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ISSN: 1517-5081 Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria. v. 9, n.15, jan./jun., 2006, p. 1-240.

Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria. v. 9, n.15, jan ... · São Francisco, a partir do incremento e envolvimento de diversos ... da tortura que afetaram milhares de pessoas

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ISSN: 1517-5081

Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria. v. 9, n.15, jan./jun., 2006, p. 1-240.

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Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria / UniversidadeEstadual de Santa Cruz. - V.9, n.15 (jan/jun. 2006). -Ilhéus : Editus, 2006.240p.

Semestral

ISSN 15175081

1.Ciências sociais - Periódicos. I. Universidade Estadual de Santa Cruz.

CDD - 301

C122

Ficha catalográfica : Elisabete Passos dos Santos CRB5/533

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Jorge MorenoLaila Brichta

Maria Elizabete Souza CoutoMarisa Carneiro de O. F. Donatelli

Mônica de Moura Pires

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Roberto Romano da Silva (UNICAMP)

Sergio Adorno (USP)

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EditorPaulo Cesar Pontes Fraga

Secretário Executivo da RevistaGenebaldo Pinto Ribeiro

BolsistaCassandra Caneiro

Objetivo e política editorial

A revista Especiaria – Cadernos de Ciências Humanas está vol-tada para as grandes áreas de ciências humanas e sociais aplicadas,com periodicidade semestral. A revista é composta de quatro se-ções, a saber: artigos sobre o tema proposto para o dossiê; artigos;resenhas; e traduções. Poderão ser publicados artigos de colabora-dores nacionais e internacionais.

O envio espontâneo de qualquer colaboração implica automa-ticamente a cessão integral dos direitos autorais aos Cadernos deCiências Humanas. A revista não se obriga a devolver os originaisdas colaborações enviadas, mesmo quando não aprovadas pelo cor-po de pareceristas.

Cada autor receberá três exemplares da Revista pela cessão dosdireitos autorais.

A identificação do(s) autor(es) deverá ser feita em separado,com: nome do autor, titulação, endereço, telefone e e-mail e/ou faxdos autores, para encaminhamento de correspondência.

Editorial

Este número inaugura uma nova fase da Revista Especiaria-Cadernos de Ciências Humanas. Mudanças na sua estrutura e emseu formato tornaram-se necessárias no sentido de adequá-la amodelos mais consagrados de periódicos científicos. A partir destaedição, Especiaria-Cadernos de Ciências Humanas será compostade quatro partes: dossiê temático, traduções, artigos e resenhas. ODossiê conterá textos de tema determinado das áreas de ciênciashumanas e sociais aplicadas, definido pelo comitê científico da re-vista. Cada nova edição contará também com tradução de artigosimportantes sobre a temática abordada no dossiê, de matéria espe-cífica do campo das ciências humanas. A terceira partecorresponderá aos artigos sobre assuntos diversos enviados porcolaboradores e, por fim, recupera-se o espaço para resenhas delivros recentemente lançados no Brasil ou no exterior.

As inovações empreendidas não significam, entretanto, ruptu-ras, descontinuidades mas, sim, adaptações. Com isso, há o reco-nhecimento de a revista ter um lastro, construído com o trabalhoanteriormente desenvolvido pela professora Raimunda D’Alencarà frente da coordenação editorial, sem o qual não seria possívelalcançar esta nova etapa.

O dossiê que compõe este número tem como temática Violên-cia, Drogas e Sociedade. O tema, de atualidade incontroversa, re-quer um tratamento aprofundado. Até fins da década de 1980, aprodução científica das ciências sociais brasileiras sobre o tema daviolência era tímida e as pesquisas bastante incipientes. O desen-volvimento de um campo de debate sobre a violência foiconcomitantemente construído ao compasso do aumento das ta-xas de homicídios no país; da inversão epidemiológica, que retira amortalidade das causas externas do quarto lugar para a segundaposição nos principais motivos de óbitos; da crescente vitimização

de jovens e adolescentes; do incremento do tráfico de armas; damaior notificação de casos de violência doméstica, entre outrasmazelas.

A questão das drogas passa a ocupar, igualmente, espaço sig-nificativo na produção científica e como inquietação social, nãoapenas no Brasil, mas em todo o mundo. Há uma associação imedi-ata entre violência e drogas. É importante observar, contudo, queesta adjacente vinculação não é necessária ou igual em qualquercontexto social. Existem sociedades em que não há conexão diretae imediata entre a questão das drogas e a violência. Como observacom propriedade um importante estudioso da questão, o colombi-ano Rodrigo Umprimny, o narcotráfico não inventou a violência,mas se apropria das características injustas das sociedades ondeestão inseridas para se desenvolver. A questão das drogas e da vio-lência é, antes de tudo, uma questão política. Oculta à problemáti-ca do tráfico e do uso de substâncias psicoativas está a denomina-da política proibicionista fundamentada na total abstinência depessoas a qualquer droga, postura esta criticada em alguns dos ar-tigos que compõem o dossiê.

O artigo Sobre a violência e os jovens, de François Dubet, inter-preta a violência como prática e representação, não sendo, portan-to, um fenômeno objetivo e mensurável. O trabalho busca interpre-tar a relação contemporânea entre jovens e violência.

A professora Adriana Rossi, da Universidade de Rosário, tratade uma questão relevante para a discussão das políticas de drogasem seu artigo Ampliando o conceito de redução de danos? Uma visãodesde a América Latina. Propõe que o conceito de redução de danosnão se restrinja apenas aos usuários de substâncias psicoativas ile-gais, mas seja ampliado para outros atores situados nesta cadeiacomplexa que compõe o chamado tráfico de drogas.

Ricardo Vargas Meza, reconhecido sociólogo e especialista nosestudos sobre política de drogas na América Latina, versa sobre asestratégias contidas no denominado Plano Colômbia para redução

de plantios ilícitos de cocaína e seus nefastos efeitos sobre a popu-lação, a cultura e a política daquele país sulamericano.

O antropólogo e professor Rubén Dario Guevara Corral analisa,no artigo Popayán: cuna de hidalgos, asiento de desplazados, o impactosocial e territorial do deslocamento de populações das áreas rurais,onde há conflitos armados na Colômbia, para os centros urbanos.Focalizando a cidade de Popayán, o autor mostra a especificidadedessa cidade no contexto da guerra civil colombiana.

O artigo Plantios ilícitos no Brasil: notas sobre a violência e o culti-vo de cannabis no polígono da maconha, do professor Paulo Cesar Pon-tes Fraga, versa sobre o aumento da violência na região do SubmédioSão Francisco, a partir do incremento e envolvimento de diversosatores no plantio da maconha.

O texto do professor Antônio Rafael Barbosa, O baile e a prisão -onde se juntam as pontas dos segmentos locais que respondem pela dinâ-mica do tráfico de drogas no Rio de Janeiro, propõe-se a análise dasrelações e alianças estabelecidas entre os agrupamentos responsá-veis pelo negócio das drogas nos morros cariocas. Para o autor,compreender a dinâmica do tráfico requer esforço no reconheci-mento dos espaços de socialização que permitem sua organização.

André Moysés Gaio, professor da Universidade Federal de Juizde Fora, propõe, em seu artigo, O Estado delinqüente: uma nova mo-dalidade de crime?, uma abordagem do crime organizado em que osagentes públicos sejam privilegiados na análise. Considerando quea relação entre o crime organizado e a política ainda não recebeuuma atenção adequada pelos estudiosos brasileiros, considera queum dos motivos dessa falha é a ausência de informações segurasque garantam uma generalização.

Abrindo a sessão artigo, as psicólogas chilenas Cecília Rodrigueze Adriana Espinosa analisam, em seu texto, A memória enquistada:uma aproximação ao trauma transgeracional, como as terríveis marcasda tortura que afetaram milhares de pessoas durante a ditaduramilitar do general Augusto Pinochet acarretaram em trauma psí-

quico que, provavelmente, irá durar por gerações. Utilizando oconceito de memória enquistada, as autoras analisam dois casos dememória transgeracional.

O artigo O conceito de religião popular e as religiões afro-brasileiras:cultura, sincretismo, resistência e singularidade, de Alexandre MagnoTeixeira de Carvalho, utiliza o conceito de religião popular paraanalisar as vertentes do sincretismo das religiões afro-brasileirascomo processos de construção de sentido para o enfrentamento dasdifíceis condições de vida que caracterizaram a diáspora africana.

Finalizando a sessão, a cientista política Rosângela Schulz ava-lia, em seu texto, A crise de representação e o espaço da mídia na política,como a ingerência da mídia na política procura gerar uma opiniãopública voltada para os seus interesses. A autora busca analisar estainfluência no campo da representação, considerando três momen-tos desta relação em sua análise.

Esta edição de Especiaria- Cadernos de Ciências Humanas seencerra com a resenha de dois livros. A professora do Departamen-to de Educação da UESC, Rogéria Martins, analisa a livro Análise daviolência contra a criança e o adolescente, segundo o ciclo de vida, deHelena Oliveira da Silva, e Jailson de Souza e Paulo Cesar PontesFraga, o livro da colombiana Ardilla Contanza Galviz, La cosecha dela ira.

Dossiê: VIOLÊNCIA, DROGAS E SOCIEDADE

Sobre a violência e os jovensFrançois Dubet .................................................................. 11

Ampliando o conceito de redução de danos: umavisão desde a América LatinaAdriana Rossi .................................................................... 33

Drogas, conflito armado na Colômbia e segurança globalRicardo Vargas Meza ......................................................... 59

Popáyan: cuna de hidalgos, asiento de desplazadosRuben Darío Guevara Corral .............................................. 79

Plantios ilícitos no Brasil: notas sobre a violência e o cultivo decannabis no polígono da maconhaPaulo Cesar Pontes Fraga.................................................. 95

O baile e a prisão: onde se juntam as pontas dos segmentos locaisque respondem pela dinâmica do tráfico de drogas no Rio de JaneiroAntonio Rafael Barbosa ................................................... 119

O estado delinqüente: uma nova modalidade de crime?André Moysés Gaio .......................................................... 137

A memória enquistada: uma aproximação ao trauma transgeracionalCecilia Rodriguez e Adriana Espinoza .............................. 159

ARTIGOS

O conceito de religião popular e as religiões afro-brasileiras:cultura,sincretismo, resistência e singularidadeAlexandre Magno Teixeira de Carvalho ........................... 181

A crise de representação e o espaço da mídia na políticaRosângela Schulz ............................................................ 199

Sumário

RESENHAS

Violência contra crianças e adolescentes: uma análisedescritiva do fenômenoRogéria Martins ............................................................... 225

Os sentidos da violênciaPaulo Cesar Pontes Fraga................................................ 231

Sobre a violência e os jovens*

François DubetProfessor da Universidade de Bordeaux II.

Traduzido do original em francês por MarisaCarneiro de Oliveira Franco Donatelli

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Resumo. Este artigo tem com obje-tivo a sugestão da existência de qua-tro formas de violência observadasa partir dos processos sociais espe-cíficos e que se manifestam segundomodalidades particulares.

Palavras Chave: juventude, violên-cia e processos sociais.

Abstract. This article objective thesuggestion of the existence of fourobserved forms of violence from thespecific social processes and thatthey are disclosed according to par-ticular modalities.

Keywords: youth, violence and so-cial processes.

DUBET, François

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Uma vez que a violência é definida por sua representação, quenão é outra coisa senão aquilo que é vivido como uma violência emuma cultura, em um grupo e em um contexto de interação, ela nãopode ser reduzida a um fenômeno objetivo mensurável. Por essa ra-zão, optamos por enfocar antes pelas formas de violência associadasaos jovens do que por medir eventuais indicadores quantitativos. Oobjeto deste artigo volta-se para a sugestão da existência de quatroformas de violência observadas a partir dos processos sociais especí-ficos e que se manifestam segundo modalidades particulares.

A VIOLÊNCIA COMO REPRESENTAÇÃO

Se optamos por intitular este artigo “sobre” a violência, isso se dánão para que nos voltemos para o exercício clássico de “crítica daspré-noções”, tão comum à retórica sociológica. Trata-se mais de umadificuldade própria a esse objeto, pois a violência civil faz parte dessascondutas, das quais cada um de nós tem a experiência, e sobre cujadefinição quase não é possível um acordo, salvo em suas formas maisextremas. Além disso, a violência física, a mais estreitamente defini-da, explica quase sempre as outras violências, psicológicas, econômi-cas ou físicas, também. A violência está associada tanto às “paixões”como aos “interesses”, à identidade dos desejos que nos torna todosrivais e inimigos, e às diferenças que podem parecer insuperáveis.

Segundo a teoria de Hobbes, a própria sociedade tem por fina-lidade reduzir a violência, ao criar uma violência mais forte, porémlegítima: a da ordem e do Estado. Em uma perspectiva próxima,Freud nos informa que a violência está firmada no desejo e na for-mação normal da personalidade (FREUD, 1963). Enfim, a violênciaestá em toda parte, real ou potencial, legítima ou não, e é isso quetorna a definição banal ou arriscada: muito ampla, ela dissolve oobjeto, muito estreita, ela não passa de uma forma de estigmatizarcertas condutas de violência ilegítima.

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Essas cautelas parecem muito mais necessárias, uma vez que aviolência é multifacetada: ela pode ser individual, coletiva, organiza-da, imprevisível, instrumental, “irracional”, ritualizada. Isso sem men-cionar as “motivações” dos atores que podem fazer derivar a violên-cia de todos os sentimentos, de todos os interesses e da maioria dasideologias. Mesmo se aceitarmos a velha distinção entre violência eforça, isto é, da violência ilegítima e da violência legítima, o problemanão fica mais simples, e poderemos terminar por designar como vio-lentas as condutas que os atores sociais escolhem no momento em quesão confrontados com elas ou com suas representações.

Ao associar estreitamente a violência com sua representação,pensamos, particularmente, nas violências juvenis e mais aindanaquelas de gangues de jovens, que são, às vezes, construídas comoquase-espetáculos pelos próprios atores e pelos meios de comuni-cação. As reportagens voltadas para a violência das gangues, quecompõem, às vezes, a manchete dos jornais e pesquisas sociais dossemanários, são construídas como encenação1 . Pensemos, também,no cinema, notadamente o americano que elaborou uma verdadei-ra forma canônica de violência juvenil e provoca, como no caso deBoys in the Hood, movimentos de moda na expressão dessa vio-lência que ele, certamente, não produz, mas da qual participa. Esseelo entre violência e espetáculo apareceu de forma gritante por oca-sião das rebeliões de Los Angeles, em abril-maio de 1992. A violên-cia policial em relação a um motorista negro foi filmada como aabsolvição dos policiais, como a própria rebelião com os lincha-mentos, as pilhagens. Cada um foi diretamente tocado por essa vi-olência, e toda a sociedade, então, se apercebeu como violenta ouameaçada. Há um efeito “contagiante” da violência e de seu medo,afirma Girard (1972), e o sociólogo não pode agir como se a violên-cia fosse simplesmente um fato “objetivo”, como qualquer delin-qüência, não importa qual.

Escrever sobre a violência dos jovens, violência mal conhecidae mal mensurada, posto que o mais das vezes é discreta e ocorre no

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âmbito da privacidade, é participar diretamente do próprio fenô-meno e do medo que ele engendra mais moderadamente, sem dú-vida, do que fazem os jornais, mas de maneira tal que mantém omesmo fundamento.

Nada mostra melhor essa natureza da violência como “repre-sentação” do que o distanciamento entre a violência “real”, aquelaque se pode medir, e a violência sentida, experimentada. O estudode Chesnais (1981) é instrutivo nesse aspecto. Por mais que se pos-sa julgá-la pelos documentos históricos, a história recente foimarcada por uma diminuição sensível da violência civil: hoje, épossível atravessar uma cidade francesa sem armas e sem prote-ção, o que não era possível às vésperas da revolução. As pessoasnão estão mais aterrorizadas com a idéia de viajar e de tirar as pro-teções comunitárias. Mais próximo de nós, os conflitos sociais jánão são reprimidos por massacres, e pode-se admitir que, na Fran-ça, o linchamento e a vendetta tornaram-se práticas relativamenteraras...Isso não impede que uma parte da opinião pública tema,cada vez mais, parece, a violência, menos a violência real e “objeti-va” do que sua invasão e sua própria imagem como ruptura daligação social. Mais do que qualquer outra conduta, a violência nãopode ser separada de sua representação e de sua experiência subje-tiva, pelo fato de que tal ou tal ato é ou não vivido por aquele quecomete e por aquele que sofre, mais ou menos diretamente comouma violência. Por essa razão, mais do que nos esforçarmos emmedir um grau de violência e de fazer um levantamento metódicodas diversas manifestações, é preferível revelar as lógicas dessasviolências e de suas representações, quando elas enfocam os jovens.

VIOLÊNCIA E REGULAÇÃO SOCIAL

Se é admitido, como Hobbes, Freud, Durkheim, Girard e ou-tros, que a violência é uma conduta “natural”, isso ocorrerá apenas

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no sentido de uma agressividade necessária à sobrevivência e comouma resposta “normal”à agressão. Pode-se compreender por queas sociedades não se limitam a reprimí-la a fim de sobreviver, se-não para entrar na civilização. Elas a regulam e canalizam muitomais do que a interditam. Nesse sentido, há uma violência aceita e“normal”, não somente a violência legal do ano, da polícia e darepressão, mas também a violência “espontânea” que encontra ex-pressões possíveis.

Parece que as sociedades fortemente integradas sempre ofere-ceram aos jovens, sobretudo aos jovens homens, espaços de violên-cia tolerável. A violência tolerável dos jovens é, ao mesmo tempo,explicitamente condenada e implicitamente encorajada pelos adul-tos. Pode-se imaginar que essas violências participam de forma maisou menos “consciente” de ritos iniciáticos. Shorter nos dá váriosexemplos por meio da descrição de extravasamento às vezes mor-tais, das festas de carnaval ou de primavera nas sociedades nórdi-cas (SHORTER, 1977). A violência dos jovens e das gangues de jo-vens é antiga: ela faz parte dessas “novidades” que simbolizam adecadência dos tempos presentes descoberta em cada geração. Aviolência dos jovens está ligada àquela do “nível”. As brigas debaile no campo ou nas cidades operárias sempre foram objeto dascrônicas locais, dos ajustes de contas entre as gangues de “apaches”,no início do século, assim como as brigas de blusões negros dosanos sessenta participam, sem dúvida, de uma parte dessas violên-cias juvenis canalizadas. Evidentemente, essa violência está muitoestreitamente ligada a sua representação pelos grupos diversos quea vivem como mais ou menos violenta. Essa violência juvenil fezparte, durante muito tempo, das culturas populares “viris e du-ras”, cada vez menos toleradas, como o boxe que se torna intolerá-vel, bárbaro, violento, quando se difunde a cultura “soft” das clas-ses médias (RAUCH, 1992).

É difícil saber se os alunos do ensino profissionalizante são maisviolentos hoje do que ontem. Mas uma coisa é certa: essa violência

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operária na escola não é nova. Os meninos sempre brigaram no pá-tio de recreação do Colégio de ensino técnico ou do Centro de apren-dizagem (GRIGNON, 1970). Questão de “honra” ou, mais simples-mente, de interesse, essa violência era, o mais das vezes, ignorada etolerada pelos adultos. Ela possuía seus lugares e seus momentos nopátio da escola, e nenhum professor ou supervisor se permitiu inter-vir em um caso “privado”. Os ajustes de conta “na saída” faziammesmo parte tanto de uma tolerância quanto de uma obrigação dedignidade. Condenada no plano dos princípios, essa violência era,na verdade, autorizada, e, até mesmo encorajada como uma provajuvenil. Esse tema não se limita somente às culturas populares. Nocaso de uma cultura reputada como violenta, como aquela dos Esta-dos Unidos, um dos planos literários e cinematográficos mais famili-ares é o da briga entre garotos, na qual o mais fraco provará suacoragem, apesar de tudo, não será mais uma “menininha” e passarápara o lado dos homens e dos adultos, ao aceitar a violência.

Essa violência juvenil é tanto mais tolerada quando ela se dáem um grupo integrado, em uma “comunidade” suficientementesegura em partilhar as normas e os critérios de avaliação de condu-tas para não se sentir ameaçada por uma violência que, ela o sabe,permanecerá localizada e previsível. A integração do grupo autori-za uma injunção paradoxal pela qual os adultos reprovam e enco-rajam a violência. Os homens, sobretudo, fazem um teste do valore da coragem; eles a condenam, em princípio, e sustentam, de fato.No fundo, essa violência tolerada tem qualquer coisa a ver comesses esportes “violentos”, nos quais os “estrangeiros” vêem agres-são pura onde os “amantes” percebem provas e “ritos”. O rugby,do qual se conhece o enraizamento comunitário e rural, pode seruma ilustração quase exemplar das regras dessa violência tolera-da: a violência dos jogadores jamais chega aos espectadores e, de-pois da partida, ela se volta para a festa de integração na hora do“terceiro meio tempo”. Aqueles que não conhecem o “espírito dojogo”, evidentemente só vêem violência e hipocrisia.

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Pode-se, então, imaginar que quanto mais uma sociedade estáintegrada sobre um modo comunitário, mais ela abre espaço para aviolência tolerada, da mesma maneira que as escolas autoritáriaseram aquelas que autorizavam as brincadeiras mais violentas e maisdistantes de uma ação contestadora. Se esse raciocínio funcionalista,dos mais tradicionais, é aceito (a socialização de uma “necessida-de”, à maneira de Malinowski), resta que a violência atual dos jo-vens do subúrbio e das cidades pode ser tanto mais vivamente sen-tida e, portanto, mais violenta, quando ela ocorre em um tipo desociedade, no qual as regulações comunitárias se enfraqueceramconsideravelmente. Sem a conivência dos adultos, sem o acordosobre as normas que permitem que “é preciso que a juventude trans-corra”, as violências juvenis parecem se inscrever na cadeia de umaviolência geral.

Os grandes conjuntos localizados na periferia parecem ser pro-pícios para essa representação das condutas violentas juvenis. Sabe-se que os grandes conjuntos são caracterizados por suaheterogeneidade social e cultural. A relativa homogeneidade derenda dos habitantes é muito pouco associada àquela das culturas,dos modos de vida e das trajetórias. Uma classe operária tradicio-nal margeia as classes médias no começo de carreira: os jovensempregados, os empregados que se empenham em se “distinguir”de um ambiente popular, famílias imigradas, de “casos sociais”, depessoas idosas que precisam procurar outro lugar depois de teremsido despejadas... Ao longo dos anos, os operários mais qualifica-dos partem para as zonas residenciais no subúrbio, os empregadostambém, enquanto que as famílias imigradas são “lançadas” nogrande conjunto, onde ficam apenas aqueles que podem mais par-tir. Às vezes, os administradores se esforçam em criar uma relativahomogeneidade segundo as construções e as áreas comuns, masainda se constituem enclaves no meio do grande conjunto. O quequer que seja, e sem evocar as situações mais extremas, essaheterogeneidade enfraquece terrivelmente as regulações espontâ-

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neas que abrem os espaços de violência tolerada. As condutas dosjovens, e mesmo das crianças, que podem ser violentas, sem dúvi-da, a baderna, os xingamentos, as brigas são tomadas como perigo-sas e ameaçadoras, mais como violências do que como jogos. Nin-guém conhece suficientemente esses jovens para estar em condi-ções de interferir, ninguém conhece muito seus pais para prever asreações. Conseqüentemente, toda conduta mais ou menos violentae agressiva tem grandes chances de ser tomada como perigosa e deaumentar, assim, a violência, pois os atores não conseguem situá-lano meio das normas compartilhadas. A única maneira de construiressas normas é, então, à prova da confrontação e dos desafios coma vizinhança. Muitos dos extravasamentos que não se configura-ram como problemas para o “vilarejo” ou no antigo bairro pare-cem, hoje, violentos.

Essa interpretação da violência se aplica, particularmente, pa-rece, ao caso das jovens crianças que encarnam mais claramente,hoje, a “violência dos jovens”. Muitos testemunhos concordam arespeito daquilo que os jovens chamam “ralé”.

Enquanto a delinqüência dos jovens aparece como relativamen-te discreta para os moradores do bairro, a das crianças é cada vezmais designada como insuportável: insultos, degradações, roubos,barulhos... Tudo o que as crianças vivem como jogos, fora do con-trole dos adultos, é percebido como violência por estes últimos. Aregulação da rua, aquela das crianças fotografas por Doisneau, de-sapareceu, pois todas as crianças dos outros são “estrangeiras”, e aautonomia de seus jogos é uma ameaça. C. Petonnet mostrou mui-to bem como os moradores das antigas favelas interpretaram suatransferência para os grandes conjuntos mais confortáveis: comouma perda das solidariedades das vizinhanças, como a entrada emum mundo perigoso, onde a vigilância comum das crianças nãoera mais possível (PEDONNET, 1979).

As desordens da baderna, os desafios, as brigas, a indolênciados jovens que “giram” pela cidade são muito mais percebidas como

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violências à medida que os adultos não mais sentem ter a capacida-de de interferir e que os jovens, que quase não os conhecem, nãolhes concedem esse direito. A regra, também, é de evitar os conta-tos, pois praticamente não existe um modelo regulado de gestãodas tensões, como pode ser observado pela atualidade dos fatosdiversos, segundo os quais moradores exacerbados disparam a ca-rabina sobre os jovens da cidade.

É muito possível que a ausência de violência tolerada não pro-duza, necessariamente, maior violência, mas ela leva os atores ainterpretar tudo como violência, cada um sendo “o estrangeiro” dacompetição de rugby, evocada mais acima. Esse sentimento de vio-lência, perante as condutas que não têm mais o sentido tradicional,explica largamente o recurso crescente ao Estado e aos aparelhosespecializados para interferir lá onde a sociedade não parece maisestar em condições de agir. Assim se explicam, por exemplos, osfatos apontados pelos profissionais, educadores, policiais, anima-dores, quando eles observam que quase sempre o público, aí com-preendido os bairros “difíceis”, manifesta um medo que ultrapassalargamente a violência “real” ou, ainda, os incidentes da vida coti-diana que são interpretados como violências.

AS CRISES E OS TERRITÓRIOS

Não se pode permanecer nessa imagem de violência juvenilconhecida como um efeito de espelho, um efeito de intolerância emuma sociedade que teria visto enfraquecer suas regulações tradici-onais. Não é possível fazer como se essa ausência de regulação per-manecesse “exterior” às condutas juvenis, como se ela não tivessetransformado as lógicas pelo desenvolvimento de uma “anoma-lia”, liberando as “paixões”, assim como os “interesses”. No quediz respeito às paixões, a sociologia “clássica”, aquela de Durkheime da Escola de Chicago, trouxe à luz uma dupla relação entre a

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autonomia, de uma parte, a delinqüência e a violência, de outra.Para Durkheim, o enfraquecimento da interiorização das normasprovoca diretamente um excesso de desvio e de marginalidade. Paraos sociólogos da Escola de Chicago, a desorganização social acarre-ta reações espontâneas de formação de gangues de jovens.

