamtausgabe [obra completa] de Heidegger, a partir de meados da década de 1970, cuja grande maioria de textos é formada por cursos universitários, não publicados em vida pelo filósofo, que morreu em 1976, apaga um pouco essa impressão interrogativa que os ensaios causaram para o público que inicialmente os recebeu. Por isso mesmo, penso que se deve privilegiar os textos publicados em vida, pois asseguram mais fielmente o processo de apresentação do pensamento heideggeriano e sua inserção na filosofia do século XX.

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e que sempre marcou a própria existência do homem como estar ou ser [Dasein] no mundo. Por este motivo, os textos de Heidegger muitas vezes são frustrantes, principalmente para quem procura na filosofia ou um discurso engajado, “transformador da realidade”, ou a segurança de um guia de vida (auto ajuda). Pois, esses textos são construídos na base de um pensar que constantemente critica seus fundamentos. Sob esta perspectiva, o maior legado de Heidegger reside talvez em nos alertar sobre o fato de que, embora vivamos no seio de um mundo administrado, alienado, onde praticamente tudo já está explorado em termos do saber, da técnica e do consumo (pelo menos é essa a ilusão que paira no ar em nossa cultura), nós nunca devemos esquecer as origens e, mais importante, ainda, a determinação fundamental do homem, a quem foi concedida a dádiva do ser, isto é, a possibilidade de compreender o ser.6 E essa compreensão do ser, na qual Heidegger insiste por quase todo o seu tratado Ser e Tempo (o qual, embora sendo um tratado, está permeado de interrogações e não deve ser tomado como mera “doutrina”), implica não se entregar ao cotidiano, ao dia-a-dia das ocupações e preocupações ônticas, e sim questionar a existência, viver sob o signo da angústia, não aquela do desespero, mas a que revela o nada como o véu do ser, a saber, assumir o caráter ontologicamente aberto da existência.

A atitude questionadora do pensamento de Heidegger, portanto, é carregada de historicidade. De um lado, procura-se remontar o pensamento ao seu começo, à sua origem, e isso principalmente por ter havido um afastamento do homem de seu destino no mundo que, na linguagem de Heidegger, se traduz como sendo o esquecimento do ser na metafísica ocidental e redunda na confusão entre ente e ser. Por outro lado, porém, essa volta ao começo não implica uma recaída saudosista no passado, na direção de uma tentativa de voltar atrás no tempo. Pelo contrário, o pensamento questionador é extremamente atual, encontra-se em profunda sintonia com o presente, a saber, com o século XX como o cenário onde a filosofia de Heidegger surgiu, se

6 Esse trecho retoma o que escrevi no fim do artigo “Martin Heidegger: O homem na clareira do ser” para o volume Os Pensadores, um curso, p. 212-213 e que gostaria de ampliar nesse artigo.

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desenvolveu e teve uma enorme influência sobre os contemporâneos. O século XX é justamente o século da crise da razão e dos fundamentos que por mais de dois mil anos guiaram a humanidade e que parecem ter entrado numa fase de esgotamento. Nada mais natural e apropriado, pois, que um pensamento que se pretenda conseqüente surja interrogando-se a si mesmo e não se apresente de forma dogmática. Disso se segue que os textos de Heidegger são profundamente atuais por sua própria forma de apresentação. E esse vigor do pensamento de Heidegger parece-me ser bem mais forte do que o de outras filosofias do século XX, por exemplo, se pensarmos nos desdobramentos de toda ordem do positivismo lógico e nos representantes da Teoria Crítica. Sem dúvida, a vertente da Teoria Crítica toca em temas mais candentes e contemporâneos, precisamente por tratar de questões sociais e, por tabela, estar mais vinculada às disciplinas das ciências humanas, como a sociologia, o direito, a psicologia, a psicanálise, etc. Em contrapartida, se observarmos seu modo de pensar e sua matriz filosófica, vemos que lida com um conceito de razão restrito e emprestado (via de regra proveniente de Kant ou de Hegel), isto é, de segunda mão, o que denota falta de originalidade, para não dizer que exprime um anacronismo, bem como um espírito de reforma e menos de transformação radical.7

Para desenvolver essa perspectiva histórica do ato de questionar, inscrita no próprio modo de surgimento da filosofia heideggeriana, eu gostaria de explorar um pouco mais detalhadamente um texto que considero exemplar nessa direção. Trata-se de Que é isto – a filosofia? (1955), que servirá de fio condutor para a abordagem desse universo de perguntas e questões.

No início do texto coloca-se a exigência de responder à pergunta exposta no título: Que é isto – a filosofia? Começa assim um percurso de indagações que terá como primeira etapa a própria possibilidade de acesso ao tema. E aqui já se pode antecipar que Heidegger praticamente

7 Para perceber essa dependência da Teoria Crítica ao campo de discussão da filosofia clássica alemã, basta acompanhar os malabarismos teóricos e as oscilações terminológicas que Horkheimer realiza no artigo de 1937, intitulado Traditionelle und kritische Theorie, no intuito de defender a unificação de teoria e prática.

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não sairá desse nível de abordagem, ou seja, não fornecerá uma resposta direta à pergunta: filosofia é isso ou aquilo, serve para isso ou aquilo, etc., e sim veremos que a própria pergunta contém a resposta, ou melhor, ela é a resposta. Desde seu início e em seus momentos áureos, o que destacou a filosofia nunca foram as respostas dadas, e sim os questionamentos apresentados.

Ao questionar o acesso ao tema, impõe-se o problema de um caminho, de que nos coloquemos num caminho e a caminho. E esse caminho não deve ser resolvido por um discurso sobre a filosofia, mas por uma entrada em seu âmbito de abrangência: “penetrar na filosofia”8, deixar que a filosofia nos diga algo e não nos entregar, de maneira apressada, a um mero relatório acerca dela. Essa perspectiva inicial do texto irá se aprofundar cada vez mais, no sentido de insistir numa correspondência [Entsprechung] com a filosofia, ou seja, a pergunta: “Que é isto, a filosofia?” exige situar-se na e não diante da filosofia, e isso por meio da linguagem, para que possamos cor-responder à filosofia. Não sabemos nada da filosofia se não nos dispusermos a filosofar, a pensar como a filosofia pensa, o que significa que a filosofia não é um conjunto de preceitos, mas sobretudo uma maneira de pensar.

De início, porém, nunca nos encontramos nessa correspondência e importa percorrer um caminho. Com isso, corre-se o risco de confundir a tarefa, quando se imagina que se deve entrar numa certa simpatia com a filosofia por meio de um mero sentimentalismo, como se fosse necessário abandonar o pensamento “conceitual” e procurar, em termos apologéticos, uma “intuição” cega da filosofia. Por outro lado, ao querermos sair dos sentimentos, apelamos para a razão, que constitui o mesmo erro, o elo oposto que tanto nos desvia de uma abordagem direta, digamos assim, fenomenológica da filosofia, quanto nos aprisiona na visão tradicional e já batida de que a filosofia é uma atividade da ratio, da razão. Aliás, trata-se de sair desse jogo de pingue-pongue ou de oposição entre o irracional e o racional.9

8 “Que é isto – a filosofia?”, In: Os Pensadores, p. 13.9 Idem, p. 14.

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É preciso ter maior cuidado quanto à abordagem do tema. Por isso, Heidegger vai enfrentar a questão da própria palavra filosofia e do modo como nos dirigimos a ela, ao perguntarmos: “o que é isto?”. O que nos diz inicialmente a filosofia? Filosofia é algo que remete aos primórdios de nossa civilização. A questão da filosofia nos liga a uma certa tradição, que é essencialmente grega, mesmo que essa tradição tenha passado pelo Cristianismo e hoje estejamos na chamada era atômica. Trata-se, portanto, de ser solícito a essa tradição, de entrar em diálogo com ela. E ao fazermos isso, percebemos algo incômodo, para não dizer surpreendente: “[...] não apenas aquilo que está em questão, a filosofia, é grego em sua origem, mas também a maneira como perguntamos, mesmo a nossa maneira atual de questionar ainda é grega”.10 Ao perguntarmos “o que é isto?” já estamos falando nos termos do modo de pensar grego, estamos perguntando exatamente do mesmo modo como faziam os gregos Sócrates, Platão e Aristóteles, quando perguntavam: O que é o belo? O que é o bem? O que é a virtude? etc. Essa maneira de questionar não é, portanto, tão óbvia assim, não surgiu ao acaso ou desde sempre existiu e, de certa maneira, nos condiciona ou impede um acesso que alcance “as coisas elas mesmas”. Pelo contrário, essa atitude foi “inventada” por uma certa tradição de pensamento, à qual ainda estamos ligados umbilicalmente, embora nem sempre nos demos conta disso.

O pensamento encontra-se, assim, num círculo, pois estamos no interior de um caminho que tanto nos conduz quanto ainda tem de ser esclarecido em seus fundamentos. Perguntamos por algo que está inscrito na própria forma do perguntar, queremos esclarecer algo que determina a nossa própria maneira de colocar o esclarecimento e que necessitaria ser antes esclarecido. Para Heidegger, entretanto, esse círculo, assim como o “círculo hermenêutico” que define o modo em que se interroga a existência no Dasein (cf. Ser e Tempo), não deve ser rapidamente descartado como uma aporia ou, segundo a lógica, como sendo um “círculo vicioso”. Pelo contrário, tendo em vista o caráter essencialmente temporal de nossa existência histórica, o homem sempre

10 Idem, p. 15.

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se encontra nele e deve, portanto, procurar inserir-se adequadamente no mesmo. A existência humana é em sua essência um abismo [Abgrund], segundo a acepção propriamente alemã desse termo: destituída [Ab] de solo e fundamento [Grund], por mais que teimamos em não aceitar isso, abrigando-nos nos desvios de sentido, que Heidegger em Ser e Tempo nomeia como sendo o a gente, a curiosidade e o falatório.

Uma possibilidade tem de ser trilhada: voltemos com Heidegger para a origem da palavra grega filosofia. O que nos indica o filósofo, o philósophos, não é simplesmente que ele é amigo [philo] do saber [sophos], mas a verdade de que “todo ente é no ser”. Heráclito pôs a questão essencial da filosofia, que consiste em nos colocar numa certa correspondência com o ente no todo, procurar a harmonia com o todo, no sentido de uma solicitude diante desse fato espantoso de que o ente é. Sábio é aquele que corresponde ao que é o todo do ente. O saber filosófico nasce com essa atitude de ficar no espanto, cultivá-lo como advento de que o ente é no ser.

Entretanto, o saber filosófico grego não se deteve somente nesse espanto diante da abertura do ser, e sim se moveu na direção de um aprofundamento, da busca de uma compreensão do ser do ente, para além da percepção do ente no ser. Isso foi feito basicamente por Platão e Aristóteles, que certamente sabiam muito bem que o ente é no ser, mas estabeleceram nesse campo um pensamento do ser do ente: idéia em Platão e enérgeia em Aristóteles. E aqui torna-se decisivo perceber como o saber filosófico passa a ser “autônomo”, como esse amor (eros) ao saber, a partir de uma perspectiva ampla, se transformou em um saber específico, digamos assim, técnico. Quando Heidegger considera que Heráclito e Parmênides ainda não eram filósofos e, no entanto, foram os maiores pensadores, e que Platão e Aristóteles são de fato os primeiros filósofos, está em causa tanto uma mudança no registro da apreensão do ser quanto da postura de quem o enuncia. Ao mesmo tempo, a concepção de um progresso e de uma transformação do pensamento grego não contradiz a permanência de uma unidade no interior do mesmo,

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conforme se vê em uma série de análises em outros textos de Heidegger, tais como A doutrina da verdade de Platão e Sobre a essência e o conceito de physis na Física de Aristóteles.11 Ao se apreender o ente no ser de um modo mais rigoroso e determinante, por intermédio de um pensamento do ser do ente (que ocorreu primeiramente com Platão), não houve uma “negação” pura e simplesmente ou mesmo um “progresso” do modo de pensar grego originário.12

Segundo o desdobramento do saber filosófico em Platão e principalmente em Aristóteles, a filosofia procura o que é o ente enquanto tal, no sentido de perguntar pelo ser do ente. O ser do ente consiste, por sua vez, na entidade. Isso parece que encerra a questão quanto ao que seja a filosofia, pois Aristóteles já deu a resposta definitiva.

Mas, Heidegger considera que temos de ir além dessa história da filosofia inaugurada por Aristóteles e que se manteve na assim chamada história oficial da filosofia. Antes somos convocados a travar um diálogo com a filosofia, ou melhor, a pôr a filosofia em diálogo. E aqui se revela um procedimento muito típico de Heidegger, que lembra uma operação do sublime, como ato de perguntar ou de questionar. Uma das técnicas do sublime, segundo o tratado de Longino, consiste precisamente em operar no discurso, como forma de ampliação e engrandecimento, as perguntas e as respostas. “Apenas enunciada, a coisa é totalmente deficiente, mas o entusiasmo que invade [o orador], a prontidão da interrogação e da resposta e a maneira que ele tem de responder a si como a um outro tornam não só mais sublime o que ele diz pelo emprego da figura, mas ainda mais digno de fé”.13 O orador envolve sua audiência, ao recorrer a uma pergunta, bem como torna mais crível e objetivo o assunto de que trata, inserindo o espectador no discurso. Pois, assim, permite-se que o discurso, que era somente de um enunciador, seja compartilhado, uma vez que naturalmente o espectador faz suas as dúvidas do orador, pensa junto com ele. O pensamento heideggeriano, ao contrário de ser idiossincrático

11 Platons Lehre von der Wahrheit (1931-1932, 1940) e Vom Wesen und Begriff der Physis. Aristoteles, Physik B, 1 (1939), ambos constantes na coletânea Wegmarken.12 Cf. Die Gramatik des Wortes ´Sein´”, In: Einführung in die Metaphysik, p. 46-47.13 Do sublime, p. 75.

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ou hermético, como muitas vezes se afirma, é profundamente aberto, “sublime”, e permite que o leitor encontre uma sintonia, já que não se pensa de fato sozinho. Ao se ler os textos de Heidegger, têm-se a impressão de estar diante de alguém que pensa efetivamente, ao vivo, que envolve profundamente sua audiência. Filosofia aqui não significa simplesmente transmitir conhecimentos ou criar doutrinas, mas exercício do pensar. Exercício esse que nomes importantes da filosofia do século XX, tal como Jaspers, Karl Löwith, Hannah Arendt e Gadamer puderam acompanhar nos cursos universitários dados por Heidegger nos anos 20. O caráter dialógico, porém, não é apenas algo que se refere ao modo de pensar, e sim remete a uma concepção de homem, tal como vemos nas interpretações dos poemas de Hölderlin, quando se diz que “somos uma conversa [Gespräch]”.

Importa ir ao encontro da filosofia, de seu motivo mais íntimo, o que significa ver a que responde a filosofia. “Não encontramos a resposta à questão, que é filosofia, através de enunciados históricos sobre as definições da filosofia, mas através do diálogo com aquilo que se nos transmitiu como ser do ente”.14 É nessa linha que também é referido o conceito de “destruição”, que surge em Ser e tempo e confere a esse tratado seu sentido histórico, por mais que se queira transformá-lo em bandeira do existencialismo. “Destruição significa: abrir nosso ouvido, torná-lo livre para aquilo que na tradição do ser do ente nos inspira”.15

Se assim for, como, então, abordar o tema: “que é isto, a filosofia?”. A saída consiste em corresponder ao ser do ente, tal como a filosofia sempre procurou fazê-lo. Mas o que vem a ser essa correspondência? Ela remete ao fato de que, ao nos debruçarmos sobre uma filosofia qualquer, não devemos nos ater, no nível da superfície, às respostas que os filósofos dão, aos seus sistemas de pensamento, e sim procurar identificar seus impasses existenciais e teóricos, a correspondência inicial que esse filósofo manteve com o ser do ente, pois é daqui que brota a verdade de sua filosofia.16 Heidegger indica que a correspondência é

14 “Que é isto – a filosofia?”, p. 20.15 Idem, p. 20.16 Essa determinação de método parece-me estar na base da interpretação que Heidegger realiza de praticamente toda a história da filosofia e de seus principais representantes. E via de regra ela é mal compreendida, como se Heidegger insistisse de maneira pouco crítica num vago “impensado”, ou aplicasse a “doutrina do ser” à história ou defendesse uma forma travestida de fundacionismo.

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uma disposição [Stimmung], enquanto um estado de ânimo, de afinação ou concordância. Antes de se constituir como repertório de argumentos, toda filosofia é “precedida” ou acompanhada por uma atitude diante do ser do ente; antes da afirmação da proposição, se apresenta o estar situado num contexto, que nos fornece os indícios interpretativos.

Essa disposição tem, por sua vez, uma história, aliás, em cada filosofia ela assume uma nova feição. Principalmente a disposição da filosofia na época moderna, quando a certeza se torna critério determinante, assume uma postura toda particular. Pois, agora, é o critério da certeza subjetiva que se torna o parâmetro para a abordagem do ser do ente. E, por último, Heidegger aponta para a disposição que anima a nossa época, que é marcada por uma certa indeterminação e confusão de princípios. “Dúvida e desespero, de um lado, e cega possessão por princípios, não submetidos a exame, de outro, se confrontam. Medo e angústia se misturam com esperança e confiança. Muitas vezes e quase por toda a parte reina a idéia de que o pensamento que se guia pelo modelo da representação e cálculo puramente lógicos é absolutamente livre de qualquer dis-posição. Mas também a frieza do cálculo, também a sobriedade prosaica da planificação são sinais de um tipo de dis-posição”17. Ao introduzir o tema da filosofia no sentido da atitude que alicerça cada filosofia, Heidegger procura mostrar que o que interessa num sistema filosófico é a postura do filósofo diante do ser do ente e não tanto os detalhes internos, que dizem respeito somente à articulação no nível da representação de cada sistema.

Com essa constatação, a noção de razão e, por conseguinte, da própria filosofia, sofre uma profunda mudança de registro, pois trata-se de pensar o logos pela sua forma inicial de manifestação e de surgimento, o que remete para o tema da linguagem, como sendo justamente esse logos em estado nascente. A correspondência mais forte e original ocorre pela experiência da linguagem. É aqui, em última instância, que se realiza propriamente o sentido do logos. Exercer a razão é tomá-la como processo de recolha [légein], o que de fato sempre ocorreu pela linguagem. A

17 “Que é isto – a filosofia?”, p. 22.

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linguagem não consiste então numa mera operação específica de emitir palavras ou sons com significado, e sim, num ato de se pôr ou se inserir no ente em sua totalidade, de recolhê-lo deixando que seja. E o modo da linguagem mais apto para tanto é a poesia, com cuja menção se encerra o texto de Heidegger.

O que pensar deste desenlace que aponta para uma aliança entre pensamento e poesia, sustentados na base da linguagem? Parece-me que o ponto crucial não reside em inscrever ou em aproximar e diferenciar Heidegger de processos da filosofia analítica (Wittgenstein) ou de uma possível ética do discurso como agir comunicativo (Habermas), tal como sugere Ernildo Stein em duas notas que colocou em sua tradução de Que é isto – a filosofia?, e sim seria preciso refletir sobre a alusão aos dois versos de Hölderlin, do hino Patmos (que sequer foram localizados em nota, pelo menos na edição que aqui empregamos). Esses versos afirmam a proximidade do pensar e do poetar, os quais moram um ao lado do outro, em montanhas separadas por um abismo. Fazer filosofia ou compreender filosofia exige que nos elevemos para além de um programa fixo, por exemplo, para além das eternas e maçantes exigências de uma moralidade ou de uma ética. O pensamento nos chama a assumir seriamente a radicalidade e o vigor simbólico do dizer poético, que, como dizer “frágil”, resguarda a contingência humana diante do mais elevado e insere o homem em seu devido lugar, não como sujeito, mas como ente solícito ao sagrado. A poesia aqui não significa um discurso frouxo e pouco rigoroso, e sim uma operação de imaginação e de produção divina e elevada de uma relação e de força junto às palavras, que abrigam a maneira como o homem existe no mundo.18 Ouçamos para tanto pelo menos toda a estrofe do hino acima referido, em particular o início, que Heidegger tantas vezes citou, e não à toa, em seus textos:

Nah ist Próximo está o Deus,Und schwer zu fassen der Gott, Porém difícil é apreendê-lo,Wo aber Gefahr ist, wächst Mas onde há perigo, cresceDas Rettende auch. Também o que salva.

18 Explorei esse aspecto do pensamento de Heidegger em meu livro Poesia e Pensamento em Hölderlin e Heidegger.

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In Finstern wohnen Na escuridão moramDie Adler und furchtlos gehn As águias e sem temor caminhamDie Söhne der Alpen über den Abgrund weg Os filhos dos Alpes sobre o abismoAuf leichtgebaueten Brücken. Em pontes frágeis.Drum, da gehäuft sind rings Por isso, por estarem reunidosDie Gipfel der Zeit, und die Liebsten Os cumes do tempo, e os queridosNah wohnen, ermattend auf Morarem próximos, extenuadosGetrenntesten Bergen, Sobre montanhas as mais separadas,So gibt unschuldig Wasser, Ofereçam água inocente,O Fittige gib uns, treuestens Sinns Ó alados, nos dêem um sentido fielHinüberzugehn und wiederzukehren. Para atravessarmos e retornarmos.19

Dois aspectos parecem se ressaltar nesses versos: de um lado, a instância divina e sagrada que, para os homens, é o imponderável. Na época moderna esse nível se revela mais como ausência do que como presença, embora continue atuando na proximidade como fonte doadora de sentido. Digamos que esse seja o motivo latente que nos torna em última instância questionadores e do qual depende todo atuar e fazer humano. De outro lado, entra em cena a fissura da existência, a finitude humana que, embora permeada por uma escassez congênita, imprime um calor e até mesmo provoca uma ousadia, talvez uma hybris, que necessita da confiança do mais elevado, a solidez da natureza como filtro dos excessos.

Esses versos de Hölderlin nos fazem lembrar das palavras que Heidegger proferiu num discurso carregado de referências que lhe são muito caras e que permitem ter uma noção do topos (tomado aqui segundo suas várias acepções) a partir do qual emerge seu pensamento. Em seu discurso de recusa ao convite para lecionar na Universidade de Berlin, do ano de 1933, Heidegger dá a entender que a ocorrência da filosofia não depende de uma decisão de um sábio que, digamos assim, fechado em seu escritório e sentado numa escrivaninha, elabora “questões” ou reflete sobre os destinos da humanidade, muito menos surge do convívio ilustrado, culto e agitado das grandes metrópoles, mas

19 Hölderlin, Patmos [Zweite Fassung], In: Gedichte, p. 162.

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de uma certa atmosfera propícia de familiaridade com a natureza e de recolhimento, fornecida, por exemplo, pelo ambiente simples, acolhedor e rústico de uma cabana da Floresta Negra. A proposta de formação daqui decorrente requer uma certa imagem de mundo, certamente não aquela que resulta da efetivação da “época da imagem do mundo”, que transforma todo momento de saber em evento da cultura,20 mas a que permite pensar o mundo como momento da physis.

E é com palavras desse texto de 1933, que tem um título bastante provocador: Paisagem criadora. Por que permanecemos na província? que gostaria de encerrar esse artigo: “Quando, na profunda noite de inverno, uma nevasca selvagem, com seus solavancos se move agitadamente em torno da cabana e tudo suspende e oculta, então chega a hora máxima da filosofia. Seu questionar tem de ser então simples e essencial. A elaboração de cada pensamento não pode ser senão duro e aguçado. O esforço da estrutura lingüística é como a resistência dos pinheiros que se elevam contra a tempestade. E a elaboração filosófica não decorre de uma ocupação lateral de uma pessoa esquisita. Ela se situa no centro do trabalho dos camponeses”.21

Referências bibliográficas

CARNEIRO LEÃO, Emmanuel. Aprendendo a pensar. Petrópolis: Vozes, 1977.

GADAMER, Hans Georg. Wahrheit und Methode. Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. 4. ed. Tübingen: Mohr, 1975. (1. ed. 1960).

HEIDEGGER, Martin. Todos nós... ninguém. Um enfoque fenomenológico do social. Tradução e comentário de Dulce Mara Critelli e apr. de Sólon Spanioudis. São Paulo: Moraes, 1981.

______. Que é isto – a filosofia? Tradução de Ernildo Stein. In: ______. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1989.

20 Cf. Die Zeit des Weltbildes, p. 5.21 Schöpferische Landschaft: Warum bleiben wir in der Provinz? p. 10.

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31 Heidegger e a arte de questionar

______. Einführung in die Metaphysik. 6. ed. Tübingen: Max Niemeyer, 1998.

______. Schöpferische Landschaft: Warum bleiben wir in der Provinz? Gesamtausgabe, v. 13. 2. ed. Frankfurt am Main: Klostermann, 2002.

______. Die Zeit des Weltbildes. In: ______. Holzwege. 8. ed. Frankfurt am Main: Klostermann, 2003.

HÖLDERLIN, Friedrich. Gedichte. Stuttgart: Reclam, 1992.

HORKHEIMER, Max. Traditionelle und kritische Theorie. Vier Aufsätze. Frankfurt am Main: Fischer, 1968.

INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Tradução de Luísa Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

LONGINO. Do sublime. Tradução de Filomena Hirata. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

WERLE, Marco Aurélio. Martin Heidegger: O homem na clareira do ser. In: SANTOS, Mário Vitor. (Org.). Os Pensadores, um curso. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Casa do Saber, 2006.

______. Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger. São Paulo: Editora da UNESP, 2005.

Recebido em: 28 de agosto de 2007.Aprovado em: 14 de novembro de 2007.

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Heidegger e a Educação

Edgar Lyra*

Resumo: O tema da educação em Heidegger é aqui pensado a partir de dois momentos distintos da sua obra, separados pela conhecida “viravolta” e pelas suas injunções políticas. Há de fato algo como um projeto pedagógico no primeiro momento; no segundo, apenas indicações sobre o aprendizado do Pensar. A atenção ao Ser, como o que mais essencialmente nos concerne, reúne os dois momentos.

Palavras-chave: Educação. Linguagem. Política. Pensamento.

Heidegger and education

Abstract: The subject of education in Heidegger is here thought from two different moments of his work. They are separated by the well-known “turning” (Kehre) and its political injunctions. There is indeed something like a pedagogical project in the first moment; in the second only indications on teaching and learning of Thinking. Attention to Being, as our most essential concern, joint both moments.

Key-words: Education. Language. Politics. Thinking.

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano VI n. 10 p. 33-55 2008

númeRo esPeciAl:Heidegger e a Educação

* Doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Professor do Departamento de Filosofia da PUC-Rio e do Departamento de Relações Internacionais do IBMEC-RJ. E-mail: [email protected].

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34 Edgar Lyra

I

O centro de gravidade da obra de Martin Heidegger é bem conhecido: a atenção ao Ser. Heidegger pergunta pelo sentido do Ser, pela verdade do Ser, pela história do Ser, pela topologia do Ser, pela relação entre homem e Ser. Falar do seu interesse pela educação é, por conseguinte, falar de um trabalho de preparação para o acolhimento das questões que dizem respeito ao Ser, de abertura de caminhos que levem ao pensamento do Ser.

A obra de Heidegger é, por outro lado, muito extensa, marcada por uma viravolta (Kehre) – a ponto de falar-se de Heidegger I e Heidegger II. É ainda objeto de muitas interpretações, via de regra díspares, mesmo opostas. Dados esses motivos, é preciso situar sua relação com a educação na clareira da atenção ao Ser, tanto quanto no curso de uma vida e obra ao longo das quais essa atenção experimentou importantes mudanças.

Mesmo um sentido mais estrito da relação de Heidegger com a educação, isto é, com algo que, no fim, poderia ser entendido como “didática”, somente poderá aparecer dentro de um escopo amplo. Até porque não seria absolutamente possível compreender essa relação, no que ela tem de mais próprio, sem ligá-la aos seus pressupostos ontológicos, políticos, éticos e, sobretudo, àquelas injunções que dizem respeito à linguagem, pensada como terceiro fio de uma trança cujos outros dois são pensamento e mundo.

II

Ser e tempo é o ponto de partida: Heidegger trabalha ali visando a reabrir a pergunta – obstruída no curso da história da filosofia – pelo sentido do Ser. Volta-se preliminar e metodologicamente para o Dasein1, o ente capaz de formular a pergunta pelo Ser dos entes em geral,

1 Neste texto será mantido o termo original alemão. A tradução hoje mais aceita de Dasein para o português é ser-aí.

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tanto quanto de se desviar dela. Incomoda, de pronto, a dificuldade de dar contornos nítidos ao Dasein, sejam eles biológicos, psicológicos, antropológicos ou sociológicos. Mas essa não é uma dificuldade qualquer, episódica: até mesmo a possibilidade de separação de semelhantes âmbitos de estudo se radica num Dasein que decerto pode fazer ciência, mas que não se põe simplesmente diante de si mesmo para ser dissecado. Numa aproximação lenta e circular, fenomenológica, hermenêutica, Heidegger define pontos de partida e a eles retorna. Vai o Dasein se configurando como um ente já sempre lançado num mundo povoado por diversos outros entes, mundo, todavia, apenas nele assim denominado: Welt, mundo. O Dasein não se define, por conseguinte, como um ente simplesmente presente num mundo livre do problema do seu sentido, da sua tradução. Tampouco se assemelha a uma consciência capaz de abranger e concatenar os entes na totalidade do seu ser. O mundo que o Dasein compreende como totalidade significativa ou contextual é, simultaneamente, algo que o transcende, que o precede, que tanto possibilita quanto limita seu existir. O Dasein está, em suma, sempre “entre dois mundos”, seguindo a terminologia de Ser e tempo, um ôntico e outro ontológico, um fático, outro existencial, um no qual se vê já sempre lançado, outro que se define em seus projetos.

III

Exposta a ambivalência da relação entre Dasein e mundo, reformulo uma das idéias diretrizes destas notas: a de que a transformação da relação de Heidegger com a educação, em quaisquer acepções, segue o crescimento da sua atenção ao mundo no qual o Dasein já sempre se encontra lançado, mais precisamente, ao poder que tem esse mundo de sustentar e limitar seus projetos. É nesse mundo, no fim, que ele tem que levar a termo suas pendências, dentre elas a tarefa de pensar o Ser. A pedagogia heideggeriana está, portanto, ligada à viravolta no seu pensamento, aqui compreendida como crescimento da atenção do Dasein-Heidegger àquilo que a cada momento lhe é destinado e

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com o que ele tem, de uma forma ou de outra, que haver-se em seus caminhos. As atenções às origens do Ocidente, à história da metafísica e suas cristalizações, às injunções que conferem à técnica sua presente hegemonia, sobretudo a atenção a uma linguagem dita “morada do Ser”, todas essas atenções desbrocham de um mesmo e renovado espanto, experimentado nas correntezas do mundo no qual esse Dasein se descobriu, em algum momento, “realmente” lançado. Estas notas passam, enfim, necessariamente por dentro do envolvimento do filósofo com o nacional-socialismo, numa leitura que, todavia, como ficará claro, recusa os contornos de um tribunal.

IV

A questão da linguagem tem particular importância. Heidegger diz em 1957, em Identidade e diferença: “A dificuldade está na linguagem”.2 Mas é também fato que trinta anos antes ele já se via às voltas com essa dificuldade e diante do problema de decidir como lidar com ela. Algumas notas colhidas no período que vai de Ser e tempo até a viravolta serão, a partir daqui, trabalhadas de modo a explicitar a transformação no modo de Heidegger lidar com o mundo, especialmente com a linguagem nele sedimentada.

Algumas citações são necessárias à indicação da importância dessa transformação, que tem certamente a ver com “educação”. A primeira vem de Ser e tempo. Falando da terminologia empregada no livro, o autor diz: “Nesse campo de investigação a violência não é arbitrariedade, mas uma necessidade fundada nas coisas elas mesmas”.3 A segunda afirmação distancia-se mais de quarenta anos da primeira. Em entrevista concedida a Richard Wisser, em 1969, Heidegger diz que a tarefa do pensamento

2 Heidegger, 1957, p. 72-73, (trad. br., p. 400): “Das schwierige liegt in der Sprache”. Na medida em que a cronologia das obras citadas tem um papel importante na articulação dos argumentos e na íntegra da exposição, as referências foram feitas a partir das datas de conclusão dos textos pelos autores, indicadas nas notas de rodapé e na bibliografia sempre imediatamente à direita dos seus nomes. Seguem-se as demais informações relevantes, por exemplo, o ano das edições efetivamente consultadas. 3 Heidegger, 1927, p. 327 (trad. br. v. 2, p. 121).

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“exige um novo cuidado com a linguagem, e não a invenção de termos novos como eu pensava outrora”.4 Não poderia ser mais flagrante a mudança.

Mas, voltemos a 1927, à introdução de Ser e tempo:

Quanto ao desalinho e à “falta de beleza” das expressões inseridas nas análises que se seguirão, deve-se acrescentar a nota: uma coisa é fazer um relatório enumerativo dos entes, outra é apanhar o ente em seu Ser. Para esta última tarefa faltam na maioria das vezes não apenas as palavras, mas acima de tudo a “gramática”.5

Percebe-se que havia atenção à linguagem e à sua importância para a reabertura da pergunta pelo Ser, mas não à sua plasticidade própria, à necessidade, como será dito mais tarde, de “ser atencioso no trato com o dizer”.6 Enfim, é como se no momento da ontologia fundamental a linguagem vigente fosse sub-repticiamente tratada como uma espécie de “instrumento deficiente”, que acima de tudo prescinde de um léxico e de uma gramática adequados ao trabalho de reabrir a questão do sentido do Ser.

Não é demais propor que essa violência feita à linguagem em prol da reabertura da questão do sentido do Ser tenha diretamente a ver com a nomeação, em Sobre o humanismo (1946), de um esquecimento do Ser comungado inclusive pelo autor de Ser e tempo.7 Subjaz à só então nomeada viravolta o problema da forma como Heidegger essencialmente foi compreendendo o modo de ser da linguagem na qual Ser se diz e se pensa. O que seja esse “ser da linguagem”, que se estende certamente ao uso, ao gesto, ao tom, é algo que aqui terá de se manter como questão de fundo. Apenas sabemos que Heidegger vai gradativa e explicitamente assumindo o fato de estar “a caminho da linguagem” (Unterwegs zur Sprache).

4 Heidegger, 1969, p. 77 (trad. br., p. 17).5 Heidegger, 1927, p. 38 (trad. minha; itálicos e aspas do autor).6 Cf. p. ex. Heidegger, 1950, p. 33 (trad. minha).7 Cf. Heidegger, 1946, p. 17 (trad. br. 1973, p. 354).

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V

Os chamados “textos políticos”, dado que se relacionam entre si num arco de mais de dez anos, fornecem uma perspectiva interessante sobre o trato com uma linguagem dita constituinte e limitante das relações entre pensamento e mundo.

Especialmente dignos de atenção são os documentos redigidos em 1945, dentre os quais a Carta ao Reitor da Universidade de Freiburg, pedindo reintegração, o texto intulado O reitorado: 1933-1934, além do famoso discurso reitoral – A auto-afirmação da universidade alemã, proferido em 1933.

Heidegger afirmava na carta ao Reitor estar de início “persuadido que, se todos aqueles que tinham uma responsabilidade espiritual pudessem começar, num estado de independência, a trabalhar em conjunto, muitas coisas essenciais, presentes somente em germe no movimento nacional-socialista, poderiam ter sido aprofundadas e metamorfoseadas”, contribuindo assim para “ultrapassar a situação de perturbação da Europa e a crise do espírito ocidental”.8 Explicava também que, na medida em que essa aliança não se concretizou e a planificação político-burocrática passou a dominar a cena, “o simples fato de exercer à minha maneira o meu trabalho de filósofo era já resistência”. Duas linhas depois, refere-se ao fato de ter ministrado, logo após sua demissão da reitoria, um curso que, “sob o título a doutrina do logos, tratava da essência da linguagem”. Procurava nele opor às genealogias biológico-raciais em ascensão a tese de uma essência humana fundada na “linguagem como realidade fundamental do espírito”.9 Acrescente-se: no curso imediatamente seguinte, no semestre de inverno de 1934 para 1935, Heidegger já se volta para o poeta Friedrich Hölderlin.10

8 Heidegger, 1945a, p. 196 (trad. port., p. 178). A primeira compilação dos textos políticos de Heidegger foi feita por François Fédier, com auxílio e anuência de Harmut Tietjen e Hermann Heidegger. É dela que me sirvo, bem como de sua correta tradução para o português, no que concerne à versão de Heidegger sobre os fatos do reitorado e à sua carta de 1945 ao reitor de Freiburg. 9 Idem, ibidem, p. 199 (trad. port., p. 181-182). O curso referido foi ministrado no semestre de verão de 1934 e publicado com o título de Über Logik als Frage nach der Sprache. Cf. Heidegger, 1934.10 Cf. Heidegger, 1935. Hölderlins Hymnen “Germanien” und “Der Rhein”.

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O segundo dos textos mencionados, O reitorado, fornece mais elementos. Mostra um ex-reitor decepcionado com o parco acolhimento da proposta, segundo ele, claramente exposta no discurso de posse, o mencionado A auto-afirmação da universidade alemã. Dizia que “o discurso não foi entendido por aqueles a quem dizia respeito”, nem em seu conteúdo nem no que deveria ser, durante a sua atividade no cargo, a chave “para distinguir o essencial do que era menos importante ou apenas exterior”.11 Dizia, enfim, que “o discurso do reitorado tinha sido pronunciado para nada”, que “no dia seguinte à cerimônia, tudo já tinha sido esquecido” e que “durante todo o tempo que durou o reitorado nenhum dos colegas fez qualquer tipo de pronunciamento sobre o discurso”.12

A leitura atenta de A auto-afirmação da universidade alemã gera boa dose de perplexidade. Ali está, de fato, claramente expresso o compromisso com uma universidade voltada para o constante exame reflexivo de suas próprias bases13, para um “questionamento capaz de estilhaçar o encapsulamento das ciências em disciplinas separadas”14 e, sobretudo, determinado a pôr fim à idéia do conhecimento universitário como “treinamento rápido para uma profissão ‘distinta’”. É também claro o alinhamento desse projeto a uma missão espiritual (geistige Auftrag) do povo alemão, missão de, em meio a um Ocidente decadente, cuja desgastada cultura de aparências se encontraria em vias de se deixar asfixiar na loucura, formar líderes (die Führer) capazes de fundamentar sua autoridade na capacidade de deixar-se guiar (führen) por esse destino espiritual.16

Tudo isso é claro nesse discurso, cujo tom dificilmente poderia ser mais conclamatório, mais incisivo. Mas, que tipo de recepção Heidegger poderia efetivamente reivindicar? Em que termos poderia esperar, por exemplo, uma “compreensão genuína” da dita “missão espiritual do

11 Heidegger, 1945, p. 226 (trad. port., p. 201). 12 Idem, ibidem, p. 229 (trad. port. p. 204).13 Heidegger, 1933, p. 8-9. As traduções deste texto são todas minhas.14 Heidegger, 1933, p. 22-23.15 Idem, ibidem, p. 30-31.16 Idem, ibidem, p. 42-43.

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povo alemão”? Em que medida o espírito alemão, que nele, Heidegger, assumia a linguagem como sua “realidade fundamental” – linguagem, diga-se, que em 1927 era alvo de justificada violência e que agora se tornava tão estridente –, em que medida esse espírito estaria pronto para sua missão? As ressalvas presentes no discurso, insistindo na relação dessa missão com a prática constante e rigorosa do questionamento, deveriam, por acaso, ser suficientes para gerar o entendimento, o grau de compromisso e responsabilidade que Heidegger entendia aí envolvido? Em que medida, enfim, esse discurso lograria deslocar o entendimento simplificadamente nacionalista e voluntarista, ufanista mesmo, da expressão “missão espiritual do povo alemão” para o âmbito de um questionamento que permanecesse, nas palavras do discurso, “firme, a descoberto, em meio à incerteza da totalidade do ente”17 ?

Heidegger parecia pautar-se por uma esperança de poder contar com uma “elite espiritual” de professores e alunos capazes de, naquele momento histórico, entregar-se ao risco de fazer frente tanto à cristalização dogmática do “novo”, isto é, a uma ciência política que emergia apoiada em bases étnicas e com pretenso amparo filosófico, quanto à inércia do “velho”, da velha universidade, simplesmente entregue à compartimentalização disciplinar e aos mandarinatos acadêmicos.18 E conclamava essa virtual elite a acompanhá-lo na sua revolução.

O primeiro lugar em abundância no discurso reitoral é, inclusive, disputado entre a palavra espírito (Geist)19 e o verbo querer (wollen) usado em tom conclamatório. Várias vezes Heidegger disse: queremos ou não queremos essa universidade, essa luta, essa transformação real? Mesmo que se tente justificar o tom a partir das urgências do momento, a situação permanece insólita quando se fixa a vista no que, para o autor de Ser e tempo, devia estar implicado nesse “querer”. Ele chamava atenção para a cota de sacrifício e para a dificuldade aí envolvida, mas parecia não se aperceber que esse querer a si mesmo, agora coletivo, essa decisão por um espírito alemão capaz de salvar o

17 Idem, ibidem, p. 22-24/23-25.18 Cf. Heidegger, 1945.19 Cf. a respeito dessa presença da palavra “espírito”, Derrida, 1987: De l’Esprit.

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mundo, se chocava, no fim das contas, com a raridade e a singularidade de disposições como a “decisão” de Ser e tempo, mesmo com a disposição “audaz”20 para o enfrentamento da constante possibilidade do Nada, presente em O que é metafísica? (1929). É quase como se nessa passagem do individual ao coletivo, o momento histórico e a conclamação do reitor se confundissem com o apelo angustiante oriundo do próprio Ser, apelo que, seis anos antes, Heidegger dissera dirigido a um Dasein sempre às voltas com a tendência, constitutiva, frise-se, de fazer como todo mundo faz, de furtar-se a experiências profundas e responsabilidades reais. Não se pode, fora isso, deixar de perguntar: seria mesmo uma atitude líquida para todo Dasein decidido lançar-se naquele momento numa reforma universitária supostamente capaz de mudar a base ôntica do mundo? Dificíl mesmo, para sintetizar esse inventário de perplexidades, é imaginar que a ligação do mundo espiritual de um povo com a “conservação mais profunda das suas forças de solo e sangue (seiner erd- und bluthaften Kräfte)”,21 pudesse ser recebida de forma “filosófica”, isto é, depurada de componentes ideológicos.

Não é de se estranhar, portanto, dentro desse quadro insólito, que o discurso de posse tenha tido a repercussão que teve. Rüdiger Safranski lista na sua biografia vários comentários díspares. Karl Löwith, por exemplo, teria dito sobre “o efeito imediato desse discurso que [os que o ouviram] não sabiam se deviam estudar os pré-socráticos ou entrar na SA”; Karl Jaspers, em carta de 23/08/1933, escreveu a Heidegger agradecido, registrando sua comoção em face da menção à Antigüidade Grega e dizendo que sua confiança no filosofar do colega “não se perturba com as características de momento desse discurso, com algo que nele parece um pouco forçado”; Benedeto Croce, para encerrar, também em carta, afirmava: “Finalmente li todo o discurso de Heidegger, que é ao mesmo tempo tolo e servil”.22 20 Cf. Heidegger, 1929/49, p. 34 (trad. br., p. 240).21 Heidegger, 1933, p. 24-25.22 Cf. Safranski, 1999, p. 298. A tradução do trecho atribuído a Jaspers foi modificada a partir de Heidegger-Jaspers, 1920/1963, p. 155. Anos mais tarde Jaspers diria ter procurado “interpretar o discurso da ‘melhor maneira’ para poder continuar dialogando com Heidegger, mas que, na realidade, sentira repulsa pelo ‘nível insuportavelmente (unerträglich) profundo e estranho’ da fala e das atitudes de Heidegger” (cf. Safranski, 1999, p. 299 e Heidegger-Jaspers, 1920/1963, p. 258).

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Foi o próprio Heidegger, enfim, que qualificou esse reitorado como “a grande estupidez (die grösste Dummheit) da sua vida”.23

VI

O desabafo feito a François Fédier não fecha decerto a questão, sobretudo quando se trata não de apurar uma culpa, mas de tentar aprender algo sobre as possibilidades do pensamento no ruidoso mundo contemporâneo. Olhando mais de perto o texto de 1945, no qual Heidegger comenta o período do reitorado, percebe-se que ele se apoiava na sua história docente para reivindicar eco ao seu discurso e mandato. Alegava que em 1933, ano da posse reitoral, seu discurso de cátedra em Freiburg, o já mencionado O que é metafísica?, de 1929, já se encontrava “traduzido para o francês, italiano, espanhol e japonês”. Alegava também que a conferência Sobre a essência da verdade havia sido pronunciada entre 1930 e 1932 em vários lugares da Alemanha e que “por toda a parte se podia saber o que eu pensava sobre a universidade alemã e o que considerava ser a sua exigência mais imperiosa”.24 Imaginava, ao ser convidado para o cargo, estar sendo entendido e ter amparo não só dentro da universidade como fora dela. Com efeito, lendo Hannah Arendt e seu Martin Heidegger faz oitenta anos 25 entende-se que corria um rumor pela Alemanha, antes mesmo da publicação de Ser e tempo, de que havia em atividade um mestre capaz de dar carnadura ao projeto de Husserl de pensar não de forma exegética, vazia ou doutrinal, mas tomando por base as “coisas mesmas”. Ainda o biógrafo Safranski descreve o período de Heidegger em Marburg como de grande popularidade e intensidade, relatando que preleções suas dadas às sete horas da manhã chegaram, após dois semestres, a contar com uma assistência de 150 alunos.26 As expectativas de Heidegger se deslocam, por conseguinte, da simples cobrança de resposta a um discurso isolado

23 Cf. Fédier, 1988, trad. br., p. 164.24 Heidegger, 1945, p. 218 (trad. port., p. 194).25 Cf. Arendt, 1969.26 Cf. Safranski, 1999, p. 167 et seq.

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para entranhar-se num outro tempo e modo de interação com o mundo dos seus possíveis interlocutores.

Vale ainda assinalar o quanto, nessa época, ele apostava em experiências do tipo “acampamento de alunos e professores”, nos quais se podia trabalhar o pensamento num outro nível de proximidade, diferente dos cursos em salas de aula.27 Muito citado é o episódio do tumultuado acampamento de Todnauberg, no inverno de 1933 para 1934, no qual o reitor Heidegger teria tentado esclarecer a professores e alunos, em discussões abertas, “a parte central do Discurso do reitorado e apresentar de uma maneira mais penetrante a tarefa da universidade, tendo em conta os perigos[...]”.28

Por fim, digna de registro é também aquela que teria sido sua última cartada político-pedagógica, a colaboração, depois da demissão do reitorado, com o projeto da Academia ou Escola de professores do Reich, colaboração amiúde descrita por Vitor Farias no seu Heidegger e o nazismo (1987).29 Farias diz: “Parece que Martin Heidegger teve chances reais de se tornar diretor de uma instituição destinada a controlar a seleção e a doutrinação de todos os jovens acadêmicos e, através disso, a médio prazo, de toda vida universitária do Reich”.30 Na medida em que Hugo Ott, no seu Martin Heidegger – a caminho da sua biografia (1988), também atesta essa mesma chance na descrição de reações internas no partido a essa nomeação, o projeto assume um perfil destacado. Mas esta não é a ocasião para discutir os trechos – hoje bem conhecidos – das acusações

27 Cf. Ott, 1988, p. 219 et seq.28 Heidegger, 1945, p. 231 (trad. port. p. 206). 29 O livro de Vitor Farias é bem conhecido pela sua parcialidade interpretativa. Mas deve também ser reconhecido pela sua contribuição em pesquisa de fontes e arquivos. Há duas excelentes réplicas a esse livro – Fédier, 1988: Heidegger: anatomia de um escândalo e Loparic, 1990: Heidegger réu – um ensaio sobre a periculosidade da filosofia. O primeiro é um trabalho exaustivo de defesa de Heidegger feito a partir do rastreamento das mesmas fontes e da problematização dos argumentos usados por Farias; já o segundo transcende em muito o âmbito de uma defesa, sendo um texto filosófico de envergadura ampla e, pode-se dizer, mais de inclinação kantiana que heideggeriana. Atualmente, o livro de maior visibilidade sobre o envolvimento de Heidegger com o nazismo, mais do que isso, sobre o teor nazista de sua filosofia, é o de Faye, 2005: Heidegger, l’introduction du nazisme dans la philosophie. Entrar no mérito das suas teses e revelações demandaria um exame cuidadoso do material de que se serve o autor, trabalho esse até agora desestimulado pelas suas interpretações incrivelmente tendenciosas dos textos mais conhecidos de Heidegger por exemplo, a que compara Ser e tempo a Mein Kampf, de Hitler (op. cit., p. 12). 30 Farias, 1987, p. 270.

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dirigidas a Heidegger pelo psicólogo Erich Jaensch em relatório destinado a bloquear sua nomeação para o cargo da Academia, relatório no qual as idéias filosóficas de Heidegger são ditas fraudulentes e “capazes de degenerar em psicose de massa”,31 além de serem espiritualmente aparentadas ao judaísmo.32

Mais necessário é assinalar que, no projeto que foi alvo da crítica de Jaensch, Heidegger se mostrava incisivamente atento ao problema do compartilhamento do pensar. Falava enfaticamente da necessidade de “despertar e consolidar a atitude educativa (pois o professor não é o pesquisador comunicando o resultado de suas próprias pesquisas e das de outros)”. “Cursos não”, dizia, “mas sim uma verdadeira escola”,33 na qual propunha a “alternância natural de trabalho científico, recreação, concentração, artes marciais, trabalho físico, marchas, esportes e festas”.34 O trecho a seguir é particularmente ilustrativo:

[...] aprenderão a dialogar, a dirigir uma disputatio, a saber escutar, a apreender o essencial, a raciocinar de maneira concisa, a conduzir a luta com um máximo de perspicácia e, sobretudo, a respeitar estritamente a orientação da questão e o encadeamento dos argumentos. O laxismo e a incapacidade de pensar, a falta de domínio da palavra e do conceito que caracterizam hoje, e há muitíssimo tempo, os seminários universitários, passam dos limites. Só será possível remediá-los através de uma nova educação de professores universitários”.35

VII

Analisando esses episódios político-pedagógicos à luz do que foi dito sobre a viravolta de Heidegger, a impressão que fica é, por um lado, a de um Dasein certamente lúcido quanto à importância de um solo mundano propício ao pensamento; por outro, esse mesmo

31 Farias, 1987, p. 272.32 Ott, 1988, p. 248.33 Farias, 1987, p. 264.34 Idem, ibidem, p. 265.35 Idem, ibidem, p. 266.

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Dasein parece disposto a providenciar esse solo a todo custo. Pelo tom e conteúdo dos vários textos e discursos que se encontram hoje disponíveis, é como se toda sorte de movimentos se justificasse em prol de uma chance única de resgate da universidade como centro de questionamento radical e formação de verdadeiros líderes capazes de zelar por um espírito alemão à altura da tarefa de salvaguardar o pensamento do Ser.

O que costuma ser difícil de aceitar num pensador da envergadura de Heidegger é a subavaliação do furor técnico-burocrático que grassava por toda parte, paralelamente à hiperavaliação das possibilidades de consolidação de uma “elite” realmente pensante e dialogante que pudesse fazer frente ao extravio geral. Ambos os equívocos de avaliação revelariam uma trágica incapacidade de perceber em sua consistência e força própria o estofo histórico do mundo, ou, segundo a metáfora buscada logo em seguida em Hölderlin, a correnteza do rio do mundo.

O que há de menos interessante, todavia, é atermo-nos à miopia política de Heidegger como se ela fosse mera estupidez ou desvio de caráter. Pois, salvo a singularidade daquele momento alemão, o problema então enfrentado continua de pé: o que fazer, por exemplo, num cenário técnico mundial que, nas universidades – para ficar nas universidades – se reflete em disciplinas cada vez mais incapazes de pôr-se em questão nos seus implícitos de produtividade?

O que parece de mais importante ter ocorrido a Heidegger depois do desastre do reitorado, foi a percepção de que o mundo no qual o pensamento tem que acontecer, precisa, antes de qualquer coisa, ser objeto de atenção em sua plástica, em seus destinos, em seu relevo ou correnteza.

VIII

Esta recuperação toda do movimento de Heidegger no período em que se deu o reitorado possibilita pensar, com o devido tempo e paciência, as diversas direções da obra posterior a 1934, por exemplo,

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o surgimento de uma atenção à poesia e à arte, até então inexistente no seu pensamento. Heidegger passou, enfim, por um período de ativismo apenas dentro do qual se encontra algo como um projeto político-pedagógico em seu pensamento, projeto que visava, ao que parece, a uma nova “Paidéia ocidental”.

Passado o período de cassação dos seus direitos docentes, determinado pelo comitê de desnazificação da Alemanha, o filósofo ministrou de início, entre 1951 e 1952, dois cursos em Freiburg. Escolheu para título desses cursos uma pergunta: Was heißt Denken?, A que chamamos Pensar?, ou, simplesmente, Que quer dizer Pensar? Salta aos olhos que seja esse o título e o tema escolhido, sobretudo se levarmos em conta que se trata da volta à mesma universidade que ele, quase duas décadas antes, quisera ativamente transformar em trincheira de pensamento.

Boa parte das direções do diálogo com o mundo que Heidegger foi entabulando após a viravolta, se encontra nesse texto. Atenho-me aqui ao primeiro dos cursos, no qual aparece repetidamente a instigante afirmação de que “ainda não pensamos”. Há nessas aulas uma conversa próxima com Hölderlin e Nietzsche, ambos em evidência no cenário nacional-socialista dos anos 1930, ambos incessantemente lidos e reinterpretados por Heidegger depois de 1934.

O recurso a Hölderlin continua a buscar reverberação, partindo de palavra poética factualmente presente no mundo, da relação com um Ser que nos chama a pensar justo no que se retira, no que nos nega qualquer compreensão acabada. Ein Zeichen sind wir/ deutungslos (Somos um signo/ sem sentido) – é o verso que, tirado do poema Mnemosyne, remete a algo que escapa, que não se deixar capturar, fixar, precisar. Um segundo verso do mesmo poema é citado: Schmerzlos sind wir und haben fast/ Die Sprache in der Fremde verloren (Somos incapazes de dor e quase/ perdemos a linguagem na terra estranha). A terra estranha, aquela na qual quase perdemos a linguagem, Heidegger nos deixa a supor que seja o lugar onde viemos parar tentando capturar o sentido último e fugitivo daquilo que nos faz pensar. Heidegger não comenta explicitamente o verso: prossegue abordando imediatamente a questão da cisão entre

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Mythos e Logos. Alude ao fato do pensamento sobre o pensamento ter-se desdobrado no Ocidente como “lógica”, mudada pouco a pouco em “logística”, isto é, ciência comprometida com o desenvolvimento de um “pensamento sobre trilhos” (eingleisig Denken), cuja busca de eficácia geraria, dentre outras coisas, nossa atual submissão a formulários, tabelas e índices de avaliação, bem como, mais despercebidamente ainda, o uso corrente de uma linguagem altamente instrumentalizada, presente, por exemplo, no Brasil, em siglas mais ou menos fugazes como RG, CPF, PIB, CPMF, MEC, AVC, etc.

Nietzsche é evocado pela primeira vez a partir de uma palavra proferida pela sombra de Zaratustra. Ele, a sombra, escolhe para título de uma canção: “o deserto cresce: ai daquele que abriga desertos”.36 Essa sombra, embora Heidegger não o diga explicitamente, é para Nietzsche o europeu expatriado à procura do seu lar, a quem Zaratustra adverte afetuosamente: “Não é pequeno o perigo que corres, ó espírito livre e errante! Tivestes um mau dia; cuida de que não te colha uma noite ainda pior! Para criaturas sem pouso, como tu, até uma prisão, no fim, parece uma ventura”.37

A palavra que introduz Nietzsche no curso – “o deserto cresce...” – é também evocada na esteira de uma série de considerações sobre a hegemonia da técnica, com exemplos detalhados da tecnicização da universidade e do empobrecimento geral da linguagem, ligando-se assim, intimamente, à apropriação da poesia de Hölderlin. Mas essas considerações todas não são jamais feitas em tom de lamúria, isto é, acusando uma mera decadência do Ocidente, mesmo porque assim proceder seria matar toda a disposição para pensar esse movimento do destino em seus enigmas. Nietzsche, no caso, é contraposto a um certo “romance jornalístico”, que “chafurda na decadência e na depressão”, diz Heidegger nomeando Spengler como expoente dessa literatura. Nietzsche, eleito o último pensador da metafísica, é o “tímido” que berra tentando pensar o que precisa ser pensado, dizer o que precisa ser dito:

36 Zaratustra IV, “As filhas do deserto”.37 Zaratustra IV, “A sombra”

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E, no entanto, ao ensinar, tem-se de vez em quando que elevar a voz. Tem-se mesmo que gritar e gritar, e mesmo quando se trata de convidar a aprender coisa tão quieta quanto o pensar. Nietzsche, que foi um dos homens mais quietos e tímidos, conhecia essa necessidade. Ele suportou a agonia de ter que gritar. Numa década em que o mundo público ainda nada sabia de guerras mundiais, em que a fé no “progresso” se tornara quase a religião dos povos e estados civilizados, Nietzsche anunciou aos berros: “O deserto cresce...” Com isso perguntava aos seus semelhantes e sobretudo a si mesmo: “Será preciso primeiro despedaçar-lhes os ouvidos para que possam ouvir com os olhos? Será preciso matraquear como tambores ou pregadores de sermões?” (Assim falou Zaratustra, Prólogo, 5) Mas, enigma sobre enigma! O que uma vez foi grito: “O deserto cresce...”, ameaça agora tornar-se conversa fiada. O caráter ameaçador dessa reviravolta (Verkehrung) pertence àquilo que nos dá a pensar.38

X

O problema, bem se vê na apropriação de Hölderlin e Nietzsche feita em 1951, é o de encontrar caminhos para o pensamento num mundo instrumentalizado, ruidoso, desassossegado, empobrecido por uma linguagem voltada para o que é útil e imediato, sobretudo partindo da memória de uma “grande estupidez”. Pois é justamente em meio a esse núcleo de preocupações que Heidegger fala mais diretamente sobre o ensinar e o aprender, a saber, a um grupo bastante numeroso e qualificado de alunos.39

Traduzi e transcrevo a longa passagem, situada na transição da primeira para a segunda aula do curso, para em seguida comentá-la e finalizar estas notas:

Buscamos no curso desta aula aprender o pensar. O caminho é amplo. Arriscamos apenas poucos passos. Eles conduzem, quando bem dados, aos contrafortes do pensamento. Levam a lugares que temos que atravessar para, de lá em diante,

38 Heidegger, 1951/52, p. 19. As traduções de Was heißt Denken? são todas minhas.39 Como é possível depreender da correspondência da época entre Heidegger e Arendt (cf. Heidegger; Arendt, 1925/1975) e, também, como pude conferir em conversa recente com Ernst Tugendhat, um dos que lá estiveram presentes, esses cursos foram assistidos por cerca de 1200 pessoas distribuídas em 3 salas. Heidegger diz à revista Der Spiegel em 1966 que, apesar de editado com rapidez, já em 1954, pela Neske, o texto é talvez “o menos lido de todos aqueles que publiquei.”

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chegarmos onde apenas o salto ainda tem serventia. Só o salto nos leva à região do pensamento. Por isso, aprendemos desde o início do caminho alguns exercícios preliminares de salto, sem imediatamente notá-los ou precisarmos notar.

À diferença de um progresso constante, no qual despercebidamente passamos de uma coisa a outra e no qual tudo permanece igual, o salto nos leva de súbito para lá onde tudo é outro, nos desconcertando. O súbito, o vácuo, é o que, abrupto, repentinamente despenca ou se eleva. Marca a beira do abismo. Mesmo se não nos precipitamos num tal salto, nos des-norteia aquilo que ao salto nos leva.

É perfeitamente razoável, pois, que já no princípio do nosso caminho nos deparemos com o desnorteante. Entretanto, não seria bom se o desconcertante adviesse apenas pelo fato de vocês ainda não prestarem nisso suficiente e precisa atenção. Nesse caso, lhes teria passado inteiramente despercebido justamente aquele desconcerto que reside na própria coisa em questão. A coisa do pensamento é sempre algo desnorteante. E tão mais desnorteante quanto mais livres de juízos preconcebidos nos mantivermos. Para isso, é preciso disponibilidade para ouvir. Essa disponibilidade nos leva a transpor as cercas da opinião comum e chegar a um terreno mais aberto. Insiramos agora, no intuito de ampará-la, algumas notas intermediárias que, simultaneamente, servirão para todas as horas de aula restantes.

