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Caderno de Textos do 1º Encontro Desgovernado de Formação Politica e Militante

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Caderno de Textos do 1º Encontro Desgovernado de Formação Politica e Militante Fevereiro de 2015

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Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante

Fevereiro de 2015

Apresentação

"Você faz parte de tudo.

Aprende, não perde nada

das discussões, do silêncio.

Esteja sempre aprendendo

por nós e por você.

Você não será ouvinte

diante da discussão,

não será cogumelo

de sombras e bastidores,

não será cenário

para nossa ação!"

(Bertold Brecht - Precisamos de você)

Bem vindx ao 1º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante. O caderno de textos que segue reúne textos

clássicos do marxismo e textos atuais. Mas não se engane, aqui você não vai encontrar textos mastigados que ensinam, a luz de

grandes pensadores da luta dos trabalhadores no mundo, como agir hoje. A formação política está presente em todos os momentos da

atuação política de nosso coletivo. Não enxergamos essa formação como a apreensão um conjunto de textos e diretrizes de um

modelo pré-determinado de socialismo e de revolução. Para nossa formação político militante, conhecer as formulações que

corresponderam a um determinado período e experiência histórica e espacial são fundamentais para pensar as respostas que aqueles

que pretendem mudar o mundo a partir da organização coletiva e da luta precisam dar às necessidades do tempo presente.

Não nos basta reproduzir jargões do marxismo ou fórmulas prontas da militância. Formação política, para nós, é a

apreensão, questionamento e redefinição de conceitos (categorias) que representem o movimento da realidade, ampliando nossa

compreensão do real e capacidade de transformá-lo. Não construiremos outro mundo radicalmente diferente sem um questionamento

profundo das formas de produzir e demais relações sociais no capitalismo.

Para esse Encontro pensamos uma dinâmica a ser proposta para cada ponto, e cada um dos textos selecionados servirá de

provocação para os debates. Em primeiro lugar propomos um pacto coletivo de disciplina e responsabilidade com a dinâmica, o

tempo e os temas acordados.

Programação

08:00 – Café da Manhã coletivo

09:00 – Apresentação e compromissos coletivos

10:00 – É possível mudar o mundo? O papel dos socialistas na história

Texto: K. Marx, F. Engels - Manifesto do Partido Comunista

Coletivo Desgovernar - Manifesto Pelo Fim da Barbárie

11:00 – Grupo de Discussão (perguntas-guia com base na discussão do ponto anterior)

12:00 – Painel de apresentação das discussões dos grupos

13:00 – Almoço

14:00 - As lutas parciais e Emancipação Humana: qual a relação entre a militância cotidiana e um projeto

revolucionário?

Texto: K. Marx - Sobre a questão judaica (trechos)

A. Gramsci - Cadernos do Cárcere nº 13

15:00 – Grupos de Discussão Temático

Texto: Luciene Lacerda e Meire Reis - Feminismo Negro, uma visão militante

Odete Cristina - O debate entre Anitta e Pitty e a liberdade sexual das mulheres no capitalismo

16:00 – Painel de apresentação das discussões dos grupos

17:00 – A desgovernar e as tarefas da conjuntura

Texto: Considerações sobre o Coletivo Desgovernar e a conjuntura

19:00 – Encerramento

Fique com a gente até o final, se organize para desgovernar!

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Fevereiro de 2015

1. Manifesto do Partido Comunista1

Karl Marx e Friedrich Engels

Um espectro ronda a Europa - o espectro do

comunismo. Todas as potências da velha Europa unem-se numa

Santa Aliança para conjurá-lo: o papa e o Tzar, Metternich e

Guizot, os radicais da França e os policiais da Alemanha.

Que partido de oposição não foi acusado de comunista

por seus adversários no poder? Que partido de oposição, por sua

vez, não lançou a seus adversários de direita ou de esquerda a

pecha infamante de comunista?

Duas conclusões decorrem desses fatos:

1º) O comunismo já é reconhecido como força por

todas as potências da Europa;

2º) É tempo de os comunistas exporem, à face do

mundo inteiro, seu modo de ver, seus fins e suas tendências,

opondo um manifesto do próprio partido à lenda do espectro do

comunismo.

Com este fim, reuniram-se, em Londres, comunistas de

várias nacionalidades e redigiram o manifesto seguinte, que será

publicado em Inglês, francês, alemão, italiano, flamengo e

dinamarquês.

I – Burgueses e Proletários2

Até hoje, a história de todas as sociedades que

existiram até nossos dias3 tem sido a história das lutas de

classes.

Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e

servo, mestre de corporação e companheiro, numa palavra,

opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa

guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que

terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária da

sociedade inteira, ou pela destruição das suas classes em luta.

Nas primeiras épocas históricas, verificamos, quase por

toda parte, uma completa divisão da sociedade em classes

distintas, uma escala graduada de condições sociais. Na Roma

1 Escrito por K. Marx e F. Engels em dezembro de 1847 - janeiro de 1848. Publicado pela primeira vez em Londres, em fevereiro de 1848. Publicado de

acordo com o texto da edição soviética em espanhol de 1951 traduzida da

edição alemã de 1848. Confrontado com a edição Inglesa de1888, editada por F. Engels. Traduzido do espanhol. 2 Por burguesia compreende-se a classe dos capitalistas modernos,

proprietários dos meios de produção social, que empregam o trabalho assalariado. Por proletários compreende-se a classe dos trabalhadores

assalariados modernos que, privados de meios de produção próprios, se vêem

obrigados a vender sua força de trabalho para poder existir. (Nota de F. Engels à edição Inglesa de 1888). 3 Isto é, a história escrita. A pré-história, a história da organização social que

precedeu toda a história escrita, era, ainda, em 1847, quase desconhecida. Depois, Haxthausen descobriu na Rússia a propriedade comum da terra,

Maurer demonstrou que esta constituía a base social de onde derivavam

historicamente todas as tribos teutônicas e verificou-se, pouco a pouco, que a comunidade rural com posse coletiva da terra era a forma primitiva da

sociedade desde as Índias até a Irlanda. Finalmente, a organização interna

desta sociedade comunista primitiva foi desvendada em sua forma típica pela descoberta decisiva de Morgan, que revelou a natureza verdadeira da gens e

seu lugar na tribo. Com a dissolução dessas comunidades primitivas, começa

a divisão da sociedade em classes diferentes e finalmente antagônicas. Procurei analisar este processo na obra Der Ursprung der Familie, des

Privateigentums Und des Staats (A Origem da Família, da Propriedade

Privada e do Estado, 2ª ed.; Stuttgart, 1886). (Nota de F. Engels à edição inglesa de 1888. Ver o terceiro volume desta obra. (N. da Ed. Bras.)

antiga encontramos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na

Idade Média, senhores, vassalos, mestres, companheiros, servos;

e, em cada uma destas classes, gradações especiais.

A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas

da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classes. Não

fez senão substituir novas classes, novas condições de opressão,

novas formas de luta às que existiram no passado.

Entretanto, a nossa época; a época da burguesia,

caracteriza-se por ter simplificado os antagonismos de classes. A

sociedade divide-se cada vez mais em dois vastos campos

opostos, em duas grandes classes diametralmente opostas: a

burguesia e o proletariado.

Dos servos da Idade Média nasceram os burgueses

livres das primeiras cidades; desta população municipal, saíram

os primeiros elementos da burguesia.

A descoberta da América, a circunavegação da África

ofereceram à burguesia em assenso um novo campo de ação. Os

mercados da Índia e da China, a colonização da América, o

comércio colonial, o incremento dos meios de troca e, em geral,

das mercadorias imprimiram um impulso, desconhecido até

então, ao comércio, à indústria, à navegação, e, por conseguinte,

desenvolveram rapidamente o elemento revolucionário da

sociedade feudal em decomposição.

A antiga organização feudal da indústria, em que esta

era circunscrita a corporações fechadas, já não podia satisfazer

às necessidades que cresciam com a abertura de novos mercados.

A manufatura a substituiu. A pequena burguesia industrial

suplantou os mestres das corporações; a divisão do trabalho

entre as diferentes corporações desapareceu diante da divisão do

trabalho dentro da própria oficina.

Todavia, os mercados ampliavam-se cada vez mais: a

procura de mercadorias aumentava sempre. A própria

manufatura tomou-se insuficiente; então, o vapor e a maquinaria

revolucionaram a produção industrial. A grande indústria

moderna suplantou a manufatura; a média burguesia

manufatureira cedeu lugar aos milionários da indústria, aos

chefes de verdadeiros exércitos industriais, aos burgueses

modernos.

A grande industria criou o mercado mundial preparado

pela descoberta da América. O mercado mundial acelerou

prodigiosamente o desenvolvimento do comércio, da navegação,

dos meios de comunicação. Este desenvolvimento reagiu por sua

vez sobre a extensão da indústria; e à medida que a indústria, o

comércio, a navegação, as vias férreas se desenvolviam, crescia

a burguesia, multiplicando seus capitais e relegando a segundo

plano as classes legadas pela Idade Média.

Vemos, pois, que a própria burguesia moderna é o

produto de um longo desenvolvimento, de uma série de

revoluções no modo de produção e de troca.

Cada etapa da evolução percorrida pela burguesia era

acompanhada de um progresso político correspondente. Classe

oprimida pelo despotismo feudal, associação armada

administrando-se a si própria na comuna4 aqui, República urbana

4 Comunas chamavam-se na França as cidades nascentes, mesmo antes de

conquistar a autonomia local e os direitos políticos como terceiro estado, libertando-se de seus amos e senhores feudais. De modo geral. considerou-se

aqui a Inglaterra país típico do desenvolvimento econômico da burguesia, e a

França país típico de seu desenvolvimento político. (Nota de F. Engels à edição inglesa de 1888). Assim, os habitantes das cidades, na Itália e na

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independente, ali, terceiro estado, tributário da monarquia;

depois, durante o período manufatureiro, contrapeso da nobreza

na monarquia feudal ou absoluta, pedra angular das grandes

monarquias, a burguesia, desde o estabelecimento da grande

indústria e do mercado mundial, conquistou, finalmente, a

soberania política exclusiva no Estado representativo moderno.

O governo moderno não é senão um comitê para gerir os

negócios comuns de toda a classe burguesa.

A burguesia desempenhou na história um papel

eminentemente revolucionário.

Onde quer que tenha conquistado o Poder, a burguesia

calcou aos pés as relações feudais, patriarcais e idílicas. Todos

os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a

seus "superiores naturais" ela os despedaçou sem piedade, para

só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio

interesse, as duras exigências do "pagamento à vista". Afogou os

fervores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo

cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas

geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples

valor de troca; substituiu. as numerosas liberdades, conquistadas

com tanto esforço, pela única e implacável liberdade de

comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração velada por

ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma

exploração aberta, cínica, direta e brutal.

A burguesia despojou de sua auréola todas as

atividades até então reputadas veneráveis e encaradas com

piedoso respeito. Do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta,

do sábio fez seus servidores assalariados.

A burguesia rasgou o véu de sentimentalismo que

envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações

monetárias.

A burguesia revelou como a brutal manifestação de

força na Idade Média, tão admirada pela reação, encontra seu,

complemento natural na ociosidade mais completa. Foi a

primeira a provar o que pode realizar a atividade humana: criou

maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos

romanos, as catedrais góticas; conduziu expedições que

empanaram mesmo as antigas invasões e as cruzadas.

A burguesia só pode existir com a condição de

revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por

conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as

relações sociais. A conservação inalterada do antigo modo de

produção constituía, pelo contrário, a primeira condição de

existência de todas as classes industriais anteriores. Essa

subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o

sistema social, essa agitação permanente e essa falta de

segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes.

Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas,

com seu cortejo de concepções e de idéias secularmente

veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas

antes de se ossificar. Tudo que era sólido e estável se esfuma,

tudo o que era sagrado é profanado, e os homens são obrigados

finalmente a encarar com serenidade suas condições de

existência e suas relações recíprocas.

Impelida pela necessidade de mercados sempre novos,

a burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer-se em

toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte.

Pela exploração do mercado mundial a burguesia

imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em

todos os países. Para desespero dos reacionários, ela retirou à

França, chamavam suas comunidades urbanas, uma vez comprados ou

arrancados aos senhores feudais os seus primeiros direitos a urna administração autônoma. (Nota de F. Engels à edição alemã de 1890).

indústria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram

destruídas e continuam a sê-lo diariamente. São suplantadas por

novas indústrias, cuja introdução se toma uma questão vital para

todas as nações civilizadas, indústrias que não empregam mais

matérias-primas autóctones, mas sim matérias-primas vindas das

regiões mais distantes, e cujos produtos se consomem não

semente no próprio país mas em todas as partes do globo. Em

lugar das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos

nacionais, nascem novas necessidades, que reclamam para sua

satisfação os produtos das regiões mais longínquas e dos climas

mais diversos. Em lugar do antigo isolamento de regiões e

nações que se bastavam a si próprias, desenvolvem-se um

intercâmbio universal, uma universal interdependência das

nações. E isto se refere tanto à produção material como à

produção intelectual. As criações intelectuais de uma nação

tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o

exclusivismo nacionais tomam-se cada vez mais impossíveis;

das inúmeras literaturas nacionais e locais, nasce uma literatura

universal.

Devido ao rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de

produção e ao constante progresso dos meios de comunicação, a

burguesia arrasta para a torrente da civilização mesmo as nações

mais bárbaras. Os baixos preços de seus produtos são a artilharia

pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga a

capitularem os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros.

Sob pena de morte, ela obriga todas as nações a adotarem o

modo burguês de produção, constrange-as a abraçar o que ela

chama civilização, isto é, a se tomarem burguesas. Em uma

palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança.

A burguesia submeteu o campo à cidade. Criou grandes

centros urbanos; aumentou prodigiosamente a população das

cidades em relação à dos campos e, com isso, arrancou uma

grande parte da população do embrutecimento da vida rural. Do

mesmo modo que subordinou o campo à cidade, os países

bárbaros ou semibárbaros aos países civilizados, subordinou os

povos camponeses aos povos burgueses, o Oriente ao Ocidente.

A burguesia suprime cada vez mais a dispersão dos

meios de produção, da propriedade e da população. Aglomerou

as populações, centralizou os meios de produção e concentrou a

propriedade em poucas mãos. A conseqüência necessária dessas

transformações foi a centralização política. Províncias

independentes, apenas ligadas por débeis laços federativos,

possuindo interesses, leis, governos e tarifas aduaneiras

diferentes, foram reunidas em uma só nação, com um só

governo.. uma só lei, um só interesse nacional de classe, uma só

barreira alfandegária.

A burguesia, durante seu domínio de classe, apenas

secular, criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais

que todas as gerações passadas em conjunto. A subjugação das

forças da natureza, as máquinas, a aplicação da química A

Indústria e à agricultura, a navegação a vapor, as estradas de

ferro, o telégrafo elétrico, a exploração de continentes inteiros, a

canalização dos rios, populações inteiras brotando na terra como

por encanto - que século anterior teria suspeitado que

semelhantes forças produtivas estivessem adormecidas no selo

do trabalho social?

Vemos pois: os meios de produção e de troca, sobre

cuja base se ergue a burguesia, foram gerados no seio da

sociedade feudal. Em um certo grau do desenvolvimento desses

meios de produção e de troca, as condições em que a sociedade

feudal produzia e trocava, a organização feudal da agricultura e

da manufatura, em suma, o regime feudal de propriedade,

deixaram de corresponder às forças produtivas em pleno

desenvolvimento. Entravavam a produção em lugar de

impulsioná-la. Transformaram-se em outras tantas cadeias que

era preciso despedaçar; foram despedaçadas.

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Em seu lugar, estabeleceu-se a livre concorrência, com

uma organização social e política correspondente, com a

supremacia econômica e política da classe burguesa.

Assistimos hoje a um processo semelhante. As relações

burguesas de produção e de troca, o regime burguês de

propriedade, a sociedade burguesa moderna, que conjurou

gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao

feiticeiro que já não pode controlar as potências internas que pôs

em movimento com suas palavras mágicas. Há dezenas de anos,

a história da indústria e do comércio não é senão a história da

revolta das forças produtivas modernas contra as modernas

relações de produção e de propriedade que condicionam a

existência da burguesia e seu domínio. Basta mencionar as crises

comerciais que, repetindo-se periodicamente, ameaçam cada vez

mais a existência da sociedade burguesa. Cada crise destrói

regularmente não só uma grande massa de produtos já

fabricados, mas também uma grande parte das próprias forças

produtivas já desenvolvidas. Uma epidemia, que em qualquer

outra época teria parecido um paradoxo, desaba sobre a

sociedade - a epidemia da superprodução. Subitamente, a

sociedade vê-se reconduzida a um estado de barbaria

momentânea; dir-se-ia que a fome ou uma guerra de extermínio

cortaram-lhe todos os meios de subsistência; a indústria e o

comércio parecem aniquilados. E por quê? Porque a sociedade

possui demasiada civilização, demasiados meios de subsistência,

demasiada indústria, demasiado comércio. As forças produtivas

de que dispõe não mais favorecem o desenvolvimento das

relações de propriedade burguesa; pelo contrário, tomaram-se

por demais poderosas para essas condições, que passam a

entravá-las; e todas as vezes que as forças produtivas sociais se

libertam desses entraves, precipitam na desordem a sociedade

inteira e ameaçam a existência da propriedade burguesa. 0

sistema burguês tornou-se demasiado estreito para conter as

riquezas criadas em seu selo. De que maneira consegue a

burguesia vencer essas crises? De um lado, pela destruição

violenta de grande quantidade de forças produtivas; de outro

lado, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais

intensa dos antigos. A que leva isso? Ao preparo de crises mais

extensas e mais destruidoras e à diminuição dos meios de evitá-

las.