As análises da delinqüência e da violência dos jovens, em ter-mos de crise de socialização, são tão banais que basta relembrarseus princípios. Durante a adolescência e a juventude, os atores sedeparam com problemas de identificação e de interiorização dasnormas, com um “desregramento” das condutas, uma incapacida-de de resistir aos desejos e às pressões. Esse estado de anomia libe-ra as “paixões”, e os jovens não conhecem mais ou mal conhecemos limites do que é permitido, interdito e tolerado. A violência juve-nil estaria no domínio dessa espécie de “selvageria”, de ausênciade controle de si, que nada mais é do que uma introjeção da criseda socialização.

Esse tipo de raciocínio reúne, largamente, a sociologia espon-tânea dos atores que interpretam a delinqüência e a violência dosjovens como um defeito da educação: eles são “mal” ou “não” edu-cados, eles não conhecem as regras, as famílias “renunciam”, a es-cola também... No caso dos jovens provenientes da imigração, essainterpretação é mais freqüente ainda, reforçada pelo tema da crisede identidade ligada à dupla vinculação dos atores. Preso entre duasculturas, os jovens terminariam por não se reconhecer em nenhu-ma das duas e por viver uma situação de dupla desvinculação.

Esses tipos de análise oferecem alguns elementos de semelhan-ça. É verdade que a violência deriva, às vezes, de uma ausência decontrole de si e que uma parte da delinqüência é completada sobreum modo lúdico e impulsivo sem que seu caráter propriamenteilegal seja percebido pelos atores. Quanto à dupla desvinculação,ela parece confirmada pelas pesquisas que indicam que os jovensdelinqüentes saídos da imigração são, em seu grupo, os mais forte-mente separados de suas culturas tradicionais, de tal forma que

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eles são fascinados pelas culturas da sociedade que os acolheu, semterem, para tanto, condições de interiorizar as normas e os valores(MALEWSKA-PEYRE, 1982).

No entanto, esse tipo de análise permanece frágil, uma vez queela evoca uma delinqüência, eventualmente uma violência impul-siva, “irracional”, resultante do simples encontro de desejos e frus-trações, os jovens não tendo mais a capacidade de se controlar. Pen-sa-se, então, em condutas “de caráter”, “patológicas”, “bárbaras”...A violência e a delinqüência não têm mais verdadeiro sentido forado fato que elas são expressão individual de uma patologia do sis-tema. Isso pode tornar esse gênero de explicação suspeito deetnocentrismo, sendo a irracionalidade a única maneira de qualifi-car condutas “estranhas”, porque estrangeiras. A análise, em ter-mos de desorganização social, é mais convincente. Apesar de par-tir da mesma idéia de crise e de ausência de integração, ela supõeque os atores, os jovens em particular, têm a capacidade de cons-truir outros modos de pertinência de outras identidades coletivasface ao mundo que se desorganiza e se desfaz (SHAW, 1940;THRASHER, 1963). Nessa perspectiva, as gangues de jovens sãouma reação “normal” à desorganização social. Elas reconstroemmicro-sociedades e microculturas, onde a “grande” sociedade nãoestá mais em condições de fazê-lo. Elas criam uma solidariedade eregras, onde a sociedade não é mais capaz de propô-las. Esse tipode bando, que os americanos chamam de gangues, não é, necessa-riamente, delinqüente e violento, ainda que a violência seja umacondição quase inevitável de sua existência e de sua sobrevivência.As identidades mobilizadas por essas gangues são, antes de tudo,“territoriais”. As gangues são fenômenos urbanos, pelos quais osjovens dos bairros desfavorecidos, periféricos, “intersticiais”, iden-tificando-se ao seu território, tornam-se os defensores “guerreiros”.A solidariedade da gangue supõe um estado de “guerra” mais oumenos inflamado com as outras gangues. As questões de honra, devingança de obrigação moral implicam uma certa violência e, mais

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ainda, uma encenação da violência potencial pelo espetáculo dobando que repousa sobre o desafio. Estamos lá na grande mitolo-gia das gangues, em que se misturam a realidade e a ficção, a notí-cia e o cinema, imagem sobre a qual se fixam os meios de comuni-cação e a opinião que “reconhecem”, em uma briga entre bandos,fenômenos já conhecidos, cada vez recolocados em uma filiaçãoincerta: os teddys boys, os roqueiros, os blusões negros, os mods, osskinheads, os hell angels, os zulus...

Os Estados Unidos são o país das gangues: primeiro, no cine-ma, em seguida, na vida urbana. A sociologia dos anos trinta des-creveu um fenômeno que se revelou relativamente estável nos meiospopulares e minoritários. Pesquisas indicam a existência de milha-res de gangues nos Estados Unidos. Cada uma dentre elas possuium território mais ou menos identificado a uma etnia, segundo otipo de bairro, cada uma possui líderes e um nome de família, di-versos graus de engajamento na delinqüência, muitas vezes armas,e todos os anos são computadas algumas centenas de mortos e deferidos nos confrontos entre as gangues, para os quais os mais jo-vens são chamados a participar pela honra dos antigos.

Como ocorre esse tipo de gangue e de violência, na França?Pode-se afirmar que estamos muito longe da situação americana eque nem o número, nem a violência, nem a estruturação dos ban-dos são comparáveis. Muitas vezes, mesmo, as gangues têm o efei-to de miragens que se dissolvem quando nos aproximamos. Agangue é uma forma de se representar o outro, o grupo de jovensde outra cidade, de outro povoado, de outra comunidade, pois nãobasta, evidentemente, que um grupo de jovens exista, se reúna emum imóvel, para formar essa gangue, essa “Street corner society” dasociologia e da sociedade americanas” (WHYTE, 1943). Os noticiá-rios, como aqueles do verão de 1990, que mostraram algumas bri-gas entre bandos de “Blacks”, ou a epopéia de “Requins Vicieux”nãobastam para sustentar a imagem de uma França de gangues.

Parece verdadeiro, no entanto, que se observa um deslize para

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uma situação “à americana”, principalmente pela formação de ló-gicas “territoriais” e mais ou menos “étnicas”, segundo a composi-ção dos bairros e das cidades. Quando os jovens não podem maiscontar com as identificações de classe, como nos anos sessenta, comos blusões negros, ou com as identificações escolares e profissio-nais, eles mobilizam a única vinculação de que dispõem: a do bair-ro, eventualmente a da “raça”. Esse deslize é do tipo “americano”sem criar uma violência da mesma ordem, mas constrói seu espec-tro, como o indicam, esporadicamente, os títulos das revistas.

VIOLÊNCIA E MERCADOS DELINQÜENTES

A anomia e a desorganização social não liberam somente pai-xões; elas liberam também os interesses sob a forma de um “capita-lismo selvagem” e delinqüente, envolvendo uma violência instru-mental, interessada e também expressiva. Merton (1965) colocouem evidência essa dimensão da anomia ou da concepção que setem dela. A fragilidade das normas e do controle social não impe-de, de forma nenhuma, a força das aspirações aos modelos confor-mistas de sucesso. Apesar do que se chama de crise, o desemprego,a marginalização, os jovens dos subúrbios populares vivem em umasociedade de massa, na qual os modelos de realização das classesmédias se impõem, na maior parte. Ora, estes jovens sentem-se ex-cluídos de mil formas: pelo fracasso escolar, pela ausência de em-prego; a má fama das cidades; pelo racismo, enquanto que os mo-delos do consumo e de sucesso são veiculados na publicidade, nosupermercado e na televisão. A delinqüência aparece como umaforma de reduzir essa tensão.

A cidade e o grupo de jovens constituem também fontes eco-nômicas através de uma economia desviada construída sobre o rou-bo, os tráficos diversos, principalmente aqueles da droga. Pareceque os benefícios ligados a essas atividades são, com freqüência,

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suficientemente elevados para permitir uma certa participação so-cial através da “fachada”, um suporte não negligenciável para afamília e, sobretudo, para tornar bem pouco sedutores os estágiose as formações desvalorizadas oferecidas pelos serviços sociais. Aviolência ligada a esse tipo de atividade visa, mais freqüentemente,os bens do que as pessoas, apesar da extensão da “espoliação”.Contudo, os furtos, os roubos e as degradações são vividos comoviolências, como agressões, e as vítimas não se sentem consoladaspelo fato de se tratar, nas categorias estatísticas, apenas de “peque-na” delinqüência. Um dos paradoxos dessa delinqüência instru-mental é o fato de ser relativamente discreta, pensada e de evitar aviolência mais espetacular. As agressões contra as pessoas são, vi-sivelmente, minoritárias na ordem dos delitos. Vimos o caso de umbairro onde os jovens adultos delinqüentes, vinculados por múlti-plos “conchavos” e numerosos tráficos, não são tidos pelos habi-tantes como violentos e perigosos em razão da discrição de suasatividades, embora as crianças, barulhentas, “mal educadas”, gros-seiras, ladras e vândalos, aparecem como verdadeiros provocado-res de problemas e de violências, ainda que a maior parte de seus“crimes” se aproximem mais do “roubo de cerejas” do que da de-linqüência.

Enfim, se o mercado selvagem provoca a violência, trata-se maisde uma violência voltada para os membros do mercado delinqüen-te. Essa violência é discreta, interna ao grupo e relativamente pou-co percebida pelo público.

A VIOLÊNCIA “RAIVOSA”

Em um livro publicado em 1955, A. K. Cohen se perguntavaporque os jovens delinqüentes eram quase sempre “cruéis”. Namesma época, um filme que se tornou célebre – Grão de violência –colocou a mesma questão. De fato, nem a crise da socialização, nem

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a comunidade das gangues, nem o interesse delinqüente são sufici-entes para explicar a violência juvenil, naquilo que ela pode ter deexcessivo, de “cruel” no vandalismo, na agressão “sem objeto”, noinsulto. Essa crueldade não resulta de um mecanismo de resposta àagressão, ela aprece como “gratuita”, nos moldes dos heróis deLaranja Mecânica.

A. K. Cohen explica essa violência como uma estratégia defen-siva perante um conformismo frustrado. As normas dominantes,revezadas pela escola e, muitas vezes, pelas mulheres, nos meiospopulares, exigem disciplina, limpeza, polidez, trabalho e sucesso.Nesses registros, esses jovens serão sempre perdedores e, realmen-te, nunca chegarão a estar em conformidade como modelo do bommenino, tanto mais que os aparelhos educativos os estigmatizam eesperam que eles, de fato, não se enquadrem. Então, no momentoem que eles compreendem que a conformidade, na realidade, lhesé interdita, esses jovens “optam” por recusar as normas e os atoresque as encarnam. Eles optam por degradar a escola, serem violen-tos e mal “criados”, com o objetivo de escapar do movimento damá consciência que os obrigaria a se perceberem como culpados ecomo incapazes. A crueldade aparece, assim, como uma condutade dignidade e de negação da frustração. Quanto mais as normasdo sucesso e da conformidade das classes médias se impõem aosjovens das classes populares e das minorias que não poderão seconformar a elas, mais se desenvolve a agressividade, etapa preli-minar da violência, pode-se dizer. A agressão cruel e o insulto ante-cipam o fracasso e o desprezo. Eles permitem viver um fracassosocial como um ato voluntário, até mesmo heróico.

Essa interpretação da violência e da crueldade pode, facilmen-te, se inscrever nas teorias do estigma. Quando um grupo é estig-matizado, uma das maneiras de escapar da rotulação consiste emreivindicar para si o estigma negativo, em exacerbá-lo a fim de voltá-lo contra aqueles que estigmatizam. Franz Fanon e Jean Genet des-creveram longamente esse mecanismo “perverso” engendrado pela

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estigmatização e pelo racismo. O grupo e o indivíduo desprezadosse comportam conforme aquilo que é esperado pelo estereótiponegativo, mas eles “remetem” a isso. Se “as pessoas” esperam queos jovens negros ou os jovens magrebinos sejam ladrões e violen-tos, uma das maneiras de controlar o estigma é, então, escolhercom excesso o roubo e a violência. Essas condutas têm, também, asfunções normativas de “neutralização”, pois, desde que o outro éconsiderado como um inimigo, ele não observa mais as normas damoral comum. Assim, o racismo origina a violência do lado dosracistas, com certeza, mas também do lado de algumas de suas ví-timas, posto que a violência se encontra justificada pela injustiçada qual elas são objeto. Trata-se, então, de um círculo vicioso deviolências, de desprezo e de má fé que se reforçam sem cessar econfirmam os estereótipos que o fundam.

Parece que esse tipo de violência cruel se desenvolve quando asituação de dominação não autoriza a criação de um conflito e deuma constatação. Com efeito, havíamos observado que onde existeuma forte consciência de classe operária, os jovens que estavam emsituação de dominação, não adotavam esse tipo de conduta (DUBET,1987). A consciência de classe permite, inicialmente, resistir ao es-tigma social. Ela confere uma dignidade, que dá aos atores a capa-cidade de não se deixar definir pela imagem negativa que lhes éimposta. Retomando a expressão de Sartre, eles não se deixam re-duzir ao olhar do outro. Além disso, a consciência de classe dá umsentido à situação suportada: sendo nomeada e designada a domi-nação social, o conflito social torna-se possível, ao se inscrever naimagem geral de uma sociedade. Enfim, a ação coletiva aparececomo possível pelo viés das organizações, sindicatos e partidos,que podem mobilizar a indignação e dar esperanças.

À medida que saímos da sociedade industrial, que os subúrbi-os industriais são substituídos pelos grandes conjuntos heterogê-neos dos subúrbios, a consciência da classe operária se esgota. Emseu lugar, forma-se uma revolta sem objeto, uma violência, que os

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jovens chamam, muito adequadamente, a “raiva”, o “ódio”. Essasfórmulas banais, como “eu tenho raiva”, “eu tenho ódio”, devemser levadas a sério. Elas significam que os sentimentos de domina-ção e de exclusão não dispõem de canais ideológicos e de meiosinstitucionais que lhes dêem forma. Restam as emoções, as disposi-ções à violência sem objeto, sem adversário estável e previsível;uma violência vivida como uma passagem ao ato e não como umaobrigação e uma tradição.

É essa natureza de violência, de raiva e de ódio, que comandaa rebelião. Isso na França como em outro lugar, pois os mecanis-mos de rebelião apresentam grandes similaridades. Em todos oscasos, a rebelião aparece ao final de uma série de violências polici-ais, de abusos e de negação de justiças. Ela aparece, também, nosbairros ou em situações nas quais as relações entre os jovens e ospoliciais ou guardas não são intermediadas por nada. A violênciada rebelião responde a uma outra violência que lhe permite passarao ato. Mas a rebelião não é um movimento social, ela é, justamen-te, o contrário. Ela é autodestrutiva, sua fúria volta-se contra o pró-prio bairro e não tem nada a negociar. Ela decai tão rapidamentequanto explode, de forma imprevisível. A violência da rebelião cer-tamente pode ser instrumentalizada depois do surgimento. Depoisdo choque, ela é considerada como o único recurso do qual dis-põem os protagonistas excluídos e marginalizados; os eleitos e ospoderes públicos procuram interlocutores no bairro, e uma partedos jovens adquire uma relativa capacidade de negociação. Masesse resultado da rebelião não está inscrito em seu processo dedesencadeamento. Ao contrário, a rebelião mistura todas as vio-lências: a violência lúdica dos menores, a defesa de um territóriocontra os outros, a violência delinqüente das pilhagens e dos rou-bos, a violência da raiva.

Se quisermos definir, verdadeiramente, um novo caráter daviolência juvenil na França contemporânea, devemos situá-la dolado dessa “raiva”. Vivemos uma longa institucionalização dos con-

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flitos sociais, um longo processo de integração conflituosa pelomovimento operário. Esse mecanismo se interrompeu, deixandoos protagonistas mais pobres, sem significações e sem recursos.Então, reaparece entre os jovens uma antiga violência: aquela dasclasses perigosas.

A VIOLÊNCIA NA ESCOLA

Distinguimos quatro formas de violência e de representação: aviolência juvenil privada de espaço de regulação, a violência dos ter-ritórios, a violência do mercado e a violência da raiva. Como essasviolências entram na escola? Parece que o essencial da violência es-colar dos adolescentes, isto é, aquela que é vivida como tal pelosprofessores, depende da primeira natureza da violência. Dois gran-des fenômenos marcaram a história recente do sistema educacional.

O primeiro é a massificação da qual é preciso avaliar um deseus efeitos: na escola acolhe jovens que ela abandonou no começoda adolescência há poucos anos, ainda. Muitas vezes os professo-res dizem que os alunos tornaram-se mais duros e mais violentos.Eles esquecem que, na maior parte do tempo não são mais os mes-mos alunos de antigamente, os irmãos mais velhos e os pais dessesalunos que deixaram a escola há quatorze ou quinze anos. Os LEP(Liceus de Ensino Profissionalizante) recebiam a futura aristocra-cia operária, os outros iam para a aprendizagem ou para a vidaativa. Os liceus e os colégios recebem, hoje, as crianças de imigran-tes durante longos anos, enquanto que essas gerações foramescolarizadas de forma fraca até o início dos anos setenta. Parafalar mais claramente, os colégios, os LEP e os liceus não eliminammais os alunos que têm mais chance de pertencer às categorias so-ciais nas quais a violência juvenil é a mais familiar.

A segunda transformação do sistema de ensino secundário ésua adesão à cultura juvenil das classes médias e o abandono de

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um sistema disciplinar de separação destacada entre o mundo es-colar e o mundo “civil”. Mais separação entre os sexos, mais jale-cos, mais vigilância, mais supervisores, mais bedéis... Antes de con-tinuar nesse caminho, afirmamos, imediatamente, que essa evolu-ção é, no mínimo, um sucesso, pois a grande maioria dos estabele-cimentos secundários não tem sistema disciplinar e não encontraproblemas de disciplina e de violência. Mas isso supõe que os alu-nos aceitam as normas “cool” da recusa da violência, que eles esco-lhem, em caso de conflitos, antes a retirada do que o confronto, eque eles se sentem, de preferência, ganhadores ao longo de seusestudos. Enfim, é melhor que eles sejam alunos médios pertencen-tes às classes médias.

Mas, assim que o novo público encontra esse sistema escolar,encontra-se em uma situação de desregulação da violência, pois osistema escolar não é suficientemente integrado para oferecer umespaço tolerado para a violência juvenil “normal”, nas categoriassociais dos recém-chegados. Ela torna-se, então, intolerável, princi-palmente pelos professores, em geral provenientes das classes mé-dias e que não suportam a violência, não sem boas razões.

Entretanto, essa violência é, essencialmente, uma violência en-tre alunos. Muito mais escandalosa aparece aquela que se volta paraos adultos: insultos, agressões, depredação de carros e delocais....Centenas de queixas foram registradas este ano contra seusalunos por professores que não distinguem mais, com razão, asmanifestações da algazarra tradicional. Parece que esse tipo de vi-olência se aproxima mais da rebelião e da raiva, e reenvia para aanálise sugerida mais acima. Se isso fosse verdadeiro, talvez não sedeva orientar em direção a um suplemento de controle e de disci-plina, diferente da primeira figura da violência, mas em direção aum tratamento mais “político” do problema. Com efeito, está emquestão um tipo de relação social e de construção do fracasso esco-lar, ao qual os alunos podem “escolher” responder de certa manei-ra. Ora, tanto a primeira forma de violência pode se fazer notar a

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partir de um problema de regulação e de controle escolar (ela pare-ce ser própria dos alunos mais jovens e dos colégios), como a se-gunda não pode ser estritamente escolar: a escola está, simples-mente, em primeira linha. Sugerimos distinguir duas lógicas daviolência na escola: aquela das classes populares que contrastamnum mundo de classes médias e numa escola que não é uma insti-tuição e aquela da raiva que deriva de um conflito impossível e deum sentimento constante de fracasso e de humilhação. Se essa dis-tinção é verossímil, ela exige respostas sensivelmente diferentes,até mesmo opostas em seus princípios. A primeira insistirá sobre aconstrução de uma ordem capaz de limitar o espaço da violência ede tolerar algumas expressões, enquanto a segunda deverá, ao con-trário, criar o campo de um conflito e de um debate em torno dealgumas práticas escolares.

A violência é múltipla. Ela não está reduzida à unidade deum princípio moral para melhor ser condenada. No entanto, não écerto que essa redução seja, a melhor forma de combater a violên-cia. O enfraquecimento das regulações comunitárias e o domínioda cultura das classes médias nos conduzem a não mais suportar oque a violência juvenil possa ter de “normal” e, por isso, não sabermais responder a ela. No outro extremo das formas de violência, acondenação da violência como categoria moral geral impede a des-coberta das modalidades de resistência e de conflito, pois a violên-cia da raiva corresponde, ainda, à mais forte das violências.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS* Este texto foi publicado originalmente na revista Culture & Conflits: sociologie politique de

I'international nº6 (1992) p.7-24.1 Um número de l’Evénement de quinta-feira (maio, 1992) consagrado à violência dos ban-

dos é, nesse aspecto, exemplar: fotos, investigações “experimentadas” encenação da violên-cia pelos próprios jovens, sem contar a denúncia do papel da imprensa pelo próprio sema-nário, que se protege, assim, do estereótipo que ele produz..

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Ampliando o conceito de redução do dano?Uma visão desde a América Latina

Adriana Rossi

Professora da Universidade Nacional de Rosario, UNR, e do mestrado emUso indevido de drogas da Faculdade de Psicologia da Universidade de

Buenos Aires, Argentina

Versão para o português: Sócrates J. Moquete-Guzmán

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Resumo. O artigo se propõe a dis-cutir a políticas de drogasimplementadas em vários países eem particular na América Latina.Privilegiando a análise dos progra-mas de redução de danos como ex-periências positivas na abordagemda questão da drogas, a autora pro-põe a ampliação das ações no senti-do de não acusar criminalmentedeterminados atores localizados naampla rede do narcotráfico.

Palavras Chave: redução de danos,política de drogas e narcotráfico.

Abstract. The article analysis thedrugs’ policy implemented in theworld, principally in Latin America.Privileging the analysis of thereduccion risks’ program as positiveexperiences in the boarding of thequestion of the drugs, the authorconsiders the magnifying of theprograms in the direction of not toaccuse criminally some actorslocated in the ample net of the drugtrafficking.

Keywords: reduction of risks ,politics of drugs and drug trafficking

ROSSI, Adriana

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A ampliação do mercado da droga que se reativou a partir dasegunda pós-guerra, incentivou o desenho de políticas de inter-venção que fossem variando através das décadas e que de certaforma refletem as preocupações governamentais e da sociedadeperante esse fenômeno. As análises que foram se desenvolvendoremeteram a duas vertentes da problemática, o consumo por umlado e o denominado narcotráfico1 pelo outro, ou, em termoseconomicistas, a demanda e a oferta.

Esse desdobramento da temática tem, em parte, sua razão deser por ter se manifestado, em seus princípios, em espaços suma-mente diferenciados, não somente de um ponto de vista geográfico– nos países centrais o consumo e nos países periféricos a produçãoe o tráfico, – mas, desde uma perspectiva econômica e cultural. Asrelações entre ambos os espaços estão marcadas por uma assimetriacujo peso se faz sentir na hora de abordar a temática e tomar asdecisões políticas correspondentes. Essa situação levou de fato aodesenvolvimento de duas lógicas políticas diferenciadas e a umavisão setorializada do fenômeno, apesar de suas numerosas vari-antes e aspectos estarem inter-relacionados.

As políticas que foram sendo implementadas para enfrentar oconsumo, a produção e a comercialização das drogas, junto à atuallavagem dos lucros dos narcotraficantes, tiveram como ponto departida a repressão. Porém, em alguns países, sobretudo europeus,abriu-se uma brecha que permitiu engendrar possíveis alternati-vas a uma legislação de tipo repressiva, no campo do consumo.Essa mudança de tendência foi causada, basicamente, por duasconstatações: a dificuldade de alcançar o objetivo de eliminar oureduzir drasticamente o uso de substâncias psicoativas mediante apenalização dos usuários de drogas e os numerosos riscos e peri-gos colaterais para o indivíduo e a sociedade que derivam da apli-cação de uma estratégia punitiva e, portanto, criminalizante. Emmédio às dificuldades, fracassos e acertos, foi se abrindo passo àpolítica de “Redução de Danos” em suas diferentes variantes2 .

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A REDUÇÃO DE DANOS

Baseada numa visão tolerante de resguardo e proteção da SaúdePública, a Redução de Danos, em suas múltiplas acepções, baseia-senum enfoque que não é exclusivamente médico –embora em muitospaíses a sua adoção fosse determinada pela necessidade de combatero avanço da epidemia de HIV-AIDS, relacionada com o uso de drogasinjetáveis, senão incluir outros tipos de olhar (NEWCOMB, 2003).

De fato, o consumo de drogas afeta diferentes níveis: o indivi-dual, o comunitário, o social e o econômico. No nível individualestá em jogo a saúde mental e psíquica do consumidor, que termi-na por influir em todos seus aspectos no microcosmo social consti-tuído pelo âmbito familiar, o círculo de amizades e de trabalho, acomunidade, afetando os vínculos comunitários para depois esten-der-se como fenômeno, em sua globalidade, à sociedade em seuconjunto. Esta deve enfrentar os custos dos problemas relaciona-dos ao uso de drogas em condições de clandestinidade ou *semi-clandestinidade determinadas estas por legislações punitivas e con-denação social, tais como a violência, a insegurança, o progressivoisolamento e marginalização dos indivíduos e grupos sociais iden-tificados de alguma forma com as substâncias psicoativas. Esta si-tuação de puramente social vai derivando numa problemática detipo político, entrelaçada e complexificada pelo crescente conluioimaginário ou real, dependendo dos países, com os fenômenosdelitivos em aumento, que tornam as sociedades menos tolerantese mais predispostas à aplicação de medidas restritivas e punitivas.Aos custos sociais e políticos há que somar aqueles em termos eco-nômico-financeiros de uma maquinaria judicial e penitenciária quese ocupa dos crimes relacionados com as drogas, sem deixar delado os danos causados pelos delitos contra o patrimônio associa-dos a seu uso. Estas problemáticas se expressam em toda sua gra-vidade na falta de um marco de contenção e de estratégias de inter-venção que não sejam a pura repressão.

