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CADERNO DE EDUCAÇÃO – n. 37 e 38 - 2006 Publicação Bimensal do Centro de Comunicação da FaE/CBH/Uemg Caderno de Educação – Rua Pernambuco, 47 – sala 24 – Belo Horizonte CEP: 30.30-50 – Telefax: (3) 3274-3332 – e-mail: [email protected] Expediente Conselho Editorial Prof. José Raimundo de Araújo Profa. Maria Odília de Simoni Profa. Santuza Abras Prof. Tomaz de Andrade Nogueira Profa. Vanda T. Medeiros de Barros Faculdade de Educação/CBH/Uemg Diretora Profa. Santuza Abras Vice-Diretora Profa. Dolores Maria Borges Amorim Coordenadora de Curso Profa. Maria Odília De Simoni Centro de Comunicação Coordenador Prof. Tomaz de Andrade Nogueira Secretária Yolanda Guilherme Estagiária Érica Brandão Universidade do Estado de Minas Gerais – Uemg Reitora Profa. Janete Gomes Barreto Paiva Vice-Reitor Prof. Dijon Moraes Júnior Chefe de Gabinete Ivan Arruda de Oliveira Pró- Reitora de Ensino Profa. Marília Sidney de Mendonça Pró- Reitora de Gestão, Administração e Finanças Maria Celeste Cardoso Pires Pró Reitora de Pesquisa e Extensão Profa. Neide Wood de Almeida Diretora Geral do Campus BH Profa. Maria Helena Valadares

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CADERNO DE EDUCAÇÃO – n. 37 e 38 - 2006

Publicação Bimensal do Centro de Comunicação da FaE/CBH/UemgCaderno de Educação – Rua Pernambuco, 47 – sala �24 – Belo Horizonte

CEP: 30.�30-�50 – Telefax: (3�) 3274-3332 – e-mail: [email protected]

Expediente

Conselho Editorial

Prof. José Raimundo de AraújoProfa. Maria Odília de Simoni

Profa. Santuza AbrasProf. Tomaz de Andrade Nogueira Profa. Vanda T. Medeiros de Barros

Faculdade de Educação/CBH/UemgDiretora

Profa. Santuza AbrasVice-Diretora

Profa. Dolores Maria Borges AmorimCoordenadora de Curso

Profa. Maria Odília De Simoni

Centro de ComunicaçãoCoordenador

Prof. Tomaz de Andrade NogueiraSecretária

Yolanda GuilhermeEstagiária

Érica Brandão

Universidade do Estado de Minas Gerais – UemgReitora

Profa. Janete Gomes Barreto PaivaVice-Reitor

Prof. Dijon Moraes JúniorChefe de Gabinete

Ivan Arruda de OliveiraPró- Reitora de Ensino

Profa. Marília Sidney de MendonçaPró- Reitora de Gestão, Administração e Finanças

Maria Celeste Cardoso PiresPró Reitora de Pesquisa e Extensão

Profa. Neide Wood de AlmeidaDiretora Geral do Campus BH

Profa. Maria Helena Valadares

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Caderno de Educação – v. 1, n. 1 (nov/95)Belo Horizonte: Faculdade de Educação/Campus BH/UEMG, �995

v. : il.; 2� x �5,2 cmBimensalISSN: �5�9-7395

�-Educação – Brasil – periódicos 2- Educação – América Latina –Periódicos. I – Faculdade de Educação/CBH/UEMG

CDD - 370

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Índice

Apresentação ................................................................................................... 5

IX CONCURSO DE CONTOS .............................................................. 6

Um grande escritor ................................................................................................7

José dos Reis Santos

O casamento de Carmélia .............................................................................. �3

Maria de Freitas Chagas

Sanatório Santana ............................................................................................ 2�

Mauro Ferreira

(Re) Conheça-te ................................................................................................ 25

Consuelo Ramos de Melo

Nas garras dela ................................................................................................. 30

Bruno Thadeu Duarte Silvino

Sô Corcunda ...................................................................................................... 33

Zamalxe Scutasu

Zé Muié .............................................................................................................. 39

Sebastião Paulo Santos

Um macabro presente de Natal ................................................................... 43

Lídia Noronha Pereira

O Circo chegou ................................................................................................. 46

Adirson Teles

O Passeio do Rei .............................................................................................. 49

Júlio César dos Santos

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X CONCURSO DE CONTOS ............................................................. 52

A Dinastia Amaldiçoada dos Veiga ............................................................ 53

Fábio Santos Bispo

A morte da Pitomba ....................................................................................... 60

Cristina Coutinho Tavares

O menino do sinal ............................................................................................ 76

Adirson Teles

Arco do triunfo ................................................................................................. 8�

Joana de Holanda e Gurjão

A parição ............................................................................................................ 83

Alexandre Flores Alkimin

Apocalipse não .................................................................................................. 87

Consuelo Ramos de Melo

Mais uma noite ................................................................................................. 92

Bruno Loureiro Mahé

A Abóbada Verde ............................................................................................. 98

Ciro Monteiro Silva Luz

16 e 52 ................................................................................................................ �02

André Carazza dos Santos

O sabor da mentira ......................................................................................... �05

Elizângela Fernandes Barbosa

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um mundo tão conturbado como o que estamos vivendo, podemos considerar um oásis encontrar textos que nos remetem a longas viagens e a lugares nos quais nunca pisamos e, quiçá, nunca pisaremos.

Apresentar esse número especial do Caderno de Educação, dedicado aos dez primeiros contos colocados no IX e X Concursos de Contos da Faculdade de Educação, continua sendo para mim motivo de júbilo e orgulho. Em cada edição do Concurso, os estilos literários diversificam-se e os temas, como num caleidoscópio, dançam pelo mundo das idéias, bulindo com o imaginário dos leitores atentos e ávidos por sair um pouco da rotina que engessa.

A Direção da Faculdade de Educação, com responsabilidade social e, até, com uma pontinha de orgulho, apóia, incondicionalmente o Centro de Comunicação da FAE/CBH UEMG na difusão do texto literário, gota de orvalho que desliza, nos dias muitas vezes estressantes do cotidiano de uma Faculdade. Nosso agradecimento às Comissões Jul-gadoras do IX e X Concursos de Contos da Faculdade de Educação - Campus BH - da Universidade do Estado de Minas Gerais, e ao designer Fernando Lima que, desde o primeiro evento, nos prestigia, generosamente, criando a arte do cartaz que anuncia o concurso e convida os autores a se inscreverem.

Agradecemos, igualmente à Ytur, que sempre colabora com um pacote de viagem para o primeiro colocado. Ao Coordenador do Centro de Comunicação, Prof. Tomaz de Andrade Nogueira, pelo incansável trabalho, e às funcionárias Yolanda Guilherme e Érica Brandão os cumprimentos e agradecimentos da Direção da FAE. Nossos aplausos de pé a todos os participantes que emprestaram ao IX e X Concursos de Contos um pouco do brilho de suas idéias.

Não me cabe nesse pequeno intróito listar as maravilhas que compõem este Ca-derno Especial. Cabe-me, sim, convidar o leitor para uma viagem ao mundo maravilhoso das letras e das idéias.

Professora Santuza Abras - Membro da Comissão Julgadora do

IX e X Concurso de Contos Diretora da FAE/CBH/UEMG

Apresentação

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IX CONCURSO DE CONTOS

C o m i s s ã o J u l g a d o r a

Gláucia Jorge Chíncaro

Jack Siqueira

Marília Sidney

Santuza Abras

Tomaz de Andrade Nogueira - Presidente

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1ºLUGAR

José dos Reis Santos Curso de Letras de Passos

S

Um grande escritor

e há uma coisa nesta vida que gosto de fazer é ler. Ah, uma leitura me apetece. Já li todos os grandes autores nacionais. É, sou um apaixonado pela leitura. Para mim, leitura é sinônimo de cultura. Alguém já disse que quem lê, viaja. E eu concordo; concordo e emendo: quem lê, viaja sem pagar passagem nem sair de casa. Quem lê conhece mun-dos desconhecidos, lugares exóticos, criaturas fantásticas; fatos inimagináveis e pessoas diferentes – simpáticas ou não.

Era assim que Alípio de Souza Lima começava sua preleção em qualquer lugar onde conseguisse reunir acima de duas pessoas. O homem não tinha lá muita modéstia, mas até que escrevia bem. Entretanto, nunca publicou nada. E não foi por falta de querer, mas por falta de uma grande editora que quisesse publicar sua obra.

Pode-se dizer que ele era, sem dúvida, uma pessoa ilustrada. Começou a trabalhar cedo: aos �2 anos. Era farmacêutico - profissão herdada do pai e na qual já estava há mais de �7 anos. Por incrível que pareça, gostava de ler bulas de remédios. E foi assim que começou sua paixão pela leitura. Das bulas, Alípio passou para os jornais e revistas de assuntos gerais e, finalmente, para os romances, livros de poesia e obras não-ficcionais.

Com a leitura, veio a cultura; com a cultura, o respeito da população; e, com o respeito veio a população inteira atrás dele. As pessoas consultavam-lhe para tudo: desde informação para a cura de unha encravada até orientação sexual para o gato de estimação. De tanto ler, Alípio acabou tomando gosto pela escrita e começou a rabiscar uns contos, uns poemas e até alguns romnces. Já tinha três livros prontos e outros iniciados.

Certo dia, numa roda de amigos que comemorava a vida – sobretudo a vida de quem inventou a cerveja -, João Lisboa, dono do bar Sinukão, onde acontecia a farra, atacou:

- É, Alípio, você diz que é escritor, mas nunca vi nada que você escreveu...- Talvez ainda não tenha visto nada publicado com meu nome encimado, mas não

vai demorar muito para que isso aconteça. – dizia ele, enfatizando bem as palavras, para completar em seguida: - Logo, logo, deve pipocar no mercado minha primeira obra. E, pode ter certeza, atrás dessa virão outras, muitas outras.

- Conversa fiada. Você não tem nenhum livro escrito... – provocava Jordano, um rapaz forte, bem apessoado, que vivia no Sinukão disputando partidas de sinuca, olhando as mulheres e jogando conversa fora.

Alípio retrucava:- Claro que tenho. Só pra não matá-los de curiosidade, vou adiantar alguns frag-

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mentos de meus futuros livros.- Isso é papo furado. Você já prometeu isso antes, Alípio. – criticava Gonçalo, seu

parceiro de sinuca.- Pois bem, amanhã vou mostrar a vocês alguns dos meus escritos.No dia seguinte, por volta de nove da manhã, lá estavam os amigos reunidos na

farmácia do Alípio. De posse da papelada, ele sai do cômodo dos fundos e, mal cumpri-menta os amigos, já coloca os calhamaços sobre o balcão:

- Aproveitem, seus falantes, porque além de mostrar parte das minhas obras, ainda vou revelar o segredo dos grandes escritores.

E dizia o homem:- Uma grande obra surge do nada, vai ganhando corpo e de repente vira best seller.

Querem ver como é? Posso mostrar usando fragmentos de meus futuros livros, quiçá algumas obras-primas da literatura mundial – gabava-se ele, alertando em seguida: - Observem a sutileza de uma grande verve.

E lia seus escritos:“Cabisbaixas, as pessoas subiam a rua de terra batida. O triste cortejo rumava para o

cemitério, onde parentes e amigos dariam o último adeus ao falecido. O dia parecia fazer coro com a tristeza das pessoas: o céu pardacento, o sol encoberto e o calor sufocante. O choro já não era ouvido, apenas alguns suspiros aqui ou ali. Mesmo os familiares do morto pareciam guardar os últimos gritos para o momento da despedida. O que se ouvia era o barulho dos passos no chão batido e, raramente, um cochicho...”.

Com ar de pessoa-que-sabe-das-coisas, Alípio observava:- Viram como é? Comparem com algumas obras dos chamados grandes escritores.

Vejam se lembra ou não lembra alguma obra de autor de renome nacional ou mesmo internacional. Antes que façam isso, vai aqui outra mostra de minha própria lavra...

“Deusdária não fora acostumada com essas delicadezas. Esse negócio de pegar na mão, fazer um carinho no rosto, alisar o cabelo, tocar a nuca não era coisa que apren-dera na vida. Também pudera, ela sempre vivera socada na roça, trabalhando de sol a sol, para ajudar o pai. Fora criada como homem e por isso não aprendera essas coisinhas de menina-moça da cidade, de moça namoradeira. Agora, aos 25 anos, não sabia o que fazer com os gestos do namorado. Aliás, nem sabia como um moço fino como o Candinho fora se apaixonar por ela, uma xucra, uma rude que não sabia ler nem escrever.

Cada gesto de Candinho fazia o corpo da moça estremecer, seus pêlos arrepiarem e sua boca tremer. Será que isso também acontecia com outras moças? Será que, ao deixar Candinho fazer esses afagos, ela não estaria cometendo um grave pecado? Essas idéias atormentavam a moça dia-a-dia...”.

E o homem continuava a exibir sua veia literária:- Para não dizer que só escrevo sobre coisas do campo ou do interior, posso mostrar

a vocês um trecho de uma obra minha que pode ser considerada um romance urbano. Leiam e confiram se não tenho razão:

“Debruçado na janela de sua casa, no bairro Morro Alto, Dininho passava horas a olhar os prédios da Praça da Matriz, cujas vidraças reluziam ao longe. Sentia-se um selvagem olhando a civilização. Ficava imaginando que em cada apartamento residiam

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pessoas bonitas, bem vestidas, alegres, ricas... Imaginava salas amplas com móveis novos; cozinhas que tinham do bom e do melhor; quartos bem arejados com cortinas limpas; festa a cada final de semana; enfim, um mundo bem diferente do seu.

Onde morava, Dininho só via coisas que gostaria de não ver; ouvia discussões que era melhor nem ouvir; sentia-se agredido pela própria miséria dos moradores... Quanta diferença daquele mundo civilizado que existia nos edifícios da cidade! Era a sujeira ante a limpeza, a pobreza ante a riqueza, a ignorância ante a cultura.

Sempre que olhava para os prédios, Dininho lembrava-se da menina de cabelos compridos que, numa véspera de Natal, sorriu para ele e disse: “Você tem olhos tão lin-dos”. Em sua cabecinha de criança, Dininho imaginava a menina morando num daqueles apartamentos. E era por isso que olhava para aqueles prédios não com inveja, mas com amor...”.

Enquanto os amigos ouviam compenetrados, Alípio dava aulas:- Ah, pelo jeito vocês estão sentindo a falta de diálogos. Decerto que uma obra com

diálogos facilita muito a leitura e demonstra a qualidade do escritor. É, porque frases bem construídas, idéias bem trabalhadas e diálogos bem amarrados revelam a qualidade do escritor. Pois então, confiram e digam-me depois o que acham disso:

“Admirado, o menino olha a serra. Não cansa de olhar, de observar, de maravilhar-se com aquela paisagem. De repente, vira-se para o pai e indaga:

- Pai, o que tem atrás daquela serra?- Tem outra serra, uai. – diz secamente o velho.- Mas, só tem uma ou tem mais de uma? – insiste o menino.- Tem mais de uma. – resume o pai, continuando a caminhar com a enxada no

ombro.- Então, quantas serras existem atrás daquela grandona ali? – volta a insistir o fi-

lho.- Tem mais sete serras. – diz o velho, repetindo o que ouvira de seu pai há muitos

anos.- E depois tem o quê?- Depois? Depois é o mar...- Pai, o que é o mar?Sem saber como explicar, e já cansado de tantas perguntas, o pai muda de assun-

to:- Você não está com fome? Não quer parar pra comer alguma coisa? Sua mãe colocou

no embornal algumas coisinhas pra gente comer no caminho”.E, diante de uma platéia estupefata, Alípio arrematava:- Como vocês vêem, também domino essa técnica. O importante é observar tudo,

estar atento a tudo. Assim, vocês sabem o que pode dar uma boa cena para um livro. Desde sempre fiz isso. Sempre olho as coisas com olho de escritor. E de poeta também.

E ao lembrar-se de poesia, Alípio vangloriava-se:- Por falar em poeta, vocês acham que domino só prosa? Pois estão enganados.

Também escrevo poesia. Dêem uma olhada e me digam se tenho ou não pendor para as letras. Vou usar um dos temas que acabo de expor em prosa...

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“Seu olhar vaga pela cidadeAté encontrar os altos prédiosDe reluzentes vidraças,De imensa beleza.E assim, de olhar fixo,Passa horas a sonharCom um mundo diferente,Com uma vida diversa,Com o amor de uma meninaQue um dia o cativou.

Os olhos, ah, os olhos!É com os olhos cheiosQue olha os altos prédios:Cheios de esperança,Cheios de sonhos,Cheios de amor.E sonha com outra vidaLonge de tudoQue lhe faça lembrarDe sua mísera condição.

Ao terminar a leitura da poesia, Alípio foi surpreendido com uma salva de palmas dos três amigos. Eles ficaram admirados com o potencial do colega. Este, por sua vez, não deixou por menos e, cheio de empáfia, declarou:

- Vocês viram que realmente tenho queda para a prosa e a poesia, não é? Pois, fiquem sabendo que isso é só uma amostra do que posso fazer. Tem mais, muito mais seus filhos de São Tomé...

Embalado pelo incentivo dos amigos, Alípio decidiu encaminhar, de uma só vez, os originais dos três livros que havia concluído para a maior editora do país. Depois disso, a conversa no bar Sinukão já era outra:

- Esse homem é um grande escritor. É ou não é, gente? – gritava Gonçalo e os de-mais respondiam em coro que sim; e cantavam o “bom companheiro”; e davam vivas ao novo escritor, enfim, inflavam o ego do amigo. Alípio não cabia em si de contentamento e acabava pagando mais cerveja aos colegas.

Cheio de si, o farmacêutico decidiu fechar questão e só publicar suas obras na maior editora do país.

- Se for outra não serve. Tem que ser a Brasil Literário – afirmava ele e os outros aplaudiam. E assim prosseguiam as tardes no Sinukão: partidas de sinuca e churrasquinho regado a muita cerveja. Tudo por conta do “grande escritor”. Mas, Alípio já começava a desconfiar de tanta amabilidade dos amigos.

Algum tempo depois, o farmacêutico recebe um telegrama da Brasil Literário e quase cai de costas ao ler o texto: “INTERESSAMOS PUBLICAR OBRAS PT AGUARDA-MOS CONTATO URGENTE PT”. Mostrou aos amigos e foi aplaudido de forma ainda

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mais calorosa; quase carregado nos braços. Transcorridos alguns dias, Alípio recebe um telefonema:

- Senhor Alípio de Souza Lima?- Sim, perfeitamente.- Aqui é da Editora Brasil Literário. Suas obras foram escolhidas para publicação em

breve. Precisamos de alguns dados pessoais do senhor, pode ser?- Sim, claro.E passou os dados, mas estava desconfiado com tamanho interesse. Achava muito

estranho o fato de a maior editora do país enviar telegrama e até telefonar para um zé-ninguém do interior para publicar suas obras. E três de uma só vez.

Entre desconfiado e orgulhoso, Alípio saiu para o encontro com os amigos no Sinukão. A voz melodiosa da secretária que telefonara da editora ainda ecoava em sua mente: “A nossa editora tem interesse em publicar suas obras, senhor Alípio”. Naquele momento, predominava nele o sentimento de orgulho. Queria chegar no Sinukão e contar aos amigos sobre o telefonema.

Ao se aproximar do bar de João Lisboa, ouviu a conversa dos três amigos. Parecia que estavam falando sobre ele. Parou do lado de fora para ouvir a conversa. Neste exato momento, João Lisboa dizia aos outros:

- Vocês viram que peça pregamos nele? Jordano respondeu: - Pois é. Isso é bom pra ele não ficar achando que é o melhor, que é o bom...

Ele se acha o tal. Gonçalo retrucava: - É, mas acho que exageramos na dose... - Que nada! Ele merece uma lição – revidava Jordano. Alípio sofreu um baque. Hesitou um instante, mas decidiu entrar no Sinukão

para encarar aqueles que se diziam seus amigos, mas falavam dele pelas costas. Ao entrar no estabelecimento, os três amigos o saudaram calorosamente, chamando-o de “grande escritor” e outros adjetivos. Com esforço, ele controlou a raiva.

O farmacêutico não chegou a sentar-se à mesa com o grupo. Apenas pediu uma caixa de fósforos a João Lisboa, pagou, despediu-se dos colegas e já se preparava para sair, quando o comerciante o interpelou:

- Ora, mas por que essa pressa, Alípio?- É que tenho uma coisa urgente pra fazer. Hoje, não posso ficar... Vocês me dão

licença?- O que é isso, amigo? Que bicho te mordeu? – indagou Gonçalo.- Nada não. É que tenho um assunto urgente pra tratar.Jordano também insistiu:- Ah, fica aí pra gente jogar algumas partidas de sinuca. Hoje, eu estou doidinho pra

colocar umas cinco quedas nas costas de vocês...Alípio retrucou:- Infelizmente não vai dar... O assunto é urgente mesmo. Fica pra outra vez.João Lisboa concordou:

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- Bem, se é assim, fica pra outra vez.Gonçalo brincou:- Ih, sei não, mas acho que aí tem rabo-de-saia.Alípio apenas sorriu, bateu no ombro do amigo e acenou para os outros dois. Saiu

a passos apressados. Foi direto para casa, remoendo a conversa dos três amigos. “Então, o tal telegrama e o telefonema eram obra deles, hein? Que safardanas! Que amigos da onça!”, pensava ele cheio de ressentimentos.

Em casa, pegou os originais de suas obras completas e incompletas e amontoou no quintal; despejou álcool e ateou fogo. Para completar, foi à agência dos Correios e enviou resposta ao telegrama. Rompeu a amizade com os amigos, mas não revelou o motivo. Jamais daria esse gostinho a eles. “O telegrama vai clarear tudo”, pensava.

Em poucos dias, Alípio mudava-se para outra cidade. Vendeu a farmácia e investiu o dinheiro em casas de aluguel. Como não tinha família, passou a viver como um ermitão, pouco saindo de sua morada. Não soube que os amigos haviam pregado uma peça em Zelito, filho do prefeito, que se achava o melhor jogador de sinuca da região, quiçá do Estado ou do país.

Como Alípio era muito amigo de Zelito, os três fizeram a coisa na calada. Convidaram um campeão de sinuca para algumas partidas com o rapaz. O fato ocorrera no dia em que Alípio ouviu a conversa dos três amigos, acreditando que falavam dele.

Pensando que jogava com um principiante, o filho do prefeito perdeu até o rumo de casa. E, como só jogava apostado, também perdeu muito dinheiro, o que o machu-cou ainda mais. Assim, eles se vingaram de Zelito pelas inúmeras vezes que serviram de “patinho” nas mesas do Sinukão.

Na sede da Brasil Literário, a secretária não entendia o estranho texto daquele te-legrama assinado pelo senhor Alípio de Souza Lima. “AGRADEÇO VG MAS NÃO CAIO NESSA ESPARRELA DE VOCÊS PT”.

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2ºLUGAR

aria Gertrudes nasceu miudinha e miudinha ficou a vida toda. Morena puri, olhos redondos, negros e brilhantes, cabelos encaracolados, mais meiga do que bonita, Maria Gertrudes tinha um porte gracioso que agradava a todos. O nome não lhe ficava bem, achavam os vizinhos. Era muito forte para uma menininha tão franzina, por isso optaram em lhe chamar apenas de Trudinha, apelido que também adotou, só lembrando do nome quando precisava lidar com seus documentos.

Morava com a mãe, dona Bilica, uma senhora arredondada,de cabelos crespos e grisalhos, de pouca conversa, bem rigorosa nos seus costumes. Do pai, ninguém falava. De parentes, somente a tia Julieta e a prima Nair.

Recatada e obediente, não fazia nada que a mãe não aprovasse. Não brincou na rua como a maioria das crianças do lugar, explicando, timidamente, que não gostava. Evidentemente, estava escondendo as esquisitices da mãe. Esse modo de vida, retraído de todos, fez com que aprendesse muitas prendas domésticas: sabia cozinhar, lavar, passar, alguns pontos de bordado e de costura ... Dona Bilica, autêntica representante dos costumes de sua época, preocupava-se muito em preparar sua filha para ser uma “perfeita dona de casa”, pois via no casamento a única opção de vida para as mulheres. Repetia sempre o mesmo mote:

– O fim de toda a moça é casar!– Bilica, você já procurou saber se Trudinha quer se casar? – perguntavam as

vizinhas enxeridas.– Saber nunca é demais! – respondia dona Bilica dando um muxoxo, balançando

os ombros e saindo de “fininho”.Moça assim, tão prendada e recatada, logo, despertou a cobiça de Rosalino. Homem

bem apessoado, cabelos cuidadosamente penteados com o auxílio do óleo “Glostora”, às vezes, escondidos pelo chapéu de panamá, terno de linho branco dentro dos “trinques”, sapatos de duas cores, conversa melodiosa... Rosalino encarnava um verdadeiro sedutor já nas beiradas da década de trinta, do século passado.

Trudinha, quando soube do interesse de Rosalino, enamorou-se dele perdidamen-te... Dona Bilica não gostou muito do futuro genro mas, depois dos pedidos do namoro e do noivado, foi, logo, providenciando a cerimônia do casamento. Separou um quarto, o melhor da casa, para o aconchego do futuro casal.

Pouco tempo durou o casamento. Trudinha era uma boa dona de casa, mas não

Maria de Freitas Chagas FAE/CBH/Uemg

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O casamento de Carmélia

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sabia corresponder às expectativas do marido acostumado aos prazeres afoitos e sensuais da carne. Aos poucos, Rosalino foi se afastando de Trudinha até que se enrabichou com Helenita, uma morena jambo, de olhos verdes gateados, cabelos ruivos, formas redondas e insinuantes que, com o seu requebrado, parecia estar sempre oferecendo seus dotes fogosos a quem se interessasse. Num final de tarde, Rosalino arrumou sua trouxa e saiu de casa, deixando Trudinha só com as lembranças e uma filhinha nos braços para criar: Carmélia.

– Eu bem que não fazia gosto neste casamento! Mas, o que se há de fazer! Homem é assim mesmo! – dizia dona Bilica, apiedando-se da filha, enquanto lhe recomendava ficar resignada como deveriam ficar as mulheres daquela época, quando passavam pela mesma situação.

– Eu também passei por isso e não morri! – continuava a falar, abrindo seu coração e revelando um segredo guardado, por tanto tempo, que ainda lhe corroía a alma, na esperança de que isso ajudasse a consolar a filha. – Ainda bem que o safado me deixou esta casinha, senão estaria muito pior! – suspirava aliviada, colocando um ponto final nas suas lembranças para nunca mais falar do marido...

Carmélia crescia redondinha e viçosa. Trudinha não lhe deixava faltar carinho e a enchia de mimos, na medida do possível, pois o parco sustento da casa era garantido pelos serviços domésticos que ela prestava nas “casas de família” e pelas lavagens de roupa de dona Bilica.

Seguindo o exemplo da mãe, Trudinha, também, criava Carmélia com muito cuidado e recato, não baixando a guarda da menina sequer por um momento: levava-a à missa, à escola, aos passeios... só permitia que ela brincasse, às suas vistas, apenas com meninas e as que aprovava... Parecia que Carmélia não se incomodava com essa situação, pois não reclamava de nada, estava sempre bem humorada, alegre, correndo por toda parte, subindo e descendo das árvores do quintal... Também, era dona de uma sonora e inigualável gargalhada que marcava a sua presença em todo lugar que estivesse.

A vida continuou andando e Trudinha foi perdendo, pelo caminho, seus encantos e sonhos de mulher... ainda mais que, naquela época, mulher largada de marido era mais vigiada do que moça donzela! Se vestisse um vestido sem mangas, estampado de cores vivas; era muito assanhada. Se vestisse um vestido sóbrio, de gola alta e mangas compridas: – Credo!!! Você está parecendo viúva de marido vivo! Se saísse de casa para passear, era regateira à procura de um novo marido; se não saísse: – Você ainda não morreu, Trudinha! Quer ser enterrada viva?

Diante de tal situação, Trudinha foi ficando triste e não tardaram a aparecer as macacoas resultantes daquela vida vazia e rotineira: um dia, era dor de cabeça; no outro, era dor e pontada no peito; no outro, eram manchas arroxeadas maculando o seu corpo miúdo... O coração de mãe, pressentindo que alguma coisa poderia acontecer, sentia as macacoas intensificando-se cada vez mais, principalmente quando olhava para Carmélia, agora, já uma menina-moça, nos seus treze anos... seus ares pueris já não mais combinavam com seu corpo tomando formas arredondadas, seus seios fartos para a idade, suas pernas começando a se tornear... seguramente, indicavam os albores de uma mulher.

– Meus Deus! Se eu morrer, o que vai ser de minha família? – matutava, Trudinha, cheia de angústia, imaginando Carmélia e dona Bilica sozinhas no mundo...

Perdida nessa imensidão de incertezas, enquanto remoía dolorosamente seus pen-

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samentos, Trudinha foi refletindo, procurando soluções possíveis e impossíveis, até que chegou à seguinte conclusão, sussurrando-a baixinho:

– O melhor é arrumar um bom marido para Carmélia!E pensa daqui, pensa de lá, cresceu os olhos para cima de Alaor, um carroceiro

que morava na rua de baixo. Diziam todos os vizinhos que ele cuidou da mãe até que ela “fechasse os olhos”. “Bom filho, geralmente, dá bom marido!” – exclamava Trudinha, reforçando a sua escolha. Além disso, o moço já era bem maduro, estava na casa dos trinta, idade que até regulava com a sua.

Só faltava planejar a forma de aproximar o futuro casal!Trudinha e dona Bilica trocaram idéias sobre o plano; buscaram informações sobre

Alaor para que a aproximação acontecesse de forma bem natural. Inicialmente, fizeram amizade com o moço e o convidaram para “tomar um café”, num sábado à tarde. Fize-ram broa de fubá e biscoito de polvilho. Aprontaram Carmélia com o seu vestido mais bonito, pentearam-lhe os cabelos fazendo duas trancinhas que se encontravam no alto de sua cabeça, e, para completar, lhe disseram que, naquele dia, ela não poderia brincar de pegador, na rua. Durante o “café”, falaram sobre muitas coisas, especialmente dos dotes de Carmélia: uma menina pura, obediente, que nunca tinha namorado... Alaor, meio matuto, jeito desconfiado e matreiro, observava, atenciosamente, a menina: seu corpo aspirante de mulher, ainda sem muito trato; jeito arisco, um pouco sem modos para a idade... coisas que não o impediram de interessar-se por ela. Carmélia, inocente da vida, não sabendo dos planos da mãe e da avó, considerou Alaor uma visita muito “chata” que a atrapalhou brincar de pegador, na rua.

Alaor voltou outros dias; poucas vezes conversou com Carmélia que, desconfiada, não lhe dava trela; dona Bilica e Trudinha é que lhe faziam sala.

Dia vai, dia vem, Alaor pediu, a Trudinha, a mão de Carmélia em casamento. Trudinha e dona Bilica ficaram radiantes. Prepararam o enxoval, com modéstia mas com muito bom gosto; bordaram as letras “C” e “A” em todas as peças.Mostraram-no para Carmélia que olhou tudo aquilo sem dar muita importância. Para ela, no seu mundo de ingenuidade e imaginação, pareciam peças feitas para brincar.

Às vésperas da cerimônia, Trudinha chamou duas mulheres “bem casadas” – dona Lica e dona Evangelina – para arrumarem a casa dos noivos, pois, segundo costume ou mes-mo superstição da época, esse procedimento trazia bons fluidos para o futuro casal.

Dia do casamento. Cerimônia linda! Carmélia entrou na igreja pelos braços de Dezinho, marido da irmã mais velha de Alaor. Da grinalda, enfeitando seus cabelos cuida-dosamente penteados, pendia um véu que acompanhava a pequena cauda de seu vestido de noiva, de uma seda branca perolada. Na mão, levava um buquê de lírios e copos-de-leite, colhidos no jardim da casa de dona Glorinha. Após a cerimônia, foram servidos, na casa da mãe da noiva, quitutes, biscoitos e doces de várias espécies. Trudinha não cabia em si de contente, parecendo até que era ela que se casava ou, então, realizava esse sonho através de Carmélia.

Já passava da meia-noite, quando a festa acabou. Feitas as arrumações, Carmélia tirou o seu vestido, sua grinalda, e preparou-se para dormir. Foi quando Trudinha falou para a filha:

– Carmélia, você vai para a sua casa; lá, a cama já está pronta para você dormir

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com seu marido.– Eu, mãe, dormir com homem?! – A senhora nunca me deixou brincar com meni-

no-homem e, agora, quer que eu durma com homem?! – Eu não!!! – respondeu a menina muito espantada.

Trudinha e dona Bilica arregalaram os olhos. Só, aí, perceberam que Carmélia não sabia nada sobre as intimidades da vida de um casal. Até se culparam por não terem conversado com ela essas particularidades. Conversaram com Alaor explicando-lhe a situação, pedindo-lhe um pouco de paciência até que preparassem a menina. Ele não gostou de ter que esperar a “preparação” da mulher, embora envaidecesse com a pureza dela. Marcou, então, para buscá-la, no dia seguinte.

Durante uma boa parte dessa noite, Trudinha e dona Bilica conversaram com Car-mélia explicando-lhe, por alto, como uma esposa deveria proceder com seu marido. A cada um detalhe, a menina, muito espantada, exclamava, com os olhos arregalados e com as mãos, em concha, apertando a boca:

– Mãe, que vergonha! – A senhora tam-bém fez isso, vó? – Ah! É, então, por isso que vocês não me deixavam brincar com menino-homem?...

Finda a conversa, Carmélia deitou-se no canto da cama da mãe, como de costume, e cus-tou a dormir. Com todas aquelas informações, tecia as mais diferentes situações, imaginando como seria a sua nova vida de casada...

Pelos modos da menina, quando Alaor veio buscá-la, não se sabia se ela estava com medo, com vergonha ou arrependimento, mas o fato é que segurou nas mãos da mãe e da avó, escor-rendo duas lágrimas de seus olhos. Nessa hora, o coração de Trudinha partiu-se em cacos que se colaram rapidamente pois, a seu ver, escolhera o melhor para a filha.

A vida de casada trouxe, para Carmélia, novidades e decepções: levantava-se cedinho, acendia o fogão de lenha que custava a pegar, preparava a marmita do marido e, depois

de despachá-lo para o trabalho, começava a fazer as tarefas de casa. À noitinha, enquanto o marido tirava água da cisterna e enchia os tambores, ela, chorosa e cansada, tinha de preparar-lhe o banho e o jantar além de alimentar o burro e limpar a carroça. Para ela, essa rotina era um suplício! Como não fora preparada para ser “uma perfeita dona de casa”, como acontecera com sua mãe, muitas coisas davam errado: deixava a comida queimar; ao lavar as roupas, esquecia de esfregá-las e de pô-las para quarar; o sujo, então, não saía; isso quando não as manchava ou as rasgava ao retirá-las do varal. Não sabia lavar as vasilhas direito e, quando precisava arear as panelas de ferro, suas mãos, que já estavam cheias de calos de tanto esfregar o piso entijolado da casa e de varrer o terreiro, doíam, rachavam e até minava sangue... À tristeza que tomou conta do seu coração, somava-se o desejo de rir, brincar, correr... que lhe foi arrebatado, de forma tão dissimulada, tornando sua vida, que era ainda de menina, vazia e sem objetivo. As

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intimidades do casal, também, não eram bem sucedidas; Carmélia aceitava, indiferente, as carícias rudes e sinceras do marido, retribuindo-as como uma fêmea no cio, seguindo apenas os impulsos do instinto.