O perigo de que haja um mau entendimento em face do pensamento é particularmente grande nas universidades, sobretudo nas ocasiões em que o discurso lida imediatamente com a ciência. Pois, em que outro lugar se exige de forma mais coercitiva que nós quebremos a cabeça do que nas instituições de pesquisa e ensino ligadas ao trabalho científico? Que arte e ciência – ainda que em discursos solenes sejam invocadas sempre juntas – são totalmente diferentes uma da outra, é coisa que todo mundo admite sem reservas. Quando, por outro lado, o pensamento é diferenciado da ciência e posto em contraste com ela, isto é tomado com um rebaixamento. Teme-se até mesmo que o pensamento se mostre hostil em relação à ciência, que torne obscura a seriedade e estrague o prazer do trabalho científico.

Mesmo se tais temores fossem legítimos, o que não é absolutamente o caso, permaneceria ao mesmo tempo uma

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falta de tato e de gosto dispor-se contra a ciência num lugar destinado à instrução científica. Já o tato leva aqui a evitar toda polêmica. Mas não é só disso que se trata. Cada forma de polêmica compromete já de antemão a atitude própria do pensamento. A postura de um adversário não é a do pensar. Um pensamento só pensa quando segue algo que fala por alguma coisa. Todo esse falar defensivo tem aqui exclusivamente o sentido de proteger o que está em questão. Posto que em nosso caminho a ciência tem que ser assunto, falamos não contra, mas ao seu favor, a saber, a favor da clareza sobre o que seja a sua essência. Há, sim, neste particular, a convicção de que as ciências são em si algo de positivamente essencial. Sua essência, todavia, é de natureza francamente diferente daquela que nas nossas universidades, ainda hoje, se apreciaria conceber. É como se, em todo caso, ainda temêssemos nos voltar para o lado provocante do atual estado de coisas e levar a sério o fato das ciências de hoje pertencerem ao âmbito da essência da técnica moderna, e somente a ele. Fique bem claro, digo “ao âmbito da essência da técnica”, não simplesmente “ao âmbito da técnica”. Paira ainda uma névoa em torno da essência da ciência moderna. Essa névoa, contudo, não é gerada do interior da ciência, individualmente, por pesquisadores e eruditos. Não é sequer produzida pelo homem. Ela se ergue da região do que é mais problemático e ainda não pensado por nós; ainda não por nós todos, incluído este que aqui fala e mesmo em primeiro lugar.

Por isso procuramos aqui aprender o Pensar. Percorremos conjuntamente um caminho; não se trata de nenhuma cobrança. Aprender significa: levar o que se faz e deixa de fazer à sintonia com o que a cada vez, essencialmente, se dirige a nós. Dependendo da forma desta coisa essencial, dependendo do âmbito do qual vem esse chamamento, é diferente a sintonia e, com isso, a forma do aprendizado.

Um aprendiz de carpinteiro por exemplo, alguém que aprende a fazer arcas e coisas semelhantes, exercita no aprendizado não só a destreza no uso de ferramentas. Tampouco trava conhecimento apenas com as formas habituais das coisas que tem que construir. Quando se torna um autêntico carpinteiro põe-se em sintonia, antes de mais nada, com os diferentes tipos de madeira e com as formas adormecidas no seu interior, com a madeira no seu modo de, com a riqueza oculta da sua essência, adentrar a morada

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do homem. Esta relação com a madeira sustenta mesmo todo ofício. Sem esta relação ele afunda na atividade vazia. A ocupação torna-se, então, meramente definida como negócio. Todo ofício, todo o agir humano, lida perpetuamente com esse perigo. Disso se excetuam tão pouco o poetizar quanto o pensar.

Se o aprendiz de carpinteiro, todavia, chega ou não no aprendizado à sintonia com a madeira e com as coisas de madeira, isso depende manifestamente de que lá esteja alguém que lhe ensine essa sintonia.

Realmente. Ensinar é ainda mais difícil que aprender. Sabe-se bem disso, mas é raro que tal coisa seja levada em consideração. Por que motivo ensinar é mais difícil que aprender? Não porque aquele que ensina deva possuir um maior conjunto de conhecimentos e tê-los prontos a cada momento. Ensinar é mais difícil que aprender porque ensinar significa: convidar a aprender (lernen lassen). O autêntico professor não ajuda mesmo a aprender nada que não seja – o aprender (das Lernen). Por isso sua ação dá a impressão, até com freqüência, de que com ele não se aprende propriamente nada. É que, inadvertidamente, por “aprender” agora se entende apenas a aquisição de conhecimentos úteis. O professor está adiante dos aprendizes numa única coisa: tem ainda mais do que eles a aprender, a saber, o “convidar-a-aprender”. O professor tem que ser mais capaz de aprendizado que os aprendizes. O professor está muito menos seguro do seu assunto do que aqueles que estão aprendendo do deles. Por isso, na relação entre o professor e aqueles que estão aprendendo, quando verdadeira, não entra em jogo nem a autoridade do sabe-tudo nem a influência autoritária daqueles que detêm cargos. Por isso permanece uma grande coisa tornar-se um professor, algo que é totalmente diferente de ser um docente famoso. Decorre, presumivelmente, dessa grande coisa e de sua grandeza que, hoje, quando tudo se mede pelo que é baixo e vem de baixo, por exemplo, do âmbito dos negócios, ninguém mais deseje tornar-se professor. É também presumível que essa aversão esteja relacionada ao mais problemático, ao que dá a pensar. Temos que manter bem à vista a genuína relação entre professor e aprendizes, caso queiramos que, no decorrer deste curso, um aprendizado possa despertar.40

40 Heidegger, 1951/1952, p. 48-51.

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A passagem é densa e permite retomar boa parte das teses até aqui apresentadas. Heidegger fala de aprender a Pensar – verbo Denken grafado com “D” maiúsculo. Compara o Pensar ao ofício do carpinteiro com o intuito de figurá-lo como o mais fundamental ofício concernente a todo ser humano. Aprender a pensar é tomar a direção do que o homem tem de mais próprio, daquilo com que tem que entrar em sintonia para “tornar-se o que é”. Tal sintonia, por sua vez, envolve a experiência e a capacidade de acolhimento do que é essencialmente desnorteante, vertiginoso, espantoso.

A relação insigne com o desnorteante está decerto presente em momentos precedentes da sua obra, mesmo no discurso do reitorado, quando Heidegger fala numa permanência “firme, a descoberto, em meio a incerteza da totalidade do ente”. Muda, todavia, a afinação afetiva ligada a essa permanência e à possibilidade do seu cultivo. Muda, em outras palavras, a relação de Heidegger com o solo mundano sobre o qual o aprendizado dessa sintonia pode e tem que se dar.

A hegemonia das ciências continua em foco. Heidegger afirma agora que “a ciência, de sua parte, não pensa e não pode pensar”41, mas não propõe mais nenhum mutirão espiritual capaz de abruptamente transformar a universidade em outra coisa que não uma coleção de escolas especializadas. Chama atenção para a atual subordinação da ciência à essência da técnica, isto é, para o mundo da tecnologia e da cibernética, e convida alunos e leitores a uma reflexão sobre o sentido dessa estranha dominância. Fala ainda, no mesmo contexto, da possibilidade de enganarmo-nos a respeito do pensamento pelo fato de filosofarmos e, por fim, de algo que permanece continuamente impensado, inclusive e sobretudo, para ele próprio.

Importa frisar, é dentro desse núcleo de preocupações que surge a consideração mais pontual sobre o ensino. Heidegger fala de “ensinar a aprender”, aprender, no fim, a habitar a vizinhança do que nos faz pensar. Definitivamente não pertence a tal mestria a posse de um saber certo de si, característico do “sabe-tudo” ou do “docente famoso”. Mestre

41 Heidegger, 1951/1952, p. 4.

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de verdade será quem tenha se exposto aos ventos do pensamento e aí aprendido o respeito, a escuta, a espera e o instante. Será sobretudo, segundo Heidegger, alguém “muito menos seguro do seu assunto do que aqueles que estão aprendendo do deles”: donde a impossibilidade de recortar qualquer método heideggeriano de ensino.

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Recebido em: 10 de janeiro de 2008Aprovado em: 30 de janeiro de 2008

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APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano VI n. 10 p. 57-72 2008

númeRo esPeciAl:Heidegger e a Educação

Heidegger educador

Pedro Duarte de Andrade*

Resumo: Desde Platão, a filosofia colocou-se a pergunta pelo seu caráter pedagógico. Mas também foi preciso perguntar pelo caráter filosófico da educação. Este artigo busca seguir na trilha desta dupla imbricação entre educação e filosofia através do pensamento de Martin Heidegger, levando em conta tanto aquilo que ele escreveu como sua experiência propriamente dita como professor e reitor.

Palavras-chave: Filosofia. Educação. Heidegger. Ser. Aprender

Heidegger as educator

Abstract: Since the time of Plato, philosophy has been concerned about its educational nature. But it was also necessary to question the philosophical nature of education. This article will follow the path of the interrelationship between philosophy and education through the thinking of Martin Heidegger, taking into account both his writing and his actual experience as professor and dean.

Key-words: Philosophy. Education. Heidegger. Being. Learning.

* Doutorando em Filosofia na PUC-Rio. Professor da Pós-Graduação Lato Sensu (Especialização) em Arte e Filosofia, na mesma universidade. E-mail: [email protected]

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Há um mestre; talvez se possa aprender a pensar.(Hannah Arendt)

Perguntamos muito, hoje em dia, sobre o lugar da filosofia na educação. Não se trata, porém, de uma pergunta nova. Pelo contrário, na própria origem da filosofia, entre os gregos, ela se perguntou sobre seu caráter pedagógico. Platão considera sua famosa alegoria da caverna, na República, não mais que uma comparação de nossa natureza “conforme seja ou não educada”1. Era a paidéia que estava em jogo para ele. No nascimento da filosofia, portanto, estava já destinado o problema da educação.

Na medida em que definira a verdade metafisicamente, Platão, ao mesmo tempo, lançava para o homem, inevitavelmente, a tarefa pedagógica. Se a verdade da realidade não está no mundo físico sensível mas além (“meta”) dele, precisamos trilhar certo caminho para chegar até ela, para descobrir o que as coisas são em seu ser. Somente nos educando, poderíamos fazer a passagem do mundo fenomênico até a sua compreensão, cuja morada seria supra-sensível.

Na alegoria de Platão, esse caminho é aquele através do qual o prisioneiro se liberta e pode sair da caverna onde só via sombras até, ao fim, enxergar a verdadeira luz do sol já fora da caverna. Isso significa que, antes da educação, tal prisioneiro não apenas só via sombras. Ele nem sequer sabia que as sombras eram sombras, julgando aquela como toda a realidade. Platão define, assim, um estado de ignorância inicial dos homens. É a educação que pode tirá-los daí.

Essa educação, contudo, é muito especial. Platão deixa claro que não se trata de simplesmente “enfiar na alma o conhecimento que nela não existe”. Não se trata, diz ele, “de conferir vista à alma, pois vista ela já possui; mas, por estar mal dirigida e olhar para o que não deve, a educação promove aquela mudança de direção”2. É uma conversão da alma. Por ela, deixamos de estar presos às evidências aparentes, aprendemos a enxergar mais além, descobrimos que o pensamento é capaz de nos levar mais fundo na realidade do que antes supúnhamos.

1 Platão. A República. Belém: EdUfpa, 2000. p. 319 (514a).2 Idem, ibidem, p. 324 (518c-d).

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Lendo Platão, por vezes podemos até nos confundir: estaria ele falando da educação ou da filosofia?

Tanto uma quanto outra são, para ele, atividades, em certo sentido, solitárias. Se lembrarmos mais uma vez da alegoria, sabemos que o cativo compartilha a companhia dos outros homens enquanto ainda permanece dentro da caverna, preso. Para sair de lá, parece precisar ir sozinho, não ser acompanhado por ninguém. Não fica muito claro, na alegoria, de que modo o prisioneiro é liberto inicialmente das correntes. Na tradução para o português, lemos apenas assim: “vindo a ser um deles libertado […]”3. Teria ele sido ajudado por alguém? Não sabemos ao certo. Mas sabemos que, ao que parece, o trajeto ascendente, pelo qual o mundo sombrio é abandonado e o mundo solar é conquistado, será feito pelo homem só.

Esta foi uma importante intuição de Platão. Só o homem que deixa para trás os preconceitos e as obviedades que o circundam pode de fato ser educado ou, se quisermos, pode de fato filosofar. Enquanto permanece na compreensão mediana dos muitos, ele evita tanto encontrar a verdade quanto, estivesse Platão ciente ou não disso, encontrar a si mesmo como ser singular neste mundo em que vive. Não seria precisamente isto que pensou, cerca de dois mil e quinhentos anos depois, um dos maiores filósofos de nosso tempo, Martin Heidegger?

*

No início dos anos 1930, Heidegger ministrou um curso em que se dedicou à exploração do significado da alegoria da caverna de Platão, que para ele decidira, fundamentalmente, o destino do pensamento ocidental. Dez anos mais tarde, em 1942, este curso seria a base para um dos mais famosos textos de Heidegger, “A doutrina de Platão sobre a verdade”, no qual ele pretendia mostrar a relação essencial existente entre educação4 e verdade. Seu objetivo era explicitar que o ideal de

3 Idem, ibidem, p. 320 (515c).4 Heidegger, por boas razões que não nos interessam particularmente aqui, traduz a palavra paidéia, de Platão, por Bildung em alemão, que geralmente traduziríamos por “formação” em português, mas que também pode ser vertida por “educação”, sem problemas.

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formação do homem, em Platão, dependia da transformação metafísica que aí acontecia na compreensão do que seja a verdade do real.

Nada mais natural. Todo processo educacional depende daquilo que ele tem em vista. Em filosofia, o que se tem em vista é sempre a verdade. Logo, dependendo de como concebemos o que seja a verdade, necessariamente irá variar o que esperamos e exigimos do processo educacional. Devemos então, aqui, levar em conta aquilo que Heidegger observou em relação a Platão. Mas, agora, pensando nele, Heidegger. Pois também nele podemos dizer que a compreensão do ser do real implicou certa noção, na maioria das vezes tácita, de um processo de formação ou de educação do homem, por mais atípico que ele fosse.

Pensemos, por exemplo, em Ser e Tempo, primeira grande obra de Heidegger, de 1927. Por trás de toda “inadequação e ‘falta de beleza’ do estilo”5, que o próprio Heidegger reconhece, não poderíamos estar diante de um grande romance de formação? Talvez Heidegger não gostasse muito desta interpretação, pois alerta: “uma coisa é fazer um relatório narrativo sobre os entes, outra coisa é apreender o ente em seu ser”6. Porém, malgrado sua precaução contra um suposto caráter narrativo, como evitar que, página após página de Ser e Tempo, sejamos tomados pela emoção da descoberta de camadas cada vez mais profundas dos modos de ser das coisas, que parecem corresponder ao sentimento de uma aventura pela qual somos levados cada vez para mais perto daquilo que realmente somos? Bem ao gosto das vanguardas modernas, não teria Heidegger escrito uma narrativa sem contar nenhuma “historinha”, confiando no pensamento como algo que, por mais abstrato que seja, traz junto consigo a emoção e o sentimento? Talvez sim, já que, quase trinta anos depois, Heidegger diria que, para descobrir o que é a filosofia, “o caminho de nossa discussão deve ser de tal tipo e direção que aquilo de que a filosofia trata atinja nossa responsabilidade, nos toque, e justamente em nosso ser”7.

5 Heidegger, M. Ser e Tempo – parte I. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 70.6 Idem, ibidem, p. 70.7 Heidegger, M. Que é isto – a filosofia? In: ______. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1979a. p. 13.

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Se ousássemos descrever Ser e Tempo como uma narrativa pela qual um homem pode passar, provavelmente ela teria o feitio de uma epopéia em que este homem, para falar na linguagem de Kierkeggard, é lançado no geral e pode, a partir daí, como indivíduo, alçar-se acima dele. Nos termos de Heidegger, é a relação entre “inautenticidade” e “autenticidade” que entra em jogo. Sob a égide da questão do ser, é a investigação do modo de ser daquele que unicamente coloca tal questão e, junto, coloca em jogo o seu ser que aparece como tarefa preliminar de Ser e Tempo.8

Heidegger assume, como ponto de partida de sua investigação, a impossibilidade de se determinar a relação entre homem e mundo através dos pólos da interioridade e da exterioridade. Desde o início, a ênfase de seu pensamento esteve na afirmação do modo de ser do homem como “ser-no-mundo”, como Dasein, literalmente, “ser-aí”. Esses hífens nos termos buscavam evidenciar o nexo estrutural, necessário e inevitável entre homem e mundo, denunciando que um jamais é sem o outro, isto é, que o homem só pode ser já em um mundo. Heidegger, assim, pretendia não apenas superar a subjetividade da filosofia moderna, mas também a herança que este subjetivismo ainda deixara na fenomenologia de Husserl, ponto de inflexão decisivo para ele. Mundo não seria uma propriedade que o homem pode ou não apresentar, um elemento exterior com o qual ele pode ou não se relacionar, um lugar fora de si e que ele pode freqüentar quando bem entende. Mundo não é um acréscimo ao modo de ser do homem, mas constitui este modo de ser originariamente. Todo “eu” só é junto ao “mundo”.

Desde que adentramos esse mundo, somos recebidos com um preenchimento de sentido quase totalizante. Sabemos, mesmo sem nunca efetivamente perguntarmos, o que fazer, como fazer, sabemos lidar com isto e com aquilo, usar esta e aquela coisa, sabemos, enfim, nos orientar neste lugar que chegamos. Isso significa que nossa relação com o mundo, com as coisas e com os outros homens já está sempre 8 Na medida em que o projeto de Ser e Tempo foi abandonado por Heidegger antes da metade, tomou corpo de fato na obra justamente a parte dedicada à “analítica existencial” do modo de ser do homem.

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dada e conta com um sentido pressuposto graças ao qual nos tornamos familiares com o que nos rodeia. Embora esse sentido tenha importância vital para nós, enquanto compreensão prévia e orientadora no meio do ser, ele consiste basicamente na posição típica do que Heidegger chamou de “impessoal”, ou seja, daquele modo de ser, literalmente, impróprio, já que se perde no nivelamento mediano das opiniões prontas que dão conta de todo e qualquer problema sem que aquele que responde seja convocado naquilo que tem de próprio.

*

Se continuássemos a descrever Ser e Tempo como uma narrativa, seu protagonista, lançado no mundo desde o nascimento, isto é, lançado no meio das coisas, dos entes em geral, tem a possibilidade de superar o fato de que, por este motivo, tende a interpretar tudo, inclusive a si próprio, através da fisionomia de uma coisa, de um ente, de uma qüididade. Nos termos de Heidegger, esta aventura é a de uma superação da compreensão ôntica de tudo aquilo que é por uma compreensão ontológica, ou seja, por uma compreensão que, diante do ente, pergunta pelo seu ser sem conceber este último, mais uma vez, pelas feições do ente, isto é, sem importar os critérios de consideração dos entes para a consideração do que eles são em seu ser.

Neste sentido, tal aventura diz respeito a como, dada a condição de ser-no-mundo, ou seja, modernamente, de ser situado na massa, conquistar para si um olhar e, mesmo, uma vida que não estejam pura e simplesmente subordinados aos preceitos que este mundo social já sempre oferece prontos, sem que se precise pensá-los. Nosso senso comum não é mais do que isso, um sentido comum, isto é, da comunidade, de todos e que, sendo de todos em geral, não é de ninguém em particular, logo, dispensa a todos e a cada um da tarefa de pensar. Exatamente porque, com ele, já se sabe o que fazer, o que dizer e o que pensar, pode-se passar a vida inteira sem colocar aquela pergunta de simplicidade infantil e que as crianças, não por acaso, costumam repetir: por quê?

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Isso não apenas deixa sem resposta esta perguntinha, o que, além de ser de menor importância, nem mesmo é garantido que se consiga ao colocá-la. Perdida fica, enquanto se permanece na massa e na sua opinião pública, a chance de assumir a correspondência ao ser e, assim, poder assumir propriamente a existência como sua, e não apenas como herança geral recebida passivamente. No mínimo, a pergunta pelo sentido das coisas e pela sua verdade é capaz de explicitar os pressupostos que, sem ela, são seguidos cegamente. Testemunhamos o patético desta cegueira em nossa vida diária quando, no âmbito moral, alguém se defende com aquela famosa frase: “mas todo mundo faz assim…”. No fundo, sabemos que fazer alguma coisa apenas porque todo mundo faz assim é, no mínimo, superficial, senão estúpido. Heidegger chamou a atenção para isso quando frisou a importância da partícula alemã man, que em português corresponde ao “se”, como maneira de, sintomaticamente, indeterminar o sujeito. Enquanto apenas se faz alguma coisa pois todos o fazem, ninguém propriamente está fazendo – mas o está impropriamente.

*

Porém, o problema não é de ordem moral, e sim do pensamento. Esse impessoal não deve ganhar uma conotação pejorativa ou apenas negativa, pois ele não é uma opção e nem mesmo é eliminável. Ele faz parte, de acordo com Heidegger, da estrutura essencial do modo de ser do homem como ser-no-mundo e, nesta medida, é a própria abertura que se oferece para a conquista de uma outra posição. É na compreensão mediana, cotidiana e impessoal, “lá onde já estamos”, que se oferece primeiramente o ser e, dessa maneira, se oferece tanto a permanecer apenas aí como a se tornar um apelo digno de ser pensado. Em sua linguagem carregadamente ontológica, Heidegger explicitou essa situação, quase três décadas depois de Ser e Tempo, no opúsculo “O que é isto – a filosofia?”, da seguinte maneira.

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Nós residimos, sem dúvida, sempre e em toda a parte, na correspondência ao ser do ente; entretanto, só raramente somos atentos à inspiração do ser. Não há dúvida que a correspondência ao ser do ente permanece nossa morada constante. Mas só de tempos em tempos ela se torna um comportamento propriamente assumido por nós e aberto a um desenvolvimento. Só quando acontece isto correspondemos propriamente àquilo que concerne à filosofia que está a caminho do ser do ente. O corresponder ao ser do ente é a filosofia; mas ela o é somente então e apenas então quando esta correspondência se exerce propriamente e assim se desenvolve e alarga este desenvolvimento.9

Heidegger está dizendo que nós já sempre estamos situados numa certa correspondência ao modo pelo qual a realidade se apresenta, ou seja, sempre recebe a nossa chegada ao mundo uma certa “compreensão pré-ontológica do ser”, como a chamou em Ser e Tempo, um certo critério pelo qual se decide o que é e o que não é. Essa é a compreensão corrente, aquela que, abraçada por todos, não é de ninguém propriamente. Entretanto, a filosofia só começa quando essa correspondência, nossa “morada constante”, é assumida com propriedade, ou seja, quando toma-se para si a tarefa de questioná-la, de pensar os critérios de julgamento do real que herdamos “naturalmente”. Só quando assumimos tal correspondência ao ser como nosso comportamento10 e, com isso, damos a chance de desenvolver tal correspondência num questionamento, só aí dá-se a filosofia.

Neste sentido, o périplo narrado em Ser e Tempo é uma medida existencial da conquista de um olhar filosófico, de uma relação com o ser exposta ao desenvolvimento. Por isso, Heidegger afirma que a “questão do ser não é senão a radicalização de uma tendência ontológica essencial, própria da pre-sença, a saber, da compreensão pré-ontológica do ser”11. Reside no modo de ser do homem, do Dasein, uma compreensão prévia do ser, logo, uma relação com ele. Filosofia não é senão uma maneira de radicalizar essa relação.

9 Heidegger, 1979, op. cit., p. 20.10 “Toda relação de abertura, pela qual se instaura a abertura para algo, é um comportamento”. Heidegger, 1979, op. cit., p. 136.11 Heidegger, 1998, op. cit., p. 41.

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Por isso, em Ser e Tempo, se tentássemos continuar a narrar esta obra como uma aventura, é necessário um momento de solidão, que ali é situado na disposição da angústia. Mas foi num curso ministrado poucos anos depois de Ser e Tempo, publicado sob o nome de “Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão”, que Heidegger explicou melhor a importância da solidão para o pensamento.

Consuma-se por fim uma singularização do homem em seu ser-aí. Singularização não diz, aqui, que o homem se calcifica em seu eu diminuto e ressequido, neste eu que se espraia junto a isto ou aquilo, que ele toma como sendo o mundo. Essa singularização descreve muito mais aquele ficar só, no qual todo e qualquer homem se vê pela primeira vez nas proximidades do que há de essencial em todas as coisas, nas proximidades do mundo.12

Se encontramos, portanto, certo elogio da solidão em Heidegger, ele não está relacionado com nenhuma sorte de subjetivismo. Decisivo é que a solidão promove a singularização. Porém, a conquista da propriedade ou da autenticidade só pode surgir no meio da impropriedade e da inautenticidade que caracterizam a vida cotidiana, da qual, aliás, jamais escapamos, mas na qual podemos tentar habitar de modo menos impessoal do que em geral fazemos. Sempre diante de si como possibilidade, o homem encontra-se, entretanto, situado inclusive na possibilidade de não tomá-la para si e desenvolvê-la singularmente.

Por isso, ainda que criticamente, Heidegger mostrou-se sensível a explicitar, no curso de 1930 mais tarde publicado sob o título A essência da liberdade humana, a proximidade da vida em relação à filosofia, no contexto do que chamou de seu caráter “desafiador”13. Embora resistindo a entregar a filosofia às demandas da ordem do dia, Heidegger insistia que “o conteúdo dos problemas filosóficos, em si mesmo e como tal, deixa que algo aconteça conosco”, mas “de que maneira isto acontece deve-se 12 Heidegger, M. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude e solidão. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 7-8.13 Heidegger, M.Vom Wesen der menschlichen Freiheit. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1982. p. 35.

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experimentar no filosofar efetivo”14. Se há um ímpeto existencial em Ser e Tempo, ele se justifica pela importância de realçar que a questão do ser só pode, de fato, ser assumida, apropriada, radicalizada e desdobrada quando aquele que com ela se relaciona também se coloca em questão, ou seja, a experimenta.

*

Não é diferente com a educação. Se educar significa algo mais do que inculcar erudição na cabeça dos que não têm, se formar representa algo mais do que a transmissão de conhecimentos úteis, então estamos diante de uma tarefa cujo sentido é eminentemente filosófico. Isso significa dizer que não devemos apenas pensar qual o caráter educacional da filosofia mas, ao mesmo tempo, qual é o caráter filosófico da educação. Educar, bem como filosofar, deve trazer o homem para perto de si mesmo, precisa facultar a apropriação de uma relação com o mundo que só acontecerá a partir do momento em que ela for feita de modo “íntimo e pessoal”.

Heidegger sabia bem disso. Ele afirmava que “ensinar é ainda mais difícil do que aprender”15. Essa sua frase, de um curso do início dos anos 1950, não estava relacionada à convicção de que aquele que ensina deve saber mais do que os que aprendem ou que deve estar mais preparado para, a qualquer momento, responder ao que lhe for perguntado. Nada disso. Para Heidegger, ensinar é mais difícil do que aprender porque ensinar significa, na verdade, “convidar a aprender”. Nenhum professor “deixa que nada seja aprendido senão – o aprender”16. Ele queria, com isso, dizer justamente que o processo educacional autêntico é aquele em que alunos aprendem o próprio significado do aprendizado. Isso implica que eles aprendam que, somente se forem chamados singularmente pelo que está em questão, de fato estarão aprendendo.

Se o professor deve ensinar, antes de tudo, um singelo convite, é porque justamente não se trata aí de transmitir nenhum conteúdo

14 Idem, ibidem, p. 19.15 Heidegger, M. Was Heisst Denken? Tübingen: Max Niemayer, 1954. p. 50. 16 Idem, ibidem, p. 50.

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específico, mas a forma de relacionamento que é o aprender. “Por isso, sua conduta, muitas vezes, dá a impressão de que com ele não aprendemos propriamente nada”17, afirma Heidegger. É que nosso padrão normal de aprendizado possui uma expectativa contrária ao verdadeiro aprendizado, já que este último consiste não em sair sabendo necessariamente mais do que antes do processo educacional, mas em ter aprendido a aprender. Isso é o que realmente importa.

*

Tudo que conhecemos da prática professoral de Heidegger leva a crer que este ar que sentimos em seus textos era também lá respirado. Na bela homenagem que escreveu nos oitenta anos de Heidegger, Hannah Arendt deixou um testemunho do que foi sua aparição professoral, bem antes de qualquer publicação.

No caso de Heidegger, não existia nada em que sua fama pudesse se apoiar, nenhum texto e apenas notas de cursos, que circulavam de mão em mão; e os cursos tratavam de textos universalmente conhecidos, sem conter nenhuma doutrina a ser tomada e transmitida. Não havia senão um nome, mas o nome viajava por toda a Alemanha como a novidade do rei secreto.18

Desde a Primeira Guerra Mundial, circulava certo mal-estar na cultura ocidental. Muitos já desconfiavam do progresso da civilização na direção do melhor. Não era diferente nas universidades alemãs, onde havia enorme insatisfação na atividade acadêmica docente e discente. Heidegger nasce intelectualmente neste clima, responde a ele. Na preleção “Que é Metafísica”, de 1929, podemos ler sua crítica à “dispersa multiplicidade de disciplinas”, que “é hoje ainda apenas mantida numa unidade pela organização técnica de universidades e faculdades e conserva um significado pela fixação das finalidades práticas

17 Idem, ibidem, p. 50.18 Arendt, H. Martin Heidegger faz oitenta anos. In: ______. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 221.

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das especialidades”19. Heidegger, portanto, não passa incólume pelo ambiente que se espalhava “por todas as faculdades que fossem algo além de simples escolas profissionais e todos os estudantes para quem o estudo significava mais que uma preparação para seus ofícios”20, como comenta Hannah Arendt.

É isso que determinará sua curta participação como reitor na universidade de Friburgo em 1933. No famoso “Discurso do reitorado”, Heidegger observava que para a nova juventude “já não será mais permitido que o serviço do saber seja a formação anódina e rápida conducente a uma profissão”21. É que, para ele, não é o saber que está a serviço das profissões, mas antes o contrário: as profissões deveriam se fundamentar no saber. Poderíamos dizer o mesmo, aliás, em relação à política, já que, a despeito de toda a polêmica em torno do envolvimento de Heidegger com o nacional-socialismo, seu esforço pela “auto-afirmação” da universidade significava que ela deveria erguer-se por si mesma, não subordinada a causas ideológicas. Retrospectivamente, ele diria que no seu “discurso de posse se exprimia uma posição contrária a esta politização da ciência”22, tentada pelo nacional-socialismo.

Em suma, tratava-se de colocar a universidade em situação de não depender de razões extrínsecas ao próprio saber para que se afirmasse, fossem elas profissionais ou políticas. Nesse sentido, todo esse discurso de Heidegger pode ser visto como a tentativa de dar conteúdo e radicalizar a conhecida autonomia universitária. “Dar a si mesmo a lei, essa é a liberdade mais alta”23, afirma. Porém, para ele, essa festejada liberdade universitária padecia por ser apenas negativa, legitimando “despreocupação, arbitrariedade de intenções e de inclinações, ausência de laços nos fatos e nos gestos”24. É que, para Heidegger, como ele avaliaria mais tarde, “a auto-afirmação também devia cumprir a missão de

19 Heidegger, 1979, op. cit., p. 35.20 Arendt, op. cit., p. 222.21 heidegger, M. Discurso do reitorado. In: ______. Escritos Políticos. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 100. 22 Heidegger, M. Heidegger e a Política. O caso de 1933. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 50, p. 70, jul./set. 1977. 23 Heidegger,, 1997, op. cit., p. 99.24 Idem, ibidem, p. 99.

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dar um novo sentido à Universidade face a uma organização meramente técnica, a partir de uma reflexão sobre a tradição do pensamento ocidental-europeu”25 .

Nesse cenário, a filosofia tinha, já bem antes do episódio do reitorado ou da publicação de Ser e Tempo, importância singular. Segundo Hannah Arendt, ela “não era um ganha-pão; era antes a disciplina dos famintos resolutos e, por isso mesmo, muito exigentes”. Foi neste grupo que a fama de Heidegger cresceu. Suas aulas respondiam à fome de pensamento que toda a sorte de especialidades não satisfazia.

A novidade que os atraía a Friburgo com o Privatdozent, e um pouco depois em Marburgo, dizia: há alguém que efetivamente atinge as coisas que Husserl proclamou; sabe que elas não são um assunto acadêmico, mas a preocupação do homem pensante e isso, de fato, não só desde ontem ou hoje, mas desde sempre; e, exatamente porque para ele o fio da tradição se rompeu, redescobre o passado. O decisivo no método era que, por exemplo, não se falava sobre Platão e não se expunha sua doutrina das idéias, mas seguia-se e se sustentava um diálogo durante um semestre inteiro, até não ser mais uma doutrina milenar, mas apenas uma problemática altamente contemporânea. Hoje em dia, isso sem dúvida nos parece totalmente familiar: agora muitos procedem assim; antes de Heidegger, ninguém o fazia. A novidade simplesmente dizia: o pensamento tornou a ser vivo, ele faz com que falem tesouros culturais do passado considerados mortos e eis que eles propõem coisas totalmente diferentes do que desconfiadamente se julgava. Há um mestre; talvez se possa aprender a pensar.26

Não chegamos a outra conclusão quando lembramos quem foram os alunos de Heidegger. Herbert Marcuse, Emmanuel Lévinas, Hans Jonas, Karl Löwith, Hans-Georg Gadamer, Giorgio Agamben, a própria Hannah Arendt… Essa lista impressiona não apenas pelo seu tamanho ou pelo porte de cada um dos pensadores, nomes certos entre os grandes do século que acaba de passar. Impressiona também pela diferença entre

25 Heidegger, 1977, op. cit., p. 71.26 Arendt, op. cit., p. 223.

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eles, o que prova como o ensino de Heidegger, concretamente, parece ter realizado com sucesso o tal convite a aprender. Não a aprender o que ele, Heidegger, tinha a dizer. Mas a aprender a aprender. Por isso, cada um desses alunos pôde aprender de seu próprio modo, tal como, hoje ainda, cada um de nós pode fazer ao ler Heidegger. Tudo leva a crer, por isso, que Heidegger foi um grande professor no mais alto sentido da palavra.

*

Heidegger educador. Nietzsche, na sua juventude, nomeou a terceira de suas considerações intempestivas de “Schopenhauer educador”. Em seu estilo literário todo próprio, ele expôs, sem o saber, o espírito que perpassaria a filosofia de Heidegger e, mais especificamente, o que podemos depreender como seu sentido educacional. Para ele, os homens, em geral,

[...] se escondem atrás de costumes e opiniões. No fundo, todo homem sabe muito bem que não se vive no mundo senão uma vez, na condição de único, e que nenhum acaso, por mais estranho que seja, combinará pela segunda vez uma multiplicidade tão diversa neste todo único que se é: ele o sabe, mas esconde isso como se tivesse um remorso na consciência – por quê? Por medo do próximo que exige esta convenção e nela se oculta. Mas o que obriga o indivíduo a temer o seu vizinho, a pensar e agir como um animal de rebanho e não se alegrar consigo próprio? Em alguns muito raros, talvez o pudor. Mas na maioria dos indivíduos, é a indolência, o comodismo […].27

Educar não pode ser pura transmissão de conhecimento pois nela permanece o comodismo dos homens. Educar, no alto sentido da palavra, é chamar o homem para que ele assuma com o ser uma relação própria, ou seja, que assuma para si tal relação como algo que lhe concerne, e não apenas como algo dado e já sabido. Por isso, quando Heidegger fala que o professor ensina não mais do que o convite a aprender, ele está,

27 Nietzsche, F. III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador. In: ______. Escritos sobre Educação. Rio de Janeiro, Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003. p. 138.

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ao mesmo tempo, falando do cerne da filosofia, já que o homem deve ser tomado pela questão do ser de modo pessoal, singular.

No seu Discurso do Reitorado, falando à comunidade universitária, ele já expunha isso, na medida em que clamava por uma relação questionadora com o ser, relação esta que só pode acontecer quando deixamos de ser “animal de rebanho”, como diz Nietzsche. Na parte mais educativa de todo esse discurso, Heidegger nos coloca diante do que talvez seja o coração da sua filosofia.

Então, o que inicialmente foi a tarefa dos gregos – a resistência admirativa perante o ente – transforma-se na de se estar, plenamente a descoberto, exposto ao que se retira e é incerto, ou seja, ao que é problemático, isto é, digno de ser posto em questão. Questionar, então, não é já somente a fase superável que precede a resposta, que não seria outra coisa do que o saber. Questionar, pelo contrário, torna-se em si mesmo a figura em que o saber culmina.28

Somente dessa maneira, o dito “objeto” de estudo, seja ele qual for, pode abandonar a condição de exterioridade inerte e insípida diante de um “sujeito” que jamais é colocado em questão. Somente dessa maneira, tanto educar como filosofar podem ser mais do que mero conhecimento ou erudição. Pois só assim o homem pode ser colocado, ele mesmo, em questão – do contrário, restaria a ele apenas “o comportamento indiferente das mercadorias fabricadas em série, indignas de contato e de ensino”29, como afirma Nietzsche.

Se há um sentido educativo da filosofia, ele não deve ser diferente do sentido filosófico da educação: despertar o homem do comodismo impessoal em que ele não fica à altura do “milagre irrepetível”30 que sempre é.

28 Heidegger, 1997, p. 97.29 Nietzsche, op. cit., p. 139.30 Idem, ibidem, p. 138.

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Referências bibliográficas

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PLATÃO. A República. Belém: EDUFPA, 2000

Recebido em: 11 de dezembro de 2007.Aprovado em: 23 de dezembro de 2007.

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APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano VI n. 10 p. 73-100 2008

númeRo esPeciAl:Heidegger e a Educação

* Versão modificada da palestra pronunciada em I Jornadas Internacionais: “Figuras da racionalidade: neokantismo e fenomenologia”, Évora, Universidade de Évora, 18-19/01/2007.** Doutor em Filosofia pela Université Catholique de Louvain e pós-doutor pela Universidade de Konstanz. Atualmente é professor na PUC-SP e Unicamp. E-mail: [email protected]

Kant entre o ficcionalismo de Vaihinger e a fenomenologia de Heidegger*

Zeljko Loparic**

Resumo: O artigo apresenta, de início, a interpretação ficcionalista de Kant oferecida por Vaihinger, para, em seguida, mostrar as suas limitações. Na continuação, analisa a interpretação fenomenológica de Kant elaborada por Heidegger, fazendo ver o caráter unilateral desta. No final, oferece argumentos para a tese de que as interpretações de Vaihinger e Heidegger, mesmo insuficientes, esclarecem pontos importantes freqüentemente negligenciados do pensamento kantiano. Vaihinger chamou a atenção para a importância no sistema kantiano dos princípios ficcionais, os quais, mesmo sem terem valor objetivo determinável, possuem um valor heurístico sem o qual a construção do sistema do conhecimento natural é impossível. Heidegger destacou o caráter intuitivo do acesso aos objetos do conhecimento teórico enquanto tais, deixando, assim, aberto o caminho para uma interpretação da filosofia teórica de Kant não como psicologia, mas em termos de uma semântica a priori do tipo construtivista.

Palavras-chave: Kant. Vaihinger. Heidegger. Ficcionalismo. Fenomenologia. Semântica transcendental.

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Kant between Vaihinger’s fictionalism and Heidegger’s phenomenology

Abstract: This paper begins by presenting Vaihinger’s fictional interpretation of Kant, and its limitations. Next, the paper analyzes the Heidegger’s phenomenological interpretation of Kant, and shows its unilateral character. In the final sections, the paper offers arguments for the thesis that despite their shortcomings Vaihinger and Heidegger’s interpretations clarify frequently neglected yet important points of Kant’s thought. Vaihinger called attention to the importance of fictional principles within the Kantian system, which albeit lacking determinate objective value have a heuristic role without which the construction of the system of natural knowledge is impossible. Heidegger highlighted the intuitive character of the access to the objects of theoretical knowledge as such, and thus paved the way for an interpretation of Kant’s theoretical philosophy not as a psychology, but in terms of a constructivist-type a priori semantics.

Key-words: Kant. Vaihinger. Heidegger. Fictionalism. Phenomenology. Transcendental semantics.

1 O ficcionalismo de Vaihinger e a fenomenologia de Heidegger

De acordo com o importante filósofo neokantiano Hans Vaihinger1 (1927 [1911], p. 12), o pensamento humano é uma “função orgânica” de caráter ficcional. Próximo do perspectivismo vitalista de Nietzsche, do fenomenalismo biológico de Mach e do pragmatismo utilitarista de Peirce, Vaihinger sustenta que a psique humana é uma “força de formação orgânica” produtora de órgãos em conformidade com os fins biológicos do organismo humano, os quais incluem a adaptação às circunstâncias físicas externas e a autopreservação. “Tais órgãos, que a psique constrói para si em resposta adaptativa a excitações externas, são, por exemplo, as formas de intuição e de pensamento, bem como certos conceitos e outras formações lógicas” (p. 3). Portanto, “o pensamento lógico é uma função orgânica da psique”. Ora, as funções orgânicas são estritamente análogas às mecânicas. A psique pode e deve ser tratada como uma máquina, cuja finalidade natural é “executar

1 Além de ter produzido uma obra importante, em particular o livro Die Philosophie des Als Ob (A filosofia do como se, 1911), Vaihinger foi fundador da revista Kant-Studien (1895) e da Deutsche Kant-Gesellschaft (1905).

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movimentos que preservam a vida do organismo com o menor uso de força” (p. 178). A teoria lógica das ficções não é, portanto, outra coisa que “uma mecânica explicitada do pensamento” ou uma “tecnologia do pensamento” (p. 180).

O caráter distintivo de todos os produtos do pensamento humano é o de serem ficções, isto é, “representações conscientemente falsas” (p. XXIV), cuja expressão lingüística é a fórmula “como se” (p. XXV, cf. p. 155). A finalidade das ficções não é, portanto, servirem de reproduções ou réplicas do mundo real (como pensam o senso comum e os epistemólogos tradicionais), mas a de poderem ser usadas como instrumentos eficazes para a nossa orientação no mundo (Vaihinger, 1927 [1911], p. 18 e 22). “No domínio teórico, prático e religioso, nós chegamos ao correto com base e com a ajuda do falso” (p. XXIV), “operando com representações conscientemente falsas, mas úteis” (p. XXV). A verdade é tão-somente “um erro conforme a fins” (p. 192).

Tendo renunciado à tarefa de espelhar a “realidade objetiva” na consciência e, portanto, desistido do conceito de verdade; mais ainda, tendo substituído o próprio conceito de objeto de conhecimento pelo de conteúdo sensorial – Vaihinger elogia Mach por ter reduzido “todo ser e todo acontecer a elementos sensoriais como o último dado para nós” (p. XXVI) –, o instrumentalismo biologizante de Vaihinger propõe um conceito de saber livre de qualquer compromisso metafísico ou ontológico, aplicável sem distinção a todos os fenômenos, tanto psíquicos quanto físicos, almejando tão-somente fabricar artifícios; trata-se de conceitos, operações e, em geral, meios auxiliares para “calcular” os dados sensoriais de modo a poder “executar os impulsos da nossa vontade conforme a fins, segundo diretivas de constructos lógicos” (p. 5). O conhecimento humano é (diz Vaihinger recordando Mach) “uma elaboração econômica do material sensorial, a serviço da vida” (p. XXVI). Vaihinger resume a sua posição teórica na fórmula “positivismo idealista”: positivismo, porque “repousa única e exclusivamente sobre o dado, sobre os conteúdos empíricos sensoriais” e nega, de modo mais explícito possível, todo e qualquer outro tipo de objetidade, eliminando,

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dessa forma, a distinção entre as ciências naturais e humanas; idealismo, porque recorre a idéias ficcionais reconhecidamente falsas (p. XXXII). Essa posição, que exclui toda metafísica (teoria do supra-sensível) e mesmo toda ontologia (teoria do ente enquanto ente no seu todo), contenta-se em não ser mais do que uma “filosofia do como se”.

Ainda segundo Vaihinger, o ficcionalismo é uma constante na história do pensamento ocidental, aparecendo, com particular força, na obra de Kant. Este não é um metafísico realista, nem na lógica, nem na física, nem na ética (p. 613). Para o “Kant radical” de Vaihinger, pensar significa também orientar-se, isto é, resolver problemas de relevância vital, e não tentar representar fielmente as coisas elas mesmas. Assim, por exemplo, “o espaço, o tempo e, em particular, as categorias são uma espécie de representações auxiliares, das quais se serve o ‘ânimo’ para elaborar sistematicamente o material sensorial; mesmo sendo subjetivas e, por isso, não-verdadeiras, essas representações são necessárias para captar o dado. Nessa medida, é possível considerá-las ficções [...]” (p. 619). As idéias da razão teórica kantiana são também constructos ficcionais, mais precisamente “ficções heurísticas” (p. 619). O conjunto dessas idéias, cuja realidade é apenas “heurístico-prática” (p. 628), não “de existência” (p. 658), constitui uma ferramenta metodológica preciosa, e mesmo indispensável, na condução da pesquisa empírica (p. 621 et passim).

O mesmo status ficcional possuem as idéias práticas em geral (morais, jurídicas, religiosas etc.). “A liberdade é uma idéia, a autonomia é uma idéia, a lei ética geral é uma idéia – e as idéias são “meras idéias”; a moral inteira repousa, portanto, sobre ficções” (p. 649). A própria fórmula da lei moral é “uma nova e especial ficção” (p. 650). Entre as ficções religiosas de Kant, Vaihinger destaca a do estado originário de inocência, do qual parte a história moral de humanidade (p. 657), bem como a do diabo e do inferno, do filho de Deus, do reino de Deus na terra e, por fim, a ficção do próprio Deus. Em apoio, Vaihinger cita, entre vários outros, o seguinte trecho de Kant: “A proposição: ‘Deus existe’ não significa a fé na existência de uma substância [...], mas é apenas um axioma da razão prática de se impor a si mesma como princípio das ações” (p. 727).

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Contra o ficcionalismo em geral e, em particular, o positivismo biologizante de Vaihinger, Heidegger, em Ser e tempo, recorre à regra básica da fenomenologia husserliana: zu den Sachen selbst, que impõe ao conhecimento a tarefa de representar as coisas elas mesmas tal como elas são nelas mesmas. Essa tarefa inclui a tematização descritiva de estruturas a priori das coisas, não recorrendo, para fins de teorização, a “construções suspensas no ar”.2 É nas próprias coisas que é possível ver fenômenos ontológicos, possibilitadores, e ônticos, possibilitados; aspectos deônticos fundantes e fundados. Baseado no acesso fenomenológico às coisas, Heidegger concebe a filosofia como teoria de fenômenos ontológicos, ou seja, como ontologia.

Tal como Vaihinger, Heidegger se apropria de Kant. Os fenômenos e aspectos ontológicos e ônticos também teriam sido tematizados já pela filosofia crítica kantiana. Entre os ontológicos, estão as formas da intuição kantianas e as categorias, que não são entidades ficcionais, mas “fenômenos da fenomenologia”. Nesse mesmo estilo fenomenológico, Heidegger apresentou, em vários textos da década de 1920, versões fenomenológicas de outros a priori discursivos tematizados por Kant, inclusive éticos. Entre estes, o principal é o conceito de dever, que é interpretado à luz do fenômeno do ter-que-ser, exigência ética originária constitutiva do existir humano e dada fenomenalmente (Sollensgegebenheit), de modo que “o dever absoluto seria, então, propriamente a objetidade originária” (Heidegger, 1987, GA 56/57, p. 44).3

O propósito do presente trabalho é, em primeiro lugar, mostrar que, apesar de diametralmente opostas, a interpretação ficcionalista neokantiana de Vaihinger e a fenomenológica de Heidegger – duas posições ainda hoje vivas em vários círculos – captam, cada uma à sua maneira, aspectos importantes do pensamento kantiano. Ao mesmo tempo, contudo, as duas interpretações sofrem de severas limitações. Além de mostrar isso, proponho-me, em segundo lugar, apresentar uma

2 Cf. Heidegger, 1927, p. 27-28; cf. p. 50, nota. Além de precisar ser remetida a Husserl, convém aproximar essa posição de Heidegger das teses do idealismo alemão sobre a concretude do Espírito (cf. Heidegger, 1995, p. 180, 181, 203 e 235). 3 Esse é um dos numerosos trechos da obra de Heidegger que atestam a sua preocupação com uma ética da responsabilidade, intimamente relacionada à ontologia existencial e à desconstrução da metafísica.

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leitura de Kant capaz de ultrapassar esses defeitos e fornecer um quadro no qual as duas interpretações, uma vez devidamente reformuladas, possam ser vistas como complementares. Essa leitura é baseada na tese de que o conteúdo central da filosofia transcendental de Kant é uma semântica pura que trata da aplicabilidade de diferentes tipos de constructos discursivos a priori em diferentes domínios constituídos ou que possam ser constituídos na experiência cognitiva, prática ou outra (estética, por exemplo).4 Espero, dessa forma, estimular um estudo renovado não somente da herança da filosofia de Kant, mas também do significado do seu pensamento para a filosofia dos nossos dias.

2 Virtudes e limitações da reconstrução ficcionalista de Kant

Não há como discordar de Vaihinger quando este diz que Kant não é um metafísico, nem mesmo um ontólogo. De fato, segundo o idealismo transcendental ou crítico kantiano, a metafísica, teoria do supra-sensível, nunca existiu nem pode existir como ciência (Kant , 1783, p. 7, 9 e 250) e a ontologia precisa ser substituída por uma teoria da exposição dos aparecimentos em conceitos puros ou empíricos (KrV, B 303), teses pelas quais Kant antecipa, sob certos aspectos, o fenomenalismo posterior, inclusive o de Mach. Tampouco se pode negar a presença de elementos ficcionais e meramente reguladores no sistema kantiano da filosofia crítica, em particular, nos procedimentos kantianos de resolução de problemas, em claro conflito com a linha de abordagem defendida por Heidegger. Vaihinger tem toda razão em dizer que as idéias teóricas de Kant (inclusive a de Deus) são “ficções heurísticas”, a saber, constructos discursivos que servem para “fundar princípios reguladores5 do uso sistemático do entendimento no campo da experiência” (KrV, B 799), isto é, princípios do como se (KrV, B 700).6

4 Essa tese é exposta em detalhes em Loparic, 2003b.5 No original: “regulative”. A tradução brasileira da primeira Crítica, publicada pela Editora Abril de São Paulo, verte erroneamente esse termo alemão por “recreativos”.6 Eu mesmo defendi a tese de que Kant reformulou os juízos da metafísica tradicional que empregam idéias como programa a priori de pesquisa e exemplifiquei essa metodologia especulativa pela maneira como Kant concebe os primeiros princípios da ciência da natureza (cf. Loparic, 2005 [1982], cap. 9). Mais recentemente, mostrei que a metapsicologia de Freud foi construída segundo esse mesmo programa de pesquisa (cf. Loparic, 2003d).

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Kant também deixa claro que as idéias práticas são igualmente produzidas (gemacht) pela razão (cf., por exemplo, 1797, p. 181). Isso vale, como Vaihinger enfatizou, para a idéia prática de Deus, que, assim mesmo, tem um uso importante: ela pode ser aplicada à lei moral, a fim de qualificar essa lei como divina, revelando-se, nesse caso, “de maior fertilidade ética” (p. 109). É também inegável que, para Kant, o ser humano é um solucionador de problemas, sejam estes teóricos, práticos ou de outra natureza, tese em virtude da qual Kant pode ser aproximado ao pragmatismo.

Contudo, a reconstrução vaihingeriana da posição de Kant sofre de uma dificuldade estrutural básica: ela é parcial. Vaihinger não esconde que destacou e examinou apenas os trechos da obra de Kant que eram favoráveis a sua própria teoria das ficções, deixando de lado todos aqueles que admitiam uma interpretação oposta (p. 639). A sua justificativa para se valer desse procedimento tão problemático são as contradições de Kant, reconhecidas por todos. No entanto, ao invés de se propor a tarefa inexeqüível de estabelecer a unidade de uma obra autocontraditória, é preferível tentar salvar o que dela pode ser resguardado. Antes de se dar livre curso a interpretações enviesadas, convém, parece-me, estudar melhor as tensões internas da obra de Kant e determinar com precisão o sentido das suas afirmações. Se fizermos isso, ficam rapidamente visíveis as dificuldades da leitura vaihingeriana de Kant. Mostrarei algumas.

Em primeiro lugar, Kant jamais disse (nem poderia dizer) que os principais problemas da filosofia surgem da nossa necessidade biológica de orientação no mundo. A sua fonte são os interesses da própria razão (KrV, B 832), que decorrem das regras a priori de funcionamento do solucionador humano de problemas. É verdade que Kant (1797, p. 65-66) não exclui que a vida seja uma propriedade da matéria e que a capacidade teórica do homem, enquanto espécie animal, seja uma qualidade da vida. Contudo, a capacidade teórica do homem, como animal racional, não pode ser reduzida à função orgânica darwiniana de adaptação aos estímulos externos e de autopreservação, pois o cultivo da capacidade intelectual permite ao homem tratar não somente de fins

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biologicamente necessários, mas também de fins autoproduzidos e, nesse sentido, arbitrários (p. 104).7 Além disso, a razão teórica não pode colocar nem resolver tarefas moral-práticas, impostas ao homem pela razão prática, em virtude das quais o homem transcende a condição de animal racional, tornando-se um ser da razão, elevado acima do reino da matéria e mesmo da vida (p. 65).

Em segundo lugar, Vaihinger deixa de lado a distinção essencial entre operações intuitivas e discursivas, e, por conseguinte, a diferença entre os dois tipos básicos de produtos da cognição humana – os constructos intuitivos e discursivos. Por isso, ele também negligencia os problemas da relação entre esses dois tipos de operações e de constructos. Para Kant, alguns constructos são meras ficções e outros não. Assim, por exemplo, as minhas fantasias sobre o mundo externo – as quimeras, da mitologia grega, por exemplo – são ficcionais, pois, por meio delas, nenhum objeto me é dado. Mas isso não se pode dizer de perceptos (as percepções). A minha percepção de um objeto é um constructo intuitivo, sim, mas nem por isso ela é uma mera ficção do tipo como se. Quando vejo um cachorro, por exemplo, eu não percebo algo como se fosse um cachorro. A percepção é um constructo “objetivamente real”; por meio dela um objeto me é dado. Ou seja, as operações e as regras de construção envolvidas nas fantasias são diferentes das que são usadas para produzir os perceptos.

Da mesma forma, alguns constructos discursivos são ficções, outros não. São ficcionais todos aqueles que não podem ser interpretados por constructos intuitivos objetivamente reais, ou seja, que não podem ser sensificados na intuição. São não-ficcionais aqueles constructos discursivos que podem ser sensificados dessa forma, mais precisamente, que governam operações intuitivas efetivamente exeqüíveis. Os primeiros são ditos princípios reguladores ou do como se; os segundos, princípios determinantes. Como as idéias teóricas não são sensificáveis, todos os princípios que empregam essas idéias são do tipo como se. Embora construídos e provados a priori, os princípios do entendimento,

7 Sobre a teoria kantiana de problemas, cf. Loparic, 1988a.

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que empregam as categorias − conceitos que, diferentemente de idéias teóricas, podem ser interpretados direta, adequada e completamente no domínio da experiência possível −, são determinantes. Os objetos das percepções, por exemplo, não devem ser pensados como se estivessem satisfazendo o princípio de causalidade, mas como necessariamente satisfazendo esse princípio, sob pena de o conhecimento empírico ser uma quimera. Ou seja, o princípio de causalidade não é regulador, mas constitutivo, determinando as propriedades estruturais dos objetos da experiência. No presente contexto, os conceitos de percepção e de experiência designam operações de sensificação pelas quais são constituídos os referentes e o significado dos conceitos a priori, bem como de condições de verdade dos juízos sintéticos a priori. Eles não devem ser considerados, portanto, como fenômenos psicológicos, governados por leis naturais e objetos de uma possível psicologia empírica ou, quem sabe, transcendental, mas como operações do nosso aparelho cognitivo, exeqüíveis livremente de acordo com as regras do entendimento e da razão, das quais Kant lança mão para produzir uma semântica a priori do tipo construtivista.

Essa é a razão – assim chego a minha terceira objeção a Vaihinger – por que este não discute o problema que o próprio Kant considerou “tarefa central” da sua filosofia transcendental: o da possibilidade de juízos sintéticos a priori. Como mostrei em outros trabalhos, esse problema é resolvido por Kant em termos de uma semântica a priori, conteúdo central da sua lógica transcendental e espinha dorsal do seu projeto da crítica da razão pura. Esse projeto determina, em primeiro lugar, mediante a dedução transcendental e os procedimentos de esquematização, a validade objetiva e as condições de aplicação das categorias no domínio de objetos de experiência possível e, em segundo lugar, explicita as condições de verdade e de falsidade dos princípios do entendimento nesse mesmo domínio, daí serem chamados de “possíveis”. Mais ainda, na segunda edição da primeira Crítica, Kant oferece provas de que esses princípios não são apenas possíveis (que podem ser objetivamente verdadeiros ou falsos em

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relação a objetos da experiência possível), mas também necessariamente verdadeiros para esses objetos. A totalidade desses juízos constitui a “verdade transcendental”, a qual – essa é uma tese central da semântica transcendental de Kant – “precede e torna possível toda a verdade empírica” (KrV, B 188). Somente juízos que não são interpretáveis de maneira direta, completa e adequada pelos constructos intuitivos (e somente eles) carecem de valor de verdade determinado, não podem ser provados e são ditos princípios do como se. Diferentemente de Vaihinger, Kant não abandona, portanto, o conceito de objeto do conhecimento nem o de verdade.

Em quarto lugar, ao tratar da filosofia prática de Kant, Vaihinger tampouco se ocupa do problema (e das regras de aplicação à natureza humana) dos princípios da metafísica dos costumes. Mesmo racionalmente motivados e necessários, os princípios da metafísica dos costumes, como tais, são vazios de conteúdo objetivo (prático). As regras de sua aplicação à natureza humana servem precisamente para preencher esse vazio, dependem das condições da aplicabilidade da razão prática aos seres humanos, que devem ser pensadas como dadas na experiência (1797). O estudo dessas condições como parte da natureza humana permite a Kant dizer que o agir moral humano, tal como determinado pela metafísica dos costumes, não é uma mera quimera, um objeto de uma simples ficção prática, mas um produto efetivo, experiencial, da razão prática, mais precisamente, da lei moral. Em outras palavras, o homem moral kantiano não é uma ficção, mas, no máximo, uma ficção necessária feita carne, ou seja, uma realidade prática, mediante uma semântica (uma teoria da aplicação dos constructos discursivos – conceitos, juízos, teorias – aos dados factuais), uma pragmática (teoria do assentamento dos constructos da razão prática na natureza humana) e uma história do processo de moralização. Todas essas teorias têm uma parte pura, “produzida” a priori, e outra sensível, dada.

Em quinto lugar, Vaihinger não distingue em Kant ficções ou princípios do como se necessários, não-elimináveis, e ficções

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heuristicamente férteis, mas arbitrárias, que, portanto, podem ser substituídas por outras. Assim, por exemplo, a idéia de uma causa primeira é um constructo discursivo não determinante, que dá lugar aos princípios do como se, mas que, assim mesmo, é indispensável para a economia interna da razão. Entretanto, a idéia de átomo (exemplo preferido de Vaihinger), também discursiva e não determinante, é apenas arbitrária, com uma utilidade heurística limitada, tendo sido substituída, com sucesso (por Boskovic), pela idéia (ficção), também não determinante, de força de repulsão.

Em resumo, Vaihinger exagerou o ficcionalismo de Kant em detrimento do seu construtivismo. Ele abraçou o idealismo transcendental kantiano em sua forma exacerbada – o positivismo idealista – e deixou de lado o realismo empírico da Crítica da razão pura. Assim como negligenciou a pergunta kantiana pela realidade objetiva de princípios teóricos, Vaihinger não deu uma interpretação dos princípios práticos que possa, ao menos, prometer a garantia da sua realidade objetiva prática. Essas dificuldades não podem ser atribuídas a eventuais contradições de Kant; são defeitos de leitura.