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A política de Redução de Danos é erigida como alternativa ba-seada numa cultura mais humanitária que não aponta para a eli-minação do consumo pela forçada abstinência, senão para a limita-ção de sua difusão e de sua incidência nos âmbitos considerados.Suas estratégias, portanto, se contrapõem às legislações punitivase ao “paternalismo” médico e religioso.

Esta política, muito criticada por setores radicalizados quepropugnam uma sociedade livre de drogas a qualquer preço, erige-seem alternativa à repressão do consumo em função de evitar, ademais,a criminalização a que se encontra sujeito o usuário de substânciaspsicoativas3 e a cercania e contato com o submundo do crime.

No entanto, essa declaração de tolerância não se estendeu aoresto do circuito da droga, para o qual se fomenta e pretensamentese aplica o que, ao final dos anos 90, foi chamado de “tolerância zero”,propugnada especialmente pelos Estados Unidos. Enquanto nos 80se concebia a Redução de Danos e começavam as primeiras experi-mentações na Europa, a administração do presidente Reagan reafir-mava sua vontade de lutar contra o “flagelo da humanidade”, medi-ante a “guerra contra as drogas”, declarada por seu antecessor, opresidente Nixon, nos anos 70. Nesse período, nos Estados Unidos adroga já não era considerada somente um problema sanitário indivi-dual, e dada a magnitude, coletivo, teria-se convertido, no discursooficial, numa ameaça à segurança interna, que depois derivará noque é, atualmente, uma problemática de segurança nacional que su-pera os limites do propriamente policial4 .

A TOLERÂNCIA ZERO

Hoje em dia a postura dos países centrais ante a problemáticada produção e do tráfico se mantém rígida, ainda que à hora deimplementar estratégias e medidas coercivas em seus próprios ter-ritórios, estas não se aplicam à determinação que caberia esperar.

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Os exemplos não faltam no referente à lavagem de dinheiro sujoque envolve diretamente os setores das finanças mundiais dos pa-íses centrais e não somente dos paraísos fiscais ou da periferia; ouas decisões de intervir nas estruturas criminosas locais, ativas emseus próprios territórios, envolvidas em atividades narcotraficantessumamente lucrativas.

Se esta postura é denunciada com freqüência, o que até o mo-mento não se ressaltou suficientemente é que muitos países e seto-res sensibilizados com o consumo e propensos a encontrar cami-nhos diferentes dos da repressão, apóiam direta ou indiretamenteuma política internacional altamente coerciva, liderada pelos Esta-dos Unidos numa visão dicotômica da realidade e com atribuiçõesincoerentes de responsabilidades sobre as causas do fenômeno. Estapolítica encontra sua expressão nas Convenções Internacionais e sereafirma ano a ano em Viena e durante as sessões de avaliação dasNações Unidas sobre a aplicação desta política. Seu peso recai comforça sobre os países periféricos que pela desigualdade nas rela-ções internacionais, pela incapacidade de elaborar propostas pró-prias ou mancomunadas e por interesses não propriamente santos,terminam aderindo e aceitando.

Tudo isto não significa que também na vertente da produção5

não se tenham transitado caminhos diferentes aos puramente re-pressivos.

O DESENVOLVIMENTO ALTERNATIVO

Na América Latina, questões culturais e de pobreza foram re-conhecidas como fatores que impulsionam massas camponesas adedicar-se aos cultivos ilícitos. A partir destas considerações foramsendo elaborados alternativas para eliminá-los. Da erradicação for-çada de cultivos passou à erradicação por compensação, para de-pois chegar à substituição de cultivos emoldurada no chamado

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desenvolvimento alternativo impulsionado a nível internacional porJaime Paz Zamora, presidente da Bolívia, nos começos dos anos 90,ainda que sua gestação fosse anterior. Conquanto se pode conside-rar como a cara não repressiva dos programas de eliminação decultivos, o desenvolvimento alternativo foi implementado medi-ante medidas coercitivas que causaram gravíssimos problemas aointerior da trama social das comunidades e das regiões6 .

Tratava-se de substituir uma atividade internacionalmentecondenada, com atividades lícitas, como os cultivos de café, deabacaxi, produção de produtos lácteos etc. Chegou-se a fazer pro-jetos que previam obras de infra-estrutura, assistência técnica,créditos rotativos e onde se considerava também o desenvolvi-mento da comunidade em seu conjunto, com componentes de saú-de, educação, capacitação, promoção da mulher. Tudo em trocada erradicação dos cultivos ilícitos que naqueles anos eram majo-ritariamente de coca7 .

Investiram-se milhões e se cometeram erros enormes. Os pro-jetos foram pensados de cima, sem nenhuma ou escassa participa-ção camponesa. Tecnicamente perfeitos no papel, mostraram serinadequados à realidade à que se queria aplicar. Não se considera-ram variáveis culturais, dinâmicas sociais e políticas. E não se con-siderou a lógica de um mercado que, pelas leis neoliberais atual-mente vigentes, resulta impermeável à colocação de mercadoriaproveniente de micro-produtores8. Na maioria dos casos, os pro-gramas foram um rotundo fracasso ou um monumento à inutili-dade9.

Alguns desses projetos deixaram comunidades divididas, cam-poneses endividados10 , e sobretudo provocaram uma generaliza-da e profunda desconfiança e a sensação de que as medidas alter-nativas eram tão só uma forma para manter a burocracia nacionale internacional.

Essa política cujos objetivos foram malogrados, poderia, quiçá,ter alguma validez na medida em que se resolvessem temas estrutu-

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rais referente às tomadas de decisões de parte dos beneficiários, suareal participação, a localização de mercados, entre eles os solidários,e, portanto, de produtos que tenham saída, considerando também adinâmica específica que faz dos mercados, mercados excludentes,dominados por grandes grupos empresariais.

A implementação do desenvolvimento alternativo, que depoisse converteu em planos regionais de desenvolvimento, para conse-guir não somente produtos alternativos senão uma economia quesubstitua a economia da coca e da papoula11 , não significou o aban-dono de políticas repressivas. Estas se mantiveram e ante a supostaimpossibilidade de alternativas viáveis, que, aliás, dada a extensãodo fenômeno dos cultivos e a numerosa população envolvida pre-cisa de investimentos de grande magnitude, têm aberto o caminhoque leva a seu endurecimento.

REPRESSÃO FOR EXPORT

Se se manteve o objetivo principal, uma sociedade livre de dro-gas, os objetivos operativos, no entanto, sofreram um perigoso des-locamento ante a impossibilidade de consegui-lo. Num reconheci-mento implícito do fracasso de uma política doméstica de conten-ção, nos Estados Unidos o atendimento dirigiu-se para a oferta desubstâncias psicoativas fora das fronteiras. A repressão se instaloulonge do solo pátrio, para o centro e o sul do continente, em palcosdesestruturados, ou em fase de desestruturação, por dinâmicas in-ternas determinadas pelo aumento das desigualdades, damarginação e da exclusão que derivam de conflitos sociais e políti-cos, e pelos confrontos armados.

Este deslocamento foi possível, ante a opinião pública nacio-nal e internacional, graças à meticulosa construção da figura deum inimigo, o narcotráfico. Inimigo externo com capacidade dedesestabilizar a sociedade norte-americana e corroer seus pilares, o

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narcotráfico se transformou numa questão de segurança nacional,o que permitiu encarar a luta contra as drogas em termos militares,em palcos longínquos.

O principal objetivo operacional foi a destruição do circuitodas drogas em sua origem, atacando o complexo produtivo, desdeos cultivos ilícitos até os laboratórios numa tentativa de desarticu-lar as estruturas delinqüenciais que se tinham estruturado ao re-dor do negócio. No entanto, todas as modalidades repressivas, emsuas variantes, não somente não conseguiram em algum momentomelhorar minimamente a situação em função do objetivo princi-pal, e ainda converteram num estimulador de situações maisconflitantes ainda.

A EMIGRAÇÃO PARA A ILEGALIDADE

A mais estrita ilegalidade decretada às drogas e às atividadescom elas relacionadas como base para seu controle tinha, na mentedos elaboradores da política sobre estupefacientes, a finalidade dedesalentar não somente o consumo, senão sobretudo a produção eo tráfico. Esta ilegalidade, decretada de acordo com critérios depericulosidade das substâncias psicoativas mediante parâmetrosaltamente duvidosos, do ponto de vista científico, converteu-se emelemento essencial para uma política de criminalização progressi-va que inclui, não somente os grandes responsáveis pelo tráfico dedrogas, mas setores populacionais que constituem os elos mais fra-cos do circuito e que, portanto, são os mais vulneráveis. Eles são amão-de-obra barata do narcotráfico, a base social de um negóciomultimilionário, do qual só recebem migalhas. Empregados no plan-tio, pequeno transporte e venda, é uma população que suporta umatríplice desvantagem, a de ser pobre, a de ser criminalizada, a deviver num universo socialmente desestruturado ou diretamentecolapsado pela violência. São os excluídos de um sistema ao qual

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nunca vão poder ingressar e que os priva de seu direito à cidada-nia. Muitas vezes esgotadas as possibilidades de encontrar um meiode sobrevivência legal, dedicam-se a atividades penalizadas pelasleis de estupefacientes, dando lugar a um fenômeno que foi concei-tuado como “emigração para a ilegalidade” (ROSSI, 2003a). Estenovo conceito representa muito bem o périplo de setorespopulacionais que foram emigrando de seus lugares de origem paraencontrar, seja nas cidades, seja na selva, os meio de subsistência.São os camponeses que fogem da seca e da erosão, da violênciamilitar ou paramilitar ou guerrilheira ou narcotraficante, são osmineiros a quem fecharam as minas lá pelos anos 80, são os safreirossem safra. Vivem dispersos na mata, cultivando produtos que nin-guém compra ou se amontoam em casas de papelão e chapas nosbairros miseráveis onde o trabalho é uma quimera. Foram atraídospelos pólos de desenvolvimento que são as cidades ou os acampa-mentos petroleiros, ou simplesmente se internaram na selva embusca de um pedaço de terra que os alimente. Protagonizaram eprotagonizam emigrações espontâneas ou forçadas às quais o Es-tado não dá ou não quer dar resposta. Algumas destas migraçõespara zonas rurais foram alentadas pelo mesmo Estado na tentativade aliviar a pressão sobre as cidades. Algumas até foram planifica-das. No entanto, as políticas para esta massa de pessoas a procurade sustento foram erráticas, deficientes ou inexistentes. Erráticas,devido ao fato de as grandes prioridades de desenvolvimento te-rem se modificando na medida em que os países da América Lati-na foram introduzidos na lógica do mercado mundial, excluindoporções crescentes de população; deficientes, já que os requerimen-tos básicos destes segmentos populacionais não foram atendidos;inexistentes, no momento em que o Estado abandonou à sua pró-pria sorte zonas inteiras, onde sua única presença, quando a teve,foi a repressiva.

O Estado foi desentendendo-se com essa porção da popula-ção, pelas reformas mesmas que se foram realizando no aparelho

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estatal e que redefiniram seu papel, suas atribuições e seus espaçosde intervenção. Os recortes nas políticas sociais que se concretiza-ram em ajustes orçamentários fecharam a porta a soluções, abrin-do espaços de segregação. Uma segregação que não é só econômi-ca, senão que afeta outras esferas do ser social. Estas situações sãoamplamente aproveitadas por atores criminosos que por falta desoluções oferecidas pelo Estado, pela sociedade ou pelo mercado,brindam oportunidades de sobrevivência no marco da ilegalidade.

A emigração de um lugar a outro, antes atrelada à inserção nosetor informal da economia, tão festejada nos anos 80 por ser consi-derada motor de progresso para as populações desfavorecidas (DESOTO, 1987), vai-se convertendo numa paulatina integração a ati-vidades delitivas com conseqüente processo de criminalização deseus protagonistas. Neste marco, alimentado pelas leis anti-narcó-ticos, o narcotráfico oferece suas opções que são opções de sobrevi-vência e de integração a um sistema para todos aqueles que a ex-clusão deixou sem nenhum vínculo social de pertence. Numa soci-edade dominada por contra-valores, onde o humano desaparecesob as cifras macroeconômicas, onde existir equivale a ter, e onde acorrupção já não é um simples ato conjuntural, mas se erigiu comosistema, o traspasso do umbral da ilegalidade, sem ser automáti-co12 , vê-se facilitado sobretudo para duas categorias populacionais:as mulheres e os jovens.

As primeiras, por razões sócio-culturais e as devastadoras cri-ses que os países da periferia sofrem, vêem-se impelidas a assumira chefia dos lares e sua manutenção frente a famílias que se conver-tem em mono-parentais, sem presença masculina, ou daqueles nú-cleos onde os homens perderam a possibilidade de empregar-seaté no setor informal da economia e com essa possibilidade perde-ram sua própria identidade social (ROSSI, 2003a). Com escassa einsuficiente formação e capacitação, as mulheres, elegidas por se-rem confiáveis, por não serem perigosas como os homens, por se-rem mais vulneráveis13 e por serem consideradas descartáveis, vão

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engrossando cada vez mais as filas da mão de obra do narcotráficonos degraus inferiores, como dão conta as estatísticas carcerárias,onde a violação das leis de estupefacientes é a primeira causa deencarceramento das mulheres em quase toda a América Latina. Osjovens, por outro lado, limitados em suas projeções pessoais, vãoelaborando uma visão específica da vida, a visão de não “futuro”,que quebra suas vontades e converte a vida em algo efêmero a serarriscada no imediato.

Toda essa população submetida a um processo de crescentecriminalização é objeto de perigosas generalizações baseadas na equa-ção: pobre = delinqüente, que toma mais força quando o pobre é jo-vem14 . Em muitas sociedades estas generalizações já são parte do ima-ginário coletivo que abre perspectivas de repressão e põem em tela dejuízo a convivência democrática e fazem rememorar na América Lati-na os tempos escuros das ditaduras militares quando o inimigo nãoera o narcotráfico, senão o comunismo internacional e onde ser jovemequivalia muitas vezes a ser um subversivo em potencial.

ENTRE A ILEGALIDADE E A LEGITIMAÇÃO

Sobre estas bases o narcotráfico construiu uma legitimação soci-al, transformando-se em provedor de trabalho e satisfazendo neces-sidades em substituição de um Estado incapaz de cumprir com seusmandatos, por escassez de recursos ou por falta de vontade políti-ca15. Camponeses deslocados na Colômbia, colonos da selva perua-na ou do trópico boliviano, moradores de zonas sem recursos comoos de Pernambuco, no Brasil, ou do meio rural paraguaio, habitantesdas “favelas” brasileiras ou das vilas “miséria” argentinas, são al-guns dos exemplos dessa situação anômala onde o espaço de poder,que tradicionalmente deveria ser ocupado pelo Estado, é deixadoem mãos de atores emergentes de natureza criminosa.

Estes foram surgindo ou se consolidaram ao redor de um

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dos negócios mais rentáveis em nível mundial, simultaneamen-te ao tráfico de armas com o qual se vincula cada vez mais emfunção de assegurar sua própria segurança ou como meio deintercâmbio com grupos irregulares, sejam estes guerrilheirosou paramilitares. As características de um mercado em expan-são, sua clandestinidade que potencia o fator risco determina-ram uma acumulação de capital que foi, em algum momento,sem precedentes. Constituídas como empresas capitalistas, aoamparo das dinâmicas que o setor financeiro gerou para permi-tir a rápida mobilidade dos capitais, necessária para seu cresci-mento num processo de globalização das finanças –e que de al-guma forma se mantém apesar das legislações sobre lavagem dedinheiro-, conseguiram criar um poder econômico que seexterioriza em investimentos legais, que desta forma o vão legi-timando.

Esta legitimação, no entanto, está acompanhada por pro-cessos violentos e pelo exercício da corrupção que corroem osfundamentos dos princípios democráticos. Neste processo, aluta anti-narcóticos, em lugar de contrapor-se eficazmente, deacordo com os postulados da política anti-drogas, chega a con-verter os que dela participam em co-partícipes e co-responsá-veis por uma desestabilização, num universo cada vez maisfragmentado.

AS ESTRATÉGIAS DA POLÍTICA ANTI-DROGAS

São variadas as estratégias repressivas que foram implanta-das. Nenhuma deu os resultados esperados. No campo operativo,a erradicação forçada, a fumigação, a militarização de zonascocaleiras, amapoleiras e maconheiras, o controle militar e policialdos bairros marginais e os diferentes planos aplicados na áreaandina, como o Plano Colômbia e a Iniciativa Regional Andina16

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não conseguiram deter nem a produção, nem o tráfico.No campo judicial tem-se o endurecimento das legislações,

muitas das quais fazem caso omisso das garantias constitucionais,povoando os cárceres de consumidores, vendedores e mulas, ape-sar de aparentar, em alguns casos, uma maior abertura para solu-ções menos repressivas. São poucos os casos de grandesnarcotraficantes encarcerados, e ainda que alguns deles estejampresos, o negócio não diminuiu.

As cifras falam claro. Certamente, a repressão atua como ele-mento de dispersão que faz da estrutura produtiva e das organiza-ções um universo fragmentado de mais difícil controle. Ampliam-se as áreas de cultivo e se deslocam para zonas mais seguras nointerior da selva ou traspassam fronteiras envolvendo mais popu-lações e países17 . As organizações se atomizam, multiplicam-se, serearticulam, aparecem novos reordenamentos, novos contatos, no-vas rotas e redes cada vez mais amplas, internacionalizadas e res-ponsáveis por modernos critérios de eficiência e eficácia.

A luta, no entanto, deixa suas feridas: os mortos, os desapare-cidos, os lesados, os injustamente encarcerados, as moradiasdestruídas, as zonas de fumigação arrasadas, onde os cultivos líci-tos agonizam ao lado da coca e da papoula, destruindo anos detrabalho, possibilidades legais de sobrevivência e ativam catástro-fes ecológicas que afetam a natureza e a saúde dos seres humanos.O indiscriminado, o abusivo, o corrupto são as marcas desta guer-ra levada a cabo por efetivos policiais e militares.

Dentro da estratégia norte-americana, foi impulsionada a for-mação, ao longo de América Latina, de corpos especiais de lutaanti-narcóticos. É a polícia militarizada, vulnerável à corrupção,também por conta dos baixos salários e com uma tradição de im-punidade. Esta se deriva de um passado de autoritarismo que re-siste a morrer e que permanece intacto na mentalidade e nas estru-turas desativadas, mas não desmanteladas, aquelas a que o poderrecorre para alimentar as guerras sujas que se estão livrando em

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algumas áreas deste continente.À polícia se somam os militares. Arredios a deixar-se envolver,

encontraram-se fortemente pressionados pelos Estados Unidos. Suaresistência foi posta a prova pela necessidade de redefinir papéis eforjar uma nova identidade, já que os tradicionais inimigos perde-ram seus contornos ao terminar a Guerra Fria e ao configurar-se osblocos comerciais no continente. No entanto, os velhos inimigosdeixaram o lugar para outros, novos, com característicasmultinacionais, como multinacionais são a economia e as finanças,não diretamente relacionadas a um território em particular, o quefez do conceito clássico de soberania nacional algo superado e queincidiu na transformação do conceito de defesa, do âmbito militarpor excelência, fazendo-o derivar para o conceito de segurança.

Enquanto os Estados Unidos pressionavam governos e ForçasArmadas e diferentes países para que se envolvessem num temaque se considerava mais do âmbito da segurança interna do quehemisférica, e lançavam projetos de forças multilaterais para com-bater ao narcotráfico, dedicaram-se também, sobretudo na décadados 90, a militarizar a luta com participação de efetivos norte-ame-ricanos e agências privadas de segurança, moderna versão dos gru-pos mercenários que respondem ao governo estadunidense, comos quais assinam contratos submetidos a controles e avaliação. Es-tabeleceu-se desta forma o controle do espaço aéreo do continente,assistiu-se à multiplicação de bases, à formação dos CentrosOperativos de Avançada (Forward Operating Locations, FOLs eminglês), com presença de tropas norte-americanas no Equador,Aruba, Curaçao e El Salvador (RONCKEN; 2004) e se lançou o Pla-no Colômbia (RODAS CHAVEZ; 2004) que tem graves repercus-sões não somente nesse país, senão nos países fronteiriços, comoEquador, Venezuela, Peru e Brasil, incluídos, com a Bolívia na Inici-ativa Regional Andina.

O projeto de envolvimento das Forças Armadas de toda aAmérica Latina obedeceria não a uma lógica de confronto, mas se

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emolduraria na tendência que se manifesta no palco mundial, cadavez de forma mais clara. Ante a fragmentação dos conflitos, as For-ças Armadas parecem assumir cada vez mais o papel de polícia deuma ordem internacional cujas regras são impostas pelos paísescentrais, e máxime por Estados Unidos sobretudo a partir do 11 desetembro do 2001. Na América Latina, o envolvimento militar naguerra contra as drogas, sujeito a uma lógica norte-americana nãototalmente consentida, poderia entrar como um dos aspectos deum consenso mais amplo ao redor da luta anti-terrorista em geral eanti-guerrilheira em particular e constituir outra faceta desta ma-nutenção da ordem, sobretudo considerando a fusão que se reali-zou em nível discursivo entre narcotráfico, guerra de guerrilha eterrorismo, fenômenos pretensamente presentes no continente18 . Aconjunção destas ameaças reais ou fictícias se encaixa numa lógicamilitarista que se sustenta na nova doutrina militar estadunidense(WHITE HOUSE, 2002). Nesta, às ameaças provenientes de Esta-dos “falidos” ou “canalhas”19 (CHOMSKY, 2002; FUENTES, 2004,p. 37) adicionam-se às ameaças assimétricas constituídas por fenô-menos multinacionais que podem aparecer em qualquer lugar, inter-relacionados ou não entre eles. Dentro destes encontra-se onarcotráfico, na acepção de “crime organizado”, e o terrorismo, queinclui grupos guerrilheiros como os colombianos e os peruanos que,de acordo com uma visão muito difundida no país do Norte, esta-riam tentando estender sua influência em amplas áreas do conti-nente. Estas ameaças, pelas características mencionadas, impulsio-naram uma nova definição do conceito de defesa convertendo-oem segurança onde os limites tradicionais das funções policiais eos das funções militares se vão desvanecendo e dando lugar a umprocesso de “policialização” ou “securitização” do militar e demilitarização do policial20 .

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AS AMBIGÜIDADES DO ESTADO

As modificações e o endurecimento parecem encaminhar ocontinente para rumos sumamente perigosos, e pouco funcionaisem relação aos objetivos que pretensamente se quer conseguir21 . Se“guetizam” sociedades e territórios onde o Estado renuncia asua soberania, numa feudalização do espaço social e físico, cri-ando redutos onde imperam outras leis impostas por atores cri-minosos e onde o uso coercitivo da força, aplicada por assassi-nos a salário, milícias ou exércitos privados, deixa de ser mono-pólio do mesmo. O Estado intervém nesses espaços numa claralógica de guerra, invasão e ocupação para depois voltar a aban-donar seus territórios e habitantes às vezes arrumando verda-deiros esquadrões da morte encarregados da “limpeza social”.Nesta feudalização entram em jogo interesses atravessados pelopoder e pelo dinheiro, aonde forças de segurança e militares che-gam a tecer alianças espúrias com setores enfrentadospretensamente pelo Estado, mas que recebem até apoio solapa-do por parte deste, pela compenetração de interesses crimino-sos no interior da estrutura estatal, a procura de poder e impu-nidade, e por inserir-se numa complexa trama onde não somen-te é a política doméstica a que se dirime, senão interesseshegemônicos e do capital multinacional.

ENTRE A DISFUNCIONALIDADE E A SUSPEITA

Na realidade, a luta anti-narcóticos tem as características deuma trágica farsa, já que serve de álibi para a consecução de obje-tivos alheios a ela, em diferentes níveis e para diferentes atores. Aluta permite aos governos latino-americanos implantar instrumen-tos de controle para os setores mais problemáticos da sociedade,que podem questionar o ordenamento social e econômico atual.

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Aos Estados Unidos, por sua vez, dá a possibilidade de exercerum controle territorial em zonas consideradas sensíveis para seusinteresses, pelos recursos naturais não renováveis, como o petró-leo, necessários para manter seu modelo produtivo-energéticovigente e para a mesma sobrevivência (KLARE, 2003), como osreservatórios de água doce, abrindo espaço a ulteriores conflitose desestabilização22 .

A “guerra contra a droga”, da maneira como estáinstrumentalizada não é funcional para seus objetivos. Não somenteé um fracasso em termos de resultados, senão que, em lugar dedesalentar o fenômeno, corrobora a sua complicação. A repressão esua conseqüente estratégia de militarização ativam dinâmicasindesejadas em termos democráticos. A persistência desta lógica semostra suspeita. Se por um lado existem enormes interesses emjogo, de caráter econômico e de política continental e de recursos,que envolvem a mesma essência do poder, pelo outro parece serum fenômeno mais de tendência global. A militarização dos confli-tos, sejam estes étnicos, tribais, nacionalistas ou contra as drogas,parece converter-se na saída de um modelo econômico e de socie-dade que está levando ao caos e para o qual, a única medida que sepensa tomar é simplesmente sua administração, e não encontrarcorretivos em função de sua desativação.

AS NOVAS FRONTEIRAS DA REDUÇÃO DE DANOS

Considerando-se os diferentes aspectos da problemática, põe-se de manifesto como a temática do narcotráfico não é um fato sim-plesmente delitivo e, portanto, um mero assunto policial. É a mani-festação intrínseca de um sistema sob signos contrapostos e com-plementares que caracterizam a globalização.

As dinâmicas que a repressão põe em marcha contribuem paraaprofundar processos já existentes que preanunciam maiores con-

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flitos e maior desamparo dos cidadãos ante poderes aos quais sóinteressa sua própria reprodução. A fragmentação do poder, a de-sarticulação do tecido social, a multiplicação dos conflitos, a redu-ção do Estado em seu papel de mediador e fiador, o clima de gene-ralizada insegurança são o terreno ideal para a aceitação de novasformas de autoritarismo e segregação dentro de uma sociedade cadavez mais excludente e encerrada numa desesperada defesa de pri-vilégios do que um dia foram direitos de todos.

A política de Redução de Danos aplicada ao consumo é umarrazoado de uma cultura humanitária que neste rincão do planetaarrisca-se a perder. Sua ampliação para diferentes aspectos do cir-cuito se constituiria numa proteção já não para um bem individuale coletivo, como a saúde pública, mas para o homem enquanto su-jeito de um conjunto de direitos e da coletividade que integra. Estaampliação permitiria reverter o desdobramento que se realizou notratamento de um fenômeno que é único, ainda que constituídopor situações e realidades tão diferentes e distantes. É necessárioassumir que a solução da problemática das drogas não pode serenfrentada com duas lógicas diferentes que introduzem uma visãomaniqueísta de termos contrapostos.