Não demorou muito para Alaor demonstrar impaciência com a mulher, deixando-a cada vez mais triste e infeliz. Resolveu, então, visitar a sogra e fazer as reclamações.

Trudinha e dona Bilica foram visitar a menina para mais uma sessão de conselhos; também, chamaram-lhe atenção.

– Foi sem querer, vó! – Foi sem querer, mãe! – resmungava Carmélia, contrariada e impaciente.

E os dias continuaram a rolar, Carmélia tentava se enquadrar no mundo das mulhe-res casadas, mas isso lhe era muito penoso. Para aliviar-lhe a dor, todos os dias, na parte da tarde, feitas as tarefas domésticas, ficava sentada, no portão de sua casa, observando, com os olhos cheios de lágrimas e de desejo, as crianças brincando na rua. Roda daqui, roda de lá... um dia, criou coragem e pediu às crianças que a deixassem participar das brincadeiras. Eram meninos e meninas, um bando...

Pelo jeito que olharam umas para as outras, as crianças acharam aquele pedido meio esquisito, pois nunca tinham visto mulheres casadas brincando na rua. Pareceu, até, que consentiram mais por curiosidade do que por camaradagem. Carmélia, por sua vez, sentiu-se tão satisfeita e livre que pensava sem medos:

– Se eu já sou uma mulher casada e durmo com homem, que mal fará se eu brincar com menino-homem? – Também, mamãe e vovó não estão aqui para me vigiar...

Tecendo um diálogo íntimo, respondeu a si mesma todas as suas dúvidas, e consen-tiu-se brincar, ainda mais, que já era uma mulher casada e achava que poderia ser dona de seu nariz.

Em poucos minutos, Carmélia ressuscitou a sua alma de menina, deixando-a extravasar no meio daquela criançada. Corriam pra lá, corriam pra cá: era pegador de esconder e de agachar, era barra-manteiga, quatro-cantos... Aos risos das crianças, soma-va-se o retumbar de suas sonoras gargalhadas... Estava tão feliz que não percebeu que o dia começava a escurecer... De repente, uma mão forte agarrou-lhe o braço, dando-lhe um safanão:

– Já pra casa, Carmélia! Você é uma mulher casada. Tomara eu ver isso de novo! – grunhiu Alaor, como se fosse dono da vida da mulher.

Carmélia engoliu em seco, abaixou os olhos lacrimejantes e, cheia de vergonha, correu para dentro de casa. Nesta noite, foram desfeitos mais alguns laços daquele casamento...

No dia seguinte, Carmélia foi consolar-se com a mãe esperando que ela, enquanto mulher, a entendesse e lhe desse apoio. Mas isso não aconteceu...

– Carmélia, Alaor está coberto de razão. Ele é seu marido e você tem mais é que obedecê-lo! – falou, rispidamente, Trudinha, demonstrando um autoritarismo sem igual, próprio daquela época.

Outra decepção! A menina voltou para casa, escondendo as lágrimas que escor-riam em sua face que, para ela, significavam a perda de mais uma de suas últimas alegrias de viver.

Os dias continuaram a passar monótonos e sombrios... Um dia pensou:

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– Alaor não me deixa brincar na rua... mas, também, não me proibiu de olhar as crianças brincarem... Uai! Então, isso quer dizer que ele não vai brigar comigo se eu der umas espiadinhas...

Se assim pensou, melhor fez! Nas tardes em que as crianças brincavam na rua, bastava ouvir as suas vozes, para que ela saísse correndo rumo àquele portão que lhe era tão familiar, e, assentada no degrau que dava acesso à rua, começava a sonhar que estava se realizando brincando no meio delas. Fez disso um ritual costumeiro!

Numa dessas tardes, ao olhar as crianças brincando, seus pensamentos perderam-se em lembranças e os olhos, sem muito comando, perambulavam-se pelo infinito, quando vislumbrou, apontando na esquina da rua, uma figura máscula, cor da pele semelhante à sua, andar elegante... Continuou a olhar para aquele homem que, ao passar diante dela, lançou-lhe um olhar cheio de ternura e de curiosidade. Seu coração disparou, emoções diferentes tomaram conta de seu corpo: era a primeira vez que olhava para um homem com desejos de mulher! Levantou-se, olhou para ele, deu um sorriso malicioso, que foi correspondido. A partir daquele encontro de olhares e de sorrisos, a vida modificou-se para Carmélia: esperava, ansiosamente, por aquele homem, todas as tardes. Não demo-rou muito para que ela soubesse muitas coisas de seu amado: chamava-se Sebastião, era viúvo e não tinha filhos; era ferroviário da Central do Brasil e já tinha uma casinha, toda montadinha, lá pras bandas da Vila Maria Brasilina... Sebastião, por sua vez, não precisou se esforçar muito para conhecer a vida de Carmélia, e a cada dia, mais enamorado, fazia planos para entrelaçar, definitivamente, sua vida com a dela.

Dia aqui, dia acolá... Sebastião convidou Carmélia para conhecer aquele que seria o seu novo lar. Foi numa segunda-feira, bem no começo da tarde. Ficava numa rua de terra, esburacada, num lote todo morrado que abrigava, em sua pequena parte aplai-nada, uma moradia muito simpática e aconchegante, enchendo de admiração os olhos pouco exigentes de Carmélia – tinha três cômodos: quarto, sala e cozinha; tudo muito arrumadinho, nos seus devidos lugares. No terreiro dos fundos, bastante acanhado, ao lado de uma cisterna, ficava um pequeno canteiro com alguns pés de couve, cebolinha e uma latada de chuchu. O resto Carmélia nem observou, tamanha era a sua ansiedade.

Nesse dia, Carmélia e Sebastião trocaram as primeiras carícias, rápidas e cheias de culpas. Trocaram juras de amor. Traçaram planos.

Na noite que antecedeu o que foi planejado, Carmélia proporcionou a Alaor uma noite cheia de amor... Mal o dia amanheceu, levantou-se cantando e sorrindo, como há muito não fazia; fez, carinhosamente, a marmita do marido, despedindo-se dele com uma abraço e um sorriso nos lábios. O marido envaideceu-se pensando que estava conquis-tando, definitivamente, o coração da mulher. Depois do almoço, Carmélia fez sua trouxa, aprontou-se todinha, esperando Sebastião que viria, logo, buscá-la. Deixou apenas um bilhete, lacônico e mal escrito, comunicando, ao marido, a sua decisão.

Nesse dia, Alaor chegou do trabalho, mais cedo do que de costume, entusiasmado e sonhando encontrar-se com “a nova mulher” que se revelou na noite anterior, e até lhe trouxe um pequeno mimo.

– Carmélia! Carmélia! Ô de casa! – surpreendeu-se ao ver que não tinha ninguém. Assustou-se e quase desmaiou quando viu o bilhete, em cima da cama de casal. Chorou alto, se lamentou... Em pouco tempo, toda a vizinhança já sabia da sua desventura.

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– Puxou o pai!!! Cão de caça vem de raça!!! – diziam as vizinhas faladeiras, fazendo rodinhas nas esquinas...

Trudinha, cheia de culpas e de remorsos, tratou logo de consolar o genro, procu-rando suprir-lhe a falta da filha. Todas as noites, depois do trabalho, ia à sua casa fazer as arrumações e lhe preparar a marmita do dia seguinte.

– Cuidado com essas idas à casa de Alaor, Trudinha. “Olha a língua do povo!” – dizia, preocupada, dona Bilica.

– Alaor é meu genro, mãe. É como se fosse meu filho – argumentava Trudinha.– Genro também é homem! – maliciava dona Bilica.Depois desse comentário malicioso, Trudinha começou a refletir sobre sua vida.Foi, em um desses momentos, olhando-se no espelho, percebeu que, ainda, era

uma mulher jovem, cheia de sonhos.... Que não era uma mulher bonita, já sabia, mas que era muito meiga e graciosa; lá isso era!... Tinha algumas marcas da idade que, até, lhe caíam bem... Mas, que era capaz de despertar a cobiça de um homem... Ah! Se era!... “Mulheres mais feias do que eu encontram novos maridos, por que eu não hei de encon-trar?” – pensou, com bastante determinação.

A partir daquele dia, passou a cuidar mais de sua aparência. Conforme suas posses permitiam, suas roupas eram simples, mas muito bem assentadinhas; também, baratos e populares eram os produtos de beleza que utilizava... Mesmo com essas limitações, e desfilando em cima do único par de sapatos de salto alto, estava sempre a brilhar, em sua elegância... Pintava os lábios com um batom discreto, não se esquecendo do pó-de-arroz, da marca “Lady”, e do “carmim” para colorir-lhe as faces morenas.

– Quem não se enfeita, por si se enjeita! – dizia baixinho, dando uma requebradinha e saindo de casa toda cheia de si. Não se importava mais “com a língua do povo”, espe-cialmente daquelas vizinhas fuxiqueiras que, quando não estavam espiando nas gretas das janelas, estavam, reunidas em rodinhas nas esquinas, falando da vida alheia.

Trudinha estava muito feliz com a sua nova vida. Só dona Bilica não estava gostando nada daquilo...

Com sua alma voando nas asas da alegria, num dia que se tornou muito especial para ela, Trudinha foi, toda arrumadinha, visitar o genro, como de costume. Nesse dia, em que a astúcia espetava-lhe os pensamentos, notou que Alaor a olhava com ares diferentes... Aí, então, começou a devanear:

– Não é que eu estou despertando interesse neste homem? Reparando bem, até que ele é bem bonito!... – Meu Deus! Será que eu estou tendo uma “quedinha” por ele! – pensou, acordando, bruscamente, de seu sonho e, no silêncio, repreendeu-se, com uma certa rigidez, procurando tirar aquela idéia maluca de sua cabeça.

Postos foram, postos ficaram os sentimentos e as emoções desvelados e instigados naquele momento... Depois de uma troca de olhares e de palavras, Alaor e Trudinha criaram coragem e começaram a trocar confidências... Despindo a sua alma, Trudinha descobriu, revelando para Alaor, que era ela que gostava dele e não a sua filha; sentimento que, inconscientemente, quis sufocar. Alaor, por sua vez, confessou-lhe que, quando ela e dona Bilica o convidaram para “tomar aquele café”, achou que era ela que se interessava por ele, mas depois viu que a arrumação era toda para Carmélia. Para falar a verdade,

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naquele momento, até que ele gostou. Mas, agora, nesses dias, após sua desventura, observando o carinho, o zelo e as qualidades da sogra, viu que o seu casamento com Carmélia foi um erro...

– Há males que vêm para o bem! O fim do casamento de Carmélia foi o que nos aproximou... – falaram em sintonia, ao mesmo tempo, que descobriram que nasceram um para o outro. Depois, em dueto, exclamaram: – Marido e mulher largados no matrimônio, têm mais é que serem felizes!

Dona Bilica custou a aceitar, fazendo questão de não compreender. Apenas pediu que falassem com Carmélia.

Depois de muito conversarem sobre como colocar Carmélia a par da situação, Tru-dinha e dona Bilica aceitaram a sugestão de Alaor. Pesando-a pra lá e pra cá, ponderaram que, realmente, a melhor forma, seria elas duas irem fazer uma visita à filha e à neta, mesmo porque, nunca tinham ido à sua casa. Marcaram a visita para uma quarta-feira, pela manhã, porque não queriam que Sebastião participasse da conversa.

E lá se foram as duas, no dia marcado. Carmélia, com muitas saudades da mãe e da avó, ficou radiante com a visita. Também, era a hora de saber se elas haviam lhe perdoado, embora nunca fizesse questão disso.

– Se vovó e mamãe me perdoarem é bom, mas se não; vai ficar melhor ainda... porque eu não largo o meu Sebastião! – dizia Carmélia, só querendo viver, em paz, a vida que pediu a Deus.

Matando todas as saudades e colocando a conversa em dia, Trudinha, cheia de dedos e de culpas, começou a explicar, para a filha, o assunto, que era a razão de sua visita. Falou tudo direitinho, desde o início. Carmélia ouvia todos os detalhes com muito interesse e tranqüilidade esboçando, de vez em quando, um sorriso bem malicioso.

Finda a conversa, abraçou a mãe e a avó, deu uma boa e sonora gargalhada, ex-clamando, bem alto:

– Graças a Deus! – e respirou aliviada.

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3ºLUGAR

Mauro FerreiraFaculdade de Engenharia de Passos

O

Sanatório Santana

tio Vergal era considerado um sujeito boa-praça, gentil, educado, finas maneiras sempre, nunca levantava ou alterava a voz, nem mesmo quando a tia Gilda deixava inad-vertidamente o arroz queimar no fogão, ao ficar de prosa fiada com a vizinha no portão da casa simples, mas confortável que tinham construído no Jardim Floridita. Ele comia o arroz queimado com elegância, uma boca de satisfação, elogiando a qualidade do tem-pero e a maciez que desmanchava na língua, até que a tia Gilda dava a primeira garfada e o xingava de cínico, hipócrita e político malandro, o gosto de queimado invadindo sua garganta e sua mente.

Enfim, era o que se chamava naqueles tempos um gentleman, um cavalheiro autêntico, daqueles que não existiam mais, e poderia sem qualquer injustiça, freqüentar a Câmara dos Lordes britânica. Ele só tinha um defeito visível, um preconceito extremado e que saltava a olhos vistos: não suportava efeminados ou afrescalhados, aos quais se recusava a chamar de gays ou

qualquer outra coisa ameri-canizada. Politicamente in-cor-reto, falava abertamente que eram chibungos, boiolas, bichas loucas, viados. O termo recorrente era sempre esse, viados. Ele ligava a televisão e ficava indignado com os pro-gramas que eram apre-sen-tados por rapazes alegres. Quando aparecia então um videoclipe antigo do Village People cantando YMCA, ele

xingava, depois se arrependia, pedia perdão a Deus-Todo-Poderoso, para voltar logo a pecar, não resistia, a boca até espumava de ódio aos “viados”, “antinaturais”, como ele bradava, assustando até mesmo a vizinha, que fazia logo o sinal da cruz e tocava a penca de meninos sujos e despenteados para dentro de casa.

Fora isso, era um amor de pessoa, como diziam seus colegas do sindicato, da fábrica de calçados onde era o responsável pela esteira principal, onde ganhava a vida, assim como era reconhecido e adorado por todos no culto evangélico que freqüentava no Jardim Aeroporto, onde era o braço direito do pastor Paulinho de Deus. Sempre era visto bem vestido, um terno escuro de corte razoável e a bíblia debaixo do braço, a citar passagens e parábolas de Cristo.

O que ele não contava nem para Gilda é que as hemorróidas o consumiam, o

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incomodavam tanto, que nos cultos ele nem sentar estava podendo mais, um ardor per-manente fazia seu traseiro parecer um braseiro em chamas infernais, coisa do tinhoso, do sem-nome. Até que, não agüentando mais, resolveu procurar um médico, através do convênio de saúde que a fábrica tinha. Lá, ele esperou alguns minutos para pegar a autorização para consulta, sem graça de dizer para as belas moças atendentes qual a especialidade de médico que precisava. Olhou os nomes na lista e arriscou, “esse doutor Piaçaba”, a moça bem treinada não resistiu, deu uma leve risada, os dentes brilhantes e bem tratados, e corrigiu-o delicadamente, “é doutor Piacebi”, entregando-lhe a guia para consulta, indicando o endereço e telefone do consultório, para marcar horário.

Fez a consulta, o doutor, um gozador carioca e último remanescente da torcida botafoguense, logo viu que ele era marinheiro de primeira viagem, mas que o caso era grave, só uma cirurgia corretiva para dar jeito. Tio Vergal, ressabiado, perguntou se havia risco de receber transfusão de sangue, que isso era coisa do demônio, do Lúcifer, ele não poderia aceitar. O doutor, rindo, disse que não, era coisa à toa, internava à noite, na hora do almoço do dia seguinte, se tudo corresse bem, ele estaria liberado para retornar para sua casa. Aí não houve jeito, teve que contar tudo para tia Gilda, que havia marcado a ci-rurgia. Avisou na fábrica e ao pastor, que teria que faltar ao culto na semana da cirurgia.

Na semana anterior à data marcada, conversou longamente com o pastor e orien-tou-o que, caso lhe acontecesse alguma coisa, que os irmãos não deixassem sua velha Gilda desamparada. O pastor o acalmou, disse que a cirurgia era coisa à toa, até aquele irmão de fé que era vereador já tinha operado, que o stress da política tinha deixado o irmão, com o perdão da palavra, “com o cu na mão”, disse dando uma risadinha, mas logo se desculpou pela indiscrição. Vergal pediu que não avisasse ninguém, seria constrangedor receber visitas, preferia o anonimato, o sossego e uma recuperação tranqüila, só com a família.

Na data aprazada, tio Vergal e tia Gilda foram juntos ao Sanatório Santana, onde a fábrica tinha convênio hospitalar. Assinou os papéis de internação, concordando com aquelas letras minúsculas e ilegíveis que tiravam toda a responsabilidade dos médicos e do Sanatório de qualquer coisa, principalmente de qualquer coisa que pudesse dar errado, prevenindo erros que, caso cometessem, seriam logo enterrados no cemitério do Pierre. Foram para o quarto, quando chegou o doutor Piacebi anunciando que nem precisaria esperar, logo iriam para o centro cirúrgico, que ele gostava de operar à noite, escutando jogo do Botafogo. Foi quando, logo após o doutor, entrou o Zezinho que, pela alegria demonstrada e pelo jeito aveludado e macio de falar, o tio desconfiou. Sussurrou para tia Gilda, “acho que esse cara é viado, não sei não”. Tia Gilda deu-lhe um safanão, disse que era impressão, que ele estava nervoso, era para ele não se preocupar com nada, apenas orar a Deus, iria dar tudo certo.

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Zezinho explicou os procedimentos pré-operatórios, e trouxe-lhe uma cami-sola verde, para aprontar-se, disse que ia fazer uma limpeza na região objeto da cirurgia, uma depilação. Tio Vergal não gostou, mas tinha prometido para tia Gilda que não iria reclamar de nada, que toda a provação a que estaria submetido era a vontade do Senhor. Depois de feita a depilação, vestiu a camisola, a tia Gilda olhando. Quando ficou de pé, a camisola era curta, a cabeça do pênis aparecia, pendurada flacidamente. E, por trás, era toda aberta. Tia Gilda ensaiou um sorriso primeiro, depois destampou a rir, que ninguém conseguia acalmar a mulher, teve que sair para o corredor engasgada, sob o olhar severo e reprovador das enfermeiras que passavam. O Zezinho, desesperado, bem que tentava, mas só conseguia deixar tio Vergal mais nervoso do que já estava. “O senhor prefere ir andando ou de maca?”, perguntou o enfermeiro, “não vou andando com esta bunda de fora pelos corredores, nem que o Conselho dos pastores exija”, disse tio Vergal. Acabou aceitando ir de maca para a sala de cirurgia.

Com uma anestesia perioquê ? , ele voltou madrugada alta, totalmente grogue, para o quarto. Só recobrou a lucidez pelo meio da manhã, quando um saltitante Zezinho adentrou o recinto para trazer-lhe remédios e trocar a bolsa do soro. Logo, o radiante Zezinho começou também a esfregar um pano úmido no chão do quarto. Tio Vergal, que estava imobilizado pela dor e pelo medo de alguém encostar no seu rabo, dizendo-lhe para tomar cuidado com aquilo, achou-o meio estabanado. Zezinho nem te ligo...quando esbarrou no aparelho que segurava o soro, espatifando-o no chão. Tio Vergal deu um urro de dor, pois a queda do aparelho arrancou junto a agulha do seu braço e um jorro de sangue manchou o lençol branco. Nada disso, no entanto, doeu tanto quanto o tranco que os pontos levaram... sem arrebentar, que o doutor Piacebi era muito bom de costura.

Foi-se o gentleman, o lorde inglês, o cavalheiro, entrou um endemoniado torce-dor corintiano boca-suja, palavrões rolaram, até que o Zezinho pode recolocar a agulha no lugar, o soro voltou a fluir com os analgésicos, tio Vergal se acalmou e voltou àquela sonolência letárgica. Não sem antes orar pela alma do Zezinho, pobre viado.

Na hora do almoço, doutor Piacebi passou pelo quarto e disse que não poderia dar-lhe alta, estranhamente os pontos estavam laceados, demoraria um pouco mais para cicatrizar. Ele teria que continuar mais um pouco no Sanatório. Tio Vergal nada disse sobre o incidente, deixou para lá, perdoou o pobre chibungo ajudante de enfermagem. À tarde, eis que retorna o iridescente Zezinho, com um sorriso ameno nos lábios, uns trejeitos esquisitos, juntamente com um outro personagem de branco, um crioulo chamado Ro-gério, mas também aparentando esconder um robalo...Zezinho, nem recordando mais o incidente, foi incisivo: “seo Vergal, o senhor vai ter que mudar de cama, temos que trocar a roupa de cama, colocar uma limpinha, que esta já sujou”. Antes mesmo que tio Vergal pudesse protestar, Zezinho e Rogério juntaram as camas, cada um pegou num dos lados do lençol e começaram a transportar o acamado.

Tio Vergal, com a bunda ainda ardendo e receoso dos pontos, reclamou, disse para terem cuidado, que estava doendo, quando os dois, pimba, ao levantarem o homem no ar para passar de uma cama para a outra, escutaram o som de panos se rasgando, tio Vergal caindo no chão entre a maca e a cama, a bunda batendo no chão aos gritos lanci-nantes. Foi preciso vir toda a enfermagem daquele andar do Sanatório para levantá-lo no

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chão, ele tentando esganar o Zezinho, “viado, viado, eu mato este viado”, uma enfermeira baixinha e brava chamada Mariinha chegou e deu um final naquele escândalo, com uma dose “sossega-leão” de uma injeção rombuda. A dose foi tão forte que ele dormiu o resto da tarde e da noite, só foi acordar no dia seguinte.

Trocaram de responsável-enfermeiro, aí vinha apenas a Mariinha, que secamen-te dava-lhe apenas ordens e verificava se estava tudo nos conformes, do jeito que o dr. Piacebi mandou. Na hora do almoço, o médico chegou, examinou o estrago, mas disse que estava tudo bem, que poderia mandá-lo para casa logo depois do almoço, se esse fosse seu desejo. Tio Vergal, mais que depressa, disse que estava louco para ir para casa, que faria tudo que o médico determinasse.

Três horas da tarde, eis que se abre a porta do quarto, entra um tímido Zezinho, empurrando uma cadeira de rodas, já sem aquela alegria toda, e se desculpando perante tio Vergal, pelo incomodo causado. Disse que tinha ordens de levá-lo para a portaria, que ele tinha obtido a alta da internação. Tio Vergal desculpou-o, era um filho de Deus também (embora fosse viado, pensou), mas que preferia ir andando, não precisava daquela cadeira. Zezinho agradeceu seu gesto magnânimo, de perdoá-lo, pediu-lhe que não desse queixa à direção do Sanatório, pois podia perder o emprego, era arrimo de família, sustentava a mãe velhinha e duas irmãs menores, mas que tinha ordens expressas da direção clínica que os pacientes tinham que sair sentados na cadeira de rodas, nunca andando.

Após uma breve discussão, tio Vergal, louco para ir embora, acabou acatando a idéia de sair na cadeira de rodas. Lá se foram os dois pelo corredor, até a rampa. Tio Vergal, quando viu o franzino Zezinho segurando as manoplas da cadeira e a inclinação acentuada da rampa, virou-se e perguntou se não seria melhor ele descer a pé, pesava quase noventa quilos, ele agüentava mesmo? Com um sorriso maroto e duplo sentido, Zezinho disse que agüentava qualquer peso e, depois, esta era a regra do Sanatório.

Começaram a descida, quando tio Vergal percebeu que a velocidade estava ex-cessiva. Olhou para trás e viu que Zezinho estava quase inclinado em 45 graus, bufando e suando, as veias do pescoço saltando para fora. Foi quando o barulho de um estalido foi ouvido, uma das manoplas se soltou, depois a outra. Tio Vergal desceu embalado, desembestado, gritando por socorro. Só parou na virada da rampa, enchendo a cara na parede, e rolou para fora, gritando sem parar. Foi uma loucura no Sanatório, todo mundo correu para saber do que se tratava, alguns já ajudando tio Vergal a se colocar de pé, contorcendo-se de dor. E gritando, “eu mato esse viado, vou pra cadeia, acabo com a minha vida, mas mato esse viado”.

Voltou para o centro cirúrgico na hora, quebrou um braço, luxou um pé, os pon-tos se arrebentaram, ficou mais uma semana internado num quarto vip que o Sanatório colocou à sua disposição sem qualquer custo adicional, a direção clínica morrendo de medo de um processo. Zezinho foi transferido de função, para o setor da caldeira, pois o turco da maçonaria que dirigia o Sanatório também ficou com medo de um outro tipo de processo, por discriminação da orientação sexual.

Os gritos de “viado” ainda são ouvidos até hoje nas reuniões do Centro Médico,

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4ºLUGAR

udo aconteceu num dia como outro qualquer...O relógio de cabeceira tocou e ele, apressadamente, como o fazia sempre, levan-

tou-se e correu para o banheiro.Barba, creme de barbear, corte aqui, outro mais adiante, e eis que se encontra

razoavelmente escanhoado.Banho, ducha rápida, veste-se com a melhor roupa.Café, engolido às pressas, ensaia uma breve mordida na maçã...”Deixa pra lá, só há

mais alguns minutos para o beijo de até logo na esposa”.Pega o carro, liga o rádio no noticiário local e pensa na pilha de teses, monografias

e projetos a terminar, outros ainda nem mesmo começados... Prazos, datas, pressões de colegiado, planejamento e agendamento de

palestras...“Material para a aula inaugural, tudo pronto?” Correu os olhos rapidamente para o banco de trás do automóvel e alívio! Sim, ela, a sua pasta, companheira inseparável, lotada de papéis e anotações, palm-top, agenda, celular, Cd’s, disquetes...Tudo lá!

Estaciona ao chegar no grande pátio da faculdade e corre para a sala de aula.Ao entrar, é cordialmente apresentado pelo reitor, com toda a pompa e solenidade

direcionada à sua pessoa: “Vocês terão o grande privilégio de começar o semestre letivo com o Mestre, o doutor em educação, com cursos no Brasil e exterior, autor conceituado de muitas obras e artigos, extremamente requisitado...” e coisa e tal.

Percebe sua face corar, pois ainda não havia se acostumado a tantas deferências.Sen-te-se como um animal em exposição, ou ainda, quem sabe? A mulher barbada do circo.

Após tal apresentação, volta-se para a turma e procura entre eles, algum rosto mais interessante e curioso. Novo constrangimento, pois o que presenciava ali, bem à sua frente, era um amontoado de rostos pálidos, incrédulos ou ainda, que demonstravam a incerteza dos motivos de estar ali... Alguns esboçaram um disfarçado bocejo de tédio; outros apenas cochilavam.

Pigarreia, liga o equipamento de projeção e começa a sua exposição.“Como falar sobre a Verdade, tema desta aula?” Apela para todos os Santos e anjos

da guarda, para seus teóricos preferidos e pede silenciosamente, inspiração e clareza... Explanações, muita didática despejada, recursos tecnológicos e uma tentativa frus-

trada de motivar e instigar perguntas, mas nem um pio! Nada! “Meu Deus será que eu estou agradando? Será que fui claro, utilizei bem os

recursos que dispus, fui objetivo ao que me propus? Consegui repassar todo o conteúdo?”.

Consuelo Ramos de MeloFaE/CBH/Uemg (NF VA)

(Re) Conheça-te ...

T

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Ainda aquele silêncio constrangedor, muita gente o olhando, o analisando, um silêncio mortal, infindável...

De repente, pára e pergunta aos alunos: “Alguém quer perguntar alguma coisa?”.Finalmente, alguém, não sei se por pena de seu embaraço ou se realmente tivera

dúvida, lhe dirige uma pergunta: “Professor; me desculpe, mas até agora, você só citou as idéias dos autores... Para o senhor, qual é o conceito de verdade?...”.

“Valei-me, Pai!...”. Pensou quase em tom de súplica: “Salvem-me filósofos do mundo inteiro...”.

Responde, com abnegada paciência, que os autores ou escritores citados serviram ao propósito de tentar esclarecer alguns conceitos, mas que para ele, a verdade era algo mutável como a natureza humana e essencialmente ligada a sua história de vida, aos seus costumes, ao seu conhecimento e à sua visão do mundo e das pessoas. Hoje, a sua ver-dade era que ele estava ali, com um grupo de pessoas diferentes umas das outras e que de alguma forma, todas elas mudariam fundamentalmente o seu jeito de ser e de ver as outras realidades possíveis. Construiriam uma outra verdade possível...

Achou que respondeu o que todos queriam ouvir, pois ao final da famigerada aula, entre suores e calafrios nervosos do pobre, estava domado o leão: foi aplaudido e para-benizado por muitos alunos.

Já aliviado por ter passado por mais uma entre tantas provações, juntou atordoada-mente seus pertences (que a esta altura, já se encontravam espalhados por quase todo o ambiente) e se preparava para sair, quando uma aluna aproximou-se dele e num misto de timidez e respeito, perguntou-lhe se poderia contribuir com a sua pesquisa, respondendo algumas questões para um estudo de caso.

Olhou o relógio, olhou para ela e percebeu nas suas feições que a pobre se prepa-rava para obter um sonoro “me desculpe, outra hora”.

Resolveu colaborar, mas como estava atrasado, pediu a ela que fizesse o favor de escrever as perguntas num papel e as lhe desse, para que pudesse ter tempo de lê-las e respondê-las numa hora mais apropriada.

Ao ouvir isto, o rosto da aluna em questão iluminou-se e prontamente, tomada por uma alegria quase infantil, tomou uma caneta e rascunhou alguma coisa num papel, que ele prontamente guardou na sua inseparável pasta pessoal.

Despediu-se rapidamente ouvindo dela ainda, que “se não for abusar muito, gostaria de ter respostas o mais sinceras possíveis”.

Jurou que assim o faria e logo enviaria para ela o dito questionário, por e-mail.Correu para o carro e de novo, ligou o rádio, dirigiu e chegou em casa, a tempo de

engolir o almoço e escutar o barulho dos filhos e as reclamações da esposa, que cansada também de seu trabalho fora de casa, ainda administrava toda a rotina familiar: “Ai! Pro-meto, querida, que ao voltar a gente conversa!...”.

Sabia que quase sempre, isto não aconteceria...Mais aula, mais trabalhos a corrigir, mais trânsito e finalmente, casa.Engoliu o jantar assistindo a TV e correu para a pilha de trabalho acumulado. Começou a corrigir algumas provas e sem querer, assim por acaso mesmo, encon-

trou o tal questionário.

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Pensou: “Vou ver de que se trata”. Pegou o papel e leu: “Nome, filiação, idade, endereço”.

“Tudo bem, esta é fácil”. Respondeu mecanicamente as solicitações.Passou à questão seguinte: “Como você se descreve fisicamente”.Achou “esquisito, mas vá lá...” “Tenho �,80m de altura, cabelos pretos... Ih! E agora?

Eu escrevo cabelos grisalhos? Meus cabelos já não são tão pretos...”.“Qual o seu peso?...” “Acho melhor eu colocar um peso menor, vai que alguém que

me conhece lê isto e percebe que eu já estou um pouquinho fora de forma...”.“Algum sinal de nascença ou particular?”.Pensou: “Acho que ainda guardo aquela cicatriz que consegui soltando pipa na laje

de casa... Foi um tombo e tanto... Mas era do lado direito ou esquerdo?”.Foi ao banheiro e se despiu lentamente com a paciência de um monge tibetano,

tentando reconhecer a sua geografia, tão mudada dos tempos de garoto... Lá estava ela, a cicatriz... Era mesmo do lado direito...

Recompõe-se e se dirige à próxima pergunta: “Como é sua família?”.“Meus Deus! Como a de todo mundo, marido, esposa e dois filhos.”“Como você se relaciona com eles?”. Bem, começou a escrever que se relacionava bem, mas lembrou-se, (não sei se por

um repente de consciência) do quanto andava em falta com seus filhos...“Meus filhos! Já não são mais crianças, mas há quanto tempo eu não converso com

eles?”.Levantou-se, correu para eles e perguntou: “Como vocês estão? O que tem feito

de diferente nesses dias? Que tal depois darmos uma saída, uma escapada, um fim de semana só nosso?”.Olhando nos olhos deles, per-

cebeu o espanto e a surpresa que provocou, pois há pouco tempo, eles haviam chegado em casa e ele nem sequer havia percebido a presença deles...

Voltou envergonhado para o maldito questionário. “O que você gosta de ler, ouvir ou fazer em mo-mentos de folga?”.

Já ia escrever que infelizmente, o tempo livre ultimamente era pouco. Folga e lazer então...Nem pensar! Pa-rou e se lembrou de outros tempos, quando as crianças eram pequenas e quando ainda tiravam férias.

Correu, buscou umas fotos e viajou, riu e brincou de novo, pelo menos na sua imaginação. “Estávamos tão contentes, nós estávamos tão

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felizes... Minha fisionomia era tão leve... Aqui ainda sou um garotão...”.“Engraçado, eu ainda não tinha tantas rugas de expressão e havia um brilho diferente

em meus olhos!...”. Voltou-se, procurou um espelho e não viu ou enxergou aquele outro que um dia viveu nele...

Ficou triste, pois aquele brilho moleque que teimava em aparecer em seus olhos havia dado lugar a um olhar astuto, perspicaz, crítico e irônico. Algo que anos de vida e profissão o haviam modificado com o passar do tempo.

Voltou-se para sua esposa e perguntou: “Querida, você acha que eu estou ficando velho e chato?”.

Ela riu, com aquele sorriso lindo, aquele mesmo sorriso que o fez se apaixonar tantos anos atrás e lhe disse debochada: “Velho, pode ser, mas chato... Espero que não! Mas por que esta pergunta, querido?”.

Desdisse, escorregou-se, saiu de fininho e voltou-se com uma ira quase que in-controlável para o tal questionário. Disposto a rasgá-lo e esquecê-lo, não resistiu, no entanto, a curiosidade e leu a próxima questão: “O que pode te alegrar? O que pode te deixar triste?”.

Aí, foi a gota d’água: “Meu Deus! Depois de tudo isto, acho que não sei mais...”. Pensou: “Alegria, que sensação tão esquecida é esta?”.

Retornou aos tempos de garoto, de brincar descalço, de sentir o sol batendo no rosto, do vento balançando as árvores do jardim, da chuva na vidraça da casa, dos ninhos de passarinho, balanço no parquinho!” .

“Rapadura, cocada, sorvete! Beijo roubado, primeira vez, primeiro sonho, lua de mel, nascimento de filhos... Alegrias únicas, repletas de vidas, de sonhos, garantias de felicidade...“.

“Tristezas, hummm!... Não posso me queixar de muitas, sou um cara de sorte! Tive algumas perdas, alguns tropeços, mas nada que não me ajudasse a crescer ou a me tornar mais forte”.

Passou para a próxima questão: “Você tem muitos amigos?”.“Ah! Finalmente, esta era fácil... Muitos!” Lembrou-se de alguns, esqueceu-se de

outros... “Cadê o Claudinho da pelada de sábado, o Jorge do boteco, o Claudeir da fa-culdade? E aquele chato que não saía aqui de casa? Há quanto tempo!...”.