3 Um motivo não-ficcionalista: a pragmática pura, objeto da antropologia moral de Kant

Gostaria de explicitar melhor o problema da interpretação dos princípios práticos que pertencem à metafísica dos costumes de Kant. Na Religião e, em seguida, em outras obras da sua fase tardia, Kant tenta resolver o que pode ser chamado de problema fundamental da filosofia da religião: o homem é moralmente bom ou moralmente mau? A resposta a essa pergunta exige, primeiro, que seja explicitado o sentido da oposição entre os predicados a priori “moralmente bom” e “moralmente mau”, e, segundo, que se assegure a possibilidade dos juízos sintéticos a priori, que constituem os dois lados da disjunção em questão.8

8 Para detalhes, cf. Loparic, 2007 e 2008.

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A resposta de Kant é alcançada mediante um estudo do assentamento do discurso religioso, que contém, entre outros, os predicados “moralmente bom” e “moralmente mau” na natureza humana. Esse estudo leva Kant a elaborar, já na Religião, uma antropologia moral que possui uma parte pura − pois contém uma pragmática concebida como uma teoria do assentamento progressivo dos constructos da razão prática na natureza humana −, acompanhada de uma teoria a priori da sensificação dos princípios da religião da razão pela experiência moral de cada um, que desemboca numa história a priori. Nessa fase inicial, não dispondo ainda de uma antropologia mais amadurecida, Kant formula a sua pragmática e a história a priori em termos de princípios (regras) não determinantes, mas prático-reflexivos do tipo como se – princípios especulativos, portanto, e não diretamente atestáveis na experiência – e os sensifica apenas indiretamente, de forma inadequada e incompleta pela experiência moral de cada um de nós e pelos fatos históricos (com o esquematismo meramente analógico, baseado no material retirado das Escrituras, da literatura, da história mundial), procedimento pelo qual o sentido do discurso religioso não é determinado de maneira adequada, direta e completa.

Contudo, isso muda na Doutrina da virtude, na qual o procedimento de mera exemplificação indireta e de esquematização analógica são substituídos por regras para o exercício e o cultivo de moralidade, todas elas efetivamente exeqüíveis. Essa pragmática pura, a partir de então determinante e não mais reflexiva, é completada, na segunda parte do Conflito das faculdades, por uma história a priori, conectada com uma experiência efetiva asseguradora da sua realidade objetiva prática – a do movimento participativo de entusiasmo. Essas duas obras − que oferecem uma teoria da virtude e uma teoria da história efetiváveis, sem exigir o uso de idéias especulativas (inclusive a de Deus), a não ser por motivos estruturais e heurísticos − são, parece-me, o equivalente maduro da primeira tentativa de Kant, ensaiada na Religião, de tornar visível a relação entre a moral pura e a natureza humana.

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Esse exemplo ilustra bem uma das objeções essenciais que faço à leitura vaihingeriana de Kant: o fato de Vaihinger não reconhecer a importância da distinção entre os princípios do como se e os princípios determinantes. Concedo que, para certos tipos de problemas, Kant recomenda o uso de princípios do como se. Admito, além disso, que, em fases iniciais dos seus estudos, Kant tentou resolver certos problemas, como o da história moral do homem, mediante o recurso do como se. Mas faço notar, contudo, que, nas fases seguintes, ele procurou, via de regra, soluções que podiam ser formuladas como regras determinantes ou como outros tipos de juízo mais fortes do que as regras meramente reguladoras. Precisamente esses defeitos, que viciam a reconstrução vaihingeriana do programa kantiano da crítica da razão pura, abrem o flanco a objeções como as de Heidegger, mencionadas anteriormente e que passarei a tratar a seguir.

4 Interpretação fenomenológica heideggeriana do programa kantiano da crítica da razão teórica

É onipresente em Kant a exigência de sensificação dos constructos do entendimento e da razão, pela qual (pelo menos alguns deles) recebem um papel constitutivo da realidade objetiva, teórica ou prática, perdendo, em virtude disso, o status de meros instrumentos de cálculo e passando a representar e a determinar as coisas (embora não as coisas em si). Na sua perspectiva antificcionalista (que tem como pano de fundo a fenomenologia de Husserl), Heidegger apresentou, em vários textos da sua primeira fase, uma interpretação da crítica kantiana da razão pura teórica segundo a qual os conceitos e juízos a priori teóricos de Kant expressam a estrutura ontológica do mundo natural. Darei alguns elementos dessa interpretação.

No entender de Heidegger (1977 [1927/1928], GA 25, p. 10), a crítica da razão pura “não é outra coisa do que a fundamentação da metafísica como ciência”. Em um dos seus sentidos, o termo “metafísica” refere-se à ciência ôntica de certa região do ente que é o

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supra-sensível (p. 15). Heidegger concede prontamente que, segundo a crítica kantiana, tal ciência é impossível (p. 61). Entretanto, Kant teria sido o primeiro a compreender que a tarefa da crítica inclui também a exigência de que seja esclarecido o conceito de ente em geral, isto é, que seja elaborada uma ontologia, uma teoria do ser do ente (p. 15), que, tomada no sentido universal e radical, é a essência da filosofia. Um nome kantiano para a ontologia é “filosofia transcendental” (p. 58), que é tudo, salvo uma filosofia do como se. Outro termo com o mesmo sentido é “metafísica”, não mais entendida como ciência ôntica do supra-sensível, mas como “apresentação do todo do conhecimento puro possível a priori em conexão sistemática” (p. 62). Sendo assim, “filosofia transcendental” e “metafísica” são designações kantianas para a ontologia reeditada na chave da crítica. Essa ontologia foi elaborada por Kant como metafísica da natureza no sentido formal, “o ente sendo entendido como o meramente presente no sentido da natureza em geral”, tanto física quanto psíquica (p. 63). Trata-se, portanto, da ontologia da presentidade, sentido do ser do ente que Kant tomou, de modo não crítico, da “filosofia transcendental” dos antigos (p. 44) e da ciência moderna (p. 63). Em apoio a essa linha de interpretação, Heidegger cita, entre outros textos, o trecho da primeira Crítica, no qual se lê que a filosofia transcendental trata do sistema de “todos os conceitos e princípios que se referem a objetos em geral sem assumir objetos que sejam dados” (p. 64; cf. KrV, B ). Entenda-se, comenta Heidegger, “dados como mera presentidade, quer para o sentido interno, quer para o externo”. A referência de conceitos e princípios aos objetos em geral não significa indicação a algo formal em geral, mas aos objetos, ou seja, aos entes que podem ser encontrados na experiência em geral. Kant não conhece, acrescenta Heidegger, “a ontologia formal de algo em geral no sentido de Husserl”.

Kant notou – essa teria sido, segundo Heidegger, sua descoberta fundamental – que a metafísica como ciência de objetos em geral (restritos, contudo, a meras presentidades) formula os seus conhecimentos por meio de juízos sintéticos a priori (p. 51). Isso conduziu Kant à pergunta:

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como são possíveis os juízos sintéticos a priori? Disso resulta a tarefa fundamental da filosofia transcendental (ontologia) kantiana.9 A solução oferecida por Kant consistiria na tese de que o pensamento puro e a pura intuição do tempo pertencem necessariamente um ao outro. Antecipando a doutrina husserliana de intencionalidade da consciência, Kant teria sustentado que todo pensamento é, por essência, relacionado ao objeto, e que essa relação ao objeto é, primariamente, a intuição. Não se trata de intuição originária (atribuída pela filosofia tradicional a Deus), da qual surge o intuído, mas de intuição finita, humana, que não produz o seu objeto, entretanto, pelo contrário, “apenas se deixa dar o já meramente presente” (p. 85). Sendo assim, “todo conhecimento está a serviço da intuição, repousa sobre o fundamento da intuição dos objetos e serve tão-somente à interpretação e à determinação do que se tornou acessível no intuir” humano (p. 83).

Com o abandono da intuição absoluta, que gera as coisas em prol do encontro imediato com as coisas, cai também, sustenta Heidegger, o conceito de coisa em si e, por conseguinte, o de coisa supra-sensível. As coisas (os entes em geral) são aparecimentos, objetos meramente presentes, e nada mais. “Portanto, quando se nega a coisa em si”, comenta Heidegger, “não se nega o estar presente das coisas que encontramos diariamente, mas tão-somente que, além disso, elas sejam ainda objetos de um Deus faber, de um Demiurgo” (p. 99-100). Essa redução da ontologia à teoria do meramente presente, que exclui qualquer acesso ao supra-sensível, representa uma limitação da possibilidade de elaboração de ontologias explicitada em Ser e tempo e consiste na restrição do acesso ao ente no seu todo à intuição finita, estilização feita a serviço da ciência moderna. Para Kant, diz Heidegger (1996, GA 9, p. 73) ainda em 1964, “objeto significa: objeto existente da experiência da ciência natural”.

Ora, para Kant, a raiz da intuição é a imaginação produtiva a priori. Esta também seria a raiz do pensamento puro. O Espírito (o pensamento puro) não cai no tempo, externo a ele, mas se explicita como tempo, como estrutura e auto-estruturação do tempo. Os juízos

9 Cf., por exemplo, 1977 [1927/1928], GA 25, p. 51; e 1951 [1929], p. 22.

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sintéticos a priori filosóficos são, portanto, determinações puras do tempo (p. 427).10 Como essas determinações têm realidade intuitiva teórica, os juízos sintéticos a priori da filosofia teórica enunciam as propriedades estruturais da experiência possível, isto é, constituem a ontologia geral do mundo sensível. Essa objetificação do ser do ente pode, em seguida, ser dividida em ontologias regionais, que servem de fundamento para o lidar ôntico e, em particular, científico com o ente (p. 3).

Heidegger tentou embasar essa interpretação ontológica da filosofia transcendental com uma análise da Estética transcendental e da Analítica transcendental da Crítica da razão pura. Em Kant, as percepções empíricas não são ficções, mas o único acesso possível aos fenômenos ônticos, isto é, às coisas elas mesmas. As formas da intuição kantianas não são ficções e sim fenômenos; mais ainda, fenômenos ontológicos, traços estruturais das coisas elas mesmas. O espaço e o tempo devem poder mostrar-se, ou seja, devem poder tornar-se fenômenos, se Kant, ao afirmar que o espaço é o a priori de uma ordem, pretende fazer uma afirmação transcendental fundamentada, diz Heidegger em Ser e tempo (cf. 1927, p. 31). Fundamentada como? Mediante as estruturas fenomenais a priori que se mostram em exemplos ônticos da ordem espacial e temporal no mundo sensível. “Os espaços e os tempos são, portanto, em si mesmos, sempre unidos, e, na medida em que são dados como algo puramente intuído, também a sua unidade específica, a totalidade, é dada a priori”, num modo de dadidade que, nas preleções de Marburg proferidas em 1927/28, Heidegger chama de “síndose” (1977 [1927/1928], GA 25, p. 264-265).

Seguindo Husserl das Investigações lógicas, Heidegger sustentará ainda que as categorias são dadas na intuição,11 atribuindo a Kant uma versão ainda mais forte dessa tese: as categorias não se originariam da tábua de juízos, como Kant chegou a sustentar de modo não crítico, mas da intuição (1977 [1927/28], GA 25, p. 211). “O conceito do entendimento

10 Contudo, a posição de Kant não é totalmente satisfatória, visto que este não foi até o fim do problema do relacionamento entre o pensamento puro e o tempo: a saber, não atentou para o fato de o tempo precisar ser entendido como “unidade originária da constituição extática do ser-o-aí [Dasein]” (p. 426).11 Esse ponto é explicitado por Heidegger, com particular clareza, no seminário de Zähringen, de 1973 (cf. 1986, GA 15, p. 375).

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não é dado mediante uma função formal-lógica, mas surge da síntese imaginativa, isto é, relacionada à intuição e ao tempo” (p. 284; itálicos no original). O próprio conteúdo das categorias “origina-se da síntese pura imaginativa relacionada ao tempo” (p. 300). Por isso, é também possível atribuir a Kant a tese segundo a qual a origem das categorias é o próprio tempo (p. 365). A tarefa principal da dedução das categorias é exatamente mostrar que “a intuição pura do tempo e o pensamento puro a priori se encontram numa relação necessária” (p. 425). A interpretação de Heidegger culmina na afirmação de que o fundamento último da dedução das categorias é o esquematismo, teoria da “relação” desses conceitos a formas puras da intuição temporal (p. 431).

A relação necessária entre o pensamento e a intuição inclui a união essencial entre o tempo e o eu penso. Nas preleções de 1925/1926 sobre a lógica, Heidegger escreve: “O eu penso não está no tempo (nessa recusa, Kant está totalmente certo), mas é o próprio tempo, mais precisamente: um modo do tempo, a saber, o modo de pura presentificação” (1976 [1925/1926], GA 21, p. 405). Ora, a relação entre a intuição e o eu penso produz o conhecimento com teor objetivo. Na união a priori com a apercepção transcendental, o tempo, como intuição pura, é “a dimensão da qual todas as determinações a priori da intuição pura pelo pensamento haurem sua legitimidade” (idem). Como, além disso, o tempo possibilita ao Dasein a pura compreensão do ser e das determinações do ser, “as categorias, pela sua própria natureza, são conceitos ontológicos.12

5 As limitações da interpretação fenomenológica heideggeriana da filosofia teórica de Kant

Filologia à parte, várias dificuldades conceituais acompanham essa interpretação, que transforma as categorias em conceitos ontológicos e os juízos sintéticos a priori teóricos de Kant em teses ontológicas – falando na linguagem de Heidegger, em modos de presentificação ou objetificação do ente enquanto ente como objeto.

12 Uma referência sobre esse tema, entre muitas outras, encontra-se em Heidegger 1976 [1925/1926], GA 21, p. 333.

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Para começar, fica difícil aceitar a tese de que Kant excluiu a metafísica do rol das ciências ônticas por ter estreitado o acesso ao ente e, por conseguinte, o conceito de ente em geral a serviço da ciência moderna da natureza. Na primeira Crítica e nos Prolegômenos, Kant deixa muito claro que as dificuldades que assolam a metafísica decorrem do fato de ela afirmar ou negar os juízos sintéticos a priori, que, por conterem idéias teóricas que pretendem se referir ao incondicionado, não podem ser esquematizados temporalmente. Por não poderem ser sensificados, carecendo de realidade objetiva determinada, esses juízos não são possíveis. Eles permanecem sem o valor de verdade determinado e não podem ser provados nem refutados diretamente.13 Sendo assim, a metafísica tradicional não é ciência. Mais ainda, a metafísica, doutrina que emprega juízos sintéticos a priori comprovadamente não-possíveis, jamais poderá se constituir como ciência. Por isso – aqui Vaihinger está muito mais próximo de Kant do que Heidegger –, esses juízos devem ser eliminados do discurso filosófico com pretensões científicas ou, então, reformulados como princípios do como se, de valor meramente metodológico. Essa conclusão não é resultado da redução do conceito de ente em geral ao meramente presente e acessível tão-somente na intuição finita, mas de uma análise semântica dos juízos empregados pela metafísica como ciência do supra-sensível, estudo motivado pelas dificuldades de elaborar uma teoria de prova desses juízos.

Mesmo assim, Kant não deixou “cair” o conceito de coisa em si, nem, menos ainda, “negou” as coisas em si. Em Kant, a expressão “coisa em si” refere-se a objetos que podem ser pensados sem contradição, mas que não podem ser exemplificados na experiência possível (KrV, B 310). Conceitos de coisas em si são sistematicamente usados por Kant em todos os princípios do como se. O referente presumido do conceito de força gravitacional de Newton, por exemplo, conceito amplamente usado por Kant na sua filosofia da natureza, é uma coisa em si. É muito significativo Heidegger ter sistematicamente evitado comentar esses

13 Alguns deles, por exemplo, os cosmológicos, podem ser provados indiretamente, pela redução ao absurdo de suas negações. Mas esse procedimento leva a antinomias.

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princípios tão claramente enunciados por Kant, que, como disse, não admitem uma semântica temporal, mas que, mesmo não tendo uma realidade objetiva, são parte constitutiva da metodologia a priori kantiana da pesquisa empírica. O grande mérito de Vaihinger foi precisamente o de ter chamado a atenção para esse fato. Acrescente-se que a negação da existência de coisas em si é um juízo não-possível, precisamente porque a expressão “coisa em si” refere-se a objetos que não pertencem ao domínio da experiência possível. Tal juízo não pode ser provado nem refutado, não devendo, portanto, fazer parte de nenhuma ciência a priori, nem a fortiori, da filosofia transcendental de Kant.

É igualmente difícil aceitar a tese de que Kant teria concebido a sua filosofia transcendental como ontologia da presentidade. Nos Prolegômenos, Kant (1783, p. 17) apresenta a filosofia transcendental como “uma ciência totalmente nova, na qual ninguém antes tinha pensado, da qual a simples idéia era desconhecida e para a qual nada até agora pôde ser de utilidade, a não ser o aceno dado pelas dúvidas de Hume”. Essa ciência tem uma única tarefa – responder à pergunta: como são possíveis juízos sintéticos a priori? (p. 45). É muito difícil interpretar essas afirmações como um relançamento da metafísica ou da ontologia. Seja como for, na seção “Fenômenos e númenos”, parte estratégica da primeira Crítica, Kant fez uma afirmação decisiva sobre a sorte da ontologia no seu sistema, jamais citada (pelo que sei) por Heidegger. O resultado importante da analítica transcendental, diz Kant, é que os princípios do entendimento são tão-somente “regras de exposição dos aparecimentos”, “devendo o soberbo nome de ontologia – a qual se arroga o direito de fornecer em uma doutrina sistemática conhecimentos sintéticos sobre coisas em geral (por exemplo, o princípio de causalidade) – ceder lugar ao modesto nome de uma simples analítica do entendimento puro” (KrV, B 303). Fornecer uma teoria da exposição dos aparecimentos em conceitos puros ou empíricos – finalidade exclusiva da analítica do entendimento puro – é o mesmo que estabelecer a base de elaboração de discurso teórico determinadamente verdadeiro ou falso sobre os aparecimentos,

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não sobre o ente no seu todo como tal. Kant não refez, portanto, a ontologia geral em termos da uma filosofia da natureza no sentido formal; ele tomou uma atitude totalmente nova na história da filosofia: condicionou a resposta a toda e qualquer pergunta teórica à solução de um problema anterior, o da possibilidade de um discurso teórico significativo em geral. Desta feita, Kant operou um semantic turn na filosofia moderna, passo revolucionário, cuja natureza jamais foi adequadamente apreciada por Heidegger.14 A filosofia transcendental de Kant, tal como apresentada na primeira Crítica, não é metafísica nem ontologia, é uma semântica a priori.

Vários argumentos simples podem ser apresentados para fortalecer essa conclusão (que, sem dúvida, exigiria uma análise mais aprofundada). Um deles consiste em observar que Kant, ao construir o conceito de experiência possível, não visa a responder à pergunta sobre “tudo o que há” – essa é a tarefa da filosofia da natureza –, mas à pergunta de saber como devem ser determinados os objetos de juízos sintéticos não apenas a priori, mas em geral, para que esses juízos sejam possíveis (determinadamente verdadeiros ou falsos) em relação a esses objetos. O conceito de objeto da experiência não tem por fim captar o que há, no sentido de pura presentidade ou de qualquer outro sentido do ser, mas especificar os elementos do único domínio a nosso dispor para assegurar a aplicação determinada dos juízos sintéticos a priori, tarefa central da filosofia transcendental.15 Tendo sido circunscrito com fins estritamente lógico-semânticos, e não ontológicos, esse domínio não esgota o ente no seu todo – na linguagem de Kant, os objetos em geral, que podem ser pensados sem contradição, tomados problematicamente e sem decidir se são algo ou nada (KrV, B 332). Note, ainda, que os objetos kantianos da experiência não são entes no sentido da ontologia tradicional, mas algo = x, isto é, incógnitas, cujos valores são os dados sensíveis, mas que, em si mesmas, não são objetos de conhecimento (KrV, A 251).16

14 Cf. Loparic, 2005 [1982].15 Mostrei, em outro lugar (cf. Loparic, 2004), que, conforme sustenta o Heidegger tardio, a semântica kantiana exclui a possibilidade de uma teoria geral do ente como tal no seu todo.16 Uma explicação detalhada desse ponto encontra-se em Loparic (2005 [1982], cap. 7).

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Há, portanto, boas razões para questionar se a frase da primeira Crítica, B 873, citada por Heidegger (ver anteriormente), realmente afirma que a filosofia transcendental é uma ciência a priori do ente enquanto ente (meramente presente). Acrescente-se que, segundo Kant, o saber que ele chama de transcendental “não se ocupa tanto de objetos, mas com o nosso modo de conhecer objetos, na medida em que este deve ser possível a priori” (KrV, B 25). Num outro trecho, o sentido semântico do conhecimento transcendental é ainda mais claro. Kant avisa que “não deve ser denominado de transcendental todo conhecimento a priori, mas somente aquele pelo qual conhecemos que e como certas representações (intuições ou conceitos) são aplicadas ou possíveis unicamente a priori (isto é, [pelo qual conhecemos] a possibilidade do conhecimento e o seu uso a priori)” (KrV, B 80).

Outro argumento consiste em observar – algo que Heidegger deixou de fazer – que, na primeira Crítica, Kant trata exclusivamente da possibilidade de juízos sintéticos a priori teóricos e que, ao longo da realização do seu programa crítico, ele estendeu essa pergunta a todos os juízos sintéticos a priori, incluindo progressivamente os juízos sintéticos a priori morais, estéticos, políticos, jurídicos, da doutrina da virtude e da história. A fim de assegurar a realidade objetiva de cada um desses conjuntos de juízos, Kant (1797, p. 48) introduziu novos domínios de interpretação, em particular, uma “estética dos costumes”, que tematiza sentimentos morais, predisposições morais etc., e é usada para garantir a sensificação de juízos sintéticos a priori práticos em geral. É óbvio que os juízos morais ou estéticos, por exemplo, não dizem respeito ao que há; portanto, não têm relevância ontológica. A filosofia transcendental ampliada de Kant é, desse modo, uma semântica geral a priori e não uma ontologia da mera presentidade.

A interpretação heideggeriana da Estética transcendental e da Analítica transcendental da Crítica da razão pura também incorre em dificuldades. É difícil ver a relação que haveria entre a estrutura do tempo extático da ontologia fundamental e as estruturas lógico-formais (sintáticas) consideradas por Kant na sua teoria das categorias e dos

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juízos a priori teóricos. Assim como todos os outros juízos sintéticos, os juízos a priori são divididos em quatro classes. Essa divisão, que também se aplica às categorias, não foi contestada por Heidegger. Ora, é mais do que óbvio que ela não tem nenhuma relação com o tempo, nem com a intuição; ela é baseada exclusivamente – Kant é muito claro sobre isso – nas formas puras (isto é, não-interpretadas) do pensamento, estudadas pela lógica formal. O eu penso kantiano, ou seja, a pura função de julgar, é um conjunto de modalidades da síntese discursiva, lógica, e não da intuitiva. Ele não é um modo de presentificação, o qual, por ser uma operação intuitiva, não tem modalidades lógicas.

Quanto às categorias, elas são descobertas e classificadas com base nas formas lógicas dos juízos, que visam a determinar objetos do conhecimento em geral, não tiradas dos modos de temporalização independentes dos juízos e vazios de objetos. A dedução das categorias não mostra que a intuição pura do tempo e o pensamento puro a priori se encontram numa relação necessária, mas sim (como diz Kant ao resumir o resultado da dedução) que nenhum objeto pode ser pensado a não ser mediante categorias (KrV, B 165). Produtos das operações lógicas da mente humana, as categorias expressam as condições também meramente formais que todo objeto precisa satisfazer a fim de poder ser determinado por nós em um juízo. Como um objeto só pode ser conhecido por nós por meio das intuições sensíveis que constituem o domínio de experiência possível, segue-se que as categorias se aplicam necessariamente a esse domínio e só a esse domínio, assegurando, dessa forma, a possibilidade do conhecimento do que é empírico, mas não do que é supra-sensível. A questão de saber quais são as regras de aplicação das categorias à experiência possível não faz parte da dedução, mas do capítulo sobre o esquematismo (KrV, B 167). É, portanto, grave engano afirmar, como faz Heidegger, que o capítulo do esquematismo oferece o fundamento da dedução.

A conexão entre os juízos puros do entendimento e o tempo pode existir, mas não é direta; ela precisa ser estabelecida mediante as regras do esquematismo. São esses procedimentos não-judicativos, e não os próprios juízos do entendimento, que produzem as determinações

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do tempo. Ao sensificarem as categorias e as relações entre elas, afirmadas nesses juízos, as operações do esquematismo temporal permitem que esses produtos discursivos da nossa faculdade cognitiva (esse termo pertence à antropologia) sejam aplicáveis aos fenômenos temporais, ou seja, a aparecimentos em geral. Em outras palavras, o sentido temporal das categorias não faz parte da definição destas, decorrendo da aplicação das categorias às formas puras da intuição mediante regras da semântica kantiana dessas formas (a semântica transcendental de Kant). Da mesma forma, o sentido temporal dos princípios do entendimento não faz parte da definição, nem decorre do modo de produção destes, mas lhes é conferido mediante regras da semântica a priori de Kant.

Seduzido pela regra de Husserl de retorno às coisas elas mesmas e pela tese, tirada de Aristóteles, de que a filosofia fundamental é uma ontologia, Heidegger buscou em Kant uma metafísica que fosse uma ontologia. Perdeu a oportunidade de perceber nele o teórico de regras de conceitualização dos fenômenos, elaboradas com a única finalidade de guiar a resolução de problemas teóricos. Algumas dessas regras são juízos objetivamente verdadeiros, como os princípios do entendimento e certas proposições da mecânica de Newton. Outros não o são, como é o caso dos princípios do como se, juízos que, por carecerem de conteúdo objetivo, não podem ser interpretados como modos a priori de presentificação. Os Prolegômenos para toda metafísica futura que poderá se estabelecer como ciência não relançam a metafísica, são um réquiem para toda metafísica, passada, presente ou futura, entendida como ciência ôntica do supra-sensível ou como ontologia da presentidade.17

As dificuldades da interpretação heideggeriana não se tornam menores pelo fato de ele, assim como Vaihinger, ter reconhecido que a sua leitura de Kant era unilateral e mesmo “forçada” (gewaltsam, 1977 [1927/1928] GA 25, p. 365). A justificativa para tal leitura não são as supostas contradições de Kant, mas a regra que impõe ao intérprete o dever do entender o autor estudado melhor do que ele mesmo se

17 É preciso notar, ainda, que Kant usa o termo “metafísica” também para se referir aos conjuntos de juízos sintéticos a priori que podem ser sensificados, por exemplo, aos primeiros princípios da mecânica. Sobre esse ponto (Cf. Loparic, 2003a).

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entendeu (p. 3). Aplicada a Kant, essa regra permite não apenas criticar as incertezas e confusões deste (p. 334), mas também fazê-lo dizer mais do que disse (p. 67), ir além dele (p. 359) ou, até mesmo, se posicionar contra ele (pp. 261 e 358). Tudo isso precisava ser feito (e foi feito) com Kant por interesses superiores do pensamento humano e da própria filosofia, os mesmos que teriam sido defendidos já por Husserl, contra os neokantianos, com a teoria que afirma o caráter essencialmente intuitivo do conhecimento – não apenas ôntico, como também, e sobretudo, ontológico (p. 83) –, recebendo o seu coroamento pela ontologia fundamental de Ser e tempo, centrada no fenômeno do relacionamento objetificante do homem ao ente como ente e ao ser.

É interessante notar que o Heidegger (1969, p. 63) tardio parece ter chegado muito perto de poder reconhecer vários pontos da crítica que assinalei. No artigo intitulado “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento”, ele admite que a ciência contemporânea desconhece os interesses superiores do pensamento humano, tendo caído, depois de passar por Nietzsche, sob o domínio do positivismo, tomando uma postura essencialmente não-fenomenológica. Mais ainda, Heidegger atribui à ciência um modo de teorizar próximo do preconizado por Vaihinger. O termo “teoria” significa, escreve Heidegger nesse texto, “suposição de categorias às quais é concedida tão-somente uma função cibernética, sendo-lhe retirado todo e qualquer sentido ontológico. O caráter operacional, ligado ao uso de modelos, do pensamento representacional-calculador chega a predominar” (p. 64; os itálicos são meus). Esse tipo de atividade precisa apenas de “lógica, no sentido de lógica formal e semântica” (p. 63).18 Só faltou Heidegger reconhecer que, ao proceder assim, a ciência se comporta como legítima herdeira de Kant, que, já em 1781, iniciou um programa de crítica da razão pura com base na lógica formal da época (a silogística de Aristóteles) e na semântica a priori de conceitos a priori, em particular, de categorias, e de juízos sintéticos a priori em geral (lógica transcendental, disciplina criada pela

18 No original: Logik als Logistik und Semantik. Creio poder reconhecer aqui a influência de uma leitura de Carnap por parte do Heidegger tardio, visível também em outros textos (cf., por exemplo, 1996, GA 9, p. 70). Minha interpretação semântica de Kant e da atividade científica em geral, que desenvolvi em vários escritos, inspira-se nessa mesma fonte.

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virada semântica de Kant), classificando a ontologia entre as doutrinas dogmáticas do passado. Heidegger parece, finalmente, ter reconhecido o fato de a ontologia não ser (se é que realmente foi alguma vez) o fundamento do “lidar científico com o ente”, tendo sido substituída pelos diferentes tipos de discursividade meramente operacional, instituída por Kant e desconhecida por Heidegger durante longos anos.19

Lembro, ainda, que nos seminários de Le Thor, de 1969, Heidegger (1986, GA 15, p. 355) concede o fato de que a atividade cognitiva dos nossos dias, representada de modo paradigmático pela ciência contemporânea, não implica mais a resposta à pergunta fundamental da metafísica (o que é o ente?), produzindo, ela mesma, as categorias para os seus campos de pesquisa, com a finalidade exclusiva de poderem ser usadas, provisoriamente, como guias meramente operacionais, metodológicos, na pesquisa teórica e factual; portanto, sem terem mais “qualquer significado ontológico” ou mesmo descritivo.

6 Observações finais

Vaihinger e Heidegger produziram leituras radicalmente distintas da filosofia crítica da Kant. Cada um reconheceu o caráter unilateral de sua interpretação. Apresentei vários casos dessa unilateralidade. Mostrei – para lembrar apenas os pontos absolutamente cruciais – que as categorias de Kant não são os conceitos meramente ficcionais no sentido enfatizado por Vaihinger, nem têm conteúdo ontológico, como afirma Heidegger. Elas são produtos das operações lógicas da mente humana, que expressam as condições também meramente formais que todo objeto precisa satisfazer a fim de poder ser pensado e conhecido por nós num juízo com conteúdo empírico. Fiz ver que os princípios

19 Essa constatação também põe um sinal de interrogação sobre a tese de Heidegger de que a técnica moderna seria baseada na forma terminal do saber metafísico, resultado da história da metafísica, mas esquecida das suas origens. A história da ciência parece mostrar-me, antes, que a metafísica tradicional não é a fonte nem o fundamento do saber científico, mas uma forma pré-crítica do saber da qual a ciência precisou se livrar a fim de poder progredir. Se essa leitura estiver correta, a reconstrução heideggeriana da história do ser deixa de ser a chave da discussão sobre a origem e o poder da técnica moderna.

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do entendimento não são princípios do como se, privilegiados por Vaihinger, nem teses ontológicas, detectadas por Heidegger, mas sim parte da verdade transcendental, isto é, enunciam as condições de possibilidade de todos os outros juízos sintéticos, tanto a priori como a posteriori, que são parte essencial da teoria das provas desses juízos.

Mesmo unilaterais, as interpretações de Vaihinger e Heidegger esclarecem pontos importantes freqüentemente negligenciados do pensamento kantiano. Vaihinger chamou a atenção para a importância no sistema kantiano dos princípios do como se, os quais, mesmo sem terem valor objetivo determinável, possuem um valor heurístico sem o qual a construção do sistema do conhecimento natural é impossível. Heidegger destacou o caráter intuitivo do acesso aos objetos do conhecimento teórico enquanto tais, deixando, assim, aberto o caminho para uma interpretação da filosofia teórica de Kant não como psicologia, mas em termos de uma semântica a priori do tipo construtivista.

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Recebido em: 23 de janeiro de 2008.Aprovado em: 10 de fevereiro de 2008.

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APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano VI n. 10 p. 101-121 2008

númeRo esPeciAl:Heidegger e a Educação

* Doutora em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora da Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail: [email protected]

A determinação ontológica do Mundo: um perfeito a priori

Sônia Barreto*I

Resumo: O artigo analisa o conceito ontológico de mundo seguindo alguns passos da desconstrução dos conceitos tradicionais de tempo, transcendência e mundo, além da categoria de realidade a qual determina, matematicamente, o grau de efetividade dos aparecimentos, tradicionalmente compreendidos como coisas ou objetos simplesmente dados. Nesse sentido, partimos da afirmação de Heidegger (1988, p. 131), de que “o fenômeno do mundo é o contexto em quê (Worin) da compreensão referencial, enquanto perspectiva de um deixar e fazer encontrar um ente no modo de ser da conjuntura”. Nesta afirmação, fica delimitado o primado ontológico da constituição existencial do Dasein, frente ao primado lógico da constituição categorial do sujeito.

Palavras-chave: Mundo. Realidade. Ontologia. Lógica

World’s ontological determination: a perfect a priori

Abstract: This article analyses the ontological concept of world, accompanying a few footsteps from the desconstruction of the traditional concepts of time, transcendence and world, besides the category of reality, the one what he

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determines, mathematically, the degree of effectiveness of the appearances, traditionally understand as a things or objects simply given. In this connection, we breaked from the afirmation of Heidegger (1988, p. 131), than “The phenomenon of world is the context in which (Worin) from the compreension referencial, while perspective of a leave and make find a being in way of being from conjuncture”. In this afirmation, it is delimited the ontologic precedence from the existential constitution of the Dasein, forefront the logic precedence of constitution categoric from the subject. Key-words: World. Reality. Ontology. Logic.

I

Em Sein und Zeit, Heidegger afirma que a transcendência do mundo se inscreve no horizonte transcendental do tempo. Esta indicação demonstra como comparecem, como são possíveis e qual o sentido dos conceitos de tempo, transcendência e mundo na Analítica da Existência, tanto no que se refere ao passo desconstrucional do método, quanto na perspectiva da referibilidade e a significância possibilitada pelos esquemas ekstáticos da temporalidade. Nessa direção, convém mencionar que uma vez delimitado o horizonte temporal do qual são retiradas as estruturas existenciais, segue-se a interpretação das modalizações da temporalidade, possibilitadas pela desconstrução do conceito tradicional de tempo, assim como pela elaboração do construto unitário ser-no-mundo, haurido da desconstrução da relação sujeito-objeto e da interpretação da significância constitutiva da estrutura do mundo, com base na desconstrução do conceito tradicional de mundo. Tal procedimento não se configura num momento fragmentado do passo construtivo-desconstrutivo do método, mas como sua constituição nuclear, da qual é extraída a Analítica da Existência.

Nessa perspectiva, ser sob o modo da existência significa ontologicamente ser a priori conforme o mundo, o que implica dizer que não ocorre ao Dasein ser primeiramente um ente livre do mundo para depois assumir uma “relação” de conhecimento com este. A cura (Sorge) não é uma soma de partes ou o resultado de um procedimento sintético, mas se constitui numa totalidade estrutural, uma vez que a existência é essencialmente

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mundana e consiste em já ser adiante de si, num modo de ultrapassamento de si, isto porque de fato, existir é decair junto aos entes.

Mas, o sentido da cura (Sorge), que modaliza ou esquematiza os modos de acesso aos entes, é a temporalidade que constitui o ser do Dasein. Usando a terminologia kantiana, o Dasein é constitutivamente o esquema, uma unidade mundana esquematizada temporalmente, uma vez que esquemas constituem sentidos e modos de acessos significativos. Assim, podemos dizer que a estrutura compreensiva do Dasein, em sua interpretação concreta, pode ser lida como uma semântica existencial ou como uma semântica mais originária, uma vez que toda interpretação advém da compreensão que já possui, previamente, a estrutura de algo como algo (Etwas als Etwas) a qual tem sua concreção na cura (Sorge).1

Ora, os esquemas se determinam a partir da existencialidade (Existenzialität) e estes mantêm o nexo ekstático horizontal da temporalidade, o que implica dizer que são esquemas ontológicos e não logicamente determinados. Assim compreendido, o esquematismo pode ser considerado como a dimensão temporal operativa da totalidade estrutural da cura (Sorge) ou, como o âmbito do originariamente semântico, uma vez que Heidegger considera a impossibilidade da compreensão e interpretação fora do mundo, porque sequer pode-se considerar Dasein sem mundo. Sendo assim, o situar-se mundano se abre de fato, enquanto condição de possibilidade da descoberta de entes intramundanos. Esses entes se constituem de um modo distinto do Dasein porque podem ser compreendidos com base na disponibilidade (Zunhandenheit) ou no modo de ser do objeto (Vorhandenheit), uma vez que esses modos assinalam o sentido e a significação referencial.

Se for constitutivo da existência ser de fato essencialmente mundana, e se o “regulador primordial” da unidade ser-no-mundo, (in-der-Welt-sein) a temporalidade, esquematiza ekstaticamente, então pode-se

1 De acordo com Stein (1993, p. 41), “a questão da significabibilidade, ligada ao todo referencial, ao conjunto das remissões, etc., todas elas são vários tipos de expressões que Heidegger quer desenvolver sempre na mesma direção. Na direção de que o caráter ontológico do Dasein já é um caráter que ultrapassa o empírico, mas também está aquém do transcendental subjetivista, do transcendental egóico. O Dasein está posto entre a questão transcendental e empírica, justamente já munido por aquilo que Kant vai introduzir, que é a questão do tempo e a questão do esquematismo, através da imaginação”.

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dizer que os esquemas se configuram em interpretações concretas dos existenciais. Estes esquemas, enquanto condição de abertura e visão prévia, possibilitam a significância e referencialidade (Angewiesenheit) a priori, por isso essa estrutura não é deduzida logicamente, mas fenomenologicamente descrita e interpretada segundo o caráter antecipativo da previsão e da pré-compreensão abertas ekstaticamente.

Contudo, convém ainda assinalar que o caráter apriorístico nada tem de um a priori formal ou interno, assim como o modo da conformidade com o mundo não é algo dado na relação de “correspondência” ou “concordância”, a exemplo do modelo operativo sintético do sujeito transcendental, que encontra o seu lugar primário num enunciado conformado às formas categoriais, como função determinante de um juízo acerca de algo dado. Afastado da estrutura categorial e do tempo que informa os dados externos, a existência (Dasein) é constituída conforme o mundo, quer se determine de modo próprio, impróprio ou indiferente. O ser conforme não comporta representação alguma “entre” Dasein e mundo, porque não há sequer um “entre” que pudesse ainda conformar uma coisa à outra, como ocorre na relação sujeito objeto. Desse modo, a totalidade ontológica estruturalmente articulada como cura (Sorge), significa já ser-em (in Sein) um mundo enquanto unidade.

Mas, perguntar pelo todo estrutural articulado à unidade, considerando a diversidade de suas modificações, equivale à seguinte questão: como é possível a cura (Sorge)? Sabemos que esta não é deduzida, assim como não se funda na identidade indiferenciada de um sujeito, enquanto substancialidade. A condição de ser sob o modo da possibilidade, traduz o primado da estrutura modal da temporalidade e sua estrutura antecipativa. Em vista disso, fica fora do campo aberto a priori, qualquer tentativa de fundamentar o ser real.

Com a abertura de mundo, já se descobriu o “mundo”. Sem dúvida, o ente intramundano no sentido de real, de ser simplesmente dado, pode ficar encoberto. Entretanto, somente com base num mundo já aberto é que o real pode vir a ser descoberto ou ficar encoberto. Coloca-se a questão da “realidade” do “mundo externo” sem se esclarecer previamente o fenômeno do mundo (1988, p. 269).

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Sendo assim, a interpretação fenomenológica não se configura numa busca visando desvendar a pergunta “como a realidade é possível”. Do mesmo modo que o a priori fenomenológico não se constitui em forma pura propiciadora de conhecimento. Na base da fenomenologia está o inacabamento, a incompletude que não quer dizer negatividade, mas somente possibilidade e modificação, o que exclui toda tentativa de prova da realidade, e elimina qualquer pressuposto “atemporal” fundante.

Até aqui, podemos constatar que a pergunta pelo mundo remete ao círculo da repetição da pergunta pelo sentido do ser, na medida que esta requer uma interpretação modal da temporalidade do Dasein, põe o conceito de existência dentro de seus limites e repete, do mesmo modo, a questão do tempo, eliminando com base na possibilidade, o modelo “imortalista de filosofia” e com este, o seu caráter de infinitude e presentidade. Porque o tempo acompanha infinitamente os chamados dados reais, ele é tradicionalmente concebido como presentidade; a via limitativa da existência à esfera da finitude, destitui a principal tese da representação vulgar do tempo, a de que ele é “infinito”.2

Mas a interpretação ontológica do Dasein, em sua íntima conexão com a temporalidade, inclui do mesmo modo, a interpretação da espacialidade (Räumlichkeit), tendo em vista o nexo ontológico possibilitado pela cura (Sorge) enquanto totalidade existencial significante e mundanidade como totalidade referencial significativa. No horizonte da destruição, a consideração da realidade e possibilidade do mundo como problema ontológico acontece com base no retorno à modernidade, “estação decisiva” nesse percurso.

Desse modo, não somente a concepção kantiana do tempo, mas também a de espaço será submetida ao crivo analítico da problemática ontológica do mundo inclusive porque, na semântica kantiana, espaço e tempo constituem o ponto de partida da experiência possível. Tradicionalmente a compreensão do ser acontece a partir do ente e depois é construída, por meio de operações de síntese, enquanto via de acesso na relação sujeito-objeto. Nesta direção, Heidegger considera que a relação

2 Heidegger (1988, p. 232-241).

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tradicional acerca do sujeito e do mundo, compreendida como uma relação entre dois entes simplesmente dados, culminou numa interpretação inadequada. Primeiro encontra-se o sujeito, depois aparece o mundo, mas é justamente o sujeito que suspende o mundo que empreende a tentativa de conhecimento do mundo. Ora, o princípio que guia essas interpretações se ancora, primeiramente, na constituição da subjetividade, considerada desde Descartes como algo evidente por si mesmo. Assim posto, não haveria evidência mais imediata, embora necessitasse de mediação, que a referência de um sujeito a um objeto. Para a ontologia tradicional, este se constitui num pressuposto necessário e ponto de partida evidente. Todavia, considerando-se que o sujeito precisa de algum modo ligar-se ao mundo, a ontologia sempre procurou uma forma de demonstrar como o conhecimento consiste em “ligar” o sujeito ao mundo.

Heidegger compreende o sentido ontológico do ser-no-mundo como estrutura unitária. O que Kant considera o sujeito do conhecimento, que se determina de modo distinto do sujeito da ação, o teórico e o prático, Heidegger encontra na unidade da cura (Sorge). Assim, ontologicamente a compreensão de mundo não acontece como conhecimento do mundo, na medida em que, do ponto de vista da analítica, é considerada vã qualquer tentativa de dedução, ou de prova da relação de conhecimento entre sujeito e mundo, que considerasse, de início, a interioridade do sujeito, referida à exterioridade do mundo, a fim de garantir-lhe realidade, no sentido de efetividade.

Se as estruturas fundamentais do Dasein podem ser visualizadas a partir de seu percurso temporal no mundo, então

A perfectio do homem, o ser para aquilo que em sua liberdade pode ser para suas possibilidades mais próprias (para o projeto), é um desempenho da cura (Sorge). De modo igualmente originário ela determina, porém, o modo fundamental desse ente, segundo o qual ele está entregue ao mundo da ocupação (estar-lançado) (heidegger, 1988, p. 265).

Por isso a investigação ontológica examina, na estrutura da mundanidade, os modos de ser da manualidade e do ser simplesmente

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dado. Mas Heidegger adverte que diante da polissemia da palavra “mundo”, sua clarificação trará à tona “seus nexos referidos nas diferentes significações”, o que demonstra por que a interpretação da significância e da referibilidade suscitam a retomada da tradicional consideração do problema da realidade do mundo, tendo em vista a necessidade de colocá-lo no âmbito de suas condições e limites.

II

Ao questionar as formas tradicionais de investigação e interpretação, ligadas à possibilidade de fundamentar uma prova da realidade do mundo, Heidegger tenta algo totalmente distinto da tradição ontológica. Pela via fenomenológica, ele considera supérflua a necessidade de busca de um fundamento de prova para a existência do mundo. Ao elaborar uma analítica do Dasein, nela fica determinado que sendo este ente o único existente, e estando sua existência determinada pelo fato de ser-no-mundo, então “a existência entendida corretamente, resiste a tais provas porque ela já sempre é, em seu ser, aquilo que as provas posteriores supõem como o que se deve necessariamente demonstrar” (Heidegger, 1988, p. 271).

Nesta direção, a interpretação ontológica do conceito de mundo, não requisita o sujeito do conhecimento, mas parte da interpretação da conjuntura, enquanto modo de ser dos entes intramundanos. Contudo, considerando que a totalidade conjuntural não constitui nenhum manual, este se determina como ser-no-mundo (in-der-Welt-sein) e nesta estrutura a mundanidade pertence à sua constituição. No sentido ôntico, o deixar e fazer em conjunto, no manuseio ocupado com entes que se liberam, é ontologicamente interpretado enquanto liberação prévia do manual ou, descoberta de possibilidade de deixar vir ao encontro, o ente no seu modo de ser. Afastando-se da consideração objetiva dos entes, Heidegger (1988, p. 129) dirá que,

Esse deixar e fazer em conjunto “a priori”, é a condição de possibilidade para o manual vir ao encontro de tal maneira que,

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no modo de lidar ôntico com o encontro dos entes, o Dasein possa deixar e fazer em conjunto, em sentido ôntico. Do ponto de vista ontológico, porém, deixar e fazer ser em conjunto diz respeito à liberação de todo manual como manual.

De acordo com a determinação mundana do Dasein também denominada por Heidegger como um “perfeito transcendental”3, e frente ao modo como a tradição põe a questão do mundo, algumas considerações são retomadas e submetidas à ontologia fundamental. Uma primeira questão diz respeito à aceitação da orientação ontológica do mundo como um quid, como algo que se determina categorialmente em sua quididade. Heidegger pergunta: deve a investigação filosófica indagar acerca do fundamento de legitimidade da realidade do mundo? Como é possível ser no mundo, e ao mesmo tempo ainda exigir provas da existência do mundo? De que modo a analítica estabelece a estrutura a priori que analisa Dasein, mundo e manualidade como unidade?

Heidegger contextualiza a discussão do conceito de realidade no âmbito dos embates epistemológicos, a saber, no âmbito do realismo e do idealismo, com base nas quais, a questão do ser teria tomado uma direção desviante. Nesse sentido, nos voltamos para o diálogo que Heidegger estabelece com Kant, seguindo alguns passos na direção do problema da prova da existência objetiva do mundo, oferecida pela sua semântica transcendental.

Vimos precedentemente, que quando Heidegger nomeia Kant como um “herdeiro de Descartes” torna-se mais clara a alusão feita no § 6 de Sein und Zeit no que se refere ao recuo de Kant frente a

3 Nas notas extraídas da edição de Sein und Zeit, constante das obras completas (Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1977), Heidegger explicita o uso do vocábulo perfeito dizendo que, “no mesmo parágrafo, falou-se da ‘liberação prévia’ – a saber (falando-se em geral), do ser para a possível revelação dos entes. Nesse sentido ontológico, ‘prévia’ significa lat. a priori, em grego προτερον τη φυσει Aristóteles, Física A 1; ainda mais claramente Metafísica E 1025 b 29 το τι τν ειναι ‘o que já foi ser’, o que sempre já vigorou antecipadamente, o passado-presente, o perfeito. O verbo grego ειναι não conhece nenhuma forma de perfeito; esse é aqui evocado no ην ειναι. Não o que onticamente passou, mas o que é sempre mais cedo, ao qual nos referimos retroativamente na questão dos entes como tais; ao invés de perfeito a priori, poder-se-ia também dizer: perfeito ontológico ou transcendental (cf. a doutrina kantiana do esquematismo)” (ST, 1988, § 18, p. 127-134 e p. 304-305, nota 55).

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uma investigação explícita acerca “dos juízos mais secretos da “razão universal”, cuja análise foi apresentada por Kant como o “ofício dos filósofos” (1988, p. 52). A aceitação da evidência da res cogitans e sua preeminência frente a res extensa culminam conseqüentemente, na necessidade de uma prova da existência do mundo, da extensio.

Assim, a falta de uma “analítica prévia”, por parte de Kant, resultou da aceitação da evidência do sujeito. Em conseqüência disso a crítica kantiana precisaria estabelecer condições que permitissem a unidade entre o sujeito e o mundo, o que Kant encontra na “doutrina do esquematismo”. Sabemos que os esquemas transcendentais são processados com as representações dos materiais dados exteriormente, trazidos do mundo, os aparecimentos; o processo sintético que possibilita a unidade das representações comparece na filosofia crítica, como condição determinante para o conhecimento de objetos.

Não é por acaso que Heidegger nomeia Kant como o legítimo herdeiro de Descartes. Kant (1994, p. 347) mesmo ao tratar dos Paralogismos da Idealidade (Da relação externa), dirá que

Descartes tinha razão ao limitar toda percepção no sentido estrito, à proposição: Eu sou (como ser pensante). É claro que como o externo não está em mim, não posso encontrá-lo na minha percepção [...], mas apenas, partindo da minha percepção interna, concluir a existência delas [...].

Ora, não é sem propósito que o estabelecimento de um diálogo com Kant implica, ao mesmo tempo, num retorno à Descartes, às origens da subjetividade, o que inevitavelmente acontece na elaboração de Ser e Tempo. Nessa direção, a interpretação da estrutura constitutiva da existência, em sua conformidade com o mundo requer, também, uma interpretação fenomenológica da Refutação do Idealismo4, empreendida por Kant na Crítica da Razão Pura.

4 Remetendo-se a Kant, Heidegger empreende uma análise fenomenológica da Refutação do Idealismo. Esta refutação foi acrescentada por Kant na segunda edição da Crítica da Razão Pura, a título de demonstração de uma “prova rigorosa [...] da realidade objetiva da intuição externa”.

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Convém lembrar, porém, que a raiz do problema ali tratado reside não somente na aceitação da evidência do sujeito cartesiano, mas também na concepção kantiana do tempo, a qual se move dentro das estruturas ontológicas apresentadas por Aristóteles. Assim, o idealismo semântico de Kant busca um fundamento de prova da existência efetiva de objetos “fora de mim”, na exterioridade do mundo. Este se fundamenta com base num procedimento sintético operado “em mim”, na estrutura interna do sujeito5.

De acordo com a interpretação de Heidegger, na prova de Kant fica já estabelecida a diferença, entre o que constitui uma analítica, no sentido transcendental, e o que significa analítica existencial. Inicialmente essa diferença pode ser assinalada pela necessidade de prova da realidade na filosofia transcendental, fato que resultaria no primado do categorial kantiano frente ao modal heideggeriano, ou seja: na semântica transcendental o tempo deve operar com categorias e esquematizar para determinar objetivamente o conhecimento. Na analítica existencial, as modalizações da temporalidade indicam somente modos possíveis de acesso ao ente, considerando que esquemas existenciais traduzem modificação e significância modal e não determinação categorial. É nesse sentido que consideramos o primado do modal na analítica existencial, frente ao primado do categorial na Analítica Transcendental.

A aproximação com Kant e ainda a diferença em relação a Kant, pode ser também compreendida com base na consideração de Heidegger, quando explica porque empreende uma analítica da existência. Ele diz:

5 Aqui cabe lembrar por que no § 6 de Ser e Tempo, ao tratar da destruição Heidegger afirma que Kant fracassou “na medida em que assume a posição ontológica de Descartes”. Assim, tal como é concebida, a Semântica Transcendental busca, a partir do método de análise e síntese, a solução para o problema da comprovação da realidade de um mundo exterior, frente à realidade interna de um eu consciente e operativo que tem, em última instância, uma raiz originada no mentalismo cartesiano. Em Descartes, cumpre-se de forma radical um giro de cunho subjetivo. Este solipsismo egóico torna patente, em sua pura interioridade, uma exterioridade subjetiva, somente objetivável como mundo, em sua dimensão extensa e constituída como o outro do sujeito, de onde resulta a existência de duas substâncias finitas distintas, a saber, a res cogitans e a res extensa. Temos assim um fundamento novo, resultante das cogitações e do não-ser do mundo apesar de ser incessantemente experimentado. É esta estrutura subjetiva que se alarga, na perspectiva transcendental inaugurada por Kant que, como “herdeiro de Descartes”, empreende uma analítica transcendental na qual concede ao sujeito o estatuto de legislador da natureza, não cabendo mais a pergunta se é possível conhecer, mas como é possível o conhecimento, ou como é possível o mundo? (Cf. loparic, 1985; 1997).

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Kant usa a expressão analítica em sua “Crítica da Razão Pura”. Foi daí que tirei a palavra analítica no título Analítica do Dasein. Mas, isto não significa que a Analítica do Dasein em “Ser e Tempo” seria apenas uma continuação da posição de Kant (Zollikon Seminar, trad. p. 140).

Uma vez que a analítica do Dasein, não é apenas uma continuação da Analítica Transcendental fica indicado, por sua vez, o retorno a Kant e ao mesmo tempo, o ultrapassamento. Mas, voltemos à Refutação do Idealismo. Kant considera um “escândalo da filosofia”, justamente o fato de ainda se admitir a existência somente a título de crença, e não se ter uma prova rigorosa, uma demonstração suficiente das coisas exteriores a nós. Ora, Heidegger também se refere ao “escândalo da Filosofia”, contudo distingue-se de Kant quanto ao fato que origina o escândalo. Para Heidegger, o escândalo se instaura quando se admite a suposta necessidade de sempre se buscar ainda uma prova da existência do mundo.

III

Como é possível o mundo? Esta é uma questão “que de há muito inquieta a filosofia, embora as tentativas de satisfazê-la sempre tenham fracassado” (Heidegger, 1988, p. 89). Somente um “sujeito” desmundanizado poderia perguntar se o mundo existe. Na analítica heideggeriana, a compreensão constitutiva do Dasein possibilita que este ente possa compreender-se como um ente que é o como do mundo. Essa determinação ontológica específica possibilita que uma interpretação desse ente se depare com a interpretação ontológica do mundo. Nesse sentido, Heidegger afasta-se diametralmente da perspectiva do sujeito uma vez que o Dasein dispensa uma “prova da realidade do mundo”.

Assim, se a questão acerca da realidade do mundo tem sua origem nos primórdios da Filosofia, então não é por acaso que ao mesmo tempo em que a questão é posta, prevalece também com ela e numa mesma dimensão, a sua insolubilidade. Essa procura incessante é denunciada por Kant, quando afirma que:

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Por muito inocente que se considere o idealismo em relação aos fins essenciais da metafísica, (e na verdade não é), não deixa de ser um escândalo para a filosofia e para o senso comum em geral que se admita apenas a título de crença a existência das coisas exteriores a nós (das quais afinal provém toda a matéria para o conhecimento, mesmo para o sentido interno) e que se não possa contrapor uma demonstração suficiente a quem se lembrar de a por em dúvida (KrV, B XXXIX, CrP, p. 32, grifo nosso).

Uma leitura atenta da Refutação do Idealismo demonstra primeiramente que a semântica transcendental considera a estrutura a priori das operações categoriais com base na união esquemática entre categorias e tempo, como condição de possibilidade para a determinação objetiva dos dados exteriores. Seguindo a via crítica, podemos afirmar que a construção da semântica kantiana é determinada pelo fio condutor do tempo, como operador dos esquemas, e esta função aponta na direção de uma primazia da forma pura do sentido interno, frente ao sentido externo: o espaço.

De acordo com Loparic (2000, p. 23),

Kant prova que, à medida que deve ser possível o conhecimento objetivo de aparecimentos [...] as formas intuitivas das determinações temporais puras e as categoriais correspondentes a elas têm também que se aplicar a aparecimentos ou intuições empíricas. [...] Essa semântica transcendental, que interpreta “categorias” sobre os domínios das determinações temporais puras e das percepções empíricas, é também chamada por Kant “lógica da verdade” (B 87).

Determinadas as condições operativas mentais, estas funcionam na interioridade do sujeito para determinar a exterioridade do mundo. A unidade sintética no esquema é processada com a mediação do tempo, no qual reside a condição de possibilidade de um ente que se transforma e outro que permanece, ou seja: da existência efetiva, tanto do em mim, quanto do fora de mim.

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Para Kant (1994, BXL), “a realidade do sentido externo está necessariamente ligada à realidade do sentido interno para possibilitar a experiência em geral [...] a consciência de que eu próprio existo no tempo”.6 Certamente Heidegger considera que o grande passo dado por Kant consiste justamente em orientar a questão ontológica em sua articulação necessária com o fenômeno do tempo. Mas, tendo em vista que a demonstração do nexo entre o em mim e o fora de mim não seriam elementos suficientes para justificar uma análise das estruturas da subjetividade, Heidegger considera que teria faltado a Kant uma analítica das estruturas da subjetividade do sujeito que poderia culminar na temporalidade originária e assim reconduziria essas estruturas à base unitária ser-no-mundo (in-der-Welt-sein).

Heidegger (1988, p. 271) faz notar ainda que é justamente esse modo de ser mundano, constitutivo da existência (Dasein) que permanece ainda encoberto na prova de Kant; razão pela qual torna-se ainda necessária a discussão acerca de uma prova. Nesta direção ele dirá que, “O ‘escândalo da filosofia’ não reside no fato dessa prova ainda inexistir e sim no fato de sempre ainda se esperar e buscar essa prova.[...] Insuficientes não são as provas. O modo de ser desse ente que prova e exige provas é que é subdeterminado”.

Assim, na medida em que se busca uma prova, ou ao menos se considera necessária uma prova, tais expectativas são pressupostas e baseadas numa investigação ontológica inadequada. Ao conceber o problema do mundo, dentro de seus limites, Heidegger considera a questão não mais ligada ao fundamento de prova. Agora o que deve mover a questão, não se confunde com provas, mas deve apontar somente para a necessidade de uma ontologia explícita do Dasein.

De acordo com o tratamento tradicional da questão, toda vez que a realidade do “mundo exterior” necessitar de legitimação, haverá sempre um sujeito desmundanizado, mas ávido de conhecimento de mundo e cuja “interioridade” se move na direção de uma compreensão “externa” do ser como algo simplesmente dado. Nessa direção, a pergunta pela 6 Sobre o tema ver Almeida, 1997; Stein, 1987; 1993.

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existência efetiva do mundo, torna-se destituída de sentido, uma vez que esta não comporta uma solução epistemológica.7

A analítica existencial, ao mesmo tempo em que dispensa provas da existência do mundo, exibe um “fundamento mostrativo”, que faz ver o ser-no-mundo (in-der-Welt-sein) como determinação modal de um ente duplamente privilegiado. “O mundo se temporaliza na temporalidade. [...] Se não existir pre-sença alguma, então também nenhum mundo se faz ‘pre’-sente” (Heidegeer, 1988, p. 167). Assim, qualquer tentativa de demonstração da realidade do mundo como conhecimento possível, decidido e estabelecido logicamente, torna-se não somente vaga, mas também fora do propósito que rege a Analítica heideggeriana: torna-se, um “escândalo”.

IV

Consideremos a questão do ponto de vista ontológico: entes intramundanos não se configuram como coisas dadas no mundo, e o Dasein não consiste numa estrutura subjetiva que seria afetada pelos aparecimentos, então as ocupações cotidianas constituem um modo primário e fundamental de acesso ao mundo. O estar-junto do ente intramundano é a condição de possibilidade de acesso aos múltiplos modos da ocupação, dentre as quais o manuseio ocupado. Contudo, Heidegger assinala para o fato de que, desde os primórdios, o ente sempre esteve atrelado à questão do ser, mas chama a atenção para o fato da análise ontológica do mundo constituir, propriamente, uma abertura explicativa do ser e não uma tematização do ente.

Na interpretação fenomenológica o ente aqui tratado é antes de tudo pré-temático, não se constituindo, assim, como objeto de conhecimento, uma vez que não se trata de estabelecer um conhecimento

7 “Descartes radicalizou o estreitamento da questão do mundo, reduzindo-a à questão sobre a coisalidade da natureza enquanto ente intramundano acessível em primeiro lugar. Consolidou a opinião de que o conhecimento ôntico de um ente, pretensamente o mais rigoroso, também constitui a via de acesso possível para o ser primário do ente que se descobre neste caminho. Trata-se, no entanto, de perceber também que mesmo as “complementações” da ontologia da coisa movem-se, em princípio, sobre a mesma base dogmática de Descartes” (Heidegger, 1988, p. 147).