As armas que a burguesia utilizou para abater o

feudalismo, voltam-se hoje contra a própria burguesia.

A burguesia, porém, não forjou somente as armas que

lhe darão morte; produziu também os homens que manejarão

essas armas - os operários modernos, os proletários.

Com o desenvolvimento da burguesia, isto é, do

capital, desenvolve-se também o proletariado, a classe dos

operários modernos, que só podem viver se encontrarem

trabalho, o que só encontram trabalho na medida em que este

aumenta o capital. Esses operários, constrangidos a vender-se

diariamente, são mercadoria, artigo de comércio como qualquer

outro; em conseqüência, estão sujeitos a todas as vicissitudes da

concorrência, a todas as flutuações do mercado.

O crescente emprego de máquinas e a divisão do

trabalho, despojando o trabalho do operário de seu caráter

autônomo, tiraram-lhe todo atrativo. O produtor passa a um

simples apêndice da máquina e só se requer dele a operação mais

simples, mais monótona, mais fácil de aprender. Desse modo, o

custo do operário se reduz, quase exclusivamente, aos meios de

manutenção que lhe são necessários para viver e perpetuar sua

existência. Ora, o preço do trabalho5, como de toda mercadoria, é

igual ao custo de sua produção. Portanto, à medida que aumenta

5 Mais tarde Marx demonstrou que o operário não vende seu trabalho, porém

sua força de trabalho. Ver a respeito a Introdução de Engels à obra de Marx, Trabalho Assalariado e Capital, pág. 52 do presente volume (N. da R.).

o caráter enfadonho do trabalho, decrescem os salários. Mais

ainda, a quantidade de trabalho cresce com o desenvolvimento

do maquinismo e da divisão do trabalho, quer pelo

prolongamento das horas de labor, quer pelo aumente do

trabalho exigido em um tempo determinado, pela aceleração do

movimento das máquinas, etc.

A indústria moderna transformou a pequena oficina do

antigo mestre da corporação patriarcal na grande fábrica do

industrial capitalista. Massas de operários, amontoadas na

fábrica, são organizadas militarmente. Como soldados da

indústria, estão sob a vigilância de uma hierarquia completa de

oficiais e suboficiais. Não são somente escravos da classe

burguesa, do Estado burguês, mas também diariamente, a cada

hora, escravos da máquina, do contramestre e, sobretudo, do

dono da fábrica. E esse despotismo é tanto mais mesquinho,

odioso e exasperador quanto maior é a franqueza com que

proclama ter no lucro seu objetivo exclusivo.

Quanto menos o trabalho exige habilidade e força, Isto

é, quanto mais a indústria moderna progride, tanto mais o

trabalho dos homens é suplantado pelo das mulheres e crianças.

As diferenças de idade e de sexo não têm mais importância

social para a classe operária. Não há senão instrumentos de

trabalho, cujo preço varia segundo a idade e o sexo.

Depois de sofrer a exploração do fabricante e de

receber seu salário em dinheiro, o operário torna-se presa de

outros membros da burguesia, do proprietário, do varejista, do

usurário, etc.

As camadas inferiores da classe média de outrora, os

pequenos industriais, pequenos comerciantes e pessoas que

possuem rendas, artesãos e camponeses, caem nas fileiras do

proletariado: uns porque seus pequenos capitais, não lhes

permitindo empregar os processos da grande indústria,

sucumbem na concorrência com os grandes capitalistas; outros

porque sua habilidade profissional é depreciada pelos novos

métodos de produção. Assim, o proletariado é recrutado em

todas as classes da população.

O proletariado passa por diferentes fases de

desenvolvimento. Logo que nasce começa sua luta contra a

burguesia.

A princípio, empenham-se na luta operários isolados,

.mais tarde, operários de uma mesma fábrica, finalmente

operários do mesmo ramo de indústria, de uma mesma

localidade, contra o burguês 'que os explora diretamente. Não se

limitam a atacar as relações burguesas de produção, atacam os

instrumentos de produção: destróem as mercadorias estrangeiras

que lhes fazem concorrência, quebram as máquinas, queimam as

fábricas e esforçam-se para reconquistar a posição perdida do

artesão da Idade Média.

Nessa fase, constitui o proletariado massa disseminada

por todo o país e dispersa pela concorrência. Se, por vezes, os

operários se unem para agir em massa compacta, isto não é ainda

o resultado de sua própria união, mas da união da burguesia que,

para atingir seus próprios fins políticos, é levada a pôr em

movimento todo o proletariado, o que ainda pode fazer

provisoriamente. Durante essa fase, os proletários não combatem

ainda seus próprios inimigos, mas os inimigos de seus inimigos,

isto é, os restos da monarquia absoluta, os proprietários

territoriais, os burgueses não industriais, os pequenos burgueses.

Todo o movimento histórico está desse modo concentrado nas

mãos da burguesia e qualquer vitória alcançada nessas condições

é uma vitória burguesa.

Ora, a indústria, desenvolvendo-se, não somente

aumenta o número dos proletários, mas concentra-os em massas

cada vez mais consideráveis; sua força cresce e eles adquirem

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maior consciência dela. Os interesses, as condições de existência

dos proletários se igualam cada vez mais, à medida que a

máquina extingue toda diferença do trabalho e quase por toda

parte reduz o salário a um nível igualmente baixo. Em virtude da

concorrência crescente dos burgueses entre si e devido às crises

comerciais que disso resultam, os salários se tomam cada vez

mais instáveis; o aperfeiçoamento constante e cada vez mais

rápido das máquinas torna a condição de vida do operário cada

vez mais precária; os choques individuais entre o operário e o

burguês tomam cada vez mais o caráter de choques entre duas

classes. Os operários começam a formar uniões contra os

burgueses e atuam em comum na defesa de seus salários;

chegam a fundar associações permanentes a fim de se

prepararem, na previsão daqueles choques eventuais. Aqui e ali a

luta se transforma em motim.

Os operários triunfam às vezes; mas é um triunfo

efêmero. O verdadeiro resultado de suas lutas não é o êxito

imediato, mas a união cada vez mais ampla dos trabalhadores.

Esta união é facilitada pelo crescimento dos meios de

comunicação criados pela grande indústria e que permitem o

contato entre operários de localidades, diferentes, Ora, basta esse

contato para concentrar as numerosas lutas locais, que têm o

mesmo caráter em toda parte, em uma luta nacional, em uma luta

de classes. Mas toda luta de classes é uma luta política. E a união

que os burgueses da Idade Média levavam séculos a realizar,

com seus caminhos vicinais, os proletários modernos realizam

em alguns anos por meio das vias férreas.

A organização do proletariado em classe e, portanto,

em partido político, é incessantemente destruída pela

concorrência que fazem entre si os próprios operários. Mas

renasce sempre, e cada vez mais forte, mais firme, mais

poderosa. Aproveita-se das divisões intestinas da burguesia para

obrigá-la ao reconhecimento legal de certos interesses da classe

operária, como, por exemplo, a lei da jornada de dez horas de

trabalho na Inglaterra.

Em geral, os choques que ocorrem na velha sociedade

favorecem de diversos modos o desenvolvimento do

proletariado. A burguesia vive em guerra perpétua; primeiro,

contra a aristocracia; depois, contra as frações da própria

burguesia cujos interesses se encontram em conflito com os

progressos da indústria; e sempre contra a burguesia dos países

estrangeiros. Em todas essas lutas, vê-se forçada a apelar para o

proletariado, reclamar seu concurso e arrastá-lo assim para o

movimento político, de modo que a burguesia fornece aos

proletários os elementos de sua própria educação política, isto é,

armas contra ela própria.

Demais, como já vimos, frações inteiras da classe

dominante, em conseqüência do desenvolvimento da indústria

são precipitadas no proletariado, ou ameaçadas, pelo menos, em

suas condições de existência. Também elas trazem ao

proletariado numerosos elementos de educação.

Finalmente, nos períodos em que a luta de classes se

aproxima da hora decisiva, o processo de dissolução da classe

dominante, de toda a velha sociedade, adquire um caráter tão

violento e agudo, que uma pequena fração da classe dominante

se desliga desta, ligando-se à classe revolucionária, a classe que

traz em si o futuro. Do mesmo modo que outrora uma parte da

nobreza passou-se para a burguesia, em nossos dias, uma parte

da burguesia passa-se para o proletariado, especialmente a parte

dos ideólogos burgueses que chegaram à compreensão teórica do

movimento histórico em seu conjunto.

De todas as classes que ora enfrentam a burguesia, só o

proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As

outras classes degeneram e perecem com o desenvolvimento da

grande indústria; o proletariado, pelo contrário, é seu produto

mais autêntico.

As classes médias - pequenos comerciantes, pequenos

fabricantes, artesãos, camponeses - combatem a burguesia

porque esta compromete sua existência como classes médias.

Não são, pois, revolucionárias, mas conservadoras; mais ainda,

reacionários, pois pretendem fazer girar para trás a roda da

história. Quando são revolucionárias é em conseqüência de sua

iminente passagem para o proletariado; não defendem então seus

interesses atuais, mas seus interesses futuros; abandonam seu

próprio ponto de vista para se colocar no do proletariado.

O lumpen-proletariado, esse produto passivo da

putrefação das camadas mais baixas da velha sociedade, pode ser

arrastado ao movimento por uma revolução proletária; todavia,

suas condições de vida o predispõem mais a vender-se à reação.

Nas condições de existência do proletariado já estão

destruídas as da velha sociedade. O proletariado não tem

propriedade; suas relações com a mulher e os filhos nada têm de

comum com as relações familiares burguesas. O trabalho

industrial moderno, a sujeição do operário pelo capital, tanto na

Inglaterra como na França, na América como na Alemanha,

despoja o proletariado de todo caráter nacional. As leis, a moral,

a religião, são para ele meros preconceitos burgueses, atrás dos

quais se ocultam outros tantos interesses burgueses.

Todas as classes que no passado conquistaram o Poder,

trataram de consolidar a situação adquirida submetendo a

sociedade às suas condições de apropriação. Os proletários não

podem apoderar-se das forças produtivas sociais senão abolindo

o modo de apropriação que era próprio a estas e, por

conseguinte, todo modo de apropriação em vigor até hoje. Os

proletários nada têm de seu a salvaguardar; sua missão é destruir

todas as garantias e seguranças da propriedade privada até aqui

existentes.

Todos os movimentos históricos têm sido, até hoje,

movimentos de minorias ou em proveito de minorias. O

movimenta proletário é o movimento espontâneo da imensa

maioria em proveito da imensa maioria. O proletariado, a

camada inferior da sociedade atual, não pode erguer-se, pôr-se

de pé, sem fazer saltar todos os estratos superpostos que

constituem a sociedade oficial.

A luta do proletariado contra a burguesia, embora não

seja na essência uma luta nacional, reveste-se contudo dessa

forma nos primeiros tempos. É natural que o proletariado de

cada país deva, antes de tudo, liquidar sua própria burguesia.

Esboçando em linhas gerais as fases do

desenvolvimento proletário, descrevemos a história da guerra

civil, mais ou menos oculta, que lavra na sociedade atual, até a

hora em que essa guerra explode numa revolução aberta e o

proletariado estabelece sua dominação pela derrubada violenta

da burguesia.

Todas as sociedades anteriores, como vimos, se

basearam no antagonismo entre classes opressoras e classes

oprimidas Mas para oprimir uma classe é preciso poder garantir-

lhe condições tais que lhe permitam pelo menos uma existência

de escravo. O servo, em plena servidão, conseguia tornar-se

membro da comuna, da mesma forma que o pequeno burguês,

sob o jugo do absolutismo feudal, elevava-se à categoria de

burguês. O operário moderno, pelo contrário, longe de se elevar

com o progresso da indústria, desce cada vez mais abaixo das

condições de sua própria classe. O trabalhador cai no

pauperismo, e este cresce ainda mais rapidamente que a

população e a riqueza. É, pois, evidente que a burguesia é

incapaz de continuar desempenhando o papel de classe

dominante e de impor à sociedade, como lei suprema, as

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante

Fevereiro de 2015

condições de existência de sua classe. Não pode exercer o seu

domínio porque não pode mais assegurar a existência de seu

escravo, mesmo no quadro de sua escravidão, porque é obrigada

a deixá-lo cair numa tal situação, que deve nutri-lo em lugar de

se fazer nutrir por ele. A sociedade não pode mais existir sob sua

dominação, o que quer dizer que a existência da burguesia é,

doravante, incompatível com a da sociedade.

A condição essencial da existência e da supremacia da

classe burguesa é a acumulação da riqueza nas mãos dos

particulares, a formação e o crescimento do capital; a condição

de existência do capital é o trabalho assalariado. Este baseia-se

exclusivamente na concorrência dos operários entre si. O

progresso da indústria, de que a burguesia é agente passivo o

inconsciente, substitui o isolamento dos operários, resultante de

sua competição, por sua união revolucionária mediante a

associação. Assim, o desenvolvimento da grande indústria

socava o terreno em que a burguesia assentou o seu regime de

produção e de apropriação dos produtos. A burguesia produz,

sobretudo, seus próprios coveiros. Sua queda e a vitória do

proletariado são igualmente inevitáveis.

II – Proletários e Comunistas

Qual a posição dos comunistas diante dos proletários

em geral?

Os comunistas não formam um partido à parte, oposto

aos outros partidos operários.

Não têm interesses que os separem do proletariado em

geral.

Não proclamam princípios particulares, segundo os

quais, pretenderiam modelar o movimento operário.

Os comunistas só se distinguem dos outros partidos

operários em dois pontos: 1) Nas diversas lutas nacionais dos

proletários, destacam e fazem prevalecer os interesses comuns

do proletariado, independentemente da nacionalidade. 2) Nas

diferentes fases por que passa a luta entre proletários e

burgueses, representam, sempre, e em toda parte, os interesses

do movimento em seu conjunto.

Praticamente, os comunistas constituem, pois, a fração

mais resoluta dos partidos operários de cada país, a fração que

impulsiona as demais; teoricamente têm sobre o resto do

proletariado a vantagem de uma compreensão nítida das

condições, da marcha e dos fins gerais do movimento proletário.

O objetivo imediato dos comunistas é o mesmo que o

de todos os demais partidos proletários: constituição dos

proletários em classe, derrubada da supremacia burguesa,

conquista do poder político pelo proletariado.

As concepções teóricas dos comunistas não se baseiam,

de modo algum, em idéias ou princípios inventados ou

descobertos por tal ou qual reformador do mundo.

São apenas a expressão geral das condições reais de

uma luta de classes existente, de um movimento histórico que se

desenvolve sob os nossos olhos. A abolição das relações de

propriedade que têm existido até hoje não é uma característica

peculiar exclusiva do comunismo.

Todas as relações de propriedade têm passado por

modificações constantes em conseqüência das contínuas

transformações das condições históricas.

A Revolução Francesa, por exemplo, aboliu a

propriedade feudal em proveito da propriedade burguesa.

O que caracteriza o comunismo não é a abolição da

propriedade geral, mas a abolição da propriedade burguesa.

Ora, a propriedade privada atual, a propriedade

burguesa, é a última e mais perfeita expressão do modo de

produção e de apropriação baseado nos antagonismos de classe,

na exploração de uns pelos outros.

Neste sentido, os comunistas podem resumir sua teoria

nesta fórmula única: abolição da propriedade privada.

Censuram-nos, a nós comunistas, o querer abolir a

propriedade pessoalmente adquirida, fruto do trabalho do

indivíduo propriedade que se declara ser a base de toda

liberdade, de toda atividade, de toda independência individual.

A propriedade pessoal, fruto do trabalho e do mérito!

Pretende-se falar da propriedade do pequeno burguês, do

pequeno camponês, forma de propriedade anterior à propriedade

burguesa? Não precisamos aboli-la, porque o progresso da

indústria já a aboliu e continua a aboli-la diariamente. Ou por

ventura pretende-se falar da propriedade privada atual, da

propriedade burguesa?

Mas, o trabalho do proletário, o trabalho assalariado

cria propriedade para o proletário? De nenhum modo. Cria o

capital, isto é, a propriedade que explora o trabalho assalariado e

que só pode aumentar sob a condição de produzir novo trabalho

assalariado, a fim de explorá-lo novamente. Em sua forma atual

a propriedade se move entre os dois termos antagônicos: capital

e trabalho. Examinemos os dois termos dessa antinomia.

Ser capitalista significa ocupar não somente uma

posição pessoal, mas também uma posição social na produção. O

capital é um produto coletivo: só pode ser posto em movimento

pelos esforços combinados de muitos membros da sociedade, e

mesmo, em última instância, pelos esforços combinados de todos

os membros da sociedade.

O capital não é, pois, uma força pessoal; é uma força

social.

Assim, quando o capital é transformado em

propriedade comum, pertencente a todos os membros da

sociedade, não é uma propriedade pessoal que se transforma em

propriedade social. O que se transformou foi apenas o caráter

social da propriedade. Esta perde seu caráter de classe.

Passemos ao trabalho assalariado.

O preço médio que se paga pelo trabalho assalariado é

o mínimo de salário, isto é, a soma dos meios de subsistência

necessária para que o operário viva como operário. Por

conseguinte, o que o operário obtém com o seu trabalho é o

estritamente necessário para mera conservação e reprodução de

sua vida, Não queremos de nenhum modo abolir essa

apropriação pessoal dos produtos do trabalho, indispensável à

manutenção e à reprodução da vida humana, pois essa

apropriação não deixa nenhum lucro líquido que confira poder

sobre o trabalho alheio. O que queremos é suprimir o caráter

miserável desta apropriação que faz com que o operário só viva

para aumentar o capital e só viva na medida em que o exigem os

interesse da classe dominante.

Na sociedade burguesa, o trabalho vivo é sempre um

meio de aumentar o trabalho acumulado. Na sociedade

comunista, o trabalho acumulado é sempre um meio de ampliar,

enriquecer é melhorar cada vez mais a existência dos

trabalhadores.