Percebeu, então, que ele não estava sendo um amigo tão bom e correu para o te-lefone: entre enganos e desencontros, conseguiu finalmente marcar um churrasco para o sábado. Todos ficaram animados com o reencontro...

Um pouco mais aliviado, arriscou a responder a mais uma: “Toma algum medica-mento? Qual?”.

“Tremenda covardia! Há muito tempo não faço um check-up. Como estará o co-lesterol? E a pressão? Acho bom, por via das dúvidas, agendar uma visitinha ao médico... Vá lá!”.

Acabado o monstruoso questionário, se deu conta de um “pequeno” detalhe: havia exorcizado os seus demônios mais profundos, abriu portas fechadas há tempos, reavivou laços de amizade, reviu seu papel de pai, de marido e havia feito uma reflexão profunda de sua vida... Descobriu suas verdades mais profundas e fundamentais.

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Releu novamente o papel e agradeceu mentalmente àquela aluna a oportunidade de ter feito, revisto e avaliado toda a sua existência, embora não deixasse de achar estranho o caráter pessoal do questionário.

Mas, como se propôs a ser o mais sincero possível, voltou à sua humilde posição de educador e enviou o questionário preenchido por e-mail, conforme o combinado.

Com surpresa, recebeu um caloroso agradecimento de sua aluna, muito comovida e entusiasmada pela riqueza de detalhes e pela contribuição dada ao deu trabalho. No entanto, ele estranhou apenas um fato: a aluna confidenciou a ele que ele havia sido o mais profundo de todos os professores ao responder a única pergunta feita, que era:

“Além de uma excelente formação profissional, como posso me tornar uma pro-fessora melhor?”.

Sem entender nada e ainda atordoado com o acontecido, buscou novamente o papel que ela havia lhe dado e leu de um dos lados da folha de entrevista, a referida pergunta escrita à mão e do outro lado da folha, um rascunho, este sim, o qual ele havia respondido, com o seguinte título: “Avaliação para diagnóstico inicial dos alunos e familiares envolvidos na educação infantil...”.

Pasmado, ainda em estado de choque, pôde entender o motivo para tal contenta-mento de sua aluna, pois sem querer, respondeu o que ela queria e necessitava para a tal pesquisa, além de encontrar muitas perguntas em si mesmo ainda sem respostas...

Pôde assim rever toda a sua metodologia de dar aulas e, grato a tal contribuição involuntária de sua aluna, passou a recomendar a todos os seus alunos e candidatos a educadores, que pelo menos uma vez por ano respondessem ou se fizessem tal ques-tionamento...

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5ºLUGAR

Nas garras dela

Bruno Thadeu Duarte Silvino

FaE/CBH/Uemg (NF VIC)

A pesar dos muitos anos decorridos, lembro-me, como se fosse hoje, daquela tragédia brutal em que me achei envolvido como vítima inocente. A reminiscência daquele passado longínquo ficou gravada de tal modo que jamais me deixará.

Era bem cedo. A música dos ninhos executava uma tarantela napolitana e os pássaros, escondidos nos matagais, ao longe, tangiam os sinos de Strasburgo. Despertava um lindo dia no campo! O sol aparecia alegre e festivo como um homem sem dívidas. O marulhar das águas de um regato, levando energia aos artifícios hidráulicos, o monótono ranger de um moinho, na faina de triturar, o compassado malhar de um monjolo, incansável trabalhador de serões, o cantar de galos no poleiro, o mugido das vacas no relento das vargens, o grito dos vaqueiros, tudo porfiava em encher a vastidão dos ares de sons, os mais variados.

Do peitoril da janela de meu quarto, inebriando-me da etérea essência do laranjal em flor, ao contemplar o despertar daquele maravilhoso arrebol de domingo, avistei a Serra do Tigre. Lembrei-me de que por entre os extensos matagais que circundam a tal serra, demorava a fazenda de Tia Nhá.

Há muito devia uma visita pros parentes daquelas bandas. E a própria Tia Nhá, figura tão doce e singela, não merecia tanto desdém de minha parte. Perigo no caminho sempre houvera, os mais variados, desde cobras venenosas a vacas paridas furiosas em defesa de sua cria recém-nascida, mas o dia estava tão convidativo que fui pela natureza cativado a acreditar que nada aconteceria.

Saí acompanhado de meu fiel companheiro, Tiu, demandando a fazenda de Tia Nhá. Viajan-tes pedestres, levávamos um saquinho de paçoca, carne com farinha socada no pilão, que nos proporcionaria o almoço e o jantar daquele dia. Quanto à bebida, ora conseguiríamos nas águas dos riachos do caminho, ora nas fazendas pelas quais passaríamos.

Ao atravessar a fazenda de seu Firmino, quase na metade do caminho, um violeiro co-nhecido nos advertiu sobre o perigo a que nos expúnhamos, transitando a pé por aquela estrada, em vista da furiosa onça que por ali andava, matando animais de toda sorte,

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inclusive bicho homem. E de improviso, já com os vapores da pinga atingindo o cérebro, correndo os dedos pelos bordões e primas, ele cantou:

“Meu senhor que me escutaNesta minha geringonça,Se vanceis me dá licençaEu quero cantar da onça

Esta onça mais malditaVeneno de urutu

Você saiu do infernoÉ filha de belzebu

Arrigulava meia noiteQuando ela entrou de mansinho

Pegou meu bode cinzentoE comeu meu capadinho

Foi debaixo do poleiroE esparramou as galinha

Sem vergonha veio deitarJunto da porta da cozinha

Estumei o meu cachorroMas não quis obedecerParece que divinhava

A sorte que ia ter

Eu fiquei enjirizadoE dei-lhe uma chicotadaCoitado, saiu ganindo

Pra enfrentar a pintada

Em menos de meio minuto Ele estava liquidadoCoitado do Matuto

Em dois pedaços cortado”

Terminada a cantiga, botou a viola nas costas e, com toda seriedade, aconselhou-nos a retornar, adiando a viagem por alguns dias, até que o animal fosse capturado ou morto.

Meu cão olhou-me com cara de quem acabara de acatar de pronto um bom conselho, mas eu, teimoso, não quis desistir da empreitada ali no meio da viagem. Agradeci a bondade do amigo, mas desprezei o seu conselho. E confiante de minha prudência, seguimos o

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caminho interrompido.

Ao chegarmos à vertente do Córrego do Jabuti, notei indícios da existência de uma onça. Havia pegadas fartas de um felino de grande porte no lamaçal que margeava o córrego e muitas cruzes fincadas à beira do caminho, lembrando as estações da Via Sacra. Encontrei no caminho mais à frente um canzarrão degolado e a carcaça de um carneiro. Diante de um montão de galhos verdes, cuja sombra ocultava um cavalo morto, possivelmente última carniça que a onça fizera, detive-me.

Nesse momento, arrependi-me de fiar em minha prudência, pois estava num deserto, acompanhado de um cão medroso, desarmado até de um canivete. O pavor invadiu-me de tal modo que via a cada momento surgir das moitas a onça armada de dentes afiados e, em um segundo, devorar-me a cabeça de uma só vez.

A horrível expectativa não durou muito porque a realidade caiu brutal sobre mim. O cão latia e rosnava em todas as direções como se farejasse algo inédito. Ouvi um rugido mais forte que muito trovão e corri em direção da árvore mais próxima. Escalei-a num piscar de olhos, trazendo em meu colo o cão maroto. Subi o máximo que pude em busca de um posto de observação, donde veria facilmente o animal passar e deixar-nos em paz.

No entanto, parece que ali mesmo a desgraça nos esperava. A bicha sanguinária logo percebeu nosso esconderijo e, como uma seta, voou em nossa perseguição. A fera rugia enfurecida. Debaixo da árvore, acuava-nos como se fôssemos quatis.

O saquinho de paçoca ficara no chão e a danada foi logo devorando o conteúdo com plástico e tudo. Acreditei que ela se desse por satisfeita. Que nada. Ela nos encarou como quem diz: - Agora é que vamos acertar nossas contas! Queria mesmo era carne palpitante de vida.

Sem preâmbulos, foi escalando aquele maldito camará. O cão, que já estava um pouco apertado, começou a gemer baixinho. Como um esquilo, ela voou para onde estávamos. Agarrou-me por um pé e com um brusco empuxão arrancou-me do galho e projetou-me ao solo, de pernas para o ar, de uma altura de cinco metros. Estava nas garras dela.

Meu amigo saiu correndo e ganindo. Minha pobre cabeça alvejou uma grossa e dura raiz saliente. Senti um estouro atômico. O mundo acabava sem que sentisse o peso da pata pesada sobre mim. Morri?!

De repente, senti mesmo um empurrão no ombro e, por um prodígio de vontade, abri os olhos e... coisa esquisita! Achava-me deitado, confortavelmente, em minha cama e a mulher ao lado dizia: - Você está roncando muito feio !

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6ºLUGAR

onvivi por quase vinte anos numa pequena comunidade lá do leste mineiro, na região do Vale do Rio Doce. Não dá para desfazer dos feitos inolvidáveis daquele indivíduo esquisito conhecido por sô Corcunda, que sequer possuía documentos ou alguma notícia de seus anos decorridos; sujeito sem nenhuma leitura, com vivência difícil, comum dentre os caboclos daquelas redondezas, mas de alegramento e presteza de encantar qualquer um; passava grande parte do tempo bestando dentre os moradores locais, divertindo-os com piadinhas e causos engraçados; e, também fazendo valer os seus conhecimentos mágicos a favor daquela sofrida gente; as velhas simpatias praticadas pelos seus ancestrais - transmitida de pais pra filhos durante séculos, continuava viva por ali em sua humilde pessoa, já há muitos tempos. Dentre tantos misticismos executados por sô Corcunda, eu quero relatar aquelas horas do aperto, quando o mal chegava abraçando sem dó e nem piedade os ninhos desprovidos dos recursos da medicina, estes encontrados somente nos centros urbanos distantes dos arredores; suas simpatias, feitas com boa dose de fé, atingiam resultados garantidos, sim senhor; que faz lembrar as palavras daquele famoso sujeito que já dizia:

‘Há mais coisas entre o céu e a terra que foge da nossa vã filosofia humana.’ Para as picadas venenosas, doenças ruins e imprevistos de maior gravidade, sô

Corcunda fazia valer além das simpatias, também das indefectíveis garrafadas construídas à base de raízes, cascas e folhas dessemelhantes, das quais somente ele era sabedor.

Fato é que por ali ninguém morria mais cedo, daquela doença ruim, veneno de cascavel ou qualquer outra praga excomungada, não senhor; e as demais mazelas sofridas pelas espécies locais eram aliviadas de pronto pelas benzeduras de sô Corcunda.

Certa ocasião, ele se avizinhava duma grande casa de assoalho, erguida por peroba e esteios de braúna - todas as demais construções da comunidade eram levantadas de barro amassado, chão batido e, cobrimento de sapé - chegou ali na incumbência de usar mais uma vez de suas crenças em benefício de alguém; sô Corcunda era uma espécie de poucas gorduras, bastante envergado e carregava um murundu formado no alto da cacunda; possuía idade superior a meio século, mas já apresentava semblante bastante caído devido à vivência pesada lá dos roçados. Trazia um pequeno galho verde na concha e reverenciava de modos respeitosos o par acasalado. Espalhados por ali, habitavam desde o mais ignorante analfabeto até doutores em engenharia e medicina.

- Bom dia, dona Maria. Bom dia, seu doutor – estalava ele emborcando-se para frente, quase que tocando o chão com a dianteira, jogando o queixal para o peito, e no

Sô Corcunda

Zamalxe Scutasu Artes Plásticas – Escola Guignard

C

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seguinte, o crânio para a rabeira.- Bom dia, sô Corcunda – a dona.- Bom dia, Corcunda – o doutor.- Bão?- Bem – o doutor.- Bem, obrigada – a dona.- Antes isso. Quede o guri qui tá cum cobrero?- É aquele lá – apontou a dona num gesto de crânio para o lado do filhote que brincava

na sombra de um pé de laranjeiras no terreiro de casa. Em seguida ela o chama.- Vem cá menino, que sô Corcunda veio benzer o seu cobrelo.No seguinte, ele deu início a um de seus misteriosos rituais. Pegando o pedaço fino

duns vinte centímetros de assa-peixe que ele já trazia na concha, depositou-o por sobre o cobrelo - uma espécie de micose - na popa do filhote que havia se aproximado de modos arisco; depois de fazer movimentos em formas de cruz por três vezes, interrogou.

- O quê qui corta?O menino balbuciou alguma coisa desentendida, que foi de pronto interrompida

pelo benzedeiro.- Quando eu priguntá cê fala assim, ó: é cobrero, viu?Depois de feita toda a liturgia novamente, sô Corcunda interroga mais uma vez.- O que qui corta?- É coblelo – respostou finalmente o pequeno.Adiante, por sete vezes o curandeiro bateu com a lâmina dum canivete no galho do

arbusto, fazendo pequenos cortes, enquanto lamuriava em alta voz.- Cabeça, meio, rabo, faca, facão, canivete.Repetiu o ritual por três vezes, no seguinte, ele entregou o galho de assa-peixe

para a dona.- Bota na fumaça do fugão, quando o pedaço de sapêxe secá, o cobrero seca junto

cum ele. - E é cobrelo mesmo, sô Corcunda? Eu to achando muito vermelho o lugar afetado, será

que “Deus tá permita” num é alguma outra coisa, não?- Carece de tino, dona Maria, carece de tino – coçou ele a cumeeira antes de res-

postar – bão...doença ruim cum certeza num é, pra mim é cobrero mesmo... mais pode sê também a danada da impinge; tá muithio vermei divera; intão é mió eu benzê também di impinge qui o qui fô vai sará.

No seguinte, ele despejou a ponta do casco indicador por sobre o local deformado, fez o sinal-da-cruz por sete vezes e, após cochichar alguma coisa enigmática, começou a rezar em sonância alta por entre os dentes, lançando grande aguaceiro pelos ares.

- Impinge cê sai do tutano, do tutano cê vai pro oxo, do oxo cê vai pra carne, da carne cê vai pros neirvo, dos neirvo cê vai pra péla, da péla cê sai pra fora... e vai-se imbora cum Deus i nossa sinhora!

- Pronto – despachou depois de executar por várias vezes o nome-do-padre – agora num vai tê mais poblema nihum.

- Deus te paga, sô Corcunda – agradeceu a dona.- Amém, nós todos (jamais cobrava qualquer valor pelos seus préstimos).

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Sucedeu que já no terceiro dia vindouro o cobrelo da popa do garoto se encontrava totalmente seco. Quando interrogado sobre os segredos de seus rituais, sô Corcunda se limitava a matracar.

“Num posso contá, pra mode num quebrá o encanto, e o mal num torná a vor-tá”.

Adiante, ele era visto diariamente em outros casebres da comunidade, benzendo alguma criança de espinhela caída. Também usava de suas liturgias para desfazer quebranto, inclusive nos adultos. Importa mesmo que as curas eram quase que fugaz. Quando era solicitado para cozer osso destroncado, sô Corcunda cochichava em secreto, enquanto costurava um pano branco por sobre a parte do membro deslocada, alcançando resultados espantosos; o indivíduo suspendia caminhando sem mesmo mancar as juntas, ou carregava algum peso desprovido de qualquer dor. Benzia também os garotos aguados, que eram identificados com um fundo na nuca, bagalas arregaladas e pêlos arrepiados; sô Corcunda recomendava empanturrar o pirralho com a ração que provavelmente o haviam negado, que tão logo a mandasse pra dentro já estaria curado.

“Quando o caso fô di feitiço brabo, aí será priciso intrá cuma boa garrafada”. Ma-tracava rechonchudo de mistérios, fazendo chover saliva para todas as bandas enquanto se pronunciava.

Entrementes, sô Corcunda se agrupava com outros camponeses em uma choupa-na; no pequeno cômodo aonde sucedia as cozinhadas, ele encarava a dona espichada de semblante preocuposo num tamborete à sua frente, espiando para o tempo inaberto e para a chuva que jorrava sem fim; pois, a qualquer hora, a cria que ela esperava poderia nascer e, a parteira, uma anciã de graça Ricarda, que a havia ajudado em pelo menos oito dos partos passados, ainda não tinha chegado para acudi-la mais essa vez; e aquela chuva torrencial poderia empatar a sua vinda até à toca por aqueles dias.

- Dexa cumigo. Eu dou jeito nisso – saiu do casebre com um tacho de cinzas reti-radas de dentro do fogão à lenha e espalhou formando uma cruz no meio do terreiro. Não levou nem meia hora adiante para as águas deixar de escorrer.

“Como é possível isso, sô Corcunda? Até as forças da natureza são controladas por seus rituais...”

“Num posso falá, pra mode num quebrá o encanto... somente me espiando por muitos ano é que dá pra pegá o troço.”

Foi aí que eu decidi caminhar na sombra daquele sujeito. Era início dos anos setenta e eu ainda não passava de um garoto curioso.

Na fazenda das beiradas do Rio Doce, o doutor em engenharia repousava per-rengue em seu ninho; se concentrava na leitura de um antigo jornal de pelo menos três semanas, dedicando profundamente na decifrância de suas letras, enquanto se curava dum mal acometido.

Nas proximidades, um pássaro cantarolava com insistência, incomodando sobre-maneira a mulher do doutor pois, diziam os antigos, que a melodia daquela ave - uma pequena gaivota que dava com as caras quase sempre na primavera, e que os camponeses por ali tratavam por coã - atraia a presença da morte, sim senhor. Muitos deles juravam

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de patas juntas que já haviam tido experiências com alguma pessoa perrengada em casa e, apenas o cântico do pássaro “mal agourou” o doente a ponto dele falecer logo no seguinte. Verdade ou não, enquanto mais a ave cantarolava, mais a febre do doutor ia aumentando, chegando a ultrapassar os quarenta graus. Por uma dessas coincidência, sô Corcunda passava por ali justamente por aquelas horas - ele sempre chegava nos mo-mentos mais delicados, donde tudo parecia perdido - assim que se inteirou da doença do doutor, apanhou ligeiro uma vassoura, a erguendo com determinância em direção da gaivota agourenta, gritando no seguinte por três vezes em alta sonância.

- Vassoura coã! - Vassoura coã! - Vassoura coã!A mandinga com a vassoura valia para espantar a maldita ave das redondezas. Para

surpresa daqueles mais tapados, logo após sô Corcunda ter ralhado com o pássaro, ele sumiu para bem longe, não cantarolando mais durante muitas semanas vindouras; inclusive, levando embora consigo a febre que quase fez desaparecer o doutor.

Alguns dias passados, e sô Corcunda retornava de sua árdua jornada dos roçados; caminhando próximo de um outro casebre às margens da estrada férrea - eles eram levantados distantes uns dos outros por centenas de metros, ocupando um raio de vá-rios quilômetros - viu lá no fundo a ninhada toda se agitando em redor de uma pequena guria.

- O que tá sucedendo cum ela? – interrogou para a mãe, que assistia a cria de sete anos de vivência rolando por chão afora, aos berros, com penosa cólica na boca do estômago. A dona Nêga suspirou fundo com as bagalas lacrimejadas antes de respostar desesperançosa. ‘Uma dor daquelas na altura do vão, sô Corcunda; a pobrezinha já perdeu até as forças’.

Mais uma vez ele se dispôs a valer de seus conhecimentos secretos. Saltou de galope até a cozinha, sujando o polegar com um bocado de carvão retirado de sob as chapas frias; depois, esticou a pequena de barriga para o cume, despejando no seguinte uma cruz nas alturas de seu umbigo, enquanto sussurrava coisas desentendidas. Não levou nem quatro minutos adiante, para que a guria fosse libertada daquela dolorosa que tanto a havia atormentado.

Eu, que presenciava tudo de longe, dei um leve sorriso de desconfiança antes de sair dali em maneiras aliviada por aquela família. Mais importante do que a minha descrença naquele momento, eram os bons resultados alcançados pelas simpatias que sô Corcunda executava.

Tempos adiante, sô Corcunda foi chamado às pressas dos roçado onde capinava; nos repentes, um moleque do casebre próximo se engasgou com um crânio de cumbaca. Ele galopou ligeiro até o local, em modos inquietos com o estado do pirralho, que por aquelas horas tossia imensamente já com o focinho roxo, pipocado de suor.

No imediato, sô Corcunda saiu a acudir o pequeno macho. Foi direto até o fogão, movendo alguns tições ao contrário para dentro da fornalha. No seguinte, ele amparou o pimpolho pelo tórax com uma concha e, com a outra deu alguns maneiros tabefes em sua cacunda, matracando.

- São Brás.

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- São Brás. - São Brás.Bateu por três vezes. Depois interrogou.- Intão? Já disingasgou?- Sim, sô Corcunda. A espinha já saiu – respostou o moleque em modos aliviado. - Sô Corcunda, que há por trás da simpatia dos tições e nos invocamentos de são

Brás? – Quisera eu saber em vão.“Num posso falá di jeito ninhum, sinão quebra o encanto e o mal acaba por vor-

tá”.Ele tinha solução para tudo. Simpatias que curavam qualquer enfermidade. Poderosas

garrafadas que desfaziam veneno, doença ruim e trabalhos de feitiçaria. Era um sujeito fora do comum. Até mesmo as bicharadas eram dominadas por suas forças ocultas, como numa ocasião em que o tatu-chicote, depois de acuado por cães caçadores, cavacava fundo para dentro de um barranco; sô Corcunda despe-

jou o ouvido na terra, depois arrancou sua velha camisa usada há pelo menos por noventa dias, depositando-a no chão ligeiramente à frente de seu caminho; imediatamente o escavador mudou o sentido de seu percurso até despencar numa perambeira e cair nas garras dos farejadores.

Uma outra vez, sô Corcunda viu um grupo de camponeses pelejando contra uma baita col-méia de ferozes africanas; devido o impedimento de sequer chegar perto, apenas contemplavam os belos favos que cintilavam ante os raios solares, entornando seus beiços de babas, sem lhes dar qualquer oportunidade de desfrutar daquela dádi-va. Sô Corcunda se aproximou com ar misterioso. “Dexa por minha conta. Eu arredo as abelha e cês apanha os favo”.

No seguinte, ele esfregou os dorsos das conchas embaixo dos sovacos, donde o suor já constituía numa consistente espuma ama-relosa, devido anos que não se banhava. Depois, avançou de asas esticadas em direção da colméia, soltando uma estranha sonância nos beiços; o enxame picou para um galho ao lado, como que tomado por forças extranatural. Mais um de seus esquisitos rituais que surtia efeito.

O tempo passou. Devagar, a pequena comunidade foi se desfazendo. As ninhadas tomavam uma a uma outros rumos, largando suas terras e casebres para a rabeira; todas elas atraídas pelos recursos das metrópoles; com pouco, as propriedades abandonadas eram engolidas pelos grandes fazendeiros da região, para finalmente, num raio de dez quilômetros, restar apenas a choça de sô Corcunda. Um dia, sua companheira também o abandonou, sem fazer muito caso de suas lágrimas nem de sua imploração; partiu sem muitos remorsos para junto da parentela urbana, seduzida por maiores confortos. Sô

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Corcunda, no entanto, permaneceu firme no lugar donde atravessou quase que toda a vida. Estava agora sozinho, tendo como companhia apenas os bichos nativos e os fantas-mas daqueles que partiram. Ninguém por ali nunca soube ao certo de sua origem, apenas comentavam que desde os anos cinqüenta ele já praticava pelos arredores suas estranhas tradições em favor daquela pobre gente.

Por meses ninguém o visitou; ninguém o procurou mais; sequer fora visto por muito tempo. A nova geração daquelas redondezas era de raízes urbanas, incrédula em misti-cismos, confiante tão somente nos recursos da ciência. Não precisava de sô Corcunda para mais nada.

Muito tempo adiante, alguns da parentela - incluindo a esposa ingrata - voltaram com a intenção de reatar o relacionamento com ele e levá-lo embora dali.

Se aproximaram do velho casebre que caía aos pedaços, com nítidos sinais de abandono. Chamaram-no.

- Corcunda. Corcunda.- Corcunda... você está aí? Nós viemos buscá-lo.- Meu Bem, eu voltei! Estava com saudades. Vim pedir perdão por ter te deixado

sozinho. Minha vida nesse tempo todo em sua ausência foi uma lástima só; se não quiser ir embora para a cidade, eu fico aqui com você. Não te deixo nunca mais.

Silêncio.Deram uma volta ao redor do casebre, sempre chamando em voz alta. Nada. Sequer

alguma pegada ou qualquer outro sinal de vida por perto. Foi aí que sentiram um forte odor vindo de dentro da choupana. Arrombaram a porta. O cheiro era insuportável. Foram até o quarto e, estarrecidos, descobriram a carcaça de sô Corcunda estirada no chão. Já se encontrava decomposta; seca; ele havia morrido já há muitas semanas. Che-garam tarde demais.

A perícia deu o seu laudo dias depois. Sô Corcunda teve uma morte lenta e cruel. Caiu perrengado com o peso da velhice; sofreu dores, fome, sede e os horrores da morte por muitos dias até apagar de vez; como alguém que colhia os frutos de uma desgraça plantada ao longo da vida. Morte dolorosa, sim senhor.

Fiquei desatinado por grande silêncio quando soube do seu trágico fim. Meditei sobre cada passagem de sua vivência. Sobre cada um de seus préstimos dedicado ao longo dos anos àquela comunidade carente. Talvez somente eu, dentre os mortais, po-deria compreender um pouco os seus mistérios e, quem sabe, o preço de uma morte tão tenebrosa.

A anciã que me trazia a notícia, e que também havia morado por muitos anos na extinta comunidade, me interrogou com as bagalas arregaladas de esperança.

- Você. Você Emanuel Cordeiro Vasconcelos, certamente saberia explicar os se-gredos de sô Corcunda, pois andou muitos anos em seus rastros... o que havia por trás de tudo aquilo? Quais eram os seus mistérios? Por que uma pessoa tão boa para com os outros como ele foi, acaba assim desamparado, como um verme?

Olhei vagamente para o horizonte enfumaçado ali do vale do rio doce; depois, virei lentamente até encará-la nas meninas.

- Nunca vou dizer pra ninguém... não posso, senão quebra o encanto...

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7ºLUGAR

ecebeu o apelido de Zé Muié, mas ele não é viado não. Foi apelidado pelo fato de ser mulherengo demais da conta.

O Zé é vaqueiro, moreno, alto, forte, seus dentes são claros e perfeitos, olhos castanhos e o cabelo negro e liso. O olhar é atento e penetrante e o cabelo, Zé mantém bem aparado à altura dos ombros. Zé diz que é meio enraçado com bugre, um sorriso ilumina seu rosto e ele balança o cabelo de um lado para outro, sempre que ouve um comentário acerca de sua vasta cabeleira.

Outra característica marcante, do vaqueiro, é a sua vaidade. Ele gosta de usar calça jeans, camisa xadrez, bota de bico fino e salto alto, cinto largo e chapéu de aba larga. As laterais da aba, ele inclina levemente para cima e, a parte frontal, curvada para baixo.

-Por baixo da aba do meu chapéu, eu olho as pernas da mulherada e ninguém nota, comenta maliciosamente.

Zé é extremamente festivo, forrozeiro, educado e se expressa muito bem, apesar de ser completamente analfabeto. É um excelente empregado, responsável, correto, rigoroso em seus afazeres. Freqüenta todas as festas populares que acontecem na cidade e lugarejos vizinhos. A Festa do Divino, tradicional em Santa Maria do Suaçui, ele não perde por nada.

-Dia de Festa do Divino não fica ninguém na roça, desce todo mundo pra cidade. Zé argumenta com um sorriso que anuncia aventura.

No dia da festa, ele acorda cedo para adiantar seu serviço. À tarde pega um bom cavalo e arreia no capricho. Toma banho, se perfuma e escolhe a roupa com cuidado desmesurado. A calça tem que ser bem justa, a bota não pode apertar o calo, o colarinho deve estar bem firme e o chapéu não pode ter um sinalzinho de poeira.

Zé chega à cidade, no quintal da casa do patrão, amarra o cavalo e desarreia-o. Conversando com o animal, Zé diz que o bichinho não pode ficar com a sela no lombo, sem precisão, até de madrugada. O melhor amigo do vaqueiro é o cavalo. Enquanto fala, acaricia o animal que balança o pescoço como sinal de aprovação e, ao mesmo tempo, exibe a bela crina dourada, longa e macia. Até parece que o cavalo aprendeu esse gesto com o próprio vaqueiro.

Após deixar o animal amarrado, entra na casa do patrão e cumprimenta a todos, apertando a mão de um por um. Porém, saúda o patrão e a patroa expressando gesto de profundo respeito.

Sai para a rua, desce devagar e atento a cada pessoa, cada objeto, cada movimento...

Zé Muié

Sebastião Paulo SantosFaE Santa Maria do Suaçuí

R

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nada escapa ao olhar aquilino. Entra no primeiro bar que encontra aberto, se aproxima do balcão e diz ao balconista:

- Me dá uma carteira de cigarro aí, do melhor que tiver, desse de caixinha. Eu não tenho o vício de fumar não, mas dia de festa eu fumo um cigarrinho só pra tirar onda, fala ao balconista como se quisesse justificar seu analfabetismo.

Encosta na porta do bar e acende um cigarro. Passa alguém conhecido e ele apro-veita para tirar um dedo de prosa. Fuma o cigarro até ao meio, aplica-lhe um piparote e o cigarro sobe muito alto e desce rodopiando em forma de parafuso e se estatela no meio da calçada. Ele faz isso com muita precisão.

Sai do bar, dá uma volta pela Praça do Mercado, visita algumas barracas de camelô e depois segue rumo à Igreja Matriz. Sobre a ponte que liga a praça Juca Lopes à praça Luiz Temponi, ele pára, apóia o pé esquerdo no guarda-mão e com o dedo indicador, empurra o chapéu para trás e fica observando as pessoas que passam: grupos de idosos, casais de idosos e casais de namorados, grupos de jovens, rapazes e moças solitárias. Para cada grupo de moças ou moça que passa sozinha, Zé se põe a filosofar:

- Eta meu Deus! Tanta mulher bonita aqui e minha mãe precisando de uma nora!- Um homem sozinho é que nem cavalo que não deu amansação.- Mulher, pra mim, é tudo nesse mundo: minha mãe me deu a vida, você tira meu

sossego e paixão demais vai acabar me matando.De repente, ele concentra-se em seus pensamentos, dá um longo e profundo suspiro,

traga lenta e vagarosamente e da mesma forma expele a fumaça no ar. Atira a guimba para cima, que ao cair com a brasa para baixo, espalha fagulhas sobre a ponte bem próximo de uma garota que passa naquele momento apresentando abstração. A moça se assusta, dá um passo atrás e trava-se um curto diálogo entre os dois:

- Se assuste não, isso é estrela caindo do céu pra enfeitar seu caminho, fala Zé se expressando de forma bem galante.

A garota olha para ele demonstrando interesse e argumenta:- Você não vai à missa não, hein? Já estamos atrasados, complementa a moça.- Eu tava esperando um convite, retruca ele com um largo sorriso estampado no

rosto.A garota lhe oferece o braço e os dois seguem conversando formalmente, braços

dados, rumo à igreja. Ele diz que seu nome é José Antônio da Silva, mas é conhecido, na fazenda onde trabalha, por Zé Vaqueiro. Menciona também ter outro apelido, sem dizê-lo. Apenas diz com um risinho tímido que é conversa fiada dos amigos. Ela diz se chamar Angélica e que também trabalha em uma fazenda, porém como professora. Angélica fala da profissão com uma pontinha de orgulho. Zé Vaqueiro lembra o episódio do cigarro e diz que um anjo - alusão ao nome dela – precisa andar mesmo é por caminho enfeitado de estrelas.

Quebrado o momento de formalidade os dois prosseguem jogando conversa fora.

Ao findar a missa, Zé pede licença a Angélica e se afasta para conversar com um amigo, ali mesmo na escadaria da igreja. A conversa se resume num convite feito ao amigo para, juntos, irem à zona boêmia, a cujo convite, o amigo estupefatamente exclamou:

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- Deixar uma garota linda daquele jeito, Zé, e ir pra zona! Você ta doido, afirma.

- Mulher daquele jeito é que nem mega-sena. Dá pra carioca, paulista, mineiro da capital, mas a rapaziada aqui do interior não ganha nada não, Zé contesta categoricamente.

0 amigo aceita o convite. Zé se despede da moça, marca um novo encontro e os dois amigos partem pra gandaia. No trajeto, o amigo procura alertar Zé sobre o perigo de uma doença nova que apareceu e que a pessoa pega tendo relação com mulher, a tal de AIDS.

- Tem cura não Zé, mata mesmo. É preciso ter muito cuidado, principalmente você que não gosta de usar camisinha. O amigo fala de forma autoritária.

Zé replica que isso é doença de mulher de cidade grande, que tem muitos clientes, essa raparigada que anda até passando fome por falta de freguês não pega esse tipo de doença não.

Alguns dias se passaram. Zé retorna à cidade para avisar ao patrão que estava fal-tando alguns produtos veterinários na fazenda e aproveita para comprar algumas coisas de uso pessoal. Ao passar pela Praça do Mercado, um aglomerado de pessoas chama-lhe a atenção e, curioso como é, se aproxima para conferir. Tratava-se do esclarecimento feito por algumas senhoras sobre a contaminação da AIDS e os possíveis métodos de prevenção. Zé ouve com um certo desdém, mas permanece ali até ao final da palestra. Recebe um kit contendo camisinhas e folhetos informativos e volta para a fazenda.

Após a maciça divulgação através do rádio, jornal, televisão e, até mesmo, por vo-luntários nas praças das cidades, Zé confessa estar receoso com a doença e declara aos amigos estar fazendo uso da camisinha.

A Sol Nascente estava em festa, pois chegara à fazenda o filho do patrão, médico residente em Belo Horizonte.

Dr. Marcos, filho do patrão, é uma pessoa muito amável e muito querida por todos os funcionários da fazenda, embora seja muito exigente e detalhista. Quando chega à fazenda nada passa despercebido ao seu olhar. Vistoria das pastagens aos currais, da sede da fazenda aos alojamentos dos vaqueiros. Conversa com os empregados, quer saber tudo nos mínimos detalhes, pois suas visitas são semestrais.

Encontra Zé cuidando de seu cavalo favorito e agradece. Parabeniza-o por ter visto em seu quarto os panfletos e as camisinhas. Dr. Marcos conhecia bem a mulherenguice do vaqueiro.

Zé relata ao doutor que no início foi difícil, mas agora já está acostumado, fala ainda que agora está usando o preventivo diariamente:

- Agora eu só tiro a camisinha pra mijar e comer mulher, diz ao doutor.Dr. Marcos olha para ele com um misto de humor e apreensão. Pergunta ao va-

queiro por que não está fazendo uso correto da camisinha, se ouvira a devida explicação e recebera os folhetos informativos.

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Zé argumenta que ficou meio vexado em escutar aquela senhora séria falando daquele assunto. Quanto aos folhetos, declara que para ele não têm nenhum valor, pois é um homem sem leitura, finaliza.

Dr. Marcos sai murmurando para si mesmo:- Será necessário cuidar melhor dessa gente. É preciso alfabetizar e conscientizar

essas pessoas, argumenta tristemente.Zé fica ali parado, cabisbaixo, entristecido e envergonhado. Trinta dias depois procura

o patrão para acertar contas. Diz que vai procurar outro emprego, pois está cansado de lidar com o gado.