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seguro das propriedades entitativas dos entes, mas tão somente de interpretar a estrutura de seu ser. Ao deparar-se com a análise do mundo, a primeira dificuldade que ocorre é justamente aquela de perguntar previamente qual é o ente pré-temático e encontrar uma resposta, comum e aparentemente evidente que o nomeia, de forma tendenciosa e encobridora, não permitindo que apareça o ente tal como este é em si mesmo.

Heidegger considera que já os gregos, quanto pretendiam falar acerca das “coisas”, utilizavam o termo pragmata. Mas, uma vez que faltara uma justificação ontológica do caráter “pragmático” dos pragmata, estes foram, em conseqüência disso, determinados imediatamente como “coisas”. É importante observarmos que a tradução do termo grego “pragmata” por “coisa”, é já um “costume consagrado” e isto se observa porque quase sempre as traduções vem acompanhadas de uma nota que tenta dizer o que é a “coisa”.8 “Ao se interpelar o ente como ‘coisa’ (res), já se recorre implicitamente a uma caracterização ontológica prévia. A análise que estende a questão dos entes para o ser já se depara com coisalidade e realidade” (Heidegger, 1988, p. 109).

Assim considerada tradicionalmente, a interpretação do ente como coisa permite que permaneça velado o significado mesmo de

8 A questão acerca da coisa, na medida que encobre a tematização do ser, permanece evocada por Heidegger como tema central, mesmo após Ser e Tempo. No curso ministrado em 1935/1936, titulado Die Frage nach dem Ding, Heidegger (1992, p. 16-18) faz a seguinte observação acerca da pergunta pela coisa: “Coisa em sentido lato significa qualquer assunto, qualquer coisa que aconteça, de um modo ou de outro, as coisas que se passam ‘no mundo’, acontecimentos, eventos. Finalmente, há um emprego da palavra em sentido ainda mais lato; foi preparado há muito tempo e generalizou-se, sobretudo, na filosofia do século XVIII. Assim, Kant fala, por exemplo, ‘de coisa em si’, distinguindo-a, de fato, da ‘coisa para nós’, quer dizer, de fenômeno. Uma coisa em si é aquela que não é acessível para nós homens, através da experiência, tal como uma pedra, uma planta ou animal. Qualquer coisa para nós é também, enquanto coisa, uma coisa em si, quer dizer, torna-se conhecida de modo absoluto no conhecimento divino absoluto; mas nem toda a coisa em si é uma coisa para nós. Uma coisa em si é, por exemplo, Deus, tomada a palavra tal como Kant a entende, no sentido da teologia cristã. Quando Kant chama a Deus uma coisa, não quer dizer que Deus seja uma gigantesca formação gazeiforme, que oculta algures a sua essência. Coisa significa aqui, apenas, segundo um rigoroso uso da linguagem, o mesmo que ‘qualquer coisa’, aquilo que é contrário do nada. Podemos, com a palavra e o conceito ‘Deus’, pensar qualquer coisa, mas não podemos experimentar o próprio Deus, do modo que experimentamos este giz, acerca do qual exprimimos em comum e verificamos informações, tais como: ‘se o deixarmos cair ele cai a uma determinada velocidade’. [...] ‘Que é uma coisa?’ Vê-se imediatamente que a questão está mal colocada, pois que aquilo que deve ser posto em questão, a ‘coisa’, oscila no seu significado; com efeito, aquilo que deve ser questionado, deve ser determinado em si mesmo de modo suficiente, para poder ser apropriadamente questionado”.

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“coisa”, além de suscitar a problemática entre coisalidade e realidade (Dinglichkeit und Realität), questões com as quais sabemos que Kant também se ocupara, uma vez que destas também resultam os caracteres ontológicos da substancialidade, materialidade e extensão.

Do ponto de vista fenomenológico, o estatuto categorial encobre o modo primário e mais próximo de acessibilidade do ente. Este vem ao encontro na ocupação como instrumento (Zeug). Uma vez que o instrumento é algo para... (etwas, um zu...) na estrutura do seu ser para (Um-zu) encontra-se uma referência de algo para algo (von etwas aufetwas). Assim, instrumentos são para, quando relacionados num todo instrumental porque no se mostrar da instrumentalidade, reside o modo genuíno de ser do instrumento. Assim, uma vez que o modo primário de acesso, não se constitui primeiramente como uma visão teórica, no sentido tradicional do termo, o ente se mostra, primeiramente, na descoberta do manual. Nessa direção, a compreensão que caracteriza o manuseio, é ontologicamente uma circunvisão (Umsicht), temporalizada e espacializante.

Contudo, no manuseio, o que vem imediatamente à visão, é aquilo que será produto, a obra produzida que caracteriza o para que (Wozu) se usa determinado instrumento. A obra sustenta a totalidade das referências, por isso a visão prévia compreensiva não pode ser concebida como uma atitude ateórica.

A atitude “prática” não é “ateórica” no sentido de ser desprovida de visão. A sua diferença para com a atitude teórica reside não somente no fato de que uma age e a outra contempla, e de que, para não ficar cego, o agir faz uso de conhecimentos teóricos, mas, sobretudo, porque originariamente tanto contemplar é ocupação como agir possui sua visão (heidegger, 1988, p. 111).

Disponível para o manuseio, o instrumento se mostra na manualidade, no modo de lidar que guia o manuseio. Esses referentes utilitários apontam para a totalidade referencial aberta na circunvisão, e formam a significação. Aqui fica acentuada, mais uma vez, a diferença entre a estrutura existencial do Dasein, frente à estrutura categorial do sujeito. O ente que se mostra na ocupação é antes de tudo pré-temático.

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Então, o mostrar-se dos entes no manuseio como instrumentos, acontece antes da sua visualização como entes simplesmente dados à visão. Heidegger (1988, p. 113) enfatiza que

Com a obra, portanto, não se dá ao encontro apenas um ente manual, mas também entes que possuem o modo de ser do homem, para os quais o produto se acha à mão na ocupação. Junto com isso, vem ao encontro o mundo em que vivem os portadores e usuários, mundo que é, ao mesmo tempo, o nosso.

Assim, a cotidianidade não comporta somente o mundo doméstico, mas também o mundo público no qual se descobre a natureza do mundo circundante.

Sendo assim, quando assinalamos para a diferença entre a significância ontologicamente compreendida e a significação produzida pelo entendimento do sujeito, esta mesma diferenciação acontece quando se trata da referência. No âmbito da ontologia fundamental, a referência não se constitui enquanto determinação ôntica de um manual, a medida em que é a constituição ontológica primordial do instrumento, uma vez que mundo já se descobre antecipadamente. A caracterização da constituição instrumental como referência, em nada se assemelha à teoria da coisa, mas tão somente a um específico ser para isso (Dazu), uma vez que, no conjunto instrumental, anuncia-se o mundo.

No modo de ser para (Um zu), os entes vêm ao encontro na serventia, no dano, na possibilidade de emprego, mas sempre como referências determinadas. Nesse sentido, a referência enquanto remissão conjuntural funda-se na serventia e, uma vez que esta constitui a manualidade, não deve, por isso, ser considerada uma determinação ôntica do manual. Assim, a abertura prévia da perspectiva a partir da qual os entes vêm ao encontro acontece porque a compreensão se deixa referenciar nessas e para essas remissões, uma vez que o Dasein já está sempre em relação e constitui a instância originária do significado: o semântico por excelência.

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Recebido em: 10 de novembro de 2007.Aprovado em: 03 de janeiro de 2008.

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Freud se encaixaria no rol dos operários (Handwerker) das ciências naturais? Considerações heideggerianas acerca da psicanálise freudiana

Caroline Vasconcelos Ribeiro*

Resumo: O artigo pretende abordar a veemente crítica de Heidegger à psicanálise freudiana apontando, sobretudo, sua filiação à metafísica moderna e ao modo de proceder das ciências naturais. Tendo como base a obra Seminários de Zollikon – que reúne as atas dos seminários, diálogos e cartas trocadas entre Heidegger e o psiquiatra Medard Boss –, visa a pontuar a concepção heideggeriana de ciência natural, extremamente vinculada à sua leitura acerca da história da metafísica. Em seguida, além de colocar em apreço a natureza da crítica de Heidegger à psicanálise, almeja avaliar a assumida pretensão de Freud em alcançar o estatuto de cientista natural.

Palavras-chave: Heidegger. Freud. Ciências naturais. Psicanálise. Ontologia.

Does Freud fit into the role of a natural sciences worksman (Handwerker)? Heidegger’s considerations on freudian psychoanalysis

Abstract: This article intends to approach Heideggers vehement critics of the Freudian psychoanalysis by pointing out his link with modern metaphysics and the form of his rooting in natural sciences. Based on the Zollikon Seminars – which join the summaries of the lessons, dialogues and letters exchanged

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano VI n. 10 p. 123-158 2008

númeRo esPeciAl:Heidegger e a Educação

* Doutora em Filosofia da Psicanálise pela Unicamp. Docente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: [email protected]

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between Heidegger and the psychiatrist Medard Boss – it stresses Heidegger´s conception of natural sciences, which is extremely linked with his interpretation of the history of metaphysics. Besides considering the nature of Heidegger´s critics of psychoanalysis it intends to evaluate Freud´s proven attempt of achieving the status of a natural scientist.

Key-words: Heidegger. Freud. Natural sciences. Psychoanalysis. Ontology. Por um período de dez anos Heidegger se reuniu em Zollikon,

na Suíça, com psiquiatras e estudantes de medicina com a tarefa de descortinar para este público noções básicas de filosofia e, tendo como guia o seu pensamento, investigar os fundamentos ontológicos subjacentes ao arcabouço teórico das ciências que estudam a saúde e o adoecimento psíquico. Atendendo ao convite do psiquiatra Medard Boss, o filósofo da floresta negra aceitou o desafio de freqüentar a sua casa para ministrar aulas e debater com um público diverso dos seus costumeiros alunos.1 Sendo assim, empenhou-se em preparar preleções que introduzissem o grupo no âmbito da suspeita filosófica. Apresentou o modo de questionamento operado por sua filosofia, ousou analisar temas específicos da clínica psiquiátrica juntamente com representantes desta ciência, investigou com certa minúcia pressupostos metafísicos herdados pelas ciências que estudam os fenômenos psíquicos e ateve-se a conceitos cardeais da psicanálise freudiana munido com sua postura desconstrutora. O resultado foi fecundo, mas não por isso pouco trabalhoso, dada a rígida formação de seus interlocutores e a profundidade dos temas abordados.

Ao fazer referências ao pensamento sobre o ser, ao falar em fundamento, metafísica, ontologia, tradição filosófica, imperativo cientificista, entre outros termos, o filósofo de Ser e tempo, no mínimo, trouxe à baila uma semântica pouco familiar àqueles cientistas. Não é

1 O início da série de seminários data de 08 de setembro de 1959. Na ocasião, Heidegger fez uma conferência num grande auditório da clínica psiquiátrica da Universidade de Zurique. Logo em seguida os encontros passaram a acontecer na casa de Boss, em Zollikon (Cf. boss, 1987). Para a obra Zollikoner Seminare (Heidegger, 1987) usaremos inicialmente a paginação do original e, em seguida, apresentaremos a página da tradução brasileira. Nas citações das obras a seguir, caso haja o registro de duas paginações, estaremos seguindo este modo de apresentação: a primeira referente à original e a segunda à tradução.

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à toa que Medard Boss ressalta – em seu prefácio à obra que reúne as atas das aulas, diálogos e cartas trocadas entre ele e Heidegger, intitulada Seminários de Zollikon – que “[...] a maioria das questões de Martin Heidegger nunca tinham encontrado os médicos formados em ciências naturais, enquanto questões”. Acentuando o desconcerto muitas vezes gerado nas aulas, Boss (1987, XIV/13) acrescenta que muitos participantes “pareciam até mesmo chocados e indignados com o fato de alguém se permitir colocar tais questões”.

Ora, o testemunho do anfitrião Medard Boss não é espantoso, afinal, a pujança dos questionamentos heideggerianos muitas vezes é inaugural até mesmo para representantes da tradição filosófica, quiçá para cientistas naturais. Quer dizer: o desconcerto provocado pela filosofia de Heidegger é incontornável. Em se tratando de cientistas, mais ainda.

Para além de uma mera apresentação de um linguajar impreciso e estrangeiro ao fazer científico, o propósito do professor consistiu também em enfatizar que, para a ciência, a tentativa de pensar o ser, de pensar os fenômenos ontologicamente, “parece arbitrária e ‘mística’” (Heidegger, 1987, p. 21/45).2 Mística porque não está na ordem das urgências, dos resultados e não auxilia planificações e empreendimentos na realidade. Mas, não obstante a aparente perda de tempo em se colocar questões julgadas pouco dignas, Heidegger tentou, sem anunciar explicitamente, criar um enlace entre a supostamente abstrata e inútil filosofia e a vida costumeira. Nas primeiras atas dos seminários podemos testemunhar que os caminhos eleitos para conduzir os cientistas rumo à seara especificamente filosófica foram cuidadosamente preparados. Seguindo passos curtos, o professor tomou como exemplo familiares mesas, copos e estações de trem e indagou sobre os modos de relação que poderiam ser estabelecidas com tais coisas, ou seja, elegeu como o fio condutor para o âmbito da filosofia o que se mostra cotidianamente à mão e tampouco necessita de explicitação teórica para deflagrar

2 Vale pontuar que, para Heidegger, não se trata de um demérito da ciência o fato desta não se ater a questões de caráter ontológico. Entretanto, o que o autor quer acentuar é que, uma vez que esta forma de saber se impõe como a administradora da verdade, tudo o mais fica renegado ao campo da imprecisão e do misticismo.

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intimidade. Assim, perguntando sobre a proximidade das mesas, a presentidade dos copos e as representações dos participantes sobre a estação central de Zurique, Heidegger levantou questões que, aos poucos, foram desconstruindo certezas inquestionáveis. Ao colocar em xeque os assegurados conceitos de presentidade, representação, proximidade, estar-junto, realidade, entre outros, o filósofo, assumindo o risco de parecer perguntar absurdos, revelou àqueles psiquiatras o quanto a visão que eles tinham sobre simples coisas cotidianas estava, silenciosamente, sob a tutela do pensamento metafísico. Neste sentido, tentou mostrar que a filosofia, em particular a metafísica, não consistia em um pensamento trancado em livros seculares, disponíveis apenas para o manuseio de raros leitores. E, não se absteve de alertar que o entendimento da filosofia como algo inócuo e longínquo da realidade em função de sua pouca aplicabilidade, reverberava o vício cientificista que elege a apresentação de resultados imediatos como a única forma de um pensamento fazer-se presente.

O viés utilizado pelo professor para demarcar o modo como a metafísica se faz presente nas mais variadas esferas da vida, mais precisamente, para delimitar o elo entre a história da metafísica e o proceder científico, consistiu na apuração histórico-filosófica do conceito de objeto e de objetificação (Vergegenständlichung). Por diversas vezes Heidegger insistiu em afirmar que toda atividade científica transita e ergue-se sobre um solo ontológico, determinado historicamente.3 Em outros termos: o filósofo preocupou-se em apontar aos alunos o fato de que as ciências particulares se realizam e se consolidam, a partir de um “território” pré-jacente que não é instaurado por esta ou aquela atividade científica.

Este “território” pressuposto pelo procedimento científico é o “território” da objetividade. Refere-se ao âmbito que assegura à ciência a certeza de que ao ater-se ao real, ao entrecortá-lo em domínios regionais 3 Em traços largos, falar em solo ontológico significa acentuar a concepção de ser que subjaz à determinada atividade científica. A palavra grega On é o particípio presente de einai (ser). Então a ontologia, enquanto um lógos sobre o on, é um modo de investigação filosófica, cujo alvo é o ser. Heidegger diferencia esta ontologia tanto das ontologias regionais (preocupadas com determinada região do ser: história, número, arte), quanto das ciências ônticas preocupadas com os entes, não com o ser.

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de pesquisa, encontrará objetos. O problema que daí se segue é da ordem do conhecimento positivo disto que assim se apresenta, nunca da constituição deste apresentar. Claro que a ciência se abala, entra em crise em relação à força de seus métodos. Tal crise, em geral, diz respeito aos modos de apreensão dos objetos visados ou anuncia o aparecimento de fenômenos que escapam aos procedimentos instituídos, impondo reformulações. Mas, por mais pungente que seja a crise de um determinado conhecimento científico, esta não assola o que está pressuposto: a constituição da realidade como objetividade e sua disponibilidade enquanto tal.4 Os abalos que atingem as ciências são do campo dos procedimentos e verificações, contudo, não resvalam sobre a certeza da existência prévia de objetos. Pois, como bem lembrou Heidegger aos cientistas suíços, “para a ciência o âmbito objetivo (gegenständlicher Bereich) já é preestabelecido” (Heidegger, 1987, p. 20/45.)

Para Heidegger, o preestabelecimento deste âmbito a partir do qual a ciência opera foi germinado desde a metafísica de Platão alcançando sua completa configuração com o pensamento moderno, com o pensamento que autoriza o homem, enquanto sujeito cognoscente, a ser mestre e possuidor da natureza.5 A partir deste modo de pensar, ou seja, a partir de Descartes, o “eu”, o “ego” torna-se um sujeito preeminente, um sujeito “em relação ao qual todas as outras coisas se determinam como tais” (Heidegger, 1992, p. 108). O cogito torna-se a força de representação (Vorstellung), de re-apresentar tudo o que se mostra e se apresenta lançado diante do sujeito. Isto que se apresenta e se opõe ao sujeito, por sua vez, passa a ser denominado objeto. Desde então, afirma Heidegger (2006, p. 105) em L’époque des ‘conceptions du monde’, o ente só receberá “a marca

4 Em Ciência e Meditação, Heidegger (2002, p. 53) afirma que a questão acerca da constituição da objetividade pré-jacente ao fazer científico é estrangeira a este campo. Para ele “a ciência nunca pode fazer esta pergunta e, muito menos, questionar esta questão. Na condição de teoria, já se instalou na região da objetividade”. 5 Estamos fazendo referência à sexta parte do Discours de la Méthode pour Bien Conduire Sa Raison et Chercher la Verité dans les Sciences. Escreve Descartes (1987): “[...] il est possible de parvenir à des connaissances qui soient fort utiles à la vie, et qu'au lieu de cette philosopie spéculative qu'on enseigne dans les écoles, on en peut trouver une practique pour laquelle, conaissant la force et les actions du feu, de l'eau, de l’air, des astres, des cieux et de tous les autres corps que nous environnent, aussi distinctement que nous connaissons les divers métiers de nous artisans nous les poirrions emploiyer en même façon à tous les usages auxquels ils sont propres, et ainsi nous rendre maîtres et possesseurs de la nature”.

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do ser” se concebido como objeto. Com isto temos a culminância do que Heidegger denominou nos Seminários de Zollikon de modificação da presença das coisas.

No seminário de 6 de julho de 1965, Heidegger explicou para os cientistas a modificação da presença dos entes em objetividade, da seguinte maneira:

Objetidade (Gegenständlichkeit) é uma certa modificação da presença das coisas. A presença a partir de si mesma de uma coisa é entendida aí pela sua possibilidade de representação através de um sujeito. A presença é compreendida como representação. A presença não é mais tomada como o que é dado a partir de si mesma, mas como aquilo que se contrapõe ao sujeito pensante, como é ob-jezado para dentro de mim. Esta experiência do ente só existe a partir de Descartes, isto é, desde que o homem alçou a condição de sujeito (Heidegger, 1987, 129/126).

O filósofo proferiu a afirmação acima num momento pontual dos seminários, a saber, quando explicitou a mensurabilidade enquanto característica constitutiva das ciências naturais. Na ocasião assegurou que a pretensão para mensurar só pode ser aspirada na medida em que o ente é reduzido à condição de objeto. Além disto, enfatizou a representação (Vorstellung) enquanto modo, por excelência, de contraposição do sujeito diante do objeto; enquanto modo hegemônico de o sujeito dispor e fixar diante de si isto que está aí dado – o objeto.

Com a modernidade, acentua Heidegger (1992, p. 107) em O que é uma coisa?, o sujeito converte-se no “elemento caracterizador do que, em sentido próprio, já está antecipadamente aí para a representação”, o objeto.6

Vale pontuar que, a partir da ótica heideggeriana, a representação não é uma mera apreensão do que se apresenta, do que está aí. Trata-

6 O pensador francês Michel Haar, em Heidegger et l’éssence de l´homme, nos adverte que o homem não decide, um belo dia, tornar-se sujeito. O que implica dizer, com Heidegger, que “sujeito” é uma figura historial, construída ao longo do pensamento metafísico, cuja raiz está na passagem da concepção antiga de subjectum (como o que se sustém constantemente presente) para o subjec-tum cartesiano situado no eu, na alma, na razão, considerados termos equivalentes (haar, 1990; heidegger, 1987).

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se antes de um “procedimento, que procede desde si mesmo, de uma investigação em um setor assegurado, devendo o setor mesmo ser assegurado”. Este asseguramento faz com que o ente não seja entendido como o que está aí, “simplesmente à frente”, “diante de”; este asseguramento faz com que o ente se domestique às regras de apreensão clara e objetiva, posto que “o ataque das regras domina”.7 Estas regras governam o modo como o sujeito deve apreender “algo” clara e distintamente, ou seja, de modo verdadeiro.

Tendo em mãos esta apurada leitura acerca do conceito de representação, Heidegger esclareceu aos psiquiatras suíços possíveis relações entre as conquistas do pensamento moderno e os procedimentos científicos, supostamente alheios ao universo filosófico. Por conseguinte, analisou na aula de 08 de julho de 1965, a segunda Regula cartesiana da obra Regulae ad directiionem ingenii, a qual aconselha que devemos permanecer apenas no âmbito dos objetos cujo conhecimento é seguro e indubitável (Heidegger, 1987, p. 136/131).8 Indicou que, mediante estes imperativos, o pensamento foi enrijecido e emoldurado pela pretensão de certezas e o ente, por sua vez, definitivamente reduzido à condição de objeto representado pelo soberano sujeito do conhecimento. A pesquisa científica, clarificou o professor, dispõe do ente desta maneira, desdobra-se neste território agenciado e aperfeiçoado pela filosofia, em particular, a filosofia moderna.

Em várias de suas preleções na Suíça, Heidegger se empenhou em explicitar para os psiquiatras a herança que a ciência moderna lega do pensamento filosófico, uma vez que a primeira se ergue e se especializa a partir do pré-domínio inabalável da objetividade, ainda que este legado não

7 Estas são citações da nota de fim de página número 9, do texto L´époque des ‘conceptions du monde’, na qual Heidegger (2006, p. 138-145) define com precisão seu conceito de Vorstellung.8 Em Zollikon, Heidegger fez várias referências ao escrito inacabado de Descartes e publicado pela primeira vez meio século após sua morte: o Regulae ad directiionem ingenii. Para o professor é nesta obra que é cunhado o conceito moderno de ciência, na medida em que o filósofo francês, ao expor as regras para conduzir o pensamento, enfatiza, na Regula IV, que o método é necessá-rio para investigar a verdade das coisas. Aqui se estabelecem os princípios a partir dos quais se fundará tudo o que se poderá e se deverá apreender, isto é representar. Convém lembrar que, nos Seminários de Zollikon, Heidegger não só tematiza as regras II, III e IV como também recorre ao tema nos diálogos com Boss registrados durante o período de 12 a 17 de maio de 1965, aconse-lhando ao amigo a leitura da obra. Cf. Heidegger, 1987, p. 244/212. Sobre o assunto ver também: Heidegger, 1992, p. 105.

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seja assumido expressamente. Entretanto, não assumir não significa aniquilá-lo, afinal, como assevera Heidegger (1991, p. 73) em O fim da filosofia e tarefa do pensamento, os cientistas podem “[...] sem dúvida, negar sua procedência, não podem, contudo, rejeitá-la. Pois a pretensão de cientificidade das ciências é a certidão que atesta seu nascimento da filosofia”.

A explanação acerca desta herança metafísica da qual se serve a ciência, deve ter sido recebida com certo espanto na sala da casa de Medard Boss. Ao analisar o processo de objetificação (Vergegenständlichung) dos entes, Heidegger nomeou e ofertou as “certidões de nascimento” (Geburtsbriefe) deste legado. Em seguida, evidenciou o efetivo enlace entre o ofício científico e a aparentemente longínqua filosofia.

O processo de objetificação consiste em fazer de qualquer coisa objeto, subordinar o advento da totalidade dos entes ao domínio objetivo. Isto significa: nada pode advir, vir à luz (aufweisen) que não seja determinado como tal (Heidegger, 1982, p. 46). E tudo advém para um sujeito inquiridor, senhor de sua racionalidade, cuja tarefa é nivelar e explorar isto que a ele se contrapõe. Na esteira desta configuração, o cientista moderno assume a tarefa de investigar e intervir sobre o que já está antecipadamente decidido como realidade – o domínio dos objetos –, esquecendo-se ou sequer percebendo seu caráter dado. É sobre este solo que se tomará como coisa natural e desde sempre configurada a dicotomia sujeito-objeto. Uma vez imposta esta dicotomia como índice elementar de toda relação com o real, caberá ao sujeito, certo do poder de sua racionalidade, forçar tudo o que existe a responder a partir do domínio de sua representação.

O cientista moderno, herdeiro deste processo de objetificação, constitui e especializa seu ofício, interpelando os entes como objetos disponíveis. A própria pretensão de mensurabilidade, repetimos, tem sua execução garantida pela objetividade, tomada como algo indiscutivelmente dado. Em função disto, Heidegger (1987, p. 128/125), numa aula de 06 de julho de 1965, alertou aos cientistas que a mensurabilidade pertence “à coisa como objeto (Gegenstand)”, acentuando que “o medir só é possível quando uma coisa (Ding) é pensada como objeto, representada em sua objetidade (Gegenständlichkeit)”.

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Embora reconheçamos que a filosofia não forneça unidades de medidas para quantificar isto ou aquilo, não podemos concluir que ela nada tem a ver com as pretensões de mensuração pertencentes ao modo como as ciências, sobretudo as ciências naturais, se atêm a determinadas regiões de entes. E, por mais que os experimentos científicos tratem de fenômenos impensáveis e ininteligíveis ao âmbito filosófico, por mais que seus resultados eficazes reforcem a visível inutilidade da filosofia, por mais que seus problemas tenham um caráter de urgência e estejam na “ordem do dia”, aprendemos, com Heidegger, a admitir a filiação da pesquisa científica em relação ao pensamento filosófico. Dito de outra maneira: aprendemos com o professor dos Seminários de Zollikon que filosofia e metafísica não são denominações bibliotecárias que se enclausuram em linhas quando se fecham os livros, muito menos mera diversão de uma elite desocupada.

Mesmo que tenhamos exposto, em linhas gerais, o vínculo entre a filosofia e a ciência, sabemos que a pergunta que intitula este artigo está longe de ter sido respondida. Ou seja, estamos cientes de nossa pendência em relação à análise de Heidegger sobre uma ciência em particular, a psicanálise. Mais que isso: deixamos em absoluta falta de investigação a pergunta inquietante sobre a filiação de Freud ao rol dos cientistas naturais. Seria então, a psicanálise uma ciência moldada segundo os parâmetros das Naturwissenschaften? Eis o que devemos esclarecer a seguir.

A concepção heideggeriana de ciência natural e a caracterização da psicanálise como tal

Inicialmente, julgamos conveniente sumariar a posição de Heidegger em relação à ciência freudiana para depois fundamentar seus argumentos. Para o professor dos seminários suíços tal ciência configura-se enquanto fiel herdeira da metafísica moderna e executora do programa de pesquisa das ciências naturais. Isto autoriza Heidegger a concluir que a psicanálise, enquanto ciência que versa sobre o homem, não só deixa de

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contemplar o existir humano em seus modos não objetificantes de lidar com o mundo e com os outros, como também, ao se impor como modo hegemônico de entendimento da vida psíquica, obstrui a possibilidade de pensá-lo mais genuinamente.

É neste caminho que segue a crítica de Heidegger a Freud.Para a execução de suas veementes análises sobre a teoria

e o método psicanalítico, Heidegger tinha em mãos os resultados alcançados em Ser e Tempo (1927) com a analítica do existir humano, bem como a já referida investigação histórico-filosófica do processo de objetificação.

Uma das características inequívocas do tratado de 1927 é uma abordagem do ente humano que escapa às categorias herdadas da metafísica, quais sejam: animal racional, ego cogito, espírito, sujeito transcendental, enfim.9 Nesta obra, o autor escolhe o termo Dasein – que literalmente significa “ser-aí” – para reunir numa só palavra, tanto a relação do ser com a essência do homem, como também essa referência fundamental do homem à abertura (“aí”) do ser enquanto tal (Heidegger, 1976, 372/58).10 Tal escolha não se deve a um preciosismo semântico, antes, se refere a um pensar fundamental acerca do privilégio ontológico do homem, qual seja: a sua relação com o ser. Tal relação pauta-se originalmente não na subjetividade que representa, mas na compreensão de ser (Seinsverständnis), que abre possibilidades fáticas de sermos no mundo. Esta compreensão de ser não equivale a um domínio teórico sobre o tema, a uma atitude do pensamento representativo-conceitual. A relação do homem com o ser que, ao olhar de cientistas, pode parecer abstrata ou mística, constitui o que nos é mais familiar, uma vez que desde sempre nos movemos neste horizonte. Grosso modo, a compreensão de ser refere-se, de início e na maioria das vezes, a uma relação pré-teórica pautada na lida cotidiana, cravada no âmbito das relações não objetificantes com o mundo.

9 Cf. Heidegger, 2006b.10 Quanto ao termo Dasein, por existir certa diversidade em sua tradução, optamos por mantê-lo em alemão.

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Com este modo de abordar o homem Heidegger rompe com o imperativo moderno que o enclausura na condição de sujeito que objetifica. Pois, como afirma Lévinas (2001) em En Découvrant l´Existence avec Husserl et Heidegger, na medida em que a compreensão de ser não é uma faculdade cognitiva que o homem, ocasionalmente, recorre para tomar conhecimento de suas possibilidades de ação, a distinção entre sujeito que representa e objeto-representado já não pode ser estabelecida como o elemento mais genuíno da relação do homem com o mundo, de modo que o puro aferir objetivante passa a ser visto como uma atividade derivada e não fundante da existência humana.

Ao reivindicar que a dimensão mais fundamental do existir humano não se assenta na representação de objetos e sim na compreensão pré-teórica e cotidiana, Heidegger destrona o binômio sujeito-objeto como índice primevo para o entendimento das relações do homem com o mundo. Para ele, uma ciência do homem que tome tal binômio como algo inquestionável e elementar estará sempre deixando de contemplar o todo do Dasein. A seu ver a metapsicologia de Freud, por reduzir o homem a um aparelho psíquico determinado por forças pulsionais que se dirigem a objetos, acaba por concebê-lo como coisa objetificada, o que torna sua linguagem inadequada para pensar genuinamente o Dasein.11 Tal fato licencia o filósofo apontar Freud como um corifeu da modernidade.

Explicaremos em pormenor a natureza desta crítica de Heidegger ao psicanalista de Viena. Inicialmente cabe-nos esclarecer a característica do olhar heideggeriano sobre a psicanálise freudiana. Evidentemente não

11 Para Freud (1989c) uma descrição metapsicológica de um fenômeno é justamente a que preza em abordá-lo a partir dos pontos de vista dinâmico, tópico e econômico. Esta maneira globalizante de apreender os processos psíquicos é, para o autor, a consumação da pesquisa psicanalítica. Esta perspectiva de análise configura-se como a superestrutura especulativa, cuja tarefa é servir de guia tanto para explicar fatos da observação diária, quanto para a obtenção de novos dados. Quanto à noção de pulsão, vale acentuar que Freud a concebe como uma força constante no indivíduo, como verdadeira força motriz que se origina dentro do organismo. Em A pulsão e seus destinos, o autor (1989a) insiste na necessária presença da representação psíquica ligada às excitações endossomáticas, fonte das pulsões. De maneira sumária, podemos dizer que Freud distingue na pulsão sua origem, finalidade (Ziel) e objeto. Essa energia propulsora de ações teria então uma fonte (Quelle) dentro do organismo, uma espécie de excitação de origem somática, tendo como finalidade a remoção desta. Para atingir tal finalidade, precisa de um objeto (Objekt), escolhido em função das vicissitudes da história do sujeito, sendo contingente e variável, cobrindo uma envergadura que pode englobar desde o próprio corpo do indivíduo aos mais diversos objetos externos.

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se trata primordialmente de uma abordagem científico-epistemológica, de uma abordagem que discuta exclusivamente sua eficácia, sua operacionalidade, enfim, sua capacidade de solucionar problemas clínicos e teóricos. Não que este horizonte não tenha sido vislumbrado em suas análises na Suíça, mas, vale ressaltar que seu olhar incidiu, especialmente, sobre os pressupostos ontológicos que, implícita ou assumidamente, fundamentam o edifício desta ciência.

Afirmar que nos Seminários de Zollikon o endereço privilegiado da crítica heideggeriana foi a psicanálise de Freud, não significa dizer que outros ramos das ciências dos fenômenos psíquicos passaram incólumes em relação ao criterioso olhar deste filósofo. Em particular, cabe lembrar que a pretensiosa Daseinsanalyse psiquiátrica de Ludwig Binswanger recebeu um duro apreço da parte de Heidegger, que além de salientar os equívocos desta apropriação psiquiátrica dos resultados de Ser e tempo, eximiu-a de qualquer filiação intelectual ou compromisso filosófico com seu pensamento.

De um modo geral, Heidegger referiu-se à psiquiatria e à psicanálise, todavia, seus comentários e análises pormenorizados incidiram prioritariamente sobre a ciência freudiana. Seu principal argumento, certamente recebido com desconforto numa sala da casa de Medard Boss, consistiu em enquadrar esta ciência no rol das ciências da natureza – das Naturwissenschaften – e apontar a forte presença da tutela da “teoria kantiana da objetividade” em sua doutrina.

Para os psiquiatras suíços Heidegger acentuou que a psicanálise, comportando-se como fiel executora do programa kantiano para as ciências é regida pelo princípio de causalidade definido por Kant na seguinte frase de sua Crítica da Razão Pura (A189): “Tudo que acontece pressupõe algo que segue segundo uma lei”.12

12 Heidegger (1987, p. 176/160). Aqui vale pontuar a interpretação de Loparic sobre o programa kantiano para as ciências da natureza. Para o autor, trata-se de um programa a priori de pesquisa empírica, um guia para a pesquisa, que especifica: 1) a estrutura interna dos problemas relativos aos aparecimentos pertencentes aos domínios físicos e psíquicos, 2) os métodos de solução destes problemas e 3) as condições gerais para a aceitação das soluções encontradas (Loparic, 2000, p. 32). Veremos mais adiante que o préstimo básico deste programa é sua função heurística. Sobre o princípio de causalidade definido por Kant, conferir: Loparic, 2004.

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Para que entendamos este enquadre da psicanálise no rol das ciências naturais, reputamos que seja pertinente definir o que Heidegger assim nomeia. Pois bem. Nos Seminários de Zollikon, sua definição de ciência natural é categórica e sumária. Em suas aulas concentrou-se em explicitar que tal insígnia refere-se à ciência que representa, objetifica, mensura e calcula os entes, estabelecendo leis causais. Isto posto, o filósofo se encarregou de investigar histórico-filosoficamente estes elementos constituintes do modo de proceder das ciências naturais. Elegeu a física clássica como seu emblema maior, analisou seus pressupostos ontológicos salientando como esta ciência “força” e predetermina a natureza a “co-responder”, enquanto objeto, às condições de manipulação e mensurabilidade, regidas por inequívocas leis de causalidade.13 O desdobramento desta perspectiva consiste no encarceramento da natureza na condição de um objeto representado por um sujeito soberano, que dela se apropria a partir da sóbria frieza que calcula e da prosaica planificação que oferece garantias. No âmbito científico não encontramos o questionamento acerca da proeminente disposição do ente para a representação. Isto pressuposto, resta ao cientista executar e especializar pesquisas, conduzidas no garantido reino da objetividade.

Tendo em mãos esta concepção de ciências naturais Heidegger designou a psicanálise como fiel representante destas ciências. Fez isto desde o segundo encontro com aqueles psiquiatras suíços, desavisados acerca da postura desconstrutiva que iriam testemunhar ao longo de dez profícuos anos. Já na segunda ata dos seminários – que data do dia 24 de janeiro de 196414 – temos o registro do quanto o filósofo abalou qualquer pretensão de salvaguardar a psicanálise da condição de corifeu dos imperativos da modernidade. Sem meias palavras, afirmou que Freud, ao realizar uma “observação psicodinâmica” dos fenômenos

13 Sobre a caracterização das ciências naturais, conferir: Heidegger, 1987. p. 23/47; 28/50; 28/51, 157-173/147-154.14 A conferência de abertura dos seminários (1959) foi registrada em ata. Só depois de quase 5 anos de encontros é que Boss resolveu, ele mesmo, “[...] transcrever palavra por palavra cada afirmação de Martin Heidegger”. Deste modo, entre a primeira e a segunda ata temos um hiato de mais de quatro anos. Importa dizer que depois de datilografadas, as atas eram encaminhadas para o autor em Friburgo. Segundo Boss (1987, p. XIV/12), “ele corrigia com o maior cuidado, acrescentava aqui e ali pequenas e, às vezes, também maiores observações com sua letra gótica e o devolvia para mim, assim, corrigido e complementado”.

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clínicos, “toma como real e como ente”, mais precisamente, “como real e verdadeiro” aquilo que “pode ser subordinado a ininterruptas conexões causais de forças psicológicas”. Ao fazer tal assertiva, imediatamente remeteu os alunos à figura do então mundialmente conhecido físico moderno Max Planck que, textualmente, assegurou que “só o que pode ser medido é real”.15

Esta aula deu o tom do que adviria nos próximos encontros: a marcante associação da psicanálise freudiana com a física clássica e, consequentemente, com a ciência natural, e a denúncia de sua incapacidade de pensar genuinamente o existir humano, visto que sua linguagem objetificante – devedora da metafísica moderna – não abrange o ente humano de maneira devida, uma vez que o homem não é redutível a uma mera objetividade. Certamente estas afirmações não poderiam ser recebidas com a passividade de quem se convence de imediato, deste modo, não foram poucas as insurgências dos participantes destas preleções. Em algumas aulas o visível incômodo foi veiculado através de perguntas incisivas, impacientes pedidos de esclarecimentos acerca de temas que, até o fatídico encontro com o pensamento de Heidegger, lhes pareciam banalmente óbvios. Não por acaso temos o registro de um esclarecimento heideggeriano sobre sua postura de professor. Trata-se da aula de 05 de novembro de 1964, na qual Heidegger caracteriza a peculiaridade de seu horizonte filosófico, com a seguinte afirmação:

No intervalo pareceu haver uma certa admiração de alguns pelo fato de persistirmos tanto em determinadas palavras. Seria um grande erro ver nisto um capricho pessoal de nossa parte. Pois uma determinada palavra da língua diz isto e apenas isto, e este é o segredo da língua. Por isso não se pode simplesmente falar a esmo e usar quaisquer chamados sinônimos para as mesmas coisas (Heidegger, 1987, p. 41/60).

O rigor característico das análises etimológicas e filosóficas, caras a Heidegger, foi recebido com certa impaciência. Mas, gradativamente, os

15 Todas as citações encontram-se em Heidegger, M. 1987, p. 07/36. O filósofo também se refere a esta frase de Planck no texto “Ciência e meditação”, tematizando-a em pormenor (2002, p. 49).

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psiquiatras foram criando fôlego para tolerar as minuciosas peregrinações heideggerianas em torno de temas que gozavam de uma suposta transparência conceitual. Os pretensamente esclarecidos conceitos de tempo, espaço, corpo, objeto, representação, causalidade, entre outros, foram enfocados com uma radicalidade capaz de dispensar as certezas advindas do consenso científico, obrigando os ouvintes a direcionar a atenção para as raízes do que, até então, se mostrava assentado e assegurado pela ciência. Esta radicalidade caracterizou a desconstrutora postura do filósofo nas aulas da Suíça.

Convém entender a natureza de uma desconstrução de molde heideggeriano, peculiar não só em suas análises em Zollikon, mas em todo seu percurso de pensamento. De modo sintético, no que tange à ciência, vale ressaltar que a pujança desta atitude desconstrutora não envolve hostilidades nem lamentações em relação à inevitável e maciça presença dos feitos científicos nas mais variadas esferas da vida. Tal atitude pretende pensar criticamente a sua impostura como administradora do real. No caso específico das aulas na Suíça, pretendeu também perguntar se a ciência psicanalítica, na medida em que é servil aos ditames das ciências naturais e da objetividade moderna, alcança o homem de maneira plena, em todos os seus modos de existir.

Mas, o que precisamente define o modo como Heidegger concebe a ciência natural?

Almejando atender a esta indagação podemos começar pela análise de uma característica que é peculiar ao procedimento científico-natural, mesmo que de modo subjacente. Qual seja: a eleição da representação como via de acesso ao real.

Ora, se tomamos a representação com elemento fundante das relações com o real, confirmamos a máxima moderna de que este último, enquanto conjunto de objetos, deve oferecer-se servil aos ditames da racionalidade que planifica e calcula. Como dissemos outrora, o que está implicado na eleição da representação como índice primevo da relação com o real, é o asseguramento de sua objetificação (Vergegenständlichung). Neste sentido, ressalta Michel Haar (1990), a representação é uma

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procura indiscreta e indiscriminada que visa apossar-se totalmente do ente pela racionalidade calculante. Segundo ele, tanto o método cartesiano, quanto a busca kantiana pelas condições de possibilidade do conhecimento em geral, quanto a vontade de poder nietzscheana são figuras da agressividade crescente da representação.

Esta agressividade se dirige a tudo o que é real, ou melhor, decide, de antemão, o que é real. Desta decisão se vale a ciência moderna! Mais que isso, os desdobramentos desta decisão e os feitos intervencionistas que ela pode engendrar passam a ser administrados e consolidados por esta ciência. De modo que, ao invés de tomar a filosofia como algo repugnante e longínquo das fronteiras das atividades científicas, um cientista que, mobilizado pelas provocações heideggerianas, pretenda refletir sobre seu ofício, deve, mesmo que de forma reticente, reconhecer a “tutela da metafísica da subjetividade”.16 Em outras palavras: deve admitir que a ciência, ao invés de ser responsável pela fundação do “território” da objetividade é, ao contrário, ela mesma fundada em pressupostos decorrentes desta metafísica.

Esta admissão certamente não poderia advir de Freud, uma vez que na conferência de número XXXV, intitulada A questão de uma Weltanschauung, ele assegura que a filosofia além de não exercer influência direta sobre a grande massa da humanidade é objeto de interesse de uma elite restrita, estando fadada a ruir ante cada novo avanço da ciência, por pretender um quadro do universo sem falhas e absolutamente coerente. Ao reduzir toda a filosofia a este sistema, Freud não considera injustificado o ácido comentário do poeta Heinrich Heine quando diz que o filósofo “com seus barretes de dormir e com os trapos de seu roupão de noite, ele remenda as falhas do edifício dos mundos (die Lücken des Weltenbaus)”.17

16 Loparic, 2001, p. 137.17 “Mit seinen Nachtmützen und Schlafrockfetzen/Stopft er die Lücken des Weltenbaus”. HEINE, H. Die Heimkehr, LVIII. In: Freud, Band I, p. 588/157. A primeira página referida concerne à edição da Studienausgabe, Band I e a segunda refere-se à tradução brasileira. Quanto à relação de Freud com os filósofos vale esclarecer que, apesar deste tom mordaz para com a filosofia, o cientista não se furta de fazer referências a temas filosóficos e até mesmo, de utilizar termos de filósofos como Kant e Theodor Lipps.

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Esfarrapadas ou não, as pretensões do pensamento moderno longe de estarem ilhadas em obras obsoletas ou de serem alardeadas como o último sopro proveniente de remendos decadentes, se impõem de maneira incisiva, ao consolidar a vigência do real como objetidade (Gegenständlichkeit).

Ao expor o virulento perfil da ciência moderna Heidegger insiste falar em previsibilidade, determinações causais, exploração e perseguição do real em termos de conseqüências, asseguramento da objetividade e processamento à vontade dos objetos. Tanto nos Seminários de Zollikon como na obra Ciência e meditação acentua seu poder domesticador. Este presunçoso poder é expresso com veemência na já citada frase do físico Max Planck, que afirma que real é o que se pode medir.

Esta assertiva de um físico deve valer exclusivamente para as ciências naturais – que têm a física como emblema – ou serviria para a ciência moderna como um todo? O que tal afirmação teria a ver com a ciência que trata do adoecer e do sofrimento psíquico?

Para Heidegger a referida frase de Max Planck “só é correta por expressar algo que pertence à essência da ciência moderna e não apenas das ciências naturais”, a saber, o cálculo como procedimento processador do real. Contudo, convém alertar – antes que se insurjam vozes defensivas a favor das ciências que não lidam com números e quantificações – que, para Heidegger, estritamente falando, calcular significa “[...] contar com alguma coisa, ou seja, levá-la em consideração e observá-la, ter expectativas, esperar dela alguma coisa”. O que implica dizer que “[...] toda objetificação (Vergegenständlichung) é um cálculo, quer corra atrás de efeitos e causas, numa explicação causal, quer, enfim, assegure em seus fundamentos um sistema de relações e ordenamentos”.18

Aqui testemunhamos o alargamento da noção de cálculo e, consequentemente, de ciência natural. De sorte que, de maneiras diferentes, se pode fazer ciência natural a partir do processamento de diversas regiões de entes, e, salvo estas diversidades, o que unifica este procedimento é o imperativo que força o real a responder pelo crivo da objetidade, logo, da mensurabilidade. O procedimento científico-natural 18 Todas as citações retiradas de Ciência e Meditação, in: Heidegger, 2002, p. 49-50.

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se move decisivamente neste território do mensurável e do calculável. Se entendido de modo suficiente, este é o território que força os fenômenos a responderem como objetos, o que não significa, necessariamente, números e quantias.

Heidegger esmerou-se em clarificar esta diferença para os participantes dos seminários de Zollikon, dedicando praticamente duas aulas inteiras ao tema – as dos dias 06 e 08 de julho de 1965. Depois de estender o calcular a uma operação que, originariamente, “conta com algo” e elencar os vários sentidos que podemos “contar com” alguma coisa, o filósofo incorreu sua análise sobre a faceta deste calcular na pesquisa científica. Clarificou então que, para as ciências naturais, mensurabilidade significa calculabilidade (Berechenbarkeit), ou seja, significa “[...] uma observação da natureza que permite saber com que podemos contar em seus processos” (Heidegger, 1987, p. 135/131).

Este modo de conceber a natureza refletirá, necessariamente, no estabelecimento do modo de acesso a ela. Sendo assim,

Se a natureza for colocada em relação à mensurabilidade de processos espaço-temporais, a natureza estará num projeto que não permitirá vê-la como algo presente repousando em si, mas ela será re-apresentada como objeto em que o perguntar que pesquisa interferirá no modo da pré-mensuração e controle. Re-presentar-se (vor-zu-stellen) como objeto é uma forma de representação inteiramente moderna (heidegger, 1987, 184/166).

Descartes, Newton e Galilei são pensadores emblemáticos da germinação deste pensamento moderno que instaura um modo de apreensão da natureza que, em última instância, a força a responder e a co-responder às condições de calculabilidade.19 Daí se segue que todo ente, com o qual desde sempre “já se conta”, deve mostrar-se como objeto. O “contar com” não é um cálculo ou operação numérica, mas sua condição de possibilidade. De modo que qualquer quantificação é algo derivado da maneira como o pensamento moderno institui a única forma de acesso à natureza: a representação.19 Sobre a distinção da experiência grega de natureza e a moderna, ver O que é uma coisa? Nesta obra, Heidegger (1992, § 16 a 19) explicita a diferença entre a concepção aristotélica de natureza e de movimento, e as de Newton e Galileu.

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Clarificada a histórica consolidação do solo sobre o qual uma ciência da natureza é autorizada a intervir no real, mediante cálculos e planificações, podemos compreender a afirmação de Heidegger (1976, p. 28/54) em Introdução à metafísica, que assevera que “todo pensar científico é uma forma derivada e, como tal, consolidada de pensamento filosófico”.

O caráter preliminar do que a filosofia institui, consente a Heidegger (1987, p. 265/225) afirmar, num diálogo com Medard Boss, que os cientistas “naturais de hoje são apenas operários (Handwerker) que seguem dentro do âmbito que já lhes foi descoberto há muito tempo”. Aqui seria factível perguntar: Freud se encaixaria no rol deste operariado?

Freud, as ciências naturais e a tutela da metafísica moderna

Encontramo-nos agora diante da tarefa de decidir, não só a partir de Heidegger, se Freud é um operário das ciências naturais que, como tal, desenvolve sua atividade científica no âmbito há muito instaurado pela filosofia, em particular a moderna. Salientamos que não é só a partir das asserções do professor de Zollikon que avaliaremos o mestre de Viena, pois pretendemos “chamá-lo” para expressar sua posição.

No que tange à Heidegger (1987, p. 260/222), tomaremos como elemento iluminador do caminho que almejamos traçar, sua veemente afirmação: “A metapsicologia de Freud é a transferência da filosofia neokantiana para o homem. De um lado ele tem as ciências naturais e de outro a teoria kantiana da objetividade”. Tentaremos explanar de modo mais detalhado a marcante presença destes dois elementos no bojo do pensamento freudiano, particularmente, em sua metapsicologia.

Todavia, antes de enfocarmos esta herança apontada por Heidegger no interior do pensamento freudiano, vale a pena retomarmos a primeira opinião emitida por Heidegger sobre o fundador da psicanálise, registrada na segunda ata dos Seminários de Zollikon. Ao colocá-lo lado a lado do físico Max Planck, Heidegger (1987, p. 07/36) afirma: “Em relação ao que se toma como real e como ente: só é real e verdadeiro

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aquilo que pode ser subordinado a ininterruptas conexões causais de forças psicológicas, na opinião de Freud”.

Esta suposição de que só obtém o estatuto de real o que pode ser subordinado a conexões causais sem falhas é, para Heidegger (1987, p. 08/36), “fundada numa aceitação (acceptio). Pois admite-se naturalmente: ser=conexão causal calculável de antemão”. Segundo o filósofo, nesta premissa o homem também é englobado na condição de objeto causalmente explicável. Na base desta acceptio, Heidegger localiza a maneira como Kant representa a natureza de maneira científico-natural, nomeando-o porta-voz destas ciências, na medida em que define a natureza por sua legalidade, por sua submissão a leis gerais. Ao apontar Kant como patrono das ciências naturais, o filósofo lembrou aos alunos suíços uma passagem da Crítica da Razão Pura (B165) que afirma que a natureza é a legalidade dos fenômenos no espaço e no tempo, e uma passagem dos Prolegômenos a uma Metafísica Futura na qual o autor assegura que a natureza é a existência (Existenz) das coisas, determinadas por leis causais.20

Determinada desta maneira, a natureza é compelida a responder no modo da legalidade, das leis gerais, o que a reduz a um movimento espaço-temporal de pontos de massa. Ao executar procedimentos científico-naturais, o cientista assenta-se nesta legalidade.

Em seu artigo As especulações metapsicológicas de Freud, Fulgencio (2003, p. 148) lembra que Kant advogou pela presença de uma metafísica da natureza por trás de toda ciência natural. Em seguida, cita um trecho da obra Princípios metafísicos da ciência da natureza no qual o filósofo de Königsberg afirma que o caráter metafísico subjacente a uma ciência da natureza está no estabelecimento de princípios, isto é, de leis que não são empíricas, que não se dão na intuição a priori, mas regulam o uso do entendimento, determinando sua extensão.21 Por carecer da pedra de toque 20 Kant, I. Prolegomena zu einer künftigen Metaphysik, die als Wissenschaft wird auftreten können. Hamburg: Hg. K. Vorlander, 1969, § 14. Apud: Heidegger, M. 1987, p. 31/52.21 Cabe aqui explanarmos, grosso modo, a maneira como Kant inaugura uma mudança radical no modo de conceber o objeto. Para ele, nossa razão pode, a partir das idéias, pensar objetos além da experiência, porém, para conhecer algo é preciso provar sua realidade objetiva, isto é, atribuir ao conceito, por meio de uma intuição a ele correspondente, um objeto da experiência. Por isso, Kant (1985, A 46-47) nos alerta que apesar da idéia ser uma representação, uma representação ainda não é conhecimento. Em suas palavras: “Para que uma representação seja conhecimento (entendo aqui sempre um conhecimento teórico), é preciso que o conceito e a intuição de um

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da experiência, estes princípios e leis fornecidos pela razão são conceitos puros, são idéias. Neste sentido, Fulgencio aponta que, para Kant, estas idéias, apesar de não serem verificáveis, funcionam como ficções heurísticas capazes de organizar o uso sistemático do entendimento no campo da experiência. Estas ficções são convenções, sem correspondência empírica, que organizam especulativamente a compreensão dos fenômenos. Por serem inverificáveis na empiria, são considerados por Kant como princípios metafísicos que guiam a pesquisa empírica.

Loparic, no texto As duas metafísicas de Kant, define com precisão a função da aplicação de princípios a priori ao campo da natureza material. Segundo o autor (2003, p. 5-6):

A função básica desses princípios é heurística: eles são usados como guias da pesquisa empírica no domínio de objetos materiais sensíveis, ou seja, como princípio a priori da atividade de resolução de problemas, desenvolvida pela ciência empírica. O objetivo principal da metafísica da natureza não é o de simplesmente expor a estrutura a priori da natureza, mas o de permitir a elaboração de regras de resolução dos problemas empíricos da ciência da natureza à luz de enunciados que caracterizam a estrutura desse objeto de estudo.

Uma vez que estes princípios não apresentam validade objetiva, por não possuírem correspondentes empíricos, não podem ser considerados verdadeiros ou falsos, e, sendo assim, são factíveis de ser descartados ou substituídos por outros que assumam melhor utilidade, que se mostrem mais frutíferos na resolução de problemas. O maior préstimo destas convenções heurísticas é a descoberta de leis que regem os fenômenos e a determinação das relações entre eles.objeto estejam ligados na mesma representação, de maneira que o primeiro seja representado tal como ele em si contém a última”. Kant nos assegura que só conhecemos a priori nas coisas o que nós mesmos nelas colocamos. Entenda-se “o que colocamos nas coisas” como as configurações que a faculdade de conhecimento impõe às coisas para percebê-las como objetos da experiência, como fenômenos. A experiência, por sua vez, fornece a matéria, o diverso do fenômeno, para que possa ser ordenado no espírito segundo princípios e conceitos a priori. Com respeito às intuições, a configuração dos objetos é realizada pelas formas puras da sensibilidade: o espaço (a forma do sentido exterior) e o tempo (a forma do sentido interior). O que implica dizer que só temos acesso a fenômenos espácio-temporais. Com respeito ao entendimento tais configurações são feitas pelos conceitos puros (Kant, 1994, B34-37).

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Sobre este “solo” germinado pelo projeto kantiano de ciência da natureza, ressalta Fulgencio, cientistas tais como Fechner, Helmholtz, Brücke conduziram suas pesquisas impulsionados por ficções heurísticas – destinadas a facilitar o acesso e a ordenação do material empírico – cuja utilidade sempre foi admitida de forma momentânea e provisória (FUlgencio, 2003, p. 146-147). Estes homens receberam não só o respeito do jovem Freud, como também uma admiração que lhe foi inspiradora. Em Um estudo autobiográfico (Selbstdarstellung), comentando acerca do seu interesse difuso por vários campos da ciência e da medicina propriamente dita, Freud (1996a, p. 17) lembra que só no Laboratório de Ernst Brücke encontrou tranqüilidade e satisfação plena para trabalhar. Com o “grande Brücke”, o então estudante de medicina S. Freud, desenvolveu inclinação para concentrar seus trabalhos em um único assunto, qual seja, pesquisas fisiológicas que começaram analisando a medula espinhal de um peixe dos mais inferiores, evoluindo até seu sistema nervoso central.

Ernst Jones, em Vida e Obra de S. Freud, ressalta o respeito e a admiração que Freud nutria em relação à autoridade de Brücke, tomando-o como exemplo de cientista disciplinado, em relação ao qual, ele próprio, gostaria de se espelhar. Jones (1974, p. 73) destaca que Brücke – com suas Lições de Fisiologia publicadas em 1874 – apresentou ao cenário científico uma obra estritamente vinculada ao aspecto dinâmico da fisiologia. O autor nos lembra que Brücke afirma que diante de um organismo vivo, quanto menos se conhece ao seu respeito, tanto maiores serão as espécies de forças que se deverá discriminar: forças mecânicas, elétricas, magnéticas enfim. Contudo, o progresso no conhecimento deste organismo, faz com que estas sejam reduzidas a duas espécies – atração e repulsão. Para o autor das Lições de Fisiologia, tudo isso se aplica por igual ao homem como organismo22. Jones (1974, p. 74) ressalta que estas pontuações de Brücke cativaram o estudante Freud.

O laborioso professor de Freud se inseria num abrangente movimento científico conhecido como a Escola de medicina de Helmholtz, cujo marco inicial, segundo Jones, data do começo da 22 Cf.: Brücke apud Jones, 1974.

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década de quarenta do século XIX com a amizade entre os fisiologistas Emil Du Bois-Reymond (1818-1896) e Ernest Brücke (1819-1892), posteriormente acrescida das figuras de Hermann Helmholtz (1812-1894) e Carl Ludwig (1816-1895). Para Ernest Jones este grupo era imbuído de um verdadeiro espírito de cruzada científica, provocando estímulos intensivos à ciência, guiados por um juramento assim descrito por Du Bois-Reymond:

Brücke e eu formalizamos um juramento solene para levar à prática esta verdade: nenhumas outras forças, a não ser as físico-químicas comuns, acham-se em ação afirmativa no interior do organismo. No caso em que não se possam obter informações através dessas forças, eventualmente, ter-se-á de encontrar um caminho específico ou a forma de sua ação por intermédio do método físico-matemático ou admitir novas forças, idênticas em dignidade às forças físico-químicas inerentes à matéria, e que são redutíveis à força de atração e repulsão (Jones, 1974, p. 73).

A ausência de fronteiras entre um organismo humano e não humano, a explicação dos fenômenos na perspectiva da física e a utilização de ficções heurísticas que, ao demonstrarem falhas, podem ser cambiadas por outras mais frutíferas, são características desta escola que, em última instância, assentam-se num projeto kantiano das ciências da natureza.23 Freud não só admirava estes homens da ciência, como formou seu perfil de pesquisador intimamente vinculado a estes preceitos. Neste sentido, nunca hesitou em afirmar e reafirmar que a sua ciência, a psicanálise, não só pertence à “família” das ciências naturais, como procurou infatigavelmente receber o respeito desta comunidade científica. Na mencionada conferência sobre A questão de uma Weltanschauung o já respeitado Freud (1982a, p. 587/156) admite, sem

23 Cf.: Loparic, 1999, p.101. Fulgencio, em sua tese de doutorado intitulada O método especulativo em Freud, remete-nos a uma passagem na qual Helmholtz acentua a parceria entre suas pesquisas e a doutrina kantiana, declarando expressamente sua filiação a Kant ao afirmar estar sob o solo do sistema kantiano (Cf. helmholtz) “Os fatos da percepção”. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Série 2, v. 1, 1989, (apud FUlgencio, 2001, p. 306). Freud, por sua vez, inserido nesta tradição de pesquisa não só reverbera esta filiação como, veremos mais adiante, compara elementos de sua teoria ao sistema kantiano. Entretanto, sem fazer uma exegese ou qualquer tipo de aplicação direta desta doutrina à sua ciência.

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titubear, que a psicanálise, na qualidade de ciência especializada, toma o intelecto e a alma como objeto de pesquisa científica “[...] exatamente da mesma forma como o são as coisas não-humanas”, de modo que sua contribuição à ciência consiste, justamente, em estender a pesquisa à área mental (das seelische Gebiet).