Na sociedade burguesa, o passado domina o presente;

na sociedade comunista é o presente que domina o passado. Na

sociedade burguesa, o capital é independente e pessoal, ao passo

que o indivíduo que trabalha não tem nem independência nem

personalidade.

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante

Fevereiro de 2015

É a abolição de semelhante estado de coisas que a

burguesia verbera como a abolição da individualidade e da

liberdade. E com razão. Porque se trata efetivamente de abolir a

individualidade burguesa, a independência burguesa, a liberdade

burguesa.

Por liberdade, nas condições atuais da produção

burguesa, compreende-se a liberdade de comércio, a liberdade de

comprar e vender.

Mas, se o tráfico desaparece, desaparecerá também a

liberdade de traficar. Demais, toda a fraseologia sobre a

liberdade de comércio, bem como todas as bazófias liberais de

nossa burguesia só têm sentido quando se referem ao comércio

tolhido e ao burguês oprimido da Idade Média; nenhum sentido

têm quando se trata da abolição comunista do tráfico, das

relações burguesas de produção e da própria burguesia.

Horrorizai-vos porque queremos abolir a propriedade

privada. Mas em vossa sociedade a propriedade privada está

abolida para nove décimos de seus membros. E é precisamente

porque não existe para estes nove décimos que ela existe para

vós. Acusai-nos, portanto, de querer abolir uma forma de

propriedade que só pode existir com a condição de privar de toda

propriedade a imensa maioria da sociedade.

Em resumo, acusai-nos de querer abolir vossa

propriedade. De fato, é isso que queremos.

Desde o momento em que o trabalho não mais pode ser

convertido em capital, em dinheiro; em renda da terra, numa

palavra, em poder social capaz de ser monopolizado, isto é,

desde o momento em que a propriedade individual não possa

mais converter-se em propriedade burguesa, declarais quê a

individualidade está suprimida.

Confessais, pois, que quando falais do indivíduo,

quereis referir-vos unicamente ao burguês, ao proprietário

burguês. E este indivíduo, sem dúvida, deve ser suprimido.

O comunismo não retira a ninguém o poder de

apropriar-se de sua parte dos produtos sociais, apenas suprime o

poder de escravizar o trabalho de outro por meio dessa

apropriação.

Alega-se ainda que, com a abolição da propriedade

privada, toda a atividade cessaria, uma inércia geral apoderar-se-

ia do mundo.

Se isso fosse verdade, há muito que a sociedade

burguesa teria sucumbido à ociosidade, pois que os que no

regime burguês trabalham não lucram e os que lucram não

trabalham. Toda a objeção se reduz a essa tautologia: não haverá

mais o trabalho assalariado quando não mais existir capital.

As acusações feitas contra o modo comunista de

produção, e de apropriação dos produtos materiais têm sido

feitas igualmente contra a produção e a apropriação dos produtos

do trabalho intelectual. Assim como o desaparecimento da

propriedade de classe eqüivale, para o burguês, ao

desaparecimento de toda produção, também o desaparecimento

da cultura de classe significa, para ele, o desaparecimento de

toda a cultura.

A cultura, cuja perda o burguês deplora, é, para a

imensa maioria dos homens, apenas um adestramento que os

transforma em máquinas.

Mas não discutais conosco enquanto aplicardes à

abolição da propriedade burguesa o critério de vossas noções

burguesas de liberdade, cultura, direito, etc. Vossas próprias

idéias decorrem do regime burguês de produção e de

propriedade burguesa, assim como vosso direito não passa da

vontade de vossa classe erigida em lei, vontade cujo conteúdo é

determinado pelas condições materiais de vossa existência como

classe.

A falsa concepção interesseira que vos leva a erigir em

leis eternas da natureza e da razão as relações sociais oriundas

do vosso modo de produção e de propriedade - relações

transitórias que surgem e desaparecem no curso da produção - a

compartilhais com todas as classes dominantes já desaparecidas.

O que admitis; para a propriedade antiga, o que admitis para a

propriedade feudal, já não vos atreveis; a admitir para a

propriedade burguesa.

Abolição da família! Até os mais radicais ficam

indignados diante desse desígnio infame dos comunistas.

Sobre que fundamento repousa a família atual, a

família burguesa? No capital, no ganho individual. A família, na

sua plenitude, só existe para a burguesia, mas encontra seu

complemento na supressão forçada da família para o proletário e

na prostituição pública.

A família burguesa desvanece-se naturalmente com o

desvanecer de seu complemento, e uma e outra desaparecerão

com o desaparecimento do capital.

Acusai-nos de querer abolir a exploração das crianças

por seus próprios pais? Confessamos este crime.

Dizeis também que destruímos os vínculos mais

íntimos, substituindo a educação doméstica pela educação social.

E vossa educação não é também determinada pela

sociedade, pelas condições sociais em que educais vossos filhos,

pela intervenção direta ou. indireta da sociedade, por meio de

vossas escolas etc.? Os comunistas não inventaram essa

intromissão da sociedade na educação, apenas mudam seu

caráter e arrancam a educação à Influência da classe dominante.

As declamações burguesas sobre a família e a

educação, sobre os doces laços que unem a criança aos pais,

tomam-se cada vez mais repugnantes à medida que a grande

indústria destrói todos os laços familiares do proletário e

transforma as crianças em simples objetos de comércio, em

simples instrumentos de trabalho.

Toda a burguesia grita em coro: "Vós, comunistas,

quereis Introduzir a comunidade das mulheres!".

Para o burguês, sua mulher nada mais é que um

instrumento de produção. Ouvindo dizer que os instrumentos de

produção serão explorados em comum, conclui naturalmente que

haverá comunidade de mulheres. Não imagina que se trata

precisamente de arrancar a mulher de seu papel atual de simples

instrumento de produção.

Nada mais grotesco, aliás, que a virtuosa indignação

que, a nossos burgueses, inspira a pretensa comunidade oficial

das mulheres que adotariam os comunistas. Os comunistas não

precisam introduzir a comunidade das mulheres. Esta quase

sempre existiu.

Nossos burgueses, não contentes em ter à sua

disposição as mulheres e as filhas dos proletários, sem falar da

prostituição oficial, têm singular prazer em comerem-se uns aos

outros.

O casamento burguês é, na realidade, a comunidade das

mulheres casadas. No máximo, poderiam acusar os comunistas

de quererem substituir uma comunidade de mulheres, hipócrita e

dissimulada, por outra que seria franca e oficial. De resto, é

evidente que, com a abolição das relações de produção atuais, a

comunidade das mulheres que deriva dessas relações, isto é, a

prostituição oficial e não oficial desaparecerá.

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante

Fevereiro de 2015

Além disso, os comunistas são acusados de quererem

abolir a pátria, a nacionalidade.

Os operários não têm pátria. Não se lhes pode tirar

aquilo que não possuem. Como, porém, o proletariado tem por

objetivo conquistar o poder político e erigir-se em classe

dirigente da nação, tomar-se ele mesmo a nação, ele é, nessa

medida, nacional, embora de nenhum modo no sentido burguês

da palavra.

As demarcações e os antagonismos nacionais entre os

povos desaparecem cada vez mais com o desenvolvimento da

burguesia, com a liberdade do comércio e o mercado mundial,

com a uniformidade da produção industrial e as condições de

existência que lhes correspondem.

A supremacia do proletariado fará com que tais

demarcações e antagonismos desapareçam ainda mais depressa.

A ação comum do proletariado, pelo menos nos países

civilizados, é uma das primeiras condições para sua

emancipação.

Suprimi a exploração do homem pelo homem e tereis

suprimido a exploração de uma nação por outra.

Quando os antagonismos de classes, no interior das

nações, tiverem desaparecido, desaparecerá a hostilidade entre as

próprias nações.

Quanto às acusações feitas aos comunistas em nome da

religião, da filosofia e da ideologia em geral, não merecem um

exame aprofundado.

Será preciso grande perspicácia para compreender que

as idéias, as noções e as concepções, numa palavra, que a

consciência do homem se modifica com toda mudança

sobrevinda em suas condições de vida, em suas relações sociais,

em sua existência social?

Que demonstra a história das idéias senão que a

produção intelectual se transforma com a produção material? As

idéias dominantes de uma época sempre foram as idéias da

classe dominante.

Quando se fala de idéias que revolucionam uma

sociedade inteira, isto quer dizer que, no seio da velha sociedade,

se formaram os elementos de uma nova sociedade e que a

dissolução das velhas idéias marcha de par com a dissolução das

antigas condições de vida.

Quando o mundo antigo declinava, as velhas religiões

foram vencidas pela religião cristã; quando, no século XVIII, as

idéias cristãs cederam lugar às idéias racionalistas, a sociedade

feudal travava sua batalha decisiva contra a burguesia então

revolucionária. As idéias de liberdade religiosa e de liberdade de

consciência não fizeram mais que proclamar o império da livre

concorrência no domínio do conhecimento.

"Sem dúvida, - dir-se-á -, as idéias religiosas, morais,

filosóficas, políticas, jurídicas, etc., modificaram-se no curso do

desenvolvimento histórico, mas a religião, a moral, a filosofia, a

política, o direito mantiveram-se sempre através dessas

transformações.

"Além disso, há verdades eternas, como a liberdade, a

justiça, etc., que são comuns a todos os regimes sociais. Mas o

comunismo quer abolir estas verdades eternas, quer abolir a

religião e a moral, em lugar de lhes dar uma nova forma, e isso

contradiz todo o desenvolvimento histórico anterior".

A que se reduz essa acusação? A história de toda a

sociedade até nossos dias consiste no desenvolvimento dos

antagonismos de classes, antagonismos que se têm revestido de

formas diferentes nas diferentes épocas,

Mas qualquer que tenha sido a forma desses

antagonismos, a exploração de uma parte da sociedade por outra

é um fato comum a todos os séculos anteriores. Portanto, nada

há de espantoso que a consciência social de todos os séculos,

apesar de toda sua variedade e diversidade, se tenha movido

sempre sob certas formas comuns, formas de consciência que só

se dissolverão completamente com o desaparecimento total dos

antagonismos de classes.

A revolução comunista é a ruptura mais radical com as

relações tradicionais de propriedade; nada de estranho, portanto,

que no curso de seu desenvolvimento, rompa, de modo mais

radical, com as idéias tradicionais.

Mas deixemos de lado as objeções feitas pela burguesia

ao comunismo.

Vimos acima que a primeira fase da revolução operária

é o advento do proletariado como classe dominante, a conquista

da democracia.

O proletariado utilizará sua supremacia política para

arrancar pouco a pouco todo capital à burguesia, para centralizar

todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é,

do proletariado organizado em classe dominante, e para

aumentar, o mais rapidamente possível, o total das forças

produtivas.

Isto naturalmente só poderá realizar-se, a princípio, por

uma violação despótica do direito de propriedade e das relações

de produção burguesas, isto é, pela aplicação de medidas que, do

ponto de vista econômico, parecerão insuficientes e

insustentáveis, mas que no desenrolar do movimento

ultrapassarão a si mesmas e serão indispensáveis para

transformar radicalmente todo o modo de produção.

Essas medidas, é claro, serão diferentes nos vários

países.

Todavia, nos países mais adiantados, as seguintes

medidas poderão geralmente ser postas em prática:

1 - Expropriação da propriedade latifundiária e

emprego da renda da terra em proveito do Estado.

2 - Imposto fortemente progressivo.

3 - Abolição do direito de herança.

4 - Confiscação da propriedade de todos os emigrados e

sediciosos.

5 - Centralização do crédito nas mãos do Estado por

meio de um banco nacional com capital do Estado e com o

monopólio exclusivo.

6 - Centralização, nas mãos do Estado, de todos os

meios de transporte.

7 - Multiplicação das fábricas e dos instrumentos de

produção pertencentes ao Estado, arroteamento das terras

incultas e melhoramento das- terras cultivadas, segundo um

plano geral.

8 - Trabalho obrigatório para todos, organização de

exércitos industriais, particularmente para a agricultura.

9 - Combinação do trabalho agrícola e industrial,

medidas tendentes a fazer desaparecer gradualmente a distinção

entre a cidade e o campo6.

6 Mais tarde Marx demonstrou que o operário não vende seu

trabalho, porém sua força de trabalho. Ver a respeito a Introdução de Engels à obra de Marx, Trabalho Assalariado e Capital, pág. 52 do presente volume (N. da R.).

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante

Fevereiro de 2015

10 - Educação pública e gratuita de todas as crianças,

abolição do trabalho das crianças nas fábricas, tal como é

praticado hoje. Combinação da educação com a produção

material, etc.

Uma vez desaparecidos os antagonismos de classe no

curso do desenvolvimento, e sendo concentrada toda a produção

propriamente falando nas mãos dos indivíduos associados, o

poder público perderá seu caráter político. O poder político é o

poder organizado de uma classe para a opressão de outra. Se o

proletariado, em sua luta contra a burguesia, se constitui

forçosamente em classe, se se converte por uma revolução em

classe dominante e, como classe dominante, destrói

violentamente as antigas relações de produção, destrói

juntamente com essas relações de produção, as condições dos

antagonismos entre as classes e as classes em geral e, com isso,

sua própria dominação como classe.

Em lugar da antiga sociedade burguesa, com suas

classes e antagonismos de classes, surge uma associação onde o

livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre

desenvolvimento de todos.

III - Literatura Socialista e Comunista

1. O Socialismo Reacionário

(a) O Socialismo Feudal

Devido à sua posição histórica, as aristocracias da

França o da Inglaterra viram-se chamadas a lançar libelos contra

a sociedade burguesa. Na revolução francesa de julho de 1830,

no movimento reformador inglês, tinham sucumbido mais uma

vez sob os golpes desta odiada arrivista. Elas não podiam mais

travar uma luta política séria; só lhes restava si luta literária. Ora,

também no domínio literário, tornara-se impossível a velha

fraseologia da Restauração7.

Para criar simpatias, era preciso que a aristocracia

fingisse descurar seus próprios interesses e dirigisse sua

acusação contra a burguesia, aparentando defender apenas os

interesses da classe operária explorada. Desse modo, entregou-se

ao prazer de cantarolar sátiras sobre os novos penhores e de lhe

segredar ao ouvido profecias de mau augúrio.

Assim nasceu o socialismo feudal, onde se mesclavam

jeremiadas e libelos, ecos do passado e ameaças sobre o futuro.

Se por vezes a sua critica amarga, mordaz e espirituosa feriu a

burguesia no coração, sua impotência absoluta de compreender a

marcha da história moderna terminou sempre por um efeito

cômico.

A guisa de bandeira, estes senhores arvoraram a sacola

elo mendigo, a fim de atrair o povo; mas logo que este acorreu,

notou suas costas ornadas com os velhos brasões feudais o

dispersou-se com grandes gargalhadas irreverentes.

Uma parte dos legitimistas franceses e a "Jovem

Inglaterra" ofereceram ao mundo esse espetáculo divertido8.

Quando os campeões do feudalismo demonstram que o

modo de exploração feudal era diferente do da burguesia,

esquecem uma coisa: que o feudalismo explorava em

circunstâncias e condições completamente diversas e hoje em dia

caducas. Quando ressaltam que sob o regime feudal o

proletariado moderno não exista, esquecem uma coisa: que a

8 Não se trata da Restauração inglesa de 1660-1689. mas da francesa de

1814-1830. (Nota de F. Engels A edição inglesa de 1888). “Jovem

Inglaterra” Círculo fundado aproximadamente em 1842 e integrado por aristocratas, políticos e literatos do Partido Conservador Britânico. Seus mais

destacados representantes eram Disraeli, Carlyle e outros (N. da R.)

burguesia moderna é precisamente um fruto necessário de seu

regime social.

Aliás, ocultam tão pouco o caráter reacionário de sua

crítica, que sua principal queixa contra a burguesia consiste

justamente em dizer que esta assegura sob o seu regime o

desenvolvimento de uma classe que fará ir pelos ares toda a

antiga ordem social.

O que reprovam à burguesia é mais o ter produzido um

proletariado revolucionário, que o haver criado o proletariado

em geral.

Por isso, na luta política participam ativamente de todas

as medidas de repressão contra a classe operária. E, na vida

diária, a despeito de sua pomposa fraseologia, conformam-se

perfeitamente em colher os frutos de ouro da árvore da indústria

e trocar honra, amor e fidelidade pelo comércio de lã, açúcar de

beterraba e aguardente9.

Do mesmo modo que o pároco e o senhor feudal

marcharam sempre de mãos dadas, o socialismo clerical marcha

lado a lado com o socialismo feudal.

Nada é mais fácil que recobrir o ascetismo cristão com

um verniz socialista. Não se ergueu também o cristianismo

contra a propriedade privada, o matrimônio, o Estado? E em seu

lugar não predicou a caridade e a pobreza, o celibato, a

mortificação da carne, a vida monástica e a Igreja? O socialismo

cristão não passa de água benta com que o padre consagra o

despeito da aristocracia.

(b) O Socialismo Pequeno-burguês

Não é a aristocracia feudal a única classe arruinada pela

burguesia, não é a única classe cujas condições de existência se

estiolam e perecem na sociedade burguesa moderna. Os

pequenos burgueses e os pequenos camponeses da Idade Média

foram os precursores da burguesia moderna. Nos países onde o

comércio e a indústria são pouco desenvolvidos, esta classe

continua a vegetar ao lado da burguesia em ascensão.

Nos países onde a civilização moderna está florescente,

forma-se uma nova classe de pequenos burgueses, que oscila

entre o proletariado e a burguesia; fração complementar da

sociedade burguesa, ela se reconstitui incessantemente. Mas os

indivíduos que a compõem se vêem constantemente precipitados

no proletariado, devido à concorrência; e, com a marcha

progressiva da grande indústria, sentem aproximar-se o

momento em que desaparecerão completamente como fração

independente da sociedade moderna e em que serão substituídos

no comércio, na manufatura, na agricultura, por capatazes e

empregados.