A construção de uma política de Redução de Danos ampliadaé um processo, já que os princípios e as estratégias aplicados aoconsumo não podem ser extrapolados. Só podem indicar um cami-nho e evidenciar sua necessidade. Sua meta primordial seria a re-solução do conflito pelas vias pacíficas.

Um dos pontos de partida deverá ser a identificação da raiz doproblema. Esta está constituída pela ilegalidade das drogas e docircuito montado ao redor? Ou sem propor-se a questão da ilegali-dade por envolver categorias morais, como controlar o narcotráfico,sem aplicar uma repressão indiscriminada? Onde começa onarcotráfico? Como defini-lo? Com base em que postulados e vari-áveis podemos diferenciar condutas e responsabilidades?

Estas perguntas não são ociosas. A Redução de Danos aplicada

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ao consumo foi viável porque o consumidor, ainda que infrator dalei, no fundo é considerado um doente, graças a um discurso médi-co que se foi difundindo através das décadas. Este status abriu umabrecha que possibilitou pensar numa política alternativa sob as in-sígnias da saúde. Por outro lado, os segmentos populacionais docircuito de produção e tráfico não contam com essa vantagem, jáque o discurso oficial os incriminou de fato ante a mesma opiniãopública. E se no caso dos cultivadores de plantas ilícitas se está abrin-do caminho para uma consciência de sua situação quase sem esca-patória, há segmentos como o dos mulas23 , dos vendedores, sejamestes consumidores ou não, que dificilmente não podem ser identi-ficados com o narcotráfico. Para não falar de setores muitos maiscriminalizados, de conduta realmente delitiva, instigada, no entan-to, por situações de pobreza, desamparo, desestruturação familiar,social e cultural em geral.

O que é evidente é que é necessário operar politicamente me-diante uma estratégia de subtração da base produtiva e social aonarcotráfico. Da mesma maneira precisa-se desativar os mecanis-mos propícios a sua existência e expansão. Aqui invariavelmentese encontrarão obstáculos de natureza estrutural impossíveis desuperar por serem próprios do ordenamento da sociedade. Onarcotráfico, apesar das tentativas de demonização, é um produtodeste ordenamento e de sua cultura, bem como o são as guerras eoutros “demônios” mais.

Para tudo isto, fundamentais são a criação de um arcabouçoteórico e o desenvolvimento de uma prática num processo deretroalimentação entre ambos. É necessária a identificação do obje-tivo principal desta política mediante a construção deconceitualizações rigorosas ao redor das problemáticas, para nãoficar nos meros enunciados e inabilitar-se para o desenho de estra-tégias e sua aplicação.

Há que diferenciar os segmentos do circuito das drogas, dife-renciar responsabilidades, níveis de participação, de tomadas de

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decisão e de benefícios e proceder ao exame dos diferentes aspec-tos da problemática, o sócio-cultural, o econômico e o político. Háque evidenciar, para conscientizar, as falácias das generalizaçõesaplicadas a toda a realidade latino-americana, onde narcotráfico,guerrilha e/ou terrorismo aparecem unificados, generalizações quepodem conduzir à aceitação de uma crescente política de controleda vida civil em função de uma segurança que só a justiça e a eqüi-dade, e não as arma, poderão garantir.

Terá que se criar um saber mediante a elaboração de saberesdispersos, terá que se criar parâmetros que não sejam só indicado-res numéricos, mas que dêem conta dos danos sociais e humanosque não são simplesmente “danos colaterais”, como hoje agradadefini-los, que permitam por um lado mostrar as falácias da atualpolítica anti-droga e pelo outro permitir uma avaliação dos resul-tados de uma possível política alternativa.

As estratégias para conseguir os objetivos deverão variar deacordo com as diferentes realidades a serem estudadas. Desconhe-cer a existência de problemáticas diferenciadas devido à históriapolítica e cultural das populações equivaleria a decretar seu fracas-so de antemão.

Dessa maneira é possível prever que a Redução de Danos emmuitos países transitará pelos domínios do desenvolvimento dasáreas rurais e urbanas e pela criação de empregos; ou pode estarintimamente relacionada com os processos de paz ou vinculada aestratégias de renovação ético-cultural, sem visos de moralismo ba-rato, para enfrentar a corrupção, sobretudo quando esta é voluntari-amente ignorada ou instalada e promovida pelo mesmo poder.

Essas propostas, talvez sejam de difícil inserção num debatena sociedade e a nível político, já que a mesma tradicional Reduçãode Danos aplicada ao consumo se confronta com uma forte arre-metida de parte de poderosos setores conservadores que estão pon-do em dúvida sua realização através de cortes orçamentários oueliminação de ajuda internacional aos programas que em vários

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países estão sendo levados a cabo. Não obstante, há que exigir odireito à experimentação que permitiria, apesar dos compromissosinternacionais, empreender ações e avaliá-las à luz dos processos edos resultados, e pedir espaços de acordo, e retroceder em matériade repressão, saída fácil e que dá créditos políticos, mas que aofinal só complica situações porque não se dirige aos núcleos pro-fundos da problemática a resolver.

A necessidade é evidente. A política anti-drogas tem custosdemasiado altos. Faz perigar a paz e a convivência civil, sem asquais não há direitos, não há desenvolvimento, não há democraciae não há dignidade. Frente à multiplicação dos conflitos, inauguraruma política que tenda a desativá-los num campo como o das dro-gas pode converter-se numa contribuição ao que, hoje em dia, to-dos precisamos: que o mundo que os homens criaram deixe de serhostil para eles mesmos.

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Recebido em: julho de 2005

Aprovado em: novembro de 2005

NOTAS1 O narcotráfico é um termo que engloba uma série de realidades altamente diferenciadas e

para onde confluem desde a produção de matérias primas à comercialização das drogasilícitas.

2 Para muitos, a Redução de Danos é, ainda, simplesmente, uma estratégia que se limita àtroca de seringas.

3 Muitas são as legislações que direta ou indiretamente penalizam o consumo de substânci-as estupefacientes. Em diferentes países da América Latina conquanto o consumo não es-teja sancionado, a posse para consumo, a posse simples e para a venda. As pessoas presaspor esta causa, uma vez estabelecido seu grau de dependência, sobretudo no caso de pos-se para o consumo, deverão submeter-se a um processo de reabilitação. Se não aceitaremou não colaborarem durante o tratamento, terão que purgar a pena no cárcere. Esta medi-da não considera dois fatores importantes. O primeiro é a falsa disjuntiva “tratamento oucárcere”, que desvirtua o processo que deveria levar à reabilitação já que o converte emcompulsivo, fazendo duvidar sobre sua efetividade em relação aos ganhos. O segundo estárelacionado com as dificuldades dos Estados para garanti-lo, não dispondo de fundos paraisso, o que converte a medida em discriminatória para as pessoas de escassos recursos quenão podem recorrer aos serviços de instituições particulares, dando lugar, desta forma, aum processo de criminalização da pobreza.

4 Ver os estudos, já convertidos em clássicos, da criminóloga venezuelana Rosa del Olmo(DEL OLMO, 1989; 1992; 1994).

5 Fazemos referência à produção de matéria prima, isto é a cannabis (maconha) e as outrasplantas como coca e papoula das quais se extraem os princípios ativos a partir dos quais eatravés de diferentes fases de elaboração, obtém-se a cocaína e os derivados do ópio comoa heroína.

6 Sobre alguns aspectos desse tema ver ILDIS, 1993; VARGAS MEZA, 2003.7 Uma das condições para aderir a estes programas era a eliminação prévia dos plantios ilíci-

tos, fonte primária da economia campesina, que colocava os produtores e as comunidadesem situação de vulnerabilidade ante a possibilidade de os programas e projetos não teremos resultados esperados.

8 Não se levaram em conta os gargalos na comercialização: os custos de transportes dos pro-dutos em locais com escassa ou quase nula infra-estrutura viária, que ainda que fosse melho-rada, nem o Estado nem as comunidades teriam podido mantê-la, pelos altos custos que istoimplica; a ausência de um mercado interno que pudesse absorver a produção; um mercado

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externo de difícil penetração, pelas barreiras constituídas pelos impostos aplicados pelos di-ferentes países, sobretudo os centrais, apesar da liberalização suposta dos mercados.

9 Um dos casos mais notórios foi o projeto Agroyungas, nos Yungas de La Paz, na Bolívia.10 Ao fracassarem os projetos, os camponeses tiveram que enfrentar vários problemas dentre

os quais vale destacar os seguintes: encontraram-se sem fontes de sustento, já que os culti-vos das plantações ilícitas tinham sido eliminados; tendo-se entregue créditos rotatórios apagar-se com os ganhos derivados das atividades econômicas alternativas, não puderamcumprir com os compromissos assumidos, o que lhes impede até agora voltar a ser sujeitosde crédito; uma vez fechado o projeto, que em lugar de dar ganhos dava perdas, as comuni-dades ou os beneficiários do mesmo não estavam em condições de assumi-lo e sustentá-lo, como previsto pelos acordos de cooperação.

11 Esses planos precisam de fortes investimentos e não consideram a presença da população,tanto assim que muitos deles prevêem a realocação dos camponeses, deixando sem solu-ção uma das causas de sua integração no circuito produtivo das drogas: a falta de inserçãotrabalhista nos setores da economia legal.

12 Um dos novos fenômenos da expansão do narcotráfico é que o envolvimento com ele nãoé somente das pessoas de baixos recursos ou de delinqüentes avezados, senão também demembros das classes média e alta. Isto responde a uma lógica dominada por umadesestruturação das escalas de valores que vive a sociedade em seu conjunto, que tem aver com o dinheiro e o poder, com os símbolos mercantis do status e com o instantâneo -ter tudo e ter de imediato - sem reparar nos meios para consegui-lo.

13 A vulnerabilidade das mulheres reside sobretudo na sua preocupação pela segurança dos filhos.14 Em algumas sociedades esta generalização se agrava quando nela se inserem preconcei-

tos racistas, onde ao binômio pobre e delinqüente se adiciona o fato de ser negro, comopor exemplo no Brasil.

15 Conquanto o narcotráfico seja converido em instrumento para satisfazer exigências urgen-tes, em momento de crise dirige sua violência para sua própria base, sobretudo quando háfraturas internas, disputas territoriais e pelo domínio do mercado. Sua base social e produ-tiva pode chegar a converter-se em refém de situações sumamente conflitantes.

16 O Plano Colômbia surgiu para tratar de resolver os problemas prementes da Colômbia, noentanto através das modificações realizadas em suas propostas originais, converteu-se numaestratégia anti-narcóticos que prevê a eliminação de 50% dos cultivos, via fumigação, e o50% do tráfico. A Iniciativa Regional Andina está pensada para tratar de paliar os efeitos doPlano Colômbia nos países andinos.

17 Um desses exemplos é o próprio Plano Colômbia. Simultaneamente com a diminuição dehectares cultivados com coca e papoula na Colômbia, registrou-se um aumento dos culti-vos em outros países. A eventual diminuição dos plantios é compensada por uma maiorprodutividade dos mesmos.

18 Com base nesta lógica, o Plano Colômbia se converteu numa luta contra a guerrilha, porsua vez assimilada ao terrorismo internacional. As Forças Armadas Revolucionárias da Co-lômbia, FARC, o maior grupo guerrilheiro desse país, aparecem com outras organizaçõesnuma listagem do Departamento de Estado dos Estados Unidos como grupo terrorista in-ternacional. No entanto, esse não seria o único exemplo de presença terrorista na AméricaLatina. Os serviços de inteligência estadunidenses e israelenses assinalam a existência decélulas dormidas de Hamas, Hezbollah e al Gamatt na Tríplice Fronteira paraguaia-brasilei-ra-argentina, na venezuelana Ilha Margarita e em Trinidad e Tobago, além de células da alQaeda, no Equador.

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19 Em linhas gerais, os Estados falidos são os Estados que não podem administrar-se a si mes-mos, enquanto os canalhas ou velhacos são os Estados que desrespeitam a democracia, osdireitos humanos e se convertem em perigo para a estabilidade regional.

20 Na história latino-americana, a participação militar em questões de segurança não éinfreqüente, o inovador residiria em que as Forças Armadas se fariam fiadoras de um novotipo de autoritarismo que se imporia utilizando e mantendo aparentemente intactas asestruturas democráticas.

21 Do ponto de vista formal, quase todas as constituições latino-americanas impedem a parti-cipação militar em assuntos internos. As Forças Armadas só podem dar apoio logístico àsforças de segurança interna, no entanto, no momento em que o Estado mesmo é o quecorre perigo, os militares têm que atuar em sua defesa.

22 Petróleo, esmeraldas, ouro e outros minerais, além da biodiversidade, encontram-se na ba-cia amazônica onde os Estados Unidos concentraram a luta anti-narcóticos. Em relação àágua, as fontes, além de estarem localizadas nessa mesma bacia, encontram-se na zona daTríplice Fronteira assentada sobre o aqüífero Guarani, a terceira reserva mundial de águadoce e onde os Estados Unidos estão centrando seu atendimento sobre a colisão entreatividades narcotraficantes, de contrabando de armas e terroristas. A existência destas últi-mas está sendo questionada pelos serviços de inteligência locais.

23 Pessoas que transportam pequenas quantidades de droga, muitas vezes ao interior de seusmesmos corpos.

DUBET, François

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Sobre a violência e os jovens

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Drogas, conflito armado naColômbia e segurança global

Versão para o português: Sócrates Jacobo MoqueteGuzmán e Paulo Cesar Pontes Fraga

3

Ricardo Vargas Meza

Sociólogo, pesquisador associado aoTransnational Institute-Holanda

Abstract. This article aimed analysisto the actions of eradication forcedfor aerial aspersion implemented inColombia, from the 1990’s years andthat they intensify from theimplementation of the ColombiaPlan. According to author, ananalysis based on data of short term,carried through annually it does notreflect the reality of the failure of thistype of action, therefore I concentratemyself in areas of bigger plantationand it did not consider the sproutingof new areas of plantation in regionsuntil then little significant.

Keywords: Drugs, Colombia,politics of drugs e violência.

Resumo. Este artigo busca discutiras ações de erradicação forçada poraspersão aérea utilizadas pela Co-lômbia, a partir dos anos de 1990 eque intensificam a partir daimplementação do Plano Colômbia.Segundo o autor, uma análise base-ada em dados de curto prazo, reali-zada anualmente, não reflete a reali-dade do fracasso deste tipo de ação,pois concentra-se em áreas de maiorplantio e não considerou osurgimento de novas áreas de plan-tio em regiões até então pouco sig-nificativas.

Palavras Chave: Drogas, Colômbia,políticas de drogas e violência.

MEZA, Ricardo Vargas

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CONTEXTO

A Colômbia continua sendo, ainda hoje, o primeiro produtormundial de coca, com 113.850 hectares em 2003, segundo cifras doDepartamento de Estado, sendo 65,6% da área andina (EL TIEMPO,2004) ou, de acordo com United Nations on Drugs and Crime(UNODC), 86.000 hectares (55,8% da região) (UNODC, 2004).

A produção de papoula e suas cifras são imprecisas, sendo aprodução um verdadeiro mistério, dada a impossibilidade de serdetectada e medida mediante o uso de satélite ou em seu local deplantio, traduzindo-se em desconhecimento sobre o verdadeiropotencial produtivo de heroína. As autoridades antinarcóticos acre-ditam que haja uma superfície de 4.000 hectares de plantio, aproxi-madamente, o que representa um potencial produtivo de 50 tone-ladas de ópio ou 5 de heroína.

Essa cifra contrasta com os reiterados apontamentos de orga-nismos de inteligência dos Estados Unidos que, no contexto de umcenário de forte incremento da demanda de heroína, denunciam aheroína colombiana como uma fonte importante nesse mercado ile-gal, em razão de sua elevada pureza (90%) e à capacidade dosnarcotraficantes para introduzi-la nos Estados Unidos.

Considerando os cálculos de UNODC e do Departamento deEstado Americano, o potencial produtivo de cocaína da Colômbiaoscila entre 450 e 500 toneladas anuais. Somado ao produzido noPeru e na Bolívia, tem-se um potencial total, na região, de 650 tonela-das, das quais, aproximadamente 20% são confiscadas anualmentenas vias de trânsito para os Estados Unidos. Porém, de acordo com oDepartamento Antinarcótico dos Estados Unidos (DEA), e tomandocomo base o ano 2001, os preços da cocaína nos EUA têm se mantidobaixos e estáveis, o que sugere um fluxo normal dessa droga no mer-cado norte-americano atingindo um intervalo que vai de US$12.000a US$35.000 dólares/quilo. Da mesma forma, a pureza permaneceestável em níveis elevados que oscilam em redor de 73% (DEA, 2004).

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Calcula-se que, nos EUA, são consumidas anualmente 259,08toneladas de cocaína, isto é, 48,3% do consumo mundial. Se em ter-mos absolutos se confiscam aproximadamente 120 toneladas em suasfronteiras, quer dizer que para os EUA se destinam quase 380 tone-ladas, ficando o restante, 270 toneladas da produção de HCL da re-gião para distribuir no resto do mercado internacional (DEA, 2004).

A Colômbia conheceu dois momentos significativos na econo-mia ilegal das drogas:

1. Um primeiro momento que está vinculado à sua situaçãocomo país processador e exportador das drogas e que, comrelação à cocaína, permanece do fim dos 70 até hoje. Nessecontexto, e até 1993, Peru e Bolívia constituíram-se como baseprodutiva inicial do circuito das drogas. Somente em pro-porções menores algumas zonas colombianas desenvolveram,nesse período, modelos produtivos precários de culturas ilí-citas da cocaína, com variedades consideradas pobres em re-lação aos rendimentos (DEA, 2004) e aos tamanhos, que nãorepresentavam mais do que um peso regional marginal.

2. Um segundo momento é o auge da produção da coca na Co-lômbia, processo que começa no período 1993 - 1994. Comoprodutor também existe o antecedente da papoula, no inícioda década dos noventa.

Como país processador e exportador de drogas, a Colômbiaviveu uma intensa guerra dirigida então pelo Estado contra as or-ganizações do narcotráfico, assentadas nas principais cidades. Taisfatos se desembrulharam com altos níveis de violência, como res-posta à exigência dos EUA de extraditar os chefes destas estruturasconhecidas em nível internacional como cartéis. Este processo cul-minou com o desaparecimento das cabeças dos grupos de Mede-llín em 1993 (Pablo Escobar) e o encarceramento dos dirigentes do

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grupo de Cali em 1994 (os irmãos Rodríguez Orejuela). Este fatorepercutiu diretamente sobre as zonas cocaleras do Peru e da Bolí-via que forneciam a matéria prima que era processada em solo co-lombiano e exportada depois aos mercados internacionais. Comobem assinalou Rumrrill (1998, p. 67), para o caso do Peru:

Conquanto é verdadeiro que ao longo do ciclo da cocaína seproduziram bruscas quedas e leves ascensões dos preços, ade 1994 foi a queda mais espetacular do quarto de século e,ao que parece, segundo todas as evidências, uma queda semvolta, pelos sintomas de esgotamento do ciclo de 40 – 50 dó-lares que custava a arroba de folha de coca de 11.5 quilos,chegou a só 5 dólares. E o de pasta base de cocaína (PBC) de1.500 dólares o quilo, a só 70 dólares.

Por outro lado, a crise do controle monopólico da produção dePBC, em mãos dos cartéis, gerou as condições para que irrompessemcom mais força dezenas de organizações menos conhecidas, assen-tadas em diversas cidades médias e pequenas da Colômbia, queestimularam uma forte demanda interna de PBC, com a qual a Co-lômbia passou a constituir-se em outro país produtor, fato que sefaz mais visível em 1994 enquanto se gerava uma crescente dimi-nuição das áreas de Peru e Bolívia (Ver tabela 1).

Concomitantemente, começa a se desenvolver na Colômbiauma política de contenção da oferta, dirigida, em primeiro lugar,contra os cultivos de coca e papoula através da aspersão aérea daformulação round up1 , a qual foi modificada para garantir uma maiorefetividade na erradicação definitiva das áreas com cultivos ilíci-tos. Tal política se vem implementando desde 1994 para os cultivosde coca e desde 1990 para os cultivos de papoula. Estes últimosexperimentaram um auge entre 1992 e 1994 com a cobertura deárea nacional entre 19.000 e 20.000 hectares (MEZA, 1998), paradepois estabilizar-se numa média de 4.000 a 6.000 hectares desde1995 até hoje.

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Tabela 1 - Áreas de plantio de coca na região andina 1992 – 2003 (hectares), segun-do cifras do Dpto. de Estado dos EUA

Ano Bolívia Peru Colômbia Total

1992 45.500 129.200 41.206 215.906

1993 47.200 108.800 49.787 205.787

1994 48.100 108.600 46.400 203.100

1995 48.600 115.300 53.200 217.100

1996 47.000 95.000 69.200 211.200

1997 46.000 68.800 79.100 193.900

1998 38.000 51.000 101.800 190.800

1999 21.800 38.700 122.500 183.000

2000 14.600 34.100 136.200 184.900

2001 19.900 34.000 169.800 223,700

2002 24.400 36.000 144.450 202.850

2003 28.450 31.150 113.850 173.450

Fonte: International Narcotics Control Strategy Report, U.S. Department of State.

Os resultados das fumigações realizadas ao longo da décadados noventa não foram satisfatórios. A tendência ao incremento deáreas plantadas justo no país onde mais se desenvolveram fumiga-ções, levantou sérios questionamentos sobre a racionalidade da es-tratégia. Tal fato se fez presente sobretudo em 1999. A partir de2000, Washington opta por financiar o componente antidrogas doPlano Colômbia, ultrapassando de maneira significativa os aportesque normalmente eram fornecidos para a dita estratégia antidrogas,atingindo um montante de US$, 5 bilhões. Somada essa quantida-de com outras fontes de apoio financeiro de diversas instâncias daadministração norte-americana, ultrapassaram os US$ 3 bilhões para2003, com o que se pretendeu derrotar os argumentos contrários asua estratégia, procurando resultados mensuráveis que se concen-trassem na destruição dos cultivos ilícitos de coca e papoula.

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AS RAZÕES DE WASHINGTON PARA CENTRAR SUAESTRATÉGIA NO ÂMBITO DOS CULTIVOS ILÍCITOS

Os principais argumentos da atual política antidrogas se en-contram no documento US Department of State (US DOIS),International Narcotics Controle Strategy Report, de março de 2003,os quais se baseiam numa análise que conduz à ratificação da es-tratégia antinarcóticos, sobretudo em seu componente de reduçãoda oferta de drogas, através de uma maior ênfase no uso da forçacomo mecanismo dissuasivo eficaz contra os produtores. O Depar-tamento de Estado visa ao espaço territorial dos cultivos ilícitos,como o principal objetivo de sua estratégia dirigida à redução daoferta2 .

De acordo com o documento, os programas antinarcóticos queprocuram reduzir a presença de drogas de origem natural têm porobjetivo os três primeiros nexos da corrente existente entre o pro-dutor e o usuário: cultivo, processo e trânsito. O mais próximo dafonte que podemos abordar, diz o Departamento de Estado, éincrementar a probabilidade de conter totalmente o fluxo de dro-gas. Segundo este documento, o controle do cultivo representa amelhor relação custo-benefício frente à gama de meios existentespara reduzir a oferta. Se os cultivos são destruídos ou se mantêmsem possibilidades de colheita, então são drogas que não entramno sistema econômico ilegal. “Estamos eliminando o crescimentoperverso”, diz o Departamento de Estado Americano, atuando an-tecipadamente sobre a metástase que procura entrar (novamente)no sistema.

No entanto, essa entidade chama a atenção sobre a série deconseqüências políticas que se desprendem da aplicação estrita deuma estratégia baseada prioritariamente na repressão. Efetivamen-te, ao destruir os lucrativos cultivos, criam-se condições muito difí-ceis para os governos democraticamente eleitos, fato que se somaàs críticas condições econômicas. Isto é, conquanto a racionalidade

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da política é clara, assinala-se que há impactos não desejados quepodem afetar outras esferas fundamentais para os interesses deWashington, como golpear a estabilidade política dos governos ali-ados (como sucedeu na Bolívia, com Gonzalo Sánchez de Lozada,em 2003). Nesse sentido, o documento reconhece que a política deveser flexível, entendendo por tal, a aplicação de estratégias diversasde acordo com as circunstâncias que existam em cada cenário.

A redução da coca e as ênfases da estratégia

Aludindo às oportunidades apresentadas em um cenáriococalero que se concentra em três países, isto é, Colômbia, Peru eBolívia, para o Departamento de Estado:

A moderna tecnologia nos permite localizar as maiores áre-as com precisão e destruí-las, através de um processo mui-to menos difícil do que tentar pegar as drogas uma vezelas estiverem nas linhas de embarque. É fácil erradicarum objetivo fixo como o é um campo cocalero, que procu-rar e destruir a quantidade equivalente de cocaína distri-buída em caminhões (via terrestre), barcos (via fluvial) eaviões (via aérea).

A aposta na ênfase da focalização da política de controle doscultivos dá-se porque, segundo Washington, é onde se apresenta amelhor relação custo-benefício frente ao uso de meios para cortar aoferta. Isto explica a continuidade da estratégia das ações nessaparte do circuito. Alegam-se custos bem mais altos e limites nosindicadores de sucesso quando a ênfase se focaliza na etapa do trá-fico. O desenvolvimento de cálculos sobre o potencial produtivoque sai do mercado ao destruir os cultivos não encontra outra com-paração em outras partes do circuito do narcotráfico. Dificilmentepoderia homologar-se da mesma maneira a parte da economia dasdrogas que sai do circuito, quando se captura um narcotraficanteou um número determinado de contrabandistas de drogas ilegais.

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O alto índice custo-efetividade se baseia na relação que evi-denciam alguns estudos adiantados por entidades de EUA no Perue na Bolívia, no começo dos anos 1990, cujas produções mostramum alto conteúdo de alcalóides nas folhas e que assinalam que cada200 ou 250 hectares de coca posta fora de produção, em média,privam ao comércio de drogas uma tonelada métrica de cocaínarefinada. Inclusive a erradicação manual apresenta alguma dife-rença neste sentido. Sob esta medida, continua o relatório, o esti-mado de erradicação manual de 12.000 hectares na Bolívia, combi-nada com o estimativo de 7.000 hectares eliminados no Peru guar-dam o equivalente de aproximadamente 76 a 95 toneladas métricasde cocaína que ficaram fora do sistema econômico.