A diligente pesquisa do pai da psicanálise progride sem deixar de recorrer a comparações e analogias em relação à mais emblemática ciência natural, a física. Mais do que isso: sem se furtar em assumir a linguagem da física como a língua unificadora das ciências. Em Algumas lições elementares de psicanálise, Freud, ao tentar descrever a constituição de sua ciência e de seu objeto de pesquisa, propõe que, por analogia, desloquemos a pergunta pela natureza do psíquico – objeto de seu oficio de cientista – para a indagação a um físico sobre a natureza da eletricidade. Segundo ele, um físico responderia tal questão afirmando que, para sua ciência explicar certos fenômenos, é fundamental presumir “[...] a existência de forças elétricas que estão presentes nas coisas e que delas emanam”, sendo necessário então, descobrir as leis que governam os fenômenos em apreço. Tal descoberta, diria o físico, satisfaz provisoriamente a pesquisa científica. E, apesar de não se poder afirmar absolutamente nada acerca da natureza da eletricidade, o trabalho progride. Em tom conclusivo, resumiria: “é simplesmente como as coisas acontecem nas ciências naturais”. Diante destas assertivas possíveis a um físico, Freud refere-se à sua seara admitindo que a psicanálise também é uma ciência natural.24 Logo em seguida pergunta: “O que mais pode ser?”. E, assumindo a sua identidade com os procedimentos das ciências naturais, lança mão do mesmo argumento que concerne à física e afirma que apesar de não poder assegurar a natureza de seu objeto,

24 É importante salientar que a afinidade do cientista Freud com o modelo físico-químico e com o entendimento de que a tarefa das ciências é descobrir o jogo de forças – entendimento que vigora no juramento de Du Bois-Reymond – leva-o a abarcar todos os fenômenos humanos desde esta perspectiva. Segundo Japiassu, Freud assume o monismo típico do naturalista Ernst Haeckel (1834-1919) que só admite uma realidade característica do ser, da natureza, estabelecendo uma unidade profunda entre a natureza orgânica e a inorgânica, entre matéria e espírito. Sendo assim, não haveria porque aceitar o dualismo proposto por Dilthey entre as Geisteswissenschaften e as Naturwissenschaften. E como a psicanálise pretende ser ciência, diante da estabelecida homogeneidade entre fenômenos humanos e naturais, ela só poderá ser uma Naturwissenschaft. Quer dizer: ser uma ciência explicativa tanto quanto as naturais (Cf.: JapiassU, 1990; AssoUn, 1981).

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pode, entretanto, atestar que este não se reduz à consciência, sendo esta apenas uma de suas qualidades. Deste modo, prossegue o autor, “o psíquico, seja qual for a sua natureza, é em si mesmo inconsciente e provavelmente semelhante em espécie a todos os outros processos naturais de que tivemos conhecimento” (1996b, p. 302).

Em termos filosóficos, poderíamos dizer que a psicanálise não se preocupa em determinar a quididade deste objeto, o psíquico, antes pretende fazer ciência utilizando este constructo para organizar e sistematizar fatos observáveis. Assim procede com seu grande postulado, o inconsciente. Este nem é anatomicamente localizável, nem constatável de modo imediato na empiria. Porém, pode assumir o caráter de uma convenção aplicável ao material empírico. Tais convenções, afirma Freud (1989a), apesar de serem idéias abstratas,25 não são escolhidas arbitrariamente, visto que se exige que tenham relação com o material empírico a que se aplicam. A exatidão científica só se alcança, Freud assinala, a partir de uma investigação pormenorizada que tendo como guia estas convenções, pode chegar a determiná-las com mais claridade ou descartá-las por outras mais úteis e coerentes. Assim, sem fixidez, se avança o conhecimento! Tal como na física, assume o fundador da psicanálise.

O esforço do pensar científico segue sua marcha de modo hesitante, trabalhoso, considerando e reconsiderando hipóteses, sendo forçado a remodelações a partir de novos dados empíricos. Por não se assentar em inquebrantáveis axiomas, a ciência, como aponta Freud (1982a, p. 599/168), cambaleia de um experimento para o outro, colecionando “[...] observações de constâncias no curso dos eventos que dignifica com o nome de leis e as submete às suas perigosas interpretações”. Estas idas e vindas da pesquisa científica são expostas por Freud em seu estudo autobiográfico (Selbstdarstellung), na medida em que desnuda os percalços do desenvolvimento de sua ciência e os rudes golpes que ela suportou. Ao declarar que o estabelecimento do conceito de inconsciente colocou-o em trincheira com alguns filósofos que, por ignorarem o material patológico de que ele dispunha, advogavam pela 25 Idéia aqui no sentido kantiano, sem o concurso da experiência.

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redução do psíquico à consciência, Freud (1996a, p. 36) tenta explicar como foi compelido a “[...] adotar o conceito de inconsciente de maneira séria”. O que implicou diferenciá-lo não só da consciência, como também do pré-consciente.26 Freud então elucida da seguinte maneira os rumos de sua pesquisa sobre este tema:

Seria mais difícil explicar concisamente como veio a acontecer que a psicanálise fizesse outra distinção no inconsciente e o separasse em um pré-consciente e em um inconsciente propriamente ditos. Basta dizer que pareceu ser um caminho natural complementar da experiência com hipóteses que estavam destinadas a facilitar o manuseio do material, e que estavam relacionadas com assuntos que poderiam não ser objeto de observação imediata. O mesmíssimo método é adotado pelas ciências mais antigas. A subdivisão do inconsciente faz parte da tentativa de retratar o aparelho da mente como sendo constituído de grande número de instâncias ou sistemas, cujas relações mútuas são expressas em termos espaciais, sem contudo, implicarem qualquer relação com a anatomia do cérebro. [...] Idéias como estas fazem parte da superestrutura especulativa (spekulativer Überbau) da psicanálise, podendo ser abandonada ou modificada, sem perda ou pesar, momento em que sua insuficiência tenha sido provada (FreUd, 1996a, p. 38).

Dada a riqueza deste trecho retirado do texto Um estudo autobiográfico (Selbstdarstellung) de Freud, resolvemos analisar alguns 26 Aqui cabe distinguir o inconsciente enquanto qualidade psíquica de processos anímicos. Nas palavras de Freud, diferenciar sua significação puramente descritiva da sua abordagem espacial. No primeiro sentido trata-se de considerar o inconsciente no sentido factual, descritivo, como um atributo de processos psíquicos. Na outra perspectiva, o inconsciente deve ser considerado como um sistema, como uma espécie de “[...] grande salão de entrada no qual os impulsos mentais se empurram uns aos outros [...]”. Neste caso, trata-se de uma instância psíquica constituída por conteúdos que foram reprimidos. No quadro da primeira tópica freudiana do aparelho psíquico o inconsciente é a localização onde se encontram os conteúdos pulsionais que investem força para retornar à consciência. O pré-consciente designa um sistema distinto do inconsciente, na medida em que seus conteúdos apesar de não estarem diretamente na consciência, são de mais fácil acesso do que os inconscientes. Freud separa estes sistemas por uma censura, que não permite a passagem de conteúdos inconscientes à consciência sem mutilações e distorções. Abordar o inconsciente de modo não descritivo, equivale a abordá-lo especulativamente, considerando-o a partir do ponto de vista tópico e dinâmico, acentuando o jogo de forças que ali se trava entre a censura e o material que pleiteia emergir. A partir de 1920, quando da remodelação da teoria freudiana do aparelho psíquico, é estabelecido o quadro da segunda tópica, e as instâncias passam ser o Id, Ego e Superego. Desde esta perspectiva, o inconsciente, como lembra Laplanche e Pontalis, passa a ter conotação de adjetivo. (Cf.: FreUd, 1996c, p. 301; 1996d e cf. tb: Laplanche; Pontalis, 1992, verbete: inconsciente).

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pontos, explanados aí de maneira concisa. Para o propósito de nosso artigo interessa menos pormenorizar a distinção entre os sistemas consciente, inconsciente e pré-consciente, do que destacar os seguintes pontos da citação acima: 1) ao falar que parece ser um “caminho natural complementar da experiência com hipóteses”, Freud deixa claro que a base do edifício psicanalítico é assentada em fatos clínicos, provenientes da experiência. O resto lhe surge como complementar. Reafirmar a função cardeal da observação de fatos clínicos implica lembrar que o ponto de partida desta ciência é factual. Trata-se de distúrbios psíquicos, cujos sintomas acenam para a forte presença de lacunas na consciência, fruto de um processo de repressão (Verdrängung)27 do material doloroso e inoportuno à percepção consciente. Material que, para ser resgatado enquanto memória, impõe a necessidade de superação de resistências que se sobrepõem a tal resgate.28 No caminho da elucidação do sintoma neurótico e no decisivo progresso do tratamento, as teorias da resistência e da repressão são, segundo Freud, um dos principais constituintes da estrutura teórica da psicanálise, em outros termos, correspondem à parte empírica de sua ciência, ao pilar clínico de seu edifício doutrinal.29 Na citação em apreço, Freud nos fala em complementar a experiência “com hipóteses que estavam destinadas a facilitar o manuseio do material”. Tal trecho nos faz por em relevo a seguinte questão: 2) pleiteando gozar da condição de cientista natural, o pai da psicanálise baseia-se na orientação metodológica da ciência de seu tempo, servindo-se de uma gama de conceitos auxiliares, sem pretensão de localização na realidade objetiva, cuja utilidade metodológica é a de facilitar o manuseio do material clínico (empírico). Contudo, vale ressaltar que o recurso a estas construções com função heurística é um recurso complementar, não o mais fundamental.

27 A tradução de Verdrängung por repressão não é um processo que goza de consenso entre os psicanalistas. Aventa-se também a possibilidade de usar o termo recalcamento. Aqui optamos seguir a linha de tradução de Loparic, que advoga pelo termo repressão devido ao elo semântico entre este termo e Drang (pressão). Tal elo assenta-se também na incisiva influência de Leibniz sobre o conceito psicanalítico de Pulsão (Trieb), visto que foi este filósofo que inaugurou a concepção de que em toda e qualquer substância (inclusive a humana) opera uma pressão (Drang) sobre as forças que ali atuam (Cf.: loparic, 1999; 2001).28 A repressão e a resistência são fatos clínicos que se impõem ao trabalho do analista quando este se arvora, junto ao paciente, a reconduzir os sintomas neuróticos às suas fontes.29 Cf.: Freud, 1996a, p. 45 e 1996c, p. 300.

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Este é, como bem lembra Freud, o mesmíssimo “método adotado pelas ciências mais antigas”. Esta asserção nos faz evidenciar o seguinte ponto: 3) as ciências mais antigas (leia-se: as ciências naturais) progridem com conceitos que ressentem de exatidão, de absoluta nudez conceitual, entretanto, tal fato ao invés de estancar a marcha de sua progressão, é condição necessária para tanto. Freud (1996a, p. 61) não só assume esta característica para sua ciência, como advoga em relação a esta condição afirmando que “a própria física, realmente, jamais teria feito qualquer progresso se tivesse tido que esperar até que seus conceitos de matéria, força, gravitação, e assim por diante, houvessem alcançado grau conveniente de clareza e precisão”. Quer dizer: a psicanálise não deve receber desprezo e resistência em relação à sua cientificidade por dispor de conceitos como libido, pulsão, inconsciente, pois, tal como uma das mais duras ciências, a física, opera numa lenta marcha de elucidações suportando a falibilidade de suas proposições e dispondo-se a permanentes reorientações em sua pesquisa.30 Por fim, gostaríamos de destacar um último elemento da citação analisada: 4) nesta citação, o autor nos fala de idéias que fazem “parte da superestrutura especulativa da psicanálise, podendo ser abandonada ou modificada”. Aqui cabe diferenciar a função basilar da psicologia clínico-descritiva de Freud – assentada na experiência – e a função de uma suposição teórico-especulativa que apenas sistematiza e orienta a apreensão de dados empíricos. Esta última tem função complementar, auxiliando na descrição de fatos que oferecem lacunas para a teoria empírica. Elas guiam o olhar do cientista, mas não são o fundamento, a infra-estrutura da psicanálise. A parte da superestrutura cabe às construções auxiliares, que por não terem função de fundamentação do edifício psicanalítico, têm valor provisório, sendo utilizadas na medida em que se mostram fecundas. Esta superestrutura comporta conceitos nebulosos que devem ser esclarecidos ao longo da pesquisa, ou então, descartados sem pesar, pois, como assevera Freud (1989b, p. 45/85), “[...] essas idéias não são o fundamento da ciência, no qual tudo repousa: este fundamento é tão 30 Em “A pulsão e seus destinos” Freud (1989a, p. 81/123) realiza uma explícita comparação entre sua ciência e a física, considerando o uso de convenções heurísticas.

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somente a observação. Não são a base, mas o topo da estrutura e podem ser substituídas e eliminadas sem prejudicá-la”.

Utilizando esta analogia entre a psicanálise e uma edificação, várias vezes útil ao próprio Freud, Loparic (1985, p. 29) acrescenta que a psicanálise deve ser pensada como um edifício de vários níveis. Em Resistências à psicanálise o autor observa que os andares inferiores do edifício freudiano “[...] abrigam conceitos e proposições que podemos chamar de factuais, fenomenais ou ainda vivenciais, enquanto os seus andares superiores acomodam construções teóricas de diferentes tipos”, incluído aí as já faladas especulações e construções auxiliares.31

Diante de sintomas psíquicos dos pacientes e imbuído em reafirmar a psicanálise como um procedimento que visa à cura de certos tipos de patologias dos nervos, Freud, a partir de inúmeras observações empíricas, base de seu edifício científico, pressupõe a existência do inconsciente, uma vez que a consciência padece de inúmeras lacunas. Ao postular que idéias e afetos foram retirados do foco da consciência, devido à natureza insuportável destes conteúdos, ele nos alerta acerca do dispêndio persistente de energia psíquica a favor da repressão deste material, de seu afastamento da consciência e sua manutenção no inconsciente. Trata-se da força de repressão dirigida ao que não pode ser rememorado, exposto à luz da consciência. O que deflagra ummarcante jogo de forças no interior do psiquismo. E, mesmo sem um referente empírico localizável, Freud nos fornece o conceito de inconsciente com vistas a cobrir as lacunas da vida anímica, oferecendo uma explicação causal acerca dos sintomas clínicos que o desafiava, em particular os sintomas neuróticos.

Alicerçado na observação clínica Freud confirma que as lembranças dolorosas não se perdem, antes, permanecem inconscientes, prontas a ressurgir na forma de sintomas variados. A suposição da existência do inconsciente torna-se então uma frutífera construção 31 Vale trazer uma citação do autor sobre este tema, retirada de outro texto: “Se aprofundarmos a metodologia de Freud, veremos logo que ele usa termos energéticos, assim como era comum fazer-se na física de sua época, como modelos para descoberta e organização do material clínico, como convenções frutíferas; e que esses termos fazem parte, não da infra-estrutura de sua teoria. Por isso eles podem ser descartados desde que se achem outros melhores que façam o mesmo serviço” (Loparic, 1991, p. 50).

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para explicação de fenômenos clínicos. Trata-se de uma cara noção ao corpo teórico desta ciência. Uma noção que, apesar de já ter sido exigida como parte constitutiva do psíquico por filósofos como Theodor Lipps, foi assumida por este de forma “[...] tão indefinida e obscura que não poderia ter exercido influência alguma sobre a ciência” (FreUd, 1996e, p. 172). Denunciando que o conceito de inconsciente há muito vem batendo na porta da psicologia, sendo distraidamente manipulado pela literatura e filosofia, Freud (1996b, p. 306) assume que a sua ciência apossou-se do conceito levando-o a sério, conhecendo suas características até então insuspeitadas e descobrindo algumas das leis que o governam.

Da mesma maneira que o físico, o cientista da psicanálise não precisa determinar a natureza de seu objeto, concentrando-se em construir especulações que, apesar de organizarem dados empíricos, não se confundem com eles. Na operacionalização desta organização, torna-se imperativo o estabelecimento de leis que governam os fenômenos observados. Nada mais fiel ao procedimento da escola de Helmholtz, nada mais fiel ao kantismo. Afinal, lembremos da afirmação kantiana na Crítica da Razão Pura (A189), citada por Heidegger (1987, p. 176/160) em Zollikon: “Tudo que acontece pressupõe algo que segue segundo uma lei”.

Nestes seminários Heidegger apresentou Kant aos psiquiatras como um patrono do modo de proceder das ciências naturais. Logo, deixou claro que Freud, ao fazer ciência sobre os processos psíquicos inconscientes, reverberava os ditames kantianos. Neste sentido, o professor de Zollikon argumentou que Freud, ao deparar-se com as lacunas na consciência, tentou encontrar a qualquer custo “algo” que ordenasse a seqüência das conexões, para tanto, “ele precisa inventar o inconsciente, no qual tem de haver a ausência de lacuna de conexões causais” (Heidegger, 1987, p. 260/222). Contudo, objetou o filósofo, esse postulado não é haurido das próprias manifestações anímicas, mas sim das ciências naturais modernas.

No texto O Inconsciente, Freud (1989c, p. 125/172) enfatiza que a prova da existência do inconsciente é justamente as lacunas em

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alto grau na consciência tanto dos seres humanos sadios como dos doentes. Esse modelo de entendimento das vivências humanas se acomoda confortavelmente no seio da metafísica moderna, reduzindo o ente humano a algo natural submetido a leis causais. Uma vez que o inconsciente seja estipulado como fator causal, o homem passa a ser tomado como um objeto causalmente explicável. Por isso, a atitude clínica do analista deve ser a de fazer o caminho de volta do sintoma à etiologia primeira da doença, buscando o elo de ligação na cadeia de associações (FreUd, 1982b). A busca de leis, o recurso a explicações causais e a assumida pretensão freudiana de encaixar sua ciência no rol das rígidas ciências naturais, nos autoriza a encarar o fundador da psicanálise como um operário destas ciências, de modo que sua ciência progride pressupondo o reino pré-estabelecido da objetividade.

Aqui vale ressaltar a aceitação (acceptio) que Heidegger denuncia nas ciências modernas, inclusive na freudiana. Nesta acceptio admite-se naturalmente: ser=conexão causal calculável de antemão. Sobre este tema, Loparic (1985, p. 32) acrescenta que, a partir de uma leitura mais aprofundada dos textos freudianos que versam sobre as resistências e as forças inconscientes da repressão, é possível localizar a seguinte pressuposição metodológica: “Toda explicação causal na psicologia deve ser dinâmica”. Buscar explicações dinâmicas para fenômenos psíquicos significa entendê-los como jogo de forças que, na medida em que se opõem, geram distúrbios que representam o efeito causal de processos explicáveis dinamicamente, em outros termos, quantitativamente. Estas forças, como na ciência natural mais emblemática, a física, não são tangíveis, nem disponíveis empiricamente.

Como funcionaria então, esta opção metodológica no entendimento de fatos clínicos? Tomemos como exemplo a neurose, ponto de partida clínico de Freud. Para fins de explicações dinâmicas sobre a etiologia das neuroses, tornou-se necessário, como já pontuamos, postular a existência de processos inconscientes que, apesar de não estarem prontamente acessíveis na experiência consciente, regem como

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força fundamental o funcionamento psíquico. Portanto, o inconsciente, apesar de incognoscível, prestou-se a explicação de fenômenos psicológicos observáveis e passíveis de conhecimento, como se os “estados inconscientes” pudessem ser traduzidos para categorias da representação consciente.

Aqui se torna explícita a dívida para com a teoria kantiana dos limites da razão pura. Freud aceita, de forma expressa, a não identidade entre o fenômeno, dado na experiência empírica, e o noûmeno que, apesar de incognoscível, pode ser pensado como problema que a razão impõe a si mesma. Assim, o inconsciente opõe-se ao fenômeno percebido desde a intuição sensível a priori, e pode ser comparado à coisa em si, que podemos pensar, mas não conhecer pelas categorias do entendimento (1989c). Deste modo, visto que não se pode aceder diretamente ao inconsciente – ou se quisermos, à coisa em si – torna-se preciso traduzir (umsetzen) os estados inconscientes em termos de descrições aplicáveis ao consciente, assumindo que o psíquico em si não é tal como aparece. O que implica dizer que nada sabemos acerca de sua natureza do inconsciente.

Ao pensar o inconsciente desta maneira, Freud o situa no interior da teoria kantiana da objetividade e, consequentemente, do seu modo de conceber a ciência natural. Evidenciando assim, seu perfil de operário desta ciência. Sobre o tributo que o conceito freudiano de inconsciente paga ao sistema kantiano, Loparic (1999, p. 118) afirma:

Embora não possamos decidir qual é a verdadeira natureza dos estados psíquicos inconscientes nem conhecer qualquer um de suas eventuais propriedades, podemos projetar sobre essas coisas em si todas as determinações pelas quais caracterizamos as coisas para nós, a saber, os fenômenos. Em particular, podemos tratar os estados inconscientes como se fossem causas, ânsias, isto é, como se fossem entidades dinâmicas. Depois de ter subsumido os estados inconscientes às categorias kantianas, mais precisamente, à teoria kantiana da consciência, Freud se vê autorizado a concluir que, sim, “sobre vários desses estados latentes temos que dizer que eles só se distinguem dos conscientes justamente pela supressão da consciência”.

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Assumindo, com a seguridade do kantismo, o desconhecimento da natureza em si do inconsciente, ou seja, sua incognoscibilidade, resta ao cientista abordá-lo desde a maneira que é possível acedê-lo, a partir de termos acessíveis à luz da consciência, a partir de representações. Neste sentido, é demasiado apressado afirmar que a noção de inconsciente rompe em absoluto com as teorias da modernidade, por desalojar no homem a soberania da consciência. Ora, a aliança freudiana em relação a Kant não é só reconhecível, mas reconhecida pelo próprio autor. Tal aliança não se restringe à sua teoria crítica acerca dos limites da razão, nem à sua concepção de ciências naturais, a influência deste filósofo se estende ao cardeal conceito de pulsão (Trieb) e a preponderância do ponto de vista dinâmico na explicação dos fenômenos.32

Poderíamos aqui elencar uma gama de conceitos hauridos da psicanálise freudiana que foram alvo da crítica heideggeriana nos Seminários de Zollikon. A mira do filósofo incidiu sobre os conceitos de pulsão, de libido, de repressão, de esquecimento, de afeto, entre outros. Porém, dado o escopo de nosso texto não será possível contemplar esta crítica em uma maior envergadura, cabendo-nos apenas enfatizar que o foco das colocações heideggerianas a respeito da psicanálise centrou-se em apontar sua dívida em relação à filosofia moderna e ao modo de proceder das ciências naturais. A questão que se impõe ao pensamento, a partir das provocações heideggerianas, reverbera a indagação sobre a possibilidade de contemplar o existir humano tendo como guia teórico uma ciência devedora da metafísica, escravizada pelas leis da causalidade, pelo determinismo fisicalista e marcada pela pretensão de confeccionar um procedimento científico que é estrangeiro a esta existência.

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Recebido em: 21 de dezembro de 2007.Aprovado em: 23 de janeiro de 2008.

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APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano VI n. 10 p. 159-176 2008

númeRo esPeciAl:Heidegger e a Educação

Sobre a serenidade em Heidegger: uma reflexão sobre os caminhos do pensamento

Ligia Saramago*

Resumo: O presente texto tem como objetivo apresentar algumas colocações de Heidegger sobre o pensar, em especial o que ele chama de “outro pensamento”. Serão tratados aqui apenas dois de seus escritos, Para a discussão da serenidade: de uma conversa sobre o pensamento que teve lugar num caminho de campo (1944-1945) e Serenidade (1955), buscando fazer um contraponto com importantes declarações feitas pelo autor em sua famosa entrevista a Der Spiegel (1966). Os pensamentos calculador e meditativo serão aqui considerados, bem como a crucial noção de serenidade, no contexto da reflexão heideggeriana sobre esta questão.

Palavras-chave: Pensamento. Representação. Serenidade

On Heidegger’s gelassenheit: a reflection on the paths of thinking

Abstract: The present paper aims to present some of the Heidegger’s statements on the thinkig issue in two of its writings, Conversation on a country path about thinking (1944-1945) and Memorial address (1955), looking forward to making a counterpoint with important declarations by the author in his famous interview to Der Spiegel (1966). Here will be considered the calculative and

* Doutora em Filosofia e Professora do Departamento de Filosofia e do Curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC-RJ. E-mail: [email protected]

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meditative thinkings, as well as the crucial notion of serenity, in the context of the heideggerian reflection on this question.

Key words: Thinking. Representation. Serenity

Dois caminhos do pensamento A reflexão heideggeriana sobre a natureza do pensar não se

restringe a considerações sobre aquela forma de pensamento que se pretende estrita e propriamente filosófica, tal como usualmente a entendemos, mas evidencia a absoluta necessidade de adentrar certos âmbitos tidos como “estranhos” a este pensar, tradicionalmente concebido, segundo Heidegger, tanto como representação quanto como querer. O que se pretende aqui é apresentar alguns aspectos de um segmento bastante específico da reflexão heideggeriana sobre esta temática, aquele que é demarcado por dois de seus escritos: Serenidade, de 1955, e Para a discussão da serenidade: de uma conversa sobre o pensamento que teve lugar num caminho de campo, de 1945, onde Heidegger narra um longo diálogo entre três personagens, o Investigador, o Erudito e o Professor, sobre a questão do pensar.1 É o pensamento em sua essência, que constitui o fio condutor da discussão, e o cenário onde tal diálogo tem lugar não poderia ser mais indicativo de seu conteúdo: pensar o caminho do pensamento significa já estar percorrendo este mesmo caminho.

A discussão que ganha corpo nas vozes dos três personagens de Para a discussão da serenidade – o Investigador, o Erudito e o Professor – parte da premissa, aparentemente paradoxal, de que só quando desviamos nosso olhar do próprio pensamento somos capazes de perceber sua essência. Tomando, então, uma direção contrária àquela que identifica esta essência do pensamento à representação e ao querer, o diálogo entre os três personagens se estenderá por um outro caminho – seguindo, como diz Heidegger, a “direção invisível” que os leva 1 Serenidade reproduz o discurso proferido por Heidegger durante as celebrações do 175° aniversário de nascimento do compositor Conradin Kreutzer, em Messkirch, em 30 de outubro de 1955. Os dois escritos mencionados, por sua profunda afinidade temática, foram reunidos numa única obra, intitulada Serenidade (Gelassenheit), publicada em 1959.

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pela mão –, explorando regiões outras do pensar. Este difícil caminho através do não-habitual, caminho “longe das habitações dos homens”, marcado pelo desafio de “nos desabituarmos da vontade”, como o expressa o Professor, parece levar a uma outra atitude, ou uma outra direção do pensamento; esta não representacional e, principalmente, não voluntarista, que Heidegger identifica à serenidade (die Gelassenheit). Essencialmente vinculado a esta atitude está o que Heidegger chama de pensamento meditativo, ou seja, o pensamento reflexivo que se recusa a toda e qualquer representação, e tampouco se deixa guiar pelo querer.

Contudo, afirma Heidegger, “o homem atual está ‘em fuga do pensamento’”. Tal fuga, ainda que negada ou questionada, ainda que não reconhecida, se apresenta, ela própria, porém, como pensamento, mas um pensamento de um gênero bastante específico: esta fuga do pensar Heidegger identifica ao domínio contemporâneo do pensamento calculador (das rechnende Denken). É o pensamento que, tendo diante de si um objeto a ser investigado ou um objetivo a ser atingido, se lança em inúmeras conjecturas, em planos e antecipações. Opera no terreno da práxis, visando sempre ao controle de processos que levarão, inescapavelmente, aos resultados esperados. O pensamento calculador, no que põe diante de si seus objetos, os reduz à enumeração das possibilidades de satisfazer aos fins previamente delineados pelo querer. Tal forma do pensamento é a que domina no mundo técnico, bem como em todas as formas de controle e de abordagem do real pela tecnologia contemporânea.

Já em 1943, no posfácio a Que é metafísica?, escrito de 1929, Heidegger afirmara que “de modo nenhum é o pensamento exato o pensamento mais rigoroso”, justamente por se prender ao objetivo último do cálculo, o qual “reduz todo o numerável ao enumerado, para utilizá-lo na próxima enumeração. O cálculo não admite outra coisa que o enumerável”.2 O pensamento calculador, ao consumir continuamente seus objetos – ou os entes então tornados objetos –, revela também o caráter destruidor do cálculo, que usualmente assume o aspecto contrário,

2 Heidegger, Martin. Que é metafísica? In: ______. Os Pensadores. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 247-248.

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o da produtividade máxima. Obediente à lógica auto imposta de tudo abarcar e submeter, o pensamento calculador “não é capaz de suspeitar que todo o calculável do cálculo já é, antes de suas somas e produtos calculados, num todo cuja unidade, sem dúvida, pertence ao incalculável que se subtrai a si e sua estranheza das garras do cálculo” (Heidegger, 1943, p. 248 ). E, em Serenidade, Heidegger (1955, p. 13-14) conclui:

Existem, portanto, dois tipos de pensamento, sendo ambos à sua maneira, respectivamente, legítimos e necessários: o pensamento que calcula e a reflexão (das Nachdenken) que medita. [...] Um pensamento que medita surge tão pouco espontaneamente quanto o pensamento que calcula. O pensamento que medita exige, por vezes, um grande esforço. Requer um treino demorado. Carece de cuidados ainda mais delicados do que qualquer outro verdadeiro ofício. Contudo, tal como o lavrador, também tem que saber aguardar que a semente desponte e amadureça.

“Estar desperto para a serenidade”

A relação metafísica entre pensamento e vontade – tema recorrente num período de intensa meditação sobre a obra de Nietzsche3 – é evocada logo nas primeiras linhas de Para a discussão da serenidade: considerado segundo a tradição, o pensamento representacional já seria, em si, uma das formas da vontade. Nesta obra, Heidegger busca, nas vozes de seus três personagens, conceber um outro pensamento, capaz de liberar-se essencialmente desta natureza voluntarista. Coloca-se, então, diante do Investigador, do Erudito e do Professor a tarefa de clarificar o como desta liberação do pensamento, que possibilitaria uma forma outra de aproximação das coisas, uma aproximação não objetificadora, não apropriadora, marcada, antes, por um “estar desperto para a serenidade” (wachbleiben für die Gelassenheit). Esta serenidade, é importante frisar, não remete a qualquer idéia de passividade, ou a uma permissividade nascida da fraqueza: o agir que se oculta no âmago da serenidade é de uma ordem mais elevada do que a das usuais maquinações humanas e não implica obrigatoriamente atividade, tal como esta é correntemente compreendida. 3 De meados da década de 30 a meados da década de 40.

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163 Sobre a serenidade em Heidegger: uma reflexão sobre os caminhos do pensamento

Situada, de fato, além da dicotomia entre atividade e passividade – sendo esta última, em geral, erroneamente associada a uma debilidade do querer –, a serenidade, como caminho do pensamento meditativo, é apresentada por Heidegger como a mais elevada forma do agir humano. Isto se explica pelo fato de que a serenidade, aqui, escapa por completo ao domínio da vontade, servindo, assim, de solo para uma outra forma de pensamento, que não nos remete mais à ordem dos objetos e instrumentos em geral, mas àquilo que sempre e já permite o aparecer dos mesmos enquanto tais. Este pensamento, como não poderia deixar de ser, não resulta de um ato de vontade de algum “sujeito”, mas, como diz Heidegger, depende antes de um aguardar. A partir da perplexidade gerada nos três interlocutores por esta desconcertante constatação, irá se desenrolar uma das partes mais significativas do diálogo de Para a discussão da serenidade.

Falar sobre a serenidade, ou sobre o pensamento meditativo, bem como sobre este aguardar, não é tarefa das mais fáceis, como constatam os três debatedores. Mesmo porque a tematização da serenidade por Heidegger se afasta, como ele mesmo coloca, de outras já realizadas, como a de Meister Eckhart, por exemplo, a quem ele tanto admirava. Para Heidegger, o conceito eckhartiano de serenidade estaria ainda inserido no domínio da vontade, no sentido de um abrir mão da vontade própria em nome de um auto abandono à vontade divina. Em ambos os casos – o do abandono de si e do não abandono de Deus – a serenidade permaneceria como um “estado” diretamente referido ao próprio homem, ou referido a seu próprio querer.4 E apenas quando nos desabituamos deste querer, diz Heidegger, abrimo-nos à possibilidade de despertar para a serenidade. É interessante observar que 4 Reiner Schürman, em seu escrito De “tres pensadores del abandono: Meister Eckhart, Heidegger, Susuki”, afirma que: “O conceito transcendental de abandono em Meister Eckhart continua sendo um conceito relacional: a verdadeira relação com Deus é a gelassenheit, tanto de Deus, como do homem. Deus e o homem são um, anônimos, neste idêntico abandono. Em Heidegger, o pensamento da Gelassenheit deve ser compreendido como um ‘passo atrás’ na categoria da relação e de seu caso extremo, a identidade. [...] A profundidade da Gelassenheit em Heidegger parece residir no fato de que ele não a pensa, em última instância, nem a partir do homem, nem, especialmente, com vistas ao homem. Neste sentido, seu pensamento difere radicalmente do pensamento do ‘velho mestre do ler e do viver’, que é para ele Meister Eckhart, e de Suzuki, que, segundo Heidegger, expressa ‘o que tive a intenção de dizer em todos os meus escritos’”. Tradução minha, a partir da versão em espanhol realizada por Carolina Soto, em Heidegger y la mística. Córdoba: Paidéia, 1995, p.53-70.

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este estar desperto para a serenidade não é, obviamente, algo que possa ser planejado ou provocado por quaisquer meios, mas, nas palavras do filósofo, a serenidade pode apenas ser permitida, “ela desperta quando ao nosso ser lhe é permitido aceder a algo que não é um querer”.5 A serenidade (die Gelassenheit) traz já em si um deixar (lassen) não passivo, e contudo não ativo, que se aproxima, antes, de um não esquecimento atento, que simplesmente aguarda.

A serenidade envolve, pois, um aguardar, e mesmo se identifica a este. É um aguardar de uma natureza única, que implica uma espécie de abertura ao que quer que sobrevenha, de maneira livre e não direcionada para qualquer objeto. A própria representação de um objeto pelo pensamento já escaparia a esta atitude de livre aguardar. Este livre aguardar nos franquearia, de uma maneira mais aberta, a proximidade do que é longínquo, independente de suas representações. O que se aguarda, portanto, é a essência mesma do pensamento, sendo a serenidade – em uma de suas possíveis definições – o caminho para se chegar a esta essência.

O movimento do pensar: do horizonte à região

A partir da temática do aguardar, em Para a discussão da serenidade, Heidegger dará continuidade a uma elaboração densa e abrangente – e, de certa forma surpreendente também – do conceito de região. Este conceito, que já vinha sendo elaborado desde seus escritos da década de 1920, e que fora retomado em seus cursos sobre Heráclito6, ganhou neste diálogo uma especial vinculação ao pensamento mesmo, vinculação esta mais explícita e intensa. A intenção de trazer este conceito para a presente exposição não é outra senão a de apresentar o contraponto escolhido por Heidegger, em 1945, para o pensamento representacional, no contexto específico de sua discussão da serenidade.

5 heidegger, Martin. Serenidade, p. 34.6 Os dois cursos, reunidos na obra Heráclito (Heraklit), vêm a ser A origem do pensamento ocidental (Der Anfang des abendländischen Denkens) e Lógica. A doutrina heraclítica do logos (Logik. Heraklits Lehre vom Logos), ministrados nos semestres de verão de 1943 e 1944 respectivamente.

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A partir de uma consideração tradicional do pensar como representação horizontal-transcendental – onde a noção de horizonte diz respeito ao campo de visibilidade, o “pano de fundo” do pensamento que permite ao sujeito localizar, pôr e dispor dos objetos diante de si – os três interlocutores serão levados, em sua discussão, não apenas a considerar insatisfatória esta forma de abordagem dos fenômenos, como a se indagar sobre a possibilidade de uma instância ainda mais originária no âmbito do pensar. Tal instância seria anterior ao próprio horizonte, pois o horizonte se refere exclusivamente aos objetos e às nossas representações destes. É precisamente no contexto deste questionamento que este conceito de região passa a ser compreendido, então, num outro nível, sendo introduzido na seguinte passagem:

Professor – Dissemos que nós olhamos para dentro do horizonte. Contudo, o campo de visão (der Gesichtkreis)7 é um aberto, mas sua abertura não se deve ao nosso olhar para dentro deste.

Erudito – Da mesma forma, nós não colocamos a aparência dos objetos, que a vista dentro de um campo de visão nos oferece, dentro deste aberto...

Cientista – [...] antes, ela sai deste e vem ao nosso encontro.

Professor – O que é evidente, então, do horizonte é o lado voltado para nós de uma abertura que nos rodeia; uma abertura repleta de vistas daqueles que, para nossa representação, aparecem como objetos.

Cientista – O horizonte é, pois, algo mais além de um horizonte. Mas depois do que foi dito, este algo mais é o outro lado de si mesmo, e assim, é ele mesmo. O senhor diz que o horizonte é a abertura que nos rodeia. Mas o que é essa abertura enquanto tal, se desconsiderarmos que ela também pode aparecer como o horizonte de nossas representações?

7 Tanto Horizont quanto Gesichtskreis poderiam ser traduzidos como “horizonte” mas, para marcar o uso alternado dessas duas palavras por Heidegger, optei por seguir aqui a solução adotada na tradução para o inglês, que usa “Horizon” para Horizont e “field of vision” para Gesichstkreis.

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Professor – Ela se me afigura como uma região (eine Gegend ), um encanto para o qual tudo o que lhe pertence retorna, no qual repousa.

Erudito – Não estou certo de ter compreendido o que o senhor disse agora.

Professor – Eu não o compreendo tampouco, se por “compreender” o senhor quer dizer a capacidade de representar o que se coloca diante de nós, como se estivesse abrigado em meio ao familiar e assim seguro; pois eu também careço do familiar no qual possa colocar o que tentei dizer sobre o aberto como região (das Offene als Gegend).

Cientista – Isto é, talvez, impossível aqui porque, presumivelmente, o que o senhor chama de região é aquilo que, em si somente, permite todo abrigo.

Professor – Eu disse algo assim, mas não apenas isto.

Erudito – O senhor falou de “uma” região na qual tudo retorna a si mesmo. Uma região para todas as coisas não é uma região dentre outras, mas a região de todas as regiões (die Gegend aller Gegenden).

Professor – O senhor está certo, o que está em questão é a região.

Cientista – E o encanto desta região deve por certo ser o reinar de sua essência, o [seu] regionar (das Gegnende)8, se assim posso dizer.9 (Heidegger, 1945, p. 38-40).

A abertura do campo de visão a que se faz alusão aqui não é fruto da iniciativa de algum sujeito, que tampouco deteria o poder de aí inserir seus objetos. Antes, o movimento desencadeado pela região, e que propicia o encontro – ou a compreensão – de qualquer fenômeno a 8 Optei aqui por verbalizar a palavra “região”, por não encontrar nenhum termo satisfatório em nossa língua que traduzisse “das Gegnende”, sem que com isso se acrescentassem outras conotações estranhas ao sentido que Heidegger atribuiu a esta palavra. A tradução para o inglês adotou a expressão “its regioning”.9 Tradução minha, a partir da versão em inglês (p. 36-39).

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partir de determinado horizonte, é inerente a esta mesma abertura. Mas o horizonte, diz Heidegger, é apenas “o lado voltado para nós de uma abertura que nos rodeia”. Esta abertura que tudo abarca é o que aqui recebe o nome de região: não se trata de uma região dentre outras, tal como em Ser e Tempo, mas da “região de todas as regiões”, a região que é capaz de acolher em si não apenas os “objetos” de nosso pensamento, mas também o próprio pensamento. É a região que abarca a abertura: o aberto (das Offene) é rodeado pela região.10

É antes de tudo para dar conta desta nova concepção de região que Heidegger vai recorrer – num gesto característico seu – à forma mais antiga desta palavra, substituindo, então, Gegend por Gegnet. Tal mudança de terminologia visa a sublinhar o fato de que este último termo, Gegnet, ou seja Região11, só se deixa compreender por um pensamento não representacional, onde a contraposição sujeito-objeto, aqui identificada ao conceito de horizonte, dá lugar a um movimento de vir ao encontro. Este vir ao encontro, formulação desde sempre presente no pensamento de Heidegger, apresenta em Para a discussão da serenidade, uma novidade: o encontro é abordado a partir do que o autor identifica como um movimento mais originário, que desencadeia este encontro, um movimento que antecede e envolve a própria abertura, ao qual ele denomina die Gegnet: a Região. Este termo arcaico foi escolhido justamente para diferenciar-se do atual; para que, trazendo consigo um significado renovado, pudesse traduzir este “vir ao encontro”, expressão que implica tanto “movimento”, como “reunião” (ambas noções associadas à idéia de região, ou, melhor ainda, a um “movimento regionador”). O horizonte está envolvido pela região. Segundo Jean-Philippe Milet12, a região é o ser mesmo do horizonte, sua essência e verdade originária. O horizonte se apresenta, porém, numa estrutura de antecipação, o que não ocorre com a Região: recusando qualquer antecipação, esta escapa, igualmente, a toda possibilidade de apropriação temática e objetificadora.

10 O conceito heideggeriano de “aberto” (das Offene) é usado por Heidegger para expressar, basicamente, abertura de sentido, ou de compreensão. Para o autor, o mundo é o próprio aberto, é a “totalidade do que não se opõe” a nós, sendo o homem o próprio agente desta abertura.11 A palavra “região”, quando estiver, no presente contexto, traduzindo Gegnet – esta forma arcaica do termo alemão Gegend –, aparecerá com maiúscula (Região).12 Cf. MILET, J. P. – Horizon et contrée chez Heidegger, p. 592-593.

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A compreensão da natureza da Região – ou seja, desse movimento de vir ao encontro que “dissolve” a dualidade sujeito-objeto – é um passo fundamental aqui. A Região é, em si, um movimento envolvente e pulsante, de expansão e recolhimento, e repousa na constância deste seu movimento. Abarca não apenas o mundo material, mas também o próprio pensamento. Isto não significa que a Região não possa ser pensada, mas que esta escapa por completo ao pensamento representacional. Mas como se daria, então, um pensamento sem objetos, sem representações e, principalmente, livre de toda vontade de apreensão e representação? Na serenidade, diz Heidegger, onde se é capaz de aguardar. A natureza deste aguardar não se identifica a um “esperar por” – que já implicaria, por si, algum interesse subjetivo, um querer ou expectativa –, mas a um “esperar em”13, ou seja, um sereno aguardar, pelo pensamento, por aquilo que é dado, o que se abre como dádiva.14 Aguardar tem aqui o sentido positivo de abandonar-se, de permanecer serenamente receptivo ao que vem a nós no movimento da Região.

Serenidade é, portanto, a atividade mais elevada do pensamento, atividade na qual, como diz Heidegger, ocorre um liberar-se de (losgelassen aus) uma relação transcendental para com o horizonte. Este primeiro aspecto da serenidade, porém, não esgota sua essência, e sequer exprime o que há nela de mais crucial. A serenidade prescinde, inclusive, deste “estar liberado de”, e se mostra num segundo aspecto de sua natureza, quando Heidegger alude a um “estar liberado para”, já implícito na expressão “die Gelassenheit zur Gegnet”, como condição para a serenidade em seu sentido mais autêntico. Há um claro caráter de decisão aqui implicado, em vista do qual a natureza da serenidade se deixa perceber em toda a sua complexidade, uma vez que desta decisão ficam excluídos quaisquer traços de voluntarismo e subjetividade. O poder de decisão que

13 “Warten, wohlan; aber niemals erwarten [...].” 14 John M. Anderson, em sua introdução a Gelassenheit, explicita claramente a distinção entre estas duas formas do esperar nos seguintes termos: “Normalmente, quando esperamos, esperamos por algo que nos interessa ou que pode nos dar o que desejamos. Quando esperamos neste modo humano, a espera envolve nossos desejos, objetivos e necessidades. Mas o esperar não precisa ser tão decididamente colorido por nossa natureza. Há um sentido no qual podemos esperar sem sabermos pelo que esperamos. Esperamos, neste sentido, sem esperar por nada; por nada, isto é, o que pode ser apreendido e expresso em termos humanos e subjetivos”. (Cf. Discourse on Thinking, p. 22-23).

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se enraíza na serenidade concerne a um abrir-se deliberado do homem para o aberto, este compreendido como inerente à própria Região. O pensamento, em seu sentido mais elevado, identifica-se, portanto, a um deixar-se levar serenamente pelo movimento congregador de Região (Gegnet). E as palavras do professor e do Erudito resumem bem esta premissa:

Professor – A serenidade seria, então, não apenas o caminho, mas também o caminhar /movimento.

Erudito – Para onde vai este estranho caminho e onde repousa o caminhar que lhe é próprio?

Professor – Para onde poderia ser, senão para/na região (Gegnet), em relação à qual a serenidade é o que é? (Heidegger, 1945, p. 45 ).15

O caráter de decisão, ou de resolução, implícito no conceito heideggeriano de serenidade – que, ao mesmo tempo em que marca sua diferença em relação à vontade, evoca também a não passividade, a “energia ativa” (die Tratkraft) inerente a ela – encontra-se intimamente ligado à tematização do pensamento em Para discussão da serenidade. Isto fica bastante evidente quando, pela boca do Cientista, Heidegger afirma que “a essência do pensamento, a saber, a serenidade em relação a Região, seria a resolução pela verdade”16, colocação esta completada pelo Professor com as seguintes palavras:

[...] na serenidade poderia ocultar-se uma persistência que consiste simplesmente no fato de a serenidade interiorizar cada vez mais claramente sua própria essência e nela se instalar persistentemente (Heidegger, 1945, p. 58).

Trata-se aqui de uma “persistência contida”, que vem a ser a condição mesma para um repousar da serenidade em sua própria 15 Transcrição ligeiramente modificada.16 Segundo Michael Inwood, Gegnet seria “quase equivalente à verdade, em sentido heideggeriano” (Dicionário Heidegger, p. 37).

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essência. Como resume Heidegger, numa única palavra: insistência (Inständigkeit); isto é, insistência da serenidade em relação à Região.

Um outro pensamento

Em 1944, em seu curso de verão Lógica. A doutrina heraclítica do lógos, Heidegger viria a tematizar uma certa “prontidão” do pensamento, onde se observa uma profunda afinidade com o que viria a ser desenvolvido no ano seguinte, em Para a discussão da serenidade. Esta prontidão responde ao fato de que, segundo Heidegger, os pensamentos produzidos pelo homem – aqueles que são provocados pela vontade e “corretamente” construídos pelas regras da “lógica”, tal como esta é usualmente compreendida – não dariam conta da realidade. A complexidade desta última não se deixaria dominar por “pensamentos corretos” apenas, mas demandaria, para uma mais plena compreensão, de uma outra dimensão da lógica: a “lógica interna das coisas”, as quais nos conduziriam conscientemente para pensamentos não propriamente “produzidos”, mas dispensados a nós. A prontidão do pensamento corresponde, então, à atitude que aguarda atentamente, na serenidade, que a lógica interna às coisas nos seja dispensada.17 O que fica clara aqui é a recusa por Heidegger da idéia de que a ânsia por um domínio objetificador da realidade, que marca o pensamento calculador, nos levaria ao conhecimento verdadeiro. Antes, tal atitude do pensamento deixaria escapar o mais essencial.

Será interessante observar que mais de duas décadas depois, na famosa entrevista concedida por Heidegger a Der Spiegel em setembro de 1966 – mas apenas publicada postumamente, em 1976, por expressa exigência do filósofo –, ele retoma suas considerações sobre a questão do

17 Numa passagem de Lógica. A doutrina heraclítica do lógos, Heidegger (1944, p. 200) deixa isto bem claro, quando diz: “Alguém pode dominar inteiramente a ‘lógica’ sem, no entanto, jamais produzir um pensamento verdadeiro. Pensamentos verdadeiros são, porém, muito raros. [...] Os pensamentos verdadeiros e raros não surgem do pensamento auto-produzido. Também não se encontram nas coisas, da mesma maneira que uma pedra se encontra no campo, ou uma rede na água. Os pensamentos verdadeiros são dis-pensados ao homem, e isso somente quando ele se encontra na correta com-pensação, ou seja, na prontidão exercida para o pensamento, que vem ao seu encontro como o a-se-pensar”.

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pensar, não mais usando a terminologia que encontramos em Serenidade, mas trazendo as mesmas posições de antes para um contexto mais atual. Respondendo a uma pergunta de seus entrevistadores acerca do poder da filosofia de influenciar a “rede de inevitabilidades” do mundo contemporâneo, ou de guiar o indivíduo – ou muitos indivíduos – para alguma ação específica e eficaz, Heidegger responde:

[...] A filosofia não estará apta a efetuar uma transformação imediata na presente condição do mundo. Isto é verdadeiro não apenas para a filosofia, mas para todo pensamento meramente humano e empenho. Só um deus pode nos salvar. A única possibilidade que nos é deixada é a de preparar uma espécie de prontidão, através do pensar e do poetar, para o aparecimento do deus ou para a ausência do deus em tempo de decadência; pois perante a face do deus ausente, nós naufragamos.18

Nesta passagem, Heidegger faz alusão a alguns elementos

significativos no que tange às questões que vêm sendo aqui tratadas. Em primeiro lugar, desincumbe a filosofia – ou o pensamento, de um modo geral – de produzir efeitos, ou seja, de efetuar transformações de ordem prática no mundo, apontando assim para uma independência do pensamento, ou do “valor” do pensamento, em relação a quaisquer expectativas de mudanças concretas na realidade. Na verdade, ele constata, antes, uma insuficiência do pensamento por si só – tanto o filosófico quanto outras formas do pensar – para levar a cabo tal empresa. Em segundo lugar, faz uma ressalva: isto é válido para “todo pensamento meramente humano”, fazendo em seguida uma surpreendente menção ao sagrado, que veio a se tornar a frase mais comentada de toda a entrevista: “só um deus pode nos salvar”. Antes de se atribuir, apressadamente, a esta frase um caráter puramente religioso, deve-se considerar que o que está em questão aqui é, mais do que isto, uma espécie de apelo à dimensão não objetivável da existência, ao que não é meramente humano, não dominável pelo cálculo. Trata-se de dimensões que escapam ao controle da lógica corrente, tais como o 18 Philosophy Today, Inverno de 1976, p. 277, tradução minha.

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da poesia em sentido amplo, e do próprio pensamento, por exemplo, daquele pensamento não “produzido”, mas dispensado ao homem. A consideração desta situação leva Heidegger a concluir que a única atitude do pensar que se nos oferece como confiável é, mais uma vez, “uma espécie de prontidão”, que nos remete ao aguardar atento.

Ao ser indagado, ainda na entrevista, se haveria alguma relação causal entre seu pensamento e o advento do deus antes mencionado, Heidegger afirma que tanto por parte do homem, como da filosofia, o que se pode fazer, na melhor das hipóteses, é dar o primeiro passo com a preparação desta prontidão, isto é, estar aberto para a chegada ou a ausência do sagrado.19

Mas um fator que está diretamente implicado em tudo o que vem sendo colocado até agora, e que ainda não foi mencionado, é a relação contemporânea entre pensamento e técnica, ou tecnologia, tema marcante no pensamento de Heidegger, principalmente a partir da década de 1950. Segundo ele, o papel até então reservado à filosofia vem sendo gradativamente assumido pelas ciências, ou, mais precisamente, vem “se dissolvendo” em ciências particulares, tais como a psicologia, a lógica ou a ciência política. O que parece ficar evidente é uma sensação de insuficiência do pensamento propriamente filosófico, tal como desenvolvido ao longo da tradição, para dar conta das demandas contemporâneas. Numa passagem de especial interesse para a presente discussão, a entrevista prossegue nos seguintes termos:

Der Spiegel – E agora, o quê ou quem toma o lugar da filosofia?Heidegger – A cibernética.Der Spiegel – Ou o [homem] pio, que se mantém aberto.Heidegger – Mas isto não é mais filosofia.Der Spiegel – O que é, então?Heidegger – Eu chamo isto o “outro pensamento”.20

19 Heidegger explica esta ausência com as seguintes palavras: “Ademais, a experiência desta ausência não é senão a liberação do homem daquilo que chamei ‘queda em meio aos entes’, em Ser e Tempo. Uma meditação acerca do que ocorre hoje pertence à preparação para a prontidão a qual nos referimos”. Ibidem, p. 278, tradução minha.20 Ibidem, p. 279, tradução minha.

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É importante registrar que, para Heidegger, o lugar destinado ao pensamento nesta época de ausência do sagrado e de uma presença cada vez maior da tecnologia precisará, obrigatoriamente, se transformar. O que se mantém expectante e aberto, não é mais a “filosofia”, mas o que Heidegger chama de “outro pensamento”. Este “outro pensamento” nada tem a ver com a interpretação da filosofia ocidental empreendida por Heidegger, ou com seu regresso aos fundamentos históricos do pensamento, ou mesmo com seu atravessar as questões ainda não respondidas desde os tempos da filosofia grega. O outro pensamento tenta, como afirma o próprio Heidegger, abrir “alguma possibilidade para que se experimente, de uma forma reflexiva, os traços fundamentais da era tecnológica, uma era que mal começou”.

É importante registrar mais uma vez que Heidegger se recusa, na entrevista, a apontar os “efeitos” deste outro pensamento, e fala, então, do silêncio, como aquilo que é requerido para preservar o próprio pensamento de ser completamente obstruído. O sentido deste silêncio, tão facilmente mal interpretado – ora como consentimento às injustiças do mundo, ora como negação a uma participação ativa em assuntos relevantes, ou mesmo como uma incapacidade de resposta às questões mais prementes –, remete, antes, a uma outra postura do pensamento, já fora do registro dualista marcado pela polaridade agir/não agir, onde este segundo termo tem permanecido tão incompreendido por nós ocidentais. Pode ser também compreendido como o assumir pelo pensamento desta atitude de não se identificar a seus efeitos; em outras palavras, uma não identificação do agir com os frutos ou resultados deste agir. As palavras de Heidegger, que se seguem, respondem às insistentes indagações de seus interlocutores de Der Spiegel, no sentido de obter do filósofo indicações claras e precisas para o pensamento, diante dos impasses e desafios do mundo contemporâneo. Diz ele:

Não é o caso de se esperar, simplesmente, até que algo ocorra ao homem nos próximos 300 anos, mas de pensar adiante (sem proclamações proféticas) a respeito do tempo que está por vir, pensar do ponto de vista das características fundamentais

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da era presente, ainda muito pouco pensadas. Pensar não é inatividade, mas é, em si mesmo, o agir que permanece em diálogo com o destino do mundo (das Weltgeschick). Parece-me que a distinção, que provém da metafísica, entre teoria e prática, e a representação de algum tipo de transmissão entre ambas, obstrui o caminho para uma percepção do que eu compreendo por pensamento.21

A passagem acima deixa claro que este outro pensamento busca ultrapassar as duras distinções metafísicas entre teoria e prática, atividade e inatividade, bem como da idéia de representação, como já vimos. E é fundamental frisar que a complexidade e a sutileza que marcam este outro pensamento levam igualmente a uma atitude que não se define por alguma espécie de resistência ingênua ao domínio tecnológico, mas, antes, a um lidar muito próprio com o mundo técnico, lidar este que podemos identificar ao pensamento meditativo. Este último, por escapar às dualidades e às polarizações tão caras ao pensamento representacional, se permite transitar “pelo meio”, ou seja, por uma via capaz de conciliar o que, a princípio, parece inconciliável. No que diz respeito especificamente à técnica e à tecnologia, ou, mais precisamente, à nossa absoluta dependência da tecnologia, Heidegger propõe uma “atitude de sim e não simultâneos ao mundo técnico”. Em Serenidade, admitindo a insensatez de um pensamento que invista contra este mundo técnico, ele aponta para a busca e uma liberdade aparentemente muito simples e singela, muito afim com a natureza do pensamento meditativo, mas que, de fato, propõe um imenso desafio para a atual relação do mundo contemporâneo com a tecnologia. Diz Heidegger (1955, p. 23-24):

Podemos utilizar os objetos técnicos e, no entanto, ao utilizá-los normalmente, permanecer ao mesmo tempo livres deles, de tal modo que os possamos a qualquer momento largar. Podemos utilizar os objetos técnicos tal como eles têm de ser utilizados. Mas podemos, simultaneamente, deixar estes objetos repousar em si mesmos como algo que não interessa àquilo que temos de mais íntimo e de mais próprio. Podemos dizer “sim” à utilização

21 Ibidem, p. 280, tradução minha.

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inevitável dos objetos técnicos e podemos ao mesmo tempo dizer “não”, impedindo que nos absorvam e, deste modo, verguem, confundam e, por fim, esgotem nossa natureza (Wesen). [...] Deixamos os objetos técnicos entrar em nosso mundo cotidiano e ao mesmo tempo deixamo-los fora, isto é, deixamo-los repousar em si mesmos como coisas que não são algo de absoluto, mas que dependem elas próprias de algo superior. Gostaria de designar esta atitude do sim e do não simultâneos em relação ao mundo técnico com uma palavra antiga: a serenidade para com as coisas (die Gelassenheit zu den Dingen).

* * *

A questão que naturalmente se coloca para nós é: até que ponto estas idéias de Heidegger poderiam encontrar eco no mundo contemporâneo, especialmente no campo da educação, onde se lida não apenas com o pensamento, mas também com a preparação do ser humano, de qualquer idade, para enfrentar desafios de toda sorte? Tais desafios parecem demandar um “preparo” pessoal voltado para o pleno cumprimento de metas, onde o querer é fundamental; onde os efeitos de nosso agir devem ser evidentes e imediatos; onde o cálculo é a base que antecede qualquer empresa. Idéias como as de um pensamento meditativo que aguarda por algo a ser a nós dispensado, de uma ausência do querer que põe e dispõe das coisas, de uma serenidade livre em relação a todo um aparato tecnológico cuja falta é inimaginável para nós soam, no mínimo, estranhas e em descompasso com realidade. Mas talvez a resposta do pensamento a este impasse já esteja muito clara: um caminho não exclui o outro e esta é, afinal, a premissa de Heidegger, a conciliação do sim e do não. Se o mesmo poderá ocorrer com o que hoje identificamos ao pensamento calculador dominante, isto é, se este poderia acolher em si o seu outro, é talvez a questão que ainda espera por uma resposta. Resta-nos aguardar.

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Recebido em: 10 de novembro de 2007.Aprovado em: 21 de novembro de 2007.

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A apreensão fenomenológica da vida fáctica em Heidegger

Roberto Wu *

Resumo: Este artigo se propõe a tratar da contribuição fenomenológica de Heidegger para o âmbito da educação, mostrando que o método fenomenológico permanece como um método científico em geral. Para isto, expomos, em primeiro lugar, o conceito de fenomenologia em Husserl, em seguida o heideggeriano, e, finalmente, a relação entre fenomenologia, ontologia e hermenêutica no horizonte da compreensão de ser, analisando obras de Heidegger de 1922 (Interpretações Fenomenológicas de Aristóteles) a 1927 (Problemas Básicos da Fenomenologia).

Palavras-chave: Fenomenologia. Ontologia. Hermenêutica. Vida fáctica

Phenomenological Apprehension of Factical Life in Heidegger

Abstract: This paper intends to point the phenomenological contribution of Heidegger to the scope of education, showing that the phenomenological method stands as a method of scientific philosophy in general. For this, first we expose Husserl’s concept of phenomenology, later the Heideggerian one, and finally the relation between phenomenology, ontology and hermeneutics in the horizon of the understanding of being, analyzing Heidegger’s works

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano VI n. 10 p. 177-202 2008

* Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO). Professor titular dos cursos de Direito, Pedagogia e Psicologia no Unicenp - PR. E-mail: [email protected]

númeRo esPeciAl:Heidegger e a Educação

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from 1922 (Phenomenological Interpretations with Respect to Aristotle) to 1927 (The Basic Problems of Phenomenology).

Key-words: Phenomenology. Ontology. Hermeneutics. Factical life.

Quem procura, seja de que modo for, por uma contribuição heideggeriana à educação, não pode deixar de notar que alguns temas fundamentais permitem um novo horizonte no qual os comportamentos humanos podem se mostrar sob uma nova ótica. Essa relação entre a educação e a existência surge muito cedo em Heidegger; já em 1918, ele pensa a tarefa educativa como valoração e apropriação dos “recursos da existência”1. Posteriormente, nas obras da ontologia fundamental, o existente humano seria designado como aquele cujo modo de ser é a abertura – Dasein, ser-aí –, descrito como um projeto inconclusivo desde uma relação fáctica com o ser, isto é, um projeto que é desde sempre compreensão de ser. Fica evidente que se é lícito de alguma forma pensar a relação de Heidegger com a educação, é porque isso se dá a partir de uma concepção do existente humano como abertura projetiva ao ser, e nunca na qualidade de uma poiesis em que o homem se desenvolveria uma potencialidade inata, seja por meio de um amadurecimento da razão, seja enquanto erudição intelectual advinda exteriormente pela cultura reinante. Trata-se, sobretudo, da distinção entre, de um lado, o modo de ser do existente humano (Dasein) e, de outro, o do mero subsistente, do meramente disponível, do ente simplesmente dado, daquele que não compreende ser.