Nos países como a França, onde os camponeses

constituem bem mais da metade da população, é natural que os

escritores que se batiam pelo proletariado contra a burguesia,

aplicassem à sua crítica do regime burguês critérios pequeno-

burgueses e camponeses e defendessem a causa operária do

ponto de vista da pequena burguesia. Desse modo se formou o

socialismo pequeno-burguês. Sismondi é o chefe dessa literatura,

não somente na França, mas também na Inglaterra.

9 Isto se refere em primeiro lugar à Alemanha, onde os latifundiários

aristocratas e os junkers [pequena nobreza rural] (N. da Ed. Bras.) cultivam por conta própria grande parte de suas terras com ajuda de administradores, e

possuem, além disso, grandes fábricas de açúcar de beterraba e destilarias de

aguardente de batata. Os mais prósperos aristocratas britânicos não chegaram ainda a tanto; porém, também sabem como compensar a diminuição de suas

rendas, emprestando seus nomes aos fundadores de toda classe de sociedades

anônimas. de reputação mais ou menos duvidosa (Nota de Engels à edição inglesa de 1888).

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante

Fevereiro de 2015

Esse socialismo analisou com muita penetração as

contradições inerentes às relações de produção modernas. Pôs a

nu as hipócritas apologias dos economistas. Demonstrou de um

modo irrefutável os efeitos mortíferos das máquinas e da divisão

do trabalho, a concentração dos capitais e da propriedade

territorial, a superprodução, as crises, a decadência inevitável

dos pequenos burgueses e camponeses, a miséria do

proletariado, a anarquia na produção, a clamorosa desproporção

na distribuição das riquezas, a guerra industrial de extermínio

entre as nações, a dissolução dos velhos costumes, das velhas

relações de família, das velhas nacionalidades.

Todavia, a finalidade real desse socialismo pequeno-

burguês é ou restabelecer os antigos meios de produção e de

troca e, com eles, as antigas relações de propriedade e a

sociedade antiga, ou então fazer entrar à força os meios

modernos de produção e de troca no quadro estreito das antigas

relações de propriedade que foram destruídas e necessariamente

despedaçadas por eles. Num e noutro caso, esse socialismo é ao

mesmo tempo reacionário e utópico.

Para a manufatura, o regime corporativo; para a

agricultura, o regime patriarcal: eis a sua última palavra.

Por fim, quando os obstinados fatos históricos lhe

fizeram passar completamente a embriaguez, essa escola

socialista abandonou-se a uma verdadeira prostração de espírito.

(c) O Socialismo Alemão ou o "Verdadeiro"

Socialismo

A literatura socialista e comunista da França, nascida

sob a pressão de uma burguesia dominante, expressão literária da

revolta contra esse domínio, foi introduzida na Alemanha

quando a burguesia começava a sua luta contra o absolutismo

feudal.

Filósofos, semifilósofos e impostores alemães

lançaram-se avidamente sabre essa literatura, mas esqueceram

que, com a importação da literatura francesa na Alemanha, não

eram importadas ao mesmo tempo as condições sociais da

França. Nas condições alemães, a literatura francesa perdeu toda

significação prática imediata e tomou um caráter puramente

literário. Aparecia apenas como especulação ociosa sobre a

realização da natureza humana. Por isso, as reivindicações da

primeira revolução francesa só eram, para os filósofos alemães

do século XVIII, as reivindicações da "razão prática" em geral; e

a manifestação. da vontade dos burgueses revolucionários da

França não expressava a seus olhos, senão as leis da vontade

pura, da vontade tal como deve ser, da vontade verdadeiramente

humana.

O trabalho dos literatos alemães limitou-se a colocar as

idéias francesas em harmonia com a sua velha consciência

filosófica, ou antes a apropriar-se das idéias francesas sem

abandonar seu próprio ponto de vista filosófico.

Apropriaram-se delas como se assimila uma língua

estrangeira: pela tradução.

Sabe-se que os monges recobriam os manuscritos das

obras clássicas da antigüidade pagã com absurdas lendas sabre

santos católicos. Os literatos alemães agiram em sentido inverso

a respeito da literatura francesa profana. Introduziram suas

insanidades filosóficas no original francês. Por exemplo, sob a

crítica francesa das funções do dinheiro, escreveram da

"alienação humana"; sob a crítica francesa do Estado burguês,

escreveram "eliminação do poder da universalidade abstrata", e

assim por diante.

A esta interpolação da fraseologia filosófica nas teorias

francesas deram o nome de "filosofia da ação", "verdadeiro

socialismo", "ciência alemã do socialismo" "justificação

filosófica do socialismo" etc.

Desse modo, emascularam completamente a literatura

socialista e comunista francesa. E como nas mãos dos alemães

essa literatura deixou de ser a expressão da luta de uma classe

contra outra, eles se felicitaram por ter-se elevado acima da

"estreiteza francesa e ter defendido não verdadeiras

necessidades, mas a "necessidade do verdadeiro"; não os

interesses do proletário, mas os interesses do ser humano, do

homem em geral, do homem que não pertence a nenhuma classe

nem a realidade alguma e que só existe no céu brumoso da

fantasia filosófica.

Esse socialismo alemão que tão solenemente levava a

sério seus desajeitados exercícios de escolar e que os apregoava

tão charlatanescamente, perdeu, não obstante, pouco a pouco,

seu inocente pedantismo.

A luta da burguesia alemã e especialmente da

burguesia prussiana contra os feudais e a monarquia absoluta,

numa palavra, o movimento liberal, tornou-se mais sério.

Desse modo, apresentou-se ao verdadeiro socialismo a

tão desejada oportunidade de contrapor ao movimento Político

as reivindicações socialistas. Pôde lançar os anátemas

tradicionais contra o liberalismo, o regime representativo, a

concorrência burguesa, a liberdade burguesa de imprensa, o

direito burguês, a liberdade e a igualdade burguesas; pôde pregar

às massas que nada tinham a ganhar, mas, pelo contrário, tudo a

perder nesse movimento burguês. O socialismo alemão

esqueceu, muito a propósito, que a crítica francesa, da qual era o

eco monótono, pressupunha a sociedade burguesa moderna com

as condições materiais de existência que lhe correspondem e

uma constituição política adequada precisamente as coisas que,

na Alemanha, se tratava ainda de conquistar.

Para os governos absolutos da Alemanha, com seu

cortejo de padres, pedagogos, fidalgos rurais e burocratas, esse

socialismo converteu-se em espantalho para amedrontar a

burguesia que se erguia ameaçadora.

Juntou sua hipocrisia adocicada aos tiros e às

chicotadas com que esses mesmos governos respondiam aos

levantes dos operários alemães.

Se o verdadeiro socialismo se tomou assim uma arma

nas mãos dos governos contra a burguesia alemã, representava,

além disso, diretamente um interesse reacionário, o interesse da

pequena burguesia alemã. A classe dos pequenos burgueses,

legada pelo século XVI, e desde então renascendo sem cessar

sob formas diversas, constitui na Alemanha li verdadeira base

social do regime estabelecido.

Mantê-la é manter na Alemanha o regime estabelecido.

A supremacia industrial e política da burguesia ameaça a

pequena burguesia de destruição certa, de um lado, pela

concentração dos capitais, de outro, pelo desenvolvimento ele

um proletariado revolucionário. O verdadeiro socialismo pareceu

aos pequenos burgueses como uma arma capaz ele aniquilar

esses dois Inimigos. Propagou-se como uma epidemia.

A roupagem tecida com os fios Imateriais da

especulação, bordada com as flores da retórica e banhada de

orvalho sentimental, essa roupagem na qual os socialistas

alemães envolveram o miserável esqueleto das suas "verdades

eternas", não fez senão ativar a venda de sua mercadoria entre tal

público.

Por outro lado, o socialismo alemão compreendeu cada

vez mais que sua vocação era ser o representante grandiloqüente

dessa pequena burguesia.

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante

Fevereiro de 2015

Proclamou que a nação alemã era a nação tipo e o

filisteu alemão, o homem tipo. A todas as infâmias desse homem

tipo deu um sentido oculto, um sentido superior e socialista, que

as tornava exatamente o contrário do que eram. Foi conseqüente

até o fim, levantando-se contra a tendência "brutalmente

destruidora" do comunismo, declarando que pairava

imparcialmente acima de todas as lutas de classes. Com poucas

exceções, todas as pretensas; publicações socialistas ou

comunistas que circulam na Alemanha pertencem a esta imunda

e enervante literatura10

.

2. O Socialismo Conservador ou Burguês

Uma parte da burguesia procura remediar os males

sociais com o fim de consolidar a sociedade burguesa.

Nessa categoria enfileiram-se os economistas, os

filantropos, os humanitários, os que se ocupam em melhorar a

sorte da classe operária, os organizadores de beneficências, os

protetores dos animais, os fundadores das sociedades de

temperança, enfim os reformadores de gabinete de toda

categoria. Chegou-se até a elaborar esse socialismo burguês em

sistemas completos.

Como exemplo, citemos a Filosofia da Miséria de

Proudhon.

Os socialistas burgueses querem as condições de vida

ela sociedade moderna sem as lutas e os perigos que dela

decorrem fatalmente. Querem a sociedade atual, mas eliminando

os elementos que a revolucionam e a dissolvem. Querem a

burguesia sem o proletariado. Como é natural, a burguesia

concebe o mundo em que domina como o melhor dos mundos. O

socialismo burguês elabora em um sistema mais ou menos

completo essa concepção consoladora. Quando convida o

proletariado a realizar esses sistemas e entrar na nova Jerusalém,

no fundo o que pretende é induzi-lo a manter-se na sociedade

atual, desembaraçando-se, porém, do ódio que ele vota a essa

sociedade.

Uma outra forma desse socialismo, menos sistemática,

porém mais prática, procura fazer com que os operários se

afastem de qualquer movimento revolucionário, demonstrando-

lhes que não será tal ou qual mudança política, mas

simplesmente uma transformação das condições de vida material

das relações econômicas; que poderá ser proveitosa para eles.

Notai que, por transformação das condições da vida material,

esse socialismo não compreende, em absoluto, a abolição das

relações burguesas de produção - o que só é possível por via

revolucionária – mas, apenas, reformas administrativas

fundamentadas nessas condições de produção e que, portanto,

não afetam as realizadas sobre a base das próprias relações entre

o capital e o trabalho assalariado, servindo, na melhor hipóteses,

para diminuir os gastos da burguesia com seu domínio e

simplificar o trabalho administrativo de seu Estado.

O socialismo burguês só atinge uma expressão

adequada quando se toma uma simples figura de retórica.

Livre câmbio, no interesse da classe operária Tarifas

protetoras, no interesse da classe operária! Prisões celulares11

,

mo interesse da classe operária! Eis sua última palavra, a única

pronunciada seriamente pelo socialismo burguês.

Ele se resume nesta frase: os burgueses são burgueses

no interesse da classe operária.

10 A tormenta revolucionária de 1848 varreu toda essa lastimável escola e

tirou a seus partidários qualquer vontade de continuar brincando de socialismo. 0 principal representante e o tipo clássico desta escola é o Sr.

Karl Grun. [Nota de Engels A edição alemã de 1890). 11 Na edição inglesa de 1888, editada por F. Engels, diz-se: Reforma penitenciária (Prison reform) (N. da Ed. Bras.).

3. O Socialismo e o Comunismo Crítico-utópicos.

Não se trata aqui da literatura que, em todas as grandes

,evoluções modernas, formulou as reivindicações do proletariado

(escritos de Babeuf, etc.).

As primeiras tentativas diretas do proletariado para

fazer prevalecer seus próprios interesses de classe, feitas numa

época de efervescência geral, no período da derrubada da

sociedade feudal, fracassaram necessariamente não só por causa

do estado embrionário do próprio proletariado, como devido à

ausência das condições materiais de sua emancipação, condições

que apenas surgem como produto do advento da época burguesa.

A literatura revolucionária que acompanhava esses primeiros

movimentos do proletariado teve forçosamente um conteúdo

reacionário. Preconizava um ascetismo geral e um grosseiro

igualitarismo.

Os sistemas socialistas e comunistas propriamente

ditos, os de Saint-Simon, Fourier, Owen, etc., aparecem no

primeiro período da luta entre o proletariado e a burguesia,

período acima descrito. (Ver o cap. Burgueses e Proletários)

Os fundadores desses sistemas compreendem bem o

antagonismo das classes, assim como a ação dos elementos

dissolventes na própria sociedade dominante. Mas não percebem

no proletariado nenhuma iniciativa histórica, nenhum

movimento político que lhe seja próprio.

Como o desenvolvimento dos antagonismos de classes

marcha de par com o desenvolvimento da indústria, não

distinguem tampouco as condições materiais da emancipação do

proletariado e põem-se à procura de uma ciência social, de leis

sociais, que permitam criar essas condições.

A atividade social substituem sua própria imaginação

pessoal; às condições históricas da emancipação, condições

lantasistas; à organização gradual e espontânea do proletariado

em classe, uma organização da sociedade pré-fabricada por eles.

A história futura do mundo se resume, para eles, na propaganda

e na prática de seus planos de organização social.

Todavia, na confecção de seus planos, têm a convicção

de defender antes de tudo os interesses da classe operária,

porque é a classe mais sofredora. A classe operária só existe para

eles sob esse aspecto de classe mais sofredora.

Mas, a forma rudimentar da luta de classe e sua própria

posição social os levam a considerar-se bem acima de qualquer

antagonismo de classe. Desejam melhorar as condições materiais

de vida para todos os membros da sociedade, mesmo dos mais

privilegiados. Por conseguinte, não cessam de apelar

indistintamente para a sociedade inteira, e mesmo se dirigem de

preferência à classe dominante. Pois, na verdade, basta

compreender seu sistema para reconhecer que é o melhor dos

planos possíveis para a melhor das sociedades possíveis.

Repelem, portanto, toda ação política e, sobretudo, toda

ação revolucionária, procuram atingir seu fim por meios

pacíficos e tentam abrir um caminho ao novo evangelho social

pela força do exemplo, por experiências em pequena escala que,

naturalmente, sempre fracassam.

A descrição fantasista da sociedade futura, feita numa

época em que o proletariado, pouco desenvolvido ainda, encara

sua própria posição de um modo fantasista, corresponde às

primeiras aspirações instintivas dos operários a uma completa

transformação da sociedade.

Mas essas obras socialistas e comunistas encerram

também elementos críticos. Atacam a sociedade existente em

suas bases. Por conseguinte, forneceram em seu tempo materiais

de grande valor para esclarecer os operários. Suas propostas

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante

Fevereiro de 2015

positivas relativas à sociedade futura, tais como a supressão da

distinção entre a cidade e o campo, a abolição da família, do

lucro privado e do trabalho assalariado, a proclamação da

harmonia social e a transformação do Estado numa simples

administração da produção, todas essas propostas apenas

anunciam o desaparecimento do antagonismo entre as classes,

antagonismo que mal começa e que esses autores somente

conhecem em suas formas imprecisas. Assim, essas propostas

têm um sentimento puramente utópico.

A importância do socialismo e do comunismo crítico-

utópicos está na razão inversa do desenvolvimento histórico. À

medida que a luta de classes se acentua e toma formas mais

definidas, o fantástico afã de abstrair-se dela, essa fantástica

oposição que se lhe faz, perde qualquer valor prático, qualquer

justificação teórica. Eis porque, se, em muitos aspectos, os

fundadores desses sistemas eram revolucionários, as seitas

formadas por seus discípulos são sempre reacionárias, pois se

aferram às velhas concepções de seus mestres apesar do ulterior

desenvolvimento histórico do proletariado. Procuram, portanto, e

nisto são conseqüentes, atenuar a luta de classes e conciliar os

antagonismos. Continuam a sonhar com a realização

experimental de suas utopias sociais: estabelecimento de

falanstérios isolados, criação de colônias no interior, fundação de

uma pequena Icária12

, edição in 12 da nova Jerusalém e, para dar

realidade a todos esses castelos no ar, vêem-se obrigados a

apelar para os bons sentimentos e os cofres de filantropos,

burgueses. Pouco a pouco, caem na categoria dos socialistas

reacionários ou conservadores descritos acima, e só se

distinguem deles por um pedantismo mais sistemático e uma fé

supersticiosa e fanática na eficácia miraculosa de sua ciência

social.

Opõem-se, pois, encarniçadamente, a qualquer ação

política da classe operária, porque, em sua opinião, tal ação só

pode provir de uma cega falta de fé no novo evangelho.

Desse modo, os owenistas, na Inglaterra, e os

owenistas, na França, reagem respectivamente contra os cartistas

e os reformistas13

IV - Posição dos Comunistas Diante dos

Diversos Partidos de Oposição

O que já dissemos no capítulo II basta para determinar

a posição dos comunistas, diante dos partidos operários já

constituídos e, por conseguinte, sua posição diante dos cartistas;

na Inglaterra e dos reformadores agrários na América do Norte.

Os comunistas combatem pelos interesses; e objetivos

Imediatos da classe operária, mas, ao mesmo tempo, defendem é

representam, no movimento atual, o futuro do movimento.