Mudou-se para Sertãozinho, São Paulo. Teve sorte, arrumou um bom emprego. Matriculou-se numa escola primária e concluiu o segundo grau cursando supletivo. Ga-nhou uma bolada na mega-sena, tornou-se fazendeiro e casou-se com uma linda mulher. Morreu aos quarenta e cinco anos, vitimado pela AIDS.

Deixou mulher e um casal de filhos. Provavelmente infectados.

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orávamos em uma cidade pequena. Mesmo na sua pequenez parecia, pra mim, uma garota de dez anos, uma cidade cheia de possibilidades. Eu e meus amigos vivíamos a cometer peraltices pela vizinhança. Alexandre, Priscila e Thiago, naquele tempo, eram os companheiros ideais para peripécias .Formávamos o quarteto da bagunça! Tudo que acontecia de errado na vizinhança, todos sabiam que tinha o nosso dedo.

Em um belo domingo de dezembro, nós quatro nos encontramos para decidir o que seria feito naquele dia. Resolvemos dar uma volta pelo bairro Carioca, um bairro residencial, para vermos as lindas casas que estavam enfeitadas para o Natal. Assim que entramos no bairro, encontramos uma coruja morta no chão.

- Nossa que sinistro!!! Vamos arranjar uma caixa de papelão e colocá-la dentro. Disse Thiago.

Todos nós adoramos a idéia! Afinal era uma oportunidade da turminha aprontar de novo. Alexandre foi conosco até a casa de sua tia, que era costureira, pedir uma caixa emprestada e também foi lá que Priscila e eu tivemos a idéia de pedir uns retalhos pra vestir a coruja. Voltamos ao local e finalmente conseguimos vestir a coruja com seu novo traje vermelho e preto e colocá-la dentro da caixa. Ficou uma gracinha, mas ao mesmo tempo, aquele animal morto causou em mim uma sensação desagradável. A roupinha ver-melha e preta não lhe caía muito bem. Não consigo explicar o porquê deste sentimento, lembrei-me de minha avó e de todos os seu dizeres sobre mau agouro. Momentaneamente estremeci, quis voltar para casa e desistir da travessura, mas meu orgulho de garotinha ariana gritou mais alto e novamente me entreguei ao prazer da aventura.

- Tudo pronto! O que vamos fazer com essa coruja se hoje é domingo e todas as casas estão fechadas ? Não tem ninguém na rua! - Disse Alexandre.

- Mas o que você está pretendendo?- Questionou Priscila quase entendendo o que Alexandre queria dizer.

- Quero assustar alguém, ué!!!Caímos na risada! ( Era impressionante como éramos criativos naquela época. Às

vezes me pego a lembrar o quanto destemida eu era. Corajosa, esperta, qualidades que muitas vezes sinto falta hoje em minha personalidade...) Ficamos pensando o que iríamos fazer. Então tive uma idéia:

- Vamos andar pelo bairro com a caixa e a casa que estiver mais bonita com seus enfeites receberá nosso presentinho...

- Ótima idéia, Lídia!

8ºLUGAR

Lídia Noronha Pereira Curso de Letras de Campanha

Um macabro presente de Natal

M

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Nós quatro vibramos !Começamos então nossa busca. Andando pelo bairro, vimos muitas casas bonitas,

mas nada que chamasse nossa atenção. Quando estávamos no fim do bairro, vimos uma casa maravilhosa, enorme, toda coberta de pisca-piscas. O que mais nos chamou atenção foi um lindo sino de ferro pendurado no portão, louquinho para ser soado por nós...

- Achamos a casa!!! Gritou Priscila.- Silêncio! Alguém pode te ouvir! Vamos planejar quem vai fazer o quê. - cochichou

Alexandre.Conversamos um pouco e então ficou decidido que eu colocaria a caixa na casa,

Priscila e Alexandre vigiariam e Thiago tocaria o sino. Nós nos juntamos, contamos até três e todos tomaram seus postos. Coloquei a caixa e Thiago tocou o sino com toda força que tinha. Foram cinco ou seis minutos de pura adrenalina. Corremos uns cinco quarteirões sem parar. A casa era tão bela e poderosa com todos os seus ornamentos que não tivemos coragem de voltar e ver o que tinha acontecido com quem tivesse aberto a caixa. Estávamos todos em êxtase. A adrenalina fazia bem ao meu corpo. Passada a sensação de apreensão, dava aquela moleza gostosa...Ao final desta maratona, somente nos entreolhamos, demos uma risada sarcástica e cada um seguiu para sua casa com uma expressão de gozo estampada na cara, estava na hora do almoço.

Cheguei em casa e minha mãe zangada disse:- Já passou do meio-dia, onde você estava? Por que está vermelha desse jeito?

Aposto que estava aprontando!- Fui ver as casas do outro bairro que estão enfeitadas para o Natal e quando vi que

já era mais de meio-dia, vim correndo... – respondi insegura.Minha mãe desconfiada disse:- Sei! Então à noitinha, nós duas vamos dar uma volta de bicicleta e aí você me

mostra a casa que ficou mais bonita.Sem pensar muito, concordei.Quando deram sete horas, nós duas saímos de bicicleta. Andamos um pouco e

chegamos no bairro Carioca. Vimos todas as casas e quase no fim do bairro, minha mãe perguntou:

-E aí filha, qual é a casa que você mais gostou? Neste momento já estávamos em frente a tal casa do sino.Senti um frio na

barriga. Paramos e eu disse:- É esta aí.- Realmente filha, a casa do prefeito é sem dúvida a mais bonita!- Prefeito?! - Quase caí da bicicleta...De repente apareceu uma mulher bonita, mas com uma expressão triste acenando

para minha mãe.- Esta é a Primeira Dama minha filha, foi minha colega de ginásio.Percebi que a mulher estava vindo falar com minha mãe e pela cara dela, imaginei

que já sabia de tudo. Fiquei muito nervosa e rapidamente falei:- Mãe, vou indo na frente, combinei de ir na casa da Priscila...- Mas Lídia, quero que conheça a Primeira Dama!Pedalando rápido disse:

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- Não! Fica pra próxima!Fui correndo chamar o Thiago pra contar que supostamente já tinham nos desco-

berto.- Nossa! Se meu pai souber que estou aprontando de novo vai me colocar de castigo

por seis meses! Sem contar os tapas!- Nem brinca Thiago! Minha mãe me esgana!!!- Ai meu Deus! Eu prometo , juro que nunca mais perturbo ninguém se meu pai

não descobrir sobre a coruja...- Eu também juro, meu Deus! Tomara que minha mãe não descubra nada. Se isso

acontecer juro que não vou pregar peças em mais ninguém! Segundos após nossas súplicas, minha mãe chegou e foi logo chamando Carlos, o

pai do Thiago. Ele saiu na janela rapidamente.- Carlos, acabo de vir da casa do prefeito e você nem imagina o que a esposa dele

me contou?Carlos olhando com cara brava para nós dois disse:- Acho que posso imaginar...Estas crianças aprontaram de novo, né?Thiago e eu quase chorando, tremendo de medo e preparados para o pior, sentamos

no passeio e abaixamos a cabeça para ouvirmos as primeiras broncas...- Não tem nada haver com as crianças! Ela me contou que o prefeito sofreu um

grave acidente esta tarde!- Não brinca!!- Pois é! E estão achando que foi coisa feita, macumba da “braba” mesmo! - Macumba?!- É! Hoje meio-dia em ponto e com o soar de sete badaladas do sino da própria

casa, acharam uma coruja amarrada a um pano vermelho e preto dentro de uma caixa de papelão...

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ra ainda muito cedo e a notícia correu. Os meninos foram a galope para o Largo do Herdino:

– O circo chegou! Aglomerados, com os olhos arregalados e brilhantes, os meninos acompanhavam

tudo, observando cada detalhe. Casas de lata e madeira, paus espalhados por todo lado, cordas emaranhadas. Aquilo parecia uma grande bagunça e, no meio daquela confusão, os meninos tentavam adivinhar a utilidade de cada peça que montaria o encantado quebra-cabeças. Queriam entender para reproduzir e imitar o encanto e a magia do circo.

Eles iam de um lado para o outro e aguardavam o início da montagem do circo. Mas ninguém parecia preocupado com a ansiedade deles. O dia ia passando e tudo permanecia exatamente no mesmo lugar. Ninguém tinha pressa de armar o circo.

As mães apareciam: vocês precisam ir pra casa, têm aula. A lembrança não agrada-va muito, eles queriam ver como tudo aquilo se encaixaria. Mas não são nem ouvidos e seguem as mães, rumo a casa e depois para a escola.

Na sala de aula, a ansiedade continua. Enquanto a professora fala, a cabeça vaga e vai parar exatamente ali, no largo, onde aquele amontoado de pau e pano aguardava para tomar forma. A voz da professora até irrita.

– Estudar pra quê? Por que não ser livre e fazer só o que a gente quer? – pensa-vam.

A professora continua falando. Eles parecem ausentes. Será que ela sabe o que é um circo? Será que tem curiosidade de saber como se monta um circo? Não, parece que não está nem aí. Abre um livro, escreve no quadro, fala, grita, bate na mesa e pede silêncio.

– Estranho, é ela quem grita e pede silêncio pra nós? Por que não nos manda ir embora pra ver o circo? – comentavam entre si.

A cabecinha vaga, viaja, o pensamento vai longe.O relógio parece que travou, as horas não passam e o tempo parou no momento

em que entraram na escola.O sinal bate. Fim de aula? Que nada! É apenas o recreio. Correria, grito, fila. Alívio,

falta pouco pra sair e ver como está o circo. Que bom! Agora poderão ver o circo, o palhaço, o trapézio, o malabarista e a corda bamba. Será uma festa!

Mas é hora de voltar ao castigo diário, sentar na mesma cadeira; é a única saída.

Adirson Teles FaE/CBH/Uemg (NF IIA)

9ºLUGAR

O Circo chegou

E

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Enquanto ficam ali, parados, ouvindo a voz da professora que fala sem parar, no largo o movi-mento é grande. Leva pau, traz pano, fura bura-co, amarra uma coisa na outra, finca estaca, bate ferro, estica arame...Ufa! Que trabalheira!

O circo é mesmo uma grande surpresa. Dormem e, quando acordam, lá está ele. Vão para a escola e, ao voltar, já podem ver aquela bagunça tomando forma...

Ah, como é bom ter um circo na cidade!A aula prossegue. Entender? Impossível.

Nem escutam o que a professora fala. Mas ela parece não dar confiança à ausência dos alunos. Mesmo assim, fala para as paredes.

Olham os relógios. Falta pouco. A aula vai terminar. O sino vai bater. Fecham os cadernos, guardam os lápis, borrachas e réguas, jogando-os de qualquer maneira na sacola. Os alunos já estavam preparados para sair quando bateu o sinal.

Que bom, que alívio! Poderiam ver o circo novamente!Andam rápido, correm, respiração ofegante. Os mesmos olhinhos que admiraram

o surgimento súbito do circo se espantam ao ver tudo sendo montado como num passe de mágica. O monte de pau, corda e pano tomava forma, um grande barracão de lona estava sendo armado no meio da rua, no Largo do Herdino.

Os curiosos logo entraram debaixo pra ver o que havia dentro, e os comentários encheram o recinto de forma ruidosa, tomando liberdade e falando em voz alta, todos querendo comentar ao mesmo tempo, uma tremenda algazarra.

O dia findava e ficar ali seria inútil. Vontade de ir para casa ninguém tinha, mas era preciso. Se possível fosse, até levariam junto o circo, temendo uma fuga repentina. Assim como ele surgiu, poderia também desaparecer.

Os dias que se seguiram foram um pouco mais tranqüilos e agora todos aguardavam a estréia, o grande espetáculo.

Logo pela manhã as arquibancadas estavam repletas de crianças, e a proposta veio logo: quem conseguisse palha para o picadeiro, ganharia um ingresso.

Imagine! Ingresso de graça! Era demais!A galopeira foi em uma única direção: à casa de palha de arroz de dona Zilica. Será

que ela daria a palha? Não se sabe, é preciso tentar. Afinal, vale uma entrada no espetá-culo de estréia.

Chegam lá. Um olha para o outro, esperando quem vai pedir a palha. Alguém co-meça, o outro termina, ambos gaguejando, com medo de uma repreensão. Ela olha um por um e permite que a palha seja levada para o circo. Retribuindo a bondade de dona Zilica, enchiam-na de elogios, enquanto colocavam a palha nos sacos.

Mais uma vez a correria, e os meninos entram na palha de arroz, fazendo levantar um enorme poeirão. Enchem os sacos e voltam para o circo.

Um despeja a palha, recebe o ingresso e sai. Com os outros acontece o mesmo.

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Um monte de palha forma-se no meio do picadeiro. Os pés cuidam de espalhá-la e deixar tudo pronto para a grande noite.

Como se não bastasse a boateira e o carro de som que circulou pela cidade, o palhaço também saiu, em pernas de pau, arrastando a pequena aglomeração.

– Hoje tem, hoje tem! – gritava.– Tem, sim senhor! – respondiam.– Hoje tem espetáculo...? – continua.– Tem, sim, senhor! – gritavam.– Hoje tem marmelada? – insistia o palhaço.– Tem, sim, senhor! – respondia a meninada.Entravam numa rua, saíam em outra e muitos aderiam à caminhada, rodando feito

baratas tontas por todas as ruas da pequena cidade.À noite vão ao circo. O som que sai do alto-falante convida para o espetáculo com

anúncios repetitivos, acompanhados por uma música arranhada. Uma placa com letreiros coloridos e luminosos piscava, clareando a porta de entrada.

Forma-se uma aglomeração. Uns entram, outros não. Os meninos vão se empurrando porta adentro, depois de entregar o ingresso recebido naquela tarde.

Lá dentro a ansiedade volta. Toca uma música, termina, toca outra e outra. O es-petáculo vai começar, diz o locutor. Mas nunca que começa, já estão esperando demais, pensavam os pequenos ansiosos.

Finalmente, o alto-falante é desligado, alguém aparece no picadeiro e anuncia o início do espetáculo.

As gargalhadas explodem com as palhaçadas de Pipoca. O trapezista causa apre-ensão, mas depois, alívio. O malabarista parece que vai falhar e o equilibrista pode cair a qualquer momento. Ao fim, tudo é festa e todos se divertem a valer, com estrondosos aplausos e gargalhadas estridentes. As palmas das mãos ficavam vermelhas de tanto ba-terem umas contra as outras.

É fim de espetáculo. No dia seguinte, a mesma rotina. Mais apreensão, ansiedade e alegrias. Mais lutas para conseguirem entrar de graça no circo. Arranjariam alguma coisa que pudessem levar que valesse uma entrada. Venderiam pipocas, pirulitos ou doces, assim, poderiam circular por todo o circo sem precisar pagar a entrada.

O circo altera, por uns dias, a rotina da pequena cidade, e o Largo do Herdino fica iluminado por todo aquele tempo.

Mas chega o dia de partir e, assim como surgiu, repentinamente o circo desaparece, levando junto a alegria e a fantasia da meninada, que volta a se concentrar nas aulas e a perceber que os circos vêm e vão, mas eles permanecem ali, até que outro circo apareça e tudo recomece.

O circo foi embora, restaram apenas os buracos, onde foram fincados os paus, e o círculo de palha amassada no meio do Largo, que serviu de picadeiro.

Circo é alegria, fantasia, emoção e entretenimento. A vida é mesclada de tudo isso, porém colorida com as vivas e alegres tintas do grande espetáculo que a infância

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9ºLUGAR

á muitos anos, na extinta cidade de Benfeitos, hoje nordeste dos Estados Unidos, havia um rei chamado Azanor III.

Foi um sujeito muito tirano e perverso. Gostava de guerrear, até mesmo quando seus inimigos não ofereciam perigo algum. Cobrava impostos pesados sobre os escravos. Mantinha várias cidades menores sobre seu domínio e poder.

Num belo domingo, resolveu passear sozinho pela floresta de Cidane. Fidélis, chefe dos empregados da corte, advertiu:

- Alteza, Cidane é muito perigosa. Dizem que lá vivem os leões, as onças e os rebeldes.

- Não quero saber. Eu vou. Não tenho medo. E você irá comigo juntamente com mais dez homens fortes.

Logo pela manhã, a caravana de passeio deixou a cidade. Levaram muita comida e bebida para o rei e a rainha. O príncipe herdeiro resolveu não passear para cuidar dos afazeres do palácio.

Duas horas depois chegaram na floresta. Muitos pássaros, árvores grandes e robustas e um belo rio. O rei disse:

- Fiquem de tocaia ao meu redor. Quero descansar, comer e beber. Não mexam em nada. Se quiserem comer, revezem em busca de frutas.

O rei comeu, bebeu e dormiu. De repente, Fidélis o acordou às pressas:- Alteza, alteza. Essa região é muito perigosa. Vamos embora!- Não me perturbe, seu demente! O rei resolveu mergulhar. Fidélis, bastante preocupado, gritou:- Alteza, alteza. Saia do rio! Dizem que os jacarés são vistos constantemente nestas

margens.O rei, tomado por ira, retirou-se xingando e chamando seu empregado de demente

e incompetente. - Eu já disse para não me importunar. Fique calado e me deixe descansar senão...Mal acabara de falar surgiu do meio das árvores um leão enorme com patas assus-

tadores e dentes afiados. O rei então caiu em si e disse: - Fidélis, mande um dos homens fortes se jogar sobre o leão. - Mas Alteza, o leão o devorará! O rei insistiu:

O Passeio do Rei

Júlio César dos SantosFaE/CBH/Uemg (NF VIA)

H

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- Faça o que eu mando! Fidélis chamou um dos homens, pai de três filhos e fiel ao rei desde a infância. Em

sua mente, lembrança da família. Em seu coração, a dor de saber que morreria de uma forma tão trágica. Em sua ação, obediência ao rei. O homem jogou-se por sobre o leão e foi devorado em minutos. Enquanto isso, a comitiva fugiu. Neste instante apareceram mais três leões. O rei disse:

- Fidélis, já sabe o que fazer! E mais três homens morreram em honra ao rei. A comitiva que, nessas alturas

não sabia o caminho de volta, fugiu para o outro lado da floresta. Em seguida, apareceram mais dez leões.

O rei não hesitou. Mandou o restante dos homens se jogarem sobre os animais e fugiu juntamente com a rainha e Fidélis para a parte alta da floresta.

- Aqui estaremos seguros, disse o rei. - Alteza, não podemos ficar aqui. É muito perigoso. Vamos continuar fugindo. - Estou cansado e preciso recuperar minhas forças. Por que não me alertou

sobre os leões, seu demente? - Mas, eu... - Você não foi claro. É incompetente. É um péssimo empregado! - Alteza, eu tentei avisá-lo mas o senhor não quis compreender. - Acabou de desacatar o rei, seu insano. Por isso mesmo vou cortar um pedaço

de sua orelha e nunca mais me dirigirá a palavra com desrespeito. O rei tomou em suas mãos uma faca e cortou um pedaço da orelha de Fidélis. A

rainha concordou com a posição do marido. Fidélis ficou firme por fora, mas por dentro chorava. Sempre foi fiel ao rei. Nunca desobedeceu uma ordem sequer. Sua família é submissa e paga os impostos em dia. Já salvou o rei em três batalhas violentas.

- Quando voltarmos cortarei a orelha esquerda de cada membro de sua família, seu demente.

Ao descerem da parte alta da floresta foram surpreendidos por uma tribo de rebeldes que os captu-raram. Dessa vez não teve escapatória. E o rei começou a gritar.

- Solte-me seus igno-rantes! Eu sou o rei de vocês! Posso enchê-los de tesouro! Liberte-me e eu lhes darei uma cidade!

Havia um pequeno problema: os rebeldes não compreendiam a língua do rei. Cada vez que a alteza

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esbravejava eles gritavam e cantavam: - Zundundá! É manjá! Zundandá! É manjá! Zundundá! É manjá! As rebeldes dançavam e brincavam com as jóias da rainha. Esta chorava e gritava

sem parar. A cada irritação da rainha, as rebeldes cantavam: -Utererê! Zundundá! Abererê! Ulalá! Fidélis, firme e resoluto, disse: - Alteza, fique tranqüilo. De nada adianta o desespero. Se comportarmos como

pessoas educadas, quem sabe eles nos soltarão? - Nem pensar, seu demente! Eu vou gritar, gritar e gritar até que eles me sol-

tem! Ao chegarem na sede da tribo, os rebeldes amarraram os três. Concomitante

a isso, trouxeram um panelão e acenderam uma enorme fogueira. Alegres e vibrantes, cantavam:

- Zundundá! É manjá! Zundundá! É manjá! E as criancinhas balbuciavam: - Dundundá! É papá! Dundundá! É papá! O rei, a rainha e Fidélis, estarrecidos, não sabiam mais o que fazer. No panelão

eram colocados folhas, legumes e frutas. Fidélis disse: - Alteza, quero pedir desculpas pelos meus erros. Não pretendo morrer com

mágoas no coração. Perdoe-me se alguma vez lhe faltei com desrespeito. Ficarei muito feliz em receber de parte da alteza, mesmo sem merecer, um indulto para me remir diante às pessoas.

O rei sequer prestou atenção nas palavras de seu empregado e continuou cada vez mais apavorado.

Os rebeldes colocaram a rainha no panelão. O rei disse: - Tá bom de comida, ela é gorda. Me soltem! Ao tentarem levar o rei, Fidélis disse: - Levem-me. Ele é o rei de Benfeitos. Eu sou apenas o chefe dos empregados.

Quero morrer no lugar da alteza. Poupem a vida de Azanor III. Ele tem filhos para criar.

De nada adiantou. Jogaram o rei no panelão. Em seguida pegaram Fidélis. Mas, eis que viram sua orelha cortada. Conforme a tradição alimentar dos rebeldes, é proibido comer presas com algum tipo de deficiência física. Então, em decisão unânime, soltaram-no. O rei gritava de dentro do panelão:

- Por quê? Por quê? Por quê? Fidélis voltou para Benfeitos e contou tudo para o príncipe. Este foi coroado rei.

Com tudo isso, Fidélis pediu dispensa dos trabalhos da corte: tomou sua família e mudou

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X CONCURSO DE CONTOS

C o m i s s ã o J u l g a d o r a

Agostinho Vieira Neto

Gláucia Maria Jorge Santos

Marília Sidney Mendonça

Santuza Abras

Tomaz de Andrade Nogueira - Presidente

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1ºLUGAR

noite era assim, meio sombria. A chuva, muito que chovia. Batendo assim naquele chão de pedras da rua que subia. Tudo deserto, com vento que era meio de leve, um pouco de gelado. Caminhava que ia indo numa incerta pressa, ar ofegante. Temia era que me pegasse um resfriado – apesar de muito que gostava de andar assim, perdido, na chuva, meu costume. À noite era que nem se fazia recomendável. Entrei numa capelinha. Uma fraca luz esboçava um clarãozinho lá na frente. Segui-a, buscando fugir daquele ar maçante, pesado, de noite muito densa que se estava fazendo. Depositei a capa no encosto do primeiro banco e segui curioso. A verdade daquela cena me fugia. De tudo, até do que local que me encontrava. Nem não observei se era católica ou se se tratava de uma igreja de crente. Umas poucas pessoas se aglomeravam em torno do altar onde velavam algum corpo. Aquilo muito que mais me arrepiou, que parecia noite de mau presságio. Tudo no muito escuro. Nem não me importei e já me ia sentar no fundo, esperando a chuva, quando avistei um senhor que se portava mais afastado. Ar curioso que apresen-tava no seu jeito de contemplar aquelas pessoas, o caixão, o ar, o nada... Riso tímido, assim, todo circunspeto de mistério. Cabelos que eram, muito brancos de algodão, um pouco escassos. Seu corpo só um pouco encurvado da idade, teimando no porém de se apresentar certo vestígio dalgum vigor. Aproximei-me e quis tomar informação sobre o defunto, as pessoas em volta, quem seriam.

- Aprochegue-se aí e caça jeito de se assentar. Convidou meio manso, meio ríspido. Nem palavra eu não disse, só ligeiro obedeci, meio bobeando. Ficou ainda algum incerto tempo naquele olhar meio perdido no nada. Eu olhava sem jeito, querendo, mas sem tento de nada poder falar. O velho esboçou semblante de sorriso, de leve, e nisso foi, até dar uma gargalhada mais sonora, subindo aos poucos, no gradual. Olhei em volta, mas ninguém parecia ter se incomodado. Quando, porém, voltei o olhar, o velho muito que chorava. Fiz gesto de buscar aproximação, por amor de oferecer algum consolo. Daí ele me conteve, nem quis, e breve começou a narrar.

Aquele que ali estava, mortinho da silva, sendo velado, era um seu filho – Seu Geraldo Veiga. Geraldo Veiga era o último que se ia daquela geração nobre e conturbada. O velho dizia: a dinastia amaldiçoada dos Veiga. E se ria discreto parecendo se fazer suspense. Mas daí contava sempre e muito. Eu muito que me interessei na história e nem pensava mais na chuva lá fora. Seu Geraldo Veiga, bem dizer, morreu em litígio com uns parentes pela herança das muitas posses de Seu Benedito da Cunha Veiga. Um seu primo, Joaquim – o Quinho – esse foi o mais terrível nas disputas. Já morrera há algum tempo, mas muita

Fábio Santos Bispo FaE/CBH

A Dinastia Amaldiçoada dos Veiga

A

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maldade cuidava-se que já tivesse feito com olho de cobiça na riqueza de Seu Benedito Veiga. Desde antes, o velho ainda vivo, esse Quinho ele nem apresentava de ter respeito nenhum. Ninguém não soube direito, mas diz que foi o Quinho que teria provocado a morte de Seu Benedito. Esse Quinho, mulato miúdo que antes, em jovem, sempre fora muito forte, troncudo e baixinho. Foi, porém, definhando-se e perdendo o vigor no pecado da cobiça. Já faz bem uns vinte anos da morte de Seu Benedito Veiga e só agora é que a paz parece ter vindo reinar na dinastia amaldiçoada dos Veiga. No caixão desse Seu Geraldo Veiga.

O velho só estava só que contava, e, naqueles volteios todos, muito que me dei-xava ansioso. Mas, pois, daí ele se esclareceu um pouco. Seu Benedito Veiga havia era sofrido um enfarto e morrido. Já há muito tempo, que nem ninguém mais no assunto tocava. O velho é que muito queria pôr um porém nisso, repetindo-se no muito. Dizia que seu Benedito Veiga já andava desgostoso com aquele seu filho, o Quinho, pela sua muita usura. O cujo não buscava meios de ser como o pai, de ser, tipo assim, trabalhador firme mesmo, quente na labuta. Pois foi assim que Seu Benedito Veiga havia construído seu imperiozinho na cidade de Belorizonte. “Não tem mineiro de sangue, da terra, meu filho, que não tenha ouvido falar nos Veiga e nesse meu irmão, Seu Benedito Veiga”. De fato, naqueles tempos, só não chegou a Prefeito por que não cabia de se dar com esses trem de política. Era muito vigoroso de ambição. Com ele era tudo no pronto, no aqui e agora, pegar ou largar. Não suportava de ficar nas conversas todas que muita questão de política dá de se exigir. Paciência nenhuma que não tinha. Com ele era tudo a verdade seca, no duro. Agora, o que ninguém não sabia, era o muito segredo que guardava. Eu tão somente pegava de ter consciência dos pormenores de sua vida, de suas angústias.

O velho muito me dizia, se firmava quente nas idéias, mas não dava de provar nada no concreto. Apenas dizia que para ele nem dúvida não ficava de que o Quinho foi que matou o pai, esse cabra de muito valor.

Quinho teve no firme a sua paga. Dizia o velho e repetia: “aqui se faz, meu filho, aqui se paga”. Mas muito também deve de se ter desgraçado na outra vida, nos infernos do Coisa-Ruim. Ele nem não fazia nada enquanto Seu Benedito Veiga era vivo. Viveu sempre de malandro, vagabundo que só, tentando acabar com o que meu irmão havia construído. Tinha uma família lá para os lados do Barro Preto, outra no Carlos Prates. Ainda por cima, sustentava uma vagabunda que até tinha um apartamento em Contagem. Essa tinha ares de dama, mulher de vida fácil. Bonito que ele nem não era, mas andava se amostrando com a riqueza do pai, como se sua fosse, isso muito fazia. Seu Benedito Veiga nunca que tolerava isso, homem direito, valente que era. Acabou levando uma vida quase desgraçada pela riqueza própria. Eu já desde muito, a gente ainda criança quase, já lhe dizia, que o apego forte no dinheiro era a raiz de tudo quanto é espécie de desgraça. O velho isso dizia e sustentava, de ter preferido viver à parte da riqueza do irmão, no seu suor de mineiro certo. Nunca que cobiçou de ter luxos, vivia era quieto no seu simples. Tinha sua casinha própria, muito sua, ali perto, no bairro Cabana. Muito que já tinha feito por ela: fogão de lenha no quintal, todo um telhado colonial, serpetina, que era pra se ter água quente no inverno e inda assim fazer economia de energia.

O velho ia, ia e sempre que se perdia na história, mas nem chorava mais não. Apresentava

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agora, tipo um ar de raiva, algo de muito contido. Falou com insatisfação, xingando. Quando o irmão morreu foi uma só e extrema confusão. Daí que se teria espalhado toda a maldição. Porque quando Seu Benedito Veiga era vivo, mesmo já muito velho, ele ajuntava em torno de si todo esse mal e tudo controlava certo. Acabou foi deixando a maior parte de seus bens para Seu Geraldo Veiga: os armazéns na Santos Dumont, quase que um inteiro quarteirão de imóveis na Paraná, uma mansão que era quase uma chácara no Luxemburgo – comprou foi de um loteamento de uns Scharlet, descendentes europeus. Enfim coisas muitas, inumeráveis, de nas contas se perder. Até também deixou o controle das ações de sua empresa. Pois ele deixou no claro que Seu Geraldo Veiga seria o seu sucessor, controlaria seus negócios e faria bom usufruto de suas riquezas. Ele muito que confiava em Seu Geraldo Veiga, tinha esperança de que ele mantivesse vivo o bom nome dos Veiga, que talvez até expurgasse aquela maldição.

Aliás, foi mesmo com ele que aquilo tudo teve sua marca, se Seu Benedito Veiga tivesse tomado outro rumo...

E o velho enxugava uma lágrima que tentava rolar, limpava o pigarro da garganta, um silenciozinho, e continuava.

Pois como ele foi prosseguindo, o tal do Quinho acabou ficando mesmo foi com sua casa, onde já residia e o carro que já também era mesmo seu. Nada mais. Entrou num de-sespero. Ele que contava com a herança toda do pai. Já estava mesmo era ficando velho, mas nem se enxergava de jeito nenhum. Não era homem de se gastar na labuta, queria era vida desregrada. Daí que começou essa rixa toda, que se arrastou por esses vinte anos. Coitado

de Seu Geraldo Veiga! Tinha vida tão tranqüila, no simples, só vivendo com sua senhora tão boa. Pois o velho dizia que eles eram tão assim, sabe, de diferente, que nunca nem tinham tido nenhuma rixa. Eram na mais perfeita paz de respeito. Pode mesmo ser que também nunca tenham sido assim, nas suas vidas de casados, de uns sentimentos muito soltos, muito de intensidade. Partilhavam era uma alegriazinha mansa, na paz, já com os meninos todos freqüentando o Instituto. Aí vai que, de repente, têm nas mãos todo aquele mundo para controlar. Seu Geraldo Veiga, simples que era, só que competências nenhumas não lhe faltavam não. Ele tinha muito era poder de ser igual o pai. E era sim, de um certo modo, apesar da vida simples que acabou levando. Teria mantido tudo isso no mais perfeito crescimento, só conquistando esses espaços todos dessa Belorizonte. Só que o maldito do Quinho e o povo dos lados dele não deixaram mais o Seu Geraldo Veiga dormir na merecida paz dos filhos de Deus. Muito que azucrinavam, avacalhavam os negócios. Rios de dinheiros foram pros tribunais, parar nos bolsos de juízes e advogados. Eles, no certo, pra não me caber risco de mentir, eles tinham sim alguma razão – o velho ponderava. “Loucura de Seu Benedito, de ter deixado tudo pro Seu Geraldo...”

Esse Quinho mesmo que não prestava. Ele deve de ter sido o filho ruim que o

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Cão arrumou pro Seu Benedito Veiga. O quinhão de peste que lhe cabia. Mire e veja, se é exagero – perguntava. O cujo mandou uma vez, bem dizer uns jagunços arrumar de disparar uns balaços de tiros no carro de Seu Geraldo. Ele rumava para uma fazenda lá pelos lados de Bom Jesus. Havia essa também pertencido a Seu Benedito Veiga. Pois aí foi a desgraceira toda que se deu. Um dos tiros acertou bem a nuca da Verinha, a mais nova de Seu Geraldo Veiga. Isso foi só mesmo do Satanás, não tem outra. Ela era parente do cujo Quinho... imagina se não fosse? Só tinha lá pelos seus quinze, dezesseis na época... Aquele desgraçado, o que foi fazer?... E chorou de novo.

Seu Geraldo Veiga nunca pegou de respirar vingança, que a desgraça havia ainda de ter sido maior. Ninguém não pode provar que o Quinho estivesse envolvido, mas eu dou na certeza. E o velho ainda dizia mais, que ele teria aprontado outras muitas desgraças de crimes contra as empresas e funcionários de Seu Geraldo. Mas o Inimigo o protegia, ele devia de ter mesmo feito algum trato com o Trem. Só acontece que o Enganador também não dá de ter consideração com ninguém, no fim acaba é dando tudo no mais do erro. Pois não foi que o Quinho mais se perdeu? A pois. Ele teve foi que se enfiar nalgum trabalho por aí. Nem se sabe do que foi, mas no certo era que nada com ele era no limpo, no honesto. As famílias dele também acabaram vindo em cima do pouquinho que tinha recebido. Teve que se desfazer de suas coisas para não acabar preso. Veio morrer, o sem-alma, no ano passado, depois de muito atentar os outros. Foi irônico até, porque acabou se morrendo de uma morte que nem ninguém não esperava. Bateu o mesmo carro que comprou com dinheiro do pai, de Seu Benedito Veiga. Pois acabou batendo o carro aí por essas rodovias e morreu no seco, sem mistério nenhum, por suas próprias mãos.

E o sossego veio depois disso? No certo é que não veio. Mais gente de outros luga-res foi que deu de aparecer, pra maior intensificar o litígio. Só agora é que Seu Geraldo Veiga veio ter sua paz, nessa sua morte. E a maldição do dinheiro passou foi para outras mãos, que acredito nem haver de se acabar facilmente. Eu na minha velhice nem quis meia com nada, de mexer com essa raça de gente. Já sofri foi muito na vida, eu no meu canto calado – o velho que resmungava.

Eu caçava jeito de olhar em volta, espiando, ver se reconhecia alguns daqueles que por ali vagavam, se cabia de estarem fazendo parte da história, mas o velho nem se ligava em ninguém, só ligado no assunto da prosa. Vi foi só quando a boa senhora de Seu Geraldo saiu dali, levada passando mal pra sua casa. Já não se via lhe escorrer mais uma lágrima, de tanto que gastou chorando naquela noite de chuva. Quando saiu, pude acompanhar com o olhar e perceber que nem mais chovia. Até que dava sim para eu me retirar, mas o velho já começava outra parte da história. Eu que tanto com ele simpatizei, só cacei tento de ficar ali. Fiquei foi matutando que o velho devia de estar era errado. Aquela mulher que ali saiu, com seus poucos cabelos grisalhos, a ela pode ser que não lhe coubesse mais força de luta, mas tinha os meninos que já beiravam os trinta. Pode ser que não houvessem de deixar barato. Recomeçassem as disputas e podia já se ser prenúncios de mais desgraças, a maldição continuando na família.