De todas as formas possíveis de se analisar a questão da educação na filosofia heideggeriana – dentre as quais se destaca a pesquisa do período de sua atividade como reitor na Universidade de Freiburg (1933-1934) sob os auspícios do Partido Nacional-Socialista –, abordaremos uma questão que se nos apresenta como fio-condutor do pensamento desse filósofo como um todo: a noção de fenomenologia. Por mais que tenha havido deslocamentos e transformações nas diversas obras que

1 Thompson, I. Heidegger and the Politics of the University. Journal of the History of Philosophy, v. 41, n. 4, p. 515-542, 2003. Cf. p. 519-520.

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Heidegger produziu ao longo de sua vida, é preciso salientar que o autor defendeu e empreendeu um acesso “às coisas mesmas” da filosofia - para utilizar o lema fenomenológico que Heidegger atribuiu a Husserl – no sentido preciso de sua concepção fenomenológica. O fundamental é que a visão fenomenológica propicia, segundo Heidegger, um acesso ao ser dos entes, uma apreensão tal como eles se mostram em si mesmos.

Antes mesmo da publicação de Ser e Tempo, Heidegger já havia alcançado certa fama no mundo acadêmico. Não se tratava de um sistema novo que suplantasse as teorias filosóficas anteriores mas de uma espécie de atitude que revitalizava o pensamento de autores consagrados pela tradição, e que, por isso mesmo, permaneciam cristalizados em manuais e esquemas que lhes tirava qualquer contribuição contemporânea. A atitude de Heidegger era, ao mesmo tempo, um confronto e uma apropriação da tradição a partir de um método – denominado fenomenológico – herdado de Edmund Husserl.

Não se tratava mais de tomar os temas filosóficos como objetos de erudição, e sim como coisa pensada, como algo digno de uma reflexão radical por meio do método fenomenológico que não visa a “simples enunciação de um estado de coisas”,2 mas uma transformação do pensamento. Hannah Arendt descreve a revolução acadêmica propiciada por Heidegger do seguinte modo:

O decisivo no método era que, por exemplo, não se falava sobre Platão e não se expunha sua doutrina das idéias, mas seguia-se e se sustentava um diálogo durante um semestre inteiro, até não ser mais uma doutrina milenar, mas apenas uma problemática altamente contemporânea. Hoje em dia, isso sem dúvida nos parece totalmente familiar: agora muitos procedem assim; antes de Heidegger, ninguém o fazia. A novidade simplesmente dizia: o pensamento tornou a ser vivo, ele faz com que falem tesouros culturais do passado considerados mortos e eis que eles propõem coisas totalmente diferentes do que desconfiadamente se julgava. Há um mestre; talvez se possa aprender a pensar.3

2 Heidegger, M. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 71. (Col. Os Pensadores).3 Arendt, H. Martin Heidegger faz oitenta anos. In: ______. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das letras, 1987. p. 223.

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Nesse caso, aprender a pensar significa conquistar um acesso ‘às coisas mesmas’, o que envolve a questão diretriz do pensamento heideggeriano: a questão do ser. Como veremos, o pensamento tornou-se vivo porque o confronto com a tradição por meio da questão diretriz o reavivava.

Heidegger e a Fenomenologia Husserliana

A apropriação heideggeriana da fenomenologia de Husserl está testemunhada em diversos escritos da década de vinte, dentre eles: Prolegômenos à história do conceito de tempo, Ser e tempo e Problemas fundamentais da fenomenologia. Nelas, Heidegger baseou-se principalmente nas Investigações lógicas, A filosofia como ciência rigorosa e Idéias I. Discutiremos a seguir a exposição da fenomenologia nos Prolegômenos que envolve a compreensão heideggeriana do projeto fenomenológico de Husserl. De modo geral, Heidegger reconhece três contribuições fundamentais nas descobertas operadas por Husserl: a noção de intencionalidade, de intuição categorial e do sentido originário do a priori.4

De acordo com Heidegger, Intentio significa “direcionar-se para”. As relações intencionais são atos que conjugam experiências vividas. Essa intentio subjaz a cada experiência vivida, a cada comportamento psíquico, no sentido de que cada comportar-se é um direcionar-se para algo. A intentio designa um movimento para além de si que correlaciona e liga – nesse sentido, consciência é sempre consciência de algo: “representação é uma representação de algo, recordação é uma recordação de algo, julgamento é um julgamento sobre algo, presumir, aguardar, esperar, amar, odiar – algo”.5

A intencionalidade consiste na pertença recíproca entre intentio e o intentum, na medida em que ocorre uma doação pela consciência enquanto intentio e uma auto-doação pelo intentum – o que se afasta da concepção de uma atividade unilateral da consciência, já que ela possibilita aos 4 Cf. TaminiaUx, J. Leituras da ontologia fundamental: ensaios sobre Heidegger. Lisboa: Inst. Piaget, 1995, p. 47.5 Heidegger, M. History of the Concept of Time (Prolegomena). Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1992a. p. 29.

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seus correlatos aparecerem apenas enquanto são visados por ela. Por oposição à atitude natural, o ver fenomenológico descobre o sentido de cada intenção, isto é, o como do aparecimento do intentum. Desta forma, a intencionalidade está relacionada ao fato de que a consciência é sempre consciência de algo, o que significa que toda consciência só pode ser consciência em conjunto com o seu correlato, de modo que a idéia de um primado da auto-consciência é uma ilusão objetivista.

Heidegger realiza uma série de críticas em relação à noção de intencionalidade de Brentano, mostrando como Husserl e Scheler procuraram se distanciar dele. Para Brentano, segundo Heidegger, intencionalidade diz respeito apenas ao intentio, a noesis, mas não ao seu correlato, o intentum, o noema. De modo geral, Brentano identifica a intencionalidade com o psíquico, e Heidegger vê isso como decorrência de uma aceitação da imanência da consciência tal como Descartes o concebeu. As respostas de Husserl e Scheler, tomando a intencionalidade, ora como estrutura universal da razão (Husserl) – embora num sentido bem específico, ora como estrutura universal do espírito (Scheler), tampouco dão conta, segundo Heidegger, do modo de ser dessa estrutura, o que exigiria um desenvolvimento ainda mais radical e a pressuposição da tarefa de uma destruição da tradição ontológica que sustenta os pressupostos da metafísica dogmática que ainda permanecem na fenomenologia desses dois autores. Nesse sentido, Heidegger afirma que a “intencionalidade não é uma última explicação do psíquico mas uma abordagem inicial para superar a aplicação a-crítica de realidades tradicionalmente definidas como o psíquico, consciência, continuidade da experiência vivida, razão”.6

Quanto à intuição categorial, pode-se dividir a sua análise em quatro, cada uma correspondendo a um ato categorial. Por intuição entende-se a simples apreensão daquilo que se encontra em si mesmo e que se mostra por si mesmo. A primeira consiste no preenchimento identificador do visar intencional. Este visar é um ato de identificação (Identifizierung) e uma mostração (Aufweisung), ou seja, a percepção mostra

6 Idem, ibidem, p. 47.

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na sua identidade o que inicialmente era apenas visado. Denomina-se evidência um ato intencional específico que consiste na identificação tanto no sentido de fazer coincidir quanto no de manifestação de identidade. Esse tornar visível é ao mesmo tempo regional, na medida em que cada intencionalidade visa a um preenchimento específico, e universal, enquanto função de todos os atos.

O segundo aspecto da intuição categorial analisado por Heidegger é a ligação entre intuição e expressão. A expressividade exprime vivências e comportamentos na significação por meio de proposições e asserções. Segundo Heidegger, “asserções são atos de significação, e asserções no sentido de proposições formuladas são apenas formas específicas de expressividade, onde expressividade tem o sentido de expressar experiências vividas ou comportamentos através de significação”.7 Entretanto, todo enunciado de percepção implica numa impossibilidade de identificação entre mostração e percepção. A mostração requer para si um excesso ou excedente que não pode mais buscado na intuição sensível, mas no ato intencional de apreensão de uma categoria.

O terceiro ponto diz respeito à interdependência entre síntese e análise, na medida em que toda análise envolve uma relação de síntese com a totalidade da coisa. Trata-se de conjunção e disjunção, sintesis e diairesis, no sentido fenomenológico, ou seja, da conexão de objetos previamente separados na síntese, por exemplo, mas do fato originário de que tanto sintesis quanto diairesis possibilitam objetos. Assim, Taminiaux afirma sobre esse assunto que “o ato de síntese é o ato duplo de explicitação de uma totalidade e de restituição a ela do momento destacado. Nesse ato, é o estabelecer a relação que é primeiro e é por ele que os termos que liga se tornam explícitos”.8

O quarto aspecto da intuição categorial é o ato de ideação, pelo qual uma essência é intuída na sua universalidade9. Não se trata, de forma alguma, de uma atividade produtiva do entendimento como o 7 Idem, ibidem, p. 56.8 TaminiaUx, J. Leituras da Ontologia Fundamental, p. 52.9 Por essência, entende-se elementos necessários do momento pré-objetivo. DUqUe-Estrada, P. Gadamer´s rehabilitation of Practical Philosophy (An Overview). Thesis of Doctorate. Boston College, 1993, 180p. Cf. p. 32.

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descrito pelo esquematismo kantiano, diz respeito, antes, a um “deixar o ente ser visto na sua objetividade”.10 Esses quatro temas que perpassam a intuição categorial podem ser relacionadas com Aristóteles. Para Taminiaux, “tudo se passa, a seus olhos, como se a Aufweisung reanimasse a concepção aristotélica da verdade, como se a ligação revelada por Husserl entre a intuição e a expressão reanimasse o conceito aristotélico do logos apophantikos, como se a noção husserliana do ato de síntese reanimasse a ligação posta em evidência por Aristóteles entre sintesis e diairesis, como se, por fim, a ideação reanimasse a concepção aristotélica da abstração”.11 Como veremos adiante, a importância desempenhada por Aristóteles na concepção fenomenológica de Heidegger ultrapassa esses quatro temas.

Além da intencionalidade e da intuição categorial, Heidegger reconhece a descoberta feita por Husserl do sentido originário do a priori como fundamental, embora atenuada em diversos aspectos na sua exposição. Heidegger reconhece que Husserl foi responsável por livrar a noção de a priori da marca subjetivista deixada por Kant. Entretanto, Heidegger afirma que apesar de Husserl ter chegado a algumas intuições essenciais, a noção de a priori permaneceu pouco clara, além de estar atrelada, em vários casos, ainda a limitações impostas pelo uso de concepções da tradição, e pela insuficiência de uma compreensão mais originária do tempo. Como expressão do distanciamento fenomenológico entre Heidegger e Husserl, lemos que o “a priori compreendido fenomenologicamente não é um título para comportamento mas um título para o ser”.12 Não se trata, portanto, de uma compreensão do a priori em termos temporais no sentido do tempo como seqüência de agoras, mas como elemento fundamental do ser dos entes. Resumindo os três elementos fundamentais na consideração do a priori, Heidegger afirma que “a exposição tripartida do a priori - 1) seu alcance universal e sua indiferença para com a subjetividade, 2) o modo de acessá-lo (apreensão simples, intuição originária), e 3) preparação

10 Heidegger, History of the Concept of Time (Prolegomena), p. 71. 11 TaminiaUx, op. cit., p. 54.12 Heidegger, History of the Concept of Time (Prolegomena), p. 74.

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para a especificação da estrutura do a priori como característica do ser dos entes e não uma característica mesma dos entes –revelou-nos o sentido original do a priori”13. Portanto, o a priori nada tem a ver com uma estrutura cognitiva do sujeito, mas com o ser dos entes que pode se fazer acessível mediante a intuição originária.

A articulação das três descobertas fenomenológicas por Husserl, intencionalidade, intuição categorial e o a priori caracterizam a fenomenologia como “esforço de investigação”14, e isso significa uma postura que possibilita a manifestação das coisas em seu sentido, como se verá a seguir.

O conceito de fenomenologia em Heidegger

A fenomenologia é definida por Heidegger como uma ciência propedêutica para as demais disciplinas filosóficas. Tal consideração está diretamente relacionada com o caráter descritivo do método fenomenológico, isto é, com a articulação do que é em si intuído na análise. O que se mostra na intuição vem por uma “auto-apreensão direta”15, isto é, por uma análise descritiva do tema e nunca por uma experiência indireta. É nesse sentido que Heidegger oferece a seguinte definição de fenomenologia: “descrição analítica da intencionalidade no seu a priori”16. Trata-se, portanto, de uma ciência propedêutica que não tem o caráter de ser uma substituição de doutrinas filosóficas anteriores, já que exige uma outra postura que não as oferecidas pelas correntes filosóficas tradicionais. Heidegger chega mesmo a afirmar que se trata de um “começo libertador” 17 para o pensamento, o que significa também reconduzir a filosofia para o seu “verdadeiro solo”18.

Essa primeira definição de fenomenologia encontra uma completude maior pela análise heideggeriana dos termos que a compõem: phainomenon e logos. Phainomenon remete a phainestai que significa

13 Idem, ibidem, p. 75.14 Idem, ibidem, p. 75.15 Idem, ibidem, p. 78.16 Idem, ibidem, p. 78.17 Idem, ibidem, p. 79.18 Idem, ibidem, p. 79.

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mostrar-se, de modo que phainomenon é o que se mostra (was sich zeigt), o que se mostra por si mesmo (Sichzeigende) e que se revela (Offenbare). Este mostrar-se diz respeito à forma média do termo phainomenon que é phaino, que significa trazer para a luz, para a claridade. Conseqüentemente, fenômeno é aquilo que se mostra em si mesmo19. Entretanto, isso não implica que o encontro com os entes se dê de modo unívoco, pois o ente pode se mostrar de vários modos.

Um ente pode-se mostrar como o que ele não é. Não se chama de fenômeno um ente que não se manifesta a si mesmo enquanto o que ele é, mas de aparência (Schein) o que apenas parece ser. Esse modo de manifestação é, segundo Heidegger, derivado do modo originário do phainomenon: “apenas na medida em que algo pretende mostrar-se em seu sentido, isto é, pretende ser fenômeno, é que pode mostrar-se como algo que ele mesmo não é, ou pode ‘apenas se fazer ver assim como...’”20. Há, portanto, uma dependência ontológica do phainomenon como aparência, o que parece ser, do phainomenon em sentido originário; justamente por isso, Heidegger passa a designar como fenômeno apenas aquilo que se manifesta em si mesmo como o ente que é, e de aparência a modificação privativa derivada do primeiro.

Outro modo do fenômeno ocorrer diz respeito à manifestação (Erscheinung). A manifestação de algo, o seu aparecimento, anuncia e indica algo que não se mostra. Ela se diferencia da estrutura do fenômeno, no sentido derivado da aparência, que pretende mostrar-se como o que não é, simulando e parecendo um outro. A privação da manifestação, num primeiro momento, diz respeito ao modo em que a coisa se anuncia mas não se mostra. Desse ponto de vista, a manifestação é a estrutura formal da indicação, da apresentação, do sintoma, do símbolo, enfim, de toda estrutura de remissão referencial. Nos Prolegômenos da História do Tempo, Heidegger afirma que “o que distingue a referência é precisamente isso: aquilo a que a manifestação se refere não se mostra em si mesmo

19 Desse ponto de vista, apesar da falta de uma ontologia em Husserl, a fenomenologia heideggeriana está perfeitamente de acordo com a de seu mestre: fenomenologia é “ver, apreender o que se dá a si mesmo”, HUsserl, E. A idéia da fenomenologia. Lisboa: Ed. 70, 2000, p. 77.20 Heidegger, M. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1976. p. 29. Citaremos a partir da edição alemã, cotejando com a tradução de Márcia de Sá Cavalcanti: Ser e Tempo (Parte I). Petrópolis: Vozes, 1998.

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mas representa meramente, declara pelo caminho da mediação, indica indiretamente”21. A manifestação refere-se àquilo que não se mostra em si mesmo.

No desdobramento do conceito de manifestação, Heidegger mostra que o significado desse conceito é bastante ambíguo:

A palavra “manifestação” ainda pode ter dois significados: uma, manifestação no sentido de anunciar-se, como um não mostrar-se em si mesmo, e outra, o que se anuncia em si mesmo - aquilo que, em seu mostrar-se, aponta e indica algo que não se mostra. E, por fim, pode-se ainda usar manifestação para dizer o fenômeno em seu sentido autêntico, como um mostrar-se. A se designar essas três situações com a palavra ‘manifestação’, torna-se inevitável a confusão.22

Um fenômeno é, ao mesmo tempo, manifestação, no sentido específico de que toda manifestação anuncia algo que se vela. A fenomenologia visa àquilo que se vela no manifestado, em linguagem heideggeriana, a fenomenologia procura apreender o ser do ente que se encobre em toda manifestação.

O conceito de logos, por sua vez, é compreendido inicialmente como discurso (Rede). Principalmente por uma análise da obra De interpretatione de Aristóteles, Heidegger esclarece que o logos tem a peculiaridade de fazer e deixar ver, no sentido de phainestai, “aquilo sobre o que se discorre e o faz para quem discorre (Medium) e para todos aqueles que discursam uns com os outros”23, a partir daquilo sobre o que se discorre. Portanto logos está relacionado com deloun, isto é, tornar manifesto, sendo que o que é feito manifestar inclui aquilo sobre o que se discorre e como se deve discorrer. Heidegger define o logos mais detidamente quando o qualifica como logos apophantikos; apophainestai implica em deixar algo ser visto em si mesmo e o prefixo apo diz, a partir de si mesmo.

21 Heidegger, M. History of the Concept of Time (Prolegomena), p. 82.22 Heidegger, M. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1976. p. 30.23 Idem, ibidem, p. 32.

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Embora nas relações humanas o discurso se concretize como um falar composto de palavras, ou seja, logos no sentido de phone, isto é, voz, esse não é o seu sentido essencial; pelo contrário, mesmo a voz (phone) depende do discurso (logos) que deixa algo se manifestar por si mesmo. Essa manifestação tem um caráter eminentemente visual – num sentido fenomenológico -, trata-se de deixar tornar visível (phainestai) o que pode ser visto (phantasia), ou ainda phone meta phantasias, articulação verbal em que algo sempre é visualizado. Essa forma particular de discurso, o discurso apofântico, é definido por Heidegger como o discurso autêntico, aquele que demonstra e deixa ver por si mesmo. Outra forma de discurso possível que não o apofântico é o semantikos, discurso que também significa algo, embora revelando de um modo outro que o apofântico. Exemplos do discurso semântico são: uma exclamação, um pedido, um desejo e uma prece24.

Ainda sobre o logos apophantikos é preciso mencionar que ele possui a estrutura de sintesis, isto é, de articulação com algo outro que permite que possa deixar e fazer ver. Na medida em que o logos consiste nesse deixar e fazer ver é que ele pode ser verdadeiro, ao retirar o ente de seu velamento (aletheia), ou falso, ao encobrir o ente ao propô-lo como o que ele não é (pseudestai).

Fenomenologia, portanto, tem a tarefa de “deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo”25, o que já analisamos anteriormente como legein ta phainomena ou, o que dá no mesmo, apophainestai ta phainomena. O caráter metodológico da fenomenologia está na fórmula tautológica “fenomenologia descritiva” que se apóia no afastamento de toda determinação que não seja demonstrativa, que não se mostre por si mesmo.

Sobre os temas da intencionalidade e do a priori, Heidegger afirma que:

As estruturas da intencionalidade no seu a priori são o fenômeno. Em outras palavras, as estruturas da intencionalidade no seu a priori circunscrevem os objetos que se apresentam em si mesmos

24 Heidegger, M. History of the Concept of Time (Prolegomena), p. 85.25 Heidegger, M. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1976. p. 34.

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nessa investigação e explicados na sua presença. O termo “fenômenos” não diz, de modo algum, sobre o ser dos objetos sob estudo, mas refere-se apenas ao modo como são encontrados. O fenômeno está em conformidade com tudo o que se torna visível nesse tipo de encontro e pertence a esse contexto estrutural da intencionalidade. [...] Fenomenológico significa tudo que pertence a tal modo de exibição do fenômeno e das estruturas fenomenológicas, tudo o que se torna temático nesse tipo de investigação. O não-fenomenológico seria tudo que não satisfizesse esse modo de investigação, sua conceitualidade e seus métodos de demonstração.26

O método fenomenológico não é, de forma alguma, uma técnica fixa, mas um acesso ao ente a partir do dar-se fenomenológico da intencionalidade que cada instante implica, o que significa que há a necessidade de uma conquista de um acesso aos fenômenos27. Em Ser e Tempo, entretanto, o jargão husserliano é abandonado em prol de uma associação agora explicitamente afirmada: a relação entre ontologia, fenomenologia e hermenêutica. A ontologia só é possível como fenomenologia, e fenomenologia em Ser e Tempo somente se dá como hermenêutica do Dasein e das condições de possibilidade de toda investigação ontológica. Assim, temos Heidegger definindo a fenomenologia em seu conteúdo como ontologia, isto é, ciência do ser dos entes. Essa ciência tem como tarefa fazer com que o ente se mostre em seu ser, já que, no mais das vezes, não é o fenômeno que se dá, mas o seu oposto, o encobrimento.

O encobrimento pode se dar de diversos modos: um fenômeno pode nunca ter sido descoberto, um fenômeno pode estar entulhado, ou seja, antes havia sido descoberto, mas voltou a velar-se, e um fenômeno pode se encobrir por desfiguração. Sobre esse último caso, Heidegger afirma que é o mais freqüente e perigoso, pois engana e desorienta pela sua “clareza” mas que, por trás dessa suposta certeza, encobre o que há de mais decisivo para a investigação fenomenológica. Nesse sentido, o fundamental para a investigação fenomenológica é o ser, na medida

26 Heidegger, M., History of the Concept of Time (Prolegomena), p. 86.27 Idem, ibidem, p. 87.

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em que “em sentido fenomenológico, fenômeno é somente o que constitui o ser, e ser é sempre ser de um ente”28. Mas o ser não é uma mera abstração, ou ainda um ente qualquer; na medida em que o ser só pode se dar em algum ente, faz-se necessário o questionamento de um ente para a manifestação do ser. É nessa perspectiva que Heidegger enuncia a hermenêutica do Dasein como a condição de possibilidade da manifestação do sentido do ser em geral. Como o modo de ser do Dasein é a existência, a hermenêutica assume então a interpretação da existencialidade da existência, o que implica numa radicalização maior do que o sentido tradicional de hermenêutica enquanto método particular das Ciências Históricas do Espírito.

Componentes fundamentais do método fenomenológico

Em Os Problemas Básicos da Fenomenologia, Heidegger enuncia três componentes básicos do método fenomenológico: redução, construção e destruição. Esses três elementos compõem um método que não tem nada em comum com os métodos das outras ciências, no sentido de que as ciências positivas relacionam-se com entes. A fenomenologia é ontologia e, portanto, visa ao ser. O Dasein é o ente que possui o privilégio ôntico-ontológico, ou seja, ele é o ente que está na abertura ao ser e, nesse sentido, Heidegger afirma que “o ser se dá apenas se a compreensão do ser, portanto Dasein, existe”29. A ontologia tem uma base ôntica, o Dasein, a partir do qual o sentido do ser enquanto tal pode se mostrar.

Para um esclarecimento da tarefa da fenomenologia é preciso analisar o caráter apriorístico que envolve o seu método. Esse método diz respeito a um a priori do ser em relação ao ente. O ser é anterior ao ente, mas num sentido diverso da mera sucessão temporal. Nesse contexto, Heidegger afirma que “ser anterior é uma determinação do tempo, mas ele não pertence à ordem temporal do tempo que nós medimos pelo

28 Heidegger, M. Sein und Zeit, p. 37.29 Heidegger, M. The Basic Problems of Phenomenology. Bloomington and Indianapolis: Indiana Univ. Press, 1988, p. 19.

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relógio; antes, é um anterior que pertence ao ‘mundo invertido’”30. O tipo de abordagem capaz de apreender o ser é denominado de cognição a priori, cujos componentes básicos constituem a própria fenomenologia enquanto conceito de um método.

O primeiro dos três componentes básicos do método fenomenológico é o da redução:

Para Husserl, redução fenomenológica, [...] é o método de conduzir a visão fenomenológica da atitude natural do ser humano cuja vida está envolta no mundo das coisas e pessoas de volta para a vida transcendental da consciência e suas experiências noéticas-noemáticas, nas quais objetos são constituídos como correlatos da consciência. Para nós, redução fenomenológica significa conduzir a visão fenomenológica de volta para a apreensão do ser, seja qual for o caráter dessa apreensão, para a compreensão do ser desse ente (projetando sobre o caminho desvelado). Como qualquer outro método científico, o método fenomenológico cresce e muda devido ao progresso feito precisamente com sua ajuda sobre os assuntos sob investigação. O método científico nunca é uma técnica. Tão logo se torne uma ele decaiu de sua natureza própria.31

Raras vezes, Heidegger enunciou de forma clara o seu distanciamento com a fenomenologia de Husserl. Trata-se, sobretudo, da questão do sentido do ser, questão que permaneceu opaca a Husserl, e que, conseqüentemente, o circunscreve na tradição metafísica da ontologia. A fenomenologia de Husserl serviu muito mais como inspiração a partir da qual Heidegger daria um desdobramento próprio do que um modelo a ser seguido. É nesse sentido que se deve entender os componentes do método fenomenológico heideggeriano, que possuem uma perspectiva outra que a do método husserliano.

Em seguida, Heidegger chega a afirmar que a redução fenomenológica, embora importante, está longe de ser o componente central do método. A tarefa que se impõe ao fenomenólogo é de ganhar um acesso ao ser e isso, salienta Heidegger, só pode se dar por meio de um ente. “O ser não se torna acessível como um ente. Nós não o 30 Idem, ibidem, p. 20.31 Idem, ibidem, p. 21.

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descobrimos simplesmente à nossa frente. Como se demonstrará, ele sempre deve ser trazido à visão numa livre projeção. Esta projeção do ente anteriormente dado em seu ser e as estruturas do seu ser nós chamamos de construção fenomenológica”32.

O terceiro componente do método fenomenológico tal como Heidegger o define é a destruição. Esse conceito, presente no parágrafo 6 de Ser e Tempo, reapareceria em Os Problemas Fundamentais na reiteração da necessidade de uma destruição da ontologia tradicional a fim de liberar uma interpretação de ser que não a pautada pela mera presença. Essa tarefa envolve um confronto com toda a tradição filosófica que, desde Platão e Aristóteles, lidou com uma concepção mediana do ser a partir de uma temporalidade do ente meramente dado. Dessa maneira, Heidegger afirma a necessidade de uma destruição, isto é, de “um processo crítico no qual os conceitos da tradição, que a princípio devem ser empregados, são desconstruídos até as fontes desde as quais seus contornos foram traçados. Somente por meio da destruição a ontologia se assegura totalmente no caminho fenomenológico do caráter genuíno de seus conceitos”33. Deste modo, os componentes do método fenomenológico estão numa relação de mútuo-pertencimento, na medida em que a construção é essencialmente destruição, no sentido de uma desconstrução dos conceitos ontológicos tradicionais. Longe de ser uma negação da tradição, trata-se antes de uma apropriação das possibilidades mais próprias dessa tradição.

Já no parágrafo 6 de Ser e Tempo, Heidegger explicava que a abertura da possibilidade mais própria dependia da apropriação do passado, mas essa apropriação era uma destruição que visava trazer à tona aquilo que a tradição encobre no seu legar. É nesse sentido que Heidegger empreende uma repetição da questão ontológica, isto é, uma retomada destrutiva do legado da tradição ontológica.

Já no final do § 7 de Ser e Tempo, após a exposição acima relatada da fenomenologia, Heidegger afirma que tais investigações só se deram por causa das contribuições de Husserl para a fenomenologia – embora

32 Idem, ibidem, p. 21-22.33 Idem, ibidem, p. 23.

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não haja referência explícita a conceitos específicos de Husserl. É nesse contexto de reconhecimento de sua dívida com o autor das Investigações Lógicas que Heidegger propõe que o que há de essencial na fenomenologia não é fato dela ser “uma ‘corrente’ real. Mais elevada do que a realidade está a possibilidade. O entendimento da fenomenologia reside unicamente em se apreendê-la como possibilidade”34. A questão da possibilidade exige o desenvolvimento do significado da compreensão, portanto, de uma abordagem hermenêutica que clarifique em que sentido esse filósofo concebe o primado da possibilidade.

O Tema da Possibilidade na Fenomenologia heideggeriana

O recurso pelo abandono dos conceitos husserlianos no interior de Ser e Tempo exprime precisamente a impossibilidade de uma ontologia fundamental unicamente nos moldes da fenomenologia de seu mestre – o próprio Husserl é tragado no movimento de destruição da história da tradição ontológica. Sobre isso, Figal afirma que:

Se, juntamente com Descartes, Husserl se movimenta no pano de fundo da pergunta sobre como a consciência pode ser a região de uma ciência absoluta, então a relação do pensamento filosófico com a intencionalidade já está cunhada de uma maneira contra a qual justamente Heidegger se volta. Para o pensamento contemplativo que se retém na epoche, os modos intencionais de se portar, como Husserl mesmo sempre diz uma vez mais, são objetos; e isso significa: como quer que se precise compreender esse estado de coisas no particular, eles precisam se achar simplesmente presentes. [...] Esse padrão de pensamento exclui desde o princípio o empreendimento da fenomenologia no sentido de um desdobramento da possibilidade, tal como Heidegger o exige. De acordo com a idéia de uma manutenção da possibilidade, tudo depende justamente de abandonar a orientação por um tal algo simplesmente presente e igualmente por outras e similares concepções, a fim de poder colocar a pergunta sobre o ser como tal.35

34 Heidegger, M. Sein und Zeit, p. 37.35 Figal, Günter. Martin Heidegger: fenomenologia da liberdade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 36.

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193 A apreensão fenomenológica da vida fáctica em Heidegger

O tema da possibilidade não é um tema husserliano, mas retirado de Kierkegaard. O filósofo dinamarquês foi o primeiro a discordar, de forma suficientemente radical, ou seja, por uma abordagem do tempo, das concepções tradicionais de realidade e de possibilidade. Alguns conceitos kierkegaardianos permeiam Ser e Tempo, embora quase nunca Heidegger lhes dê o devido crédito. Dentre esses conceitos, é importante mencionar a relação entre existência e liberdade, a descoberta da importância do caráter fundamental de determinados humores como desespero e angústia, e, principalmente, a interpretação de Kierkegaard sobre o tempo, nas modalidades de repetição, instante e porvir, baseadas não na atualidade ou na realidade, mas na possibilidade, como se desenvolverá adiante. Trata-se da concepção do existente humano a partir da recusa de uma substância definidora, de uma essência humana dada a priori; em suma, da imbricação entre escolha e liberdade no projeto humano de tornar-se sujeito.

A questão da possibilidade aparece em Ser e Tempo diretamente atrelada a um conceito de gênese hermenêutica: a compreensão. Definida como uma das dimensões da abertura, juntamente com o discurso e a disposição, a compreensão é enunciada como “o poder-ser capaz de propiciar aberturas”, sendo que esse poder-ser deve ser visto como “possibilidade de ser”36. A compreensão é radicalmente diferente de uma faculdade cognitiva no sentido da epistemologia tradicional – não é entendimento ou razão, e não diz respeito à assimilação subjetiva de objetos – antes, é definida unicamente em termos ontológicos. O Dasein é este ente que compreende o ser e isso significa: ele é o ente que, pré-tematicamente, já foi lançado ao mundo como ente aberto ao ser – isto é, ser-no-mundo -, e como ente que, a cada compreensão, se projeta para possibilidades.

Enquanto elemento articulador da existencialidade, a compreensão é responsável pelas relações de sentido e significância do ser-no-mundo. Entretanto, existir como ser-no-mundo significa projetar-se continuamente para possibilidades, o que quer dizer o Dasein não pode

36 Heidegger, M. Sein und Zeit, p. 143-144.

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ser concebido apenas como um ente dotado de propriedades que consistiriam na sua “realidade”, mas que esse ente que se projeta é quem ele pode ser. Nesse sentido, Heidegger afirma categoricamente: “o Dasein é sempre a sua possibilidade”, sendo que a possibilidade não deve ser definida como inferior à realidade – trata-se do “meramente possível” em que o Dasein já sempre se encontra, enquanto ente lançado37.

Mas a possibilidade deve ser uma possibilidade repetida, o que envolve uma elucidação breve sobre a questão da temporalidade. Tendo como ponto de partida a modalização da existência humana em propriedade e impropriedade, um dos fatores cruciais para a correta visualização dessas modalizações acaba sendo o entendimento do existencial da decadência, e de suas ramificações correspondentes. Assim, tanto a compreensão, quanto a disposição e o discurso podem tender para a propriedade tanto quanto para a impropriedade. Na medida em que a existência humana é abertura projetiva a partir de sua facticidade, o Dasein pode projetar-se propriamente ou impropriamente pela sua compreensão do tempo. O ser do Dasein, isto é, a sua existência, é no mais das vezes determinado pelo mundo, no sentido de ser absorvido pelo mundo e determinado em si mesmo pelos aspectos matizados pela decadência no ser-com-os-outros. Assim, o impessoal e todas as estruturas derivadas (ambigüidade, nivelamento, medianidade) aliviam o Dasein de sua tarefa de existir em sentido próprio, oferecendo interpretações disseminadas por uma linguagem que não diz respeito mais a uma existência concreta, já que se limita apenas a passar adiante a fala. O fenômeno do falatório (Geredete) traz consigo um caráter autoritário de já ter sempre uma interpretação compartilhada no discurso sobre cada coisa. Desta forma, a tarefa de uma compreensão originária do ser, e em Ser e Tempo isso significa – da existência, acaba sendo esvaziada e tornada supérflua do ponto de vista da interpretação pública em que predomina a decadência.

A disposição da angústia ocupa a função de uma abertura radical para a possibilidade mais própria de ser, rompendo com a impessoalidade

37 Heidegger, M. Sein und Zeit, respectivamente, p. 42 e p. 143.

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das interpretações correntes disseminadas no falatório. Corresponde à angústia, concomitantemente, a irrupção de uma temporalidade que não o da cotidianidade, temporalidade que corresponde à possibilidade de apropriação do ser. Nessa perspectiva, a temporalidade cotidiana (atender/espera, atualização/dispersão/desamparo, esquecimento) é modalizada, a partir da tonalidade afetiva fundamental da angústia, em antecipação, instante e repetição. Essas ekstases temporais não são descritas em termos seqüenciais, antes, exigem uma nova forma de compreender o tempo, já que elas se dão em conjunto.

Em Ser e Tempo há uma primazia do porvir sobre a atualidade e o sido, primado que se sustenta pelo fato do Dasein ser concebido unicamente como possibilidade de ser. O porvir é o sentido da atualidade e do sido. A repetição é a retomada do que, tendo sido, é possível novamente. Neste aspecto, Kisiel argumenta que “a facticidade do passado [...] não é um fato bruto, mas antes a possibilidade do sido”38. Retomar o passado não como coisa simplesmente dada, mas como possibilidade, é expor o caráter livre de um ente que é poder-ser. Ou seja, tanto o sido, quanto a atualidade, são concebidos em termos de possibilidade. É o sentido do porvir que transpassa e articula a possibilidade das outras ekstases. Vejamos como esse tema descende de Kierkegaard:

[...] antes de mais, nota-se nesta explicação que o porvir, num certo sentido, significa mais do que o presente e o passado: pois não é o porvir o todo de que o passado só representa uma parte? E que, num certo sentido, o seu significado seja este, resulta de o eterno significar, antes de mais, porvir, ou ainda, de o porvir ser a incógnita com que o eterno, irredutível ao tempo, quer salvaguardar o seu comércio com o tempo.39

Desta forma, para Kierkegaard, o porvir é a “incógnita” do eterno que ultrapassa as delimitações do passado e do presente na perspectiva do eterno. Também para Heidegger, pelo menos em Ser e 38 Kisiel, T. The genesis of Heidegger’s Being and Time. Los Angeles: Univ. of California, 1995. p. 439.39 Kierkegaard, S. O conceito de angústia. Lisboa: Presença, 1972. p. 124.

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Tempo explicitamente, é o porvir que dá a confluência de sentido para as demais ekstases, enquanto tempo da possibilidade. A repetição é assim a retomada do sido para o porvir, e isto significa, não uma reduplicação do passado, mas uma projeção das possibilidades do sido para o porvir, o que envolve uma transfiguração do sido. Na obra A repetição de Kierkegaard, o narrador afirma: “eu estou esperando por uma tempestade – e pela repetição. [...] Ela (a tempestade) me tornará praticamente irreconhecível para mim mesmo”40. Passar pela tempestade só é possível na medida em que houver uma mudança radical no indivíduo que não o permita mais ser identificado ao estado anterior. A repetição é, portanto, uma espécie de apropriação e de destruição simultânea: para o indivíduo ser quem se é, ele deve repetir a possibilidade latente de si:

[...] na ordem natural, a repetição corresponde à necessidade inabalável que é própria daquela ordem. Na ordem espiritual, o problema não está em se extrair da repetição uma mudança para aí nos instalarmos confortavelmente, como se o espírito tivesse contato apenas exterior com as repetições do espírito (segundo as quais, o bem e o mal alternam como as estações do ano); o problema está, sim, no transformar-se a repetição em algo de interior, algo que seja, o próprio objeto da liberdade, o seu supremo interesse, isto é, enquanto tudo à volta se modifica, poder ela realizar a repetição.41

Se, por um lado, em Ser e Tempo o conceito de repetição está atrelado a uma transformação advinda da possibilidade própria do existente humano, por outro, trata-se da discussão de uma repetição das possibilidades próprias da tradição ontológica que foram encobertas ao longo de sua história. Trata-se da mútua elucidação entre ser e tempo, na tese de que o tempo é o sentido do ser. Da mesma forma como o ser se encobre no mais das vezes, o tempo da cotidianidade é um tempo indiferente.

40 Kierkegaard, S. Repetition: a venture in experimenting psychology. Princeton: Princeton Univ. Press, 1983. p. 214.41 Kierkegaard, S. O conceito de angústia. Lisboa: Presença, 1972. p. 28, grifo nosso.

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Fenomenologia, Hermenêutica da Facticidade e Aristóteles

Sobre a fenomenologia, Heidegger declarou várias vezes que era aprendiz de Husserl e que o verdadeiro fenomenólogo era Aristóteles. Para a explicitação da importância de Aristóteles, analisaremos alguns trechos da obra de 1922, intitulada Interpretações Fenomenológicas de Aristóteles: indicação da situação hermenêutica (relatório Natorp). É certo que a influência de Aristóteles sobre a filosofia de Heidegger é enorme sob inúmeros aspectos. Destacaremos apenas a apropriação heideggeriana das questões relativas à práxis extraídas principalmente da interpretação do livro VI da Ética a Nicômaco.

Nesta obra, Heidegger enfatiza de forma ainda mais contundente do que faria posteriormente em Ser e Tempo, a relação entre ontologia, fenomenologia e hermenêutica. Esses termos são analisados em torno da questão da facticidade ou da vida fáctica. A interpretação do sentido do ser a partir do fio-condutor do Dasein assume o caráter de hermenêutica da vida fáctica. Caputo explica o conceito de facticidade nos seguintes termos:

[...] tudo gira, nestas primeiras conferências de Friburgo, em torno da noção de “vida fáctica”, um conceito de Dilthey que significa existência concreta, histórica. Para Heidegger, a vida fáctica é determinada em termos aristotélicos como algo que se automove, como um “ser-movido” em si mesmo, aquele cujos movimentos procedem de si mesmo (kinêsis, Bewegtheit). A vida fáctica não se limita a estar disponível (vorhanden), pronta para ser inspeccionada. É esquiva e está em movimento, retirando-se permanentemente (entziehen), afastando-se a si mesma de vista.42

A vida fáctica tem suas próprias modalizações de ser e se temporaliza de diferentes maneiras. O Dasein tende, no mais das vezes, a fugir do fato de estar entregue ao ser e a buscar uma forma de conduta pautada em interpretações tranqüilizadoras que evitam a tarefa da vida

42 CapUto, J. Desmitificando Heidegger. Lisboa: Inst. Piaget, 1993. p. 72.

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fáctica. Nesse sentido, lemos: “uma vida fáctica que se comporta de tal modo que, na temporalização concreta de seu ser, inclusive nos casos em que evita o encontro consigo mesma. A vida fáctica tem o caráter de ser de tal modo que descobre-se em si mesma como difícil de carregar”43.

De certa maneira, Heidegger utiliza conceitos que ficariam famosos na obra de 1927, como cuidado, ocupação, preocupação, morte e decadência para caracterizar a dinâmica da vida. Assim como em Ser e Tempo, Heidegger mostra como que o Dasein tem a tendência a se deixar absorver pelo mundo. Entretanto, isso é apresentado como estratégia teórica para mostrar que o Dasein já transita numa compreensão de ser, num sentido prático, isto é, o Dasein já compreende ser pois, antes de mais, ele é praxis. A tarefa de uma hermenêutica da facticidade leva em consideração a vida fáctica nas suas relações concretas, ou seja, não se trata da análise da humanidade na sua generalidade abstrata mas da interpretação da vida no seu próprio movimento.

Embora o Dasein desde sempre já se comporte de alguma maneira em relação ao seu ser, a vida fáctica, enquanto tal, não se faz acessível diretamente, pelo encobrimento dos caracteres da decadência. Nesse ponto, Heidegger afirma que “aquilo que mostra a existência não pode ser interrogado de uma maneira direta e geral. A existência só se faz compreensível em seu próprio ser no questionamento da facticidade, na destruição em cada caso concreto da facticidade, a respeito dos seus motivos das suas atividades, suas orientações e suas disposições voluntárias”44. Na medida em que “a possibilidade da existência é sempre a possibilidade da facticidade concreta”45, a tarefa da destruição diz respeito à possibilidade da apreensão do ser da vida concreta no seu projeto, evitando as interpretações consagradas pela esfera da decadência.

43 Heidegger, M. Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles (Anzeige der hermeneutischen Situation). Mauvezin: Trans-Europ-Repress, 1992b [7, p. 21]. Citaremos a partir dessa edição bilíngüe, cotejando com as seguintes traduções: Phenomenological Interpretations with Respect to Aristotle: Indication of the Hermeneutical Situation. Man and World, v. 25, Netherlands: Kluwer Academic Publishers, p. 335-393, 1992c. Tradução de Michael Bauer, e Indicación de la Situación Hermenêutica: Interpretaciones Fenomenológicas sobre Aristóteles (Natorp-Berich). Madrid: Editorial Trotta, 2002. Tradução de Jesús Adrián Escudero.44 Idem, ibidem, [7, p. 21].45 Idem, ibidem, [14, p. 26].

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Heidegger explica que facticidade e existência não significam a mesma coisa, sendo a última uma possibilidade que se temporaliza no ser da vida fáctica. Desta forma, a investigação radical da problemática ontológica é dependente de uma hermenêutica da facticidade. A tarefa da filosofia enquanto interpretação ontológica da facticidade é definida do seguinte modo: “a filosofia pretende ver e captar a vida fáctica em suas possibilidades ontológicas decisivas, isto é, se a filosofia se decide por si mesma de modo radical e claro – [...] a compreender a vida fáctica a partir de si mesma e conforme suas próprias possibilidades fácticas [...]”46. A compreensão da vida fáctica não é apenas a apreensão dos seus diversos modos de ser, mas também como ela se temporaliza.

O elemento central para se compreender a questão do tempo na vida fáctica é a phronesis. Esse saber que se encontra no bojo dos cinco saberes tais como Aristóteles os elaborou na Ética a Nicômaco, diferencia-se da techne, da episteme, da sophia e do nous, como um saber que envolve uma auto-compreensão, trata-se da vida sabendo sobre si mesma, o que envolve uma discussão sobre a temporalidade. A phronesis enquanto saber específico do mundo da praxis envolve uma concepção do tempo que não pode ser reduzida à mera seqüência de agoras. Embora a definição de tempo oferecida por Aristóteles na Física consolide paradigmaticamente o tempo ordinário, Heidegger vê na Ética a Nicômaco a exigência de uma outra temporalidade que não a dos entes físicos. A praxis se diferencia temporalmente dos outros saberes – na techne, por exemplo, o início e o fim da produção se divergem. Na práxis o indivíduo se “auto-produz” na ação e na projeção de si. Nesse sentido, o tempo da vida fáctica é algo outro que o dos objetos.

O fundamental da compreensão da vida fáctica é a apreensão do adequado a cada caso. A compreensão enquanto phronesis visualiza não apenas o adequado ao caso, mas a relação entre o caso com o todo, e isso significa que é pela phronesis que a totalidade do ser do Dasein, isto é, da sua existência, e do tempo correlativo a essa existência, se entrecruzam: “a phronesis, na medida em que esclarece o trato com

46 Idem, ibidem, [15, p. 27].

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o mundo, contribui para o desdobramento temporal da vida em seu ser”47. O tempo da phronesis, o kairos, é concebido como instante a partir do qual a situação concreta pode ser apreendida, o que sempre quer dizer, apreendida a partir do fim último que orienta cada caso de uma maneira determinada. Na linguagem de Ser e Tempo, é no instante que se dá a repetição enquanto retomada da possibilidade mais própria, o que equivale dizer, é no instante que se antecipa a possibilidade de ser no projeto apropriador de si. Utilizando a expressão de Kisiel, o Dasein apreende o adequado do caso concreto no instante, isto é, no “momento do insight phronético”48.

Heidegger empreende, por tanto, uma hermenêutica fenomenológica da facticidade, isto é, uma interpretação apropriadora das categorias da vida fáctica a partir dela mesma: “a hermenêutica é fenomenológica, o que significa que seu âmbito objetivo – a vida fáctica em relação com o modo de seu ser e de seu discurso – se considera, segundo a temática e o método de investigação, como um fenômeno”49. A tarefa de apreender os fenômenos, de deixar e fazer com que o ente se mostre tal como ele é, exige conjuntamente a tarefa de uma hermenêutica que permite o acesso ao ser desses fenômenos. A hermenêutica da facticidade, tal como elaborada nas Interpretações fenomenológicas de Aristóteles, permite que se visualize a interdependência da fenomenologia, da hermenêutica e da ontologia a partir da questão da vida fáctica.

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CAPUTO, J. Desmitificando Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. 47 Idem, ibidem, [35, p. 42].48 Kisiel, op. cit., p. 282.49 Heidegger, M. Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles (Anzeige der hermeneutischen Situation). [17, p. 28].

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Recebido em: 30 de novembro de 2007.Aprovado em: 12 de dezembro de 2007.

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númeRo esPeciAl:Heidegger e a Educação

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano VI n. 10 p. 203-222 2008

Sobre o sentido de educar

Marcelo Sodelli*

Resumo: O presente trabalho é um estudo sobre o sentido de educar, na sociedade contemporânea, por meio da Fenomenologia Existencial de Martin Heidegger. Iniciaremos com uma reflexão teórica sobre a Fenomenologia Existencial, contemplando aspectos fundamentais da “Condição Humana”, sobre a questão do “sentido” e os modos de cuidar de ser. Em seguida, apresentaremos uma discussão sobre o sentido de educar e seus desdobramentos ônticos na escola. Concluiremos este estudo apontando três elementos fundamentais sobre o sentido de educar: conhecimento como aproximação, a atitude como o cuidado e o horizonte do tempo como possibilidade da experiência e não de experimento.

Palavras-chave: Fenomenologia. Sentido. Educação. Cuidado.

About the meaning of educating

Abstract: The present work is a study about the meaning of educating, in contemporary society, by means of Martin Heidegger’s Existential Phenomenology. We begin with a theoretical reflection on Existential Phenomenology and Dasein, focusing on fundamental aspects of the “Human Condition”, the issue of “meaning” and the modes of caring for being. Next, we present a discussion about the meaning of educating and its ontic unfolding at school. We conclude this study by presenting three fundamental elements about

* Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor da Faculdade de Psicologia da PUC-SP. E-mail: [email protected]

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the meaning of educating: knowledge as distance reduction, attitude as care and the horizon of time as a possibility of experience and not of experiment.

Key words: Phenomenology. Meaning. Education. Care.

1 Introdução

Por que perguntar sobre o sentido de educar? Ora, essa indagação só é possível porque de alguma maneira o sentido de educar pode nos escapar, se perder, se esvaziar. E esse sentido só pode nos escapar, se esconder, se encobrir porque ele não é algo pronto e muito menos definitivo.

O sentido de educar não é a missão de uma instituição de ensino, aquilo que está escrito e registrado no projeto político pedagógico de cada escola. Embora as diretrizes descritas neste projeto possam direcionar as ações educativas, elas representam no máximo a intenção do como e para que educar, mas não o sentido.

Em uma rápida revisão bibliográfica, podemos encontrar estudos que se dedicam a investigar o atual modo de ser das escolas. Por exemplo, Lapo (1999, p.10) comenta que a escola se transformou em um deserto de significações, vazia de idéias e sentido. Nas suas palavras, “professores e alunos habitam escolas vazias [...] cheias de normas, de mandos e desmandos, que exigem novas formas de ser e de fazer, escolas mais lotadas, mais superpovoadas e, paradoxalmente, cada vez mais vazias”. Lipovetsky (1998) retrata uma escola sem vida, pois a relação entre o professor e o aluno esvaziou-se de sentido; os mestres perderam o prestígio e a autoridade, os alunos vegetam sem motivação ou interesse. Tedesco (1998) lembra mais um agravante, pois o fato não se resume apenas à forma deficiente como a escola cumpre os objetivos, mas também ao fato de se ignorar quais são as finalidades que ela deveria cumprir e em que direção deveria voltar suas ações.

Obviamente, o modo de ser da escola não pode ser compreendido sem considerarmos e caracterizarmos quem é a clientela que a freqüenta. Bondía (2002, p. 23) descreve o sujeito moderno como alguém que

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não “só está informado e opina, mas também como um consumidor voraz e insaciável de notícias, de novidades, um curioso impenitente, eternamente insatisfeito”. Curiosamente, podemos identificar o sentimento de insatisfação tanto na vida do educador como na vida do educando. Se por um lado o educador se decepciona com a receptividade e motivação de sua clientela para o estudo, os alunos se frustram com os conteúdos curriculares, cada vez mais amplos e complexos, cada vez mais distante de seu mundo, de sua experiência de vida. Sintetiza Bondía (2002, p. 23), “cada vez estamos mais tempo na escola, mas cada vez temos menos tempo”.

A partir deste contexto, torna-se evidente a urgência em resgatarmos a discussão sobre o sentido de educar, no mundo contemporâneo. Este estudo se propõe a iniciar esta tarefa por meio da Fenomenologia Existencial de Martin Heidegger.

Optamos em dividir esse estudo em duas partes. Apresentaremos, em primeiro lugar, um estudo teórico sobre a Fenomenologia Existencial, priorizando o modo singular de ser do Dasein, contemplando aspectos fundamentais da “Condição Humana”. Ainda numa perspectiva ontológico-existencial, nos deteremos mais profundamente na questão sobre “sentido” e os modos de cuidar de ser (autenticidade e inautenticidade). Em seguida, na segunda parte, iniciaremos uma discussão sobre o sentido de educar e seus desdobramentos ônticos na escola.

Ressalvamos que a compreensão Fenomenológico-Existencial, apresentada nesta pesquisa, se sustenta, na discussão feita por Heidegger (1993), em sua obra Ser e Tempo. Utilizaremos, também, outros autores que compartilham com este modo de compreender o existir humano, entre outros: Medard Boss, Benedito Nunes e Zeljko Loparic.

2 O Homem na perspectiva Fenomenológico-Existencial

Uma das maiores contribuições do pensamento fenomenológico é a simples, mas importante constatação de que não podemos estudar e compreender o Homem da mesma forma como o fazemos com outros

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seres e objetos. Podemos distinguir duas condições fundamentais entre esses entes (tudo que existe, todos os seres vivos e objetos) e o Dasein1, termo proposto pelo próprio Heidegger para indicar o caráter peculiar e distinto da existência humana.

A primeira condição fundamental é que o Dasein é o único ser que sabe da sua finitude, de que um dia sua vida vai terminar, de que ele é um ser mortal. Assinala Nunes (2002, p. 22): “desde o princípio o Dasein está predeterminado pelo seu fim”. O homem sabe que um dia virá em que ele não mais “será” ou “existirá”. Para a fenomenologia existencial, esta diferença marca um modo distinto do Homem estar no mundo, muito diferente dos outros entes, uma vez que é o único ser que tem de conviver com o seu-ser-para-a-morte e é livre para realizar uma opção entre viver ou morrer. Desta condição ontológica, nascem dois sentimentos inerentes ao Dasein: a angústia e a culpa.

A ameaça do não-ser (a morte) é a fonte da angústia primordial do Dasein, a qual vivenciamos por meio do confronto entre a necessidade de realização das nossas potencialidades e o perigo de não ser capaz de realizá-las. Discutindo a essência da angústia, Boss (1975) esclarece que cada angústia humana tem um de que, do qual ela tem medo e um pelo que, pelo qual ela teme. O de que de cada angústia compreende a possibilidade real do Dasein de um dia não estar mais aqui. O pelo que da angústia nos remete à própria condição existencial do Dasein, ou seja, a responsabilidade de zelar e cuidar de sua continuidade no mundo.

A culpa é outra importante singularidade do modo de ser do Dasein a qual não está relacionada às proibições ou tabu culturais, mas, fundamentalmente, à consciência2 de que o ser do Dasein está sempre em jogo. Deste modo, temos sempre que escolher um modo de ser e, como tal, podemos falhar nesta escolha. A culpa então se vincula à consciência 1 Dasein é o homem compreendido como o ser-existindo-aí. Dasein é sempre uma possibilidade no qual se encontra como uma abertura para a experiência. Esta característica ficará cada vez mais evidente com a explicitação da estrutura do ser-no-mundo, sendo, esta estrutura a constituição ontológica do Dasein. Ser-no-mundo, por sua vez, designa um fenômeno unitário que comporta uma pluralidade de momentos estruturais indissoluvelmente ligados: o mundo, o ente que está no mundo e o ser-em.2 Consciência deve ser entendida aqui, como nos ensina Inwood (2002), como o “saber junto - com”, quer dizer, o Dasein é convocado por ele mesmo a dar conta do seu ser (existir). Conhecer esta tarefa é ter consciência do apelo do ser, do estar-aí-no-mundo.

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da não-realização integral das potencialidades, da necessidade imperativa de efetuar certas escolhas, em detrimento de outras. Para melhor entendermos o sentimento de culpa, vejamos a segunda diferença fundamental entre o Dasein e os outros entes.

A segunda condição fundamental é que o Homem nasce com o seu ser livre. O Dasein é essencialmente livre, no sentido de ser capaz de realizar opções e de tomar decisões das quais resultam os significados de sua existência. Os outros animais já nascem destinados a serem eles mesmos, pois não têm a possibilidade de ser outra coisa. Por exemplo, uma abelha já nasce abelha, não há outra possibilidade, a não ser, existir como abelha. Por outro lado, o Homem nasce possibilidade e não determinação.

Tomemos como exemplo a condição existencial de um cão que, livre do mundo que o cerca, será sempre um cão, experimentando o mundo como um cão, independentemente de ser criado por cães ou por humanos.

Seria possível afirmar que, fenomenologicamente pensando, se um homem fosse criado por macacos, ele experimentaria o mundo como Homem (Dasein)? Parece que os outros animais só podem experimentar a condição existencial de sua espécie. Qualquer animal, sem ser o Homem, quando nasce, só pode ser aquilo que ele já é. Não há abertura. Podemos dizer o mesmo do Homem?

Na compreensão Fenomenológica Existencial, o homem se torna Dasein unicamente na sua relação de ser-com-os-outros (humanos). Dasein é sempre uma possibilidade, na qual se encontra uma abertura para a experiência. O homem é o ser-existindo-aí.

Entretanto, o Dasein não existe isoladamente sem o mundo que habita que, por sua vez, também não existe separado do Dasein. Quer dizer, o homem não é uma simples “coisa” no meio de outras coisas, nem uma interioridade fechada dentro de si mesmo. Daí a importância de compreender a expressão fenomenológica “ser-no-mundo” que aponta primeiramente para um fenômeno de unidade e é deste modo que devemos compreendê-la. Esta expressão deve ser entendida como

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uma estrutura de realização, visto que a existência do homem como “ser-no-mundo” se desenvolve num mundo de realizações, interesses e explorações, de lutas e fracassos. É importante perceber que, na visão heideggeriana, o homem não está dentro de um mundo, quer dizer, não existe um mundo anterior no qual o homem foi colocado, tampouco o homem existe para depois criar um mundo. O homem “é” (existe) na exata medida de seu “ser-em” (na sua relação com o mundo). Não existe anterioridade entre esses dois movimentos (heidegger, 1993).

Porém, mesmo sendo possibilidade, o Homem não vive solto no mundo, sem rumo. Ao contrário, por sua condição ontológica de abertura, de ter-que-ser alguma coisa, todo o tempo, o Homem se entrelaça no mundo, por meio da busca incessante pelo sentido. Como aponta Heidegger (1993, p. 208), “sentido é aquilo em que se sustenta a compreensibilidade de alguma coisa. Chamamos de sentido aquilo que pode articular-se na abertura da compreensão”. Esta busca de sentido nunca termina, pois o ser do Homem sempre está em jogo, dia após dia, hora após hora, minuto após minuto. O sentido da existência consiste no estar-lançado-no-mundo, como seu destinar-se, seu rumo. E é esse sentido da existência que vai impulsionando e pressionando a mundanização de nosso mundo, toda a ambientação de nosso lugar de vida, nosso trabalho, nosso fazer. Assim, a força motivadora da vida humana é a busca que o homem empreende para dar um sentido à sua existência (Barash, 1997).

Mas como já dissemos, o Dasein não está lançado e aberto ao mundo aleatoriamente. O Dasein se abre ao mundo por meio da disposição, ou seja, da forma que é onticamente conhecida como o humor, os estados de humor. A disposição é o estado em que nos encontramos, é o modo de ser-em com que nos sentimos, com que nos dispomos ao mundo. Salienta Heidegger (1993, p. 192) “na disposição subsiste existencialmente um liame de abertura com o mundo, a partir do qual algo que toca pode vir ao encontro”. Tudo que chega ao homem o faz por intermédio dos estados de humor. Portanto, a compreensão do homem em relação às coisas é sempre emocionada. Pela disposição

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é que as coisas são descobertas, como boas, temíveis, indiferentes, interessantes, ameaçadoras, etc. É o homem existindo no mundo, sempre à luz de uma disposição emotiva (safranski, 2000).

Este modo peculiar de existir, no qual se abrem, a todo instante, infinitas possibilidades de ser, tendo como horizonte o próprio não-ser (a morte), se apresenta para o Homem como uma tarefa árdua, difícil e angustiante. O Homem tem que dar conta do seu existir e ninguém pode realizar esta tarefa por ele. Esta escolha dos modos de ser não se dá por meio de uma ponderação temática do pensamento, mas, conforme acrescenta Heidegger (1993), é sempre posterior a algo para o que já fomos preparados pela disposição (estados de humor), embora ela talvez seja a primeira e única de que nos damos conta. Por este último motivo, sempre achamos que é através da ponderação do pensamento que escolhemos.

Assim, Heidegger (1993) nos alerta que não podemos confundir a abertura do ser-no-mundo no humor com o que o Dasein conhece, sabe e acredita sobre si mesmo. A abertura da disposição (os estados de humor) possibilita e desenvolve o que o Dasein representa, por meio da emoção e afeto, sem que necessariamente tenha um movimento de consciência. A maioria das pessoas apresenta a compreensão dos estados de humor por meio do velamento, ou seja, daquilo que ainda não foi intelectualmente compreendido.

Por outro lado, isto não quer dizer que o Dasein não seja compreendido. Heidegger (1993) assinala que a compreensão é um modo de ser-em tão originário quanto a disposição. Compreender é entendido, por este autor, como um ato de tornar visíveis e familiares, às entidades e seres, suas utilidades e serventias. É permitir uma atribuição de significados tanto na relação com as coisas como na relação das coisas. Nessa atribuição de significados, inclui-se a compreensão que, por sua vez, já traz implícita a interpretação. Compreender e interpretar são estados existenciais básicos do Dasein, do seu ser-no-mundo, quer dizer, é um modo do homem ser e existir no mundo. Para Heidegger, não há compreensão sem interpretação. Concordando com essa idéia, salienta

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Dartigues (2005) que a interpretação é a explicitação do compreendido, ou seja, é o significado que se abre na compreensão do mundo, que indica o para-quê (utilidade e serventia) do que é compreendido.