Aliam-se na França ao partido democrata-socialista14

contra a

12 Falanstérios eram chamadas as colônias socialistas projetadas por Charles Fourier. leária era o nome dado por Cabet a seu país utópico e, mais tarde, à

sua colônia comunista na América. (Nota de F, Engels à edição inglesa de

1888). Owen chamou suas sociedades comunistas modelares de home-colonies (colônias no interior). Falanstério era o nome dos palácios sociais

imaginados por Fourier. Chama-se Icária o pais fantástico cujas instituições

comunistas Cabet descreve. (Nota de F. Engels à edição alemã de 1888). 13 Refere-se aos partidários do jornal Le Réforme, que se editava em Paris

entre os anos 1843-1850. 14 Este partido era representado: no Parlamento, por Ledru-Rollin, na

literatura por Luís Blanc, na imprensa diária por Le Réforme. O nome,

democrata-socialista, significava, nos lábios de seus inventores, a parte do partido democrático ou republicano que tinha uma colorarão mais ou menos

socialista. (Nota de F. Engels A edição inglesa de 1388). O que então se

chamava, na Franca, Partido Democrata-Socialista era representado na política por Ledru-Rollin e na literatura por Luís Blanc; estava, pois, a cem

burguesia conservadora e radical, reservando-se o direito de

criticar as frases e as ilusões legadas pela tradição

revolucionária.

Na Suíça, apoiam os radicais, sem esquecer que esse

partido se compõe de elementos contraditórios, metade

democratas-socialistas, na acepção francesa da palavra, metade

burgueses radicais.

Na Polônia, os comunistas apoiam o partido que vê

numa revolução agrária a condição da libertação nacional, isto é,

o partido que desencadeou a insurreição de Crac6via em 1846.

Na Alemanha, o Partido Comunista luta de acordo com

a burguesia, todas as vezes que esta age revolucionariamente:

contra a monarquia absoluta, a propriedade rural feudal e a

pequena burguesia.

Mas nunca, em nenhum momento, esse Partido se

descuida de despertar nos operários uma consciência clara e

nítida do violento antagonismo que existe entre a burguesia e o

proletariado, para que, na hora precisa, os operários alemães

saibam converter as condições sociais e políticas, criadas pelo

regime burguês, em outras tantas armas contra a burguesia, a fim

de que,. uma vez destruídas as classes reacionárias da Alemanha,

possa ser travada a luta contra a própria burguesia.

É para a Alemanha, sobretudo, que se volta a atenção

dos comunistas, porque a Alemanha se encontra nas vésperas de

uma revolução burguesa; e porque realizará essa revolução nas

condições mais avançadas da civilização européia e com um

proletariado infinitamente mais desenvolvido que o da Inglaterra

no século XVII e o da França no século XVIII a revolução

burguesa alemã, por conseguinte, só poderá ser o prelúdio

imediato de uma revolução proletária.

Em resumo, os comunistas apoiam em toda parte

qualquer movimento revolucionário contra o estado de coisas

social e político existente.

Em todos estes movimentos, põem em primeiro lugar,

como questão fundamental, a questão da propriedade, qualquer

que seja a forma, mais ou menos desenvolvida, de que esta se

revista.

Finalmente, os comunistas trabalham pela união e

entendimento dos partidos democráticos de todos os países.

Os comunistas não se rebaixa a dissimular suas

opiniões e seus fins. Proclamam abertamente que seus objetivos

só podem ser alcançados pela derrubada violenta de toda a

ordem social existente. Que as classes dominantes tremam à

idéia de uma revolução comunista! Os proletários nada têm a

perder nela a não ser suas cadeias. Têm um mundo a ganhar.

PROLETÁRIOS DE TODOS OS PAÍSES, UNI-

VOS!

mil léguas de social-democracia alemã atual. (Nota de F. Engels à edição alemã de 1890).

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante

Fevereiro de 2015

2. Manifesto Desgovernar

Vivemos tempos sombrios. Aparentemente governados

pelas coisas. Mercadorias nos tomam como mercados, mercados

nos tomam como mercadorias. Os homens e mulheres caminham

pela terra na busca desenfreada por excedentes, que mesmo aos

que não têm o básico se impõe pelo consumo de suas forças

vitais.

A forma capital parece tomar todos os espaços do

planeta. Destruição da razão, destruição do desejo, do sonho e

sobretudo da possibilidade humana de governar-se, de dirigir-se

aos seus desejos.

Vivemos a destrutividade capitalista em seu momento

mais desenvolvido. Diferente do que dizem os “novo

desenvolvimentistas” do PT, e parte da esquerda fora do

governo, não existe nenhuma possibilidade de desenvolvimento

capitalista sem destrutividade do mundo e avanço nos níveis de

exploração. Negros, mulheres, imigrantes, gays, somos

classificados como menos para gerarmos mais excedente. Somos

os que recebem mais baixos salários e nossa pele justifica o

aumento do refugo humano nas prisões e o extermínio em

massa.

Somos homens e mulheres descartáveis governados por

uma lógica que nos é estranha. A lógica capitalista tudo governa,

nossas formas de amar, de viver e até de morrer, nossas visões

de mundo são portanto impregnadas deste modo de pensar que

naturaliza os (des)governos do capital e de sua burguesia

decadente. Esta ordem não têm muitas possibilidades a oferecer.

O caráter histórico emancipatório dela se esgotou. Mas fomos

acostumados a eternidade das coisas como são.

A esquerda também é governada por essas formas de

pensar o mundo que eternizam o hoje. Possuíamos as fórmulas

prontas de adaptação do mundo ao socialismo, que

necessariamente consideravam a mudança na forma de distribuir

as riquezas. Por isso, confundimos qualquer pequena mudança

no horizonte da distribuição como progressivo e deixamos de

questionar os fundamentos do modo de produzir capitalista que

não tem outro fim senão gerar excedente.

A historicidade se perdeu e inventamos diversas

fórmulas prontas, ossificamos as divergências entre tradições

teóricas da esquerda do século XIX e as adaptamos de forma

patética as políticas mediocres que conseguimos propor. Alguns

de nós ao buscar romper com o horizonte mediocre da adaptação

e do reformismo mentiroso foram chamados de Desgovernados.

Assumimos: queremos nos desgovernar e nos autogovernar

coletivamente.

Governada (pelo capital) é a esquerda que não se vê

governada quando reproduz as hierarquias desta sociedade

capitalista em sua organização e relação com movimentos

sociais baseando-se em conhecimentos teóricos que não dispõe,

para justificar o injustificável à um movimento que se proponha

autogestionário. Governados estão também os teóricos Marxistas

que tratam algumas categorias como eternas e não vivem as

agruras de nosso tempo histórico.

Com essa revista, nosso convite é outro: Desgovernar!

Porque tudo que é sólido desmancha no ar.

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante

Fevereiro de 2015

3. Sobre a questão judaica

Karl Marx

(...)

A emancipação política do judeu, do cristão e do

homem religioso em geral é a emancipação do Estado do

judaísmo, do cristianismo e, em geral, da religião. De modo

peculiar à sua essência, como Estado, o Estado se emancipa da

religião ao emancipar-se da religião de Estado, isto é, quando o

Estado como tal não professa nenhuma religião, quando o Estado

se reconhece muito bem como tal. A emancipação política da

religião não é a emancipação da religião de modo radical e

isento de contradições, porque a emancipação política não é o

modo radical e isento de contradições da emancipação humana.

O limite da emancipação política manifesta-se

imediatamente no fato de que o Estado pode livrar-se de um

limite sem que o homem dele se liberte realmente, no fato de que

o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um

homem livre. E o próprio Bauer reconhece isto tacitamente

quando estabelece a seguinte condição para a emancipação

política: "Todo privilégio religioso em geral, incluindo, por

conseguinte, o monopólio de uma igreja privilegiada, deveria ser

abolido; se alguns, vários ou mesmo a grande maioria se

acreditasse na obrigação de cumprir seus deveres religiosos, o

cumprimento destes deveria ficar a seu próprio arbítrio, como

assunto exclusivamente privado". Portanto, o Estado pode ter-se

emancipado da religião, ainda que e inclusive, a grande maioria

continue religiosa. E a grande maioria não deixará de ser

religiosa pelo fato da sua religiosidade ser algo puramente

privado.

Porém, a atitude do Estado em face da religião - e nos

referimos aqui ao Estado livre - é a atitude diante da religião dos

homens que formam o Estado. Donde se conclui que o homem

se liberta por meio do Estado; liberta-se politicamente de uma

barreira ao se colocar em contradição consigo mesmo, ao

sobrepor esta barreira de modo abstrato e limitado, de um modo

parcial. Deduz-se, além disso, que ao emancipar-se

politicamente, o homem o faz por meio de um subterfúgio,

através de um meio, mesmo que seja um meio necessário.

Conclui-se, finalmente, ainda quando se proclame ateu por

mediação do Estado, isto é, proclamando o Estado ateu, o

homem continua sujeito às cadeias religiosas, precisamente

porque só se reconhece a si mesmo mediante um subterfúgio,

através de um meio. A religião é, cabalmente, o reconhecimento

do homem através de um mediador. O Estado é o mediador entre

o homem e a sua liberdade. Assim como Cristo é o mediador

sobre quem o homem descarrega toda sua divindade, toda sua

servidão religiosa, assim também o Estado é o mediador para o

qual desloca toda sua não-divindade, toda sua não-servidão

humana.

(...)

Não há dúvida que a emancipação política representa

um grande progresso. Embora não seja a última etapa da

emancipação humana em geral, ela se caracteriza como a

derradeira etapa da emancipação humana dentro do contexto do

mundo atual. É óbvio que nos referimos à emancipação real, à

emancipação prática.

O homem se emancipa politicamente da religião ao

bani-la do direito público para o direito privado. A religião já não

é o espírito do Estado, onde o homem - ainda que de modo

limitado, sob uma forma especial e numa esfera especial -

comporta-se como ser genérico, em comunidade com os outros

homens; ela se converte, agora, no espírito da sociedade

burguesa, da esfera do egoísmo, no espírito do bellum omnium

contra omnes (5) Já não é a essência da comunidade, mas a

essência da diferença. Converteu-se na expressão da separação

do homem de sua comunidade, de si mesmo e dos outros

homens, daquilo que foi em suas origens. Não é mais do que a

confissão abstrata da inversão especial, do capricho particular,

da arbitrariedade. A infinita dispersão da religião na América do

Norte, por exemplo, já lhe dá exteriormente a forma de

incumbência individual. A religião se viu pressionada a baixar ao

nível dos interesses particulares e desterrada da comunidade

como tal. Porém, não nos deixemos enganar sobre as limitações

da emancipação política. A cisão do homem na vida pública e na

vida privada, o deslocamento da religião em relação ao Estado,

para transferi-la à sociedade burguesa, não constitui uma fase,

mas a consagração da emancipação política, a qual, por isso

mesmo, não suprime nem tem por objetivo suprimir a

religiosidade real do homem.

(...)

Os membros do Estado político são religiosos pelo

dualismo existente entre a vida individual e a vida genérica,

entre a vida da sociedade burguesa e a vida política; são

religiosos, na medida em que o homem se conduz, frente à vida

do Estado, - que está muito além de sua individualidade real -

como se esta fosse sua verdadeira vida; religiosos, na medida em

que a religião, aqui, é o espírito da sociedade burguesa, a

expressão do divórcio e do distanciamento do homem em

relação no homem. A democracia política é cristã na medica em

que nela o homem, não apenas um homem, mas todo homem,

vale como um ser soberano, como ser supremo; porem, o nomem

em sua manifestação não-cultivada e não-social, o homem em

sua existência fortuita, o homem tal qual se levanta e anda, o

homem tal qual se acha corrompido por toda a organização de

nossa sociedade, perdido de si mesmo, alienado, entregue ao

império de relações e elementos inumanos; numa palavra, o

homem que ainda não é um ser genérico real. A imagem

fantástica, o sonho, o postulado do cristianismo, a soberania do

homem, porém como um ser estranho, distinto do homem real,

esta é, na democracia, realidade sensível, presente, máxima

secular.

(...)

Vimos, portanto, como a emancipação política em

relação à religião a deixa de pé, ainda que não se trate de uma

religião privilegiada. A contradição em que se encontra o crente

de uma determinada religião com sua cidadania nada mais é do

que uma parte da contradição secular geral entre o Estado

político e a sociedade burguesa. A consagração do Estado cristão

reside na abstração da religião de seus membros, quando o

Estado se professa como tal. A emancipação do Estado em

relação à religião não é a emancipação do homem real em

relação a esta.

Por isto, não dizemos aos judeus, como Bauer: não

podeis emancipar-vos politicamente se não vos emancipais

radicalmente do judaísmo. Ao contrário, dizemos: podeis

emancipar-vos politicamente sem vos desvincular radical e

absolutamente do judaísmo porque a emancipação política não

implica emancipação humana. Quando vós, judeus, quereis a

emancipação política sem vos emancipar humanamente, a meia-

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante

Fevereiro de 2015

solução e a contradição não residem em vós, mas na essência e

na categoria da emancipação política. E, ao vos perceber

encerrados nesta categoria, lhes comunicais uma sujeição geral.

Assim como o Estado evangeliza quando, apesar de já ser uma

instituição, se conduz cristãmente frente aos judeus, do mesmo

modo o judeu pontifica quando, apesar de já ser judeu, adquire

direitos de cidadania dentro do Estado.

Mas, se o homem, embora judeu, pode emancipar-se

politicamente, adquirir direitos de cidadania dentro do Estado,

pode reclamar e obter os chamados direitos humanos? Bauer

nega esta possibilidade. "O problema está em saber se o judeu,

como tal, isto é, o judeu que se confessa obrigado por sua

verdadeira essência a viver eternamente isolado dos outros, é

capaz de obter e conceder aos outros os direitos gerais do

homem".

"A idéia dos direitos humanos só foi descoberta no

século passado. Não é uma idéia inata ao homem, mas este a

conquistou na luta contra as tradições históricas em que o

homem antes se educara. Os direitos humanos não são, por

conseguinte, uma dádiva da natureza, um presente da história,

mas fruto da luta contra o acaso do nascimento, contra os

privilégios que a história, até então, vinha transmitindo

hereditariamente de geração em geração. São o resultado da

cultura; só pode possui-los aquele que os soube adquirir e

merecê-los".

"Sendo assim, pode realmente o judeu chegar a possuir

estes direitos? Enquanto permanecer judeu, a essência limitada

que faz dele um judeu tem que triunfar necessariamente sobre a

essência humana que, enquanto homem, o une aos demais

homens e o dissocia dos que não são judeus. E, através desta

dissociação, declara a essência especial que faz dele um judeu

sua verdadeira essência suprema, diante da qual a essência

humana tem que passar para segundo plano".

"E, do mesmo modo, não pode o cristão, como tal,

conceder nenhuma espécie de direitos humanos" (p. 19-20).

Segundo Bauer, o homem tem que sacrificar o

"privilégio da fé" se quiser obter os direitos gerais de homem.

Detenhamo-nos, um momento, a examinar os chamados direitos

humanos em sua forma autêntica, sob a forma que lhes deram

seus descobridores norte-americanos e franceses. Eu parte, estes

direitos são direitos políticos, direitos que só podem ser

exercidos em comunidade com outros homens. Seu conteúdo é a

participação na comunidade e, concretamente, na comunidade

política, no Estado. Estes direitos se inserem na categoria de

liberdade política, na categoria dos direitos civis, que não

pressupõem, como já vimos, a supressão absoluta e positiva da

religião nem, tampouco, portanto e por exemplo, do judaísmo.

Resta considerar a outra parte dos direitos humanos, os droits de

l'homme,(6) e como se distinguem dos droits du citoyen.(7)

Figura entre eles a liberdade de consciência, o direito

de praticar qualquer culto. O privilégio da fé é expressamente

reconhecido, seja como um direito humano, seja como

conseqüência de um direito humano, da liberdade.

Déclaration des droits de 1'homme et du citoyen, (8)

1791, art. 10: "Nul ne droit inquieté pour ses opinions même

religieuses" (9) E a parte I da Constituição de 1791 consagra

como direito "La liberté à tout homme d'exercer le culte

religieux auquel il est attaché". (10)

A Déclaration des droits de 1'homme, etc., 1795, inclui

entre os direitos humanos, em seu art. 7: "Le libre exercice des

cultes".(11) E mais ainda, no que tange ao direito de expressar

pensamentos e opiniões em público, diz, inclusive, que "La

nécessité d'enoncer ces droits suppose ou Ia présence ou le

souvenir récent du despotisme". (12) Consulte-se, com relação a

isto, a Constituição de 1795, parte XIV, art. 354.

Constitution de Pennsylvanie, art. 9, § 3º: "Tous les

hommes ont reçu de Ia nature le droit imprescriptible d'adorer le

Tout Puissant selon les inspirations de leur conscience, et nul ne

peut légalment être en train de suivre, instituer ou soutenir contre

son gré aucun culte ou ministère religieux. Nulle autorité

humaine ne peut, das aucun cas, intervenir dans les questiona de

conscience et contrôler les pouvoirs de l'ame". (13)

Constitution de New-Hampshire, arts. 5 e 6: "Au

nombre des droits naturels, quelques-uns sont inaliénables de

leur nature, parce que rien n'en peut être 1'équivalent. De ce

nombre sont les droits de conscience" (14) (Beaumont, 1. c., p.

213-14).

A religião, longe de se constituir incompatível com o

conceito dos direitos humanos, inclui-se expressamente entre

eles. Os direitos humanos proclamam o direito de ser religioso,

sê-lo como achar melhor e de praticar o culto que julgar

conveniente. O privilégio da fé é um direito humano geral.

Os droits de l'homme, os direitos humanos, distinguem-

se, como tais, dos droits du citoyen, dos direitos civis. Qual o

homme que aqui se distingue do citoyen? Simplesmente, o

membro da sociedade burguesa. Por que se chama o membro da

sociedade burguesa de "homem", homem por antonomásia, e dá-

se a seus direitos o nome de direitos humanos? Como explicar o

fato? Pelas relações entre o Estado político e a sociedade

burguesa, pela essência da emancipação política.

Registremos, antes de mais nada, o fato de que os

chamados direitos humanos, os droits de l'homme, ao contrário

dos droits du citoyen, nada mais são do que direitos do membro

da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta, do homem

separado do homem e da comunidade. A mais radical das

Constituições, a Constituição de 1793, proclamou:

Déclaration des droits de l'homme et du citoyen

Art. 2: Ces droits, etc. (Les droits naturels et

imprescriptibles) sont: l'égalité, Ia liberté, Ia súreté, Ia proprieté.