Na verdade, Seu Geraldo Veiga nem era filho do velho. Ele bem que o considerava no muito. Tinha mesmo criado o moço desde pequeno, registrado nome e sobrenome,

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e dado aquele seu caráter sóbrio, discreto, de homem simples direito. O que aconteceu ele tudo me contou. E foi lá desde logo do início ainda dessa nossa Belorizonte. Aqui nem não tinha nada, nesse lugar que a gente está. Era tudo mato só, capoeira forte. O Centro sim, lá se estava já desenvolvendo. Muitas obras que se faziam pela Afonso Pena, Rua da Bahia. E ele foi citando muito. Aqui se andava ainda muito a cavalo pelas ruas. Havia carroças que transportavam mercadoria lá para a grande feira. Vinha muita coisa da roça que se produzia e aqui estava mesmo era para ser o grande centro de tudo. Seu Benedito Veiga era um pouco mais velho que ele. Chegavam e trabalhavam muito juntos ali naquela feira, desde muito moços – oito, nove, dez anos. O pai sempre vinha, trazia muito de lá, que produzia e cá se vendia. Era no iniciozinho que a gente veio pra cá. Bem muito no pouco que se vivia. Nem dava mais para ficar na pobreza do isolamento que era lá na roça. Muitos eram os que vinham se chegando para tentar a vida aqui nessa Belorizonte. No início, tudo bem que estava planejado para se ficar centralizado. Até se construiu a Praça da Estação onde muito do movimento se dava. Só que em chegando as famílias, cabiam de irem se espalhando, nem não dava para conter, manter as estruturas do planejado. Como tudo começou a ficar na carestia, todo mundo tocou de irem se instalar para fora da Contorno. E era a cidade se crescendo mais de fora para dentro. As camadas rurais e populares que se iam chegando e fazendo colônias agrícolas como Carlos Prates, Lagoinha, Horto e Santa Efigênia que forneciam produtos de hortas, e frutas, legumes, outras coisas miúdas. Depois tudo acabou se assimilando à cidade.

Mesmo com as dificuldades, época essa dá saudade. De correr por aqui, que nem não se via carro. A gente ficava menino até mais para muito tempo. Só que era menino que já pegava no batente, já ganhava dinheiro, tinha as responsabilidades – com tudo aquilo, parecia mesmo ter motivo, esse velho, de tanta nostalgia. Ele contava que Seu Benedito Veiga sempre era seu maior companheiro. Juntos até construíram espaço de terem fama ali naquela feira. Faziam eles tudo muito no direito e o pai se orgulhava. Aí pegou e contou também como que os dois se pegaram de estar separados. Pois foi por motivo de muito amor que tinha com esse irmão. Pois bota reparo no que houve.

Seu Benedito Veiga, ele sempre foi muito afoito, valente. Fazia sempre tudo sem pensar. Eu é que ponderava sempre nas coisas, a gente acabava era se equilibrando. Eu tentando botar juízo naquela cuca – o velho dizia. Acabou que o Benedito se enrolou com a Maria Lúcia. Era inda bem mais nova que ele, só que estava era mesmo enrabichada. Eu ficava só no longe, botando reparo nos dois. Ela também, toda malina, ficava no pé. A Maria Lúcia era filha de Seu Bento Nogueira. Fazendeiro que também tinha arribado de vim pra cá, tentar prosperar em Belorizonte. Ela tinha quatro irmãos, todos mais velhos. Os quatro se gabavam de uma valentia que contavam muitas histórias na feira. Com peixeira até que andavam na cintura, querendo impor respeito. Eu já assuntei naquilo desconfiado, porque eu via que bem podia tudo vir e se acabar mal. Ditinho, como a gente chamava Seu Benedito Veiga na época, ele não tinha muito juízo nem medo não. Fazia assim, tipo o que desse na telha. Pois não é que ele se arriscou muito? Levou Maria Lúcia pro mato e lhe provou do amor, sem nem não terem casado. Ainda contou rindo. Para ele tudo se arranjava nalguma saída. Pois ele nem foi nos Nogueiras pedir a mão da moça. Continuava era possuindo no escondido, só nas traquinagens, fingindo que era o mais do responsável. Ele faltava assim um pouco do juízo de vez em quando, mas era muito boa pessoa. Eu

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gostava dele – dizia o velho, e continuava advertindo – Naquela época, o senhor imagina que não era assim que nem hoje, tudo no liberal. Uma coisa dessas dava era desgraceira, de acabar-se até em morte.

Certa feita, ele conheceu uma moça que havia acabado de chegar de São Paulo. Era mais velha que ele e muito da esperta. Cuidava dos negócios do pai como se fosse homem. Era mulher de dinheiro mesmo. Pois daí, nem pensou duas vezes e já foi é acertar casamento com a moça. Disse que estava era para mudar de vida. Realizar muito o seu sonho com ela. A raiva era que ele sabia da Maria Lúcia que estava grávida. Ele também sabia que eu gostava dela. Nutria um amorzinho lá no fundo, quieto. Quando Maria Lúcia soube da outra, a Maria Inês, ela faltou de ir se matar. Dava pena de ver como que muito chorava. Ditinho tinha bom coração, conversando disse:

– Pois tu não gosta dela, nego? Fica, casa com ela, que você vai muito salvar. É capaz de os irmãos dela tentarem de vir atrás de mim, eu acabar me lascando. Casa com ela, bom pra ela e pra você, pra todo mundo. Ajuda Maria Lúcia...

O velho disse que, muito relutante, meio na raiva, atendeu ao pedido de Seu Bene-dito Veiga. Era esquisito, mas ele devia, precisava, por amor de evitar a muita desgraça. No mínimo estaria salvando a reputação dos dois. Não cabia de perder tempo. Ele aprontou tudo com os Nogueira e casou-se com a moça. Quando a barriga apareceu, ninguém nem mais tinha nada que falar, o risco já havia era passado. Ele mirava assim no corpo, nos jeitos da Maria Inês, sentia que nem que podia comparar com a Maria Lúcia. Pois o irmão deu mesmo foi nas doideiras. O muito que não podia era esconder nada do irmão: o que todos nem cabiam na idéia de por noção, ele, o Ditinho, sabia-lhe sondar só naquela contemplação do semblante. Pois doido que eu era muito de paixão com a Maria Lúcia – o velho confessava.

Pois foi dessa aventura que nasceu Seu Geraldo Veiga, que aí está. O velho tinha razão de chamá-lo de filho, posto que ninguém tinha consciência dessa história. Era um segredo que só pertencia mesmo a ele, à mulher e a seu Benedito Veiga. Nem a Maria Inês, que veio a falecer ainda nos braços de Seu Benedito Veiga, nem ela não sabia de nada.

Nisso, Benedito Veiga com a mulher, eles compraram um armazém ali mesmo na Santos Dumont. Começaram a lidar com o comércio. Daí só foram mesmo prosperando. Quando foi aquele surto de progresso na capital, de a população muito se aumentar de vez, Seu Benedito Veiga adquiriu mais imóveis na antiga Avenida do Comércio, de onde tocava para o bairro do Quartel. Na época, até os sítios da Colônia Bias Fortes já se iam acabando, dando espaço a um movimento de gente e carro que desen-volvia o lugar e aumentava as riquezas de Seu Benedito Veiga.

No iniciozinho, ele ainda mesmo que se valeu do dinheiro da mulher. Logo, logo, no porém, não mais precisou e até se parece ter pago tudo no dobro, que a família dela se beneficiou muito da riqueza dos dois. Seu Benedito Veiga cresceu junto com a cidade. Muito assustados foi que todos ficaram, de Seu Benedito Veiga haver deixado quase tudo pro

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Seu Geraldo. Com certa razão, pois eles mesmos nem não conheciam nada da história. Daí de se ter havido todo esse desgraçamento.

O velho mesmo ali naquela hora não tinha noção de saber se o que fez foi mesmo o melhor, de ter assumido Maria Lúcia, grande paixão da sua vida. De também se ter guardado no silêncio. Ou então, como que cabia de melhor se fazer justiça?

O velho ponderava ainda naquilo, de ter tido o poder que tudo fosse diferente. Mas eu fitava bem no fundo. Cabia mesmo era de eu saber que ele não daria conta de ver o mundo de um outro jeito. Ele tinha mesmo o amor no coração por aquela mulher, Dona Maria Lúcia, não negava. Ele olhava de longe o corpo de Seu Geraldo Veiga. Acho que se maldizia de não ter sido ele a ter feito o filho. Perdia-se na contemplação. Nutria uma raivazinha do irmão por isso, de meio de cafajeste que foi. Só que era tudo no muito revestido da admiração. Para ele mesmo, o velho nunca que tinha desejado de querer aquelas coisas, aquelas riquezas. Mas só de ouvi-lo ali, eu já acho mesmo que tinha seu prazer certo no sucesso do irmão. Admirava o irmão por ter possuído Maria Lúcia assim, tão no clandestino. Por tê-la abandonado com tanta decisão. Ele é que nunca haveria de fazer isso. Nem coragem não tinha, e nem desejo. Talvez até mais temesse que um dia ainda viesse perdê-la.

– Não está mesmo muito distante de nos irmos amar noutro lugar, no desconheci-do. E é por isso que conto pra você essa história. Deverá de saber o que fazer com ela. Apenas não queria levá-la pro túmulo, que minha morte não seria na paz. Alguém carecia de ouvir. Mais antes um desconhecido, que não há de se desgraçar com isso tudo.

Eu olhava para fora da igrejinha. O dia clareando. Olhava no rosto do velho, como que dizia que já podia ele desistir da vida. Já estava para completar seus cem anos, com algum vigor ainda. Era o Seu Francisco Veiga – o Chico Veiga, que acabou vivendo tudo na sombra do irmão, no simples de tudo. Parecia ter agora findada sua obrigação de cuidar do menino, de Geraldinho.

E eu segui o cortejo sem nem saber por quê. Talvez ainda quisesse saber mais de tudo, de onde isso iria parar. O tempo ainda naquele molhado da chuva, de ar úmido. O vento chorando todo aquele horror no balanço das árvores. Até depois eu fui me desviando e andando sem rumo ali pela cidade. Enquanto seguia, eu pensava assim que tinha também minha muita obrigação, de depositário daqueles segredos todos que aconteceram, ainda no muito antigo dessa cidade, e de tudo que ficava daquela dinastia, como dizia o velho, a dinastia amaldiçoada dos Veiga.

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2ºLUGAR

anhã de junho, Givanildo Couto, um conhecido repórter, foi anunciado pela secretária do Prefeito, Zildinha da Zilda, ao deputado Tutinho, que, de antemão, havia-lhe concedido uma entrevista. Era ele um repórter respeitado, pelo falar sério e responsável, tal qual, Didi, Bronco, Pantaleão, personagens de Renato Aragão, Ronald Golias e Chico Anísio, respectivamente.

Givanildo entrou gabinete adentro, tratando logo de se apresentar:- Deputado Tutinho, meu nome é Givanildo Couto, sou repórter da TV Brasil da Gente,

e gostaria de fazer uma entrevista com o senhor. Todo mês, entrevistamos uma pessoa ilustre, que conseguiu, através de seus méritos, lugar de destaque no cenário nacional. O senhor se prontifica a conceder essa entrevista?

- Com o maior prazer. Estou a seu inteiro dispor – respondeu orgulhoso o nosso protagonista.

- Carlinhos, comece a gravar, vamos realizar o melhor trabalho de nossas vidas – disse Givanildo.

- Tudo pronto, chefe, vamos lá! – retrucou Carlinhos.- Estamos ao lado de uma das mais importantes figuras deste país. Gostaria que essa

pessoa se apresentasse aos nossos telespectadores.- Bem, meu nome é Etelvino Noroaldo da Costa, vulgo Tutinho, sou empresário e per-

tenço ao meio político.- E, por que, Tutinho?- Quando criança, como bom mineiro, meu prato predileto era tutu. Cidade pequena,

você sabe como é... antes de aprender a andar, a própria família providencia um apelido para a gente. Por eu gostar muito desse prato, surgiu esse apelido. Primeiro me chamaram de “tutu”, virou “tutuzinho” e, meu pai prevendo outras derivações menos honrosas, definiu meu apelido para Tutinho.

- Sabendo que o senhor se origina de um meio pobre, como chegou até aqui e como é sua vida hoje?

- É, na verdade, não posso reclamar, tenho uma vida muito boa, bastante dinheiro, filhos e esposa honestos e trabalhadores. Quero dizer que amo a vida. Realmente, minha vida não foi sempre esse mar de rosas. Quando menino, tive de lutar muito. Agarrei com coragem a primeira chance que a vida me ofereceu.

- Quem, ou melhor, o que o impulsionou na carreira política, e quais fatores o

A morte da Pitomba

Cristina Coutinho Tavares INESP – Divinópolis

M

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fizeram prosperar tanto?- Tenho que agradecer por tudo, aos meus queridos Epicentro, Bocudo, um bando

de medrosos; não podendo me esquecer de Pitomba, que foi, e será a principal figura dessa curiosa trajetória. Meu pai, apesar de ser um bom sujeito, não era o que podemos chamar “um exemplo de coragem”. Fomos criados na casa do padrinho de meu pai que, por sinal era o Prefeito de Curupira, uma pequena e ordeira cidade. Um lugar de homens extraordinariamente pacíficos. Para não dizer, um tanto quanto frouxos, a começar pelo Prefeito. Vou contar minha história e dos demais habitantes do lugar.

- Primeiramente, Tutinho, não vejo como um epicentro pode ajudar alguém, estou ansioso para saber como isso aconteceu.

- Bem, tudo começou por volta de l934. Peço que não duvidem do que digo, pois os últimos que duvidaram, quem acertou contas com eles, foi o terrível Bocudo e sua maldição.

- Cruz credo, Tutinho, eu jamais pensei que sua história tivesse um fundo macabro! - comentou assustado o repórter.

- Eis minha história:“A pequena cidade de Curupira amanheceu em silêncio. O galo não cantou, o vira-

lata da Crotilde não latiu. Nem as crianças compareceram às aulas. Era uma manhã de setembro, o Prefeito Coronel Julião, homem íntegro, porém, impetuoso, saiu à rua para reclamar de Cremildo, o padeiro, que não lhe trouxera o pão. Vendo a cidade deserta, sentiu calafrios. Nem mesmo o leiteiro, Juca, entregara o leite. O Prefeito voltou para casa receoso, sentou numa poltrona e começou a matutar:” que diabos está acontecendo com essa cidade? Teriam seus moradores se mudado ou fugido durante a noite, e por quê? E quem sabe um extra-terrestre os tenha raptado? E se todos estiverem mortos dentro de suas casas? Talvez uma peste fulminante. Mas, por que não aconteceu nada comigo e com os meus? Se bem que esses pobres têm mania de se abraçar feito primatas, um pode ter contaminado o outro e, pronto! Tenho que mandar meu criado, Zeca do Toti, para verificar o ocorrido.

Coronel Julião, com toda educação que lhe é peculiar, chamou seu protegido e afilhado que, por sinal, é meu pai:

- Zeeeeeeeeeeeeeeecaaaaa! Sua voz, dessa vez, batera todos os recordes, chegando a derrubar vasilhas na prateleira. Com cara de preguiça, cabelos por pentear, com uma roupa toda amarrotada, denotando ter ele dormido com ela, chegou à porta:

- O senhor me chamou, Padrinho?Zeca, meu pai, era um homem muito gordo, sua preguiça chegava a exalar pelos

poros:- Não! Chamei foi a mula-sem-cabeça, seu filho da morcega!- Cruz credo, Padrinho, eu podia jurar que tinha me chamado!- É claro que chamei, seu cabeça de macaxeira. Vá à Prefeitura e peça aos vereado-

res, a meu chefe de gabinete, aos faxineiros e todo aquele bando de sanguessugas (isso se eles tiverem ido trabalhar e não tiverem sumido, é lógico), para irem às ruas, saber o que está acontecendo com essa gente. Preciso de respostas urgentes. E diga também a eles que se movimentem. Ora essa, eu que sou o prefeito, dou o exemplo, levanto cedo todos os dias, com o dia escuro. Mesmo que haja estrelas no céu, às nove horas já me

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encontro de pé. Vá agora, seu filho de mula, corra...Ele, então, agarrou as alças dos suspensórios com os dedos, levantou a cabeça e, a

passos lentos, caminhou rumo à porta.- Vá rápido, seu bicho preguiça com hemorróidas!- É pra jááááá, patrão! Ao chegar à rua, Zeca, meu progenitor, começou a se apavorar. O silêncio era

profundo. A cidade estava deveras vazia. Nem sei contar onde esteve. Mas, a verdade verdadeira, só ele, e eu, conhecemos. Após esses acontecimentos, ele também sentiu calafrios. Um vento levantava uma fina poeira e, junto ao pó, lá se foi a coragem de nosso fracassado candidato a herói. Dois fortes trovões sacudiram a cidade. Com as pernas bambas, ele balbuciou:

- Me ajuda, Nossa Senhora dos Desencorajados, a voltar para casa. Sou um pobre coitado, frouxinho...frouxinho. Se me ajudar, prometo nunca mais bulir com a Carmela, mulher do Mané Justo, nem vou ficar olhando pelo buraco da cerca a Sinhá do Chico tomar banho de bacia!

E, assim, nosso valente mensageiro decidiu voltar e enfrentar a fúria do padrinho. Chegando à porta de casa, a garganta seca pelo susto, sacudiu o portão, sussurrando:

- Ô padrinho, pa...pa...dri...nho, abra a por...por...por...ta, pelo a ...a ...amor...de...de...Deus!

- Zeca, filho de uma “demonha”, o que foi que aconteceu? Você está com cara de cachorro com diarréia! Fala logo, homem, senão, lhe arranco o couro!

Ele, que era negro, estava cinza. Sua voz mais parecia miado de gato novo. O pa-drinho, aos poucos, tomava consciência da situação em que seu afilhado se encontrava e, era realmente lastimável.

- Seu porco! – disse o padrinho tampando o nariz – vai tomar um banho e depois venha prosear comigo. – Imaginem que foi que meu pai fez...

Bem devagar, com as pernas abertas, o nosso herói foi-se deslocando rumo a sua pequena casa. O mau cheiro tornava irrespirável aquele ambiente.

- Filho de um gambá, filho de anta, filho de uma cadela sarnenta! – gritava o Prefeito, maldizendo a incompetência de seu protegido.

Ao atravessar a porta, foi recebido por minha mãe e eu, e meus três irmãos que, tapando a boca com as mãos, desatamos a rir. Dizíamos em coro: “o pai borrou nas calças, o pai borrou nas calças, o pai...”

Fomos interrompidos pelos berros de meu pai, ameaçando pegar o cinto. Minha mãe, Floristéia, perdendo a paciência com a incômoda situação, gritou com a gente: “sossega! Será que é pouco ter um pai frouxo? Eta homem mole da moléstia, tem medo até de sombra. Vá se lavar, antes que intoxique a gente com tanta catinga!”

Com a cabeça baixa, sem nada responder, foi para o quarto, onde fez sua higiene, ainda que de forma precária.

Givanildo Couto se dirigiu ao entrevistado:E o Prefeito Julião, a quantas andava a vida dele nesse momento da história? O deputado, retomando a palavra, continuou:“Julião andava de um lado para outro, demonstrando impaciência, com a demora do

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afilhado cagão. Floristéia, minha mãezinha, ferroava o marido Zeca, por conhecer muito bem o padrinho Prefeito que não demoraria a iniciar a sessão dos gritos:

- Vá, seu molenga, seu padrinho acaba vindo aqui, as coisas podem piorar...Nessas alturas, Zeca já vestira sua mortalha de missa. Pediu à esposa que lavasse

os excrementos de sua calça predileta, saindo em seguida, abotoando os suspensórios. Com a cabeça baixa de vergonha do padrinho, disse:

- Padrinho, me desculpe, não sou nenhum bunda-mole, apenas faltou coragem para cumprir suas ordens. A coisa lá fora, padrinho, está feia, carece mais que coragem, é preciso uma espingarda e muita munição, senão, sair de casa vai ser suicídio.

- Seu filho de boi-bumbá, por que não me conta o que viu, aí eu avalio se carece eu mesmo, enfrentar o não sei lá o quê?

- O negócio lá fora está mais feio que a mulher do Dirço. Pro senhor ter uma idéia, lembra dos filhos do Juca e da Padia, aqueles dois que trabalhavam na fazenda do Grotão, eram atrasados de cabeça? O senhor achou que os dois tinham que casar para ser o casal mais feio do mundo! E os filhos ganharam dos pais na feiúra?

- Foi realizado o casamento na sexta-feira, treze de agosto, não foi? Lá na grota das Almas. Até me lembrei da cara do padre, quando avistou os noivos, dizendo: “nossa, que par de garruchas, deste cruzamento, só Deus sabe o que vai se suceder, devem ter um filho tão feio, que se passar perto da lagoa vira sapo!”. Pelo que meu afilhado tá contando e, pelas comparações que está fazendo, estou já com os cabelos em pé! O que você viu mesmo, homem de Deus?

- Padrinho, só de pensar no que vi, me borro todinho. Foi horrível! - Fala direto, moleque, estou esquentando a piolhenta...- Quando saí, a rua estava vazia feito algibeira de pobre.... fui andando com toda

aquela coragem que o senhor me ensinou a ter. Estava preparado para esmurrar qualquer besta que eu encontrasse. Meus pés comichavam de vontade de chutar o traseiro de qualquer fantasma. Desci a rua do Capim, entrei na rua da Encrenca, quando cheguei no boteco do Pustema, olhei pras bandas da igreja e me arrepiei...

- O que você viu, seu sapo-boi? Fala logo, seu estrume de bicho-preguiça, o que lhe causou esse medo?

- A praça estava abandonada... deserta, como sua careca...- Zeeeeca!- Perdão, meu padrinho...olhei para um lado, para outro e, como estava em frente

ao bar do Pustema, me deu uma vontade danada de tomar uma timbuca, mas o bar do Pustema estava fechado, então, fui até o bar do Perrengue. Lá tem buchada de bode e uma panelada de testículo de boi. Aí, eu sozinho, com tanto tira-gosto e uma garrafa de cachaça da boa, da marca “Tomara que Caia”, agasalhei uma na goela...

- Até agora não falou o que quero saber.- Ah, voltando à morte da bezerra, quando eu bebia, no quarto copo, dois fortes

trovões sacudiram aquele lugar. Tive que me esforçar para não soltar a garrafa da birita. Fui até a porta do bar, muito assustado e, quando olhei para o beco dos Aflitos, aí é que tudo petecou de vez! Não sei se foi pela força diabólica ou a feiúra daquela criatura, eu me senti paralisado. Padrinho do céu, a coisa era feia, entortava de um para outro lado,

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balançava para frente e para trás, igual um bêbado querendo abrir a porta.- Seu bêbado miserável, que forma tinha essa alma penada?- O senhor nem queira saber...o corpo era magro como o da Dona Tervina, sua mãe,

isso com todo o respeito. A cabeça, redonda e grande como a da Odinéia, sua secretária. A boca enorme, quase como a boca da Candinha, sua mulher. A boca cheia de falhas como a do Tiodolino, seu pai, que Deus o tenha.

Julião coçou a barba, enxugou com a toalha de mesa a sua careca e, por fim, dis-se:

- Ô seu gambá desidratado, pelo que descreveu, eu estou achando que você viu foi a Zirdinha, da pensão de Cremilda.

- A Zirdinha eu conheço bem, até por demais. O Senhor precisava de ver a tal coisa, espero que, se acontecer com o senhor, não venha a se borrar todinho...

- Homem frooooooouxo, acha que sou feito você? Criatura como você, eu mato, tiro o couro e seco, ainda vendo as gorduras pra fazer sabão e farinha de osso!

- Perdão de duvidar de senhor meu padrinho!- Desculpe eu interromper o amigo, mas onde é que o nobre deputado entra na

estória e vira herói?- Você vai ver como eu entro em cena e não saio mais até o desfecho – respondeu

Tutinho.-Continuando, “Zeca, meu querido pai, sugeriu ao padrinho que mandasse a Floristéia,

minha mãe, e eu, porque, apesar dos doze anos, já era valente. O Prefeito, num rompante imprevisto, falando muito alto, disse que se não fosse autoridade, já teria encontrado esse Bocudo, com uma peixeira e uma polveira de dois canos e obrigava ele dizer o que fez com a gente inútil da cidade.

Nesse momento, o prefeito Julião manda meu pai pra casa, para matutar. O pensa-mento que lhe chegou primeiro era que sua esposa, dona Candinha, se tivesse presente, estaria dizendo: “meu frouxinho, prefeitinho de merda, seja macho, pelo menos uma vez na vida!”

Segundo o dizer de Julião, Candinha, sua mulher, se ele não concordasse com ela, riscaria o chão com a peixeira, e sairia maldizendo o seu casamento com um covarde...

Mais calmo, pediu Gestrude para trazer-lhe a comida, criticou dizendo que aquilo era canja de hospital, mas esta retrucou que ele não comprou carne e que era cozinheira e não milagreira e insinuou que ele estava mesmo precisando de um regime.

A mando do patrão, Gestrude sai e vai chamar Zeca, meu paizinho e sua família, para trocar umas idéias sobre como descobrir o paradeiro de todos da cidade. Zeca indagou antes de atender:

- Gestrude, ele está manso ou como uma galinha arrepiada?- Ele está mais é pra bezerro desmamado! A situação não é das melhores. É só

olhar nos olhos de seu padrinho e você vê que ele está é se borrando todo...vale a pena conferir!

Todos riram e fizeram muita piada sobre aquela situação, até que Floristéia, minha mãezinha, lembrou que seriam eles mesmos que teriam de enfrentar a fera lá fora...Meu pai, Zeca, interferiu:

- Valei-me, meu São Jorge Guerreiro, ajuda esse pobre trabalhador a ter coragem,

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se tudo terminar bem, eu juro que contarei à Candinha que foi eu quem colocou o sapo no bolso dela, fazendo ela desmaiar ao lado do deputado Eraldo, no dia da festa da posse do padrinho!

- Vamos embora, minha gente, vamos resolver o problema dessa turma de frouxos – emendou Floristéia.

- Padrinho, o que está acontecendo? O Senhor está mais branco que macarrão em prato de doente. E a coragem, está se escafedendo?

- Quando tudo terminar – respondeu o prefeito – não vou esquecer desses co-mentários maldosos, o que me faz aflito é a responsabilidade que tenho com esse povo sumido.

- Não será muito amarelão, para pouca preocupação?- Zeca, se falar mais um “a”, eu corto sua língua e mais alguma coisa que tiver

sobrando.- Nossa Senhora dos Infelizes, seu Julião, a língua pode cortar, mas as outras coisas...

tenha misericórdia, o pobre tem pouco divertimento. Vai fazer falta pra mim...O Prefeito iniciou um discurso: “eu botei meu pensador pra pensar, e decidi que

é hora de melhorar a auto-estima de vocês. Eu só lhes tenho realçado a burrice. Muito embora vocês sejam minúsculos, quero dar-lhes uma chance de provar que têm um mí-nimo de massa cinzenta em suas cabeças. Entendam que quero mostrar que são também capazes de pensar, pelo menos, um pouquinho, um tiquitinho que seja!...”

“Retumbou naquele momento, um grande trovão. O susto foi tamanho que uns caíram sobre os outros, amontoando-se. Apenas eu, Tutinho, me mantive de pé. Indignado com aquele bando de medrosos, procurando abrigo: - Santo Deus, que vergonha, e ainda dizem que os filhos têm de seguir os exemplos dos pais. Achei melhor imitar o Moisés, aquele bode velho, que, mesmo sem forças, ainda enfrenta o marruage do Norvino.

Julião raspou a goela, empurrou Gestrude, que empurrou Floristéia, que deu uma cotovelada nas partes baixas do meu pai, Zeca. Mesmo gemendo, ele se desculpou, dizendo que os estava abraçando para defendê-los do Bocudo que estaria chegando.

Então, eu disse que era hora de apurar a coragem dele e de seu padrinho, para confirmar se sua valentia correspondia as suas falas, pois ter autoridade é uma coisa, ser macho é outra. Pedi que me dessem a polveira e eu traria o Bocudo morto, mortinho da silva. O prefeito argumentou que eu era muito pequeno para entender que, se algo acontecesse a ele, ficaria o povo sem rumo, ao que eu respondi: “é se acontece alguma coisa com o povo, o senhor também não procura rumo!”

Meu pai, Zeca, me perguntou de repente:- Tutinho, se acontecer alguma coisa comigo, o que será de sua mãe e de vocês,

meu filho?- Já vi que pra ser frouxo não precisa idade. Saio de casa, com a polveira, um por-

rete ou um estilingue. Nem sei se o pior é enfrentar o Bocudo, ou assistir a um bando de frouxos, reunidos num mesmo lugar! Vamos logo, senão, não salvaremos ninguém...

- Zeca, se nós dois formos, arrisca a gente borrar as calças; se deixarmos o Tutinho ir sozinho e acontecer alguma coisa com ele, as pessoas não nos perdoarão. Por outro lado, se ele conseguir desvendar o mistério do Bocudo, ele sozinho será o herói e não eu, o Prefeito. O que faremos?

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Zeca, meu pai, chamou o padrinho para um canto e começaram a traçar um plano que os protegesse de uma situação constrangedora, e ainda pudessem lograr proveito.

- Padrinho, se entregarmos a polveira pro Tutinho, a gente diz aos outros que esta-mos dando moral pro menino e, esperto como somos, acompanharemos o moleque de longe, como a proteger o bichinho e coisa e tal... se o boca grande aparecer, é claro que ele vai fugir. O bicho não consegue pegar; se ele borrar as calças, não tem problemas, é uma criança. E, nós, olhando de longe, vai ser um pé lá e outro cá, certo?

- Não é à toa que é meu afilhado, seu gênio do bem! Desde a invenção do trem-de-ferro que ninguém pensa tão fácil! Só falta convencer a Floristéia a deixar o menino resolver um assunto que é nosso.

- É fácil, dizemos que nós vamos enfrentar o Bocudo e ele, sendo homem, deve ir conosco. E, lá na rua passamos pra ele nossos planos.

Meu pai chama minha mãe para falar com o coronel Julião:- Olha só, o Zeca e eu estávamos juntando nossas idéias e resolvemos que só os

homens poderão perseguir o Bocudo, o que acha?- Já foi tarde, seus frouxos de uma figa!- Mas o Tutinho vai com a gente, mulher, ou ele não é homem?- Isso é que não, ele é muito pequeno, só tem doze anos, cria vergonha na cara,

Zeca!- Mãe, eu tenho que ir. Esses dois vão ficar perdidos que nem cachorro no meio

do foguetório.- Então vá. Deus te acompanhe. Pega logo a polveira de dois canos, vamos ver se

essa velharia ainda funciona!-Saímos os três. Ao chegarmos ao portão, me revelaram o plano e a estratégia de

guerra. Eu deveria ir à frente com a espingarda e os dois corajosos atrás. No momento em que o tempo esquentasse, chegariam os dois e acabariam com a fera. Acho que iam mesmo é cair na moita, como se diz. Eu segui determinado, e gritei com os dois:

- Vocês estão muito atrás, quando o Bocudo chegar, vocês vão assistir é a minha batalha contra o bicho!

Nesse ponto da narrativa, Givanildo interveio:- É, parece que é agora que o nosso nobre deputado vai mesmo entrar em ação,

eu só quero ver o bicho que vai dar...- Preste atenção nos detalhes ...“Prudentemente, desci a alameda principal. Entrei na rua do Capim, revistei com

os olhos cada canto, enquanto o pai e o prefeito me seguiam empalidecidos de medo. Ao chegar no bar do Pustema, senti, pela primeira vez, um arrepio em pensar que ele vira de verdade, uma horrenda criatura. Não me intimidei, se ela estivesse por ali, eu iria encontrar. Desci lentamente rua abaixo, até a praça da igreja. O pai e o prefeito, atrás. Prontinhos a dar meia volta. Eles se aproximaram um pouco mais e sussurraram tão baixo que quase não entendi:

- Você não viu nada suspeito?- De certo que não, já estou sentindo cheiro de mentira no ar...- Não, filho, o que vi foi no beco dos Atrevidos, perto do bar do Perrengue.- Então, vamos até lá.Cheguei até la, olhei para dentro e, de repente, dei um grito e corri para dentro

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do bar. Meu pai e o prefeito não hesitaram em rodar sobre os calcanhares e, pernas para que te quero!

Ao chegarem em casa, planejaram uma boa desculpa pelo meu sumiço:- Cadê o Tutinho? Não diga que vocês deixaram ele pra trás para enfrentar sozinho

o boca grande!- Não foi bem assim... nós estávamos os três vasculhando a área, procurando a inde-

sejável criatura. O Zeca de um lado, eu do outro, o menino no meio. Quando vimos, o coisa feia pegou o Tutinho, ele deu um grito, mais ou menos como se dissesse “coveiro”!

- Não, padrinho, escutei bem, estava perto, quando ele gritou mais ou menos isto: “sovertei, que o trem é feio!”. Conhecendo a coragem do menino, e ouvindo dele mes-mo que o trem era feio, eu caí no mato. Deus há de ter piedade dele e ele vai vencer, tenho certeza...

- Meu Deus! – interrompeu Floristéia – vocês deixaram o menino sozinho? Cambada de frouxos, filhos de uma gambá degenerada. Vocês não têm coração, vocês valem menos do que aquilo que o gato enterra!

- Desculpe, Floristéia. Na hora em que o Zé Brodó, nosso detetive, achar as vítimas do Bocudo, ele achará também seu filho, ou o que sobrou dele...

- Não diga isso, eu não sei de vocês, mas eu vou buscar meu filho, que dois cabras frouxo deixaram para trás.

- A senhora não pode com aquela coisa, ainda mais agora que não tenho minha polveira...

- Com ou sem polveira, com ou sem coragem, eu vou. Ainda vou dar uma surra muito grande de chinelo, se aquele Bocudo tiver, ao menos, bulido com meu menino Tutinho.

Floristéia, saiu ao encalço do menino, queria de todo jeito o filho de volta. Os dois patifes se entreolharam e não viram outra saída, a não ser voltar àquele apavorante lugar. Percorreu todas as ruas da cidade, até que chegou no Bar do Perrengue. Sentiram receio. Por várias vezes, imaginaram o menino sem cabeça, ou todo mastigado e cuspido, num canto do bar...

O bar estava vazio. Minha mãe, Floristéia, com voz rouca chamou-me. De repente, uma voz detrás do balcão assustou os três. Meu pai e Julião deram um grito, pulando os dois no colo dela. Caíram os três no chão.

- Mamãe, mamãe..., eu gritava, mas ela desmaiara. Os corajosos fecharam os olhos e rogavam: “seu Bocudo, o senhor até que

é bonitinho, poupe nossas miseráveis vidas e eu lhe dou um cargo comissionado lá na prefeitura...”

- Calma, gente, sou eu, não tenham medo, podem abrir os olhos.Minha mãe me abraçava e perguntava pela fera. Aí eu expliquei que não havia ne-

nhuma fera. Esclareci que, quando eu cheguei no bar do Perrenque, não havia ninguém. Quando vi a máquina de sorvete, fiquei doido! Chamei os dois cagões, dizendo “sorvete, sorvete! Quem chegar por último é mulher do padre!” Não sei o que eles entenderam. Só sei que, quando olhei para trás, eles já haviam dobrado a esquina. Quando se tem medo, cada um vê e escuta o que quer...eu tomei tanto sorvete que fiquei com barriga de bagre de enchente. Voltando ao assunto do Bocudo, eu acho que sei quem é ele, mas não

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vou contar agora; ainda não sabemos onde foi a gente da cidade. Talvez esteja enganado e não quero cometer injustiça.