O ser das coisas está no lidar dos homens com elas e no falar; está numa trama de significações que os homens vão tecendo entre si mesmos e por meio da qual vão se referindo e lidando com as coisas. Deste modo, conclui Critelli (1996), os significados não estão nas coisas, mas na compreensão do Dasein. Por esta razão, é possível para o Dasein atribuir significados novos ao mundo que o rodeia.

Heidegger (1993) considera que o homem é sempre passageiro, lançado em um mundo e está sempre entregue à responsabilidade de si mesmo. O estar lançado significa a facticidade do homem, ou seja, pelo fato de estar-aí, o homem já revela um modo global de se relacionar com o mundo e o compreender, testemunhado na disposição e na compreensão. Estando-aí, o homem é, antes de tudo, o mundo que ocupa e que o preocupa. O conhecimento não é senão a articulação de uma pré-compreensão, na qual o homem sempre já se encontra. Assim, Heidegger denuncia um sujeito concretamente definido e historicamente situado.

Como já discutimos, ao dar-se conta de ser, de poder-ser, o Homem percebe que tem que dar conta de seu ser, ou seja, tem que dar conta de sua existência e, sobretudo, isto está sob sua responsabilidade. Assim, o Homem tem que “cuidar de ser”. Os homens tomam para seu cuidado tudo o que pertence à existência: o mundo, as coisas do mundo, os outros homens, si mesmos. Heidegger define como “cuidado” o habitar o mundo e construí-lo, preservar a vida biológica e atender suas necessidades, tratar de si mesmo e dos outros. É o “cuidado” que torna significativas a vida e a existência humana. Ser-no-mundo, portanto, é cuidar (Loparic, 1999).

Heidegger (1993) afirma que a escolha desse cuidar não é aleatória. Esse cuidar está baseado, em última análise, em uma escolha com tríplice aspecto, a saber: do que se vai cuidar ou não (o que está próximo ou distante de nossos cuidados), de como se vai cuidar ou não (o modo como se cuida), de como se vai cuidar desse cuidar mesmo. Podemos

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dizer que a escolha “de que cuidar” e “do modo de cuidar” retiramos do nosso mundo herdado, quer dizer, da cultura do mundo em que nascemos. O modo de cuidar do modo de cuidar do que se tomou sob cuidados é o que nos leva mais propriamente ao âmbito do sentido. Esse sentido deve ser entendido como um rumo que apela, em outras palavras, a uma destinação, em que se abre a possibilidade de se cuidar de ser, dando-se conta de ser numa certa direção e não em outra. Como já afirmamos, é através da disposição (os estados de humor) que o Dasein cuida do existir. Dessa forma, cuidando de existir é que o sentido originalmente se manifesta.

Faz-se necessário ainda assinalar a temporalidade do Dasein, que é o movimento extático, isto é, o Dasein só retroverte (passado) advindo (futuro) a si, e porque retroverte ao advir é que gera o presente (nUnes, 2002). Assim, o futuro é uma antecipação, o passado, a retomada do que uma vez foi possível, e o presente, o instante da decisão. Fenomenologicamente, o passado ainda está no presente, no presente está comprimido o passado, como no passado antecipa-se o futuro. Deste modo, o Dasein existe temporizando-se, entre o momento que nasceu até a sua morte.

3 Compreensão fenomenológico-existencial sobre sentido

Como aponta Heidegger (1993, p. 208) “sentido é aquilo em que se sustenta a compreensibilidade de alguma coisa. Chamamos de sentido aquilo que pode articular-se na abertura da compreensão”. Continua o autor, sentido refere-se, primordialmente, ao modo peculiar do ser humano de cuidar e sentir as coisas do mundo. Este peculiar modo de ser (cuidar e sentir) vai impulsionando e pressionando a mundanização de nosso mundo, toda a ambientação de nosso lugar de vida, nosso trabalho, nosso fazer. O sentido de existir dos homens está no lidar com as coisas do mundo e no falar; está numa trama de significações que os homens vão tecendo entre si mesmos e por meio da qual vão se referindo e lidando com as coisas. Sintetiza Nunes (2002, p. 16) que o homem (Dasein):

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Compreende esses nexos referenciais, cujo todo é dotado de significatividade – um entrelaçamento de significações, do qual é inseparável o mundo circundante (mundo dado), cujo âmbito é espacial, mas não num sentido métrico, como o aposento em que me movimento familiarmente, tal uma paragem em que me encontrasse.

Sentido representa, por um lado, uma direção para a qual estamos nos dirigindo, um ponto no qual queremos chegar, um destino, um rumo e, por outro, o modo como nos direcionamos para este horizonte, o modo como nos sentimos nesta direção. Por estas duas particularidades sempre presentes, sentido pode ser traduzido, numa linguagem fenomenológica, como o modo de cuidar das coisas do mundo (objetos), dos outros (pessoas) e de mim mesmo (minha existência), ou seja, o ser-no-mundo de cada homem.

Embora o cuidado se revele como uma abertura ontológica do ser homem, sugerindo infinitas possibilidades de ser, na analítica do sentido, buscamos compreender, principalmente, de que modo o homem traz para os seus cuidados estes possíveis modos de ser. Entre essas possibilidades, nos alerta Thiele (1998), a analítica do sentido acompanha, mais especificamente, o movimento do homem no plano da existência autêntica e o da inautêntica.

Como explica Inwood (2002), o modo de ser autêntico revela uma apropriação das possibilidades, um apoderamento de si mesmo: a decisão, na qual se evidencia o perfil da temporalidade autêntica: o futuro, que puxa a cadeia dos êxtases, é uma antecipação; o passado, a retomada do que uma vez foi possível; e o presente, o instante da decisão (nUnes, 2002). O modo de ser autêntico deriva da compreensão de que “vale a pena gastar o meu tempo” sendo deste modo e não de outro, decidindo isto e não aquilo, considerando vigorosamente que nada pode me garantir, verdadeiramente, que este é o tempo para se gastar desta maneira, pois não temos predeterminado um parâmetro de referência sobre o tempo, metricamente calculado, a não ser a certeza de que, um dia, este tempo cessará, circunscrito por minha finitude. Por

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isso é que o sentimento de angústia sempre acompanha o instante da reflexão autêntica.

Todavia, a reflexão autêntica não se origina apenas de um simples exercício intelectual. Segundo Heidegger (2001), reflexão é a coragem de tornar o axioma de nossas verdades e o âmbito de nossos próprios fins em coisas que, sobretudo, são dignas de serem colocadas em questão.

Como sabemos, refletir nem sempre é sentido pelo Homem como algo agradável e convidativo; ao contrário, a ação de refletir nos remete à possibilidade de poder-ser-livre, de poder escolher, de compreender a inospitalidade do mundo, enfim, de se angustiar (loparic, 2004). Diante da angústia, tudo cai por terra, nu, despido de qualquer importância, pois, por meio dela, experimentamos a estranheza do mundo e a própria liberdade de ser. Somente pela presciência da angústia toda a possibilidade acidental e provisória é banida (heidegger, 2001).

Por ser uma condição existencial do Dasein ter que cuidar do próprio existir, dando sentido para as coisas do mundo, e mais, sabendo que é impossível transferir esta tarefa para outro, por estas razões, o mundo pode se tornar um lugar inóspito, a vida pode ser sentida como um ônus, como um fardo que se tem de carregar. Acrescenta Critelli (1996, p. 16):

Céu e terra pertencem-se mutuamente, e todos os elementos da natureza, à medida que aparecem revelados e abrigados nessa pertença, também dela compartilham. No caso do homem, esse modo de pertença em que se cria uma inexorável integração é impossível; a vida humana está em perpétuo deslocamento. Viver como homens é jamais alcançar qualquer fixidez.

Nesta mesma direção, Loparic (1999) alerta que o perigo que nos espreita e em toda parte nos acua é o mundo como mundo, originário e diretamente, que se abre para o Dasein desabrigado. O mundo inteiro não o pode completar. Consciente disto o Dasein experimenta a angústia e desespero, dor e tédio.

Entretanto, o Homem não vive cotidianamente angustiado. Por sua própria abertura, por meio da linguagem e na convivência com

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os outros, o Homem se objetifica ou impessoaliza, explicitando sua possibilidade de inautenticidade, de impropriedade. Este modo de ser alienante é o que pode afastar o Homem daquilo que Heidegger (1993) compreende como tarefa fundamental do Dasein: cuidar de si mesmo. Destarte, o Homem pode cuidar de si mesmo, não cuidando, ou seja, irresponsável, indiferente ou distraidamente.

Alerta Nunes (2002, p. 22): “diante dessa existência finita, da morte, o homem como ser cadente não cessa de fugir”. A inautenticidade evidencia, assim, a tentativa de um modo de ser impessoal, no qual sou absorvido pelo mundo, explica Inwood (2002, p. 11), “de tal forma que esquece de si mesmo como um ente autônomo e interpreta a si mesmo em função de suas preocupações correntes”. Neste sentido, o modo de ser inautêntico é a possibilidade de não se apoderar de si mesmo, de se perder de si mesmo, sendo de um modo impróprio, respondendo pelo “a gente” e não por si mesmo. Esta absorção do mundo pode ser traduzida em relação à questão mais própria do homem, seu ser-para-morte (finitude), na proposição que não sou mais eu que morro, mas sim, a gente é que morre, que, em última análise, não é ninguém, muito menos eu.

A inautenticidade leva embora as escolhas próprias e a responsabilidade pelo que o homem faz e em que acredita. Não sou eu quem decide para que serve algo, ou quem decide como fazer algo. Nem ninguém em particular decide tudo. Ninguém o faz. É apenas o que se pensa e se faz, o que o impessoal pensa e faz. O desdobramento disso é que o horizonte do tempo pode ser interpretado como o “tempo do agora”, um tempo objetivo, que pode ser contado. O cotidiano assume, então, um caráter de preenchimento, no qual o homem se debruça e geralmente se perde (safranski, 2000).

4 Sobre o sentido de educar

A partir desta resumida apresentação Fenomenológico-Existencial da Condição Humana, podemos agora nos perguntar sobre o sentido de educar. Quando interrogamos sobre o sentido de educar, não estamos

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somente questionando para qual direção a educação está indo, mas também, de que modo ela está indo para esta direção. Ao perguntarmos sobre o sentido, indicamos preocupação tanto com o como fazer, como também com o para que fazer. Na prática docente, isto se traduz na crítica ao puro uso da técnica, ou seja, o uso tecnicista da técnica. Como esclarece Almeida (2005), apenas saber ensinar é diferente de garantir a construção do conhecimento pelo aluno, o aprender a aprender.

Qual é o sentido de educar? Muitas respostas podem nos passar: garantir a transmissão do conhecimento (científico), desenvolver no aluno aspectos intelectuais-afetivos, formar cidadãos autônomos e críticos perante as exigências do mundo etc. Para pensarmos sobre o sentido de educar, primeiramente, devemos superar a sedução pela resposta rápida, pronta.

Retomando historicamente a origem da escola, podemos perceber que até a idade média, a atividade de trabalho estava associada à produção artesanal e ao comércio, e não havia de fato, separação entre a vida e trabalho, entre socialização familiar e profissional. Com o advento da modernidade, houve uma crescente necessidade de conhecimentos especializados na área técnica-científica para a produção do trabalho e também aumentou a exigência de preparação das pessoas para a entrada no mundo profissional (Gatti, 2000). Assim, neste período, a escola passou a representar um espaço de transição e preparação da vida da criança para a vida adulta, ou melhor, do mundo infantil para o mundo do trabalho (adulto). Nas últimas décadas podemos observar que, cada vez mais, as escolas vêm assumindo a tarefa de educar, já que, considerando que os pais (pai e mãe) não têm “tempo” para educar seus filhos, pois estão fora de casa, trabalhando, cada vez mais, as famílias solicitam das escolas este posicionamento.

Nesta esteira, se por um lado, a rede pública pretende formar trabalhadores/empregados, a rede particular, por outro, busca formar vestibulandos. Assim, é possível identificarmos um sentido de educar comum entre a rede pública e a particular: ambas contribuem na formação do aluno para a inautenticidade.

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Embora esta constatação seja simples, não podemos dizer o mesmo quando buscamos compreender a escola, a partir da trama de significados do mundo contemporâneo, na proposição de libertar o sentido de educar de sua inautenticidade.

Devemos deixar claro que não é a escola que transforma o aluno para o modo de ser inautêntico, como diz Heidegger (1993), todos os homens no seu ser-no-mundo tendem à inautenticidade, tendem a buscar no “a gente” a dissolução da árdua tarefa do cuidar de si mesmo. Assim, a vida na escola, como qualquer experiência ôntica, pode nos aproximar e nos afastar de sermos nós mesmos, de sermos mais próprios.

Contudo, ao analisarmos a escola a partir de seu funcionamento (classes numerosas, currículo fracionado, conteúdo distante da realidade do aluno etc.), fácil é perceber o quanto ela se tornou uma facilitadora do modo de ser inautêntico.

Diante desta proposição e na direção de tentar buscar modos de ser mais autênticos na escola, gostaríamos de analisar três horizontes do sentido de educar: do conhecimento, da atitude e do tempo.

Entre os vários significados que a palavra “conhecimento” possui, ressaltamos o sentido de aproximação. Fenomenologicamente pensando, conhecer é aproximar (zimmerman, 2001).

Este resgate de sentido vem, de certa maneira, contrapor o que a ciência moderna preconiza como conhecer: distanciamento. Este modo moderno de compreender o conhecimento entende que quanto mais distante o sujeito estiver de seu objeto de estudo, mais ele poderia saber sobre este. Na busca por um caminho seguro e previsível, a ciência moderna direcionou o conhecimento para outra posição: da experiência com o mundo das coisas para o experimento com as coisas do mundo. Como afirma Bondía (2002, p. 28), “a ciência moderna, a que se inicia em Bacon e alcança sua formulação mais elaborada em Descartes, desconfia da experiência”. A experiência se converte em experimento. Assim, o aperfeiçoamento do método torna-se uma tarefa fundamental para a apropriação e domínio das coisas do mundo. Chegamos, então, a um modo de compreender o conhecimento como uma acumulação progressiva de verdades objetivas, externo ao homem, separado da existência humana.

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Ora, não é por acaso que o modo de conhecimento da ciência moderna tem encontrado dificuldades de se entrelaçar na vida escolar. Como buscar proximidade com os alunos quando o próprio método preconiza o distanciamento.

A partir da compreensão fenomenológica que conhecer é aproximar, resta-nos saber de que forma essa aproximação deveria ser realizada na escola, ou seja, a atitude perante o educar. Isto nos leva a idéia de “cuidado”. É o “cuidado” que torna significativas a vida e a existência humana. Ser-no-mundo, portanto, é cuidar (heidegger, 1993).

Vejamos, se o método da ciência moderna nos leva ao distanciamento, o modo de cuidado entre o professor e o aluno só poderia ser técnico/distante. Aqui, o pensar é apresentado como cálculo, como raciocínio puro (fora do mundo), inspirado no princípio de causalidade. Como salienta Bondía (2002), o excesso de repasse de informação, característica de nosso sistema escolar, não garante que aluno experimente o mundo na sua totalidade de significados, pelo contrário, a obsessão pela transmissão de informação (de estar sempre informando e não formando) distancia o aluno da experiência própria com o mundo, faz com nada lhe aconteça.

Embora o desenvolvimento do pensamento lógico-causal seja importante para a vida humana, este não é suficiente para podermos compreender nossa vivência no mundo. Na verdade, o pensar lógico-causal só é possível porque já nos encontramos abertos para as coisas do mundo, numa certa disposição, cuidando de algumas coisas e não de outras.

Assim, tão fundamental quanto ensinar o pensamento lógico-causal, é nos preocuparmos em formar os alunos para o cuidado de sua própria existência. Por exemplo, em relação à criança, explica Cytrynowicz (2000, p. 83), “cuidar, não é somente poupar-lhe experiências desagradáveis ou fazer que siga um determinado caminho. [...] o cuidado mais original com a criança cuida das próprias possibilidades”.

Quando acima falamos em “preocupação”, queremos assinalar que o Dasein está sempre pré-ocupado com algo, está sempre ocupado de alguma forma. Talvez seja esta a tarefa mais importante do Dasein e,

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também, a mais difícil. Temos que dar conta do nosso existir todos os dias, fazer escolhas, sempre no sentido do vir-a-ser.

Parece que, atualmente, o viver foi compreendido como um eterno problema a ser resolvido, uma equação que espera solução, uma verdade, talvez uma técnica do viver. Contudo, rápido aprendemos que quando um problema acaba logo outro aparece. Como vimos, esta árdua tarefa de cuidar de ser abre a possibilidade para a inautenticidade, para a impropriedade do Dasein.

Se por um lado, é a própria condição ontológica do Dasein que possibilita a abertura para a inautenticidade, por outro, é na vivência ôntica, no lidar dos homens com os outros homens e com os entes no mundo que o modo de ser para a inautenticidade se concretiza.

Percebemos, então, a importância da relação do Dasein com o ser-com-os-outros, já que é a partir desta relação que o mundo vai se abrindo e se construindo, que o mundo vai ganhando cores e formas. Entretanto, as cores e as formas do mundo não estão prontas e, muito menos, se apresentam estáticas. É principalmente pelo mundo dos adultos que a criança é introduzida e convocada a cuidar de si mesma.

Este parece ser um ponto fundamental. Embora o mundo não possa ser compreendido como um espaço acabado e imutável, buscamos por meio do educar apresentar sempre para as crianças um mundo já dado, ordenado e regrado, no qual cada coisa tem sua função e serventia. Parece que, com o avanço da ciência e da técnica, estamos cada vez mais nos obrigando a aceitar como verdade a tese que o ser do ente é sempre algo definido pelas propriedades do próprio ente, independente da relação com o Dasein.

Neste modo de apresentar o mundo um sentimento primordial do Dasein é esquecido. No mundo contemporâneo o Dasein não tem tempo para se angustiar. Mesmo sendo o angustiar uma forma de ocupação, atualmente se ocupar é sinônimo de fazer algo, realizar algo, produzir algo. Logo, para o homem moderno se angustiar tem o sentido de perda de tempo.

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O poder midiático, sensível a este sentido de tempo, não cansa de seduzir os homens com a promessa do “ter” em substituição ao “ser”, como algo que nos indica um caminho seguro para a completa realização pessoal, afastando a angústia. Inaugura-se, assim, um cenário de mundo moldado pelo consumo, pela avidez em responder pelo sentido no modo de possuir coisas, que por sua própria constituição ôntica é incompatível a aquilo que pretende responder.

Neste mundo regido pelo tempo cronológico, pelo tempo do fazer, pelo tempo do consumo, a escola não vem se mostrando como um lugar de resistência, como um lugar do questionamento e do resgate do sentido de ser. Pelo contrário, em vez de buscar angustiar os alunos provocando uma crise de conhecimento sobre o mundo e sobre eles mesmos, a escola por meio de uma pedagogia do controle se apresenta como um continuum sedativo que, ao longo do tempo, impessoaliza e fortalece a inautenticidade em seus alunos.

Neste momento, torna-se fundamental resgatar quem é este ser que lida cotidianamente com os alunos nas escolas. Perguntamos: será que o professor, pela singular posição de importância que tem no nosso sistema de ensino, foi formado para romper com os paradigmas da atual sociedade?

Forçoso é admitir que a tríade da sociedade contemporânea “exploração, produção e consumo”, como não poderia ser diferente, também está presente na formação docente. Categoricamente, Gatti (2000) aponta na formação de professores um “ciclo vicioso” – professores com formação básica inadequada – alunos com formação básica inadequada – novos professores com formação inadequada, etc.

Concordamos com Vieira (2000), quando assinala que a formação inicial de professores constitui o ponto nevrálgico, por meio do qual seria possível reverter a qualidade da educação, provocando uma ampla reação em todo o sistema de ensino. Com base nesta compreensão, um componente estratégico da melhoria da qualidade da educação básica, a formação inicial de professores, poderia ganhar realmente o status de uma política pública. Sairíamos de um “ciclo vicioso” para um “ciclo virtuoso”.

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Nesta direção, o sentido de educar poderia ser novamente evocado e, deste modo, a experiência de cuidar de ser poderia ser apresentada como algo que nos acontece, com todos nós e com cada um singularmente.

Considerações finais

Neste estudo vimos possíveis explorações sobre o sentido de educar a partir da Fenomenologia Existencial de Martin Heidegger. Discutimos a importância de compreendemos o educar além da mera transmissão de informações e do desenvolvimento lógico-causal.

De uma certa perspectiva, nossos apontamentos podem parecer simples e óbvios e, possivelmente, devem ser. Entretanto, é justamente a esta experiência a que queríamos nos referir, ou seja, experiência que só ao Dasein pode acontecer e que vem sendo impedida pela tessitura do modo de ser do mundo contemporâneo.

À luz da discussão realizada neste estudo, a figura do professor ganha um peso fundamental. Torna-se clara a importância de pensar a formação de professores a partir de um continuum. A singularidade da profissão de ser professor exige uma formação que deveria ser sempre cuidada, seja por um processo de uma efetiva supervisão escolar, seja pelo processo da formação continuada. Quando perguntamos sobre o sentido de educar devemos, necessariamente, perguntar sobre o sentido de ser educador.

A insistência em preconizar a pedagogia do controle, o conhecimento como distanciamento, a ocupação para a inautenticidade, poderá custar a todos nós a perpetuação da inexistência de um autêntico trabalho de educação. Ou seja, o esquecimento de um dos sentidos mais próprios da educação: a construção pelo aluno de um autêntico projeto de vida.

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Recebido em: 09 de novembro de 2007.Aprovado em: 21 de novembro de 2007.

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númeRo esPeciAl:Heidegger e a Educação

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano VI n. 10 p. 223-254 2008

A Universidade na Era da Técnica – Tarefas e Desafios

Wanderley J. Ferreira Jr.*

Resumo: Esse artigo trata das tarefas e desafios da universidade na era da técnica reportando-se inicialmente a dois momentos decisivos no desenvolvimento da razão ocidental: sua gênese entre os gregos e seus desdobramentos na metafísica do sujeito cartesiano e no projeto matemático de natureza da ciência moderna. Mostra ainda que essa racionalidade atinge sua plenitude no domínio planetário da técnica na época presente, colocando alguns desafios e tarefas à universidade na chamada sociedade do conhecimento.

Palavras-chave: Filosofia. Conhecimento. Educação.

The University at the Technique age: Tasks and Challenges

Abstract: This paper studies the tasks and challenges of the university at the technological age, considering initially two important moments in the development of the western reason, its origin among greeks and its development withen the methaphysics of subject cartesian and in the mathematic project of the nature of modern science. It also shows that this rationality affects its entiress in the planetary domain of the technique at present time, placing some challenges and tasks to the university in the called information society

Key words: Philosophy. Knowledge. Education.

* Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor de filosofia da Universidade Estadual de Goiás (UEG). E-mail: [email protected]

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Introdução

A compreensão das tarefas e desafios que se colocam à universidade na era da técnica, tomando como referências básicas algumas reflexões do filósofo Martin Heidegger1 (1889-1976), exige que sejam explicitados os aspectos básicos do contexto de emergência da razão moderna e seu ideal de dominação técnica da natureza via ciência e da sociedade via política. Tornou-se lugar comum epistemólogos e historiadores das ciências e da filosofia enfatizarem a originalidade dessa nova forma de saber que surge com a metafísica cartesiana e a Revolução Científica no século XVII. De fato, a ciência moderna propõe um novo diálogo entre o homem e uma natureza reduzida à condição de um autômato regido por leis matemáticas. Contudo, raros são os pensadores que, como Heidegger, procuram resgatar ou rememorar os pressupostos metafísicos que contribuíram para que esse diálogo experimental que surge com a ciência moderna no séc. XVII se consuma hoje no domínio planetário da técnica. Tais pressupostos se encontrariam na origem do pensamento racional como filosofia entre os gregos. Portanto, as raízes da razão moderna e de toda civilização Ocidental que hoje, através do domínio da técnica, atinge níveis planetários, encontram-se naquelas tentativas dos primeiros pensadores gregos (Pré-Socráticos) em estabelecer uma compreensão racional da physis e na compreensão técnica do pensar já presente em Platão e Aristóteles.2

Ainda não temos acesso sequer à totalidade das análises e interpretações que Heidegger fez das experiências originárias dos gregos acerca da physis, do Logos, do homem, do ser das coisas e de

1 Martin Heidegger (1889-1976) – Filósofo sobre o qual desenvolvi minha dissertação de mestrado em Filosofia A questão da superação da metafísica na era da técnica (2001) e minha tese de doutorado em filosofia – O processo de objetificação na metafísica e na ciência moderna (2005), sob orientação do Prof. Dr. Zeljko Loparic (Unicamp).2 Na carta Sobre o Humanismo (1947), Heidegger considera que uma autêntica experiência da essência do pensar originário, que implicaria sua própria realização, exige que nos libertemos da interpretação técnica do pensar, cujos primórdios recuam até Platão e Aristóteles. Neles não é mais o Ser que determina o dizer e o pensar, ao contrário, doravante, são as leis do pensar (Principio de identidade, Não-contradição e da Razão Suficiente) e as regras da gramática que determinam o que é o Ser, concebido como causa e fundamento do ente. O próprio pensar é tido, ali, como uma tékhne, o processo da reflexão é posto a serviço do fazer e do operar (Heidegger, 1979a, p. 149).

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como toda história posterior do Ocidente seria marcada pelo crescente esquecimento dessas experiências originárias. O fato é que, para o filósofo, uma melhor compreensão do pensamento grego contribuiria para a percepção da especificidade da racionalidade que surgiu com a metafísica do sujeito em Descartes e com o projeto matemático de natureza da ciência moderna no século XVII.

Ora, sabemos que o surgimento da razão moderna marca o início da hegemonia do sujeito pensante cartesiano (Eu penso) e da transformação de todas as coisas em objetos redutíveis às representações desse sujeito enquanto senhor e controlador da natureza3. Essa razão, ávida em dominar e controlar a natureza e o homem, encontraria sua consumação/plenitude no domínio planetário da técnica nos dias atuais. Nesse sentido, poderíamos considerar que no âmbito do paradigma newtoniano-cartesiano da “ordem a partir da ordem”, concebe-se a natureza como um autômato regido por leis mecânicas (Cf. Prigogine, 1984). Opera-se, assim, uma redução do real às representações de um suposto sujeito puro desencarnado capaz de perceber, para além da complexidade aparente, determinadas leis simples. Ora, essa visão determinista e mecanicista da natureza será colocada em questão por novas formas de racionalidades e experiências pré-reflexivas do real sugeridas pelos novos paradigmas no âmbito das ciências contemporâneas. Nesse sentido, depois de explicitar alguns aspectos básicos da gênese da razão moderna, vamos tentar responder até que ponto o tipo de racionalidade que surge com Descartes e a ciência moderna entram em crise nos dias atuais, colocando novas tarefas e desafios à universidade da era da técnica. Cabe ressaltar, desde já, que com o advento da metafísica cartesiana e a Revolução científica do século XVII, o homem moderno teve que fazer uma escolha: ou escolhia voltar ao seio da natureza ou escolhia estabelecer com ela um diálogo experimental baseado em símbolos e fórmulas matemáticas que desrealizavam nossas experiências cotidianas das coisas. Não é difícil saber que caminho escolhemos. Apostamos na ciência e na técnica que intima, interroga e re-constrói a natureza conforme a ordem e a medida.

3 Sobre o surgimento do sujeito pensante. Cf. Heidegger: A pergunta pela coisa (1935), a Coisa (1935), A época da imagem do mundo (1938), Nietzsche II (1962).

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O preço a pagar seria nosso crescente estranhamento em nossa própria casa – a terra.

Não há como negar a atualidade de uma constatação/diagnóstico feita por Heidegger em 1929 na conferência Was ist Metaphysik? (Que é metafísica?) sobre essa universidade da era da técnica. Ela não passaria do resultado da fragmentação da ciência numa diversidade de especialidades e disciplinas que são artificialmente reunidas em Universidades e Faculdades. Na realidade, constata o filósofo, desapareceu o enraizamento das ciências, da universidade e do próprio homem no mundo da vida (Lebenswelt) (Cf. Heidegger, 1979b). O fato é que a universidade na Era da técnica planetária corre o sério risco de se tornar uma instituição técnica determinada por princípios tais como: funcionalização, automação, burocratização e informação. A própria concepção de homem que subjaz ao funcionamento das universidades na chamada Sociedade do conhecimento, o reduz à condição de animal de trabalho (arbeitendes Tier), ou material humano (Menschenmaterial) (Cf. Heidegger, 1997). Nesse sentido, veremos que o caráter radicalmente técnico de nossa época faz da universidade um dispositivo tecnológico semelhante a uma fábrica ou a uma agência prestadora de serviço, que privilegia em suas grades curriculares uma concepção meramente técnica e científica do mundo natural e humano. O pior é que nos iludimos de que, sob a mediação da técnica, podemos controlar e dispor da totalidade das coisas conforme nossa vontade. Ora, constataremos, com Heidegger, que a força que organiza isso tudo, conferindo coesão à sociedade, é uma vontade de potência cujo único objetivo, como já observou Nietzsche, seria seu próprio engrandecimento, ou seja, o aumento de seu próprio domínio sobre a totalidade dos entes.

Infelizmente, essa disponibilidade incondicional de todas as coisas à fúria da técnica faz com que a universidade deixe de ser um poder espiritual decisivo na constituição de uma verdadeira nação, de um verdadeiro espírito do povo (Volkgeist). Enquanto instituição organizada tendo as leis de mercado como condição e a formação de incompetentes sociais como resultado, a universidade tem agora como missão básica a

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formação desse animal de trabalho – o homem, que se converte em material humano que deve ser preparado para render o máximo no processo de produção, ou ser descartado como uma espécie de ruído que compromete a otimização da performance do sistema.

O fato é que hoje proliferam diversas formas de se falar em crise da razão e seus conceitos operatórios, o que exigiria uma nova universidade para a formação de um novo tipo de homem adaptado a uma realidade na qual a única coisa permanente é a própria impermanência e transitoriedade das coisas. Infelizmente, esses novos paradigmas, que instauram novas formas de adquirir, armazenar e transmitir conhecimentos, nem sempre são considerados ou compreendidos pelos gestores, professores e alunos em nossas escolas e universidades. Esse fato torna ainda mais urgente e relevante a questão guia desse artigo: Que desafios se colocariam à universidade nessa época de emergência de novos paradigmas e no âmbito da chamada sociedade do conhecimento?4 Em que medida essa universidade pode ser crítica e inovadora em relação à crescente padronização e especialização do conhecimento num mundo cada vez mais uniforme e esquadrinhado pelo cálculo?

Reconhecemos que a ciência contemporânea procura reintegrar o homem no mundo que ele descreve, tentando talvez re-encantar a natureza e devolver o mistério que cerca cada coisa em sua simples presença. Essa nova postura certamente exige novas formas de produzir, assimilar, armazenar e distribuir o conhecimento adquirido, não apenas através da ciência e sua insistência sobre o demonstrável, mas mediante uma relação realmente significativa e originária com um mundo reabitado pelo mistério.

Na tentativa de compreender alguns aspectos fundamentais dessa nova configuração do conhecimento e do novo estatuto do homem e da própria razão no contexto da sociedade do conhecimento, vamos tomar como ponto de partida de nossa exposição o surgimento da razão moderna no âmbito da metafísica cartesiana e da ciência

4 Sociedade do Conhecimento é a forma brasileira de traduzir Sociedade da Informação ou Super Estrada da Informação, expressões cunhadas nos anos 90 pela Comunidade Econômica Européia e os Estados Unidos com o objetivo de planejar ou concentrar esforços na construção de uma infra-estrutura global da informação.

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moderna. Concluiremos nosso percurso apontando alguns impasses da racionalidade tecno-científica nos dias atuais e suas repercussões na forma em que o conhecimento é produzido e transmitido em nossas universidades.

1 Gênese e crise da razão técnico-científica

Ao retomarmos alguns aspectos da gênese da razão moderna numa perspectiva heideggeriana, não podemos negligenciar o fato de que a apropriação romana (latina) de certos termos fundamentais da metafísica grega – Logos (Ratio), Alethéia (Veritas), Ergon (Opus), Enérgeia (Actualitas), Physis (Natura) – não apenas aprofundou o desvirtuamento/esquecimento das experiências originárias dos gregos em relação ao ser, ao pensar e ao dizer, mas preparou o advento da época moderna e seu ideal de dominação e controle sobre a totalidade dos entes. A transição da energéia (Aristóteles) em actualitas (realidade eficaz) (escolástica), por exemplo, prepara a disponibilidade incondicional de coisas e homens à fúria da técnica nos dias atuais. O real torna-se isso que existe e está colocado fora de suas causas como efeito de uma ação eficaz, seja do homem ou de Deus. Ora, compreender o ente como realidade eficaz, como resultado de uma ação eficaz, vela o evento da origem de sua essência. Pensa-se o puro dar-se do Ser naquilo que se manifesta – o ente, mas não se pensa as condições de possibilidade do Dar-se, o mistério que subjaz a todo des-velamento. Essa experiência do Ser, enquanto causa de uma realidade concebida como resultado de uma ação eficaz, teria preparado o solo para o surgimento da razão moderna com o advento do sujeito pensante (Descartes) e com a revolução científica do século XVII e seu projeto matemático de natureza (Heidegger, 1961, p. 419-420).

Ao fixar como ponto de partida a dúvida universal e radical, Descartes (1596-1650) estabelece-se na consciência de si enquanto certeza de si. O filósofo tem a ilusão de poder ensinar um método capaz de desembaraçar radicalmente a opinião pela dúvida metódica do sujeito pensante. Assim, o eu penso impõe-se como a afirmação

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certa da consciência em ato, de sua atualidade viva enquanto puro fato de consciência. O que emerge da radicalização da dúvida, de sua hiperbolização, é a evidência do Cogito, a certeza para o Sujeito Pensante, que se afirma como sujeito consciente de seu objeto (conteúdo) de pensamento e consciente de si. Assim, a dúvida metódica cartesiana e a emergência da evidência do Cogito inauguram, não apenas a ordem das razões na qual se deduz a existência de Deus e do mundo exterior, mas o pensamento moderno na busca pela objetividade do conhecimento.5

A metafísica cartesiana postula que a autoridade não repousa mais em um princípio transcendente ou na autoridade da tradição, mas na imanência do próprio sujeito capaz de usar metodicamente sua razão rumo às certezas sempre parciais. Doravante, o homem terá que buscar um novo ponto fixo para sua conduta moral, política e científica, já que a tradição e a autoridade (Aristóteles) não satisfazem mais as novas exigências do tempo. O Eu penso (Cogito) converte-se, assim, em princípio fundador fazendo com que o homem alcance uma posição única dentro desse perguntar pelo ente. O homem transforma-se em sujeito, não mais uma parte da totalidade do ente ao lado de Deus e do mundo, mas aquela instância na qual se reduzem e da qual partem todas as proposições metafísicas. O termo subjectum não tem agora a amplitude do termo grego hypokeimenon (o que subjaz, o que suporta determinadas qualidades), mas restringe-se ao homem, sujeito pensante e representador. Nesse sentido, como sujeito, o homem se funda a si próprio como medida de todas as medidas com as quais se mede o que pode ser tomado como certo, verdadeiro e existente.

Mas como chegamos ao reinado do sujeito na modernidade? Como se tornou possível interpretar todo existente tomando como

5 Este vasto desenvolvimento desemboca em Kant (1724-1804), que elabora uma crítica como ato de um sujeito transcendental que irá determinar os limites, princípios e o território da Razão humana no campo do conhecimento, da ética, da política e da religião. A consciência do filósofo, consciência universal (intersubjetiva), é a consciência do Sujeito humano, suporte da universalidade da Razão e das condições a priori do conhecimento. Para além da dúvida metódica, o Cogito cartesiano tornou certo de si mesmo e de seu objeto, na medida em que retomou o itinerário (exposto na Fenomenologia do Espírito) que conduz o espírito, da consciência imediata do aqui e agora ao ingresso no Saber Absoluto, onde desde o mais distante de si, o Espírito encontra-se na posse de si mesmo. O fato é que Hegel, a última metafísica possível, prepara as recusas das ilusões do Sujeito Pensante e do monopólio do absoluto, presente nas obras de Marx (1818-1883), Freud (1856-1939) e Nietzsche (1844-1900).

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critério apenas as estruturas do sujeito cognoscente? A preeminência de um Sub-jectum provém da pretensão do homem de encontrar um fundamentum absolutum inconcussum veritatis – um fundamento que descansa na certeza de si. Tal pretensão não passa do resultado da liberação do homem da autoridade da Igreja e de Aristóteles. Assim, em virtude dessa liberdade, o homem que se libera se põe a si mesmo uma obrigação. Esse imperativo pode ser a razão humana e sua lei, ou o ser ordenado objetivamente e instituído por essa razão (Cf. Heidegger, 1997, p. 81).

Nesse sentido, podemos considerar que a “experiência do Ser” para o homem moderno não é mais uma experiência que o Ser faz de si no dizer e no pensar do homem. O Ser transforma-se em objeto do representar de um sujeito que pensa. Dizer que esse sujeito pensa, é dizer que ele representa, ou seja, mantém determinada relação com um representado. Representar significa, tomando por base a si próprio colocar algo diante de si e garantir aquilo que é posto como tal. Essa garantia advém de um calcular, pois só a calculabilidade garante de antemão e constantemente a certeza do que se quer representar. Aqui domina, não mais uma escuta e um ver que deixam as coisas serem o que são, mas um desafio que submete a totalidade do ente ao cálculo e à planificação. Assim, o verdadeiro sentido da categoria de Sujeito mostra-se no âmbito desse processo de objetivação total do mundo que o reduz a uma imagem – esse processo é o que Heidegger chama de reino da Técnica. O devir sujeito do homem, com Descartes, não é senão a transcrição metafísica última do estabelecimento do reino da técnica. O próprio fato do homem tornar-se sujeito e do mundo tornar-se imagem/objeto, não passaria de uma conseqüência da essência da técnica no movimento de sua instalação planetária (Cf. Heidegger, 1997, p. 86-87).

O fato é que essa confiança na capacidade da razão em dominar e devassar todo mistério da natureza, reduzida à condição de autômato, configura-se como um dos fenômenos que determinam a essência da época moderna6. Mas que concepções de real e de verdade estão

6 Heidegger aponta outros fenômenos que constituiriam a identidade da época moderna: surgimento da ciência e da técnica mecânica, a massificação do homem, a transformação da arte em estética; a concepção do obrar humano como cultura e a fuga dos deuses, ou seja, o processo de desdivinização (Entgötterung) (Hölderlin) (Cf. Heidegger, 1997b, p. 70).

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subjacentes a tais fenômenos? Para o filósofo, a resposta a tal questão exige que a modernidade seja compreendida não somente em dentro de seus limites, mas como resultado de algumas decisões metafísicas que ao longo da história ocidental velaram o sentido originário do Ser e prepararam o advento da modernidade e da era da técnica.7 O fato é que somente desvelando o fundamento metafísico da modernidade poderemos entender seus sintomas – ciência moderna, técnica planetária, subjetivação da estética, a empresa cultural e a desdivinização do mundo. Tais fenômenos colocam-nos diante do desafio de buscar alternativas à mobilização total operada pela técnica planetária.

Houve um tempo, mais precisamente durante o breve período de reitorado na universidade de Freiburg em 1933, em que Heidegger teria acreditado numa certa capacidade do nazismo de criar uma mobilização (uma terceira via entre o comunismo e o americanismo) que harmonizasse melhor o homem às exigências da técnica moderna (Cf. Heidegger, 1969). Tal tarefa impunha ao povo alemão o dever de tornar-se digno de um novo começo que estaria na grandeza originária da filosofia grega. Contudo, logo o filósofo percebeu que também esse começo grego da filosofia estava sob o domínio da Vontade de Poder (Nietzsche) que impera na era da técnica. Compreendeu mais ainda, que também o nazismo seria o rosto trágico desse domínio incondicional sobre a totalidade do ente que começa com a metafísica cartesiana e sua descoberta do sujeito.

Mas o que dizer das novas teorias, descobertas e paradigmas que emergem hoje em várias áreas do conhecimento científico? Será que

7 Algumas decisões tomadas entre os gregos e que repercutiram na história do Ocidente: a decisão de pensar o Ser como causa e fundamento do ente, como realidade, como substância, como o efetivamente dado e não como possibilidade ou fundamento sem fundo (Abgrund) de onde o ente essencializa o seu Ser; a decisão de pensar o Ser a partir do Ente, esquecendo-se a diferença ontológica entre Ser e ente; a decisão de fazer da Metafísica uma lógica fundada na interdependência entre fundado e fundamento, e por ser lógica, a Metafísica é ôntica e teísta: é ôntica porque o Ser é tomado como fundamento do ente e confundido com o Ente Supremo; é teísta, porque o ente só poderá ser fundado se realmente fundar-se num último fundamento que exclua a possibilidade de outra fundamentação - esse fundamento supremo é o Theós; a decisão de pensar o Ser a partir do pensamento e da lógica e não como condição de todo dizer e pensar; e por fim, a decisão de pensar a essência da Verdade como adequação (conformidade) e como Certeza, decisão que implica uma via representacional ao Ser e a promoção do homem à condição de subjectum (Sujeito), isto é, o homem como Sujeito torna-se o fundamento e a medida da verdade de suas representações e do próprio Ser.

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alguma coisa efetivamente mudou na essência da técnica e no projeto matemático de natureza da ciência moderna com a crescente substituição do velho paradigma cartesiano-newtoniano e sua visão mecanicista e determinista de natureza por um novo paradigma que propõe uma visão mais holística e sistêmica da realidade?

1.1 O surgimento de novos paradigmas e a universidade

O surgimento de novos paradigmas nas ciências tem como consequência mais imediata a queda de alguns “dogmas” e princípios lógicos do cientificismo do século XIX, sustentado por uma visão determinista e mecanicista da natureza. Entre esses dogmas podemos destacar: o atomismo, o determinismo, o mecanicismo e a tese empirista de que toda teoria que ultrapasse os limites da experiência sensível não tem valor científico. Podemos considerar que o atomismo foi eliminado pela desintegração das partículas subatômicas, o que revelou a impossibilidade de se chegar, até o momento, ao elemento último da matéria. Cada vez mais nos convencemos de que não há separação rígida entre matéria e espírito, entre contínuo e descontínuo, entre sujeito-objeto-instrumento. O determinismo, que conferia à Ciência o poder de uma previsão absoluta dos fenômenos regidos por leis imutáveis e mecânicas, foi eliminado pela Física Teórica (Quântica). No universo subatômico, dadsa as mesmas causas/condições nem sempre se pode esperar os mesmos efeitos. As Leis naturais tornam-se meras convenções com valor instrumental/relativo e não podem ser aplicadas no universo subatômico no qual impera a incerteza. Contra o paradigma cartesiano-newtoniano da ordem a partir da ordem, opõe-se o paradigma da ordem a partir do caos, da ordem a partir do ruído. Contra a razão analítica cartesiana, descobre-se que o microscópico não é simples, mas complexo. Definitivamente, não há mais lugar para se pensar na possibilidade de um Sujeito/observador puro (Demônio laplaciano)8 que, dadas determinadas variáveis, conseguiria 8 Laplace – 1814 – “devemos encarar o estado presente do universo como o efeito de seu estado anterior e como a causa daquele que se seguirá. Uma inteligência que, em dado momento, pudesse ver todas as forças que animam a natureza e a situação respectiva dos seres que a constitui [...]. Abarcaria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e de seu menor átomo [...]. Nada seria incerto para essa inteligência, e o futuro, assim como o passado, estaria presente para ela”.

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prever todos os estados passados e futuros do universo. A racionalidade científica, além de abrir mão do monopólio da verdade, assume que talvez só poderá lidar com aproximações, probabilidades, que nada é certo. Somos e estamos irremediavelmente entranhados num mundo de valores e significações que torna ilusória qualquer observação pura de um dado puro feito por um Sujeito puramente racional.

Mas como pode a ciência, cuja ambição é descobrir a ordem oculta na natureza, solicitar agora as potências organizadoras do acaso, do caos? O que mudou com o novo paradigma da ordem a partir do acaso, ordem a partir do ruído? Vivemos uma revolução epistemológica, novas teorias científicas constroem ou estabelecem uma nova inteligibilidade do universo fundada em instrumentos conceituais como: acaso, caos, complexidade (Edgar Morin), estruturas dissipativas (Ilya Prigogine), geometria dos fractais, desordem organizadora, auto-organização (Humberto Maturana), etc. A Revolução epistemológica atual atinge tanto novos domínios de novas teorias (cibernética, neurolinguistica, teoria dos sistemas, teoria da informação, ciências cognitivas, filosofia da mente, inteligência artificial, etc.), quanto os campos teóricos já estabelecidos (a física, a química, a biologia).

A nova racionalidade da ciência contemporânea representada por Ilya Prigogine, Henri Atlan, Edgar Morin, Humberto Maturana e outros, pretende renunciar ao determinismo clássico (newtoniano) propondo que as leis da natureza são irreversíveis e aleatórias. As leis naturais observadas no universo macro-cósmico, não têm validade no universo subatômico, no qual, por exemplo, nenhum observador pode pretender apreender, ao mesmo tempo, a posição e a velocidade de uma partícula no espaço e no tempo (Princípio de incerteza – Werner Heisenberg). Com o advento da noção de complexidade, por exemplo, a ciência é obrigada a admitir que existe uma quantidade infinita de interações e de interferências entre um número muito grande de unidades que desafia sua capacidade de cálculo. É certo que hoje os próprios cientistas já não se vêem mais como sujeitos puros, desencarnados e estranhos diante de uma natureza que não passaria de um autônomo

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(uma máquina) submetido à leis matemáticas. O homem agora sente a necessidade urgente de situar-se no mundo que ele mesmo descreve. Contudo, a ciência moderna fundada no paradigma da matematização da natureza simplesmente constatava que o homem era um estranho no mundo que ele não apenas descrevia, mas dominava.

É certo que, desde sua origem no século XVII, a ciência moderna procurou estabelecer uma nova forma de comunicação entre homem e natureza – buscando sempre compreender nossa situação e a que título participamos da evolução da natureza. Sua originalidade em relação a outras práticas e narrativas estaria na experimentação. A ciência sempre procurou estabelecer um diálogo experimental com seu objeto, partindo do pressuposto de que conhecer é modificar. Ela constituiu-se, assim, como uma teoria do real, uma teoria que intervém e transforma o real e que provoca e intima a natureza a dizer sem ambiguidades se é conforme ou não a uma determinada teoria ou modelo. Assim, seja qual for a interpretação que se dê a ciência moderna, ela implica uma concepção da natureza como algo passivo e morto, um autômato regido por leis mecânicas universais redutíveis ao instrumental matemático. Contudo, como já foi mencionado, os conceitos básicos que fundamentavam a concepção clássica do mundo alicerçada no paradigma cartesiano-newtoniano chegam a seus limites no âmbito de metamorfoses que hoje atingem todas as ciências.

Entre os próprios cientistas abandonou-se a ambição de reduzir o conjunto de processos naturais a um pequeno número de leis universais e necessárias. Doravante, as ciências naturais descrevem um universo fragmentado, rico de diversidades qualitativas e de surpresas potenciais. Descobre-se que o diálogo experimental não é o sobrevôo desencantado sobre uma mera extensão submetida ao movimento, mas a descoberta e a exploração sempre local e eletiva de uma natureza complexa e múltipla (Prigogine, 1984, p. 44). Não são mais as situações estáveis e as permanências que interessam aos cientistas e filósofos, mas as evoluções, as crises, as instabilidades. Não se quer estudar apenas o que permanece, mas o que se transforma, as perturbações geológicas,

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climáticas, a gênese e a mutação das normas, etc. O fato é que a idéia de uma natureza determinista e estéril está sendo cada vez mais abandonada num campo de pesquisas no qual se privilegia as estruturas instáveis, a irreversibilidade do tempo, etc...

A Ciência contemporânea afastou-se de uma idéia chave para a ciência clássica, a idéia de que o microscópico é simples e regido por leis matemáticas simples. A ciência deveria ir do complexo ao simples, num processo de análise tão rigorosa quanto a demonstração de um teorema. Postulava-se a existência do elementar, o elemento último constituinte do todo (O Universo) e como correlato a idéia de uma Mathesis Universalis. Sabemos agora que nos encontramos em um mundo essencialmente aleatório, no qual a reversibilidade e o determinismo são exceções e a irreversibilidade e a indeterminação microscópica é a regra. Não temos mais o direito de afirmar que o único objetivo da ciência é a descoberta do mundo do ponto de vista exterior de uma inteligência pura. Abandona-se cada vez mais a ilusão de extraterritorialidade teórica e cultural da ciência em relação a outras narrativas e racionalidades. É urgente, pois, que a ciência se reconheça como parte de uma cultura, não tendo a pretensão de ocupar o lugar da cultura no seio da qual se desenvolve (Cf. Prigogine, 1984). Enfim, a natureza que a ciência procura manter um certo diálogo não é mais aquela descrita através da idéia de tempo homogêneo, contínuo, reversível e repetitivo. Doravante, exploramos uma natureza re-encantada, de estruturas complexas e em desequilíbrio e que nos fazem pensar na coexistência de tempos irredutivelmente diferentes e articulados nos quais se entrelaçam a necessidade e o acaso. Mas será que as ciências contemporâneas e seus novos paradigmas representariam uma nova alternativa ao domínio planetário da técnica e ao projeto matemático de natureza da ciência moderna?

Para Heidegger, a física atual e toda ciência contemporânea, mesmo depois da teoria da relatividade e da teoria quântica, não passariam de prolongamentos do projeto matemático de natureza iniciado com a ciência moderna.9 Hoje se fala de uma teoria do caos 9 Heidegger sempre demonstrou um grande interesse em conhecer os problemas debatidos pelos cientistas de seu tempo. A esse respeito pode-se conferir em Vom Wesen der menschlichten Freiheit – Einleitung in die Philosophie, §15, algumas anotações preliminares sobre o problema da causalidade

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determinístico. Contra o paradigma cartesiano-newtoniano da ordem a partir da ordem, vimos surgir o paradigma da ordem a partir do caos, do ruído. Contudo, o poder desafiador da técnica continua exigindo que todas as coisas se manifestem em sua pura disponibilidade enquanto fundos de reserva. O caráter matemático da ciência moderna pode muito bem ser expresso na frase de Max Planck: “é real tudo que se pode medir”. A expressão de Planck nos leva a inferir que conhecimento seguro para a ciência é o que pode ser medido (Heidegger, 1976, p. 13).

Assim, desde o inicio da ciência moderna até a era cibernética, o cálculo seria o processo pelo qual a ciência assegura seu domínio sobre o real enquanto objeto (Gegenstand). Portanto, a ciência contemporânea, apesar de propor novos paradigmas, não abre mão do processo de objetificação inerente ao paradigma matemático. O fato é que, no entender de Heidegger, a física contemporânea mostra apenas uma outra forma do ente material aparecer em sua objetidade. Mesmo a física atômica permanece uma física, assim como a física newtoniana, ou seja, é ciência. Nesse sentido, há algo que não muda nessas duas épocas da física moderna: a intimação à natureza, o desafio de tudo conceber como fundo de reserva/estoque (Bestand) (Heidegger, 1958, p. 68).

Apesar da ciência contemporânea realmente ainda ser determinada pela fúria da técnica planetária e pelo projeto matemático de natureza da ciência moderna, é inegável que as mudanças paradigmáticas de nosso tempo, além de conferir um novo estatuto para o sujeito do conhecimento, certamente repercutem na forma como o conhecimento é produzido, assimilado e distribuído dentro da universidade. Já foi dito que no contexto da sociedade do conhecimento não é possível continuar a trabalhar com projetos/programas que insistam na lógica da simples passagem de conteúdos para os alunos. Muito menos,

nas ciências. Em Die Frage nach das Ding (A pergunta pela coisa), podemos ler algumas considerações sobre os direitos e limites do formalismo matemático nas discussões contemporâneas (Cf. p. 105). O filósofo nos apresenta análises extremamente precisas do método e dos procedimentos das ciências modernas (Cf. Die Frage nach der Technik, p. 76 sq; Holzweg – Die Zeit des Weltbildes, p. 71-78; Vorträge und Aufsatze, p. 69-70.). Existe ainda a tentativa de manter um certo diálogo com a física contemporânea e alguns de seus ilustres representantes, como atestam as inúmeras referencias a Niels Bohr (Cf. Die Frage nach das Ding, p. 51), Max Planck (Vorträge und Aufsatze, p. 58), Heisenberg (Die Frage nach das Ding, p. 51; Vorträge und Aufsatze, p. 31, 51, 61).

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podemos nos contentar com a perspectiva de uma mera preparação para o mundo do trabalho. A universidade deve sim colaborar no processo de democratização do conhecimento, capacitando os indivíduos para mobilizar conhecimentos de forma criativa e significativa em situações novas no cotidiano sem, contudo, desacreditar as meta-narrativas, as grandes sínteses teóricas sobre a história, a sociedade e o homem (filosofia, ciência, política).

Mas que desafios se colocariam à Universidade nessa época de emergência de novos paradigmas e denominada de sociedade do conhecimento?

2 Universidade e sociedade do conhecimento – ilusões e desafios

O Banco Mundial em seu relatório intitulado Promoting knowledge And Learning for a better World, considera, numa perspectiva neoliberal, que no surgimento do novo milênio, conhecimento e informação tornaram-se fatores essenciais de desenvolvimento. O aumento do entendimento científico e o rápido avanço das tecnologias da informação e comunicação estão conduzindo a mudanças sem precedentes na forma de produzir, transmitir e adquirir conhecimento. Países em desenvolvimento têm agora a oportunidade de explorar a revolução do conhecimento com o objetivo de reduzir a pobreza e promover o desenvolvimento sustentável (Banco mUndial, 1999). Por seu lado, o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) num documento intitulado Sociedade da Informação no Brasil (MCT, 2000) considera que há um paradigma emergente de produção de bens e serviços e de organização de atividades em geral baseado na utilização intensiva de Tecnologia da Informação e da Comunicação.

Mas o que significa afinal Sociedade do conhecimento? O termo tornou-se corrente no início dos anos 90 e refere-se ao projeto euro-americano de planejar e executar a construção de uma infra-estrutura global da informação e comunicação. Essa Sociedade da informação (Europa) ou

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Super via da informação (USA) é hoje alimentada e mantida por órgãos estatais, empresas e redes de pesquisas de cada País (Brasil - MEC/CNPq, Capes e Universidades). Os mais entusiastas acenam com as possibilidades abertas pela Sociedade do conhecimento, tais como: a constituição de uma cidadania internacional numa sociedade globalizada na qual impere o respeito às diferenças, ao outro; uma maior democratização de oportunidades e acesso generalizado à informação; melhor eficiência e eficácia na qualificação da mão de obra e disponibilidade cada vez maior de novas tecnologias. Contudo, para que essas possibilidades abertas pela sociedade do conhecimento possam ser efetivadas, torna-se necessário vencer alguns desafios: o primeiro desafio é de ordem cultural. Como disseminar e mobilizar instituições e comunidades para os preceitos da sociedade do conhecimento? Com relação a acessibilidade, pode-se perguntar: como acessar e educar o maior número possível de adultos, não importando a localização, horário, diferenças culturais e dificuldades físicas? Em relação à qualidade de vida, pode-se indagar: como melhorar as perspectivas de cada criança, jovem ou adulto como indivíduo e membro de comunidades econômicas, culturais e políticas? Por fim, podemos questionar: como assegurar a obtenção dos objetivos anteriores com um crescimento econômico lento e outras necessidades sociais urgentes?

Esses desafios assumem outra dimensão quando contextualizados na sociedade brasileira que padece, quase que cronicamente, de três formas de analfabetismo – o analfabetismo da leitura-escritura (não saber ler e escrever); o analfabetismo sócio-cultural-político (não saber em que tipo de sociedade se vive); o analfabetismo tecnológico (não saber interagir com máquinas complexas). Não é por acaso que o governo brasileiro, ainda de forma tímida, procura estabelecer os parâmetros e o caráter daquilo que se poderia chamar de sociedade do conhecimento. No documento já citado do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) intitulado Sociedade da informação no Brasil percebe-se o esforço conjunto de profissionais em estabelecer uma espécie de programa da sociedade da informação no qual a educação ocupe lugar de destaque: “[...] a educação

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é o elemento-chave para a construção de uma sociedade da informação e condição essencial para que as pessoas e organizações estejam aptas a lidar com o novo, a criar, e, assim, a garantir seu espaço de liberdade e autonomia” (MCT, 2000, p. 7).

Mas que tipo de teoria pedagógica é pressuposta por essa revolução na educação preconizada pelos defensores da chamada sociedade do conhecimento? Quais os pressupostos antropológicos, epistemológicos, éticos e políticos da nova sociedade da informação?

2.1 Os pressupostos pedagógicos da sociedade do conhecimento – as pedagogias do aprender a aprender e seu caráter adaptativo

Na Sociedade do conhecimento, o fenômeno da educação em seus processos de construção, gestão e disseminação do conhecimento tem como pressuposto pedagógico as pedagogias do “aprender a aprender”. Em tal sociedade repete-se como um mantra a necessidade da educação continuada/permanente, que infelizmente visa mais adaptar o indivíduo às necessidades do mercado, em vez de humanizá-lo no sentido de sua maior autonomia no pensar e no agir com senso de responsabilidade social. Podemos considerar que a sociedade do conhecimento coloca duas exigências: 1º - melhoria da qualidade da educação fundamental através da lógica da criação, da iniciativa, de responsabilidade social e do exercício da cidadania; 2º - criação de condições favoráveis à educação permanente e reconhecimento de outras formas de conhecimentos e valores como requisitos de inovação e desenvolvimento social. Assim, na Sociedade do conhecimento toda proposta pedagógica deve estar balizada na ética da diversidade, ou seja, no respeito pelo outro em todas as suas diferenças e na satisfação de suas necessidades de sobrevivência e transcendência (arte, religião).10 Essa valorização do particular, do multiculturalismo, do pluralismo racial e cultural, exige 10 Alain Badiou em seu livro Ética (Ed. Relumé-Dumará) também faz um diagnóstico da fragmentação do ethos contemporâneo e desconstrói os fundamentos da ética universal dos direitos humanos, que concebe o homem como vítima definindo o Bem, o justo, em função de um mal também universal. Contra essa ética universal de um suposto sujeito universal, Badiou (1990) propõe uma ética das singularidades.

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que os educadores cada vez mais sejam conhecedores da diversidade cultural humana, resistindo e combatendo em todas as suas formas a tentação do etnocentrismo.

Os professores sintonizados com os imperativos da sociedade do conhecimento devem reconhecer que o foco no processo de ensino-aprendizagem deve ser o exercício de habilidades e competências por parte do aluno visando sua maior autonomia, seu tornar-se sujeito do processo de aprendizagem. Esse enfoque exige a passagem de uma lógica do ensino para uma lógica do treinamento (aprender fazendo). A idéia implícita aqui é que as competências são construídas exercitando-se em situações complexas e que tenham algum significado para aluno.

Mas quais seriam as principais teses das pedagogias do aprender a aprender que servem de subsídio para a proposta pedagógica da assim chamada sociedade do conhecimento? A primeira delas sustenta que devem ser mais valorizadas as aprendizagens que o indivíduo realiza por si mesmo sem a transmissão/mediação de outro no processo de aprendizado. Ora, aprender sozinho pode até contribuir para a autonomia do indivíduo, mas não se deve estabelecer uma hierarquia valorativa que considere o aprender sozinho superior ao processo de aprendizagem sob a mediação de alguém. O fenômeno da educação é algo que também pode favorecer a autonomia intelectual e moral por meio da transmissão das formas mais elevadas e desenvolvidas de conhecimento histórica e socialmente existentes. A segunda tese afirma que é mais importante desenvolver um método de aquisição, descoberta, elaboração e construção de conhecimentos, do que aprender conhecimentos já prontos, acabados e elaborados por outros. Ou seja, aprender o método científico é mais importante que aprender o conhecimento científico já estabelecido. A transmissão de conhecimentos existentes deve ser substituída, assim, por condições de aprendizagem nas quais o aluno constrói suas próprias verdades.