Completando esta informação, o Departamento de Estado Ame-ricano, recorda que a ruptura da média histórica boliviana começaa ter uma significação a partir de 1998, ao passar de 46.000 hecta-res, em 1997, para 38.000 no seguinte ano, até encontrar, em 2000, oponto mais baixo, com 14.600 hectares. Quer dizer que se demorouquatro anos para baixar 31.400 hectares, cifra que se traduz na to-nelagem que saiu do circuito de drogas. No caso do Peru, a médiahistórica começa a cair em 1996, com 95.000 hectares, depois deuma cifra de 115.000 em 1995. Esta tendência se estabiliza em 2000,com 34.100 hectares, o que significa que demorou 5 anos.

Cabe recordar que o montante da ajuda total ao Peru, entre osanos de 1996 a 2000, soma um pouco mais de 600 milhões de dóla-res (YOUNGERS, 2000), o que não representa uma quantidade sig-nificativa se comparada com a da Colômbia que, num período dequatro anos (2000 – 2004), recebeu cerca de 3 bilhões de dólares. Essaquantia financiou ações que resultaram numa diminuição de 25.350hectares, entre 2001 e 2002, ao passar de 169.800 para 144.450 hecta-res ou 55.950 entre 2001 e 2003. Como se vê, à luz das quantiasdispendidas, o argumento do Departamento de Estado sobre o ba-lanço do que sucedeu no Peru e na Bolívia frente ao caso colombianonão é consistente. Não obstante, com base nas considerações descri-

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tas sobre a relação custo beneficio, conclui o relatório categoricamente(USDOS, 2003; p. 35):

No entanto, uma ação desenvolvida por aviões de fumiga-ção agrícola de alta velocidade é muitas vezes mais eficientedo que outras formas de erradicação. Se aqueles aviões quefumigam na Colômbia conseguem romper as barreiras de aces-so a todos os principais plantios de coca, poderiam então des-truir uma grande percentagem de cultivos de coca em ques-tão de meses, usando herbicidas ambientalmente seguros.

A referência a outras formas de erradicação alude, principal-mente, à técnica manual, feita com o acordo das comunidades e,também, à forçada, sem acordo com os plantadores. Esta teseincrementa o modelo de uso da força e se torna extremamentepreocupante quando se compara – sem muito rigor – a relação cus-to beneficio entre a erradicação manual (modalidade do desenvol-vimento alternativo) e a aspersão aérea (política clara de uso daforça). Desse modo, o processo alternativo ficou, na prática, limita-do a uma técnica mais de diminuição da oferta, equiparável emensurável em relação ao mais importante indicador de resulta-dos: número de áreas reduzidas.

Além de sua eficiência a curto prazo, o argumento para fumi-gar mediante aspersão aérea na Colômbia se baseia no fato deque, enquanto as autoridades antinarcóticos utilizam um ingre-diente ativo que é conhecido e que foi experimentado, Washing-ton denuncia que os produtores utilizam uma gama de químicosde alta periculosidade cujo uso está restringido. Entre estes se in-clui o paraquat e o endosulfan, os quais foram classificados pelaEnvironmental Protection Agency (EPA) numa categoria de altatoxicidade e estão restringidos para sua venda nos EUA e na Co-lômbia.

Conquanto o argumento a respeito do uso intensivo de ele-mentos químicos para cuidar do cultivo ilícito ou garantir o

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processamento da Pasta Base de Cocaína (PBC) é válido, por outrolado, não se reconhece a diferença entre um ingrediente ativo, comoo glifosato, sob sua formulação comercial mais comum (Round up)e com a qual se esgrime sua pretendida inocuidade, e o reconheci-mento de que dentro da fumigação aérea na Colômbia usa-se umaformulação comercial (Round up Ultra) que varia consideravelmen-te as doses e os níveis de concentração do uso “normal” do ingredi-ente ativo. De acordo com um documento de análise do tema (GRU-PO INTERDISCIPLINARIO POLÍTICA Y AMBIENTE, 2003; p. 76):

Um aspecto verdadeiramente alarmante no processo das fu-migações se encontra representado pela forma como vierammanejando os critérios de concentração do produto comerci-al. Enquanto Monsanto, casa produtora do glifosato empre-gado nas fumigações, recomenda a aplicação de 2,5 litros/áreade um produto com uma concentração de 2,5 g/l, isto é, seaplicariam de acordo com as recomendações emanadas dolaboratório produtor 7,5 g/tem. US DOS por sua vez fala deum produto com uma concentração de 147 g/l e a PolíciaNacional menciona um produto com uma concentração de 158g/l e diz aplicar 23,65 litros/área. Isto significa a aplicação de3.700 g (3,7 quilos) por hectare fumegado. A cifra correspondea quase 500 vezes a dose recomendada pelo laboratório. Quevale esperar dos efeitos tóxicos de tais concentrações?

Sobre esta última situação, a mesma EPA reconheceu não po-der dizer nada de concreto ao Departamento de Estado, ante a au-sência de provas experimentais que dêem plena segurança sobreos efeitos ambientais e de saúde da “nova” fórmula para destruircultivos ilícitos.

Efetivamente, a dose em litros por hectare veio sendo modifi-cada a partir de 1993. Assim mesmo, a partir do ano 2000 a concen-tração em gramas por litros foi sendo aumentada paulatinamente.Nesse contexto, destaca-se o caso colombiano que, com base numamultiplicação das doses e no incremento dos níveis de concentra-ção do ingrediente ativo glifosato mostra resultados de impacto

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pela diminuição que se produz “em questões de meses”, como dizo documento do Departamento de Estado.

Ainda se se aceitasse a relevância desse cenário, em que se põema comparar a erradicação manual e a aérea, a argumentação não éconsistente. Efetivamente, as cifras oficiais de diminuição de áreasde plantio se apresentaram como se toda a redução tivesse sidoobtida pela técnica de fumigação aérea.

Situação atual

De acordo com o último relatório de UNODC sobre a situaçãodos cultivos ilícitos na Colômbia, ao longo de 2003 a redução deáreas de coca atingiu a cifra de 15.731 hectares frente ao total daárea de coca (UNODC, 2003).

Como se assinalou, a relação imediata ao se defrontar com es-sas cifras é associá-las como um resultado relativamente exitosodas fumigações aéreas. Vejamos, no entanto, alguns elementos paracontrastar essa associação. Em primeiro lugar, vale assinalar que aredução obtida em 2003, como resultado da erradicação manual,foi de 4.000 hectares. Quer dizer que o obtido pelas fumigaçõesaéreas foi uma redução de 11.731 hectares.

O equivalente do fumigado ao longo do 2003 foi de 132.817hectares de coca, significando que para erradicar efetivamenteum hectare de folha de coca foi necessário fumigar 11,33 hecta-res. O que implica em termos de custos multiplicar por esta cifrao equivalente a cada hectare erradicado, calculado em US$ $700.Significa que um hectare menos de coca vale quase US$ 8.000,isto é, ao redor de 20 milhões de pesos colombianos. No marcodo Plano Colômbia, a dinâmica das fumigações teve um incre-mento significativo durante o período 2002 e 2003. Vejamos:

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Tabela 2 - Áreas de coca, Fumigações e Reduções efetivas

Ano BaseNo. de Ano de Áreas Redução

Hectares Fumigações Fumigadas efetiva

1999 160.119 2.000 58.073 + 3.170

2000 163.289 2.001 94.153 - 18.482

2001 144.807 2.002 130.364 - 42.736

2002 102.071 2003 132.817 - 15.731

Fonte: UNODC “Coca Survey 2003”, Viena junho de 2004.

Como é possível observar, entre os anos de 2002 e 2003 se en-contram as cifras anuais mais altas das aspersões aéreas. O fatocoincide com a ascensão de Álvaro Uribe Vélez à presidência (agostode 2002 a 2006) e sua política de fumigação compulsiva. De acordocom estes dados da UNODC, o ponto mais alto da diminuição efe-tiva de cultivos de coca se apresentou em 2002, quando esta cifraatingiu 42.736 hectares.

O paradoxo de 2003 é altamente significativo: justo no ano emque ocorre a maior fumigação de toda a história, têm-se resultadosbastante medíocres se comparados com o que sucedeu em 2002.Efetivamente, a diminuição de 2003 representa tão só 36,8% doerradicado efetivamente no ano anterior, apresentando, inclusive,uma cifra abaixo dos resultados de 2000 (18.482 hectares).

A explicação é muito clara: o considerado “êxito” das ações defumigações em 2002 está diretamente associado à grande vanta-gem que experimentou esta política ao centrar-se na área de maiorcondensação da coca, como efetivamente foi o caso do departamentoamazônico do Putumayo, que chegou a representar 40% da áreanacional de plantio em 2000, isto é, quando se iniciaram as ativida-des operacionais do Plano Colômbia.

Quer dizer que os desafios para a política de fumigações malcomeçam, e não muito bem, de acordo com os resultados de 2003.Efetivamente, poder-se-ia dizer que as altas cifras que acarretou a

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aspersão aérea em 2002 foram a oportunidade já conseguida e queos cultivos iniciam, a partir de então, um processo itinerante quenão vai repetir a alta concentração do departamento do Putumayoe que a política vai enfrentar sérias dificuldades nos próximos anos.

A incerteza se valida à luz do que está acontecendo hoje. Efeti-vamente, as novas características dos cultivos posteriores ao mo-delo Putumayo são:

1. A crescente atomização que se reflete na presença de cultivosem 23 departamentos frente a só 12 que existiam em 1999, naantessala do Plano Colômbia.

2. A conversão para modelos de pequena propriedade de 3 oumenos hectares.

3. A continuação de processos de plantios lineares mais do quegrandes acumulados.

4. O aproveitamento de plantios em parques naturais para o cum-primento da condição anterior, ocasionando, ao mesmo tem-po, um dos piores desastres ambientais pela devastação de zo-nas frágeis e importantes para a biodiversidade.

5. A inserção dos cultivos em zonas não marginais, dentro de áre-as mais integradas à nação como é a zona cafeeira. Ali a produ-ção ilícita se maneja com técnicas de associação de cultivos, oque impede um conhecimento real das áreas existentes.A isso se agrega o plantio de variedades que mostram um com-

portamento de resistência, como, aparentemente, acontece hoje. Istoé, o sucesso ou não da política não pode ser avaliada por seus re-sultados em relação às cifras comparativas ano a ano. Deve-se ne-cessariamente adotar processos avaliativos de médio e longo pra-zo que reflitam situações mais fidedignas. As exigências de resulta-dos de curto prazo, como se consolidou em instâncias de tomadade decisões em Washington e, inclusive no próprio Congressoestadunidense, estão conduzindo a percepções equivocadas pelofato de quererem mostrar diminuições de um ano para outro.

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De qualquer maneira, não se trata de provocar ofundamentalismo que está por trás da ratificação da atual políticade drogas e que se afirma em mecanismos associados, de maneirabastante desequilibrada, a favor do uso da força. A demonstraçãode um eventual fracasso a médio prazo, implicará para eles, colo-car sobre a mesa uma maior radicalização expressa na ameaça quese coloca em torno da possibilidade do uso do fungo fusaryumoxisporum ou o ensaio de lançar mão de novos e mais perigososprodutos químicos.

A articulação das drogas como problema de segurança, hoje

Uma síntese sobre a evolução do tratamento do problema dasdrogas sob o esquema da guerra fria e na situação atual, pode serassim descrita:

1. Desde 1988, o então presidente Bush (pai) assinalou que: “Alógica é simples... A via mais barata e segura para erradicar osnarcóticos é destruí-los em sua fonte... precisamos destruir cul-tivos onde quer que estiverem crescendo e pôr fora os labora-tórios, onde existam (ANDRÉAS E COL, 1991-1992, p. 56). Pormais de uma década o principal objetivo da guerra às drogasfoi a produção nos países andinos. Esta tese foi a que conduziufinalmente a militarizar a polícia destes países ou a criar uni-dades militares especializadas.

2. Nesse sentido, para a década dos oitenta e inclusive nos no-venta se apresentaram reiteradamente fricções e diferenças en-tre o enfoque dos Estados Unidos e da região. Este se conside-rava um dos fatores que influenciava no fracasso da estratégiade Washington para a área andina.

3. Hoje em dia, em nível da região, essas diferenças persistem,sobretudo nos casos da Bolívia, pela pressão das organizaçõescocaleras e, do mesmo modo, no Peru, mas não no caso colom-

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biano com o governo Uribe Vélez. Pela primeira vez na histó-ria das decisões antidrogas, conflui clara e plenamente o inte-resse de Washington e o interesse de Bogotá no marco da polí-tica de segurança democrática do atual governo.

4. Enquanto isso, no interior do Congresso dos EUA, um dos te-mas de maior controvérsia veio se dando entre a alternativa douso da força versus o desenvolvimento alternativo. A visão con-servadora e pragmática se afirma no uso da força para “soluci-onar” o problema. Posições mais moderadas reclamam ummaior balanço dirigido a fortalecer as iniciativas de desenvol-vimento alternativo. As fumigações desenvolvidas durante todaa década dos noventa até o início do Plano Colômbia mostra-ram uma tendência de re-plantio acima do nível das aspersõesaéreas. Com o Plano Colômbia se procurou resolver esse círcu-lo vicioso, sob o argumento de que não se contava até entãocom suficientes recursos que permitissem uma iniciativa demaior dimensão e sustentação.

5. O apoio dos EUA às decisões contrainsurgentes se justificaramaté antes do 11 de setembro, sob o argumento do obstáculo queofereciam as organizações armadas às tarefas antidrogas. Nes-se momento é legal a extensão dessa ajuda às ações“antiterroristas”.

6. Ainda que o tratamento das drogas como um problema de se-gurança apareça no final do conflito Leste-Oeste, é no períodopós-guerra frio, que se posiciona como tal e hoje evolui paraum cenário que terminou articulando-as como parte da lutaantiterrorista. Por sua vez, o tratamento do terrorismo com ouso dos sistemas de guerra que contêm um forte componentemilitar convencional dirigido a golpear as supostas retaguar-das territoriais, terminou por dar um impulso à re-militarizaçãoda guerra contra as drogas. Não obstante, cresce oquestionamento sobre caracterizações triviais desta complexaproblemática.

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7. Efetivamente, a ausência de diferenciações entre os sistemasem rede que caracterizam tanto o narcotráfico de hoje como osgrupos terroristas, e o tratamento de ambas as ameaças sobcritérios de guerra convencional é, para dizer o mínimo, umdespropósito que está tendo um alto custo. Assim mesmo, par-tindo do reconhecimento da alta dependência dos grupos ar-mados dessa economia ilegal, propõem-se questões sobre apertinência de estender o conceito de luta contra os grupos ter-roristas de alcance internacional (como Al Qaeda) a grupos in-surgentes que atuam numa guerra interna como a colombiana(como as FARC) e que carecem de uma ideologia multinacionale um acionar global.

ALGUNS ELEMENTOS DE CONCLUSÃO

Em primeiro lugar, a forte coincidência dos propósitos do Pla-no Colômbia dominado por Washington e a Política de SegurançaDemocrática do presidente Uribe Vélez apontam com clareza paragolpear as guerrilhas sob o reconhecimento comum da simbioseentre drogas e financiamento dos “terroristas”.

Mas, para além dessa intenção, permanecem como beneficiáriosos novos e desconhecidos grupos organizados do narcotráfico, pe-las razões que se incorporam no Quadro 1.

Em segundo lugar, as drogas, como parte da luta antiterrorista,estão gerando uma perigosa diminuição do reconhecimento dascausas sociais e econômicas da parte inicial do circuito das drogas.O Desenvolvimento Alternativo passou a articular-se à lutaantiterrorista dentro do Plano Estratégico do Departamento de Es-tado e da USAID3 .

Os altos custos sociais, ambientais e econômicos pelaimplementação desta estratégia são responsabilidades do governodos Estados Unidos e do governo colombiano. Por sua vez, os efei-

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Organização Leitura Modelo de combate (MC)

Observação entre o MC e o

tipo de organização

Conseqüências

FARC Grupo que não opera em rede, mas que mantém uma estrutura hierárquica.

Organização terrorista (inclusive, se argumenta, de alcance internacional).

Militarização das zonas de influência, aproveitamento da superioridade aérea. Busca-se golpear a cúpula.

De alguma maneira há correspondência entre as decisões de segurança e o tipo de organização

Golpear as guerrilhas em sua cúpula pode gerar um cenário de desordem e banditismo de ordem regional que se adaptará à sobrevivência dos grupos do narcotráfico

Grupos do narcotráfico Estrutura em rede

Criminalidade organizada. As organizações, enquanto tais, são menos relacionadas com a luta antiterrorista (Ex. lista de organizações terroristas).

Principal: Fumigação de cultivos. As extradições se dão sobre estruturas anteriores e conhecidas. Não se conhecem as atuais.

Nenhuma correspondência com a estrutura em rede.

Favorecidos pelo atual modelo de luta antiterrorista. O modelo de combate não os afeta. Empoderamento na Colômbia

tos sobre esses mesmos níveis pela articulação desta economia coma guerra, são da responsabilidade dos grupos armados. Cada ummaneja sua pauta e no meio de todos eles estão as comunidadescamponesas e indígenas. Estas geralmente são invisíveis e sobreelas recaem os efeitos das ações dos diferentes atores, agravando-se a crise humanitária com o fenômeno do refúgio e doconfinamento, a perda de segurança alimentar pelas fumigações, oenfraquecimento da organização pela guerra e, em geral, pondoainda mais obstáculos à perspectiva de futuro de seus integrantes.

Visto esse contexto, deveria ser desenvolvida uma abertura po-lítica e de segurança aos que queiram uma erradicação manual de

Quadro 1 - FARC e Narcotráfico frente aos modelos de combate antidrogas do Pla-no Colômbia

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cultivos de uso ilícito. Tal proposta pode ir na contramão dos inte-resses dos grupos armados, no entanto, o Estado careceu de vonta-de política para apoiar as comunidades que desejam comprome-ter-se com este tipo de alternativa. Sacrificam-se, assim, as comuni-dades em áreas sob controle insurgente lançando contra elas a fu-migação e a ofensiva militar.

O LADO OBSCURO DO PROBLEMA: AS TRANSFORMAÇÕESECONÔMICAS DO NARCOTRÁFICO NO CENÁRIO DA GUER-RA E SEU TRÂNSITO PARA A LEGALIZAÇÃO

O narcotráfico colombiano se posicionou através do aprovei-tamento da estratégia de privatização do uso da força, construindomecanismos de violência que contribuíram para desalojar as guer-rilhas de lugares estratégicos ou contendo a sua influência militaratravés de ações dirigidas a golpear a população civil que residenessas zonas controladas ou pretendidas pela insurgência.

Simultaneamente, o narcotráfico ocupou esses espaços atravésde mecanismos violentos de acumulação, onde se gera a lavagemde ativos através da compra ou posse de terras, procurando, aofinal do processo, uma legalização de seus interesses econômicosque permita sua consolidação como forças regionais na ordem po-lítica e de segurança.

A focalização do Plano Colômbia na região Sul, sobretudo emcomandantes das guerrilhas, tratados como substitutos dos cartéisgolpeados no começo dos noventa, facilitou o “empoderamento”destes setores. Por sua vez, a ausência de agilidade nos processos deextinção de domínio dos bens adquiridos e a falta de clareza sobre ouso dos recursos já apreendidos ao narcotráfico, desfavorecem a cri-ação de condições que inabilitem o território colombiano como lugarimportante para a continuidade do narcotráfico. Na atualidade, nãohá mecanismos que estabeleçam com transparência a responsabili-

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dade do narcotráfico (e dos grupos armados que participaram nessadinâmica) sobre o processo violento de expropriação de comunida-des indígenas, negras e camponesas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Jornais

“Narcocultivos cayeron 21%:CIA”, El Tiempo, marzo 23 de 2004.

Recebido em: julho de 2005Aprovado em: outubro de 2005

NOTAS1 Nota dos tradutores: As aspersões aéreas com produtos químicos venenosos visam des-

truir as plantações de coca e papoula e são também denominadas fulmigaciones, traduzidoneste texto por fumigações.

2 Uma análise sobre os envolvimentos das políticas contempladas no documento do Depar-tamento de Estado para a Colômbia, no documento preparado por Ricardo Vargas paraLutheran World Relief A “La Estrategia de Control de la Oferta de Drogas, los cultivosilícitos y el Desarrollo Alternativo: Recomendaciones de Política”, 1993, Bogotá. Versãopara o inglês R. Vargas “Strategy for Controlling the Drug Supply: Illicit Crops, and AlternativeDevelopment Policy Recommendations” em Journal of Drug Issue, Universidade da Florida.

3 United States Department of State and United States Agency for International DevelopmentAID: “Strategic Plan Fiscal Year 2004-2009”, Washington.

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Popayán: cuna de hidalgos,asiento de desplazados

Rubén Darío Guevara Corral

Antropólogo e Professor Titular da Universidad delValle. Cali. Colombia.

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Resumén. Em este artículo, el autoranaliza el proceso de desplazamientoforzado de la gente victimas de laguerra civil en Colômbia, para lascapitales de departamentos. Inves-tigando la ciudad de Popayán comoreferencia para su evaluación, afir-ma que la ciudad, sin embargo, noha alcanzado un grado muy alto deviolencia, las consecuencias de esteproceso alcancen las condiciones devida de la población.

Palavras Chave: desplazamiento,Popayan e violência.

Abstract. In this article, the authoranalyzes the process of displacementforced of the agricultural areas forthe urban areas of people reached forthe civil war in Colombia. Using thePopayán City as reference for itsevaluation, it affirms that the cityeven so has not reached a very highdegree of violence, the consequencesof this process reach the life'sconditions of the population.

Keywords: displacement, Popayan eviolence.

CORRAL, Rubén Darío Guevara

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EL PROBLEMA. INTRODUCCIÓN

En Colombia de un tiempo acá, se ha venido incrementandode manera por demás desconcertante, el fenómeno de la violenciay sus múltiples formas, tiene expresiones significativas en el in-consciente colectivo de las personas. Es que esa guerra irregularque se exterioriza en un enfrentamiento armado, sostenido entregrupos organizados que persiguen objetivos políticos diferentes,está atentando contra los más hondos principios de una sociedadque por no ser tolerante, golpea social, económica y psíquicamentea los sectores más deprimidos del país.

Una respuesta de ese accionar de las fuerzas guerreristas,llámense: paramiliatres, AUC, guerrilla o ejército regular, se obser-va en las diferentes expresiones que como masacres, asesinatos ysecuestros (desde enero de 1996 hasta abril de este año, 21.822 co-lombianos fueron secuestrados: El Tiempo 7-18-04), obligan a undesplazamiento forzado, que es esa huída de una población de cer-ca de 3 millones de personas (Codhes) que busca refugio y se obligaen aras de conservar su vida, a ubicarse en poblaciones, caceríos oen las ciudades capitales de departamentos. Así, se ha convertidoel desplazamiento en la causa principal del notable deterioro deldesarrollo humano en Colombia y de sus cambios demográficos

Esta guerra injusta y cruenta, ha propiciado también un dete-rioro ambiental y está atentando contra la calidad de vida de lapoblación en la medida en que por querer ejercer control político yeconómico sobre un territorio, se ha cambiado la estructura de lapropiedad de la tierra y por ende, la producción de cultivos, el usoy destino de los recursos naturales. En menos de 40 años se hareducido a la mitad el porcentaje de colombianos que vivía en elcampo.

Las necesidades del 50% de los municipios del país se hanincrementado porque no pueden proveer los recursos necesariosde agua, vivienda, energía, educación y salud. Hay una crisis soci-

Popayán: cuna de hidalgos, asiento de desplazados

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al y una amenaza a la producción de alimentos y a su comercio,pero en el fondo, ya se manifiesta un aumento de la miseria ante lafalta de recursos económicos de los productores y consumidorespara satisfacer sus necesidades.

Un ejemplo de esta situación general la encontramos en el de-partamento del Cauca (Colombia) y en especial, en su capital, laciudad de Popayán. Por ello, entender el fenómeno deldesplazamiento y sus resultados obliga a establecer esa relaciónentre departamento y su capital para así, tratar de explicar y enten-der esa realidad.

EL DRAMA

En los últimos años son varios los eventos de desplazamientoforzado por la violencia interna en todo el país. El departamentodel Cauca no ha estado exentos de ellos: masacres, tomas depoblaciones, secuestro y asesinatos por mencionar sólo algunos.Son los campesinos, afrodescendientes e indígenas, los másafectados (en el país son el 5% del total de desplazados). Esasmasacres y asesinatos crean el pánico entre la gente que huye o loshan obligado a hacerlo. Pero también de manera soterrada, el miedose inculca y las retaliaciones se perpetúan. No obstante estar senta-dos en la misma mesa de negociación Estado y autodefensas, seviolan los acuerdos y la política de “seguridad democrática” noparece dar resultados en lo social, por el contrario, la inversión mi-litar y el fortalecimiento de las medidas de seguridad se imponensobre las demandas de inversión social, agudizando la pobreza enel país.

Es dramática la realidad de fondo del conflicto colombiano porla degradación de las confrontaciones frente a un gobierno que aúnno tiene cómo proteger a sus víctimas, su asistencia y protecciónestá pendiente en muchos casos y en otros, no es lo suficientemente

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satisfactoria, así asegure el vicepresidente de la República que hahabido “importantes avances y logros en temas capitales como lareducción de todos los índices de violencia y del desplazamientoforzado” (El Tiempo, 5-27-04) y que gracias a la seguridad demo-crática este último se ha reducido en un 52%, y como complemen-to, el informe de la Consejería Presidencial para la Acción Socialdice que: “han retornado a sus lugares de origen 14.072 familiasdesplazadas por la violencia. De esos grupos familiares 1989 hanregresado en lo que va del año 2004 gracias a la concertacióngubernamental y a organismos internacionales y comunidades”.Pero en la realidad es que cada día, las informaciones de los mediosde comunicación muestran un panorama más aterrador, másdesesperante, pues son más los que se desplazan que los queretornan.

SITUACIÓN PANORÁMICA DE LA CIUDAD DE POPAYÁN

Nuestro referente analítico acerca de este fenómeno deldesplazamiento lo hemos referenciado en la ciudad de Popayán,capital del departamento del Cauca que en la época colonial fue lasegunda ciudad en el orden administrativo después de Santa fé deBogotá y uno de los centros de mayor importancia e influencia his-tórica del país. Cuna de una clase dominante de prominentespatricios que sobresalieron en todos los campos del saber, cuyasprofundas tradiciones históricas los mantuvieron por siglos comoabanderados por su contribución a obtener la independencia deEspaña, por moldear y consolidar la nacionalidad aportando ellos,los oriundos, su fuerza y su sabiduría para ir sentando las bases delo que sería la conformación del Estado nacional. Cuna de 12 presi-dentes y crisol de la independencia, con lazos familiares enraiza-dos en la hidalguía española, sustentaron su poder político en lasvastas posesiones de tierra que heredadas por tradición poseyeron

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y con ellas, el beneficio del poder y la aceptación de la subordinaciónhegemónica en las relaciones de producción sobre una fuerza detrabajo indígena que les permitió por muchos años, mantener esasextensiones de tierra y una propiedad sobre el territorio que sólovino a fracturarse en forma abrupta, en la década de los años 80.