- Eu, como Prefeito, não posso deixar as coisas como estão. Acho que temos de ir à prefeitura investigar, procurar pistas...

E, assim, fomos os quatro para a prefeitura. Eu ia à frente, todo serelepe, carregando aquela velha espingarda que mais parecia um canhão. Os três andavam sempre juntos, com medo do Bocudo. Ao chegar no Beco do Infeliz, tive quase certeza de ter visto alguém correr e se esconder no prédio do banco local. Meu pai não acreditou em minha ob-servação e disse que era minha imaginação, mas tremia feito vara verde. Eu falei, então:

- Arriégua! Estou sentindo cheiro de gente frouxa, outra vez, será que meu pai esta se borrando?

- Não é isso, seu inseto a pilha! O que seu pai quer dizer é que não podemos perder muito tempo, temos de chegar na prefeitura quanto antes, ou, poderá ser tarde. Dando tempo, podemos até agarrar o tal de Bocudo!

- Obrigado padrinho – cochichou meu pai no ouvido do prefeito – você ajudou a disfarçar o meu medo.

Chegando, paramos na porta. Julião pegou seu molho de chaves e, com dificuldade, numa tremura só, destrancou a porta.

Pediram-me que entrasse primeiro e que vasculhasse o ambiente e que, se encon-trasse algo estranho, corresse para fora que eles, os corajosos, iriam acertar pessoalmente as contas com o intruso. Assim, mostraríamos ao Bocudo, como era bom mexer com os “valentões” da cidade.

Apontei a espingarda para frente e segui sem pensar. Revistei tudo. Ouvi um barulho estranho. Voltei devagarzinho, sem olhar o que causava tal ruído. Saindo do prédio, narrei aos companheiros tudo o que vira no interior da Prefeitura.

- Senhor prefeito, o senhor tem razão, mas preciso da chave para entrar na sala e desentocar o dito cujo.

- Vá mesmo, ficaremos de tocaia, se bulir com você, voaremos no cangote dele.- Nossos heróis até chegaram perto da sala pretendida. Mas fui eu quem destrancou

a porta devagar e, com a arma apontada, fui andando em direção ao barulho. Quando cheguei perto da escrivaninha, o barulho aumentou. Levantei a espingarda e abri fogo contra o estranho barulhento. O coice da arma foi tão forte que fui arremessado contra a parede. Mamãe se preocupou:

- Tutinho, Tutinho, você está bem, o que houve com você?

- Estou bem, mamãe, acho que ma-tei um filhote do Bocudo, este não geme mais. Pode vir aqui, prefeito, reconhecer o cadáver.

Nesta hora, o prefeito, trêmulo, en-trou na sala, olhou em cima da escrivaninha, deu um berro, daqueles que só ele e sua delicadeza são capazes de proporcionar:

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- Seu filho de jegue, inteligência de toupeira. Não é capaz de reconhecer um te-légrafo. Você destruiu a possibilidade de convocar as Forças Armadas para salvar nossa cidade dessa ameaça bocuda que nos assola!

- Patrão, não tive culpa, ninguém me mostrou o retrato do boca grande, pois não foi?

- Foi, mas de qualquer maneira, corremos o risco de virar merenda desse caboclo desafeiçoado.

- Me dê mais uma chance, prometo que não falharei na próxima oportunidade. - Tá bom, seu moleque, vamos procurar novas pistas. - O que devemos procurar? Perguntei. - Se eu soubesse o que procurar, não precisaria desse bando de bicho-preguiça.-Todos saímos a procurar o tal. Remexendo papéis, encontraram algo suspeito.

O Prefeito ficou preocupado, de cabelo em pé. Pegou o papel e se assustou tanto, que bambeou as pernas. Era um telegrama do governo com os seguintes dizeres “Ao pre-feito de Curupira, coronel Julião, comunicamos que foram detectados epicentros nessa região. Favor tomar providências. Assinado, Governador do Estado”. O prefeito estava transtornado e tentava coordenar as idéias. “que diabos é esse tal epicentro, será que o Bocudo tem alguma coisa com isso?” Enquanto ele matutava, eu dava asas a minha imaginação, até que o abordei:

- Padrinho, talvez o governador não colocou o nome correto, por causa dos espiões, eles poderiam por tudo a perder...

- Desembucha, não tenho paciência com ignorantes!- Calma, senhor, o governador escreveu pedindo para tomar providências urgentes,

o telegrama diz um epi...- Epis... retrucou o prefeito – onde você quer chegar?- Everaldo e Péricles, estou certo?- E pi pode até ser, Everaldo e Péricles, mas e o centro?- Eles não são ladrões de bancos? E o banco não fica no centro? Logo, são eles

ladrões de banco do centro.- Seu menino, Rui Barbosa morreria de inveja de você. É cabecinha de ouro. Quando

acabar tudo isso, será meu chefe de gabinete, pois não?- Vou cobrar do senhor, chefinho!- Menino, e eu lá sou homem de duas palavras?-Lembrei-me, naquele momento, que, quando passei perto do Banco, vi dois homens

se escondendo atrás de uma coluna do prédio. Falei ao prefeito que, na mesma hora, me cobrou outra idéia. Seria de grande valia usar as técnicas do vovô Crementino para capturar os epicentros. Os olhos de meu pai reluziram de contentamento:

- “Há muitos anos atrás, meu sogro foi trabalhar numa fazenda do estado do Pará. Quando lá chegou, os colegas tentaram ajudar, dizendo a ele que, quando saísse do acam-pamento, fosse armado, já que as onças faziam fila para devorar as pessoas. Ele duvidou e disse que, se aparecesse alguma, ele a capturaria e a levaria viva até eles. Os dias se passaram e o velho não viu nem um gatinho. Certa manhã, ele saiu para conhecer as matas da região. Seus colegas pediram para não afastar muito. Teimoso como era, atravessou o ribeirão, entrou por uma capoeira onde avistou uma pedreira. Caminhando em sua direção,

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defrontou-se com uma enorme onça pintada que partiu para o ataque. O velho assustado e indefeso desandou a correr, tentando fugir da fera. Ele correu, correu, até chegar ao acampamento. A onça estava bem próxima de seu traseiro. Os amigos, assistindo àquela caótica situação, apostavam que o velho não tinha saída. Assustado, entrou correndo casa adentro, saindo pela porta da cozinha, fechando-a atrás de si. Depois de prender o bicho dentro de casa, chamou os companheiros e disse para eles tirarem o couro desta bichinha que ele ia buscar outra.” É assim que poderíamos caçar os epicentros.

O prefeito argumentou:- Até que a idéia não é má. Mas, quem seria a isca? Todos olharam ao mesmo tempo para mim. Apenas balancei os ombros, sorrindo

sem graça. Meu pai, que arquitetara o plano, falou: - Padrinho, cada um de nós tem de desempenhar com precisão o nosso papel.

Você, Tutinho, vá pegar as jóias da patroa. Sorrateiramente, vai entrar no Banco, chamar a atenção dos epicentros, corra rua abaixo, fazendo com que eles venham atrás de você. Quando chegar na casa do padrinho, a porta estará aberta. Entre, atravesse a sala. Sua mãe fechará a porta com a tranca e o ferrolho. O padrinho vai se esconder atrás da escada. Quando eles tentarem arrombar a porta de casa, o senhor dê a voz de prisão a eles. Quando eles levantarem os braços, eu fecharei a porta, entrarei com a corda. Aí amarraremos os patifes. Acho que todo mundo entendeu o que temos que fazer.

- Sim, respondemos todos ao mesmo tempo. Já na casa do prefeito, preparamos uma estratégia. Julião pegou uma polveira,

recarregou-a, buscou o melhor ângulo. Minha mãe, Floristéia, abriu a porta da casa do prefeito, escondendo atrás dela. Meu pai subiu no forro, com um bom pedaço de corda. Eu peguei as jóias, alguns dólares e, lá fui eu com a coragem que Deus me deu. Chegando à rua do Banco, pude ver os marginais, tentando arrombar a porta da agência. Aproximei e gritei:

- Seus epicentros, vocês estão querendo é isso?- Moleque, onde arrumou isso? E precisa nos chamar de palavrão? - Lá na casa do Prefeito têm muito mais e é tudo meu!Dizendo isso, corri como o vento, rua abaixo. Os marginais correram atrás. Tudo estava saindo como planejado. Em pouco tempo, estava às portas da casa do

prefeito Julião. Diminuí a velocidade para que eles não me perdessem de vista. Entrei casa adentro. Atravessei a porta, fechando com tranca e ferrolho. Em pouco tempo, os ladrões chegaram à porta. Um deles ficou no alpendre, o outro entrou cautelosamente pela sala, comprometendo o bom andamento do plano. O marginal tinha uma faca nas mãos. Detrás da escada, o prefeito tremia mais que vara verde. O malvado viu o prefeito e disse:

- Seu filho de uma pororoca, sai daí. Ande depressa, não tenho tempo a perder, minha paciência é nenhuma. Ande sua lesma!

O prefeito, morto de medo, foi saindo, tropeçou no degrau. Sua espingarda caiu, disparando dois tiros para o alto. Um dos tiros pegou no forro, onde meu pai estava escondido. O teto veio abaixo. Zeca, muito gordo, caiu em cima de um dos marginais, desmaiando junto com ele. O outro pegou o prefeito pela orelha, quase levantando ele do chão:

- Levanta, seu prefeitinho de merda. Onde estão as jóias e o dinheiro? Se demorar

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a me entregar, vou cortar sua orelha, arrancar seus olhos, pra jogar pros cachorros!O que os marginais não contavam era com a chegada da Candinha. Ela chegou bem

devagar, pegou o pobre coitado pela gola da camisa, aplicou-lhe um tapa na orelha, que até zumbiu, derrubando o malvado. Dona Candinha, brava como uma caninana, berrou:

- Ninguém chama meu frouxinho de prefeitinho de merda.Nesse momento, levantou a mão e bateu na cara do infeliz. Foi um golpe fatal.

Em pouco tempo, o prefeito colocou a sua finíssima esposa a par da situação da cidade. Reanimaram meu pai, pegaram as cordas, amarraram os marginais, levando eles para a cadeia municipal.

Floristéia, minha mãe, ficou responsável pela cadeia, até descobrirem o paradeiro da população da cidade e o mistério do Bocudo. Julião, Candinha, meu pai e eu saímos pelas ruas da cidade, caminho à igreja .

O templo estava todo aberto, como se esperasse os fiéis para a missa. Entraram, olharam, tudo estava nos seus devidos lugares. Revistaram toda a igreja e nada encon-traram. Candinha resolveu ir até a sacristia. Lá existia um microfone conectado com o alto-falante que era de utilidade pública. Era com ele que se propagavam todos os eventos da cidade, desde enterros, casamentos, batizados, até mesmo alguma compra e venda de mercadorias, de qualquer natureza. A primeira dama curupirense foi até a mesa, pegou o microfone e começou a ler as notas divulgadas. Encontrou uma recente, para ser mais exato, do dia anterior. Nela havia a seguinte mensagem:

“Moradores de Curupira. O serviço comunitário da Paróquia de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro vem avisar, às vinte e três horas e trinta e cinco minutos, devido a urgên-cia que o caso requer, que recebemos um telegrama, avisando que dois marginais foram vistos vindo em direção a nossa cidade. São procurados pela polícia federal. E também uma nota do governador estadual de que um epicentro, não sabemos com certeza quem seja e nem sua origem, está chegando. O governador pede providências. Pedimos a todos que se cuidem, pois são de alta periculosidade. Aproveitando a oportunidade, informamos, também, que o senhor Benito das Flores, vulgo Zé Caroca, comunica o falecimento de sua égua Pitomba. O sepultamento será realizado às quatorze horas de amanhã, lá na gruta das Almas. Antecipa agradecimento aos que comparecerem. Acho que todos temos uma dívida para com a Pitomba. Foi ela quem conduziu quase todas as mulheres em sua charrete, para dar a luz. Também foi ela quem levou quase todos os noivos da cidade para a igreja. De dezoito anos para cá, Pitomba se tornou uma figura querida em nossa cidade. Povo de Curupira, se quiserem escapar dos marginais, ou seja, do tal do epicentro, vamos para o velório que estaremos salvos. Sem mais, Pitomba agradece.”

- Ah, então é isso, ninguém quer saber da égua Pitomba, na verdade, são um bando de covardes. Meu prefeitinho de merda, meu frouxinho, você não ouviu o auto-falante da igreja?

- Não, você sabe, tanto eu, quanto meus protegidos, dormimos como anjos, nem explosão de dinamite nos desperta.

- Que comparação mais besta, anjo não dorme, não ronca e não solta pum! - Está bem, minha flor de maracujá, dormimos feito porcos! - Aí até eu vejo a semelhança. Mas, vamos ao que interessa. Nós dois vamos pegar a

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charrete e iremos até o capão das Almas, buscar o nosso povo, que deve estar com fome e com frio, e só não voltou porque o medo é o mais sincero dos sentimentos. Enquanto vamos até lá, o Zeca e o Tutinho vão trazer, vivo ou morto, o boca grande para nós. Se não desvendarem o mistério, vão prestar conta comigo.

Meu pai, sabendo que a patroa era rigorosa, co-meçou a tremer, como se estivesse com maleita. Eu já suspeitara quem era o Bocudo:

- Não se aperreie meu pai, eu sei como contornar essa situação.

Eu e meu pai fomos até o armazém da Prefeitura, pegamos muitas dinamites, indo direto para a praça principal.

- Pai, eu já sei onde encontrar o bicho. Não vou deixar o senhor passar por men-tiroso.

Chegaram à praça principal. Foram até o bar do Perrengue. Lá, meu pai pergun-tou:

- Se você sabe onde está esse tal boca grande, me mostre, estou muito curioso com sua calma, diante do encontro com a fera.

- Papai, olhe daqui do balcão, você bebeu além da conta. Quando o senhor ouviu o grande trovão, ficou com tanto medo que ficou vulnerável às fantasias da mente. Quando saiu à porta, os piores fantasmas já haviam tomado conta de você. Olhe daqui, para a rua dos Atrevidos, o que você vê?

- Não me diga que o que vi foi o relógio novo da praça!- Mas é claro que foi, veja só, corpo muito magro como o da dona Tervina, mãe

do prefeito; a cabeça grande como a da dona Odinéia, secretária do homem; a boca tão grande como a de dona Candinha, que é o mostrador onde aparecem as horas. Os dentes são tortos e falhados como os de Tiodolino, pai do Julião, que são, apenas, os números e os ponteiros que mostram as horas. Olha, pai, lembra de sua bebedeira, vê se não foi isso?

- Arriégua, foi isso mesmo. E agora? O que faço para diminuir a vergonha?- Calma, velho, eu já tenho tudo na cachola. Pega as dinamites, coloque no relógio

e debaixo dos bancos da praça.Zeca, meu pai, sem questionar, fez tudo direitinho.- E agora, o que vamos fazer?- Vá até a churrasqueira do bar, pegue carvão, esfregue bastante no corpo e na roupa,

rasgue a camisa e a calça, depois volte para o último ato desse espetáculo de bagunça.Em pouco tempo, meu pai voltou e ficou esperando a decisão do filho.- Pai, agora nós vamos transformar a praça em ruína de guerra.- Ah, agora estou entendendo, simularemos uma batalha. Mas como será uma

batalha sem corpos?- Essa batalha será diferente. Estamos enfrentando o Bocudo, ou um extraterrestre

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que fugiu em sua nave espacial. - Êta, menino porreta, você tem um dom natural que não podemos desperdiçar.

Você é um político nato!Os dois dispararam as dinamites, deram tiros de polveira nas paredes, rolaram na

poeira. Depois foram para o bar tomar sorvetes.Enquanto isso, o prefeito e a esposa chegavam da gruta das Almas. Na entrada,

viram Calu, filho da Tonha, que era chefe de gabinete do homem:- Ah, prefeito, o senhor me desculpe, não houve tempo de lhe avisar. A prefeitura

não poderia deixar de ser representada no velório da Pitomba. Afinal de contas, o muni-cípio deve muito a esse maravilhoso animal...

- Largue de mentira, seu frouxo, aquela égua não valia o capim que comia, era um animal empacador e preguiçoso. Esta não cola, vocês todos ficaram com medo dos marginais!

Calu abaixou a cabeça como que consentindo.- É verdade, nós só voltaríamos quando os bandidos não oferecessem mais risco.- Homem, pra ser homem, tem de aprender a agarrar o diabo pelo rabo – disse

Candinha.- Junte todo o pessoal, vamos embora, os malandros estão na cadeia. Senhor dele-

gado, até o senhor e toda guarnição esconderam-se aqui?- Não, senhor prefeito, é que todos vieram para cá. Aí tivemos que vir para cá para

manter a ordem e a paz.- Ai, meu Deus, até o Padre e o sacristão?- Senhor, prefeito, eu tinha que vir, como representante da igreja. Quem mais po-

deria trazer ajuda espiritual e consolo a esse povo! O senhor sabe como era importante essa égua para toda a comunidade!

- Cambada de mentirosos...arrematou Candinha.- Eu, como prefeito, e Calu, vamos à frente, temos de comunicar ao governador

o ocorrido.Dizendo isso, foram rapidamente para a sede do correio e telégrafo, onde passa-

ram o seguinte telegrama: “senhor governador, eu, Julião, prefeito de Curupira, informo que prendi os epicentros. Eles não oferecem mais risco para a população. Sem mais, agradeço”.

Lá da rua, ouvia-se o barulho do povo retornando à cidade, gritando o slogan: “hei, hei, hei, Julião é nosso rei!”

O prefeito saiu do correio indo de encontro à esposa e toda a população da cida-de. O povo carregou o prefeito pelas ruas da cidade. Ao chegar na praça principal, as pessoas pararam. Fez-se um profundo silêncio. Julião olhou aquela praça destruída e murmurou:

- Zeca, Tutinho, meu Deus! Eu não devia ter mandado eles enfrentar sozinhos o Bocudo. Fui responsável pela tragédia. Como poderei encarar Floristéia?... eu não poderia contar para ela que perdeu o marido Zeca e o filho Tutinho. Ah, meu Deus! Vamos, amigos, procurar os corpos, eu nem acredito que esse Bocudo tenha devorado esses verdadeiros heróis de nossa cidade. Darei um bom dinheiro a quem os encontrar primeiro.

Foi como um estouro de boiada. Todos queriam localizar o cadáver dos heróis.

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Procura daqui, procura dali e nada. O prefeito desolado entrou no bar do Perrengue, pensando em tomar um timbuca. Quando abriu a garrafa, viu um pé debaixo de uma parede caída. Com o coração na mão, foi retirando os escombros, quando ouviu uma voz familiar:

- Padrinho, sobrou um gole para mim?- Seu filho de uma égua manca, pensei que tivesse morrido e o Tutinho?- O garoto está aqui – disse meu pai.- O que aconteceu, parece ter havido uma guerra!- É, padrinho, nem te conto, quando chegamos aqui, uma grande máquina luminosa

estava parada no meio da praça. Quando aproximamos, apareceu o tal Bocudo com uma arma esquisita na mão, partindo para cima de nós. Tutinho pegou a polveira e abriu fogo. Corri para o coreto, peguei sua carabina e comecei a atirar. Os Bocudos sentiram que não teriam chance contra nós. Atiravam bombas. Tutinho e eu corremos para dentro do bar e abrimos mais fogo neles. Eu só vi quando entraram para dentro daquela coisa. Atirou ainda uma bomba em nossa direção. Ainda vimos quando levantaram vôo. Eu estou certo de que, depois dessa escaramuça, não voltarão jamais.

Naquele momento, chegaram algumas pessoas e gritavam eufóricas:“salve nossos heróis curupirenses”!A charrete luxuosa do Dr. Jeremias parou na praça. O povo carregou novamente o

prefeito, o meu pai, eu, e nos colocou no veículo, bem como a primeira dama Candinha e minha mãe. Eu peguei as rédeas, estalei o chicote no ar, dando a partida. Candinha, abraçada a Julião, disse em voz baixa:

- Meu frouxinho, prefeitinho de merda, eu amo muito você! Minha mãe, agarrada ao pescoço de meu pai, disse:- Seu cagão, frouxo, medroso e covarde. Tutinho me contou toda a verdade. Esse

será nosso segredo, amamos você do jeito que você é...seu cagão Talvez, nem em Hollywood, tenha-se visto um evento tão grandioso quanto aquele.

O povo gritava, jogava flores e até camisas. Eu dei uma piscadela para meus pais, como se dissesse, “nós merecemos”.

Desde os idos de l934, tenho observado no meio político de nosso país que poucos são capazes de enfrentar os bocudos. Isso se repetiu várias vezes, ao longo dos anos. A aparição mais recente da tal criatura se deu antes de l964, se estendendo por vários anos. Mais uma vez foi preciso muitos Tutinhos e Zecas que, apesar do medo, marcaram presença. A maioria de nossa cambada, ao invés de agir, prefere ir ao velório e ao enterro das pitombas. Após os bichos dominados, aparece e é capaz de afirmar “nós estivemos lá”. Mas, nós, os tutinhos, os zecas, os juliões, candinhas e floristéias piscamos os olhos e dizemos : “conhecemos a verdade”.”

Hoje, espectadores dessa querida estação de TV e amigos presentes, moro na capital federal. Na verdade, eu teria que ser, Senador da República, ou até, chegar à Presidência da República, não é verdade?

- Tutinho, por que você não contou a verdade ao povo de Curupira, a respeito do Bocudo?

- Se contasse a verdade, meu pai seria esfolado vivo pelo prefeito e primeira dama. De mais a mais, essa mentirinha trouxe publicidade e desenvolvimento para aquela estagnada

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região. - Tutinho, estamos deveras emocionados com tamanha coragem e franqueza. Agradeço

imensamente essa sua entrevista. Levarei ao ar a sua história, na íntegra, sem editar a matéria. Você sabe que a sua vida daria um caso mais que especial para a tv. Agradecemos em nome de nossa TV Brasil da Gente, muito obrigado mesmo! Considero encerrado o programa, eu, Givanildo Couto, o repórter louco.

Amigo Givanildo, em off, além de agradecer pela oportunidade, eu lhe informo que, em breve, lançarei um livro contando tudo. Mas, esclarecerei a todos que não será uma biografia de ninguém da minha cidade ou de qualquer outro lugar. Qualquer semelhança terá sido mera coincidência.

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3ºLUGAR

noitecia quando Bentinho chegou naquele movimentado cruzamento. Trazia

O menino do sinal

Adirson Teles FaE/CBH

Aas ferramentas de trabalho, que se resumiam numa garrafa de álcool e dois pedaços de cabo de vassoura com uma esponja numa ponta e tiras de borracha na outra.

Bentinho não se distrai. Olhos fixos no sinal, tão logo avermelha, vai para a frente dos carros e começa a sessão de malabarismos. As esponjas são acesas e o álcool armazenado na boca e é lançado contra as chamas, fazendo subir uma cortina de fogo e fumaça, clareando a rua. Os motoristas nem sempre apreciavam o espetáculo, com receio de um ataque repentino. A ansiedade e o medo levam o pé ao acelerador antes mesmo de a luz verde acender e Bentinho, que circula por entre os veículos em busca de algumas moedas, se afasta logo e dá lugar aos veículos, que já estão em movimento.

Bentinho não se cansa e repete a cena inúmeras vezes. Mãos calejadas, dentes amarelos, pés descalços e roupa encardida, o menino estava sempre ali, fazendo mala-barismos em troca de alguns trocados.

Ele nem sabe por quantas vezes gira os bastões, assopra álcool nas esponjas incandescentes e desafia o perigo. Ele não pensa nos riscos, apenas espera que o boné receba alguns trocados. Enquanto os carros atravessam o cruzamento, Bentinho se pre-para para repetir o número, sentado no meio-fio.

O sinal amarela, Bentinho aguarda o vermelho e vai para a frente dos carros. Gira os bastões, faz subir a bola de fogo, passeia pelos carros de boné estendido. As horas passam, o menino parece não se cansar ou nem se acha no direito de se sentir cansado.

O movimento abranda, é hora de voltar para casa. Caminha alguns quarteirões até ao aglomerado, onde mora com a mãe, em um barracão de madeira. Janice não dorme enquanto o filho não chega, preocupada com o que pode acontecer durante o tempo em que ele estiver trabalhando nos cruzamentos.

Aquela vida não era o que sonhara Janice. Colocar um filho no mundo para viver aquela porcaria de vida não fora o seu sonho, pensava, mas ela se enganara com o que era a vida na cidade. Acabou se perdendo em meio a tanta novidade e se encontrara justamente numa situação nada desejada.

Bentinho chega em casa, guarda suas tralhas, abraça calorosamente a mãe e se prepara para dormir, depois de comer alguma coisa que ela guardou para ele.

A mãe olha o filho no canto de cama e pensa na vida que levam. Por várias vezes ouviram insultos por ele trabalhar e ajudá-la nas despesas, mas apenas eles sabiam os

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verdadeiros motivos, entendiam suas razões. Ou trabalhavam os dois, ou sucumbiam. Parte do que precisavam para se sustentarem, Janice conseguia também nas ruas, colhendo papéis e materiais recicláveis. Não era muito, mas pelo menos não morreriam de fome, explicava, quando indagada.

O que mais lhe doía era ouvir as reclamações do filho, que as pessoas evitavam se aproximar dele temendo ser um marginal. Ser pobre parece até uma doença contagiosa e a violência está sempre associada a alguém que tira seu sustento de alguma atividade informal, pensava ela.

Bentinho dorme, talvez em sonho volte a ser criança, consiga se imaginar nas brincadeiras infantis que a mãe lhe conta e se sinta também uma criança como nunca fora.

Os dias passam, mas nada parece mudar, a roda gira mas não sai do lugar. Eles estão sempre na mesma situação, lutando com as mesmas armas para vencer os mesmos inimigos.

Bentinho é apenas uma criança, um fato lembrado apenas quando a sua idade vem à tona. Uma criança precocemente transformada em adulto pelas necessidades de se sustentar e ainda pensar na mãe. Uma criança com as mesmas preocupações de um adulto, como segurança, alimentação e horários de trabalho a cumprir. Uma criança sem sonhos, sem brincadeiras, que se tornara rude pela própria dureza da vida. Bentinho tem nove anos, aliás, completara nove anos e só se dá conta quanto está no sinal, novamente trabalhando e, ao caminhar por entre os veículos, boné na mão, alguém se lembra de perguntar-lhe a idade:

– Oito, nove, não, oito – ele se embaralha com os anos e a idade que tem.A moça sorri:– Não sabe quantos anos tem?– Hoje é quanto do mês? – indaga.A moça confere rapidamente o relógio:– Vinte e seis, vinte e seis de novembro...Bentinho sorri:– Então é nove, hoje é meu aniversário.A moça sorri novamente:– É mesmo? Seu aniversário hoje? – ela mexe na carteira e retira uma nota de vinte

reais – é pra você, compre sonhos e seja feliz – disse. Bentinho sorri e vê o veículo partir, o sinal abrira. Ele vai para o meio-fio e, com

os olhos fixos nos veículos que estão passando, pensa no que acabara de ouvir. – Comprar sonhos! Onde posso encontrar sonhos para comprar? O sinal vermelho acende, o verde também e o amarelo logo anuncia o retorno

do vermelho. Bentinho parece anestesiado, não se move, absorto, pensando em comprar os sonhos, mas sem saber ao certo onde encontrá-los.

O tempo passa, é hora de voltar para casa. O menino caminha pelas ruas, levando consigo as ferramentas de trabalho e a féria do dia. No meio, a nota de vinte reais, para comprar os sonhos.

Ao entrar em casa, a mãe o abençoa sem interromper o que fazia no fogão. Foi

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logo falando para ele se trocar que a água do banho já estava fervendo. Bentinho perma-nece calado o tempo todo, o que fez a mãe estranhar e indagá-lo:

– Você brigou na rua, Bentinho? O menino apenas meneou a cabeça negativamente, sem nada dizer. A mãe não

se conformava, Bentinho não era daquele jeito. Ao chegar em casa, ele falava do dia, con-tava o que acontecera e queria saber como ela estava. Mas, naquele dia, poucas palavras falara. Tomara um banho, comera em silêncio e foi para a casa do Naldo, um amigo que permitia que ele assistisse à televisão em sua casa.

Algum tempo depois, Bentinho reapareceu em casa.– Mãe, eu quero ir para a escola.Janice estranhou aquela atitude repentina:– Ir para a escola? O que fez você pensar nisso agora?Bentinho pulou na cama:– Eu ouvi na televisão que a escola alimenta os sonhos da gente.– E daí, Bentinho? E pobre sonha, menino? Aliás, pobre nem dorme direito, quanto

mais sonhar. Bentinho arregalou os olhos:– Mãe, eu ganhei uma nota de uma moça...– Que nota, Bentinho, que moça?Bentinho foi até à caixa de sapato que colocara debaixo da cama, abriu-a, retirou

a nota e disse:– Esta nota!– Vinte reais! – Janice arregalou os olhos – Filho, você pegou esse dinheiro de

alguém?Bentinho fitou a mãe:– É muito isso aqui, mãe? – perguntou.– Filho, você só ganha moedinhas, nota grande como essa você nunca trouxe para

casa.– Isto dá pra comprar muita coisa?Janice sentou-se ao lado do filho:– Sim, filho, dá pra comprar bastante coisas, mas, me diz, onde encontrou esse

dinheiro?Bentinho ficou pensativo:– A moça me deu, disse para comprar sonhos...– Mas, porque ela iria dar tanto dinheiro pra você, menino? E pra comprar sonhos?

Esse dinheiro dá pra comprar um montão de sonhos.Bentinho abriu bem os olhos:– Mesmo, mãe? E onde eu compro um montão de sonhos?– Sei lá, Bentinho, na padaria deve ter um punhado deles...Nos olhos de Bentinho estava evidente sua decepção:– Na padaria? Mas, não vendem sonhos na padaria, mas, pão...– Bentinho, Bentinho, sonhos são bolinhos, bolinhos de trigo.Bentinho fitou a nota:

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– Bolinhos de comer?– Claro, filho, você come os bolinhos que todos chamam de sonhos!Janice percebeu que o papo ia longe e resolveu sentar ao lado do filho e explicar

o que sabia.– Filho, aí já são outros sonhos, são sonhos do pensamento e não os da padaria,

aqueles que todos comem.Bentinho olhou a mãe:– Mãe, eu não quero sonho para comer...– Ah!, não? E o quê você quer, então?– Quero sonho da escola, a senhora me mostra os sonhos da escola?Janice abraçou o filho:– Bentinho, meu filho, como mostrar a você algo que eu não conheço?Bentinho segurou o rosto da mãe entre as mãos e disse:– Mãe, me leva até à escola, peça alguém pra me mostrar os sonhos que a escola

tem.Janice colocou o filho

no canto da cama, cobriu-o, beijou-lhe a face e disse:

– Guarde seu dinheiri-nho, amanhã eu levo você a uma escola e peço que expli-quem esses sonhos para você! Agora durma, sonhe com os anjos... – Janice retribuiu o sorriso do filho.

O dia seguinte foi para Bentinho o início de uma nova vida. Verdade que nunca vira a escola alimentando sonhos, mas percebeu que ela lhe deu forças para ousar dizer o que sonhava ser quando crescesse.

Ele lembrava bem, foi logo nos primeiros dias que fora à escola. A professora perguntou um por um: o que você quer ser quando crescer? Ele não sabia o que dizer, nunca pensara no futuro, não se dera conta que precisava res-ponder àquela pergunta para si mesmo. Ao ouvir a pergunta, de súbito ele respondeu que seria bombeiro. A professora quis saber o motivo da escolha e Bentinho logo explicou que um dia assistira a favela onde morava ser engolida pelas chamas de um incêndio. O que possuíam virara cinza. Ele era ainda pequeno, não podia fazer nada, simplesmente olhava, sentado no meio-fio, abraçado à mãe, vendo o fogo destruir barraco por barraco, enquanto os bombeiros lutavam contra a força das chamas. Agora que estava crescendo

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poderia ser bombeiro e ajudar a apagar os incêndios e não deixar queimar o que as pes-soas tinham, respondia ele.

Bentinho entendeu que ser bombeiro era um sonho, e a escola, como a professora ia explicando, alimentaria o seu sonho, preparando-o para ser um profissional.

Com aquela nota de vinte reais Bentinho comprou cadernos, lápis, borracha e outros materiais recebeu da escola. A cada dia o menino parecia descobrir um mundo nunca conhecido, mostrava-se empolgado e satisfeito, apesar dos anos perdidos fora da escola. Tentava a todo custo recuperar o tempo que passou. Já não fazia malabarismo no sinal, trabalhava na mercearia da vila e, à noite, ia para a escola. Ganhava pouco, mas já não precisava abandonar a escola antes de completar o período regular.

Bentinho queria e não sabia que querer é sonhar e por várias vezes despertava dos momentos que se perdia em seus pensamentos. Imaginava-se como bombeiro, vestido como um bombeiro, agindo como um bombeiro. E quanto mais certeza tinha do que queria, mais convicção havia em si que um dia seria um bombeiro.

Janice não tinha tanta certeza, mas preferia acreditar que o filho realizaria o sonho, que ele seria mesmo um bombeiro. Ela não acreditava ser possível oferecer a ele muitos anos de escola, dar-lhe o título que tanto queria, mas também não poderia frustrar-lhe os sonhos.

Os anos passaram para a mãe, e também para o filho, que não deixou de lutar pelo seu sonho, desde o dia que descobriu que com uma nota também se pode comprar sonhos, como dissera a moça que lhe ofertara a cédula.

Bentinho guardava o recorte do jornal onde fora noticiado o incêndio no aglomerado onde morava com a mãe. As imagens ainda estava vivas em sua memória, mas o que não morria era seu desejo de ser um herói, enfrentar o perigo e salvar vidas.

Aquele menino não perdia as esperanças de em breve declarar-se um homem do fogo.

O sinal vermelho era o indicativo de que era hora de ir para a frente dos carros e entrar em ação. O vermelho do fogo seria o sinal para entrar em ação, com uma missão a cumprir, salvar vidas. Desde que se sentira fascinado pela leitura, não se cansava de ler a notícia do incêndio na favela que foi publicada num jornal. Bentinho ouvia a mãe contar a história não sabia por quantas vezes e decidiu fazer anotações. Queria guardar o fato não apenas na memória, mas pensava um dia recontar o fato que marcou tanto a vida de todos.

Bentinho seria em breve um bombeiro e a certeza chegou desde o dia que recebera a notícia da aprovação nos exames de seleção.

Bentinho estava feliz, muito feliz!

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4ºLUGAR

ntrou em casa sapateando feito um diabo e ninguém podia adivinhar o que se passara. Pendurou o guarda-chuva numa torneira e jogou água no rosto, que tinha ficado avermelhado. Lá fora a chuva havia parado e o chão do passeio estava cheio de frutinhas misturadas a folhas e pedaços de galhos. O homem resfolegava dobrando os punhos da camisa e procurava o jornal pela sala. Uma vizinha gritava:

– Ai, que vida maldita, choveu a manhã inteira! Parem com esse barulho que eu não agüento mais!