A terceira tese considera que a atividade do aluno é verdadeiramente educativa quando impulsionada por seus interesses e necessidades. O aluno deve buscar por si o conhecimento e nesse processo construir

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seu método de aprendizado. Por fim, as pedagogias do aprender a aprender consideram que a educação deve preparar os indivíduos para se adaptarem a uma sociedade em acelerado processo de mudança. O aprender a aprender torna-se uma exigência na disputa por novos postos de trabalho, predispondo o indivíduo a uma constante e infatigável adaptação à sociedade e a seus códigos (lei, contrato, instituição). Portanto, a sociedade do conhecimento, onde triunfa a cibernética, ciência do controle de informações, possui uma concepção de educação cujo objetivo básico é formar nos indivíduos as competências necessárias visando sua melhor adaptação ao sistema. Aos educadores caberia conhecer a realidade sem esboçar críticas a sua estrutura e contradições. Basta saber melhor quais competências a realidade social e o deus onipotente e onipresente do mercado exigem desse animal de trabalho.

Nessa sociedade da informação e da comunicação, denominada de pós-moderna, pós-industrial, a Educação e a própria universidade deveriam se organizar em torno de quatro aprendizagens fundamentais que constituiriam verdadeiros pilares do conhecimento no século XXI: 1º - o aprender a conhecer – adquirir os instrumentos da compreensão; 2º - o aprender a fazer – poder agir sobre o meio envolvente; 3º - o aprender a viver junto – participar e cooperar com os outros em todas as atividades humanas; 4º - o aprender a ser – integra as três precedentes (Délors, 2001, p. 89-90). Esses quatro princípios são apontados pela Unesco como eixos estruturais da educação na sociedade contemporânea. Uma educação que deve visar o ser total do homem, procurando ensiná-lo a ser um indivíduo com pensamentos autônomos e críticos, apto a formular os seus próprios juízos de valor e a se responsabilizar pelos seus atos.

O paradoxal é que, apesar das pedagogias do aprender a aprender serem fundamentadas nos princípios do aprender a conhecer, fazer, conviver e ser, que de certa forma procuram exercitar competências e habilidades que, em tese, conduziriam o indivíduo a um maior grau de autonomia, contudo, no contexto da chamada sociedade do conhecimento tal pedagogia visa antes de tudo adaptar o indivíduo às leis de mercado. Ora, que papel a universidade teria a desempenhar em tal contexto?

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2.2 Uma abordagem crítica do papel da universidade na sociedade do conhecimento

Uma abordagem realista e crítica da chamada sociedade do conhecimento exige o estabelecimento de uma clara distinção entre informação e conhecimento. O conhecimento implica uma gestão criativa da informação, que pressupõe uma percepção das formas de acesso, seleção, articulação e organização das informações. O ato de conhecer é fundamentalmente diverso do ato de informar-se. Somente o ato de conhecer poderia expressar um legítimo fenômeno pedagógico. A pura e simples informação não viabiliza, por si só, qualquer competência reflexiva capaz de transformar a experiência vivida em experiência pensada. Somente o conhecimento pode nos capacitar para o exame da multiplicidade de relações inerentes a cada coisa. O conhecimento, portanto, ao contrário da mera informação, pressupõe a apreensão e concepção de contextos globais em seu caráter multidimensional e nas relações entre o todo e cada uma das partes. Tomando por base essa breve distinção entre conhecimento (aprendizagem significativa) e acúmulo de informações, podemos estabelecer alguns desafios que se colocariam à universidade na chamada sociedade do conhecimento (pós-industrial, pós-moderna). Entre esses desafios podemos destacar: a exigência de criatividade, da aplicação e disseminação da informação, da transferência e adaptação de conhecimentos a novas situações socialmente relevantes, além de incentivar a autonomia individual e a solidariedade.

Nesse sentido, não basta mais que cada qual acumule no começo da vida uma determinada quantidade de conhecimentos de que se possa abastecer indefinidamente. É necessário estar apto a aproveitar e explorar, do começo ao fim da vida, todas as ocasiões de atualizar, aprofundar e enriquecer esses conhecimentos, e de se adaptar a um mundo em mudança. A competência, então, passa a ser a capacidade de saber-mobilizar um conjunto de recursos, conhecimentos, know-how, esquemas de avaliação e de ação, ferramentas e atitudes a fim de

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enfrentar com eficácia situações complexas e inéditas (Cf. perrenoUd, 1999). Contudo, tais considerações deixam sem problematizar os próprios interesses que estão em jogo na sociedade da informação. Muitos educadores e gestores entusiasmados com a possibilidade de democratização do conhecimento na sociedade pós-industrial parecem esquecer que tal sociedade não passa da expressão empresarial dos investimentos racionalmente programados para o mundo globalizado. Nesse sentido, oligopólios ou mega conglomerados passam a ter poderes ilimitados para determinar a informação que pode ser (re)passada à sociedade via universidade, mídia, etc.

Os educadores não se cansam de enfatizar os inúmeros aspectos positivos da sociedade do conhecimento. Entre esses aspectos podemos destacar a possibilidade da formação de um cidadão mais consciente mediante a democratização do conhecimento e do acesso à informação. Porém, educadores e gestores da educação sabem que a universidade na sociedade do conhecimento depara-se com uma tarefa aparentemente paradoxal – ao mesmo tempo em que ela quer ser inovadora e crítica, por causa da própria vocação iconoclasta do conhecimento em seu processo de desenvolvimento, ela se depara com as exigências do mercado por mais especialização e padronização no conhecimento em um mundo cada vez mais esquadrinhado, matrizado e uniformizado pelo cálculo. O homem converte-se, aqui, em material humano que deve render o máximo ou ser descartado como ruído que compromete a otimização da performance do sistema. Nesse contexto, a universidade passa a ter como modelo de funcionamento a empresa, como condição de funcionamento as leis de mercado e como resultado a formação de incompetentes sociais. Contudo, percebem-se algumas tentativas de se formular um novo papel para a universidade na formação daquilo que se considera os três tipos de racionalidades a serem educadas na sociedade pós-industrial, na qual cada vez mais ocorrerá integração entre trabalho, estudo e lazer (Cf. masi, 2000).

O que se constata hoje é que a universidade não pode mais se contentar em preparar mão de obra para o mercado de trabalho, ela

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precisa estar atenta aos três tipos de racionalidades que o homem atual deve ser capaz de usar: a racionalidade cognitivo-instrumental das ciências; a racionalidade moral-prática (direito e ética) e a racionalidade estético-expressiva (artes e literatura). Sabemos que, desde seu início, a Universidade constituiu-se em sede privilegiada da unificação dos saberes produzidos por esses três tipos de racionalidades. As ciências da natureza apropriaram-se da racionalidade cognitivo-instrumental e as humanidades distribuíram-se pelas outras duas racionalidades. Contudo, progressivamente a idéia da unidade do saber foi sendo substituída pela da hegemonia da racionalidade cognitivo-instrumental e, portanto, das ciências da natureza e seu “projeto matemático de natureza” (Heidegger). Essa hegemonia das ciências naturais, ou seja, da razão instrumental, representou a consolidação do paradigma cartesiano-newtoniano e sua visão determinista e mecanicista da natureza. Portanto, a crise que hoje abala esse modelo de explicação, propondo uma nova percepção de uma nova realidade, não pode deixar de repercutir dentro da própria universidade e na forma como é produzido, assimilado, armazenado e distribuído o conhecimento.

O fato é que a universidade atual depara-se com o desafio de promover a transformação de seus processos de investigação, de ensino e de extensão, na tentativa de estabelecer ou resgatar a importância da racionalidade moral-prática e da racionalidade estético-expressiva na formação de um homem integral. Torna-se necessário e urgente que as humanidades e a própria reflexão filosófica sejam incorporadas à formação estritamente técnica de nossas universidades. Isto não implica a marginalização da racionalidade cognitivo-instrumental/técnico-científica das ciências, mas a recusa da posição dominante e dos efeitos nefastos de um tipo de racionalidade que, levada a seus extremos, culminou com o extermínio industrial de pessoas nos campos de concentração nazistas.

Ora, tornou-se lugar comum admitir que a ciência moderna (a Física matemática de Galileu e Newton) se constituiu contra o senso-comum, ao construir modelos matemáticos de uma realidade

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que foi reduzida às relações de cálculos matemáticas. Essa ruptura da ciência com os testemunhos dos sentidos, com o mundo da vida (Lebenswelt) (Husserl), possibilitou um assombroso desenvolvimento técnico-científico, mas retirou do homem sua capacidade de participar na construção de regras práticas para viver sabiamente em um mundo no qual as questões do valor e do sentido da experiência são desprezadas por um pensamento que apenas planifica e calcula. Torna-se necessário refletir sobre essa ruptura entre ciência e mundo da vida, o mundo do sentido. É preciso saber beneficiar-se do mundo desencantado criado pelo pensamento calculador (Ciência), sem renunciar à exigência de romper com esse processo de objetificação avassaladora mediante o estabelecimento de novas formas de experiências não objetificantes que nos aproximem mais de uma vivência originária (Urleben) das próprias coisas. A primeira condição para se iniciar essa mudança em nossa forma de ser e estar no mundo consiste em promover o reconhecimento de outras formas de saber e narrativas soterradas ou marginalizadas pelo discurso demonstrável e controlável da ciência.

O que está claro até o momento é que a sociedade do conhecimento não tem o objetivo de generalizar o conhecimento para todos os indivíduos e países do globo, mas selecionar o conhecimento que pode ou deve ser adquirido pelos indivíduos de países “em desenvolvimento”. Nessa sociedade da informação, a maioria dos cidadãos, sem luta, sem oposição e sem contestação, pode ser incluída, uma vez que se rouba o direito deles pensarem e falarem com significação. Diante desse quadro torna-se urgente a questão da verdadeira missão da educação e da universidade na sociedade do conhecimento, a época do domínio planetário da técnica. O que teriam a nos dizer sobre tal questão pensadores como Edgar Morin e Martin Heidegger?

Em sua obra Educar na era planetária (morin, 2002), Edgar Morin sustenta que a missão da educação na Era planetária seria criar as condições de possibilidade para a emergência de uma sociedade-mundo. Para tanto seria preciso formar cidadãos protagonistas, conscientes

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e criticamente comprometidos com a construção de uma civilização planetária. Na perspectiva de Morin, é plenamente possível e desejável que a universidade realize sua missão de humanizar o homem na era planetária, desde que incorpore o que o autor chamou de eixos estratégico-diretores, que têm a finalidade de organizar a informação e a dispersão dos conhecimentos de nosso meio ambiente para a elaboração de uma mundologia cotidiana. Um princípio estratégico fundamental é compreender e sustentar nossas finalidades terrestres, ou seja, fortalecer as atitudes e as aptidões dos homens para a sobrevivência da espécie humana e para a evolução da hominização (morin, 2002, p. 50).

Nesse sentido, o primeiro eixo-estratégico diretor é o que Morin chama de conservador/revolucionante. Torna-se necessário promover ações conservadoras que fortaleçam a capacidade de sobrevivência da humanidade e ações revolucionárias inscritas na continuação do progresso da hominização. Mediante a ação revolucionante, procura-se criar as condições nas quais a humanidade se aperfeiçoe como tal numa sociedade-mundo. Um segundo eixo estratégico diretor consiste em progredir resistindo à barbárie. Deve-se sempre estar atento contra o retorno persistente dos desdobramentos da barbárie ou qualquer forma de ameaça à dignidade humana. Hoje estamos sujeitos a um tipo de barbárie que surge da aliança da antiga barbárie de violência, ódio e dominação, com as forças modernas tecnoburocráticas. A resistência à barbárie é ao mesmo tempo condição conservadora da sobrevivência da humanidade e condição revolucionante que permite o progresso da hominização (Cf. morin, 2002).

Como terceiro eixo estratégico diretor, Morin propõe a problematização da noção de desenvolvimento e subdesenvolvimento. O século XXI da sociedade da informação exige a problematização do conceito de desenvolvimento. E certamente a educação pode ajudar a superar o reducionismo econômico que enfatiza apenas o crescimento material (econômico) como critério de desenvolvimento. O fato é que a idéia de progresso é multidimensional e ultrapassa os esquemas, não só econômicos, mas também da civilização e da cultura ocidental que

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pretende fixar seu sentido e suas normas (Morin, 2002, p. 68). Um autêntico progresso exige a ampliação das autonomias individuais e o crescimento das participações comunitárias (locais/planetárias). Nessa tentativa de repensar a noção de desenvolvimento veremos que o subdesenvolvimento dos países desenvolvidos cresce precisamente com o desenvolvimento tecnoeconômico dessas mesmas nações. Pode-se falar então, com Morin, de um subdesenvolvimento dos desenvolvidos: um subdesenvolvimento moral, psíquico e intelectual. Há uma miséria que não diminui com o decréscimo da miséria fisiológica e material, mas que se acrescenta com a abundância e o excesso. Por outro lado, a idéia de subdesenvolvimento ignora as eventuais virtudes e riquezas das culturas milenares dos povos chamados subdesenvolvidos (morin, 2002, p. 69-70).

Outro eixo estratégico, apontado por Morin, exige a tarefa de “civilizar a civilização” dando prosseguimento à hominização. O sonho da expansão pessoal de cada um, da supressão de qualquer forma de exploração e dominação, da justa divisão dos bens, da solidariedade efetiva entre todos, da felicidade generalizada levou ao uso de meios bárbaros que arruinaram o processo civilizatório. Doravante, criar condições para a civilização de uma sociedade-mundo implica em reforçar a associação e cooperação geopolítica mediante redes associativas que criem e alimentem uma consciência cívica planetária (Cf. morin, 2002).

Heidegger é menos otimista que Edgar Morrin ao propor as possíveis alternativas que nos restam em um mundo desertificado pelo cálculo, e no qual o homem vagueia como um desterrado na condição de primeira e fundamental matéria prima. O filósofo procura nos mostrar que o pensamento calculador, que impera na era da técnica, prende-se unicamente ao cálculo, à organização e planificação das coisas transformadas em objetos. O pensamento calculador não admite outra coisa que o enumerável. Cada coisa é apenas aquilo que se pode enumerar. Esse tipo de pensamento não é capaz de suspeitar que todo o calculável do cálculo já é num todo, cuja incalculabilidade torna-se manifesta. Heidegger pergunta se o caráter de revelado daquilo que

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é esgota-se na desmonstrabilidade? A insistência da ciência sobre o demonstrável não fecharia o caminho para aquilo que realmente é? Assim, o que estaria em jogo em nossa época seria a possibilidade da superação do caráter técnico-científico como única medida da habitação e da ação do homem no mundo (Cf. Heidegger, 1979b, p. 80).

Como não poderia deixar de ser, a universidade, seja ela pública ou privada, colabora hoje nessa mobilização planetária que cria o mundo uniforme do cálculo, na medida em que se contenta, ainda que de forma deficiente, em preparar uma mão de obra bem treinada e qualificada que satisfaça as exigências desse deus todo-poderoso chamado mercado. Para Heidegger, o que está em jogo em nossa época técnico-científica é a própria possibilidade do des-velamento (alétheia) do Ser na abertura instaurada pela existência finita que é o homem. Assim, o pensamento fundamental seria aquele cujos pensamentos não apenas calculam, mas são determinados pelo outro do ente (que é o nada e o próprio Ser que se comungam para além de todo ente disponível ao cálculo). Em vez de calcular com o ente sobre o ente, este pensamento se dissipa no ser pela verdade do ser (Heidegger, 1979b, p. 50). Mas o fato é que o homem tornou-se Sujeito, e tudo no mundo tornou-se objeto disponível para seus cálculos. Sua vontade é um sujeitar todas as coisas ao seu domínio. A relação do homem com os outros seres é uma relação de dominação. Progresso, aqui, significa uma crescente dominação sobre o mundo natural e humano, mediante o poder provocador da Técnica. A ciência baniu o mistério de toda presença e de todas as distâncias, mas nem por isso nos colocou mais próximos às coisas e de nós mesmos (Heidegger, 1979b, p. 49). Nesse sentido, observa Heidegger, desde o início do Século XX a existência começou a deslizar para um mundo sem profundidade. Todas as coisas escorregam para um mesmo nível, para uma superfície. A dimensão dominante tornou-se a da extensão e do número. Capacidade quer dizer, aqui, o exercício de uma rotina, suscetível de ser aprendida por todos, conforme certo esforço. Já em 1935, Heidegger observava que essa planificação atinge sua intensificação na Rússia e Estados Unidos, onde vigora o equivalente que destrói toda

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hierarquia e todo mundo espiritual. Essa avalanche uniformizadora da técnica manifesta-se na forma de um desvirtuamento do espírito. Decisiva é a transformação do Espírito em Inteligência instrumental, ou seja, numa mera habilidade ou perícia no exame, no cálculo e na avaliação das coisas, com o objetivo de transformá-las, reproduzi-las e distribuí-las em massa (Heidegger, 1969, p. 71-72)

Quando se consuma a desfiguração do Espírito numa Inteligência instrumental, assistimos à disposição das potências do Espírito em regiões (a Arte, a Poesia, o Estado, a Religião, etc.). O mundo do Espírito degrada-se em cultura, onde cada região torna-se um campo específico de saber. A Ciência emerge dessa degradação do mundo do Espírito em Inteligência instrumental, fragmentando-se numa multiplicidade de disciplinas que estão a serviço das profissões (Heidegger, 1969). Assim, o espírito ao degenerar-se nessa inteligência instrumental, que é “ensinada” em nossas universidades, faz com que os rios, montanhas, florestas, mares, o solo, o ar e, particularmente, o homem, sejam convertidos em objetos disponíveis ao projeto de conquista e exploração incondicionada da técnica planetária.

Conclusão

Apesar da revolução epistemológica que vivemos nesse início de milênio, com a emergência de novos paradigmas no campo das ciências, em nossas universidades prevalece ainda a valorização extrema, quase que obsessiva, da eficácia e eficiência no funcionamento dos dispositivos tecnológicos, entre os quais se encontraria a própria universidade. A busca desenfreada por mais eficácia, eficiência e produtividade, exige a prática sistemática da competição com os outros e consigo mesmo. Nesse sentido, a eficácia incondicionada e a competição tornam-se critérios últimos de hierarquização, ordenação e avaliação dos diversos dispositivos tecnológicos, entre eles a universidade e o próprio homem. O mais inquietante é que não está em nossas mãos mudar tal situação. Nossas formas de pensar, falar e agir enquanto

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gestores, professores e alunos podem apenas corresponder e obedecer aos imperativos impostos pelo domínio planetário da técnica. O fato é que a missão tecnocrática assumida pelas universidades atuais, que se contentam em preparar mão de obra para o mercado de trabalho, não é responsabilidade de nenhum sujeito ou instituição determinada, não é fruto de uma decisão arbitrária de algum tecnocrata. Numa perspectiva heideggeriana, a universidade e todas as dimensões da existência humana estão hoje sujeitas à manifestação época do próprio ser no domínio planetário da técnica.

O que seria necessário fazer, dentro das limitações impostas por nossa condição de “funcionários da técnica”, para que a universidade volte a constituir-se em genuíno e autêntico poder espiritual? Como fazer da universidade a mais alta escola do povo apta a formar homens a altura das tarefas e desafios de nosso tempo? A questão da fragmentação da universidade em departamentos, por exemplo, reflexo da inteligência cega (Morin) e do predomínio do discurso da competência, sempre era questionada por Heidegger quando o pensador se interrogava sobre a missão da universidade. Em Que é Metafísica? (Was ist Metaphysik), o filósofo considera que:

[...] os domínios das ciências estão muito distantes entre si. O modo de tratar seus objetos é radicalmente diferente. Essa dispersa multiplicidade de disciplinas se mantém, contudo, unida graças tão somente à organização técnica das universidades e faculdades, e conserva uma significação pela finalidade prática das especialidades. Ao contrário, o enraizamento das ciências em seu fundamento essencial se perdeu por completo (Heidegger, 1979b, p. 2).

Heidegger sugere que a superação do desarraigo e fragmentação das ciências de forma que permita sua maior aproximação com o mundo da vida (Lebenswelt), exige um retorno à filosofia e sua questão guia – a questão do sentido do ser nos limites do tempo. Somente assim seria possível talvez determinar o lugar de inserção de cada ciência em seu fundamento essencial, o que permitiria um diálogo entre as diversas áreas

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do conhecimento baseado na experiência primordial do verdadeiro ser das coisas e no caráter multidimensional do ser humano, enquanto um ser simplesmente aí lançado no mundo. O fato é que a universidade, em seus cursos e pesquisas, nunca chegou a incorporar satisfatoriamente essa vivência originária e pré-reflexiva do mundo da vida, nem a complexidade inerente ao homem. Isso exigiria uma outra forma de experiência do pensar e do falar fora dos cânones estabelecidos pela racionalidade técnico-científica. Infelizmente, a universidade hoje, refém do mercado, está impossibilitada de buscar um equilíbrio no uso do cálculo e da planificação em seus modelos de gestão, em suas pesquisas e nos conteúdos programáticos das diversas disciplinas. O pensamento calculador erige-se como a única maneira de pensar válida, como conseqüência, o conhecimento científico, com seu método experimental/matemático, torna-se o único digno de ser ensinado, em detrimento de outras formas de narrativas e experiências (arte, religião, filosofia, etc.) fundamentais para o processo de humanização do homem.

Diante desse cenário aparentemente estéril e inóspito do mundo uniforme do cálculo, Heidegger nos aconselha a serenidade (Gelassenheit) – uma atitude que nos faz inserir e utilizar de forma conveniente os dispositivos tecnológicos, evitando que sejamos triturados e devastados por eles. Portanto, não devemos nos deixar levar por nenhum ativismo ou qualquer espécie de revolta diante da técnica, sob pena de cair na armadilha do pensamento calculador. Trata-se, para Heidegger, não de salvar o homem ou evitar o apocalipse nuclear, mas de salvar o Ser daquilo que unicamente pode pô-lo em perigo, e que é ele próprio em sua implacável manifestação no reino planetário da Técnica. Nenhuma vontade humana, individual ou coletiva, poderá controlar esse destino do Ser na era da técnica. Então, como preparar novamente o mundo para que o homem possa novamente nele construir sua casa e morar?

A questão é: estaríamos nós, filhos de uma época uniformizada pelo cálculo, aptos a resgatar uma relação mais originária com os outros e com as coisas? Vale a pena vender tão caro nossa liberdade por todo esse aparato de segurança e um certo conforto material, que

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só nos tornam mais indolentes e alienados em relação às nossas mais autênticas necessidades e capacidades? O fato é que no crepúsculo da Era atômica, não é mais uma terra sobre a qual o homem vive. O pior é que a filosofia não pode produzir um efeito imediato, fazendo mudar o estado presente do mundo. Resta-nos preparar, mediante o pensamento e a poesia, uma disponibilidade para a aparição do sagrado ou para sua ausência em nossa decadência. Em último caso, cabe a nós decidir se da noite desse tempo de penúria e indigência surgirá uma nova aurora do pensamento do Ser. Enquanto isso, o “deserto cresce...”. E errando por uma terra devastada e uniformizada pelo cálculo, o homem continua surdo ao canto do poeta – Lá onde brota o perigo nasce também o que salva (CF. Hölderlin, Patmos).

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PÖGGELER, Otto. Le pensée de Heidegger, un cheminement vers l’être. Paris: Aubier, Ed. Montaigne, 1967.

RUELLE, D. Acaso e caos. Tradução de Roberto Leo Ferreira. São Paulo: Ed. Unesp, 1993.

VIETTA, Silvio. Heideggers Kritik am Nationalsozialismus und an der Technik. Tubingen: Niemeyer, 1989.

WAELHENS, Alphonse. La Filosofia de Martin Heidegger. 2. ed. Madrid, 1952.

WAHL, Jean. La pensée de Heidegger et la poésie de Hölderlin. Paris: Centre de Documentation Universitaire, [1952].

Recebido em: 18 de outubro de 2007.Aprovado em: 20 de novembro de 2007.

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ResenHAs

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HEIDEGGER, Martin. Ser e verdade: 1. A questão fundamental da filosofia; 2. Da essência da verdade. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007, 312 p. (Coleção Pensamento Humano).

Rodrigo Ribeiro Alves Neto*

A preparação da edição completa da obra de Martin Heidegger (1889-1976), estimada em mais de cem volumes, foi iniciada em seus últimos anos de vida, mas sua publicação permanece ainda hoje inacabada. Traduzida em velocidade acelerada na França, nos EUA, na Espanha, na Itália e no Japão, a obra heideggeriana, no Brasil, vem sendo vertida para o português em ritmo constante, desde a década de 70. A mais recente contribuição para esse empreendimento reside na tradução da edição intitulada Ser e Verdade, na qual se encontram reunidas duas preleções pronunciadas por Heidegger na Universidade de Freiburg, quais sejam: “A questão fundamental da filosofia” e “Da essência da verdade”.

A primeira preleção, do semestre de verão de 1933, apresenta o obstinado esforço do autor em determinar a filosofia como “Metafísica”, a fim de pensar uma possível unidade essencial no percurso histórico da tradição ocidental de pensamento. Não se trata de uma disciplina ao lado da “Ética” ou da “Lógica” no corpo doutrinário da Filosofia, menos ainda uma ciência, um saber absoluto ou uma visão de mundo. O termo “Metafísica” nomeia o núcleo decisivo de toda a filosofia e o fundamento da história ocidental de pensamento em sua totalidade essencial. Com a Metafísica, não se começou meramente uma nova época ou uma outra etapa da nossa história. Interrogando o real – o mundo, o homem, Deus – sob o ponto de vista da sua verdade, a Metafísica inaugurou a própria história das possibilidades existenciais da humanidade ocidental em todas as suas relações com o ente na totalidade. Desde a Antigüidade Grega,

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano VI n. 10 p. 257-262 2008

* Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Professor substituto no Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ. E-mail: [email protected]

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onde, pela primeira vez, a filosofia se perguntou pela entidade dos entes em geral, a abertura do real na qual o homem se encontra continuamente, instaura-se a partir de uma interpretação do ser pela qual o ente em seu todo se abre na direção de sua verdade. A Metafísica sempre buscou fundar, a partir de uma posição face ao ser, a verdade do ente. Assim, a história da Metafísica não significa a história das múltiplas e desconexas concepções sobre o ser, mas a apropriação que o homem faz do ser e que o ser faz do homem em seus envios históricos. A Metafísica está, de certa maneira, na certidão de nascimento de nossa própria história, pois, segundo Heidegger, nela se instaura a abertura do ente na totalidade assim como uma decisão sobre a sua verdade.

Portanto, a filosofia não consiste em um questionamento que se passa dentro da “cabeça” de alguns eruditos ou nefelibatas, pois nos modos pelos quais o ente é pensado e determinado em função do seu ser, a realidade é desvelada e endereçada aos homens nas “raras, simples e capitais decisões da história”. Heidegger assume o desafio de recuperar o vigor de instauração histórica da filosofia, esmaecido quando ela se torna, inevitavelmente, uma banalidade da existência, ou seja, um suposto conhecimento acabado passível de servir como instrumento de formação e atividades escolásticas. Para tanto, é preciso esclarecer a própria formação histórica do termo “Metafísica”, isto é, o modo como a filosofia grega chega a predominar no Ocidente não a partir do seu princípio originário, mas a partir do fim de seu princípio, com as obras de Platão e Aristóteles, que em Hegel atingiu o seu grandioso e definitivo acabamento. A consumação do grande princípio do pensamento grego é, contudo, um “fim principiativo”, pois se tornou normativa e predominante para os tempos posteriores, sendo transmitida, sobretudo, pelas interpretações do cristianismo que se mantiveram vigentes na modernidade européia (Descartes e Kant) e na metafísica do Idealismo Alemão – sendo especialmente analisado nessa preleção o pensamento lógico-matemático dos grandes sistemas metafísicos do século XVIII (Wolff, Baumgarten).

O propósito de Heidegger é, a partir desse percurso, estabelecer uma discussão com a obra de Hegel, pois nela a Metafísica reúne todas

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as forças essenciais da história do pensamento ocidental. Em Hegel, a Metafísica atingiu seu ponto mais alto e está, a partir dele, completada. Até Hegel, encontra-se a história da plenificação da metafísica e, depois dele, no século XIX, o projeto que visa à sua inversão a partir das obras de Kierkegaard e, sobretudo, Nietzsche. Heidegger pretende esclarecer em que medida a Metafísica entrou, no século XX, no ápice de seu processo de consumação, reivindicando uma reflexão cuja tarefa será reconquistar a tradição em sua essência impensada para o futuro. Não se deve, portanto, interpretar a Metafísica a partir da tradição, mas pensar a “Metafísica” através de uma compreensão originária do que se apresenta como impensado em sua história. Para isso, Heidegger se debruça sobre os grandes textos da tradição, mas para trazer à linguagem aquilo que neles permaneceu esquecido.

Essa preleção é relevante para observarmos o caráter ambíguo do termo “Metafísica” na obra de Heidegger até os anos 30. De Ser e Tempo até a preleção de 1935, intitulada “Introdução à Metafísica”, o autor tentará efetuar uma fundação crítica da Metafísica, ou seja, dar um novo conteúdo à palavra “Metafísica” a partir de uma outra posição face ao ser, redescoberto em seu sentido originário: o tempo. Porém, mais tardiamente, o termo “Metafísica” será definitivamente identificado com a tradição e contraposto aos termos “pensamento”, “pensamento essencial”, “outro pensamento” ou “pensamento do ser”. A Metafísica pensa o ser sob a forma da substancialidade e da subjetividade sem, contudo, interrogar-se pelo ser em vista daquilo que o determina como tal. A Metafísica, desde o começo até sua plenitude, busca somente fundar a verdade do ente em seu desvelamento, mantendo fora de questão o ser ele mesmo e naquilo que lhe é próprio: o velamento. O projeto condutor da Metafísica, onde se movimenta a história do Ocidente, é trazer à enunciação (lógos) o ente em seu ser (ontos), tornando manifesta a sua entidade a partir de sua causa suprema e do seu fundamento mais elevado: Deus (théos). Deste modo, trata-se de uma onto-teo-logia, isto é, da busca pela enunciação lógico-categorial da entidade do ente que, por sua vez, determina-se a partir do seu fundamento transcendente. Com

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o fim da Metafísica, oculta-se um outro começo para o pensamento a partir de um outro horizonte de questionamento do ser em sua diferença referente ao ente. Assim, Heidegger considera que a filosofia se estrutura em torno de uma dinâmica histórica entre o passado e o futuro que insere a época presente no desafio de um fim e no apelo de uma transformação. É por isso que uma discussão com a obra hegeliana nos fornece o senso da nossa atualidade histórica e uma apreensão do núcleo no qual se reúne o todo da história da Metafísica.

A segunda preleção, do semestre de inverno de 1933/1934, repete o texto várias vezes alterado da preleção pronunciada no semestre de inverno de 1931/1932 com o mesmo título. Após uma introdução sobre a questão da essência da verdade, Heidegger divide a preleção em duas partes: a primeira parte consiste em uma interpretação da célebre “Alegoria da caverna”, narrada por Platão no diálogo “República” (Politéia), e a segunda parte apresenta uma reflexão sobre o diálogo Teeteto visando à questão sobre a relação entre verdade e não-verdade bem como entre episteme e dóxa.

A tese heideggeriana concebe que o conceito de verdade da Metafísica só tem olhos para a verdade da essência e nunca para a essência da verdade. Quando pensamos na palavra “verdade”, concebemos imediatamente a forma derivada da verdade do conhecimento e da enunciação. Heidegger, porém, pensa a verdade como desvelamento que, por sua vez, é algo mais originário que a verdade no sentido da veritas. Alétheia é a palavra grega pronunciada na origem do pensamento ocidental e que nos dá o aceno para a essência impensada da verdade. A verdade enquanto veritas se inscreve no empenho por presentificar no pensar e no dizer aquilo que o ente é tal como é. Trata-se de garantir a adequação (adaequatio) entre o pensar e o ente tal como é, mas a “verdade predicativa” é sempre derivada, pois para que o ente possa se revelar na proposição tal como ele é, é preciso, em primeiro lugar, que ele tenha se manifestado naquilo que é em si mesmo e antes de qualquer determinação proposicional. É somente porque o ente já sempre se abriu como presente na livre dimensão do desvelamento que ele se presta à

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determinação predicativa. Só na dimensão prévia desse desvelamento em que o ente se faz presente como tal que é possível instaurar uma referência com ele tal como é. O fenômeno originário da verdade só é possível com base na abertura (Da) do ser (sein) na qual o homem descobre a si mesmo sempre já lançado como ser-no-mundo. Ser verdadeiro é, então, deixar e fazer ver o ente em seu estar aberto, retirando-o do velamento. Assim, a verdade só é possível com base na abertura do ser, e o homem é a estância que o ser carece para sua abertura. O fenômeno originário da verdade pertence à constituição ontológica do homem (Dasein), pois descobrir o ente em seu desvelamento é constitutivo de sua abertura factual em um mundo específico no qual ele está lançado. Por esta via, a verdade é originariamente um destino da finitude do homem e não tem nada a ver com a sobriedade e a indiferença de proposições demonstradas.

Segundo Heidegger, a metafísica platônica expressa o combate fundamental entre essas duas dimensões da verdade (predicativa e manifestativa). E é na “Alegoria da caverna”, com seus quatro estágios de libertação e retorno da caverna, que esse combate se expressa de modo mais agudo e elevado. É só no retorno daquele que se liberta que se mostra efetivamente a situação do homem na caverna subterrânea diante das sombras projetadas ao fundo. Somente ao libertado aparece o modo como tal circunstância não é contingente e, muito menos, imputável ao mero engano, pois ela nasce de um comportamento do homem para com a verdade que, desde “Ser e Tempo”, Heidegger denominou como “decadência” ou “dissimulação”. Trata-se de um modo de encobrimento ou não-verdade. Na caverna, o desvelamento não desaparece, mas desenraiza-se ou deturpa-se, pois se mostra no modo da aparência. Esse encobrimento reside no modo de ser com os outros e na ocupação cotidiana do homem com este ou aquele ente em seu caráter revelado. Nesse processo de libertação, o libertado vê que estar na verdade e ser o lugar (Da) da manifestação do ser (Sein) não significa ser um ente presente-subsistente, mas estar inserido numa dinâmica de apropriação de si mesmo, de ter que vir a ser, a cada vez, o poder-ser que se é, precisando sempre e a cada vez liberar as suas próprias possibilidades existenciais.

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O mais decisivo na leitura dessas preleções é não perder de vista que, nessa tarefa de superação crítica da Metafísica e nessa tensão entre encobrimento e desencobrimento, constitui-se a dinâmica da própria História. A luta entre verdade e não verdade acontece na e como história, reivindicando o espírito de um povo histórico a se decidir pela verdade. Em ambas as preleções, Heidegger está se dirigindo sempre ao povo alemão em sua “missão político-espiritual” de fundação de um novo Estado. De abril de 1933 a abril de 1934, o filósofo esteve no cargo de reitor da Universidade de Freiburg, mas o que está em jogo aqui é muito mais que uma questão biográfica ou o julgamento de um homem. Essas preleções estão eivadas não de um mero “jargão” militante e glorificante passível de depuração, mas sim de uma complexa, instigante e perigosa imbricação entre filosofia, política e história: uma questão sempre “digna de ser pensada”, para usar uma expressão heideggeriana. Ainda que sem identificação com o racismo e a ideologia de extrema-direita que impregnará o nazismo a partir de 1934, a sanha revolucionária do movimento nacional-socialista promoveu em Heidegger, porque não dizer, uma embriaguez política e filosófica, que o levou a dizer na época: “Queremos tornar a filosofia realidade”, exigindo que o filósofo “domine o seu tempo”, engajando-se na tarefa de intervir e, ao seu modo, “colaborar na história”. Heidegger acreditou que a compreensão da essência da verdade assumiria o papel de fundamento do acontecimento político, fazendo a política ser conduzida pela filosofia. O autor parece se posicionar politicamente em nome da filosofia e, justamente por isso, serão sempre dignas de reflexão as implicações filosóficas do seu engajamento. Não é aceitável a posterior auto-justificação de inexperiência política que o teria levado a, como diz Safranski, “sonhar politicamente” e se desiludir. Seria preciso confessar ter sonhado também filosoficamente, admitindo não somente os problemas e os equívocos implicados em seu diagnóstico histórico-metafísico da situação, mas também em sua concepção sobre a relação entre filosofia, política e história.

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Nos ventos da ambigüidade: Heidegger leitor de Nietzsche

HEIDEGGER, Martin. Nietzsche II. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. 2v.

Pedro Duarte de Andrade*

Martin Heidegger manteve-se, por toda sua vida, exposto àquilo que Sócrates, na origem da filosofia, chamava de vento do pensamento. Teve a força de se preservar flexível como aquelas árvores que, situadas no litoral, sofrem as investidas imprevisíveis do clima, com ventanias vindas de alto-mar que puxam seu tronco e seus galhos em direções as mais estranhas. Maleável como elas, mas também firme como elas, Heidegger fincou as raízes de seu pensar no solo do século que viveu com a mesma intensidade que filosofou. É certo que, para ele, as duas coisas eram uma só.

Testemunho cabal disso é sua longa e infatigável confrontação com Nietzsche. E, sorte nossa, o esforço com maior fôlego de tal confrontação tornou-se acessível, em 2007, ao leitor brasileiro no seu idioma natal, graças à tradução para o português do professor Marco Antônio Casanova dos dois volumes que compõem o famoso Nietzsche, de Heidegger. Nos últimos anos da década de 1930, Heidegger dedicou-se, com afinco, à leitura de Nietzsche, que foi objeto de suas preleções universitárias, cujo conteúdo ocupa a maior parte desses volumes, embora haja neles também ensaios dos primeiros anos da década de 1940. Foi em 1961, contudo, que Heidegger reuniu e organizou o material tal como o encontramos hoje.

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano VI n. 10 p. 263-269 2008

* Doutorando em Filosofia na PUC-Rio. Professor da Pós-Graduação Lato Sensu (Especialização) em Arte e Filosofia, na mesma universidade. E-mail: [email protected]

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De lá para cá, muita polêmica envolveu esses escritos. Embora, em geral, seja reconhecido certo pioneirismo no peso filosófico que Heidegger reconheceu em Nietzsche, acusou-se ele, não raro, de fazê-lo sob o preço de sua “heideggerianização”. Em outras vezes, reclamou-se, no mesmo tom, da excessiva unificação, por Heidegger, de temas nietzschianos que foram expostos normalmente em aforismos ou faziam parte de material póstumo. No célebre texto “A metafísica de Nietzsche”1, por exemplo, são articulados os cinco elementos que, para Heidegger, eram centrais na filosofia nietzschiana: vontade de poder, niilismo, eterno retorno, além-do-homem e justiça (sendo este último o mais surpreendente).

São reclamações curiosas, pois protestar que quando um pensador lê outro não se mantém fiel a ele é como protestar que um filme adaptado de um livro não permaneceu preso à sua letra. Ninguém, para interpretar um autor ou para adaptar uma obra sua, rasga sequer uma folha do original. Em outras palavras: quem quiser ler Nietzsche tal e qual ele é, se é que alguém que lê Nietzsche acha mesmo que tal coisa existe, basta ir na livraria mais próxima e lê-lo. Ele continua lá. Restaria ainda, de todo jeito, perguntar se, caso Nietzsche saia da leitura de Heidegger um pouco “heideggeriano”, se Heidegger, por sua vez, não sai um pouco nietzschiano.

Ler o Nietzsche de Heidegger supõe o interesse tanto por um quanto por outro. Heidegger sabe disso. Por isso, afirma que sua leitura de Nietzsche obedece, ainda, à mesma tentativa que, em 1927, caracterizava sua primeira grande obra, Ser e Tempo. Mais do que isso, importa que Heidegger está convicto, de modo geral, que “todo pensador ultrapassa o limite interno de cada pensador”2. É isso que nos permite entender o fundamento do esclarecimento que lemos adiante.

Trabalhamos de maneira entrelaçada apresentação e interpretação, de modo que não fica claro por toda parte imediatamente aquilo que é deduzido das palavras de Nietzsche e aquilo que é acrescentado a elas. A única coisa necessária a toda interpretação

1 Heidegger, Martin. A metafísica de Nietzsche. In: ______. Nietsche II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.2 Heidegger, op. cit., p. 374.

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não é certamente deduzir a coisa mesma. Ao contrário, sem insistir nisso, toda interpretação também precisa poder contribuir discretamente com algo próprio a partir de sua questão. Essa contribuição é aquilo que, medido a partir do que o leigo toma sem interpretação pelo conteúdo do texto, é necessariamente censurado como um imiscuir-se no interpretado e como um ato arbitrário.3

Heidegger não pretende manter Nietzsche intacto. Nietzsche não possui a fixidez necessária para que fique intacto. Heidegger o questiona em nome daquilo que ele diz. Não seria isso que o próprio Nietzsche desejaria, como encarnação do princípio da vontade de poder na seara da interpretação? Parece bastante contraditório imaginar que Nietzsche quisesse leitores fiéis, que mais se assemelhariam ao que ele chamava de “rebanho” do que àqueles que ele nomeava como “espíritos livres”.

Essas questões de fidelidade perdem ainda mais importância quando compreendemos o propósito de Heidegger ao ler Nietzsche. Pois não se trata de curiosidade histórica ou de exploração erudita na filosofia. Muito antes, ler Nietzsche é, para Heidegger, a questão mais urgente. Pois, para ele, é nas palavras dos pensadores que vem à luz a doação histórica do próprio ser, ou seja, o envio da essência da história em sua temporalização, sendo que, neste caso, trata-se de nossa humanidade ocidental. Nas palavras de Nietzsche, portanto, o que lemos não são apenas vocábulos recheados de filosofia ou de anti-filosofia, mas a decisão histórica em que nossa época está lançada.

Nesta medida, a despeito de seus protestos, Nietzsche pertence, para Heidegger, à história da metafísica, entendida como nome para a própria história ocidental em seu acontecimento mais essencial. Na determinação do ente, ou seja, de tudo aquilo que é, enquanto vontade de poder, Nietzsche teria aberto a época histórica em que vivemos. Ele levou adiante a definição moderna do ser como vontade até seu cume, liberando esta vontade de qualquer referência ulterior. Ela só quer poder. Enquanto tal, ela não quer mais nada que não seja, em última instância, ela mesma.

3 Heidegger, op. cit., p. 199.

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Metas, valores ou idéias comparecem nesta maquinação da vontade apenas como pretextos para que, a cada vez, ela possa garantir seu próprio eterno retorno, pois, a rigor, a vontade não quer coisa alguma – ela quer querer. Tudo serve apenas à ampliação de poder – não deste ou daquele homem ou nação, mas da própria vontade. Tanto assim que até o homem, diante disso, pode ser concebido como “capital humano” ou “material humano”, já que mesmo ele está a serviço do caráter incondicionado da vontade.

Foi isso que Heidegger chamou de “era da ausência de sentido consumada”. Pois a vontade de poder determina os entes de tal modo que dispensa, por sua própria essência, todo questionamento acerca do sentido do ser por parte do homem. Na medida em que só quer poder, a vontade proveria a “medida para a decisão quanto ao fato de só o eficaz dever ser considerado como ente”.4 Em outras palavras, aquilo que não é eficaz, mais do que não ter importância ou dignidade, simplesmente não é. Buscar, por exemplo, o sentido ou a verdade do ser não é exatamente eficaz, logo deve ser deixado de fora.

Pensar o ser, a entidade do ente, enquanto vontade de poder significa: conceber o ser como a liberação do poder em sua essência, de tal modo que o poder, vigorando incondicionalmente, estabelece o ente como o objetivamente efetivo no primado exclusivo contra o ser e faz com que o ser caia em esquecimento”.5

Na dobra da vontade sobre si mesma enquanto vontade de poder, ela instala o império das meras coisas, ou seja, dos entes, fora de toda menção à pergunta sobre o seu ser. “Na objetivação, o próprio homem e tudo o que é humano se transformam em mero fundo de reserva que, computado psicologicamente, é inserido no processo de trabalho da vontade de vontade”.6 De agora em diante, somente o objetivamente eficiente deve valer.

4 Heidegger, op. cit., p. 288.5 Heidegger, op. cit., p. 3.6 Heidegger, op. cit., p. 296.

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Daí a marcha da organização incondicionada daquilo que é o “efetivamente real” encobrir não exatamente o ser mas, antes mesmo disso, a própria possibilidade da pergunta por ele. De antemão, já está decidido: só é o que é eficaz. Não estranha que, nesse cenário, palavras como liberdade ou justiça, verdade ou coragem, tenham se tornado inteiramente vazias na nossa época. É que o seu sentido não pode ser, digamos, “preenchido” por nenhuma efetividade tecnicamente real ou realizada. Sem o entrave da pergunta pelo sentido de ser, então, pode a maquinação planetária dar vazão à sua sanha desenfreada com os entes.

Faria parte dessa sanha da vontade, por exemplo, o ideal nazista da “mobilização total”, expressão de Ernst Jünger que Heidegger menciona no Nietzsche II. Para aqueles que insistem em criticar Heidegger por conta de seu envolvimento com o movimento nacional-socialista e seu posterior silêncio a este respeito, encontra-se aqui algo bem mais importante: a interpretação filosófica daquilo que estava em jogo em tal movimento. Em jogo estava, aliás, o próprio movimento, a mobilização total, incessante e incondicionada, tal como determinada pela vontade de poder. Nesta maquinaria sem limites, tem lugar a pretensão de domínio incondicionado da Terra.

A era da consumação da metafísica – considerada a partir do acompanhamento pensante dos traços fundamentais da metafísica de Nietzsche – nos dá a pensar até que ponto nos encontramos inicialmente na história do ser e até que ponto precisamos experimentar antes disso a história como largar o ser em meio à maquinação, um largar que é enviado pelo próprio ser.7

Há, portanto, forte ambigüidade, pois é a história do ser que nos entrega o ser largado em meio à maquinação, o que significa que não adianta imaginarmos um desvio desta maquinação em prol de um questionamento mais radical do ser. Pelo contrário. Somente através da experiência profunda do que é essencialmente esta maquinação típica do 7 Heidegger, op. cit., p. 193.

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mundo da técnica, podemos questionar propriamente o ser, pois este é o envio histórico pelo qual ele chega até nós hoje. Por isso, o pensamento de Nietzsche é tão crucial. Nele, podemos fazer a experiência de um tal recebimento daquilo que somos em nossa época, tanto no que ela coloca obviamente diante de nós quanto no que fica escondido em meio a isso.

Se o óbvio é o ente, cuja maquinação instala-se enquanto vontade de poder, isto, ao mesmo tempo, encobre o ser, de onde o pensamento recebe seu vigor. Na metafísica da vontade de poder, apenas é radicalizada, para Heidegger, a tendência metafísica fundamental de esquecimento do ser. Este esquecimento, contudo, não apenas esconde o ser. Ele é também a sua preservação, a sua salvaguarda. Por isso, a história da metafísica é, ambiguamente, o esquecer que guarda, o encobrir que protege. Ela traz em seu bojo o insondável que, no entanto, reverbera a cada vez: o ser.

Por isso, Heidegger considerou o passado essencial como liberação. Pois ele não passou. Ele pode ser, antes, um início. E o início, enquanto tal, só é o que é no próprio iniciar. Por meio disso, o passado essencial “ultrapassa tudo o que chega depois dele e é assim por vir”.8 Não por acaso, o último dos textos do Nietzsche chama-se “Lembrança da metafísica”. É que ela “é a história do ser como o curso contínuo a partir do início, um curso que deixa o retorno a outrora se tornar uma urgência e a lembrança do início se tornar uma necessidade extremamente urgente”.9 Isso vale para toda a história da metafísica, inclusive para Nietzsche, já que, a rigor, ela toda “permanece afastada do início de maneira igualmente essencial em seu começo tanto quanto em seu fim”.10

Em cada coisa que pensa, Heidegger pensa o ser. E o ser, para ele, é ambíguo, é vazio e riqueza11, é “promessa de si mesmo”. Por isso, o pensamento de Heidegger, segundo ele mesmo indica12, precisa ser ambíguo, evitando demonizações e elogios, pessimismos e otimismos,

8 Heidegger, op. cit., p. 2.9 Heidegger, op. cit., p. 375.10 Heidegger, op. cit., p. 377.11 Dentre os momentos mais preciosos do Nietzsche II, de Heidegger, está o último capítulo da parte intitulada “O niilismo europeu”, que se chama “O ser como o vazio e como a riqueza”. 12 Heidegger, op. cit., p. 191.

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atingindo uma região aquém dessas clivagens: a região da ambigüidade. É isso que explica suas idas e vindas ao interpretar Nietzsche enquanto aquele que nos lança para a decisão de nossa época. Elas são apenas a coragem que teve Heidegger de se deixar levar pelo vento do pensamento. Nietzsche é a consumação da metafísica neste sentido ambíguo, pelo qual a revela na sua forma mais nítida e radical, mas assim também a leva até o seu limite extremo, como possível preparação de um outro início.

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Periódicos permutados

Ágora – Estudos em Teoria Psicanalítica (Instituto de Psicologia – UFRJ)Aletheia – Revista de Psicologia da ULBRA (ULBRA – Canoas-RS)Análise & Síntese (Faculdade São Bento – Salvador-BA)Análogos (PUC-RJ)BIOETHIKOS (Centro Universitário São Camilo – São Paulo-SP)BOLEMA – Boletim de Educação Matemática (UNESP – Rio Claro-SP)Caderno Catarinense de Ensino de Física (UFSC – Florianópolis-SC)Cadernos de Educação (Universidade Federal de Pelotas-RS)Caderno de Pedagogia (Centro Univ. Moura Lacerda – Ribeirão Preto-SP)Cadernos de Pesquisa (Fundação Carlos Chagas – São Paulo-SP)Cadernos PET – Filosofia (UFPR – Curitiba-PR)Ciência e Agrotecnologia (Universidade Federal de Lavras – MG)Ciência & Educação (UNESP – Bauru-SP)Comunicação & Educação (CCA-ECA-USP – São Paulo-SP)Comunicações (Unimep – Piracicaba-SP)Contexto & Educação (UNIJUÍ – Ijuí-RS)Dialogia (Centro Universitário Nove de Julho - UNINOVE – São Paulo-SP) Diálogo Educacional (PUC-PR – Curitiba-PR)EccoS – Revista Científica (UNINOVE – São Paulo-SP) Educação (PUC-RS – Porto Alegre-RS)Educação e Cidadania (UniRitter – Porto Alegre-RS)Educação e Filosofia (Universidade Federal de Uberlândia-MG)Educação & Linguagem (IMS – São Bernardo do Campo-SP)Educação e Pesquisa (Faculdade de Educação/USP – São Paulo-SP)Educação em Revista (UFMG – Belo Horizonte-MG)Educação em Questão (UFRN/CCSA – Natal-RN)Educar em Revista (UFPR – Curitiba –PR)Educere - Revista da Educação da UNIPAR (Umuarama-PR)Estudos de Psicologia (PUC-Campinas-SP)Estudos em Avaliação Educacional (Fundação Carlos Chagas – São Paulo-SP)Ethica – Cadernos Acadêmicos (UGF-RJ)Hispeci & Lema (Fafibe – Bebedouro-SP)Ícone Educação (Unitri – Uberlândia-MG)Ideação (Unioeste – Cascavel-PR)Leopoldianum - Revista de Estudos e Comunicações (Unisantos – Santos-SP)Linguagem, Educação e Sociedade (UFPI – Teresina-PI)

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Linhas Críticas (UnB – Brasília-DF)Paidéa – Cadernos de Psicologia e Educação (USP – São Paulo-SP)Pesquisas e Práticas Psicossociais (UFSJ – São João del-Rei-MG)Práxis Educativa (Universidade Estadual de Ponta Grossa-PR)Proposições (Unicamp – Campinas-SP)Psicologia em Revista (PUC-Belo Horizonte - MG)PsicoUSF (Universidade São Francisco – São Paulo-SP)Psicologia em Revista (PUC-Minas – Belo Horizonte-MG)Quaestio - Revista de Estudos da Educação (UNISO - Sorocaba-SP)Revista Brasileira de História da Educação (FE/USP – São Paulo-SP)Revista Brasileira de Pós-Graduação – RBPG (CAPES – Brasília-DF)Revista Contrapontos (UNIVALI – Itajaí-SC)Revista da SPAGESP (Ribeirão Preto-SP)Revista de Educação (PUC-Campinas-SP)Revista de Educação Pública (UFMT – Cuiabá-MT)Trabalho, Educação e Saúde (FIOCRUZ – Rio de Janeiro-RJ)Signos (Centro Universitário Univates – Lajeado-RS)Zetetiké (Unicamp - Campinas-SP)

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Normas para publicação de trabalhos

O APRENDER é uma publicação que pretende divulgar trabalhos sobre o processo educacional em suas variáveis filosóficas e psicológicas ou contribuições de outras áreas do saber pedagógico a elas relacionadas.

O periódico define alguns enfoques temáticos para melhor orientar o conteúdo dos trabalhos candidatos à publicação.

Filosofia da Educação:A aprendizagem como problema filosófico: como e em que condições • se dá a transmissão, construção ou apropriação do conhecimento.A Filosofia e a instituição escolar.• Abordagem teórica das diferentes escolas pedagógicas.• Diferentes conceitos e concepções de educação.• Educação e Filosofia: as correntes filosóficas e sua relação com a • idéia de formação e os processos educacionais.Ética e Educação: a ética como fundamento para a formação e • a aprendizagem, a ética profissional do educador, entre outras abordagens.Teorias da Pesquisa em Educação.• Educação e Política: o caráter formador e transformador da educação • em seus aspectos político e filosófico.O papel da Filosofia nas transformações da educação • contemporânea.Novas tendências e tecnologias de ensino: aspectos filosóficos.•

Psicologia da Educação:A aprendizagem como problema psicológico: como e em que • condições se dão a transmissão, construção ou apropriação do conhecimento.Aspectos psicológicos voltados para o estudo do campo das • necessidades educativas especiais: dificuldades de aprendizagem, educação especial, preparo e formação de professores, entre outros pontos de vista. As escolas psicológicas e sua relação com os processos • educacionais. Novas tendências e tecnologias de ens ino: aspectos • psicopedagógicos.

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Psicanálise e Educação.• Psicologia Escolar/Educacional: trabalho docente, processo ensino-• aprendizagem, aquisição da leitura e da escrita, interação professor-aluno, cultura escolar, atuação do psicólogo na escola, entre outros pontos.Psicologia do Desenvolvimento e Educação: aspectos psicomotores, • afetivos, cognitivos, lingüísticos, sociais, culturais e familiares.Relações humanas na escola.• Sociedade e Educação: fatores psicossociais e de formação do • sujeito.Trabalho e Educação.•

Obs.: Somente serão aceitos trabalhos que se enquadram em um ou mais dos enfoques temáticos citados.

Envio dos TrabalhosSão recebidos para publicação artigos, ensaios, debates, resenhas,

traduções, entrevistas, relatos de caso, etc. Os textos enviados para análise devem ser escritos em português, espanhol, inglês ou francês.

Os trabalhos candidatos à publicação devem ser enviados por e-mail, com o texto anexo, para os seguintes endereços eletrônicos: [email protected] e [email protected]. Os trabalhos devem indicar os seguintes dados de identificação:

Título, resumo e palavras-chave no idioma do texto. • Nome completo do(a)(s) autor(a)(es).• Maior titulação (com indicação da área de conhecimento e nome • da instituição).Instituição de origem e função que está exercendo.• Endereço eletrônico e telefone.•

Formato dos Trabalhos1. Os trabalhos devem ser digitados em Word for Windows e apresentados

segundo as especificações a seguir: Artigos – até 20 páginas, incluídas as referências bibliográficas; Resenhas – de três a cinco páginas; Entrevistas e debates – de cinco a dez páginas; Traduções – até 20 páginas.

2. A configuração do texto deve observar as seguintes especificações: papel tamanho A4 (21 X 29,7), margens superior, inferior e laterais de 2

centímetros, espaçamento 1,5 entre as linhas e alinhamento justificado.

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3. O título do trabalho deve vir em fonte Times New Roman, tamanho 12, negrito e caixa alta, centralizado no alto da página inicial.

4. Dois espaços abaixo do título do trabalho, deve vir o nome do(s) autor(es) em fonte Times New Roman, tamanho 12, em itálico, alinhado à direita da página, seguido de asterisco, e, em nota de rodapé, deve-se indicar a maior titulação (com a área de conhecimento e a instituição na qual foi obtida), a instituição a que o(s) autor(es) se encontra(m) vinculado(s) e endereço eletrônico.

5. Para artigo, dois espaços abaixo da indicação do(s) autor(es), deve vir o resumo, no idioma da redação, acompanhado das palavras-chave (máximo de cinco). O título, o resumo e as palavras-chave precisam ser traduzidos para o inglês (Abstract e Key Words) ou francês (Résumé e Mots-clés).

6. O resumo (bem como o respectivo Abstract ou Résumé) deve ter no mínimo 40 palavras e no máximo 100 palavras e ser redigido em um só parágrafo.

7. Subtítulos devem vir em fonte Times New Roman, tamanho 12, em negrito, somente com as primeiras letras maiúsculas e alinhados à esquerda da página (não devem ser numerados).

8. As citações e referências bibliográficas devem seguir as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

9. Figuras e fotos, se houver, devem vir no corpo do texto, no local desejado pelo autor, em preto e branco.

10. Gráficos, se houver, devem ser apresentados no final do trabalho, em preto e branco, de maneira legível e com indicações e/ou legendas por extenso.

Avaliação dos trabalhosOs trabalhos candidatos à publicação são avaliados quanto a sua

qualidade e originalidade, por especialistas do assunto abordado. A escolha dos pareceristas é feita, preferencialmente, entre os membros que compõem o Conselho Editorial da revista.

RevisãoOs trabalhos aceitos para publicação serão submetidos à revisão de

linguagem. O APRENDER reserva-se o direito de realizar alterações sugeridas pela revisão que não impliquem alterações no conteúdo. Os casos especiais serão comunicados ao(s) autor(es), para sua avaliação.

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Direitos autoraisO APRENDER detém os direitos autorais dos trabalhos publicados,

que não poderão ser reproduzidos sem autorização expressa dos editores.

ResponsabilidadeO conteúdo expresso nos textos publicados é de responsabilidade

exclusiva de seus autores.

Exemplares do autorCada autor terá direito a três exemplares do número de publicação do

seu texto.

Aquisição de exemplaresCatálogo on line: www.uesb.br/editora • E-mails: [email protected] e [email protected]

PermutasAceitam-se permutas com periódicos nacionais e estrangeiros,

preferencialmente nas áreas de Educação, Filosofia e Psicologia.Os contatos para esse fim podem ser feitos por meio dos endereços

eletrônicos: [email protected] e [email protected].

APRendeR - cAdeRno de FilosoFiA e PsicologiA dA educAção

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb)Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH)Departamento de Ciências Humanas e Letras (DCHL)

Estrada do Bem-Querer, km 445083-900 - Vitória da Conquista – Bahia

Site: www.uesb.br/editora/publicacoes/aprender

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EQUIPE TÉCNICA

cooRdenAção editoRiAl e noRmAlizAção técnicA

Jacinto Braz David Filho

cAPA (arte gráfica)Luiz Evandro de Souza RibeiroDRT - 2535

A foto da capa é de autoria de François Fédier, a quem agradecemos a gentil cessão para a sua reprodução.Ela retrata Heidegger junto aos participantes do seminário realizado em Le Thor, em 8 de setembro de 1968. A fotografia foi inicialmente publicada no livro de François Fédier, Soixante-deux photographies de Martin Heidegger. Paris: Gallimard, 1999 (fotografia n. 50).

editoRAção eletRônicA e AcomPAnHAmento gRáFico

Ana Cristina Novais MenezesDRT - 1613

ReVisão de linguAgem (textos em PoRtuguês)Leonardo Maia Bastos Machado (Editor responsável)- Apresentação- Heidegger e a arte de questionar- Heidegger educador- Kant entre o ficcionalismo de Vaihinger e a fenomenologia de Heidegger- Freud se encaixaria no rol dos operários (Handwerker) das ciências naturais? Considerações heideggerianas acerca da psicanálise freudiana- Sobre a serenidade em Heidegger: uma reflexão sobre os caminhos do pensamento- A apreensão fenomenológica da vida fáctica de Heidegger- Sobre o sentido de educarResenhas- Ser e Verdade - Nos ventos da ambigüidade: Heidegger leitor de Nietzsche mARiA dAlVA RosA silVA (revisora - edições Uesb)- Heidegger e a Educação- A determinação ontológica do Mundo: um perfeito a priori- A Universidade na era da técnica - tarefas e desafios

Na tipologia Garamond 11/15/papel offset 90g/m²Em agosto de 2008.

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