(15)

Em que consiste Ia liberté?

Art. 6: "La liberté est le pouvoir qui appartient à

l'homme de faire ce qui ne nuit pas aux droits d'autrui", (16) ou,

segundo a Declaração dos Direitos do Homem, de 1791: "La

liberté consiste à pouvoir faire tout ce qui ne nuit pas à

autrui".(17)

A liberdade, por conseguinte, é o direito de fazer e

empreender tudo aquilo que não prejudique os outros. O limite

dentro do qual todo homem pode mover-se inocuamente em

direção a outro é determinado pela lei, assim como as estacas

marcam o limite ou a linha divisória entre duas terras. Trata-se

da liberdade do homem como de uma mônada isolada, dobrada

sobre si mesma. Por que, então, segundo Bauer, o judeu é

incapaz de obter os direitos humanos? "Enquanto permanecer

judeu, a essência limitada que faz dele um judeu tem que triunfar

necessariamente sobre a essência humana que, enquanto homem,

o une aos demais homens e o dissocia dos que não são judeus".

Todavia, o direito do homem à liberdade não se baseia na união

do homem com o homem, mas, pelo contrário, na separação do

homem em relação a seu semelhante. A liberdade é o direito a

esta dissociação, o direito do indivíduo delimitado, limitado a si

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante

Fevereiro de 2015

mesmo.

A aplicação prática do direito humano da liberdade é o

direito humano à propriedade privada.

Em que consiste o direito humano à propriedade

privada?

Art. 16 (Constituição de 1793) : "Le droit de propriété

est celui qui appartient à tout citoyen de jouir et de disposer à

son gré de ses biens, de ses revenues du fruit de son travail et de

son industrie". (18)

O direito humano à propriedade privada, portanto, é o

direito de desfrutar de seu patrimônio e dele dispor

arbitrariamente (à son gré), sem atender aos demais homens,

independentemente da sociedade, é o direito do interesse

pessoal. A liberdade individual e esta aplicação sua constituem o

fundamento da sociedade burguesa. Sociedade que faz com que

todo homem encontre noutros homens não a realização de sua

liberdade, mas, pelo contrário, a limitação desta. Sociedade que

proclama acima de tudo o direito humano "de jouir et de

disposer à son gré de ses biens, de ses revenues, du fruit de son

travail et de son industrie".

Resta, ainda, examinar os outros direitos humanos, la

égalité e la súreté.

La égalité, considerada aqui em seu sentido não

político, nada mais é senão a igualdade da liberté acima descrita,

a saber: que todo homem se considere igual, como uma mônada

presa a si mesma. A Constituição de 1795 define o conceito desta

igualdade, segundo seu significado:

Art. 3 (Constituição de 1795) : "L'égalité consiste en ce

que Ia loi est Ia même por tous, soit qu'elle protège, soit qu'elle

punisse». (19)

E La süreté?

Art. 8 (Constituição de 1795) : "La súreté consiste dans

Ia protection accordé par Ia societé à chacun de ses membres

pour Ia conservation de sa personne, des ses droits et de ses

propriétés". (20)

A segurança é o conceito social supremo da sociedade

burguesa, o conceito de polícia, segundo o qual toda a sociedade

somente existe para garantir a cada um de seus membros a

conservação de sua pessoa, de seus direitos e de sua propriedade

Neste sentido, Hegel denomina a sociedade burguesa de "Estado

de necessidade e de entendimento".

O conceito de segurança não faz com que a sociedade

burguesa se sobreponha a seu egoísmo. A segurança, pelo

contrário, é a preservação deste.

Nenhum dos chamados direitos humanos ultrapassa,

portanto, o egoísmo do homem, do homem como membro da

sociedade burguesa, isto é, do indivíduo voltado para si mesmo,

para seu interesse particular, em sua arbitrariedade privada e

dissociado da comunidade. Longe de conceber o homem como

um ser genérico, esses direitos, pelo contrário, fazem da própria

vida genérica, da sociedade, um marco exterior aos indivíduos,

uma limitação de sua independência primitiva. O único nexo que

os mantém em coesão é a necessidade natural, a necessidade e o

interesse particular, a conservação de suas propriedades e de

suas individualidades egoístas.

É um pouco estranho que um povo que começa

precisamente a libertar-se, que começa a derrubar as barreiras

entre os distintos membros que o compõe, a criar uma

consciência política, que este povo proclame solenemente a

legitimidade do homem egoísta, dissociado de seus semelhantes

e da comunidade (Déclaration de 1791); e, ainda mais, que,

repita esta mesma proclamação no momento em que só a mais

heróica abnegação pode salvar o país e é, portanto,

imperiosamente exigida, no momento em que se coloca na

ordem do dia o sacrifício de todos os interesses no altar da

sociedade burguesa, em que o egoísmo deve ser castigado como

um crime (Déclaration des droits de l'homme, etc., de 1795) .

Mas este fato torna-se ainda mais estranho quando verificamos

que os emancipadores políticos rebaixam até mesmo a cidadania,

a comunidade política ao papel de simples meio para a

conservação dos chamados direitos humanos; que, por

conseguinte, o citoyen é declarado servo do homme egoísta;

degrada-se a esfera comunitária em que atua o homem em

detrimento da esfera em que o homem atua como ser parcial;

que, finalmente, não se considera como homem verdadeiro e

autêntico o homem enquanto cidadão, senão enquanto burguês.

"Lê but de toute association est la conservation des

droits naturels et imprescriptibles de 1'homme" (21) (Déclaration

des droits, etc., de 1791, art. 2). "Le gouvernement est institué

pour garantir à 1'homme Ia jouissance de ses droits naturels et

imprescriptibles" (22) (Déclaration, etc., de 1793, art. 1).

Portanto, até mesmo nos momentos de entusiasmo juvenil,

exaltado pela força das circunstâncias, a vida política se declara

como simples meio, cujo fim é a vida da sociedade burguesa. É

óbvio que a prática revolucionária está em contradição flagrante

com a teoria. Assim, por exemplo, a proclamação da segurança

como um direito humano coloca publicamente na ordem do dia a

violação do segredo de correspondência. Garante-se a "liberté

indéfinie de Ia presse" (23) (Constitution de 1795, art. 122)

como conseqüência do direito humano, da liberdade individual,

mas isto não impede que se suprima totalmente a liberdade de

imprensa, pois "la liberté de Ia presse ne doit pas être permise

lorsqu'elle compromet Ia liberté politique" (24) (Robespierre

jeune, Histoire Parlamentaire de la Révolution Française, par

Buchez et Roux, tomo 28, p. 159) ; isto significa que o direito

humano à liberdade deixa de ser um direito ao colidir com a vida

política, ao passo que, teoricamente, a vida política é tão

somente a garantia dos direitos humanos, dos direitos do homem

individual, devendo, portanto, abandonar-se a estes direitos com

a mesma rapidez com que se contradiz em sua finalidade. Porém,

a prática é somente exceção e, a teoria, regra. Assim sendo, se

nos empenhamos em considerar esta prática revolucionária como

o estabelecimento seguro da relação, resta saber por que se

invertem os termos da relação na consciência dos emancipadores

políticos, apresentando-se o fim como meio e o meio como fim.

A ilusão ótica de sua consciência não deixa de ser um mistério,

ainda que psicológico, teórico.

O mistério se resolve de modo simples.

A emancipação política é, simultaneamente, a

dissolução da velha sociedade em que repousa o Estado

alienador e a dissolução do poder senhorial. A revolução política

é a revolução da sociedade civil. O que caracterizava a velha

sociedade? Uma simples palavra, o feudalismo. A velha

sociedade civil tinha diretamente um caráter político, isto é, os

elementos da vida burguesa como, por exemplo, a possessão, a

família, o tipo e o modo de trabalho se haviam elevado ao nível

de elementos da vida estatal, sob a forma de propriedade

territorial, de estamento ou de comunidade. Sob esta forma, estes

elementos determinavam as relações entre o indivíduo e o

conjunto do Estado, isto é, suas relações políticas ou, o que dá

no mesmo, suas relações de separação e exclusão das outras

partes integrantes da sociedade. Com efeito, aquela organização

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante

Fevereiro de 2015

da vida do povo não elevava a possessão do trabalho ao nível de

elementos sociais mas, pelo contrário, conduzia a sua separação

do conjunto do Estado e os constituía em sociedades especiais

dentro da sociedade. Não obstante, as funções e condições de

vida da sociedade civil continuavam a ser políticas, se bem que

políticas no sentido feudal; isto é, excluíam o indivíduo do

conjunto do Estado e convertiam a relação especial de sua

comunidade com o conjunto do Estado em sua própria relação

geral com a vida do povo, do mesmo modo que convertiam

determinadas atividades e situações burguesas em sua atividade

e situação gerais. Como conseqüência desta organização, revela-

se necessariamente a unidade do Estado, enquanto a consciência,

a vontade e a atividade da unidade do Estado, e o poder geral

deste, também se manifestam como incumbência especial de um

senhor dissociado do povo e de seus servidores.

A revolução política que derrubou este poder senhorial,

que fez ascender os assuntos de Estado a assuntos do povo, que

constituiu o Estado político como incumbência geral, isto é,

como Estado real, destruiu necessariamente todos os estamentos,

corporações, grêmios e privilégios que eram outras tantas

expressões da separação entre o povo e sua comunidade. A

revolução política suprimiu, com ele, o caráter político da

sociedade civil. Rompeu a sociedade civil em suas partes

integrantes mais simples: de um lado, os indivíduos, de outro, os

elementos materiais e espirituais que formam o conteúdo de

vida, a situação civil destes indivíduos. Libertou de suas cadeias

o espírito político, que se encontrava cindido, dividido e detido

nos diversos compartimentos da sociedade feudal; unindo os

frutos dispersos do espírito político e despojando-o de sua

perplexidade diante da vida civil, a revolução política fez com

que viesse a se constituir - como esfera da comunidade, da

incumbência geral do povo - na independência ideal em relação

àqueles elementos especiais da vida civil. A atividade

determinada de vida e a situação de vida determinada passaram a

ter um significado puramente individual. Deixaram de

representar a relação geral entre o indivíduo e o conjunto do

Estado. Longe disso, a incumbência pública como tal se

converteu em incumbência geral de todo indivíduo e, a função

pública, em sua função geral.

Contudo, a consagração do idealismo do Estado era,

simultaneamente, a consagração do materialismo da sociedade

civil. Ao sacudir-se o jugo político, romperam-se, ao mesmo

tempo, as cadeias que aprisionavam o espírito egoísta da

sociedade civil. Daí, a emancipação política ter sido a

emancipação da sociedade civil em relação à política, sua

emancipação até mesmo da aparência de um conteúdo geral.

A sociedade feudal estava dividida em seu fundamento,

no homem. Mas no homem, tal qual ele se apresentava como

fundamento, no homem egoísta. Este homem, membro da

sociedade burguesa, é agora a base, a premissa do Estado

político. E, como tal, é reconhecido nos direitos humanos.

A liberdade do egoísta e o reconhecimento desta

liberdade são a expressão do reconhecimento do movimento

desenfreado dos elementos espirituais e materiais que formam

seu conteúdo de vida.

Por conseguinte, o homem não se libertou da religião;

obteve, isto sim, liberdade religiosa. Não se libertou da

propriedade, obteve a liberdade de propriedade. Não se libertou

do egoísmo da indústria, obteve a liberdade industrial.

A constituição do Estado político e a dissolução da

sociedade burguesa nos indivíduos independentes - cuja relação

se baseia no direito, ao passo que a relação entre os homens dos

estamentos e dos grêmios se fundava no privilégio - se processa

num só e mesmo ato. Assim sendo, o homem enquanto membro

da sociedade civil, isto é, o homem não-político, surge como

homem natural. Os droits de l'homme aparecem como droits

naturels, pois a atividade consciente de si mesma se concentra no

ato político. O homem egoísta é o resultado passivo,

simplesmente encontrado da sociedade dissolvida, objeto de

certeza imediata e, portanto, objeto natural. A revolução política

dissolve a vida burguesa em suas partes integrantes sem

revolucionar estas partes nem submetê-las à crítica. Conduz-se,

em relação à sociedade burguesa, ao mundo das necessidades, do

trabalho, dos interesses particulares, do direito privado, como se

estivesse frente à base de sua existência, diante de uma premissa

que já não é possível fundamentar e, portanto, como frente à sua

base natural. Finalmente, o homem enquanto membro da

sociedade burguesa, é considerado como o verdadeiro homem,

como homme, distinto do citoyen por se tratar do homem em sua

existência ~ sensível e individual imediata, ao passo que o

homem político é apenas o homem abstrato, artificial, alegórico,

moral. O homem real só é reconhecido sob a forma de indivíduo

egoísta; e o homem verdadeiro, somente sob a forma do citoyen

abstrato.

Rousseau descreve corretamente a abstração do homem

político ao dizer:

"Celui qui ose entreprendre d'instituer un peuple doit se

sentir en état de changer pour ainsi dire Ia nature humaine, de

transformer partie d'un grand tout dont cet individu reçoive en

quelque sorte sa vie et son être, de substituer une existence

partielle et morale à 1'existence physique et indépendante. Il faut

qu'il ôte à 1'homme ses forces propres pour lui en donner qui lui

soient étrangères et dont il ne puisse faire usage sans les secours

d'autrul" (25) (Contrat Social, livro II, Londres, 1782, p. 67).

Toda emancipação é a recondução do mundo humano,

das relações, ao próprio homem.

A emancipação política é a redução do homem, de um

lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta

independente e, de outro, a cidadão do Estado, a pessoa moral.

Somente quando o homem individual real recupera em

si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em

ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações

individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e

organizado suas "forces propres" (26) como forças sociais e

quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma

de força política, somente então se processa a emancipação

humana

(…)

____________________

Notas:

(1) Nos Estados Unidos não existe religião de Estado, nem religião declarada como da maioria, nem a preeminência de um culto sobre

outro. 0 Estado é alheio a todos os cultos.

(2) A Constituição não impõe crenças religiosas nem a prática de um culto como condição dos privilégios políticos.

(3) Nos Estados Unidos não se acredita que um homem sem

religião possa ser um homem honesto

(4) Nota da Tradução Brasileira: O direito de voto estava

condicionado a determinado teto. O indivíduo que não possuísse o mínimo

estipulado não podia ser eleitor.

(5) Guerra de todos contra todos.

(6) Direitos do homem.

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante

Fevereiro de 2015

(7) Direitos do cidadão.

(8) Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

(9) A ninguém se perseguirá por suas opiniões, inclusive

religiosas.

(10) A todos é assegurada a liberdade de praticar o culto religioso

a que se encontre vinculado.

(11) O livre exercício dos cultos.

(12) A necessidade de anunciar estes direitos pressupõe ou a

presença ou a lembrança do despotismo

(13) Constituição da Pensilvânia, art. 9, § 3.º: "Todos os homens

receberam da natureza o direito imprescritível de adorar o Todo Poderoso

segundo os ditames de sua consciência; ninguém pode, legalmente, ser obrigado a praticar, instituir ou sustentar qualquer culto religioso contra sua

vontade. Em caso algum a autoridade humana, seja ela qual for, -poderá

intervir em questões de consciência e fiscalizar as faculdades de alma-.

(14) Constituição de New-Hampshire, arts. 5 e 6: "Entre os

direitos naturais, alguns são inalienáveis por si mesmos, já que não podem

ser substituídos por outros. Entre eles, figuram os direitos de consciência".

(15) Estes direitos, etc. (os direitos naturais e imprescritíveis) são:

a igualdade, a liberdade, a segurança e a propriedade.

(16) A liberdade é o poder próprio do homem de fazer tudo aquilo que não conflite com os direitos de outro.

(17)A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não

prejudique a ninguém.

(18) O direito à propriedade é o direito assegurado a todo cidadão

de gozar e dispor de seus bens, rendas, dos frutos de seu trabalho e de sua

indústria como melhor lhe convier.

(19) A igualdade consiste na aplicação da mesma lei para todos,

quando protege ou quando castiga.

(20)A segurança consiste na proteção conferida pela sociedade a

cada um de seus membros para a conservação de sua pessoa, de seus direitos

e de suas propriedades.

(21) O fim de toda associação política é a conservação dos

direitos naturais e imprescritíveis do homem.

(22) O governo foi instituído para garantir ao homem o gozo de seus direitos naturais e imprescritíveis.

(23) Liberdade indefinida de imprensa.

(24) A liberdade de imprensa não deve ser permitida sempre que comprometer a liberdade política.

(25) Aquele que se propõe a tarefa de instituir um povo deve

sentir-se capaz de transformar, por assim dizer, a natureza humana, de transformar cada indivíduo, que é por si mesmo um todo perfeito, solitário,

em parte de um todo maior, do qual o indivíduo receba até certo ponto sua

vida e seu ser, de substituir a existência física e independente por uma

existência parcial e moral. Deve despojar o homem de suas próprias forças, a

fim de lhe entregar outras que lhe são estranhas e das que só possa fazer uso

com a ajuda de outros homens.

(26) Próprias forças.

(27) Esse que aí veis à testa de uma respeitável corporação

começou como comerciante; falindo seu negócio, fez sacerdote; este outro começou pelo sacerdócio, porém, ao dispor de certa quantia, abandonou o

púlpito pelos negócios. Aos olhos de muitos, o ministério religioso é uma

verdadeira carreira industrial.

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante

Fevereiro de 2015

4. Gramsci - Cadernos do Cárcere nº 13 (pag. 36 a 47)

(...)