Apenas se ouvia o ruído distante de um carro e certo tilintar de panelas. Duas casas, uma ao lado da outra, numa rua quase toda tomada pelo comércio, emparelhavam-se em colóquio por força das circunstâncias. Lojas e mais lojas.

– Pare de gritar, bruaca insuportável, ou vou aí afogar suas mágoas junto com você no poço profundo!

A vizinha calou-se um pouco e depois começou a cantar uma de suas músicas pre-diletas, como se fosse uma soprano diante de uma platéia abismada:

– Dora rainha do frevo e do maracatu, ninguém requebra nem dança melhor do que tu...

Não havia vento. Nada tremelicava, exceto a voz pontiaguda da vizinha. A rua, com uma árvore aqui e acolá e paralelepípedos semidespertos, acolhia um prenúncio, ou me-lhor, uma suspeita de calor para logo mais. Era domingo e as fachadas das lojas pareciam desprender vestígios de vozes acumuladas em outros dias. Havia um começo de sol. O homem já estava mais calmo, passando os dedos no bigode, mas com as sobrancelhas ainda franzidas. A vizinha explodia em cantoria:

– Eu tinha uma andorinha que me fugiu da gaiola, eu tinha uma andorinha que me fugiu da gaiola...

Antigamente, funcionou ali naquele quarteirão um clube militar. Mas depois de um incêndio que matou vários milicos não restou mais nada do clube. Muitas pessoas à época quiseram comprar uma parte do terreno, com suas negras ruínas, porque uns funcioná-rios da prefeitura disseram que um belíssimo arco do triunfo seria construído na rua em homenagem aos milicos mortos, mas nunca se construiu tal arco. O homem foi um dos primeiros a construir uma casa naquele terreno, por isso não queria mudar-se para outro bairro e transformar sua casa em loja, como fizeram quase todos os outros moradores.

Arco do triunfo

Joana de Holanda e GurjãoDesign/CBH

E

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Da vizinha não se sabia o motivo que lhe fazia restar naquele lugar onde dificilmente tinha sossego. Apesar disso, assim como o homem, ela estava sempre a esperar uma trégua.

– Una picolissima serenata, con un fio de voce se può cantare, una namorata ina-morata...

O homem terminava de amainar sua fúria com um copo de leite frio e a fumaça do fogão da vizinha unia as duas casas em uma irmandade leitosa. Sobre uma mesa, em uma das casas, perto do jornal, havia um catálogo telefônico aberto nas páginas amarelas. Quase toda a rua estava nas páginas amarelas. As letras pretas tergiversavam, mas uma súbita preguiça deitou-se sobre o tempo nublado. Certo arrefecimento parecia surgir de uma prece úmida vinda de um quase casamento dos dois lares tormentosos.

– O senhor é santo, o senhor é santo, o senhor é santo, hosana, hosana, hosana!Os ânimos espectrais voltaram para as paredes de onde se tinham desprendido.

Emudeceram ali para sempre como numa maldição que aprisiona as falas. O calor que prenunciava as árvores esbranqueceu-se em desistência e os paralelepípedos esfumaça-ram-se sob uma quase invisível camada de ar. Uma forte chuva voltou a cair.

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5ºLUGAR

edondona, Siãninha-de-Ninha-cega-de-Umbêrto-de-seu-Ôclides-da-venda com o bucho quase a despencar de tanto peso e algumas arrobas, insustentavelmente fora colocada deitosa numa cama de varas; confeccionada ali mesmo com Pau D’arco e vara de Cajazeira por Vitalão e pelo também mancebo de Siãninha, Dió de Sinhôzinho. Dificultosa, Siãninha firmou-se recostada no desajuste daquela acomodação – ainda que desdobrada de tamanho -, e escandalosamente chorosa e inquieta, logo se posicionou pronta para parir ligeira com a ajuda da parteira Josélita e seus apetrechos, em meio ao difícil manuseio de parto.

Estranhamente, começou a sair das entranhas de Siãninha um bolo de pêlo re-chonchudo, diferente e estranho de tudo aquilo em redor: aparecendo primeiro a cabeça e logo depois o resto incoincidente, assim de revestrez... saindo pouco a pouco, até pular solto e seguro, um bezerro pardo e esdrúxulo - insustentado nas suas míseras e rotas patas de canelas acinzentadas, e visivelmente diferente de sua origem e nascedouro; e ainda, espichava um outro, quase idêntico, do mesmo furo ali entranhado no miolo de Siãninha, debatendo-se demasiado, colorado de outra cor ( de um avermelhado e preto confuso ) e sujo de uma nódoa e recheio espesso; e um terceiro, embora menor, escorado quase sem sair da profundidade daquele fundo de bucho estreito e esquálido – movimentando-se irregular -, até sair puxado e carregado, assim bem miúdo e semelhante aos outros dois anteriores, e sendo que agora o último é todo coloridinho de cores variadas, de um pigmentado recolhido.

Lórmino-de-Nenza-do-finado-Joãozezito após assistir atencioso o trabalhoso

trabalho de parição de Siãninha, acontecente em seu casebre fundo-com-fundo ao outro casebre paralelo de Vitalão, ambos localizados no miúdo e já saída do Santantóin, percorria os arredores de pinhengo e açudina para espalhar o ocorrente do fato, já circulante inicial-mente entre Alagoinhas, Mozondó, Cana Brava, Coqueiro até chegar aos comentários na beira do Corrente da Santa Maria da Vitória, Alegre, Correntina e Santana dos Brejos.

Insistentemente, o boato percorria lonjuras de estradas puídas e entortadas: entre cabeceiras maiores do São Francisco, ao miolo da Ribeira até Angical.

No que depois se soube das crias saídas do centro nervoso de Siãninha: os dois maiores sobreviveram, ganhando tamanho como Mamote e Garrote e só o último mor-

A parição

Alexandre Flores AlkiminFaE/CBH

À professora Nágela Brandão E a Pedro Lancacer.

R

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reu de conseqüência do reboliço de bucho, no parto com a Josélita Parteira. E a mesma, ainda assim, realizou outros partos, com a mesma desenvoltura e semelhança do de Siãninha, como aquele lá na Vaca Morta, de Hormínia de Tibúrcio, que gerou um só be-zerro esquálido; acompanhada por Naninha de Deraldo, pra lá um pouco de São Pedro, bem na entrada que dá acesso à Vazante de Anacleto Rodrigues, onde conseguiu parir já um garrote inteiro e malhado... e daí, uma outra, da Represa, que despejou mais dois bezerros inchados e inconcluídos; como também Melinha de Isidoro confuso, que descarregou um feto de bezerro morto, no

entremeio do Ponto Certo ao Olho D’água. E com, a presepada, agora, repercutindo em outros casos iguais, multiplicados ali mesmo, nos povoados e nas redondezas, com o fenômeno estranhamente enfiado àquela localização, mas também já se espalhando para outros arredores, como aconteceu com Maria-de-Lodó-lá-da-Pedra-Preta, que ficou toda gigante até expelir um único bezerro parrudo e tamanhado de músculo e massa, em cima da carroceria do Caminhão Chevrolet de Arnaldo Preto motorista, que seguia muito depressa numa estradinha toda encascalhada igual de casco de boi redondo, no sentido de quem vai à Santana dos Brejos.

O Chevrolet de Arnaldo Preto, bufando fumaça, quando chegou à cidade e estacionou rapidamente na Praça Velha para o desembarque de passageiros, todos que ali estavam, circulando ou rodeando de passagem, se assustaram em ver um bezerro roxo-cintilante mamando no peito descarnado de Maria-de-Lodó-da-Pedra-Preta... E, imediatamente, todos em volta souberam do sucedido com a própria Maria de Lodó, relacionado ao estranho parto, assim comprovado pelos que estavam com ela no Che-vrolet, incluindo mesmo Arnaldo Preto que confirmou o caso.

Lórmino tratou logo de relatar e relacionar os acontecimentos, acumulados e igua-lados entre Açudina e Curralinho, no que expôs:

- A roda maior engole a menor. O preexistente labuta com as pessoas fora das suas idéias. E a idéia é um espelho arriba da cabeça ou da testa que Senhor Jesus Cristo colocou de frente pras nossas vistas...! - e continuou-tudo pode escapulir da ponta de faca ou de um mirado de revólver e carabina, mas nada foge do que tá pra riba da cabeça, que é o ordenado lá de cima!- disse Lórmino, e depois fez o pelo-sinal.

Da esquina do comércio de Tico ao baixão junto a Ismael Branco até chegar em Zé Queiroz, e daí esparramado pra todo canto e tudo que era lugar, só se comentava a parição descontrolada na esquisitice de cada caso acontecente.

A fileira de desordenados que entupiam o miolo, a entrada, a frente e as arestas circundantes da igreja matriz de Nossa Senhora Sant’Ana buscavam auxílio e explicação para o Cônego Velho Esperidião... e que, de imediato, o Cônego foi logo respondendo aos fiéis que aquilo seria armação do Cramunhão, do Tinhoso e do Romãozinho contra a Igreja, a família e a propriedade. E sendo que, a partir de então, ele, o Cônego, organizaria

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uma procissão pela glória de Nossa Senhora Sant’Ana para o combate do mal e do pecado por ali perpetrado na tradicional Santana dos Brejos, com saída da Praça da Matriz, em direção à rua dos Canelas ( pelo beco aonde termina a rua Amazonas ), pegando em se-guida a rua da Barrinha até chegar no Mercado Municipal, curvando à esquerda, e subindo até dobrar pela direita a rua do Tabuleirinho, com o retorno pelo mesmo trajeto.

Os principais coronéis e chefes políticos da Santa Maria da Vitória, como o Coronel Bruno Martins da Cruz, Zé Afonso, Clemente de Araújo e Castro e o Major Leônidas Araújo e Castro; juntamente com o Coronel e o maior Chefe Político de Santana dos Brejos, Chico da Fulô, e também o seu adversário mais aguerrido, o Padre Velho Esperidião, se reuniram na propriedade e fazenda São Félix, à beira do Rio Corrente ( na sua margem direita, de quem desce o rio ), pertencente aos Araújo e Castro... para um encontro que tinha como propósito e finalidade se discutir questões de interesse dos Coronéis, e daí se estabelecer um entendimento, entre todos ali, como num acordo, de paz, e um cessar fogo; uma trégua de calibre ou mesmo uma espécie de embargo no uso de armas e de munição – pelo menos momentaneamente - entre os mesmos. O objetivo era que os Coronéis deixassem um pouco de lado as suas disputas e as suas desavenças pessoais e particulares, bem como as suas divergências e diferenças político-partidárias que os separaram durante todo um período, para agora se juntarem e se ajudarem, mu-tuamente, em função dos últimos acontecimentos... O intuito, de toda essa negociação, era de acabar com a proliferação dos diversos partos desarranjados e esdrúxulos, que passaram a incomodar o poderio e a propriedade privada, concentrada entre os mesmos coronéis. E que temiam, com isso, o estranho fato, enquanto possibilidade de surgir uma nova Canudos naquele miolo oeste do interior baiano.Como bem considerou o mais exaltado deles, o Coronel Clemente Araújo:

- Podemos ser afetados gravemente quanto ao nosso ganho econômico; pois se o povo já começa a parir e gerar riqueza e, em contrapartida, diminui-se a mão-de-obra humana para o trabalho em nossas fábricas e propriedades, ficaremos sem produzir e vamos todos empobrecer!

- Sem falar no número de votos que vamos perder! – participou o Coronel Bruno.

- E isso poderá se esparramar para outros cantos do estado, afetando a política de uma maneira geral e, Santa Maria da Vitória, como Santana dos Brejos serão apontadas como responsáveis pelo infortúnio com os outros coronéis e com o restante do Estado. Será uma vergonha para todos nós, chefes políticos daqui! – reagiu o Major Leônidas. - Vamos matar todas as geradoras e parideiras e recolher as crias. E isso só pode ser feito através da força e do rifle!

- Concordo com o Major, vamos banir o mal e o pecado dessas bandas. Deus está conosco! – esbravejava confuso o Padre Esperidião.

Enquanto isso, o Coronel Zé Afonso apenas balançava a cabeça, como um sinal favorável a tudo que se dizia.

- Essas crias e o gado que será recolhido deverão ser distribuídos proporcio-nalmente para os que contribuírem nessa empreitada! – arrematou o Coronel Chico da Fulô.

No dia seguinte, os mesmos coronéis já se organizavam com toda a sua jagunçada,

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dividida em duas frentes: uma comandada por Pedro Azulão, um alagoano vindo de Riacho de Santana e pertencente ao grupo de jagunços do Major Leônidas, com o restante de jagunços dos outros coronéis da Santa Maria da Vitória, aonde se dirigiram para o entor-no de Açudina, Pinhengo, Santantóin até Curralinho; Vaca Morta e Mosquitão. E a outra frente, vinda da Santana dos Brejos, dirigida pelo jagunço Joca Pereira e engrossada por outros tantos jagunços do Coronel Chico da Fulô, donde partiram no sentido de que vai pros lados do povoado da Pedra Preta, daí rompendo pela Gameleira até à Cana Brava. O que se via era sangue entornado com músculos e vísceras torcidas; quartos e miúdos arrancados com a carabina e o parabélum.

Recolhiam-se as crias agora crescidas enquanto novilhas, bois maiores e marruás, para ser tudo muito bem dividido e distribuído, equitativamente, aos coronéis da bacia do Rio Corrente.

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6ºLUGAR

oncentrado telepaticamente numa sala de exibição virtual, XY�4 assistia a uma projeção sobre os hábitos de criaturas de outras dimensões e planetas da galáxia.

Toda a sua energia estava canalizada para as informações exibidas pela Central de Inteligência, que reservava alguns momentos do tempo disponível dos seres viventes do planeta para enriquecimento científico que possibilitassem formulação de hipóteses sobre a evolução das espécies do universo.

Pensava-se muito sobre as possibilidades de expansão da Unidade de Habitação para outros ambientes espaciais, outros planetas e galáxias.

Para tanto, reuniam-se ali grandes mentes que seriam a elite do pensamento das espécies da sociedade.

O “filme” (se é que se podia dizer que fosse assim, já que não havia som ambiente, não havia a projeção de imagens por exposição de película fotográfica ou projetores mecânicos) era exibido telepaticamente e controlado pela CENTRAL, retratava a vida de seres de vários planetas e as condições do ambiente a que pertenciam.

A cada imagem “projetada”, surgiam expressões fisionômicas diferentes, refletindo um misto de admiração, de crítica e até mesmo, incredulidade...

Cada integrante “espectador” emitia comentários telepáticos para os companhei-ros, com mensagens diversas... “Como são primitivos”. “O clima é favorável?” “Quais os recursos podem ser aproveitados ou apropriados?”... “Poderemos utilizar as criaturas como cobaias para experimentação?” “Poderemos enfrentar algum tipo de resistência à instalação de nossas CENTRAIS?” “Calculando em tempo/luz a viagem...”.

Todas essas perguntas e reflexões ecoavam à grande velocidade nas mentes privile-giadas das criaturas, sempre acompanhadas por equações matemáticas, gráficos, trajetórias e probabilidades... Era necessário canalizar as informações para que todos pudessem partilhá-las e alterá-las se necessário...

As imagens se repetiam... O planeta em questão era a Terra, apesar de ser considerado muito primitivo nas

suas relações com o ambiente, sugeria que seria mais fácil o processo de dominação, aculturação e eliminação de seres tão inferiores.

Havia ainda uma grande possibilidade de recursos hídricos, elétricos, nucleares, silício e outras jazidas que nem ao menos haviam sido descobertas por tal civilização.Os seres (que se denominavam “humanos”) viviam em constantes lutas e não conseguiam

Apocalipse NÃO...

Consuelo Ramos de MeloFaE/CBH

C

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se organizar de forma sustentada; muitos morriam de fome, enquanto poucos eram abastados, tinham excelente saúde, possuíam recursos financeiros, culturais e eram reconhecidos como elite dominante, que excluíam ou incluíam os outros de sua espécie de acordo com seus interesses.

Muitos eram os motivos de subjugação: poder, riqueza, interesse, religião, cultura...Qualquer diferença entre os indivíduos poderia justificar um extermínio em massa de tantos outros...

“Aqui na CENTRAL, já excluímos todos os considerados inapropriados ao SISTEMA; eles ainda vão levar algum tempo para fazerem a sua “seleção”... Considero isso um ponto positivo, pois se eles não são unificados, poderemos exterminar toda a forma vivente da Terra, sem prejuízo algum à nossa espécie, sem qualquer possibilidade de confronto...”

Vendo seus rudimentares hábitos alimentares, puderam perceber que os humanos ainda comiam!... Possuíam dentes que possibilitavam mastigar, moer, triturar e cortar... “Quanto desperdício de tempo... Será que não descobriram que as porções individuais de cápsulas e gel hídrico ionizado substituem a desgastante tarefa de comer, digerir e ainda ter que fazer a higiene bucal?”

“Ainda se locomovem rusticamente, andando, utilizando automóveis e outros meios de transporte... Ainda não descobriram a tele cinese...”.

“Que gasto excessivo de energia...”“Para quê tantos dedos nas mãos? Um apêndice para apertar um botão e um outro

para agarrar já são mais do que suficientes... São mesmo muito extravagantes... Como se mexem... Há até competições de ginástica, futebol, artes, além de produções manuais... São mesmo muito atrasados!”

Aqui na CENTRAL, não precisamos nos movimentar a não ser o estritamente necessário: o suficiente para não ocuparmos mais do que o espaço disponível de nossas acomodações, pequenos casulos do Núcleo Habitacional dos setores da Central. Não precisamos mais nos reunir para trabalhar, já que resolvemos tudo telepaticamente; não precisamos mais da companhia de seres como nós, pois estamos em permanente con-tato; não possuímos qualquer outra espécie de vida como “animais de estimação’, que são espécies dispensáveis, já que exigem uma dedicação de seus donos, como limpeza, alimentação, cuidados, treinamento”... Os robôs nos garantem tal presença...

Não precisamos de ar puro, calor ou temperatura propícia, já que o nosso ambiente é totalmente climatizado e adaptado pela CENTRAL, o que nos possibilita, inclusive, es-colher a possibilidade de ser dia claro ou noite escura, com temperaturas altas ou baixas, com alta umidade do ar ou não, em questão de micro segundos, a um comando de voz ou mensagem mental...”

“Também os humanos terão que se adaptar, pois as condições de clima e temperatu-ra, depois de tantos abusos ao ambiente em que vivem, provocaram desastres terríveis... Após anos, décadas de desrespeito e descaso, hoje eles convivem com tufões, furacões e terremotos, além das ameaças de bombas químicas ou biológicas, que poderão extinguir qualquer possibilidade de vida humana...”

Ao se deparar com tais pensamentos, XY�4 quase chorou... (se fosse possível ter glândulas lacrimais...) Pensou em como a vida de tais humanos poderia se tornar como a

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da sua espécie... Tons de cinza, marrons e escuros, já que não haveria mais a luz do sol, matas, florestas ou cursos de água...

Desejou (um procedimento altamente questionável pela CENTRAL) que aqueles humanos pudessem se entender... Como seria viver naquele mundo, cheio de árvores, “indivíduos imaturos” (crianças, como as chamavam os humanos), “indivíduos fora dos padrões de biotipos aceitáveis” (etnias diferentes, cores e raças distintas), conhecimentos e informações ainda tão precárias, divulgadas por mídias e telecomunicação tão insuficientes e inacessíveis à grande parte da população? “Como seria sentir na pele o calor do sol, dormir com a luz da lua e regular as atividades rotineiras pelo movimento dos astros e pela vontade da natureza”? “Tudo muito inconstante, muito precário, muito improvisado...”

Vendo ainda imagens de lugares tão diferentes dos da CENTRAL, “sentiu” (como sentiu? Não era permitido...) uma profunda vontade de conhecer, visitar tal lugar...

“Pesquisa exploratória, claro!” Até aí, muito conceituada e até estimulada pelos seus iguais...

Após visualizar a projeção e os indivíduos de tal planeta, XY�4 percebeu toda a contundente verdade da palavra igual... Igual, idêntico, sem “identidade”.

Olhou para todos seus semelhantes e percebeu o mesmo padrão geneticamente escolhido e planejado; a melhor tipagem genética da população... A CENTRAL exigia alta linhagem dos seres que habitariam a sociedade: todos clonados, gerados sem qualquer perda de fragmentos de DNA; não havia qualquer chance de recombinação gênica. O resultado: toda a comunidade possuía uma pele sem escamas, sem pelos ou anexos que os fizessem tolerar a exposição ao sol; olhos muito claros, que não permitiam um maior contato com uma iluminação que não fosse artificial. Orelhas em profusão, já que com o aumento de informações vindas do ambiente, era necessária uma maior captação desses sinais... Um corpo franzino, pequeno, flácido, já que não havia a necessidade de se utilizar qualquer movimento mais complexo, além do que o pegar e apertar botões...

Não havia a necessidade de longas pernas, já que essas não se movimentavam para deslocamento no espaço... Por enquanto ainda estavam ali, inertes, pequenas... As próximas gerações já sairiam sem elas, já que a sua manutenção envolvia um aumento do gasto energético... Não havia a palavra desperdício para a CENTRAL.XY�4 começou a se desligar do grupo; suas reações foram monitoradas pela CENTRAL, que automaticamente, bloqueou o acesso das suas ponderações aos outros, por julgá-las ina-propriadas ou inconvenientes ao propósito de invasão da Terra...

Chamado à SEDE, XY�4 declarou (mesmo que telepaticamente) que não poderia se decidir ou avaliar tal projeto sem uma pesquisa local, exploratória ao planeta em questão.

Através de fórmulas, esboços e outras variáveis provou por “A + B” que tal viagem seria adequada e necessária.

Em desconfiança, mas convencida pelos argumentos científicos apresentados por XY�4,

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a CENTRAL relutante apoiou tal empreitada.XY�4 preparou seu transporte Megatelecineticoluz, ajustou as coordenadas para o

planeta Terra e zás! Num micro segundo de tempo/ luz, estava aqui...Tentou se “metamorfosear” assumindo a forma humana e se misturou ao que

viu...O Caos da cidade grande, a correria dos humanos, a poluição e o calor e o tempo ter-

restre eram muito difíceis de serem assimilados, mas não deixava de ser interessante.Regulou sua telepatia para os meios de comunicação e pôde aprender diversas

línguas rapidamente; talvez por isso, conseguiu entender que as pessoas eram diferentes, tinham culturas e crenças diferentes e, conseqüentemente, valores diferentes... Aí esta-va a razão de tantos desencontros e desatinos... Se não podiam se aceitar como eram, como viver em paz?... “Simples, pensou ele, é só um escutar, aceitar o outro como ele é e reconhecer que todos têm os mesmos direitos... Por que brigam tanto e tentam se eliminar uns aos outros?”

Continuou a sua pesquisa, observando, agora, aquelas “criaturas imperfeitas, ima-turas”, que corriam, brincavam e pulavam ao sair de um portão... Todas estavam com o mesmo tipo de vestimenta (descobriu que deveriam ser de um “núcleo” comum... Mais tarde, descobriu que se tratava de “escola”).

Tais seres apresentavam grande variação fisionômica, mímica e rítmica. Eles pro-duziam sons alegres, ora tristes, melódicos ou sons contínuos, compridos como asso-bios...

Notou que esses seres se dirigiam a lugares diferentes, mas sempre voltavam nos outros dias (medida de tempo do humanos).Ficou interessado e resolveu instantaneamente se transmutar em um deles...

Assim como criança, entrou na escola, assentou-se e escutou o que aprendiam... Mesmo de forma rudimentar, aquele conhecimento lhe chamou a atenção: as criaturas aprendiam como conservar o meio-ambiente, como respeitar as diferenças, como conviver melhor entre si e ainda, de que havia esperança de mudanças...

XY�4, assim transformado em criança, se permitiu chorar... Compreendeu que aqueles humanos poderiam mudar suas atitudes e sua forma de resolver os problemas do mundo em que viviam...

Ainda chorando, XY�4 desapareceu da escola e se pôs a desfrutar as cores, o ambiente, o vento no rosto, o frescor da chuva fininha que caía às vezes e fazia tudo ficar verde e florido! Permitiu-se caminhar e observar as pequenas coisas e os seres que existiam...Percebeu animais e as possibilidades de escolhas ainda possíveis neste mundo e decidiu...

“ Não posso permitir que meu povo acabe com tudo... Tenho que fazer algo para reverter esta decisão...”

Comunicou-se mentalmente com a CENTRAL e relatou que o povo da Terra era uma ameaça à invasão, que eles reagiriam fortemente à dominação com armas terríveis até então não conhecidas; que o clima era de difícil adaptação, que provocaria uma grande necessidade de gastos e que havia uma série de empecilhos à conclusão da obra...

Em suma, o evento poderia ser mais bem efetuado em outro planeta.Indagado sobre a sua volta a CENTRAL, XY�4 pediu permissão para ficar e estu-

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dar com mais cuidado as terríveis armas de extermínio, que poderiam causar o caos à CENTRAL e a todo o universo.

Prontamente liberado para tal pesquisa, XY�4 interrompeu relações com seu povo e se refugiou em nosso planeta...

Comenta-se por aí que, às vezes, ele se transforma em algum líder espiritual, bus-cando difundir a paz e a harmonia entre povos; falou-se também que ele até foi escolhido para ganhar um grande prêmio mundial da paz...

Ninguém conhece seu paradeiro, mas sabe-se que a CENTRAL vez por outra manda algum dos seus à sua procura...

Eles estiveram recentemente em uma cidade do interior de Minas, uma tal de Varginha...

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7ºLUGAR

bsorto em pensamentos, tentava ainda ler o pedaço de papel com as letras miúdas de uma receita dessas de preparo rápido. A luz trêmula da vela quase a se acabar também não contribuía para uma leitura eficaz. “É nessas horas que se vê a fragilidade de uma cidade sem recursos”. Auferiu esse pensamento enquanto virava e revirava a folha tentando achar o melhor ângulo de visão. Além disso, um vento persistente mantinha em desequilíbrio a pequena chama. Por mais que procurasse com o olhar não conseguia descobrir a fonte daquelas rajadas, e isso o incomodava cada vez mais.

Alta madrugada e a cidade mais uma vez sem luz. Bem, na verdade ele não podia saber se era toda ela ou somente seu bairro. “Provavelmente é só aqui nesse mato mesmo”, pensou se referindo ao seu bairro. Acabara de se mudar, mas já tinha criado uma imagem nem um pouco feliz do lugar. “Pessoas feias e mau cheiro, isso define bem” pensava sorridente, como que em vingança por aquilo tudo estar ocorrendo.

- Merda de fósforo barato!!! – gritou o rapaz começando a demonstrar seu estado de espírito quando quebrou o palito ao tentar acender o fogão.

Foi assim que percebeu que havia falado sozinho. Até então apenas conversava consigo em pensamento, “como pessoas normais”, refletia ele, “apenas um cara normal”. Ele adquiriu um semblante sério, olhou ao redor procurando alguma testemunha de seu deslize. Tinha medo disso. Sua mãe sempre lhe contava casos tenebrosos de pessoas que falavam sozinhas. Era assim, no início apenas alguns comentários, xingamentos e coisas do gênero. Depois a coisa tomava proporções assustadoras, e a pessoa começava a delirar. Enquanto conversava com outros, também conversava com ele mesmo e assim tornava o diálogo incompreensível. No fim não mais sabia se pensava por si mesmo ou era apenas um reflexo do pensamento de outro. Era muito estranho, só podia concluir isso. Não queria ser considerado louco, isso não. Tinha receio desse título. Sua mãe o punha apavorado com as histórias do Hospício Santa Clara. “É muito triste o fim daquelas pessoas” lembrava como ela falava com cara de desolo.

Retomou a racionalidade quando percebeu o cheiro de gás contaminando o ambiente. “Putz o fogão” pensou ele. E rapidamente girou o botão para fechar o gás do bocal. Olhou para a vela instintivamente. Sabia que a mistura gás e fogo não era bem-vinda. Largou o papel e curvou o corpo e a cabeça em direção à vela para apagá-la. No entanto, interrompeu aquele movimento. Abriu a caixa de fósforo. Apenas três. “É melhor não arriscar, ainda mais com esses fósforos péssimos” pensou. Afastou-se e sentou no banco

Bruno Loureiro MahéDesign/CBH

Mais uma noite

A

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que colocara ao lado do fogão. “Mas se não aconteceu nada até agora, não vai acontecer mais nada” refletiu.

O cheiro ainda continuava forte. Olhava atentamente para a chama diversas vezes quando sentia o odor de gás. Não sabia por que, mas tinha que vigiá-la. Qualquer alteração poderia sinalizar perigo. A única vibração era causada pelo vento constante, e isso agora o afligia mais. O gás, o fogo e ainda o vento. “Isso não vai dar certo” concluiu consigo mesmo. Levantou e tateou a janela do cômodo vizinho à procura de frestas. Nada. Parou no meio do quarto e ficou a escutar qualquer ruído que denunciasse a origem da insistente corrente de ar. Nesse momento comprovou a pequena dimensão daquele seu aposento. Era um quarto suíte com um pequeno anexo destinado à cozinha, e uma extensão lateral de meio metro, que mal cabia um homem, e que possuía uma enorme janela, local no qual acreditava ser uma espécie de varanda. Pelo menos era esse o uso que fazia daquele canto.

- Que pobreza, não vejo a hora de conseguir esse emprego e sair dessa misé-ria...

De súbito seu coração disparou. Notou que havia falado novamente sozinho. E o pior foi que dessa vez pronunciou mais que apenas uma frase de indignação. Havia comentado um argumento que considerava até pertinente e elaborado. Isso o incomodou mais ainda. “Era assim”, lembrou de sua mãe lhe dizendo, “começa apenas com algumas palavras ou reclamações, mas depois eles começam a conversar mesmo, e diziam frases com sentido. Deus me livre desse tormento”. Começava a se questionar se estava se tornando um deles. “Será?” pensava ainda aturdido pelo recente transtorno.

O ambiente permanecia calmo. Aquele silêncio conseguiu pacificar sua atormen-tada mente, pelo menos momentaneamente. Tanto em seu lar, se pudesse considerar aquilo como um lar, como lá fora, na rua que passava em frente ao seu prédio, as coisas se mantinham em ordem. Constatava isso a todo momento quando olhava de relance pela janela do quarto. Era daquelas ruas em que não se encontrava ninguém durante toda noite e a madrugada. Mas também se se encontrasse alguém nesse horário, boa coisa não resultaria desse encontro casual.

Voltou para a cozinha. A vela, agora a um quarto de seu fim, continuava acesa. O vento deu uma trégua, e o cheiro de gás já não lhe era perceptível. Teve um pouco de receio de já tentar acender o bocal, pois sabia que poderia ter se acostumado com o cheiro de gás que ainda poderia impregnar o ambiente. Estranhamente, aquele pensa-mento se esvaiu tão rápido de sua mente que logo quis reacender a chama do fogão sem muito pesar. Provavelmente, a fome falava mais alto que a razão. Pegou então a vela e curvou-a em direção ao bocal assim que girou o botão que liberava o gás. Foi então que uma pequena explosão provocou uma chama mais alta e um barulho alto que o assustou, fazendo-o pular para trás e derrubar a vela no chão.

- Merda!! Que merda!! – gritava quase se esquecendo do repouso noturno.Não acreditava naquilo. A vela no chão, apagada e com um pedaço a menos, pois

havia se partido na queda. E para piorar, queimara os dedos, que estavam vermelhos e ardiam, e uma parte do antebraço. Lembrou instintivamente de fechar o gás. Momenta-neamente se orgulhou da perspicácia de ter-se lembrado de fechar o gás numa hora de tamanho stress. Mas, obviamente, o sentimento de satisfação lhe passou tão fugaz que

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logo recompôs seu ódio pela atual fase miserável de sua vida.Enquanto lavava a mão e o braço queimados, com água fria, tentou racionalizar

perante a situação crítica com que se deparava. “Bem que me disseram que iria sofrer vindo pra cá” refletiu isso sem saber por quê. Confundido pelas circunstâncias, nem mais deu atenção para o fato de que novamente havia falado em voz alta sem interlocutor presente. Quando caiu em si de que isso lhe ocorrera mais uma vez, já agora nem tão assustado, quis relevar, aceitando a possibilidade de que meros xingamentos ditos não lhe fariam perder o juízo, e que até acreditaria que lhe trariam proveito, como válvula de escape de uma realidade cada vez mais sôfrega.

Lançava um olhar cada vez mais severo para um trajeto de visão que, por ordem de infortúnio que lhe proporcionava, começava com o fogão, passava pela vela espedaçada no chão e terminava na caixa de fósforos aberta ao lado do banco. Quando escapava desse percurso infernal, fixava o olhar em seus dedos que ardiam e ruborizavam e, por conseguinte, podia sentir que crescia dentro dele um sentimento de fúria e impaciência perante aquele cenário. Abruptamente, fechou a torneira, e com três longos passos, considerando o último como um salto, jogou-se sobre sua rudimentar cama, no quarto ao lado. Sentiu-se como um atleta que acabava de realizar um salto triplo, e que não havia vencido, mas ao menos executara movimentos com postura e perfeição. Quando visualizou isso, escapou um pouco daquele ambiente. Lembrou um pouco do que foi há muito tempo. Gostava de assistir aos jogos olímpicos em sua antiga casa, com os parentes e amigos presentes. Era uma festa. Muito distante da sordidez daquela sua atual vida. “Era preciso”, tentava se conformar.

- Chega um momento que um homem precisa fazer o que deve ser feito... Desferiu essas palavras, dessa vez sem ao menos perceber que falara sozinho. Ao

lembrar do tempo que passara ficou pior. A raiva se misturou com uma enorme falta. Não uma falta de pessoas somente, mas de um tempo e de uma felicidade há muito perdidos. Sentia-se desnorteado, pois estava ali justamente em busca de sua “felicidade”. Uma feli-cidade que lhe mostrava disfarçada, maqueada em forma de uma bruta realidade. Com o rosto sério, virou o corpo em direção à janela. Queria olhar ao longe, bem longe dali. Só o que via era o lençol velho, que havia improvisado como cortina, que obstruía porcamente a luz advinda da rua. Corpo e mente cansados o levaram ao sono, e à escuridão.

Minutos depois foi despertado por alguma força interna. Seu organismo o forçara a voltar a si, precisava se nutrir. Era novamente a fome falando mais alto nele. Estranha-mente percebera já há algum tempo que esse evento ocorria com certa frequência nos últimos tempos.

- É esse lugar mesmo. Ele está me mudando, me matando, pra falar a verdade..Uma vez mais, pronunciara uma frase para ele mesmo. Nem se dando conta do

acontecimento e desferindo enorme esforço, conseguiu se levantar da cama. De pé, um pouco tonto pelo esforço de se levantar de uma vez, recompôs seus pensamentos. Norteou-se para a cozinha, agora determinado. Em frente à entrada, deparou-se nova-mente com o cenário caótico abandonado há pouco. Com um suspiro de sobriedade, começou a procurar pela receita no chão. “Não, esse não é um bom começo” refletiu consigo. Reavaliou seu plano e o retomou pegando a vela no chão e colocando em cima da pia. Tateou em busca da caixa de fósforos, achando-a logo em seguida. Respirou fundo

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novamente, pegou um dos três fósforos remanescentes e riscou-o. O brilho da pequena chama alumiou o recinto sobremaneira. Rapidamente acendeu a vela. Sucesso!