No podemos hacer a un lado la situación del departamentoque hasta mediados del siglo pasado en el Cauca, mostraba cómola tierra había sido un referente primordial del conflicto y por ellola presencia de la insurgencia democrática de indígenas y campesinoen aras unos, de recuperarla y obtener el beneficio de la reformaagraria que pregonaba “tierra para quien la trabaja” y otros, demantener a toda costa sus propiedades. Los indígenas como prota-gonistas históricos, propietarios ancestrales de esos territorios deresguardos, han expresaron su descontento por las formas caducasy absurdas de esas relaciones de producción (las peonías) y así fuecomo en un determinado momento, se obligaron a confrontar alEstado por medio del alzamiento armado y en honor a uno de suslíderes más carismáticos: Quintín Lame. El hecho es que, una vezreinsertado y terminado el “ Grupo Quintín Lame” y llegados losacuerdos de paz, el rechazo a una guerra, que no es de ellos, se hamantenido y ha sido categórica y determinante su posición, sinembargo, el incumplimiento de los compromisos por parte des Es-tado, los ha obligado a realizar movilizaciones, ya sean marchas,tomas de carreteras y protestas urbanas, tanto en Popayán lacabecera municipal como en las poblaciones afectadas, comotambién a expresar, gracias a sus formas de organizacióncomunitaria, resistencias organizadas en sus localidades. Valgaanotar que en los municipios en donde se dio y permanece la luchapor la tierra son grandes expulsores de población.

Con este panorama general, queremos mostrar que la violenciaen el Cauca aún su forma particular de expresarse, es histórica y deallí se ha contribuido al desplazamiento de vastos sectores depoblación que llegan a la ciudad, que son de diversos grupos étni-

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cos y que tienen formas expresivas de acceder en el espacio urbanode manera diferentes. Lo que observa uno en el fondo es que estehecho,- el desplazamiento- , es como una acción abrupta que tieneque definirse por causas estructurales y que debe tener respuestasestructurales en donde se manifiesten la obtención de los derechosciudadanos y no la exclusión; la equidad política, social y económicaa través de acciones concientes y de conciliación, para larecuperación de los derechos humanos y las expresiones de vidasocial. Es que entender el desplazamiento es entender la naturalezadel conflicto armaedo, en la medida en que la dinámica de losconflictos regionales, los poderes locales y regionales tienen unafuerte incidencia en la dinámica general de la guerra. No es lo mismola guerra en Urabá que en el Cauca (ZULUAGA, 2004).

No obstante las solicitudes de la Procuraduría al Estado en elsentido de entregar protección a la población desplazada, de adoptarmedidas para garantizar la atención y el restablecimiento de losderechos de los desterrados, lo cierto es que hay todavía muchasfallas para acceder a estas peticiones.

ELEMENTOS A CONSIDERAR

En el Cauca si bien están los organismos institucionales quedeben proveer la atención, los recursos y la logística apropiada jun-to con las ayudas, no se ven. Popayán es un centro receptor depoblación desplazada de departamentos vecinos: Huila, Nariño,Caquetá y Putumayo especialmente y del mismo Cauca. Hoy elmunicipio se debate en una crisis institucional porque sus exiguosrecurso económicos no alcanzan ni siquiera para satisfacer las másmínimas necesidades de la población tradicional, menos la de losque diariamente están llegando como desplazados a su periferia yque consumen lo que hay en la ciudad. Clasificado en un categoríaeconómicamente baja y pignoradas sus arcas por los organismos

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prestamistas, no puede dar respuesta a esta problemática y por elcontrario, hoy se ha exteriorizado un descontento social que se hacemanifiesto en un aumento progresivo de formas delincuenciales yprotestas diarias en busca de solución por parte de una poblaciónque exige inmediatas medidas de atención para su miserable y de-primente situación.

La falta de un compromiso de la sociedad civil, de las entida-des gubernamentales y de sectores productivos, imposibilitan cons-truir soluciones efectivas y sostenibles. El problema se quiereinvisibilizar, la ciudad no parece percatarse de este problema ni delde los desplazados, los ignoran, incluso, los medios de comunicaciónque hacen alusión a ellos es para imputar y proyectar en ellos lasimágenes negativas de una situación generalizada de hechos deviolencia. Hay un vacío en la comunicación con el problemadesplazados y la ciudadanía.

Por otra parte, los desplazados que “llegan con una cobija ysus enceres domésticos bajo un brazo y en el otro, cargando a sushijos”, sin un nivel de formación más que el que les ha proveído laactividad agrícola, analfabetas y sin posibilidades de un trabajoestable por las mismas condiciones del municipio capital,contribuyen a incrementar sus dificultades y a aumentar suspenurias. Hoy, Popayán, más que ser la “cuna de la hidalguía naci-onal” es una ciudad de asiento de desplazados.

El desplazamiento a la ciudad, después de un proceso deperegrinaje recurrente en la búsqueda de mejores condiciones paravivir, obliga a los desplazados a que efectúe en esa díada lógica dedes espacialización - re espacialización a la búsqueda de identida-des y territorios culturales

Aunque existe un panorama ensombrecedor en la ciudad,quisiéramos como rescatar algunos elementos que de alguna for-ma si bien “afean” el espacio urbano, también han contribuido adinamizar una economía gracias a la informalidad de un comerciode los vendedores ambulantes, desplazados en su mayoría, como

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también al fortalecimiento de sus propias organizaciones y las quesin ánimo de lucro, luchan junto a este sector de población en todoslos campos para contribuir con ellos a buscar soluciones inmediatas.

Una tipología del desplazado se alcanza a vislumbrar en laciudad de Popayán, esa diversidad se manifiesta entre los indíge-nas que ocupan terrenos dispersos (como escondidos en la tramaurbana) y realizan actividades muy particulares pero mantienen elcontacto con sus organizaciones: el Consejo Regional Indígena delCauca, otra es la de los pocos afrodescendientes que llegaron delnorte y sur del departamento y están ubicados donde familiares yamigos y que están en tránsito hacia la ciudad de Cali, y otra es lade los campesinos que han hecho como sus propios reductoshabitacionales, asentamientos improvisados pero que existen,gracias a una solidaridad permanente.

Estos últimos se localizan en las Comunas 2 y 7, en la Loma dela Virgen y en la Vereda González que son sectores marginadosurbanos. En Las Guacas, cerca de la Penitenciaría de San Isidro quees un sector rural y en algunas de las antiguas invasiones oasentamientos post-terremoto como son: Carlos Pizarro, 31 deMarzo, Las Palmas, Santiago de Cali, Los Pinos, Belén y en Barriosya consolidados como El Guayabal, Tomás Cipriano de Mosqueray Pandiguando.

En esta forma se teje como un abanico de amplias presencias,de eventos futuros y posibles soluciones parciales a los efectos deuna guerra que no tiene visos de terminar prontamente, – algunosanalistas políticos dicen que por lo menos quedan diez años deconflicto – y que de alguna manera, desde la academia, es necesariaafrontarlos, previo intercambio de saberes, opiniones, metodologíasy demás complementarios que enriquezcan las pocas o muchasposibilidades que tiene el Estado por una parte y esta poblaciónafectada por la otra, para dar rienda suelta a sus aspiracionestruncadas.

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Pero también, se hace necesario empezar como a configurar ydefinir esa categoría de “desplazado” que tiene que estar en relacióncon el proceso de desplazamiento que no es probablemente exter-no sino que tiene unas dinámicas internas propias que requierenatención inmediata y especializada.

DINÁMICAS QUE SE PRESENTAN EN LA CIUDAD

Se dice que la ciudad es un sitio también de encuentros ydesencuentros, de ordenamientos pero de confusión, de caos y armonía,de conflicto y de paz. Vamos a ver entonces, como la leo yo.

Parto del hecho de que la relación entre los conflictos: político,social y económico, sin lugar a dudas se expresan en lo urbano,esta es una dinámica propia de la ciudad con desplazados, lossectores “nuevos colonizadores” de la población, luchan porquedarse y “los viejos históricos”, por sacarlos, allí está el conflictoy su solución no puede ser otra que el control que debe ejercer elEstado sobre las causas estructurales del mismo.

Si esta premisa se acepta, en aras de contribuir a la reflexión,empecemos entonces a descubrir lo que ocurre en la relación entrela ciudad y desplazamiento, primero desde el punto de vista de losdesplazados y luego desde el punto de vista de la ciudad.

Desde el punto de vista de los desplazados

Las cifras del desplazamiento individual para el Cauca son lasde 6.430 hogares recibidos con una población de 30.625 recibidas yha expulsado 8.225 hogares con un total de 39.617 personas.

Para Popayán son las de 3.278 hogares recibidos con un núme-ro de 15.116 personas. Con respecto al tipo de desplazamiento, harecibido Popayán 96 con un total de 178 personas a junio 15 del2004 (RSS, 2004).

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Al llegar desorientados a la ciudad, los desplazados empiezana buscar un sitio para ubicarse. Unos van a los rincones del centro yallí empiezan a pernoctar, buscando que la mirada de los transeúntesproduzca la lástima necesaria y así obtener alguna limosna en dineroo donación de alimentos de consumo directo. Como “pobres”, esuna situación que de todas maneras daña su imagen, deteriora laautoestima e influye en su personalidad. Por lo general, no es pormucho tiempo que duran allí pues las inclemencias del tiempo o lapolicía, se encargan de desalojarlos prontamente.

El deambular sigue y si alguna persona caritativa les brinda demanera transitoria albergue, lo aceptan, pero tampoco solucionasu problema, mientras tanto, van conociendo el nuevo espacio yenterándose de las instituciones a donde pueden recurrir en buscade una ayuda más propicia. Cuando acuden a ellas, después demuchos meses de ambular en la ciudad, sus esfuerzos en muchoscasos se ven truncados pues no son reconocidos jurídicamente comodesplazados y por lo tanto, no son tenidos en cuenta por los pro-gramas de estabilidad socioeconómica.

Frente a esto, la organización parece ser una respuesta a lasituación, unidos con los destechados, buscan por diferentes medioso acciones de hecho a hacerse reconocer en aras de obtener viviendaque es lo principal y reciben la solidaridad de algunos gremios queles facilitan ocasionalmente, ayuda en alimentos o medicinas. Dereconocer son las actividades que realizan algunas ONG quecontribuyen para mejorar su situación proveyéndoles formación yorientación o impulsándoles a realizar acciones de gestión anteorganismos locales nacionales o extranjeros.

Las organizaciones de desplazados en Popayán, han sidoexiguas y poco han perdurado, tal ves por cansancio o por no en-contrar en ellas lo esperado, no obstante una y la principal: “LaAsociación de destechados y desplazados” se ha mantenido y seha creado una conciencia, una identidad colectiva, tanto al interiorde la organización como fuera de ella y con la comunidad por las

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acciones de hecho que han adelantado. Sin embargo, pareceventilarse un relativo desinterés en el futuro en algunos de losmiembros dirigentes que manifiestan las dificultades para fortale-cer la organización que a veces tiende al aislamiento.

La qué si tiene más consistencia, coherencia y propiedad porsu significado, es el CRIC, el Consejo Regional Indígena de Cauca,que reúne a los indígenas pero cuyos patrones referenciales no sonlos de dejarlos en la ciudad sino de retornarlos a sus parcelas yresguardos mientras tanto, les brinda la ayuda solidaria requeriday la asistencia social comunitaria.

Es para mi de singular importancia la manera como losafrodescendientes desplazados han aportado cohesión social a susraíces, fortaleciendo las redes familiares y la reconstrucción delentramado del parentesco por línea materna que es lo propio de sucultura.

Pero en general, la visión que tiene el desplazado que llega a laciudad es la de que ella le permite mimetizar su identidad y le damejores oportunidades de supervivencia económica. Se presentaentonces la ciudad como un lugar de refugio para la familia, sinembargo, la complejidad urbana produce en el desplazado un cho-que emocional difícil de superar, le ocasiona una serie de desajustesque se traducen en comportamientos erráticos, en frustraciones porno encontrar empleo ni los medios necesarios para satisfacer susnecesidades inmediatas. El liderazgo que de alguna maneramostraba el hombre o la mujer antes de desplazarse, ahora tiende adisminuir o desaparecer, pues ocultar su identidad es una de lasformas de preservar su vida, su integridad física y proteger a sufamilia.

De alguna manera los desplazados aportan a la ciudaddirectamente la mano de obra “barata” para realizar muchas de lasactividades que les son permitidas, ya sea en el rebusque como ven-dedores de unas mercancías que de alguna manera activan laeconomía de la ciudad, ya como trabajadores temporales de la

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construcción mientras las mujeres trabajan al día, en el serviciodoméstico, en las casas de familia de la ciudad, o impulsando susmicroempresa caseras.

Pero de singular relieve es que ellos y gracias a ellos, la ciudadse obliga a entender el conflicto armado, a “meterse en el cuento”,a untarse de una realidad que aunque no los ha tocado, debendejar de hacer caso omiso de ella y por otra, que el Estado y susorganismos están de alguna manera, dando y sentando normas pararesponder al desplazamiento. Esta realidad inobjetable ha llegadoa la ciudad y pretende quedarse.

Desde el punto de vista de la ciudad

Considero a la ciudad, como un espacio físico y social,construida para la administración del poder político a dondeconvergen diversas expresiones culturales que buscan combinarseen la búsqueda de una identidad para definirla.

Es por eso, que los diferentes organismos que ha delegado elEstado para la atención a los desplazados como la Red deSolidaridad Social (RSS) se constituye en las esperanzas frustradasde muchos desplazados que recurren a ella en busca de ayudahumanitaria. Los desencuentros producen traumas psicológicos, esque la Red no los reconoce jurídicamente cuando el hecho queprovocó la huída no es verdadero y lleva más de un año en esacondición. Además, porque se niegan a declarar su condición pormiedo, los hechos que provocó el desplazamiento o a señalar elgrupo agresor porque no lo reconocen o no saben explicar qué pasóo sencillamente, no tiene la confianza para decir lo que piensan,entonces, los funcionarios, no los reconocen como desplazados.

Como el Sistema nacional de atención a la población desplazada(Snapd), no funciona como debe ser y no permite su rápido acceso,así que cuando acciona, las soluciones duran mucho tiempo y ya lapoblación se ha refundido en la ciudad. Se reivindica en Popayán,

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la asistencia de la Cruz Roja Internacional y la del Instituto Colom-biano de Bienestar Familiar.

Pero algo que ha comenzado a manifestarse en la ciudad es ladelincuencia común, casos de hurto y atracos callejeros; consumo yventa de estupefacientes, señalan a los desplazados y en especial, alos jóvenes, como los causantes de estos hechos, bien pueden serloo no, lo cierto es que es preocupante el número de personas víctimasde desplazamiento que se encuentran en la cárcel.

Aún en Popayán, no se ha alcanzado el grado máximo deconflicto violento, algunas hipótesis podría arriesgarse; una seríaporque la ciudad es pequeña y no da cabida para que los gruposinsurgentes accedan a un espacio como territorio seguro, además,porque el comercio del narcotráfico no tiene allí mercado amplio,Popayán tal ves es un paso hacia otras ciudades; tampoco existenuna industria fuerte y son muy pocos los propietarios- empresariosde bienes materiales que sean representativos. El desempleo campeaen toda la ciudad y la economía informal mueve las transaccionescomerciales.

La diferenciación espacial en Popayán se dio con el terremotodel 31 de marzo de 1983 y aún existen esos barrios “piratas”, osubnormales ocupados por esa población de migrantes, proceden-tes de varios municipios del departamento y de los vecinos quellegaron en busca de hacer una vivienda y que se aprovecharon deesa circunstancia, se acomodaron en los denominadosasentamientos que con el correr de los años, de alguna manera, hanhecho reconocer estas acciones de hecho y hoy solicitan al gobiernolocal, la infraestructura de servicios públicos. Estos fueron comolos “primeros nuevos pobladores urbanos”, que llegaron sin teneruna pertenencia de ciudad, se acomodaron como mejor pudieron yempezaron a hacer vida comunitaria al amparo de organismos delEstado que les dieron una relativa rápida solución a sus necesidadessentidas.

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La situación de conflicto en el departamento que es considera-do como unos de los más violentos y en donde permanecen yaccionan las fuerzas de la insurgencia armada: FARC- ELN y de lasAutodefensas Unidas de Colombia (junto con ejércitos privados deterratenientes) en territorios ocupados principalmente por comu-nidades indígena, es diferente a la de los otros departamentos en elpaís. Es una lucha por acceder a establecer territorios que sirvan decaminos de comunicación, para el comercio de la coca y la amapola,esos grupos han incidido de una manera tal que han violentado losresguardos indígenas y con esto, las formas tradicionales de laorganización indígena, asesinando a los gobernadores de cabildosy dirigentes comunitarios, así como a sus médicos tradicionales.Para responde a esto la organización indígena ha planteado comoya se mencionó, las formas de resistencia pacífica que de algunamanera buscan el respeto a sus comunidades y que no es una accióncontrainsurgente, sino que se hace en la perspectiva de recuperar,ejercer el control del territorio, así como recuperar las formastradicionales, propias de su gobierno, convivencia e identidad cul-tural.

En la lógica de la ciudad, su referencia en el imaginario colectivofrente al desplazado gira en sentimientos encontrados deconmiseración y condolencia, en el rechazo y el repudio. Se percibeen la ciudadanía el astigmatismo, el recelo y la prevención en lamedida en que son un problema para la ciudad. Tratados como“pobres urbanos” no se les reconoce su condición de víctimas de laviolencia.

Es que el desplazamiento debería ser visto como un procesodinámico en el que las personas desplazadas adquieran nuevas ideasy conocimientos a través de diferentes en su desplazamiento

Por último valdría agregar en este acontecer de la globalizaciónque nos ha traído estos “problemas”, que las diferencias que se nospresentan, deben ser respetadas por cuanto ellas son las expresionesque dimensionan las nuevas ciudades colombianas y para lo cual

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debemos seguir preparándonos en estos dos últimos años que faltandel cuatrienio presidencial del doctor Álvaro Uribe V.

A manera de propuesta, insisto en el diálogo con losdesplazados así como con los actores en conflicto para que poda-mos tener un sitio en donde realizar nuestros sueños y hacer posiblesus y nuestras esperanzas de vida.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em: janeiro de 2006Aprovado em: março de 2006

Plantios ilícitos no Brasil: notas sobre aviolência e o cultivo de cannabis no

polígono da maconha

Paulo Cesar Pontes Fraga

Sociólogo e Professor do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas daUniversidade Estadual de Santa Cruz

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Resumo. O presente artigo aborda aquestão do plantio de maconha naregião do Submédio São Francisco,no Nordeste brasileiro. Analisandoaspectos históricos e das relações deagentes envolvidos diretamente eindiretamente no cultivo de cannabissativa, argumenta como a repressãoà atividade atinge mais decisivamen-te os trabalhadores rurais.

Palavras chaves: Violência, Nordes-te, Maconha e Drogas.

Abstract. This article approaches thequestion of the marijuana plantationin the region of the Submédio SãoFrancisco, north-eastern Brazilian.Analyzing historical aspects andrelationships social actors in theculture of cannabis sativa, it arguesas the repression to the activitydecisively reaches the agriculturalworkers decisively.Key words: Violence, north-easternBrazilian, Marijuana and Drugs

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INTRODUÇÃO

O investimento acadêmico na complexa análise da questão dasdrogas ilícitas no Brasil tem se efetivado, essencialmente, em duasdireções. A primeira engloba os estudos dos denominados efeitosde determinadas substâncias psicoativas sobre os usuários (Carlineet all., 2004; Carline e Napo, 2003; Gálduroz et all., 2005; Mastroianniet all., 2005) e, conseqüentemente, suas implicações nas relaçõessociais. A outra frente abarca a compreensão das formas de organi-zação criminal produzidas pelo comércio varejista ilegal de drogasem grandes cidades, sobretudo, no Rio de Janeiro, e seus efeitossobre o processo de socialização na delinqüência e no aumento dastaxas de homicídios (Zaluar, 2004, 1994, 1985; Misse, 2002, 1999).Pode-se, não obstante, ainda, identificar outras frentes de investi-gações científicas realizadas, como aquelas que buscam compreen-der o processo de legalização no mercado financeiro do dinheirooriundo do tráfico de drogas e a formação de redes criminosas nopaís para a “lavagem de dinheiro” (Osório, 2002, 1997, 1996 a, 1996b;Minguardi, 1998a, 1998b) e outras focadas nos usos ritualísticos erecreativos de substâncias psicoativas (MacRae,2004, 2001;). Essasduas últimas linhas, contudo, ainda que de importância basilar parao aprofundamento e a ampliação do conhecimento sobre a temáticae contando com estudos de extrema relevância e profundidade ana-lítica são ainda bastante incipientes. A produção de pesquisas e osdebates produzidos encontram-se em patamares diferenciados, notocante ao número de estudos e de abordagens, quanto às duasprimeiras direções apontadas anteriormente.

As orientações desses estudos nas duas primeiras frentes po-dem ser melhor entendidas pela análise do impacto destas ques-tões no cotidiano das principais cidades brasileiras. Ao serem con-sideradas agravo de saúde e complicador das políticas de seguran-ça pública, a questão da problemática do uso de substâncias consi-deradas ilícitas e de seu comércio varejista atrai investigadores e

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investimentos no sentido de maior entendimento do fenômeno ena busca de soluções para atenuar as suas conseqüências. Nessadireção, os estudos buscam, também, aprofundar questões referen-tes ao sentido que a própria criminalização do uso, do comércio eda produção de determinadas substâncias psicoativas têm repre-sentado para a sociedade brasileira e, em geral, para o mundo.

Pesquisas reconhecem, independente das diferenças de aborda-gem ou de suas orientações teóricas, ser o Brasil um importante con-sumidor de substâncias psicoativas consideradas ilícitas, como a co-caína1 , maconha, ecstasy, e possuir um comércio varejista violento,cujas conseqüências têm atingido importantes instituições, como aescola, as relações de vizinhança, tem ceifado vidas e incrementadonegativamente indicadores sociais e econômicos. Como observaZaluar (1999), os estudos sobre crimes e violência aumentaram apartir da década de 1990 ao compasso do aumento das taxas de ho-micídios e de crimes. Deve-se reconhecer, todavia, que a faceta vio-lenta das drogas no Brasil é conseqüência de elementos próprios denossa formação social que muitas vezes não podem estar atreladosao negócio das drogas de consumo proibido.

Existe, contudo, uma faceta da questão das drogas no Brasilainda pouco estudada e com investigações preliminares carentesde maior aprofundamento e de investimento, principalmente noreferente aos estudos sócio-antropológicos. Trata-se da violência edas relações oriundas do cultivo de plantas consideradas ilegaispara o consumo, como é o caso do plantio de cannabis sativa .

O baixo investimento em investigações nesta temática pode serexplicado por diversos motivos: a não consideração do Brasil comopaís produtor de plantas de consumo proibido; as dificuldades deinvestigação advindas dos empecilhos do trabalho de campo pelaespecificidade da atividade ilegal, fator restritivo a uma maior apro-ximação entre pesquisadores e pesquisados, entre outros.

Nos últimos anos, contudo, começam a surgir reflexões volta-das para: a compreensão da dinâmica do plantio de maconha no

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Brasil, focados, notadamente, na representação deste plantio comoalternativa econômica em regiões sem uma política agrária defini-da; as novas relações sociais oriundas da institucionalização do plan-tio e; a violência que envolve este cultivo em algumas localidades(Iullianeli, 2000; Ribeiro, 2000 e Fraga, 2003, 2000, Iulianelli, Fraga,Chagas e Lisa, 2005). Estes estudos ainda se ressentem de maioraprofundamento e focalização. Restringem-se, em grande parte, aoplantio no chamado Polígono da Maconha, região com a maior con-centração deste tipo de cultivo no país.

A região do Polígono da Maconha é, reconhecidamente, aque-la que apresenta a área de maior extensão de plantio. Estaconstatação, contudo, não desconsidera a existência de outras regi-ões no Brasil onde se concentram parcelas significativas de planti-os como em municípios no Estado do Maranhão, de Mato Grossodo Sul, parte de Minas, interior de São Paulo. Nota-se, nos últimosanos, a dispersão de plantios em áreas até então inexistentes, devi-do à maior repressão no Polígono.

Apesar da existência de plantações em outras partes do Brasil,a produção nos municípios do Baixo e Submédio São Francisco2

tem se destacado pelo alto volume. Outro elemento a ser realçado éa antiga presença da planta na região, embora o seu cultivo emgrande escala seja um evento mais recente voltado para o mercado.As conclusões, mesmo parciais, às quais os estudos sobre a temáticano Polígono da Maconha têm chegado não podem, entretanto, sertransportadas para outras realidades no país, onde, igualmente,cultiva-se maconha. Fatores históricos, culturais e estruturais tor-nam a plantação da diamba nesta região específica no sentido daconstrução de determinadas relações entre atores envolvidos ounão no plantio.

Este artigo pretende contribuir para o incipiente debate acercado aprofundamento do conhecimento das relações estabelecidasentre atores diferenciados envolvidos direta ou indiretamente como plantio de cannabis sativa na região denominada Polígono da Maco-

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nha ou, como é preferível nomear, evitando-se estigmas, a região doBaixo e Submédio São Francisco. As reflexões aqui engendradas sãoprovenientes: da experiência do autor em trabalhos na região há dezanos e mais, recentemente, de um trabalho experimental realizadono ano de 2006 para subsidiar a feitura de um projeto aindainconcluso; participação em dois levantamentos sobre a situação dosdireitos humanos em trabalhos desenvolvidos junto com ONGs eorganizações sindicais; uma pesquisa sobre a situação dos jovens e oplantio de maconha com recursos do Ministério da Justiça.

Este trabalho, portanto, busca refletir experiências de investi-gações e reconhece a especificidade e diversidade da região. Deoutra maneia, compreende como a questão do plantio envolve ato-res diferenciados e é capaz de proporcionar institucionalidades apartir de práticas que consolidam por meio de seu ilegalismo. Paramanter o anonimato das pessoas e de organizações que prestaramdepoimentos, os nomes, quando citados, são fictícios, evitando quesua revelação implique em possíveis problemas de segurança.