17. Análise das situações: relações de força.

É o problema das relações entre estrutura e

superestrutura que deve ser posto com exatidão e resolvido para

que se possa chegar a uma justa análise das forças que atuam na

história de um determinado período e determinar a relação entre

elas. É necessário mover-se no âmbito de dois princípios: 1) o de

que nenhuma sociedade se põe tarefas para cuja solução ainda

não existam as condições necessárias e suficientes, ou -que pelo

menos não estejam em vias de aparecer e se desenvolver; 2) e o

de que nenhuma sociedade se dissolve e pode ser substituída

antes que se tenham desenvolvido todas as formas de vida

implícitas em suas relações (verificar a exata enunciação destes

princípios). ("Nenhum:;t formação social desaparece antes que

se desenvolvam todas as forças produtivas que ela contém, e

jamais aparecem relações de produção novas e mais altas antes

de amadurecerem no seio da própria sociedade antiga as

condições materiais para sua existência. Por isso, a humanidade

se propõe sempre apenas os objetivos que pode alcançar, pois,

bem vistas as coisas, vemos sempre que estes objetivos só

brotam quando já existem ou, pelo menos, estão em gestação as

condições materiais para sua realização" (Prefácio à Crítica da

economia política)] [23].

Da reflexão sobre estes dois cânones pode-se chegar ao

desenvolvimento de toda uma série de outros princípios de

metodologia histórica. Todavia, no estudo de uma estrutura,

devem-se distinguir os movimentos orgânicos (relativamente

permanentes) dos movimentos que podem ser chamados de

conjuntura (e que se apresentaria como ocasionais, imediatos,

quase acidentais). Também os fenômenos de conjuntura

dependem, certamente, de movimentos orgânicos, mas seu

significado não tem um amplo alcance histórico: eles dão lugar à

uma crítica política miúda, do dia-a-dia, que envolve os

pequenos grupos dirigentes e as personalidades imediatamente

responsáveis pelo poder. Os fenômenos orgânicos dão lugar à

crítica histórico-social, que envolve os grandes agrupamentos,

para além das pessoas imediatamente responsáveis e do pessoal

dirigente. Quando se estuda um período histórico, revela-se a

grande importância dessa distinção. Tem lugar uma crise que, às

vezes, prolonga-se por dezenas de anos. Esta duração

excepcional significa que se revelaram (chegaram à maturidade)

contradições insanáveis na estrutura e que as forças políticas que

atuam positivamente para conservar e defender a própria

estrutura esforçam-se para saná-las dentro de certos limites e

superá-las. Estes esforços incessantes e perseverantes (já que

nenhuma forma social jamais confessará que foi superada)

formam o terreno do "ocasional", no qual se organizam as forças

antagonistas que tendem a demonstrar (demonstração que, em

última análise, só tem êxito e é "verdadeira" se se torna nova

realidade, se as forças antagonistas triunfam, mas que

imediatamente se explicita numa série de polêmicas ideológicas,

religiosas, filosóficas, políticas, jurídicas, etc., cujo caráter

concreto pode ser avaliado pela medida em que se tornam

convincentes e deslocam o alinhamento preexistente das forças

sociais) que já existem as condições necessárias e suficientes

para que determinadas tarefas possam e~ portanto, devam ser

resolvidas historicamente (devam, já que a não-realização do

dever histórico aumenta a desordem necessária e prepara

catástrofes mais graves).

O erro em que se incorre frequentemente nas análises

histórico-políticas consiste em não saber encontrar a justa

relação entre o que é orgânico e o que é ocasional: chega-se

assim ou a expor como imediatamente atuantes causas que, ao

contrário, atuam mediatamente, ou a afirmar que as causas

imediatas são as únicas causas eficientes. Num caso, tem-se

excesso de "economicismo" ou de doutrinarismo pedante; no

outro, excesso de "ideologismo". Num caso, superestimam-se as

causas mecânicas; no outro, exalta-se o elemento voluntarista e

individual. (A distinção entre "movimentos" e fatos orgânicos e

movimentos e fatos de "conjuntura" ou ocasionais deve ser

aplicada a todos os tipos de situação, não só àquelas em que se

verifica um processo regressivo ou de crise aguda, mas àquelas

em que se verifica um processo progressista ou de prosperidade

e àquelas em que se verifica uma estagnação das forças

produtivas.) O nexo dialético entre as duas ordens de movimento

e, portanto, de pesquisa dificilmente é estabelecido de modo

correto; e, se o erro é grave na historiografia, mais grave ainda se

torna na arte política, quando se trata não de reconstruir a

história passada, mas de construir a história presente e futura: os

próprios desejos e as próprias paixões baixas e imediatas

constituem a causa do erro, na medida em que substituem a

análise objetiva e imparcial e que isto se verifica não como

"meio" consciente para estimular à ação, mas como auto-engano.

O feitiço, também neste caso, se volta contra O feiticeiro, ou

seja, o demagogo é a primeira vítima de sua demagogia.

[O fato de não se levar em consideração o momento

imediato das "relações de força" liga-se a resíduos da concepção

liberal vulgar, da qual o sindicalismo é uma manifestação que

acreditava ser mais avançada quando, na realidade, representava

um passo atrás. Com efeito, a concepção liberal vulgar, dando

importância à relação das forças políticas organizadas nas

diversas formas de partido (leitores de jornais, eleições

parlamentares e locais, organizações de massa dos partidos e dos

sindicatos em sentido estrito), era mais avançada do que o

sindicalismo, que dava importância primordial à relação

fundamental econômico-social, e só a ela. A concepção liberal

vulgar também levava em conta implicitamente esta relação

(como transparece através de muitos sinais), mas insistia mais na

relação das forças políticas, que era uma expressão da outra e, na

realidade, a englobava. Estes resíduos da concepção liberal

vulgar podem ser encontrados em toda' uma série de análises que

se dizem ligadas à filosofia da práxis e deram lugar a formas

infantis de otimismo e de estupidez.]

Estes critérios metodológicos podem adquirir visível e

didaticamente todo o seu significado quando aplicados ao exame

de fatos históricos concretos. Seria possível fazer isso com

utilidade para os acontecimentos que se verificaram na França de

1789 a 1870. Parece-me que, para maior clareza da exposição,

seja necessário abranger todo este período. De fato, só em 1870-

1871, com a tentativa da Comuna, esgotam-se historicamente

todos os germes nascidos em 1789, ou seja, não só a nova classe

que luta pelo poder derrota os representantes da velha sociedade

que não quer confessar-se definitivamente superada, mas derrota

também os novíssimos grupos que' consideram já ultrapassada a

nova estrutura surgida da transformação iniciada em 1789 e

demonstra assim sua vitalidade tanto em relação ao velho

como.em relação ao novíssimo. Além do mais, com os

acontecimentos de 1870-1871, perde eficácia o conjunto de

princípios de estratégia e tática política nascidos praticamente

em 1789 e desenvolvidos ideologicamente em torno de 1848 (os

que se sintetizam na fórmula da "revolução permanente": seria

interessante estudar em que medida essa fórmula passou para a

estratégia mazziniana - por exemplo, para a insurreição de 1853

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante

Fevereiro de 2015

em Milão ~ e se isto ocorreu conscientemente ou não) [24]. Um

elemento que mostra a justeza deste ponto de vista é o fato de

que os historiadores de modo nenhum concordam (e é

impossível que concordem) na fixação dos limites daquela série

de acontecimentos que constitui a Revolução Francesa. Para

alguns (Salvemini, por exemplo), a revolução se completa em

Valmy: a França criou um novo Estado e soube organizar a força

político-militar que o sustenta e que defende sua soberania

territorial. Para outros, a revolução continua até Termidor, ou

melhor, eles falam de muitas revoluções (o 10 de agosto seria

uma revolução em si, etc; cf. La Réuolution (française de A.

Mathiez, na coleção Colin) [25]. A maneira de interpretar o

Termidor e a ação de Napoleão apresenta as mais' agudas

contradições: trata-se de revolução ou de contra-revolução, etc.

Para outros, a história da Revolução continua até 1830; 1848,

1870 e mesmo até a guerra mundial de 1914.

Em todas estas maneiras de ver há uma parte de

verdade.

Realmente, as contradições internas da estrutura

francesa, que se desenvolvem depois de 1789, só encontram uma

relativa composição com a Terceira República, e a França tem

sessenta anos de vida política equilibrada depois de oitenta anos

de transformações em ondas _ cada.vez mais longas: 1789, 1794,

1799, 1804, 1815, 1830, 1848, 1870. É exatamente o estudo

dessas "ondas" de diferente oscilação que permite reconstruir as

relações entre estrutura e superestrutura, por um lado, e, por

outro, entre o curso do movimento orgânico e o curso do

movimento de conjuntura da estrutura. Assim, pode-se dizer que

a mediação di aI ética entre os dois princípios metodológicos

enunciados no início desta nota pode ser encontrada na fórmula

político-histórico da revolução permanente.

Um aspecto do mesmo problema é a chamada questão

das relações de força. Lê-se com frequência, nas narrações

históricas, a expressão genérica: relações de força favoráveis,

desfavoráveis li esta ou àquela tendência. Assim, abstratamente,

esta formulação não explica nada ou quase nada, pois não se faz

mais do que repetir o fato que se deve explicar, apresentando-o

uma vez como fato e outra como lei abstrata e como explicação.

Portanto, o erro teórico consiste em apresentar um princípio de

pesquisa e de interpretação como "causa histórica" .

Na "relação de força", é necessário distinguir diversos

momentos ou graus, que no fundamental são os seguintes:

1) Uma relação de forças sociais estreitamente ligada à

estrutura, objetiva, independente da vontade dos homens, que

pode ser mensurada com os sistemas das ciências exatas ou

físicas [26]. Com base no grau de desenvolvimento das forças

materiais de produção, têm-se os agrupamentos sociais, cada um

dos quais representa uma função e ocupa uma posição

determinada na própria produção. Esta relação é o que é, uma

realidade rebelde: ninguém pode modificar o número das

empresas e de seus empregados, o número das cidades com sua

dada população urbana, etc. Este alinhamento fundamental

permite estudar se existem na sociedade as condições necessárias

e suficientes para uma sua transformação, ou seja, permite

verificar o grau de realismo e de viabilidade das diversas

ideologias que nasceram em seu próprio terreno, no terreno das

contradições que ele gerou durante seu desenvolvimento.

2) O momento seguinte é a relação das forças políticas,

ou seja, a avaliação do grau de homogeneidade, de

autoconsciência e de organização alcançado pelos vários grupos

sociais. Este momento, por sua vez, pode ser analisado e

diferenciado em vários graus, que correspondem aos diversos

momentos da consciência política coletiva, tal como se

manifestaram na história até agora. O primeiro e mais elementar

é o econômico-corporativo: um comerciante sente que deve ser

solidário com outro comerciante, um fabricante com outro

fabricante, etc., mas o comerciante não se sente ainda solidário

com o fabricante; isto é, sente-se a unidade homogênea do grupo

profissional e o dever de organizá-la, mas não ainda a unidade

do grupo social mais amplo.

Um segundo momento é aquele em que se atinge a

consciência da solidariedade de interesses entre todos os

membros do grupo social, mas ainda no campo meramente

econômico. Já se põe neste momento a questão do Estado, mas

apenas no terreno da obtenção de uma igualdade politico-jurídica

com os grupos dominantes, já que se reivindica o direito de

participar da legislação e da administração e mesmo de

modificá-las, de reformá-las, mas nos quadros fundamentais

existentes. Um terceiro momento é aquele em que se adquire a

consciência de que os próprios interesses corporativos, em seu

desenvolvimento atual e futuro, superam o círculo corporativo,

de grupo meramente econômico, e podem e devem tornar-se os

interesses de outros grupos subordinados. Esta é a fase mais

estritamente política, que assinala a passagem nítida da estrutura

para a esfera das superestruturas complexas; é a fase em que as

ideologias geradas anteriormente se transformam em "partido",

entram em confrontação e lutam até que uma delas, ou pelo

menos uma única combinação delas, tenda a prevalecer, a se

impor, a se irradiar por toda a área social, determinando, além da

unicidade dos fins econômicos e políticos, também a unidade

intelectual e moral, pondo todas as questões em torno das quais

ferve a luta não no plano corporativo, mas num plano

"universal", criando assim a hegemonia de um grupo social

fundamental sobre uma série de grupos subordinados. O Estado

é certamente concebido como organismo próprio de um grupo,

destinado a criar as condições favoráveis à expansão máxima

desse grupo, mas este desenvolvimento e esta expansão são

concebidos e apresentados como a força motriz de uma expansão

universal, de um desenvolvimento de todas as energias

"nacionais", isto é, o grupo dominante é coordenado

concretamente com os interesses gerais dos grupos subordinados

e a vida estatal é concebida como uma contínua formação e

superação de equilíbrios instáveis (no âmbito da lei) entre os

interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos

subordinados, equilíbrios em que os interesses do grupo

dominante prevalecem, mas até um determinado ponto, ou seja,

não até o estreito interesse econômico-corporativo. Na história

real, estes momentos implicam-se reciprocamente, por assim

dizer horizontal e verticalmente, isto é, segundo as atividades

econômico sociais (horizontais) e segundo os territórios

(verticalmente), combinando-se e cindindo-se variadamente:

cada uma destas combinações pode ser representada por uma

própria expressão organizada econômica e política. Deve-se

ainda levar em conta que estas relações internas de um Estado-

Nação entrelaçam-se com as relações internacionais, criando

novas combinações originais e historicamente concretas. Uma

ideologia, nascida num país mais desenvolvido, difunde-se em

países menos desenvolvidos, incidindo no jogo local das

combinações. (A religião, por exemplo, sempre foi uma fonte

dessas combinações ideológico-políticas nacionais e

internacionais; e, com a religião, as outras formações

internacionais, como a maçonaria, o Rotary Club, os judeus, a

diplomacia de carreira, que sugerem recursos políticos de origem

histórica diversa e os fazem triunfar em determinados países,

funcionando como partido político internacional que atua em

cada nação com todas as suas forças internacionais concentradas;

mas religião, maçonaria, Rotary, judeus, etc., podem ser

incluídos na categoria social dos "intelectuais", cuja função, em

escala internacional, é a de mediar entre os extremos, de

"socializar" as descobertas técnicas que fazem funcionar toda

atividade de direção, de imaginar compromissos e alternativas

entre as soluções extremas) [27]. Esta relação entre forças

internacionais e forças nacionais torna-se ainda mais complexa

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante

Fevereiro de 2015

por causa da existência, no interior de cada Estado, de várias

seções territoriais com estruturas diferentes e diferentes relações

de força em todos os graus (assim, a Vendéia era aliada das

forças reacionárias internacionais e as representava no seio da

unidade I territorial francesa; assim, na Revolução Francesa,

Lyon representava uma conexão particular de relações, etc.).

3) O terceiro momento é o da relação das forças

militares, imediatamente decisivo em cada oportunidade

concreta. (O desenvolvimento histórico oscila continuamente

entre o primeiro e o terceiro momento, com a mediação do

segundo.) Mas também esse momento não é algo, indistinto e

identificável imediatamente de forma esquemática; também nele

podem-se distinguir dois graus: o militar em sentido estrito, ou

técnico-militar, e o grau que pode ser chamado de político

militar. No curso da história, estes dois graus se, apresentaram

numa grande variedade de combinações. Um exemplo típico,

que pode servir como demonstração-limite, é o da relação de

opressão militar de um Estado sobre uma nação que procura

alcançar sua independência estatal. A relação não é puramente

militar, mas político-militar: com efeito; este tipo de opressão

seria inexplicável sem o estado de desagregação social do povo

oprimido e a passividade de sua maioria. Portanto, a

independência não poderá ser alcançada com forças puramente

militares, mas com forças militares e político-militares. De fato,

se a nação oprimida, para iniciar a luta pela independência,

tivesse de esperar a permissão do Estado hegemônico para

organizar seu próprio exército no sentido estrito e técnico da

palavra, teria de esperar bastante tempo (pode ocorrer que a

reivindicação de ter um exército próprio seja concedida pela

nação hegemônica, mas isto significa que uma grande parte da

luta já foi travada e vencida no terreno político militar). A nação

oprimida, portanto, oporá inicialmente à força militar

hegemônica uma força que é apenas "político-militar", isto é,

oporá uma forma de ação política que tenha a virtude de

determinar reflexos de caráter militar, no sentido de que: 1) seja

capaz de desagregar intimamente a eficiência bélica da nação

hegemônica; 2) obrigue a força militar hegemônica a diluir-se e

dispersar-se num grande território, anulando grande parte de sua

eficiência bélica. No Risorgimiento italiano, pode-se notar a

ausência desastrosa de uma direção político-militar sobretudo no

Partido de Ação (por incapacidade congênita), mas também no

partido piemontês-moderado, tanto antes como depois de 1848,

não certamente por incapacidade, mas por "malthusianismo

econômico-político", ou seja, porque não se quis sequer fazer

menção à possibilidade de uma reforma agrária e porque não se

queria a convocação de uma assembleia nacional constituinte,

mas se pretendia apenas que a monarquia piemontesa, sem

condicionamentos ou limitações de origem popular, se

estendesse a toda a Itália, através da simples aprovação de

plebiscitos regionais.

Outra questão ligada às anteriores é a de ver se as crises

históricas fundamentais são determinadas imediatamente pelas

crises econômicas. A resposta a essa questão está implicitamente

contida nos parágrafos anteriores, onde são tratadas questões que

constituem um outro modo de apresentar aquela a que nos

referimos agora; mas é sempre necessário, por razões didáticas,

dado o público específico; examinar cada modo sob o qual se

apresenta uma mesma questão como se se tratasse de um

problema independente e novo. Pode-se excluir que, por si

mesmas, as crises econômicas imediatas produzam eventos

fundamentais; podem apenas criar um terreno mais favorável à

difusão de determinados modos de pensar, de pôr e de resolver

as questões que envolvem todo o curso subsequente da vida

estatal. De. resto, todas as afirmações referentes a períodos de

crise ou de prosperidade podem dar margem a juízos unilaterais.