- Ah, agora as coisas começam a dar certo!Com um sorriso estampado, parou um instante para admirar sua proeza. A vela

acesa com o gasto de apenas um fósforo, como planejara, exatamente como planejara. Cruzando os braços atrás da cabeça, sentou um momento no banco ao lado do fogão. Pensava como a fome havia passado após sua façanha. Porém, foi só pensar nela, mesmo como se a tivesse vencido, que ela voltou contra ele e com toda intensidade, desferindo-lhe uma enorme dor na boca do estômago. Contorceu-se todo e sentiu medo dela. Era preciso realmente acalmar aquela fera. Nunca sentira aquilo como sentia agora. Girou bruscamente a cabeça em todas as direções, num espasmo quase incontrolável de loucura. Fitou a caixa de fósforos e pegou-a. Retirou o penúltimo. Agora revigorado pela vitória sobre o último palito que acendera, não teve receio de riscar o que tinha em mãos. Após duas falhas, sucesso novamente: fósforo aceso e não quebrado. Posicionou no bocal e girou o botão. Esperou algum tempo e nada. Aproximou mais ainda e nada. Foi quando lembrou que aquele bocal estava estragado e rapidamente direcionou o fogo para o do lado. Tentando girar o outro botão, sentiu os dedos queimando novamente, fazendo-o arremessar o palito longe.

- Meu Deus!! Não tô acreditan-do nisso!! Deve ser alguma maldição!! – dizia aquilo sentindo enorme dor pela queimadura no mesmo local ainda vermelho e ardido.

Fechou o bocal. Dirigiu-se para pia, sem pressa ou raiva, somente com indiferença. Apenas abriu a torneira e colocou os dedos queimados sob a corrente de água. Desta vez, fechou os olhos. Encostou a cabeça na parede e ficou ali um tempo, aliviando a dor dos dedos e de sua cabeça. Em sua mente um turbilhão de imagens com e sem sentido. Não podia ficar sem conseguir executar uma tarefa tão simples, e não podia tampouco, ficar sem comer.

- Não é possível que não vou conseguir acender esse fogo. Tô me sentindo um homem das cavernas que não sabe ainda dominar o fogo e vive num a caverna escura e abandonada – disse o rapaz.

Já falara quase uma dezena de frases sozinho, somente naquela hora. Algo que lhe seria assustador se estivesse em plena consciência. Ao contrário, embrenhava-se cada vez mais naquela noite abominável e solitária. Cada minuto que se passava reavia um instinto primitivo. E assim sentia-se cada vez mais desafiado por aquelas circunstâncias e entregava-se paulatinamente aos anseios da loucura. Era-lhe uma questão primordial

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vencer aquele monstro.- Vejamos o que fazer. A vela já está quase no fim e tenho só mais um fósforo. Agora

é vencer ou vencer. – Dizia num tom de suspense e mistério.Agora acreditava realmente que fazia parte de um jogo em que todos dependiam

de sua atuação. E que se tudo desse certo, e iria dar, pensava ele, salvaria a todos no final da história. Dessa forma não tinha mais medo. Aliás via nessa a sua única opção. Era tentar isso ou tentar dormir com fome. O que, sabia ele, era uma experiência muito desagradável.

Pegou o palito de fósforo e o ergueu contra a luz da vela como que admirando a última bala que mataria o vilão. Congelou sua visão em relação àquele objeto e adquiriu uma postura de bravura. Dessa vez racionalizou muito para saber qual seria o bocal certo para acender. Posicionou a panela em cima dele, visualizou o botão a ser girado. Sem muito pensar, riscou o fósforo habilmente, acendendo-o, colocou a chama sobre o bocal e girou o botão respectivo. Qual foi sua surpresa quando tudo deu certo. Bocal aceso, sucesso. Uma corrente de satisfação percorreu toda sua espinha e o fez arrepiar de felicidade. Quase não conteve o pulo de alegria e o soco no ar de fúria.

- Ah! Falei que ía conseguir, seu miserável. Achou que podia comigo né seu merdinha! Há! Há! Há! – e gargalhava com uma alegria estranhamente demonstrada e consentida.

Ao mesmo tempo, apoderou-se de um pensamento distante de ser bom. Como que se houvesse caído na realidade novamente, percebeu como havia se sentido tão bem após uma simples atividade doméstica. Era como se marcasse o gol da vitória do seu time em final de campeonato. Aquilo o transtornava.

- Será essa a felicidade que vim buscar? Vibrar por conseguir acender o fogão? – refletia amargurado o jovem.

- Caralho, e ainda estou falando sozin... – nem conseguiu terminar a frase de ta-manho espanto.

Com um pulo para trás, rotacionou todo corpo novamente em busca de testemunhas e em busca de alguma brecha que demonstrasse ser aquilo um pesadelo. “Deve ser um pesadelo, um simples pesadelo” pensou assustado. Entrou no quarto e bateu nas paredes tentando desmontar aquele cenário. Era tudo ficção, ele sabia. Sabia que não era tão in-significante e louco como estava demonstrando. As paredes, obviamente, não cederam à sua investida. Ainda alucinado por todo o transtorno, foi parando vagarosamente ao lado da cama. Foi perdendo as forças e deixou-se novamente vencer pela exaustão. Caiu pesadamente sobre o colchão. Mais um mergulho num sono intermitente. Conseguiu sonhar, apesar do pouco tempo de desmaio. Avistou uma imagem vermelha e amarela, assemelhando-se a uma chama bem ao fundo que lhe provocava uma sensação de quei-madura. A coisa começava a aumentar e caminhava em sua direção. Ele corria cada vez mais rápido, num cenário de profunda escuridão. No entanto, a chama era mais rápida e começou a queimar seu braço. Correndo, viu uma caixa de fósforos azuis no chão. Pegou, e leu enquanto corria. Eram fósforos de água, por mais louco que possa parecer. Uma voz que saiu dele mesmo disse: “risque, são fósforos de água, para apagar o fogo”. Ele não sabia o que fazer e o fogo continuava ao seu encalço. Pegou um fósforo e tentou riscá-lo. Não conseguiu. Pegou mais um, e ele quebrou. Outro, e ele quebrou também. Mais um e a voz dele mesmo movimentou seus lábios fora de seu controle: “Achou que

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podia comigo né, seu merdinha! Há! Há! Há!”. Ficou com muito medo e seu desespero só piorou seu duelo com os fósforos que foram se quebrando um a um até que restou apenas um. Parou de correr do fogo. Suspirou fundo e riscou com fúria. Acendeu, então, uma chama de água. Seu sorriso estampado de felicidade foi bruscamente roubado quando o fogo aumentou, destruiu sua pequena fonte de água e foi direto para o seu estômago, provocando-lhe uma enorme dor. Acordou, levantando-se rapidamente, com um grito de dor. Pálido, com o corpo encharcado de suor, e com olhos esbugalhados. Por um instante não sabia mais qual era o pior pesadelo, se o que sonhava ou se a própria realidade.

Permaneceu sentado por um tempo, olhando a sua volta, situando-se perante esse seu novo mundo após o pesadelo psicodélico. Não reconhecia ao certo aquilo onde se encontrava. “Parece um quarto” pensava. “Ah, é o meu quarto” concluiu.

- Onde está o fogo? E os fósforos de água? – dizia remoendo-se de insensatez.Lentamente reouve sua consciência. Pensando se aquilo era ou não realidade,

chegou a uma conclusão de que o mais racional e lógico era que aquilo era a realidade e o pesadelo havia ficado para trás. Bem, não queria entrar no mérito da questão de des-cobrir qual o pior pesadelo no momento, se a realidade ou se aquele sonho ruim, pois sabia que não acharia uma resposta. Por falar em realidade:

- A panela...- disse com voz de defunto.Correu em direção à extensão lateral que considerava sua varanda. Quando chegou,

e deparou com roupas penduradas, percebeu seu erro e voltou em direção à cozinha. Encontrava-se em um triste estado de perdição, sabia disso, mas também tinha consci-ência que nada poderia fazer a não ser esperar e deixar o tempo lhe devolver a sanidade. Cônscio de seu grave problema, partiu para a resolução do que ainda considerava ser capaz de resolver: a fome.

A cozinha, ou o que restou dela estava deplorável. A panela que continha o macarrão, agora sim lembrava o que havia tentado fazer todo esse tempo: macarrão; estava toda preta. E ao que tudo indica, a água havia fervido e queimado o macarrão, e transbordado sujando todo o fogão e apagando o fogo. O gás contaminava perigosamente o ambiente. Para sua “sorte”, a vela havia se acabado, mas não antes de fazer uma última sujeira. De alguma forma o resto de vela havia caído sobre a caixa de fósforo vazia e um pequeno incêndio queimara um pedaço do banco. Fogo esse que se apagou aparentemente sem motivo. Parecia que era mais uma peça que o destino lhe pregava.

Sem entender direito o que deveria fazer, dirigiu-se para frente do fogão e girou o botão fechando o gás. Baixou a cabeça e olhou para o chão à procura de algo que na-quele momento parecia ser sua sanidade esfacelada no chão. Abriu um sorriso estranho e começou a caminhar em direção ao quarto.

- Isso que dá desafiar o poder do fogo. O deus e criador de tudo. – disse com firmeza o jovem.

Em frente à janela do quarto olhou lá fora, bem ao longe.- E pensar que somos filhos dessa terra...Ajeitou friamente sua cortina improvisada e olhou de relance para a cama. Deu dois

passos, olhou para baixo. Sentiu uma enorme dor na barriga, caiu agonizando na cama. E dormiu, desta vez, profundamente, e sem sonhar.

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8ºLUGAR

vento corta os ares da noite calada que, mesmo quieta, fala em tom taciturno através de seu misterioso silêncio. O sopro contínuo da brisa noturna ulula por dentre as copas das árvores, que executam uma sinfonia enigmática na qual os instrumentos são folhas, e, a música, o seu sereno farfalhar. A esfera lunar emite raios diáfanos que enre-gelam as trevas; certas criaturas (filhas da noite) saem de seus abrigos obscuros velados aos olhos humanos, dando vazão aos seus instintos primitivos - puros em sua essência -, sob a influência hipnótica do resplandecente disco alvo.

Nas luzes pálidas que se irradiam os lobos encontram sua mais excelsa inspiração, cantando suas canções lúgubres de amor que ecoam pela vastidão dos bosques - encan-tados, porém, temerosos. E sobre o solo sagrado que recobre as profundezas da terra, jazem folhas ressequidas, coloridas de um aspecto ferruginoso que caracteriza seu estado inerte de morte. Árvores que remontam o princípio dos tempos delineiam os meandros traiçoeiros de um labirinto verde, conhecido tão somente pelos habitantes inocentes da floresta; elas, com seus troncos portentosos e raízes vigorosas em seu apego ao chão dos seus antepassados, confabulam entre si sobre como ludibriar os caçadores pérfidos que ousam atentar contra a vida de seu tão remoto santuário.

A maldade imbuída na alma humana e a natureza pecaminosa das ações do homem, com suas drásticas e constantes afrontas às divindades da floresta, terminaram por en-durecer o coração das árvores que, por meio de encantamentos há muito esquecidos, invocaram as forças proibidas da mata, antes adormecidas em lugares recônditos. Os poucos que lá se adentraram conheceram a vingança que os aguardava, e não mais re-tornaram. Suas bocas ainda falam e seus olhos continuam vendo; mas, certamente, já nos campos da eternidade...

Os humildes camponeses do vilarejo que circundava a fímbria da floresta ouviam vozes sussurradas, indistinguíveis, assim como passos vagarosos que se faziam ouvir através dos sons distantes de folhas secas e galhos esmagados. Às vezes, um forte odor pestilento recendia dos recessos dos bosques, à maneira de miasmas fétidos provenientes da matéria em decomposição; curiosamente, o cheiro era sempre precedido por um grasnar de corvos que retumbava pelos ares, após o qual surgia um turbilhão de vento - quente como o próprio inferno! - realizando as mais desvairadas circunvoluções, agitando as árvores a ponto de entortá-las! E o bafio, quente, pegajoso, acre, se disseminava pelas estradas e vielas lamacentas que entremeavam os casebres rústicos, e os atingia com uma

Ciro Monteiro Silva LuzEnfermagem/Passos

A Abóbada Verde

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intensidade espantosa, fazendo com que os seus escassos moradores conjeturassem sobre o quão terrível deveria ser o ardor que emanava do epicentro do fenômeno!

Aqueles de espírito supersticioso - em sua maioria amigos dos mistérios do céu e da terra -, entendiam tais eventos como a manifestação viva da ira das entidades da floresta, sublevadas em resposta às crueldades que lhes foram impingidas sem cessar por longo tempo, mediante a ação perversa de indivíduos que espoliavam e depredavam suas mais estimadas riquezas. O pacto sem palavras que fora selado nos primórdios da criação, o qual estabelecia a aliança de paz entre a civilização humana e a natureza - juntamente com as demais formas de vida que caminhariam sob as estrelas -, vinha se rompendo, gradativamente, na mesma marcha em que caminhava a sede insaciável do homem pelo poder. Alguns poucos tiveram perspicácia o bastante para sentir que uma insurreição elemental começara a se instalar.

Outros tantos, desprovidos da sensibilidade e da razão que insuflam a verdadeira consciência humana, fizeram-se indiferentes aos fatos gritantes que preenchiam o vazio de suas cômodas vidas cotidianas. Até mesmo recrudesceram as vilezas de seus ardis, arregimentando forasteiros de terras longínquas para a realização de uma colossal em-preitada de devastação: o total desmatamento da floresta para, no lugar dela, estender os domínios do acanhado vilarejo, transformando-o assim em uma cidade de dimensões monstruosas, que funcionaria como um futuro pólo comercial. E além do mais, iriam extrair toda a abundância de preciosidades naturais disponíveis no decorrer da execução deste intento pernicioso. Mal sabiam eles qual era a magnitude das forças insólitas que haviam acordado das fundações da Terra, e com as quais brincavam levianamente.

Aconteceu que - em uma data impossível de se precisar -, muitos camponeses des-locaram-se até uma pequena colina, pois daquele ponto mais elevado poderiam observar um espetáculo cósmico que fora profetizado havia muitos séculos. Entretanto, inúmeras pessoas permaneceram na proteção de seus lares, tanto por descrença no iminente episódio fantástico, quanto por preguiça ou indolência. Seus ouvidos eram fechados às cantigas murmurantes provenientes dos bosques, e seus olhos eram cegos ao esplendor dos dias e das noites. Muitos já ressonavam quando os últimos membros da comitiva estavam prestes a chegar ao topo da graciosa colina, situada em uma localidade um tanto afastada do vilarejo.

Todos os camponeses cuja curiosidade havia sido atiçada estavam reunidos no alto da colina, cada qual posicionado no ponto em que julgava mais favorável à visualização apurada do magnífico acontecimento. O medo e a ansiedade os afligia e instigava ao mesmo tempo, pois, dentro de si, tinham a consciência de que, sem mais tardar, se deparariam com a materialização da profecia que falava de uma mágica nunca antes vista! E a sucessão de eventos representava o advento de uma nova era de paz, quando todas as coisas se renovariam sobre a face da Terra!

Neste ínterim, a cúpula formada pelos mentores do funesto projeto de destruição se juntou aos exploradores. Reuniram-se em uma gruta escondida, bem perto dali, onde acertaram os últimos detalhes do empreendimento desprezível, o qual estavam prestes a colocar em prática. Tudo fora combinado em segredo, sem que houvesse a menor consideração pela opinião dos demais moradores do vilarejo. Os exploradores, muni-dos de todo o aparato necessário à execução de suas tarefas, então se dirigiram ao seu

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alvo, com passos largos e resolutos. Chegando às margens da floresta, correram ávidos rumo às primeiras árvores logo à sua frente, com seus machados em punho. Mas uma expressão de terror se apossou das suas faces suadas: ao som do ruído sutil da primeira (e última!) lasca de madeira, tirada pelo golpe de machado do primeiro explorador, surgiu um tufão monumental, de cor avermelhada e temperatura superior à do próprio fogo, que envolveu o homem até que dele restassem unicamente os ossos! Todos caíram por terra, paralisados de horror devido à cena que acabaram de presenciar.

De volta à colina, os observadores mais atentos aos detalhes de tudo quanto os rodeava perceberam, não sem estranheza, que havia uma tempestade em formação sobre a floresta, que era bem visível daquele lugar. E o mais estranho era o fato de que suas nuvens continham relâmpagos vermelhos e azuis, emitidos intercaladamente, entre breves intervalos de tempo. Contudo, o forte interesse pela profecia e a manifestação de seus indícios iniciais no céu projetou todas as atenções para as alturas. E assim como fora predito, cometas de caudas multicoloridas e faiscantes bailaram em todas as direções, entrecruzando-se como que em movimentos estrategicamente coordenados! Também se colidiam com freqüência, o que resultava em explosões magistrais de luz e som!

Foi quando uma voz estentórea ressoou pelos ares, à semelhança do ribombar de um trovão! A multidão assustada se voltou para ela. Parecia ecoar a partir do centro da tempestade, agora uma visão horripilante: as nuvens densas assumiram o perfeito aspec-to de um homem - como se fosse algum daqueles guerreiros míticos das histórias que os mais velhos contavam -, com o corpo banhado por uma luz azul cujo brilho oscilava; entretanto, o que mais aterrorizou os pobres camponeses foram aquelas duas bolas de fogo incandescente que ocupavam as órbitas daquela figura sobrenatural! A simples visão do espectro foi o bastante para aniquilar a vida daqueles de alma mais pusilânime.

E a figura gigantesca, com seus enormes olhos flamejantes dirigidos ao grupo de exploradores bem abaixo dela, proclamou com voz atroadora e imponente: “Malditos irmãos humanos! Que fizemos nós para que vocês nos tratassem com tamanha hosti-lidade? Há milênios lhes oferecemos, generosamente, o alimento que os sustenta e o abrigo para sua proteção, e vocês, ingratos, retribuem-nos com a extração abusiva de nossos frutos e agressões severas a nós impostas! Nosso sangue e nossa seiva já estão quase secos por causa de sua sede insaciável, e o pouco que nos resta mana num fluxo contínuo de repulsivas feridas abertas! Agora, somente a vingança nos libertará da fúria que se apossou de nossos corações!”.

Logo após seu discurso inflamado, o simulacro gigantesco de homem olhou para a lua e balbuciou palavras ininteligíveis em uma língua desconhecida. Em seguida, sucedeu-se um acontecimento desolador; sua simples menção - muitos anos depois de ter ocorrido — congelava o sangue nas veias daqueles que o haviam presenciado! Um ruído caver-noso, crescente e perturbador, acompanhava os movimentos decididos de uma fenda que nasceu no centro da floresta, e que rumava celeremente em direção ao vilarejo. As pessoas lá presentes sentiram novamente o cheiro pútrido que tantas outras vezes os golpeara, entrando em desespero, pois concluíram que aquele tinha sido um aviso que não souberam interpretar! Mas era tarde demais para qualquer esboço de fuga: a grande fenda sorveu o vilarejo a um só trago, e os poucos que conseguiram escapar pelos flancos

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foram agarrados por mãos de fogo que se projetavam para fora de um tornado vermelho, saído do centro da fenda aberta. E tudo o que ali havia foi reduzido a cinzas.

A grande fenda fora aos poucos se fechando; e à medida que avançava para o inte-rior da floresta, fazia com que uma alameda de cascalho brilhante se abrisse, rumo a uma enorme cidade, semelhante àquelas pertencentes às antigas civilizações. Então, o gigante feito de nuvens dirigiu o olhar ao agrupamento humano que estava sobre a colina e disse: “Quando os velhos sábios nos falaram dos cometas, nós sabíamos que eles atrairiam so-mente os seres de bom coração, cuja sensibilidade se inclina às coisas belas do universo. Vocês são o povo escolhido para nossa obra de renovação da aliança e, conseqüentemente, a revitalização de todo o planeta. E que nosso gesto de raiva incontida não devaste suas almas com o temor, mas sim sirva de exemplo ao restante da raça humana para que nos respeite, mesmo que às custas do medo. Peço-lhes que entrem no Éden, essa criação admirável do nosso Deus”.

Sendo assim, o povo se deslocou em direção ao paraíso terreno em forma de caravana, perplexo com o que acabara de ouvir. Quando todos chegaram ao centro, um tremor sacudiu a terra: as árvores que contornavam a floresta cresceram, elevando-se até se deitarem por sobre a cidade, o que fez com que a mata assumisse a forma de um anfiteatro visto de fora. E o ser gigantesco falou: “Aqui vocês beberão de uma fonte que lhes assegurará longevidade. Vocês, seus filhos e as gerações vindouras serão instruídos pelos mais sábios entre nós, pois integrarão o povo que governará o mundo!”.

Os estrondos da destruição do vilarejo haviam sido ouvidos pelos quatro cantos da Terra. Mas não se sabe até que ponto a sensibilidade humana foi tocada, seja pela toma-da de consciência, seja pela aflição do medo. Muitos iam até o local do acontecimento grandioso, subindo a famosa colina de onde podiam divisar uma monumental abóbada verde, santuário onde viviam os escolhidos. Porém, um pequeno detalhe fugiu ao olhar perscrutador das divindades da floresta: havia uma passagem grande o suficiente para possibilitar a comunicação com o lado externo...

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�6:52. O suor escorria por sua testa. Era uma tarde quente e abafada. Mas o calor não era o principal causador de tanto suor. Suava frio. Coração na boca. Sentia medo. Não era a primeira vez que fazia aquilo e sempre havia logrado êxito. Mas, mesmo assim, o medo estava presente. Tinha planejado tudo. Fórmulas e conceitos em pequeninas letras, em um pequenino papel, no bolso da calça. Sentou-se na última carteira da fila do canto. Localização privilegiada, pensou. O professor chegou com as provas na mão. A angústia aumentou. Aquela prova poderia definir sua sorte naquele ano. Não era mau aluno, da-queles que só bagunçam e se interessam apenas por Educação Física. Procurava prestar atenção, participar. Até tirava notas boas. Vivia sendo elogiado pela professora de História. Mas Química não tinha jeito, não entrava em sua cabeça. Estudava, estudava, estudava e não compreendia benzeno de nada, como costumava dizer. Conferiu o bolso. Sentiu o volume do papel. O professor, após as orientações de costume, começou a entregar as provas. Começou a rezar. Parou. Achou estranho rezar para uma coisa errada dar certo. Continuou. Deus era bom, haveria de entender que não fazia por mal. O professor lhe entregou a prova. Boa sorte. Obrigado. Passou os olhos pela prova. Difícil. Pensou em tentar fazer algumas questões sem o auxílio que havia preparado. Desistiu. Melhor fazer com a certeza de acertar. Conferiu o posicionamento do professor. Dissimulou estar escrevendo com a mão direita, enquanto a esquerda pegava o precioso papel. Pronto. Nenhum problema. Sentiu orgulho de sua destreza. Agora ficou fácil, pensou.

�6:52. Mal trancou a porta e foi direto ao banheiro. Sempre que traía o marido gostava de tomar um banho demorado. Naquele dia, com o calor que fazia, o banho era mais bem-vindo ainda. Achava que a ducha levava para o ralo abaixo um pouco de sua culpa, de seus pecados, de sua sujeira. Acreditava que o xampu, ao lavar seus cabelos, lavava também um pouco de sua consciência. Respirou fundo. Cumpriu o ritual de sem-pre. Arrependeu-se. Rezou a Deus para que o marido não desconfiasse de nada. Chorou. Chorou. Chorou. Jurou que nunca mais faria aquilo.

�6:52. Hora do descanso dos justos, como gostavam de falar. Todo fim de tarde era aquilo: o já tradicional encontro dos aposentados na praça do bairro. Seu Juca gozava da vida que sonhou durante os 35 anos que trabalhou de segunda a sábado. Jogavam baralho e conversa fora, e também bebiam uma cervejinha em dias muito quentes como aquele. Era o Seu Juca que comandava a turma. O baralho ele fazia questão de levar. Só valia o

André Carazza dos SantosFaE/CBH

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dele. Supertição, justificava o velho. E dava certo. Viúvo, dizia que com a morte da mulher passou a flertar com a sorte. E parecia mesmo. Raro a vez que Seu Juca, já de noitinha, não deixava a praça com os louros de grande campeão da noite. Naquele dia não foi diferente. Alguns creditavam tamanho sucesso com as cartas à religiosidade de Seu Juca, com seus santos, escapulários e patuás pendurados no pescoço. Outros apontavam para sua me-mória e seu raciocínio, artigos já escassos na maioria dos companheiros da turma. O que ninguém imaginava era que o sucesso de Seu Juca fosse resultado de alguma artimanha, alguma esperteza desonesta, alguma astúcia desonrosa. Um baralho marcado de forma quase invisível e que só um olhar mais apurado poderia identificar, por exemplo.

�6:52. Dona Romilda trancou o portão e desceu a rua rumo ao supermercado. Dia quente. Segurava a sombrinha para se proteger do sol. Na esquina, reparou a garotada estranhamente quieta. Devem estar aprontando alguma, pensou. Marco Paulo e seus amigos seguiram Dona Romilda com os olhos até ela dobrar a esquina. Estavam esperando aquele momento ansiosamente. Agora poderiam colocar o plano em ação. Fabinho seria o responsável por vigiar a rua. Marco Paulo, Grilo e Leite, com a cobertura do amigo, pularam o portão e rapidamente chegaram ao terreiro da casa da velha viúva que tinha fama de bruxa. Avistaram o pé de jabuticaba. Totalmente carregado das deliciosas frutinhas pretas. Era difícil imaginar espaço para mais uma jabuticaba que fosse naquela árvore. Grilo e Leite subiram na árvore com a destreza que só existe em meninos de oito anos. Ouviram um barulho. Estremeceram. Era só um passarinho. Marco Paulo rezou. Pediu a Deus para que nem Dona Romilda nem a polícia chegassem naquele momento. Rezava enquanto enchia a sacola que havia levado junto ao calção com as frutinhas arremessadas por Grilo e Leite. A sacola estava cheia. Antes de irem embora, avistaram o outrora car-regado pé de jabuticaba. A bruxa vai ficar uma arara, falou Grilo. Fugiram. Marco Paulo respirou aliviado quando chegou à rua. Pronto. O medo passou. Sentiu orgulho de mais uma traquinagem. A jabuticaba estava docinha, docinha.

�6:52. Olhou o relógio. Àquela hora tudo já estaria resolvido. Esperava, sofrega-mente, apenas a confirmação de que tudo havia sido consolidado com sucesso. O dia estava quente. Olhava fixamente o telefone. Não imaginava que ele poderia estar gram-peado. Pensou na mãe, que nunca aprovara sua opção pela carreira política. Sentiu, por um segundo, o peso do arrependimento. Os fins justificam os meios. Aquele que nunca pecou que atire a primeira pedra. “O Príncipe” e “A Bíblia Sagrada” eram seus livros de cabeceira. O primeiro orientava suas ações e o segundo seus discursos. O telefone não tocava. Era a primeira vez que se envolvia em uma grande operação de desvio de verba. Temia sujar um sobrenome que era tido como sinônimo de ética e honestidade. Mas quedou de joelhos frente à tentação. Seria só essa vez, repetia incessantemente, em um processo de autoconvencimento. O dia estava quente. Afrouxou a gravata. Regulou o ar condicionado. O telefone tocou. Havia sido pego com a boca na botija. O dia estava muito quente.

Os jornais chegariam às bancas com letras garrafais. As emissoras de televisão interromperiam a programação normal com plantões de jornalismo. No rádio, informa-

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ções tomariam o espaço das músicas. Todo um país se indignaria com mais um grande escândalo de corrupção. Toda uma nação repulsaria a classe política. Todos se questio-nariam sobre a infelicidade de um povo tão honesto e digno ser representado por gente tão desonrosa. �6:53.

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aquele dia, 05 de agosto de �920, um sol escaldante castigava o norte de Minas Gerais, em uma pequena cidade do interior, por nome de Jequitaí. Lugar este em que o único meio de sobrevivência consistia na extração de diamantes- garimpo.

Havia escassez de chuvas e diamantes. A baixa pluviosidade implicava em contribuir para a aridez da terra e a sequidade do ar. O rádio,o único meio de informação que os habitantes possuíam, noticiava em praça pública,o engodo político dos governantes. Fala-vam sobre a barragem na cidade de Jequitaí. Todos se reuniam em volta do rádio. Neste momento só a voz do radialista que enchia a praça Coronel Daniel da Fonseca. A notícia era absorvida com uma expectativa quase religiosa. Após este momento punham-se a discutir calorosamente a esperança de melhorias para o lugar.

Na residência do senhor José Miquilino, um veterano garimpeiro juntamente com sua família discutia a respeito da imensa pobreza que os assolavam.

- Miquilino é bom cê arrumar algum dinhero, porque eu pus no fogo, hoje o último restim de pó de café.Pro almoço só tem dois chuchuzinho, dum tamanho de um oi de musquito. Pra esse tanto de fio que nós tem. Num dá nem pra começar. Disse Maria, a esposa.

O senhor José Miquilino era o único da casa que havia obtido uma educação escolar mais aprofundada. A família que o criara quisera que ele se transformasse em radialista. Mas, apaixonado por Maria, largara os estudos e embrenhou-se na luta pela sobrevivência ao lado da mulher que amava.

- Ô pai, por que o sinhô num manda Guina caçar emprestado pra nós. O sinhô sabe que se eu num como direito eu passo mal o dia intero. Hoje mermo, a professora mim pidiu pra ler um texto lá na frente da turma. Pra sala toda.Eu fui e num consegui lê nada. Me deu uma tontera e uma escuridão nas vistas. Uma coisa doida. Observou o filho mais novo do casal.

- A única alternativa é ir para o garimpo, meus filhos.Têm umas babaiacas� na beira do rio. E se Deus for servido, é lá que eu vou ter a boa sorte. Pondera o senhor José

O sabor da mentiraParte Ia

Elizângela Fernandes BarbosaLetras/UNIMONTES

“Os segredos da alma, a conduta os revela” Giovanni Papini (�88�-�956)

Parte Ia: Foi conservado em todos os diálogos o linguajar típico e original dos interlocutores .

Babaiacas� : Sinônimo de cascalho- Linguajar típico da região.

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Miquilino. - Mas, antes disso: - Guina, Cadê você menina?- Tô aqui, pai. - Hamm. Menina se aprume2.Vá lá dentro botar- te em ordem. Eu preciso de um

serviço seu. Coisinha de nada, mas vai nos valer muito. A menina veste a roupa de domingo. A que sempre reservava para ir às missas. - Pronto?- Sim sinhô. - Pois bem, vá lá na casa do doutor Sinval Virote e fale com ele que eu preciso de

�0$00 (Dez mil réis) emprestado. Fale que é para fazer uma feira.Que hoje nós não temos nem sal. E diga que assim que eu pegar diamante eu vou lá pagar.

O senhor Sinval Virote era um abastado comerciante e comprador de diamantes. O fato de possuir muitos bens na região, intitulava-o de doutor. As pessoas humildes o viam como o bem-aventurado da região.

- Pois não, meu pai. Proferiu a menina. E foi fazer o que o pai lhe ordenara.Chegando à casa do Doutor Sinval, foi logo dizendo:- Doutô Sinval, meu pai, José de Miquilino me mandou aqui, pedir ao senhor para

emprestar para ele dez mil réis para fazer uma feira. E disse que assim que ele pegar um diamante ele vem pagar.

- Oh minha filha! Diga a seu pai que hoje eu não tenho nem um mil réis que dirá dez.

A moça sentiu-se muito decepcionada e voltou para casa. Chegando em casa, o pai aflito lhe pergunta.

- E aí, minha filha? Ele emprestou ? - Haa...meu pai, o doutor Sinval disse que não tem um mil réis que dirá dez.- Louvado seja Deus! - Exclamou. Preparada a sopa de chuchu, almoçaram em um completo silêncio. Ninguém ousava

falar.Todos estavam submergidos nos próprios pensamentos.- Estou indo agora para o rio. Seja o que Deus quiser. Disse o senhor José Miquilino,

pegando suas ferramentas.À tarde, todos o esperavam. O senhor Miquilino entrou em casa e observou a tris-

teza, a fome e a ansiedade estampada em cada rosto.Tirou o chapéu enorme de palha que usava para esconder do sol e o colocou em cima da mesa.

A dona Maria já não se continha e interpelou logo o marido:- Diga logo, homem de Deus. Por acaso Deus ouviu nossas preces?O senhor Miquilino pausadamente retirou um diamante do picuá3 e colocou em sua

mão. - Era um brilhante de � quilate4 - Os olhos de sua esposa inundaram-se de lágrimas, confundindo com as de seu esposo. Os filhos riam e choravam ao mesmo tempo. À noite teriam um jantar. Aprume2 : Vestir-se com esmero. Picuá3 : Peça cilíndrica e oca, em que guardam diamantes. Quilate4 : Peso igual a 200 miligramas.

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O SABOR DA MENTIRAPARTE IIb

No lugar havia somente dois compradores de dia-mantes- Antônio Alves e Sinval Virote. Logo após a extração do diamante e a euforia da família, o senhor José Miquilino foi à procura do senhor Antônio Alves.

Antônio Alves era um rico proprietário de terras e comerciante de gados na região, porém a sua principal atividade era comprar diamantes para exportação. Isso o fazia ser um homem de muito respeito na região.

- Senhor Antônio, eu vim até aqui, porque preciso ter uma conversinha com o senhor. Disse o senhor Miquilino.

- Pois não.Estou a disposição. Pode falar. Respondeu o sr. Antônio Alves. - O negócio é o seguinte: Eu peguei, hoje, um diamante de um quilate e queria

vender para o senhor. Quanto o senhor me dá nele?- Bom, como o senhor já sabe, o preço da praça hoje para esse peso são 500$00(Qui-

nhentos mil réis). O senhor aceita essa cotação?Os olhos do senhor Miquilino brilharam intensamente ao responder:- Aceito sim. É seu. O senhor José Miquilino retorna para casa triunfante. Ao chegar, já com a feira,

abraça a esposa e mostra o quanto conseguira com a venda do diamante. Aquela noite, o melhor vinho da cidade regava com carinho aquele jantar.

No dia seguinte, a notícia havia se espalhado por toda a cidade. O senhor Sinval Virote, ao saber procurou encontrar com o senhor José Miquilino. Decidiu esperá-lo em um bar próximo a casa dele. Onde ele sempre se encontrava com os amigos. O senhor Sinval estava de sorte. Após alguns minutos que chegara ver adentrando o bar, quem esperava.

- Oh! Meu caro amigo! Como estás? Disse o senhor Sinval Virote.- Muito bem. Louvado seja cristo! Respondeu o senhor Miquilino. - Fiquei sabendo que o senhor pegou um bom diamante. Quanto pesou?- 4 grãos5.- E o senhor já vendeu? Questiona o senhor Sinval. - Sim. Eu o vendi.- Para quem? - Para o senhor Antônio Alves. Então o senhor Sinval, o indaga rudemente:- Por que o senhor não o vendeu para mim? Somos companheiros há tantos anos.Então o senhor Miquilino diz:- Porque eu não poderia vender fiado, senhor Sinval.

Parte IIB: Foi conservado em todos os diálogos o linguajar típico e original dos interlocutores.

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O senhor Sinval retrucou: - FIADO? Mas quem lhe disse que eu compro diamante fiado? Então, o senhor José Miquilino, o olha e pronuncia, simplesmente, antes de se

retirar:- Ninguém me disse. O senhor mesmo falou para minha filha que não possuía nem

um mil réis e o diamante foi vendido por 500$00(Quinhentos mil réis). O Senhor Sinval torceu o bigode, limpou a garganta e foi-se embora. Sentia na

contração dos lábios a infâmia e na boca o sabor da mentira