ANTECEDENTES DA PRESENÇA DA MACONHA NA REGIÃO

O denominado Polígono da Maconha abrange uma vasta re-gião, localizada no entroncamento de quatro estados da federação:Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Recentemente, com a des-coberta de plantações da erva na Chapada do Araripe, a PolíciaFederal também tem considerado o Ceará como pertencente à re-gião pela sua proximidade. Originalmente, contudo, cidades doCeará não estavam contabilizadas na geometria do Polígono.Corresponde a uma ampla área de aproximadamente 40.000 m²,metade dela situada em Pernambuco. O número de cidades varia,segundo o órgão que a contabiliza, mas a cifra situa-se entre 20 e 30municípios. Cidades como Orocó, Cabrobó, Belém do São Francis-co, Salgueiro e Floresta se destacam como locais onde são encon-

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tradas significativas áreas de cultivo de maconha. Salgueiro se no-tabiliza tanto por sua importância como município, onde há ex-pressivas plantações, quanto por sua localização estratégica, atra-vessado por quatro importantes rodovias que o conectam a outrosestados do Nordeste, condição fundamental para o escoamento daprodução local.

A região é reconhecidamente a maior produtora da planta nopaís. Dados da Polícia Federal sobre a atuação do órgão naerradicação de pés de maconha no ano de 2005, indicam que dos1.544.680 de pés destruídos em ações, 1.413.965 (91,53 %) estavamlocalizados na região Nordeste e a quase totalidade no chamadoPolígono da Maconha.

Ainda, segundo números do órgão e de informações obtidascom pessoas envolvidas em elos diferenciados da rede de plantio eescoamento do produto, a produção local está voltada, pratica-mente, para o abastecimento dos Estados do Nordeste,notadamente, Pernambuco, Ceará e Bahia. A maconha produzidano Submédio São Francisco não se destina, pelo menos atualmen-te, às principais cidades consumidoras do país, como Rio de Janei-ro, São Paulo e Porto Alegre. Alegam-se dois motivos para que issonão ocorra: a melhor qualidade da maconha produzida no Paraguai,que se dirige a estes mercados maiores, com um teor mais signifi-cativo de THC3 , e a longínqua distância a ser percorrida pelo pro-duto produzido no Polígono e que deve ser escoado em vias queapresentam péssimas condições de tráfego, aumentando o custo eo risco de apreensão da droga.

O Paraguai é considerado o principal abastecedor do mercadode cannabis sativa do Cone Sul (Gallardo, 2006). Com um consumointerno baixo, condições excelentes para a plantação da erva, quepropiciam à planta condições de alcançar o tamanho de até 3 metrosde altura, quando a média, geralmente, se situa em metro e meio,desencadeando uma elevada produção, possibilitou a queda dopreço e o aumento de sua diversidade. No país, pode-se encontrar

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a maconha mentolada, a denominada manga-rosa (com mel) e atradicional. Fala-se que a diversidade da cannabis paraguaia é oriun-da da prática de manipulação genética, mas não há comprovaçãode tal fato. Acredita-se que sejam de nacionalidade brasileira osprincipais produtores do país. Os cultivadores do país vizinho sãoos principais fornecedores para Argentina, Chile e Uruguai.

O Brasil possui uma produção considerável de maconha, masinsuficiente para abastecer a demanda nacional (Gallardo, op. cita-do). Neste sentido, consideráveis proporções da maconhaconsumida no sudeste e do sul do país vêm do Paraguai. A maco-nha paraguaia entra no Brasil pelo Mato Grosso do Sul, pela cidadefronteiriça de Ponta Porã e por Dourados, proveniente de PedroJuan Caballero e Capitán Bado. Proporção considerável de maco-nha ingressa no país vem pelo Rio Paraná, cuja boa navegação (ecorrupção) facilita a entrada. Segundo estimativas da Polícia Fede-ral brasileira, o kg da maconha em Capitán Bado, no lado paraguaioda fronteira, tem preços variados entre R$ 15,00 e R$ 30,00. Na ci-dade de Dourados, no Estado do Mato Grosso do Sul, a mesmaquantidade é encontrada entre de R$ 150,00 e R$ 200,00. Na capitaldo Estado, Campo Grande, vai R$ 200,00 a R$ 250,00. Na principalcidade do país, São Paulo, dez gramas do produto são avaliadosem R$ 5,00 (Polícia Federal, 2005).

Em 1997, por ocasião do trabalho da Comissão Externa da Câ-mara dos Deputados, que resultou no Relatório “Violência noPolígono da Maconha”, aventou-se a possibilidade de a produçãoregional de maconha estar atrelada a ramificações com o grupo cri-minoso Comando Vermelho, do Rio de Janeiro, devido à prisão, emSalgueiro, do traficante conhecido como “Ostinho do Fubá”, quese passava por comerciante, tendo, inclusive, conquistando a sim-patia das pessoas locais, tendo seu nome indicado para compor oLyons Clube da cidade. Nada se pôde comprovar, entretanto, a res-peito desta ligação. Ainda que o envolvimento de grupos crimino-sos do sudeste do país com a produção regional da erva fosse pos-

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sível, este fato não indicaria a possibilidade da maconha da regiãose destinar aos grandes centros consumidores do país. A hipótesemais viável seria a diversificação do negócio destes grupos crimi-nais na região, mantendo a produção para o mercado para o qualsempre se destinou.

A CPI do Narcotráfico, implementada pela Câmara Federal,em 1999, identificou, como veremos mais a frente, que em municí-pios do Submédio São Francisco, como Floresta e Salgueiro, as ri-xas entre famílias, o envolvimento das mesmas com atividades ilí-citas e de grilagem de terra e os conflitos históricos, migraram parao plantio de maconha, quando esta atividade econômica tornou-sepossível, rentável e alternativa. O envolvimento de políticos dosexecutivos municipais, juízes, deputados, vereadores e policiaisconstitui-se elemento fundamental para que a atividade de plantioganhasse contornos violentos.

Registra-se a presença de cannabis na região há bastante tem-po. Apontamentos sinalizam para a plena adaptação da planta àscondições climáticas locais, e a existência de uso coletivo e/ouritualístico da maconha. Burton (1869), em trabalho exploratórioàs margens do Rio São Francisco, no século XIX, identificou como oclima e a vegetação eram propícios para o seu cultivo. O explora-dor inglês, entretanto, referia à possibilidade de plantações visan-do à produção de tecidos, a partir da utilização das fibras de câ-nhamo, produto bastante apreciado pelo mercado e largamenteutilizado na época.

Mais recentemente, Pierson (1972), em trabalho desenvolvidopara o governo brasileiro na década de 19504 , descreve situaçõestanto de uso da cannabis sativa em determinadas localidades, comode plantio às margens do Rio em, pelo menos, cinco localidades.Pierson, na verdade, refere-se a cidades do Baixo São Francisco:

O uso de maconha em Passagem Grande parece constituirsempre uma experiência social, contudo, desde que os habi-

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tantes aparentemente a fumam apenas em grupo. Um círcu-lo, ou “roda”, é formado, passando o cachimbo de mão emmão. À medida em que o indivíduo passa-o à pessoa ao seulado, ele ou ela, diz: “Ajoie, Marica!5 ” cantando então umacanção, conhecida como “lôa”, em louvor da maconha. Emuma roda observada pelo nosso pesquisador6 oito pessoasparticiparam. Cada uma delas puxou três ou quatro vezes epassou a marica ao vizinho, dizendo “Ajoie, Marica!”, fa-zendo em seguida sua louvação.

Diz-se na localidade, que o uso da maconha produz euforia,tagarelice, “vontade de dançar”, e, quase sempre, fome in-tensa. Concluída a roda observada pelo pesquisador, o equi-valente a um samburá de camarão foi comido pelos oitomembros do grupo (Pierson, 1972:50-51).

Em pesquisas e visitas à região , quando indagou-se a morado-res, trabalhos rurais não envolvidos com o plantio de maconha eoutros atores locais se tinham informações sobre o uso tradicionalda maconha, as respostas geralmente eram negativas. Fala-se quena região sempre houve plantio, mas a atividade era destinada àvenda, no entanto, não se soube precisar exatamente há quanto tem-po, ou seja, se há mais de 30 anos ou não. Uma importante lideran-ça religiosa de Salgueiro, em entrevista ao autor deste artigo, disseque há cerca de vinte anos atrás era possível observar plantios emgrandes áreas próximas às principais rodovias da região, como emCabrobó, Orocó e Salgueiro. Tinha informações, já nesta época, doplantio dirigir-se aos principais mercados consumidores da regiãoNordeste e de outras regiões do país. As constantes operações daPolícia Federal e da SENAD - Secretaria Nacional Antidrogas, en-tretanto, segundo sua avaliação, levaram os plantadores a tomarmaiores precauções e medidas visando à proteção da atividade. Pas-saram a cultivar em áreas de caatinga e nas ilhas fluviais do RioSão Francisco. O mesmo informante declarou, ainda, nunca terouvido falar de consumo tradicional/ritual de maconha na regiãoe que, se algum dia houve, não existiria mais.

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Nos deslocamentos pelas estradas da região, pôde-se observarpor duas vezes a venda de aguardente com folha de cannabis curtindoem seu interior. Quando indagados se era uma forma de consumir acachaça muito apreciada na região, a resposta foi que era comum oconsumo da bebida naquela forma. Entretanto, nunca se observou,tanto em botequins quanto em casas de pessoas consumidoras deaguardente, aquele tipo de consumo, nem nunca se ouviu falar, atra-vés de outros informantes, desta forma de consumir a cannabis. Prova-velmente, a bebida somente deva ser vendida nas estradas para even-tuais consumidores ou o seu uso é bastante restrito ou reservado.

Pierson (1972) cita uma forma de consumo de maconha mer-gulhada em líquido, que seria comum na região e de seu consumogeneralizado entre os setores populares.

Na área em torno de Passagem Grande é geral o uso da ma-conha entre as classes mais baixas da população. Não se co-nhece membro da elite que a use. Conta-se no local que amaconha foi, de início, trazida para o Brasil pelos escravosafricanos, presumidamente de Angola, desde que é conheci-do popularmente na localidade como “fumo de Angola”.Embora, no Sul, a maconha seja usada sorrateiramente sob aforma de cigarros , em Passagem Grande é fumada com umaespécie de narguilê primitivo, composto de uma garrafa co-mum, de boca estreita, cheia de água e o canudo do cachimdode maconha, conhecido como “Marica”, mergulhado no lí-quido. As sumidades floridas da maconha são colocadas nofornilho de barro do cachimbo e acesas com um fósforo. Ofumo é “lavado”, dizem os moradores, pelo reservatório deágua antes de chegar à boca do fumante (Pierson, 1972: 95).

Pernambucano (1937), ao realizar estudos e pesquisas sobre amaconha em Recife, relata o seu uso bastante freqüente nos setorespopulares, em ocupações laborais como barcaceiros e jornaleiros eentre indivíduos situados nas franjas da marginalidade como ma-landros e meretrizes. Alguns trabalhadores faziam uso da diambapara aliviar os sofrimentos da profissão, do duro desempenho diá-

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rio de suas atividades. Narra, ainda, o autor, serem os barcaceirosos principais importadores da erva para a capital pernambucana,pois revela, curiosamente, que na época Pernambuco possuía umaplantação diminuta. A maconha consumida na cidade vinha prin-cipalmente de Alagoas e Sergipe, obtida de “velhas que vivem deplantal-a (pág.191)”. Embora não faça nenhuma menção direta, emseu texto, sobre de que parte especificamente destes estados viria oproduto, é bastante provável que tivesse sido trazido das regiõesdo Baixo e/ou do Submédio São Francisco.

Objetiva-se, ao trazer para o debate a questão da presença damaconha na região e da possível existência de um tipo de consumotradicional da erva, considerar a possibilidade de uma experiênciaanterior do plantio, que aumentou ao compasso de uma demandade mercado propiciada, entre outros fatores, pela proibição do uso.Ou seja, havia plantios anteriores, mas que se incrementaram nasúltimas décadas por uma procura maior pelo produto no mercadodos Estados a que se dirige. Ainda que não seja possível afirmar aocorrência de uso tradicional disseminado da erva na região, osestudos anteriormente citados parecem evidenciar que na regiãohavia uma relação de determinados grupos e atores com um con-sumo coletivo em localidades específicas.

Uma questão, contudo, que parece se evidenciar é a perma-nência de plantio há mais de um século. Pierson (1972) já relatava,em seus apontamentos, como às margens do rio São Francisco nosanos de 1950 já era possível observar plantações de cannabis, nosquatro Estados, cujos municípios compõem as regiões do Baixo edo Submédio São Francisco, e acusava o comércio clandestino daregião para outras cidades do sudeste do país e para Salvador. Outroelemento evidenciado pelo antropólogo americano diz respeito àbaixa repressão policial ao plantio. Este dado, somado às informa-ções que o autor deste artigo pôde obter junto a atores locais, pare-cem evidenciar o fato de que a repressão dos órgãos policiais só seamplia no final dos anos 1980 e 1990.

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A maconha, embora seu plantio seja proibido por lei, é culti-vado clandestinamente em Passagem Grande e, sabe-se, nasvizinhanças de quatro outras cidades às margens do rio, nomesmo Estado, bem como na outra margem, no vizinho Esta-do de Sergipe e em dois outros Estados. É tomado cuidadomenos para evitar a polícia do que possíveis portadores do“mau olhado” (ver Doença e Seus Tratamentos) que segundose diz, “meramente andando entre as plantas podem fazê-lasmurchar, tão sensíveis são elas a tal influência”. Depois que assumidades ou bolotas ficam floridas, são colhidas, secadas, evendidas em pacotes de 100 gramas. Um barbeiro local, rece-be-os de um município vizinho, levando-os a uma cidade rioacima onde, segundo se diz, são vendidos nos navios quepartem para o Sul a fim de serem revendidas, especialmenteem Salvador, Rio e Santos. Como contrabando, as flores sãomisturadas com os galhos da planta (Pierson, 1972: 457).

A REGIÃO E O AUMENTO DAS ÁREAS DE PLANTIO EM UMCONTEXTO DE DESIGUALDADES

Mello (2004) observa que o emprego de formas de violênciacomo a utilização de jagunços, capangas e de cabras para a resolu-ção de conflitos de terra, de rixa de famílias e de disputas políticasera disseminado no Nordeste ao longo de todo o período do ciclodo gado. Tal recurso era bastante comum a ponto de haver em oca-siões específicas deslocamento de tropas estaduais e federais paradeterminadas regiões, como no caso ocorrido no Ceará, em 1914,com a derrubada do governo, ou na Bahia, em 1920, com a ameaçade deposição do poder público estadual. O próprio Governo Fede-ral, entretanto, lançou mão do recurso, por intermédio de chefespolíticos sertanejos, na repressão à Coluna Prestes. Jagunços foramutilizados para compor a linha de frente na contenção ao avançodo movimento liderado pelo líder comunista.

Os sertões nordestinos foram cenário de lutas intensas entrejagunços que compunham “exércitos” particulares, numa demons-tração de arbítrio do poder privado dos chefes municipais. Em ci-

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dades como Floresta e Belém do São Francisco, assim como em ou-tras municipalidades de Pernambuco, estas brigas entre famílias e aameaça aos movimentos sociais se estendem até hoje. Os jagunços,os cabras e os capangas, contudo, foram substituídos pelos pistoleirosde aluguel, esta figura urbana responsável por assassinatos de lide-ranças sindicais, religiosas e dos inimigos de determinados chefeslocais. Mello (2004) relata o não registro deste personagem na déca-da de 1930, mas ele pode ser uma derivação moderna dos tocaieiros,homens que ficavam dias a espera de sua vítima, espreitando nascurvas das estradas ou no meio do caminho. Com hábitos e caracte-rísticas diferentes, contudo, o pistoleiro de aluguel não tocaia suavítima, mas vai ao encontro dela. É solitário, não possui relação dire-ta com o mandante, mas recebe instruções e presta conta de seusserviços, geralmente, a um intermediário. Barreira (1998), em estu-dos sobre os crimes de pistolagem no Ceará, observou que a atuaçãodos pistoleiros estava ligada praticamente a duas situações: ao voto,na manutenção do mando político, e na questão da terra, na preser-vação e/ou conquista de domínios territoriais. Na questão da terra,o alvo da ação dos pistoleiros representa as lideranças camponesas ereligiosas que lutam junto aos trabalhadores, e na disputa pelas re-presentações políticas, os litigantes são grupos familiares.

Os dados sobre homicídios em cidades da região como Belémde São Francisco e Floresta apontam para a coincidência do aumen-to das taxas deste evento com o incremento da produção e da conse-qüente repressão de forças policiais. De 1997 a 2000, as taxas de ho-micídios de Floresta credenciaram-lhe a condição de município coma mais elevada taxa deste tipo no país. Nesse período, das 10 cidadesmais violentas do país, considerando esse indicador, duas estavamsituadas na área do Polígono (Floresta, Belém do São Francisco).

A maior coerção ao plantio, a partir dos anos de 1990, acarre-tou a presença mais freqüente de armamento com poderio maior,como fuzis e submetralhadoras. Quando havia uma repressão maisincisiva da polícia, parte do armamento se deslocava para outras

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atividades criminosas, como assalto a ônibus e caminhões de car-gas. Durante um bom período, trafegar pelas rodovias que corta-vam os municípios da região era atividade de alto risco. Estes ele-mentos, atrelados ao fato de que as antigas rixas políticas e de po-der de famílias tradicionais da região, migraram também para onegócio da maconha.

No Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito Destina-da A Investigar o Avanço e a Impunidade do Narcotráfico (2000),depoimentos apontaram a participação de membros de famíliasenvolvidos em rixas antigas na atividade do narcotráfico:

De acordo com as declarações do codinome“Sertão”, nomunicípio de Floresta, existem vários políticos envolvidoscom narcotráfico, assassinatos e assaltos. São feitas denúnci-as, o Tribunal de Contas apura, comprova as irregularidadese não dá em nada. Que toda denúncia que é feita, dá emnada, como tem cargas roubadas, plantio de maconha den-tro da fazenda de A. A. F. Que existem denúncias contra aprópria polícia. Que tem um ten. da polícia, F. F., filho dovereador B. F., traficante, fornecedor de vários plantios demaconha. Já foi preso por porte ilegal de arma, por formaçãode quadrilha, mas continua impune. Que, há poucos dias,foi preso um caminhão carregado com maconha, com pal-mas. Que os donos da carga seriam D. N., R. N., T. N. e B. F.Que R. F. é um dos que manipulam o sertão com o tráfico dedrogas, cocaína, armamento pesado, assaltos a bancos e acarro-forte, juntamente com a equipe de G. F., J. G. e um ex-policial chamado C. Que tem um empresário chamado E.M., que também manipula o tráfico de assalto e cargas rou-badas, junto com os companheiros como o S., o C. e o A. dePetrolina. Que sonegam impostos, trazendo mercadorias semnota fiscal. Que levam maconha, cocaína e armas para Reci-fe e entregam para R. F., E. F., M. F.. Que D. N. e G. N. trans-portam maconha para Recife e entregam para o R. F.

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Marques (2003) afirma que as brigas de família no sertão po-dem ou não estar ligadas a fatores políticos; os alvos e as aliançascompostas nestas rixas, contudo, são ou produzem efeitos políti-cos. A autora descreve briga e política como episódios das relaçõessociais, nos contextos onde estão inseridas, como parte de um todopossível, não coincidente e tampouco excludente, que são provisó-rias e substituíveis.

O envolvimento de membros de famílias em contendas e a mai-or implicação de outros atores e personagens, como jovens, peque-nos agricultores, aliado a fatores estruturais, possibilitaram que aviolência atingisse um número maior de pessoas. Este fato pode serexplicado tanto pelas características das atividades ilícitas, que ne-cessitam diminuir os riscos que ameaçam suas atividades, e paraisso utilizam-se de meios violentos, quanto pelo aumento da rede edos elos da cadeia do plantio que, de certa forma, ganhou umainstitucionalidade maior. Consequentemente, esta institucionalidadeoriginou em torno de si novos comportamentos e práticas. Pode-seafirmar que o aumento das atividades está vinculado ao envolvimentode grupos locais com certa influência na região, e que, nos últimosanos, a maior repressão não somente acarretou o envolvimento deoutros atores até então fora das redes, mas proporcionou novas prá-ticas sociais e uma maior socialização com a questão.

As estratégias também tiveram que ser revistas, por causa deuma maior coação. Se antes era possível plantar em locais visíveis,hoje o plantio se dá em áreas mais abrigadas e de difícil acesso.Algumas inovações legais, como a desapropriação para fins de re-forma agrária, sem direito à indenização, de fazendas e terras ondefossem encontrados cultivos da erva, contribui também para amudança de estratégias. Uma conseqüência ambiental é a presençacada vez maior de plantios na caatinga, em áreas de preservação.Acusamos, também, como conseqüência desta nova estratégia, ca-sos de pessoas que plantam maconha nas terras de seu vizinho,próximo ao limite dos terrenos, pois se houver flagrante na planta-

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ção ele não perde suas terras. As estratégias vão se moldando ànova realidade de maior repressão.

Neste processo, portanto, o uso de meios violentos para resol-ver diferenças passou a atingir também atores fora do ciclo tradici-onal da rede. No ano de 1997, uma importante liderança sindicaldos trabalhadores atingidos pelas barragens, ativista do Pólo Sin-dical do Submédio São Francisco, foi morta. Seu crime foi enco-mendado e executado por um pistoleiro, porque ele, FulgêncioManoel dos Santos, fizera denúncias contra o assédio e as ameaçasque trabalhadores rurais vinham recebendo de traficantes que que-riam vê-los plantando maconha em suas terras, sobretudo, nasagrovilas. A ameaça a lideranças do movimento sindical rural nãose restringiu a esse fato. Outras lideranças passaram a ser intimi-dadas ao se manifestarem contra a forma como os traficantes pas-saram a atuar na região.

Houve um aumento de homicídios praticados por pistoleiros.Na cidade de Floresta, durante um período muito tenso, no finalda década de 1990, quando se seguiram vários assassinatos, a polí-cia proibiu os condutores de motocicletas de usarem capacetes,decisão que infringe o Código Nacional de Trânsito, pois muitosassassinos usavam os capacetes de suas motos para preservar suaidentidade ao praticar crimes.

Os jovens têm sido o grupo mais atingido por toda a violênciaproveniente da intensificação de tensões relativas ao plantio. Ge-ralmente, são os mais envolvidos como guardiões de plantações ouem atividades correlatas, próprias do universo desta atividade ilí-cita. Segundo informações de um jovem plantador, seu ingresso nocultivo se deu aos 13 anos, desde quando, com a morte prematurade seu pai, teve que assumir, perante a família, a responsabilidadedo sustento da mesma. Como o plantio de produtos tradicionaiscomo cebola, milho e feijão não lhe davam retorno financeiro sufi-ciente, resolveu aderir ao plantio. No seu caso, o plantio era nosistema de meieiro. Ele recebia todos os insumos (sementes, adu-

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bos...) e, depois, a colheita era dividida entre os dois. Quem vendiaa erva era o “patrão”, forma como se referia à pessoa a quem seassociara. O recurso advindo da venda era dividido entre os dois.Não havia controle por parte do plantador quanto ao preço peloqual era vendida a produção.

Alegou que passou a desempenhar atividades no plantio demaconha por falta de opção, mas, com o passar do tempo, como orecurso que conseguia era maior do que qualquer outra atividadeque pudesse desempenhar, ficou alguns anos no negócio, até serpreso em uma operação da Polícia Federal. Declarou que sua en-trada na atividade ocorreu, além da necessidade de sustentar suafamília, por observar o ganho obtido pelas pessoas que estavamplantando. Adquiriam bens não acessíveis a um trabalhador ruralassalariado ou pequeno produtor, como motos, carros, e consegui-am melhorias consideráveis em suas condições de vida.

Reconhecia que a atividade era ilegal, mas ponderava que nãoestava prejudicando ninguém, pois não efetivava roubos, mas, ape-nas, trabalhava em um cultivo ilegal. Sua fala traz duas questõesinteressantes: o reconhecimento de que cultivar a maconha é um tra-balho, embora considerado ilegal, uma atividade laboral que requeresforço. Como requer esforço e não está prejudicando individual-mente ninguém, então, não se considerava um bandido. Uma alusãoà diferenciação de sua atividade daquelas praticadas por outros tra-balhadores rurais era o fato de estar envolvido em um cultivo consi-derado proibido, mas a natureza de seu trabalho não era distinta dapraticada por lavradores de produtos agrícolas tradicionais.

Uma outra questão a se destacar é o impacto do próprio plan-tio sobre a economia local. Salgueiro, no início dos anos 2000,possuía quatro agências bancárias e muitas lojas de “marca”, con-dição rara em uma cidade sertaneja (Fraga, 2003). Segundo al-guns depoentes, este crescimento pode ser atrelado à presença doplantio na região. Sobre esta questão, uma importante liderançareligiosa acrescenta:

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Estou aqui há 14 anos e vivi o período mais vivo do plantio eeu me lembro dos primeiros anos que vinha visitar essas co-munidades. Não se via motos, mas em dois ou três anos já setinha em tudo o que era casa. Eram os jovens que consegui-am, pois o sonho era plantar, vender a maconha e comprar asua moto, tinham transporte tranqüilo, eles sobreviviam.Então se percebia que era tão normal. Isso, que os jovensperguntavam se era pecado, isso era coisa comum. Eles iamà Igreja fazer a primeira comunhão e se confessar. Eu per-guntava se não tinha outra saída, como plantar feijão, masnão tinha água. Com a maconha só precisa de um poucod‘água e para feijão como é que faz, quantos hectares temque plantar sem água? Então era uma coisa tranqüila, nãohavia perseguição porque o comércio era bem protegido e aspessoas bem protegidas. Um cara veio aqui do ComandoVermelho do Rio de Janeiro que foi preso, alugou uma casaaqui e era o cabeça de tudo. É só ir na casa saber quem alu-gou, quem era o cara, para descobrir a máfia que tem portrás, porque a CPI (o padre refere-se à CPI do Narcotráficorealizada em 1999) tinha a finalidade de pegar peixes gran-des. Queremos deputados, aí era Ibope, a CPI não pegou amáfia. Na minha previsão não melhora não, as coisas vãopiorar. Eu acho que vai aumentar e tomara que não entreoutro tipo de droga, porque infelizmente não tem políticaque resolva esse drama da nossa juventude.