Em seu compêndio de.história da Revolução Francesa (Ed.

Colin), Mathiez, opondo-se à história vulgar tradicional, que

aprioristicamente "encontra" uma crise para coincidir com as

grandes rupturas de equilíbrios sociais, afirma que, por volta de

1789, a situação econômica era bastante boa no nível imediato,

pelo que não se pode dizer que a catástrofe do Estado absoluto

tenha sido motivada por uma crise de empobrecimento (cf, a

afirmação exata de Mathiez) [28]. Deve-se observar que o

Estado estava envolvido numa crise financeira mortal e se punha

a questão de saber sobre qual das três ordens sociais

privilegiadas deveriam recair os sacrifícios e o peso de um

reordenamento das finanças do Estado e da Coroa. Além do

mais, se a posição econômica da burguesia era próspera,

certamente não era boa a situação das classes populares das

cidades e do campo, especialmente destas últimas, atormentadas

pela miséria endêmica. De qualquer modo, a ruptura do

equilíbrio entre as forças não se deu por causas mecânicas

imediatas de empobrecimento do grupo social interessado em

romper o equilíbrio, e que de fato o rompeu; mas ocorreu no

quadro de conflitos superiores ao mundo econômico imediato,

ligados ao "prestígio" de classe (interesses econômicos futuros),

a uma exasperação do sentimento de independência, de

autonomia e de poder. A questão particular do mal-estar ou do

bem-estar econômicos como causa de novas realidades históricas

é um aspecto parcial da questão das relações de força em seus

vários graus. podem-se produzir novidades ou porque uma

situação de bem estar é ameaçada pelo egoísmo mesquinho de

um grupo adversário, ou porque o mal-estar se tornou intolerável

e não se vê na velha sociedade nenhuma força capaz de mitigá-lo

e de restabelecer uma normalidade através de meios legais.

Pode-se dizer, portanto, que todos estes elementos são a

manifestação concreta das flutuações de conjuntura do conjunto

das relações sociais de força, em cujo terreno verifica-se a

transformação destas relações em relações políticas de força,

para culminar na relação militar decisiva. Se não se verifica este

processo de desenvolvimento de um momento a outro - e trata-se

essencialmente de um processo que tem como atores os homens

e a vontade e capacidade dos homens -, a situação se mantém

inoperante e podem ocorrer desfechos contraditórios: a velha

sociedade resiste e garante para si um período de "tomada de

fôlego", exterminando fisicamente a elite adversária e

aterrorizando as massas de reserva; ou, então, verifica-se a

destruição recíproca das forças em conflito com a instauração da

paz dos cemitérios, talvez sob a vigilância de um sentinela

estrangeiro.

Mas a observação mais importante a ser feita sobre

qualquer análise concreta das relações de força é a seguinte: tais

análises não podem e não devem ser fins em si mesmas (a não

ser que se trate de escrever um capítulo da história do passado),

mas só adquirem um significado se servem para justificar uma

atividade prática, uma iniciativa de vontade. Elas mostram quais

são os pontos de menor resistência, nos quais a força da vontade

pode ser aplicada de modo mais frutífero, sugerem as operações

táticas imediatas, indicam a melhor maneira de empreender uma

campanha de agitação política, a linguagem que será mais bem

compreendida pelas multidões, etc. O elemento decisivo de cada

situação é a força permanentemente organizada e há muito

tempo preparada, que se pode fazer avançar quando se julga que

uma situação é favorável (e só é favorável na medida em que

esta força exista e seja dotada de ardor combativo). Por isso, a

tarefa essencial consiste em dedicar-se de modo sistemático e

paciente a formar esta força, desenvolvê-la, torná-la cada vez

mais homogênea, compacta e consciente de si. Isso pode ser

comprovado na história militar e no cuidado com que, em

qualquer época, os exércitos estiveram preparados para iniciar

uma guerra a qualquer momento. Os grandes Estados foram

grandes Estados precisamente porque sempre estavam

preparados para inserir-se eficazmente nas conjunturas

internacionais favoráveis; e essas eram favoráveis porque havia a

possibilidade concreta de inserir-se eficazmente nela.

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante

Fevereiro de 2015

5. Feminismo Negro, uma visão militante

Luciene Lacerda e Meire Reis

Já contamos na atualidade com algumas

discussões e pesquisas sobre o feminismo negro no Brasil

que é parte da atuação de muitas mulheres nos

movimentos feministas e movimentos de mulheres e que

se predispõem a pensar a questão racial, de gênero e de

classe como elementos integrantes de uma mesma face.

Feministas norte-americanas como Bell Hooks e

Patricia Hill Collins são importantes para pensarmos sobre

o feminismo negro e a sua articulação entre a academia e a

experiência efetiva das mulheres negras. Para estas

feministas só é possível falarmos de um feminismo

quando temos em mente que há uma intersecção entre as

categorias raça, gênero e classe. E essa intersecção é

fundamental para nos situarmos naquilo que comumente

se denomina de feminismo. As feministas negras

brasileiras criticam uma concepção de feminismo que

separa teoria e prática, e que resiste em reconhecer as

diversidades, principalmente a racial. Esse feminismo não

nos inclui.

Não é demais lembrar que no início do século XX

quando as mulheres brancas reivindicavam liberdade para

sair e trabalhar nas ruas, as mulheres negras já

trabalhavam nas ruas, sustentavam a si e a seus filhos. No

entanto, sua experiência não foi reconhecida pelo

movimento feminista, ao contrário o racismo foi utilizado

para inferiorizar as mulheres negras, tanto por homens

brancos quanto pelas mulheres brancas. Assim, o

movimento feminista, por décadas invisibilizou as

mulheres negras. Assim como o movimento negro. Para

Lícia Maria de Lima Barbosa “As críticas feitas pelas

feministas negras brasileiras ao feminismo branco gerou

uma relação tensa e árida entre essas vertentes durante

algum tempo, embora, contemporaneamente tem

surgido novas perspectivas, possibilidades de diálogos,

parcerias e mesmo ações conjuntas”[1].

As feministas sufragistas exigiam direitos iguais

aos dos homens, as liberais definiam as bandeiras do poder

sobre o seu corpo, a perspectiva de crescimento individual

e o acesso aos bens de direito que a sociedade reservava

aos homens brancos. Como é o caso de Margareth Sanger

no inicio do século XX que lutou pelo direito das mulheres

em decidir quantos filhos queriam ter, o problema é que

ela não tinha dúvida que os seres inferiores deveriam ser

impedidos de nascer. Negros, mestiços ou índios, e o

Estado deveria agir no sentido de impedir a proliferação

de seres inferiores que só prejudicariam o bem estar da

sociedade.

Estas feministas queriam libertar as mulheres das

amarras do serviço doméstico que as aprisionavam, e que

se saíssem e se transformassem em mulheres públicas

teriam os mesmos direitos que os homens. Elas saíram,

foram para as universidades e delegou a outras mulheres o

cuidado com as suas famílias. Na Europa, as mulheres que

cuidavam da vida das mulheres modernas eram, e ainda

são, africanas, caribenhas, asiáticas. No Brasil, na

esmagadora maioria das vezes, são as mulheres negras que

cuidam das famílias das mulheres brancas.

O movimento feminista trouxe e traz

contribuições inquestionáveis a luta social por melhores

condições de vida das mulheres, mas este movimento ao

longo do século XX não conseguiu dialogar com a questão

racial, na América ou na Europa.

Para Sueli Carneiro, o movimento de mulheres

negras trouxe para a ação política as contradições

“resultantes da articulação das variáveis de raça, classe e

gênero” sintetizando elementos do movimento negro e do

de mulheres, tornando as reivindicações das mulheres

mais representativas das mulheres brasileiras e o

movimento negro mais feminino.[2]

Para finalizar essa abordagem, evidenciamos

como a opressão capitalista age sobre os indivíduos e tenta

homogeneizá-los. Ao fazer o discurso da igualdade entre

as pessoas, o capitalismo transforma diferenças em

desigualdades e se utiliza dessas para ampliar as suas

margens não só de lucro, mas de uma ação

desestruturadora. Assim, produz um discurso no qual a

igualdade anulava as diferenças. Quando analisamos a

trajetória histórica dos opositores e opositoras do sistema

capitalista o discurso da igualdade é ampliado, e

aprendemos que uma dada tradição de esquerda socialista

(africana, européia, americana) também se recusava a

perceber as desigualdades existentes entre os

trabalhadores, a classe operária aparecia assim, como uma

classe universal. Assim, raça[3] e gênero quando não

invisíveis eram secundarizados.

O uso do termo raça tem sido muito mais

controvertido do que o termo racismo. Apesar de

considerarmos que raça é “raça humana”, o uso

sociológico do termo justifica a nossa abordagem sobre

este conceito.

A forma como algumas trabalhadoras e

trabalhadores eram tratados nos seus locais de trabalho era

pensado genericamente como formas de opressão de

classe. Dessa forma o machismo e racismo não se

configuravam como categorias importantes para análise do

ambiente de trabalho.

Autoras como Crenshaw (2002) e Kergoat (2010)

revelam que se o componente sexo é visto isoladamente, a

divisão sexual do trabalho apresenta a vulnerabilidade das

mulheres seja no salário, seja nos cargos de chefia. E na

divisão racial do trabalho a vulnerabilidade da população

negra se revela nos acessos e trajetória do trabalho, nos

salários assim como nos cargos de chefia.

A junção destas questões dá às mulheres negras

uma dupla vulnerabilidade, e que ao unir a questão da

relação classe social a situação das mulheres se mostra a

mais frágil entre todos os segmentos. E se torna inevitável

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante

Fevereiro de 2015

fazer estas considerações ao analisarmos temas como o

racismo e o sexismo, e outras formas de violência no

trabalho como o assédio moral no trabalho. A idéia da

intersecção entre os três eixos: raça, gênero e classe de

Crenshaw – interseccionalidade – e a de Kergoat em que

estes eixos se produzem e co-produzem mutuamente –

consubstancialidade e coextensividade– dão a idéia da

importância da inter relação destas dimensões na vida das

mulheres negras.

A pauta do movimento negro e do movimento

feminista se impusera o suficiente para no mínimo gerar

questionamentos das posições históricas de sindicatos e

movimentos sociais; assim como dos partidos.

Ao estabelecer estratégias de lutas designamos

grupos para a atuação segundo a lógica anterior, a da

centralidade da classe. Essa concepção define o que é

prioridade. Neste momento aquilo que é considerado

“geral” é priorizado, e o considerado “específico” fica

para um segundo plano, para um momento oportuno. O

nosso desafio é pensar de fato na história do nosso povo e

a partir disso estabelecer ação e compreender que classe,

raça e gênero se interprenetam.

E não há nada mais geral no Brasil que as

mulheres negras, maioria da população brasileira.

----

[1] Barbosa, Lícia Maria de Lima Feminismo

negro: notas sobre o debate norte-americano e Brasileiro.

Fazendo Gênero 9 Diásporas, Diversidades,

Deslocamentos 23 a 26 de agosto de 2010

[2] Carneiro, Sueli. “enegrecer o feminismo: a

situação da mulher negra na América Latina a partir de

uma perspectiva de gênero”in: Ashoka (org.). Racismos contemporâneos. Rio de janeiro, 2003. P.52

[3] Para alguns etnia ou questão étnico-racial.

Para Antonio Sergio Guimarães “raça não é apenas uma

categoria política necessária para organizar a resistência

ao racismo no Brasil, mas é também categoria analítica

indispensável: a única que revela que as discriminações e

desigualdades que a noção brasileira de “cor” em seja são

efetivamente raciais e não apenas de classe (Guimarães

1999)

O que chamamos de “raça” tem existência

nominal, efetiva e eficaz apenas no mundo social,

portanto, somente no mundo social pode terrealidade

plena.

“trata da forma como ações e políticas específicas

geram opressões que fluem ao longo de tais eixos,

constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do

desempoderamento” (Crenshaw, 2002, p.7)

“procura compreender de maneira não mecânica

as práticas sociais de homens e mulheres frente à divisão

social do trabalho em sua tripla dimensão: de classe, de

gênero e origem (Norte/Sul)”. (Kergoat, 2010 p.1)

------

[i] Historiadora, militante do movimento

feminista negro, integrante da tendência APS da Bahia e

da Comissão política Nacional de Mulheres do PSOL

[ii] Psicóloga, Doutoranda em Saúde Coletiva,

militante do movimento feminista negro, integrante da

Coordenação Nacional da tendência Enlace, da comissão

Política Nacional de Mulheres do PSOL e do Diretório

Nacional do PSOL

Caderno do ¹º Encontro Desgovernado de Formação Política e Militante

Fevereiro de 2015

6. O debate entre Anitta e Pitty e a liberdade sexual das mulheres no capitalismo

Por Odete Cristina

Sábado passado foi ao ar um debate entre as cantoras

Anitta e Pitty sobre a liberdade sexual das mulheres, antes

mesmo do programa ir ao ar já havia gerado polêmica. O debate

se iniciou pelo fato de que ambas discordaram sobre o avanço

nos direitos conquistados pelas mulheres. Anitta afirmou que as

mulheres estão quase iguais aos homens nesse quesito, o que

Pitty discordou, pois para ela ainda precisamos conquistar

muitas coisas. Depois avançou para um debate sobre o

comportamento das mulheres.

Em primeiro lugar é preciso refletir sobre o que são

esses direitos que Anitta aponta que a mulheres conquistaram no

marco da sociedade em que vivemos. Vivemos em uma

sociedade capitalista que usa da opressão de gênero e sexual para

explorar ainda mais. Com o ascenso do neoliberalismo houve um

processo maior de feminização do trabalho e também uma maior

concessão nos direitos democráticos, como por exemplo o

direito ao voto.

As mulheres burguesas conquistaram o direito de

trabalhar, mas as mulheres pobres historicamente sempre

trabalham. Não existe uma equiparidade salarial entre homens e

mulheres dentro da nossa sociedade, sendo que as mulheres

ganham até 30% menos que os homens, e quando são negras

esse percentual se reduz pra quase 50%. Essa famosa conquista

do direito ao trabalho é na verdade uma necessidade imposta

pelo sistema capitalista que precisava aumentar seu exército de

mão de obra. Além disso, os baixos salários pagos as mulheres

servem como justificativa para rebaixar o salário de toda a classe

trabalhadora.

Também é preciso refletir o que significa o direito ao

voto no marco da democracia burguesa que vivemos hoje. Onde

partidos pequenos e que representam os trabalhadores não

podem ter candidaturas, nem sequer se legalizar e o cenário

político é dominado pelos grandes partidos que servem aos

interesses da burguesia. Nem mesmo uma mulher no poder pode

garantir que as demandas das mulheres sejam atendidas. Para

garantir sua governabilidade Dilma faz acordos com as bancadas

religiosas e reacionárias do congresso e se cala sobre o direito ao

aborto, deixando que milhares de mulheres morram todos os

anos. Durante o seu governo houve um aumento na terceirização

do trabalho, que em sua maioria são mulheres que precisam

enfrentar uma dupla ou até tripla jornada de trabalho, pois o

trabalho doméstico ainda recai sobre os ombros das mulheres.

Os números de feminicídios e a violência contra a mulher ainda

são chocantes.

Ao contrário do que diz Anitta estamos longe de

alcançar os mesmos direitos que os homens. E apesar de Pitty

pontuar isso, ela não faz um questionamento mais profundo

sobre quem é o verdadeiro responsável pela repressão sexual

feminina, se limitando a dizer que os homens não devem opinar

sobre o que as mulheres fazem ou como se vestem. Contudo,

dentro de uma sociedade divida em classes sociais como a nossa

é muito difícil que todas as mulheres tenham os mesmos direitos.

Pois o capitalismo usa da opressão histórica das mulheres, aliada

a exploração e repressão dos nossos corpos para manter sua

dominação. Para manter a dominação de uma classe sobre a

outra.

Outro ponto polêmico foi quando Anitta afirmou que

mulheres precisam “se dar ao respeito”, o que Pitty logo se

posicionou contrária. Antes de cair em um debate moralista, o

que pareceu para mim a polêmica entre as duas, gostaria de

debater sobre como a repressão sexual, não só das mulheres mas

de todas as pessoas, está profundamente relacionada com a

sociedade em que vivemos e a dominação capitalista.

Para que o capitalismo triunfe é necessário que as

pessoas trabalhem oito, dez horas por dias em um ritmo

alienante e que não tenham o direito de exercer livremente sua

sexualidade ou desenvolver qualquer outra potencialidade. O

capitalismo se utiliza da repressão dos nossos desejos e do

controle dos nossos corpos para garantir sua dominação.

O machismo ainda está muito presente na sociedade e

isso parte da visão que vê a mulher como uma propriedade,

inicialmente do pai, depois do namorado ou marido. Uma

mulher que exerce plenamente sua sexualidade ou que veste-se

como quer, vai contra a noção de que a mulher é mais uma

propriedade do homem e contra o controle que o sistema possui

dos nossos corpos. Como afirmava Marx as ideias dominantes de

uma época são sempre as ideias dominantes da classe dominante

dessa época. Enxergar a mulher como uma propriedade e

reprimir nosso direito a plena liberdade sexual faz parte das

ideias dominantes da burguesia para garantir a sua dominação e

exploração sobre a maioria da população.

Por isso nossa luta pela liberdade sexual e combate ao

machismo deve ser entendida como uma luta maior contra todo

esse sistema de exploração e opressão que perpetua a repressão

aos nossos corpos e da nossa sexualidade. A nossa luta deve ser

parte de um novo projeto que revolucione não só os meios

materiais, mas também os meios culturais. Uma sociedade onde

todos possam exercer livremente sua sexualidade, livres de toda

opressão e exploração.