O sistema de meeiro, entretanto, não é a única forma de relaçãoentre agentes no plantio de maconha. Há casos de contratação porsalário ou de compra da produção de pequenos produtores que sãocontratados para plantar e vender toda a sua plantação para um de-terminado negociante. Na ocasião de uma visita à região, em 2006,foi possível conhecer a história de Severino. Trata-se de um pequenoprodutor de Orocó que plantava maconha há pelo menos três anos esabia do risco de perder suas terras se o cultivo da planta fosse des-coberto por agentes policiais. Sua família estava envolvida com aplantação localizada no fundo de suas terras, emaranhada em ou-tros plantios tradicionais. Era uma pequena lavoura, com um núme-ro bastante reduzido de covas, mas que oferecia um risco bem gran-

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de ao produtor rural, no entanto, a pequena plantação de maconhaera a principal fonte de recursos daquela produção familiar.

Diferentemente de Severino, Antônio é um diarista envolvidono plantio de maconha. Na época da entrevista, tinha dezoito anoscompletados há poucos meses, mas confessou trabalhar desde ostreze anos com o plantio. Sua condição de diarista fê-lo se envolvercom outros plantios tradicionais, como o de frutas, como o mamão,com feijão e cebola. Estudou até o primeiro ano do ensino médio,mas havia abandonado os estudos. Confessou que gostava bastan-te das atividades estudantis e se considerava um bom aluno. Dei-xou de estudar porque não conseguiu conciliar o trabalho com aatividade discente. Alegava muito cansaço, pois chegava em casatarde e já cedo estava na lavoura para o trabalho. Disse que iniciouno plantio porque tinha vários colegas que já estavam na atividadee, também, conhecia várias pessoas que ganhavam mais na diáriado cultivo de maconha do que com a diária de outros produtos.Informou que, em sua cidade, Orocó, muitas pessoas estavam en-volvidas com o plantio e que chegavam a ganhar em uma colheitaentre dois mil e três mil reais, o que corresponde a um período detrês a cinco meses. Durante o período do cultivo, geralmente nãose abandona o local de plantio, evitando que haja roubo por partede algum outro grupo. Por isso, montam-se acampamentos, ondepessoas se revezam na vigilância. O cuidado com o plantio visamais evitar que algum outro grupo possa vir roubar o plantio doque a resistência às operações policiais. Comumente, quando a po-lícia descobre e reprime um plantio, nunca há troca de tiros, procu-ra-se fugir, abandonando o cultivo.

Os três casos evidenciam a diversificação na forma de planta-ção e de contratação de pessoas no plantio e na colheita da maco-nha. A distinção das formas de envolvimento acarretou a inclusãode mais agentes no contexto desse cultivo ilícito. A repressão poli-cial não diminui o número de atores envolvidos, ao contrário, im-plicou em novas estratégias.

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TECENDO CONSIDERAÇÕES

Como evidenciamos no início deste artigo, há ainda um hiatonos estudos, no Brasil, sobre a produção de plantas consideradasilícitas, como a maconha. Na Bolívia e no Peru, as plantações decoca têm fins lícito e ilícitos, devido aos usos seculares, terapêuticose culturais da denominada mama coca. Parte da coca vai para a pro-dução de cocaína, mas o uso tradicional é forte e representa partesignificativa da economia de milhares de agricultores.

No Brasil, não há um uso tradicional da maconha, como nosmoldes da folha de coca desses países andinos. Todavia, parte sig-nificativa dos envolvidos no plantio da maconha é de camponesesque, sem uma política agrária que os beneficie, voltaram-se para ocultivo da maconha como alternativa de renda. As cadeias de Sal-gueiro e de Recife têm, entre seus hóspedes, número significativode trabalhadores rurais, cujo crime foi plantar cannabis. Durante oGoverno de Fernando Henrique Cardoso iniciou-se uma experiên-cia de substituição de plantios que não seguiram adiante, talvezpela própria ineficiência dessas alternativas em um contexto socialtão complexo.

É fundamental compreender a dinâmica das relações que seproduziram entre os atores sociais nesta região, a partir do incre-mento do plantio de maconha. Parte da violência não está atrela-da ao plantio. Existem lugares onde plantios ilícitos não estão,necessariamente, atrelados à violência. No entanto, o sistema deprodução, beneficiamento e venda de subtâncias psicoativas con-sideradas ilícitas, devido ao seu ilegalismo, pode se apropriar derelações sociais com forte presença de conflitos e intensificá-las.Uma outra característica do narcotráfico é o número significativode agentes que ele envolve no seu sistema produtivo. Na regiãoaqui descrita, tanto a repressão quanto o incremento da produçãoenvolveu nos elos da cadeia um número de agentes de diferenci-ados estratos sociais.

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Compreender toda esta dinâmica é fundamental no sentido decriar políticas públicas que não penalizem ainda mais o elo maisfraco de toda a cadeia produtiva: o trabalhador rural. A política deredução de danos talvez necessite não só atingir o usuário, mastambém alcançar o trabalhador rural.

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Recebido em abril de 2006

Aprovado em julho de 2006

NOTAS:

1 Segundo dados do Escritório Americano de Combate às Drogas (DEA), o Brasil é o segundomaior consumidor de cocaína do mundo, ainda que tal afirmação seja contestada por al-guns estudiosos.

2 O Vale do São Francisco está subdivido em Alto, Médio, Submédio e Baixo. O submédio SãoFrancisco insere áreas dos Estados da Bahia e Pernambuco, abrangendo municípios de Re-manso até a cidade de Paulo Afonso (BA), e inclui as sub-bacias dos rios Pajeú, Tourão, Vargeme do rio Moxotó, último afluente da margem esquerda.

3 Tetrahidrocanabinol (THC) é o princípio ativo da cannabis sativa.4 O trabalho foi desenvolvido na segunda metade dos anos de 1950 para a Comissão do Vale

do São Francisco (CDVS), mas somente foi editado em 1972 pela Superintendência do Valedo São Francisco (SUVALE), órgão do regime militar que a substituiu .

5 Originalmente, em Pierson (1972), existe a seguinte nota de nº 50: “Isto é, “Ajoelhe-se”!, umfato que indicou ao nosso pesquisador que outrora poderia ter sido feita, ao receber-se ocachimbo, uma genuflexão “em homenagem à maconha” (Pierso, 1972, 95).

6 Originalmente, em Pierson (1972), existe a seguinte nota de nº 51: “Em seguida a trabalhocuidadosamente planejado para obter permissão dos participantes.”

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Antônio Rafael Barbosa

Doutor pelo Museu Nacional/UFRJ e Professor da UFF

O baile e a prisão – onde se juntam aspontas dos segmentos locais que

respondem pela dinâmica do tráfico dedrogas no Rio de Janeiro

Abstract. The article intends areferring unknown aspect to theorganization of the traffic of drugsin the city of Rio De Janeiro. Ea saysrespect to the relations between theresponsible groups for the commerceof the drugs its capacity ofsocialization in the communitieswhere they are inserted.

Keywords: narcotrafic, comunityand socialization

Resumo. O artigo pretende discutirum aspecto pouco estudado referen-te à organização do tráfico de dro-gas na cidade do Rio de Janeiro. Dizrespeito às relações entre os gruposresponsáveis pelo comércio das dro-gas e a sua capacidade de socializa-ção nas comunidades onde estão in-seridos.

Palavras chaves: narcotráfico, comu-nidade e socialização.

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Vou tratar, neste trabalho, de um aspecto pouco conhecido noque diz respeito à organização do tráfico de drogas no Rio de Janei-ro. Diz respeito às relações de aliança entre os grupos queimplementam o comércio de drogas, especialmente nas comunida-des pobres. Todavia, para chegarmos a ele, torna-se necessário exa-minar alguns pressupostos discursivos que constroem uma repre-sentação do fenômeno impermeável à análise crítica. Trata-se, emum primeiro momento, de enxergar aquilo que nos impede de ver.

Inicio pelas agências que buscam nos fornecer os elementosnecessários à construção ou à condução de nossas avaliações: o papelda mídia. Comumente, quando os meios de comunicação veiculammatérias sobre o tema, estas versam sobre a violência desmedida ea produção do caos urbano associadas diretamente à presença dosbondes de traficantes nas vias públicas e às guerras do tráfico pelatomada de territórios, nas áreas mais carentes da cidade, morros efavelas. O Rio de Janeiro acaba por ocupar um lugar emblemático,servindo de exemplo negativo para todos os demais estados daFederação. Um arranjo de coisas que deve ser evitado a todo custo.É a avaliação moral de fundo, presente nesses blocos de imagens ediscursos, nesses pacotes de notícias vendidas com uma certa re-gularidade para todo o Brasil. Filão que nunca se esgota, assim comoo sangue que escorre dos morros da cidade. Não é sem razão quenessas localidades os jornalistas são chamados de “carniceiros” ou“urubus”. De fato, ali está o corpo, ali estão as aves rondando, dis-parando flashes. É o trabalho deles. Vende, afinal.

Entretanto, a repetição dessas notícias acaba por criar uma capasemiótica intransponível, uma superfície dura que impede que seveja o que há por baixo. E como a reforçar tal rigidez e opacidade,há também que se mencionar as dificuldades inerentes à pesquisasobre o tema – seja para o jornalismo investigativo, seja para ospesquisadores acadêmicos. Hoje, mais do que nunca, faz valer seupeso uma antiga lei: “o crime é silêncio”. Quem é envolvido nãodeve falar. Por vários motivos. Um deles é simples de ser

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visualizado, uma vez que façamos a seguinte indagação: as caça-das policiais, afinal de contas, não começam pela contínua publici-dade nas páginas dos periódicos? Não é por ali, ao se fazer umnome, que se começa a morrer?

Que a atividade do tráfico seja indissociável dos seus aspectosagonísticos é uma obviedade, ao menos no que diz respeito ao mo-delo que vigora entre nós. Contudo, não podemos esquecer, e édisso que se trata aqui, dos espaços de socialização que garantemao tráfico sua organização ou, dizendo de maneira mais apropria-da, sua dinâmica segmentar. (É como efeito direto dessa dinâmicaque se dá o aumento ou a redução das ações agonísticas). Espaçosde convergência e articulação dos grupos intra-faccionais (internosaos Comandos) que dominam o comércio de drogas em localida-des específicas da cidade. Espaço e tempo onde as alianças são re-feitas e as amizades e os fortalecimentos acionados, onde e quandose realiza um dos pólos que garantem a dinâmica interna das fac-ções. Nesse artigo vamos margear dois deles: o baile e a prisão.

Como disse, alguns mal-entendidos devem ser prontamenteabandonados. São tantos que opto, para ganharmos tempo, por umaapresentação esquemática, numerando ponto a ponto:

1. Não existe um único tráfico de drogas no Rio de Janeiro. E po-demos supor que tal constatação serve, com algumas exceções,para toda cidade média ou grande cidade, no Brasil ou foradele. A noção de rede é de grande valia aqui.1 O que temos éum emaranhado sem fim de redes sobrepostas a outras redes.Para o caso do Rio, utilizando como critério de definição a des-carga num mercado consumidor, podemos apontar três gran-des “novelos” a recobrir o mapa da cidade: o tráfico que chegae parte das favelas; aquele que se processa no “asfalto” e quenão passa pelas favelas; o que utiliza os portos e aeroportos dacidade como locais de passagem para a droga que irá abaste-cer os mercados consumidores externos. Certamente, entre es-

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sas redes existem os mais diferentes pontos de contato e, paratornar as coisas ainda mais complicadas, cada uma delas é niti-damente segmentada. São diversos os segmentos que operamno atacado, assim como no comércio varejista da droga, paracada caso. Como exemplo: um grupo que opera levando a dro-ga de um centro produtor a um determinado nível de distri-buição no atacado (e ao fazê-lo pode se colocar em relação deconcorrência com outros), cessando sua atuação em uma pri-meira articulação. Daí em diante outros operadores conduzi-rão o processo, controlando trecho por trecho as vias de escoa-mento da droga, aumentando sua capilaridade até tocar nocomércio varejista. Cada um desses segmentos apresentandocaracterísticas singulares: em sua rentabilidade, em seus ris-cos, em seus mecanismos de negociação (como “tornear a lei”,como passar com a droga?). Daí a dificuldade em se combatero comércio da droga.

2. O segundo ponto é justamente este: o aspecto rizomático dotráfico. Por rizoma entenda-se a característica dessa rede quepermite que seja rompida em qualquer parte e volte a se refa-zer rapidamente. Característica esta que o tráfico compartilhacom formações políticas que têm como norte um ativismo con-tra-Estado: penso especialmente nos grupos terroristas. Impos-sível o combate a tais grupos por parte do aparelho de Estado,uma vez que não existem centros de poder que possam servircomo alvos nítidos para as ações repressivas. Redes não têmcentros. O que possuem são nós, interseções que são flutuan-tes do ponto de vista temporal. Ademais, a repressão policialsó não é inócua porque se inscreve na própria dinâmica dasfacções. Vê-se isso claramente quando da prisão de uma gran-de liderança de uma facção. Tal acontecimento é comemoradocom festa pelos membros da facção inimiga. Cai o controle deum segmento como desaba um trecho de uma estrada rodovi-ária: imediatamente se forma, ao lado, onde for possível pas-

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sar, um outro caminho, uma nova conexão. Porque a demandasempre vai existir e os lucros, enquanto a droga for ilegal,exorbitantes (apesar dos riscos, apesar das perdas com subor-nos e corrupção).

3. Outros equívocos são constantemente acionados (muitas vezesreproduzidos pelos especialistas no assunto), o que nos posicionadiante de um senso-comum sobre a droga que circula entre di-versos contextos nacionais. São elas: uma grande quantidade dedroga apreendida corresponde a um golpe em uma “grande or-ganização”. Falso. As “grandes organizações” controlam indis-tintamente os patamares do atacado e do consumo. Como vi-mos, não é isto que acontece em boa parte dos casos.2 O grau deorganização dos mercados da droga depende do nível em queoperam (para o atacado, “grandes organizações”; para o varejo,um arranjo pulverizado de inúmeros empreendedores). Igual-mente falso (cf. CUNHA, 2002, p. 119-23).

4. Essa discussão ainda nos remete ao paralelismo indevido como aparelho de Estado, recorrentemente acionado pelos meiosde comunicação (e veremos o porquê de tamanha insistência).Aquilo que as expressões “crime organizado”, “poder parale-lo” e mesmo “grande organização” evocam. Vejamos quais ele-mentos sustentam tal apreensão. Em primeiro lugar, parte-sede uma analogia com o poder de Estado, suas instituições emodos de funcionamento: exercício soberano de poder sobreuma população; comando político centralizado; quadro funci-onal com uma hierarquia definida; controle territorial; estabe-lecimento de um sobrecódigo (“lei do tráfico”) que recobre to-dos os códigos culturais locais. Em segundo lugar, a expressão“crime organizado” nos remete a uma atividade que, ao me-nos potencialmente, atravessa os aparelhos de Estado, suasfronteiras e seus controles. Por fim, o tráfico enlaça o Estado,cooptando alguns de seus principais operadores – policiais, car-cereiros, deputados, juízes etc. Quatro características, quatro

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maneiras de se relacionar com o aparelho de Estado: imitaçãoe concorrência, para o primeiro caso; atravessamento eacoplamento. E todas elas nos conduzem à seguinte assertiva:a complementaridade entre ambos é uma condição necessáriaao funcionamento do tráfico de drogas. O que chega a ser umparadoxo: sem Estado, sem a política repressiva do Estado nãopoderia haver tráfico de drogas. Não como o conhecemos, ge-rando tantos lucros e tantas desgraças. (Devemos falar, então,de um poder tangencial ou complementar, ao invés de “poderparalelo”, se insistirmos na nomeação dos modos de poder).De toda maneira, o mais importante aqui é prestarmos atençãonos efeitos discursivos embutidos no emprego de tais expres-sões, principalmente a de “crime organizado”. Tais efeitos sedeixam perceber no reforço da “sensação de medo e insegu-rança” que vem ao encontro das demandas e apelos pelo incre-mento de políticas repressivas. E o que é ainda mais grave: paraalém da demanda por “mais Estado”, por um Estado de pu-nhos cerrados, tal discursividade cria um aval para que o Esta-do também opere nas sombras. Já não vemos isso acontecer,especialmente no combate ao rizoma do terrorismo, quandoem nome da “Segurança” (essa é a palavra de ordem supremano cenário atual) o Estado de Direito se vê posto em xeque? Jánão vimos alguma coisa parecida antes, aqui mesmo entre nós,nos tempos da ditadura militar, quando se falava em “segu-rança nacional”?

5. Estamos diante de uma situação sem controle. Falso. Ao con-trário o que vemos surgir e ganhar corpo, nesse momento, éum novo arranjo de coisas que Deleuze, tomando a discussãosobre as “sociedades disciplinares” no “segundo” Foucault, noFoucault de Vigiar e Punir (1984), irá propriamente nomear de“sociedades de controle” (1992, p. 219-26). O número absurdode mortes que hoje assistimos no Rio de Janeiro, associadasprincipalmente à atividade do tráfico (números estes que atin-

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ge níveis presentes nos momentos agudos de guerra civil empaíses que se encontram nesta situação), celebram, morbida-mente, a nossa entrada na sociedade de controle.3 A biopolíticado tempo presente transformada pelo “jeitinho brasileiro” oucarioca em tanatopolítica.4 Controle de populações pelo exter-mínio de alvos selecionados. Quem está na mira, neste caso?Homens, jovens, pobres, moradores de comunidades e negros,em sua maioria. E o que lhes garante a chave da porta de entra-da para o campo de extermínio, com passagem só de ida? Adroga. O comércio de drogas.

6. Um modelo explicativo pode servir inicialmente para perce-bermos as diferenças entre os contextos regionais do comérciovarejista da droga. Foi proposto por Jonhson, Hamid e Sanabria(1992) para o caso norte-americano da distribuição de crack.5

Do ponto de vista desses autores, existiria, por um lado, umacomposição free-lance: um mercado caracterizado por aliançasepisódicas; por papéis intermutáveis entre pequenos atacadis-tas e vendedores; descentrado; com pouca ou nenhumainterdependência hierárquica ou divisão funcional do traba-lho. Por outro lado (a tipologia é dual), existiria o business model,com as seguintes características: equipes fixas; forte hierarquiade papéis; supervisão contínua; regras de conduta; distribui-ção de tarefas; turnos; divisão de áreas de atuação; nenhumadiscricionaridade por parte dos vapores na fixação dos preços.6

Os especialistas ainda dizem que, atualmente, embora essesmodelos coexistam, o que se percebe, tanto nos países euro-peus quando nos Estados Unidos, é a gradativa expansão domodelo empresarial, especialmente a partir do final dos anos80. Para o nosso caso, o Rio de Janeiro parece assumir a ponta-de-lança do modelo empresarial, especialmente quando com-parado a outros estados da Federação, onde prevalece, em suagrande maioria, o modelo free-lance. Todavia, toda tipologiadeve nos servir apenas como ponto de partida. As coisas ga-

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nham maior complexidade quando olhadas de perto. De fato,não me parece ser possível dissociar um modo deimplementação do tráfico do outro, ao menos no que diz res-peito ao modelo empresarial. É condição necessária para o ple-no funcionamento do comércio de drogas sob este modelo, nocaso do Rio de Janeiro (e resta saber o que se passa em outroscontextos), existir em suas bordas o tráfico free-lance. Se há umdeslocamento, o primeiro não elimina completamente o segun-do. As bocas dependem diretamente das esticas7 , dos peque-nos aviões que se encarregam de comprar a droga e revendê-lano asfalto sem que o comprador tenha que se arriscar a subirum morro ou entrar em uma favela (pagando, é claro, um pre-ço maior pela sua comodidade e segurança).

7. O modelo empresarial conduz à monopolização do mercado.Falso. Alguns autores apontam a impossibilidade de constituirmonopólios nos narco-mecados (Reuter, 1983; Kopp, 1996, en-tre outros). O que cabe questionar é o modo de composiçãodestas “forças centrífugas” dentro dos grupos e nas margensonde um toca o outro, o que impede o estabelecimento de mo-nopólios nos mercados locais. Em que medida o tráfico de dro-gas necessita de um arranjo segmentar para implementar suasatividades? Certamente, o papel da polícia é de fundamentalimportância na consideração deste aspecto.

8. Os Comandos no Rio de Janeiro são organizações centraliza-das, de aspecto piramidal, com lideranças acima das chefiaslocais (donos de morro) a conduzir os negócios do grupo comoum todo. Falso. O que denominamos “Comando” é um con-junto de alianças, especialmente das lideranças que controlamos grupos em nível local, e um espaço de negociação perma-nente entre elas, construído a partir das cadeias. A hierarquiaexiste, sim, mas fica restrita aos limites territoriais de cada gru-po. O dono, o patrão manda no seu morro, na sua favela. So-mente ali.8 Distribui os cargos, escolhe aqueles de sua confian-

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ça, estabelece os contatos com os fornecedores (de armas e dedrogas), cuida da família dos amigos que estão presos, mandaum fortalecimento para quem se encontra no sofrimento, den-tro da cadeia. Pode ser chamado a dar explicação aos irmãos so-bre algum fato ocorrido em seu território (uma vacilação gravedo seu pessoal). Para isso uma reunião é convocada e os amigossão chamados. Para isso as cartas circulam para dentro e parafora das cadeias. Pode esquecer dos que estão no sofrimento, epor isso ser chamado a dar alguma explicação. Pode, em razãode um desvio muito grave ou em razão de não conduzir a bomtermo o jogo das alianças, ter sua liderança questionada e umoutro, mesmo um gerente de sua confiança, receber o aval doComando para tomar o seu lugar. Pode, por fim, perder o con-trole de sua área em razão de um ataque direto dos alemães, deum Comando inimigo. Os casos são muitos, mas, em resumo,podemos dizer que não existe uma hierarquia entre o grande“corpo” dos Comandos e os grupos locais. Ataque e defesa deterritórios são sempre resolvidos mediante a composição de ali-anças eventuais, com o conhecimento, sempre que possível, deoutros donos de morro da mesma família ou irmandade (o querepresenta como um mecanismo para evitar que as disputas in-ternas levem ao fracionamento do Comando).

Tocamos, então, no ponto que nos interessa aqui. E a chave analí-tica para tratar do problema, nós vamos buscar na reflexão etnológicasobre as sociedades indígenas sul-americanas, especialmente algumassociedades que experimentam um certo “nomadismo”:

Os Jê deixaram de ser vistos como caçadores nômades paraserem descritos como praticantes de uma economia bimodal,que combina períodos de dispersão com outros de agrega-ção em grandes aldeias, estruturadas internamente por umconjunto de metades cerimoniais, por grupos etários e porsegmentos territoriais (FAUSTO, 2000, p. 62).

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Esse caráter “bimodal” responde a constrangimentos de ordemeconômica e ecológica. De maneira muito resumida, podemos di-zer que não seria possível cobrir o território de caça sem ofracionamento do grupo. (O caso Guayaki descrito por Clastres[1972] é exemplar nesse sentido – diga-se de passagem um grupoque não apresenta as nítidas marcações e divisões binárias em suaorganização social que tanto agrada aos antropólogos). De todomodo, essa bimodalidade nos remete à pertinência da noção de“bando” para dar conta de nosso objeto.

“Quadrilha”; “malta”; “bando de mal-feitores” – nas expres-sões do senso-comum encontramos a verdade de uma antiga intui-ção. A unidade sociológica mínima, de base, no crime e para o cri-me, é o bando (embora o indivíduo e a satisfação de seus desejos ede sua vontade respondam pela representação mais acionada acer-ca da intencionalidade e “agencialidade” [agency] da ação crimino-sa). Na cadeia vamos encontrar essa verdade escrita com a pontados punhais – por mais forte e por mais habilidade que tenha naluta um indivíduo, ele não é nada sem os seus relacionamentos.Porque é sempre um bando que mata, mesmo que seja sempre umindivíduo que assuma a culpa. “A união faz a força” (do grupo)maior do que a força individual (a que deve ser reconhecida pelalei). É um “bando de lobos” carregando a contingência entre osdentes no momento em que faz sua aparição no espaço público.“Lobo” – bicho solto – trazendo para o centro da ordem social uma“sobre-natureza” que deveria permanecer em suas margens, lámesmo onde o trabalho de reprodução e recriação dos códigos cul-turais testa seus limites.

O crime, entretanto, não se reduz a formação de bando do pontode vista de sua realização concreta ou institucional. Devemos di-zer, antes, que o tráfico, assim como as demais atividades crimino-sas (as armas do crime – segundo uma antiga gíria)9 , se vê atraves-sado por um “devir-bando”10 . Uma afecção que une alguns indi-víduos, dando existência a esta formação, durante algum tempo.

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Afinal, vemos o tempo todo o aparecimento e o desaparecimentodos bandos – chamados à existência e à dissolução por “fatoresecológicos”, igualmente, se entendermos por essa expressão umacomposição política e econômica que permite “interagir” (afetare ser afetado) com o meio circundante (produzindo o próprio meio“circundante” enquanto “meio de circulação”) quando do cum-primento de certas atividades. Para o caso do tráfico, podemoscitar como exemplo os grupos de soldados que cobrem o territórioa pé, circulando em fila pelos becos e vielas das favelas e morros,ou em velocidade sobre motos ou automóveis. Podemos aludiraos bondes do tráfico que fazem suas blitzen nas vias públicas pararoubar carros e motoristas ou que saem das favelas para roubarbancos. Podemos mencionar os grupos presentes nas guerras ge-radas pela invasão de territórios ou os que se formam dentro dascadeias, como já disse.

Ainda devemos assinalar que se a formação de bando se reali-za de maneira intermitente é porque o tráfico possui ainda doisoutros componentes ou possibilidades de realização. Componen-tes ou vetores estes que irão conferir a tal atividade o seu aspectode “organização” (fornecendo o encaixe, como mencionei anterior-mente, para os discursos sobre o “crime organizado”). O tráficopossui sua “forma-Estado”,11 o que é percebido nos sobrecódigos(a “lei” do tráfico) que afetam significativamente a vida comunitá-ria e em sua disciplina interna, em suas hierarquias, em seu contro-le territorial. E tais características, tais formas de interioridade são,fundamentalmente, aprendidas no lugar onde se está mais dentrodo Estado: numa prisão. (O Comando Vermelho, em razão da suaorigem é o que tem, em relação às demais facções, este aspecto maisdesenvolvido).12

O tráfico possui também um caráter empresarial. A firma - as-sim é chamado o grupo de traficantes (por eles próprios) em nívellocal. Nesse caso, em morros com grande movimento de vendas,vamos encontrar realmente algo que se aproxima do modelo em-

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presarial: vendedores (vapores); gerentes; contadores; aqueles quese encarregam de aplicar o dinheiro; abastecedores (de drogas, dearmas e munição); plantel de médicos a disposição; seguros de saú-de; escalas de trabalho; salários fixos etc. O tráfico aparece, assim,como um bom empregador, no ambiente circundante de miséria epouca oferta de postos de emprego (as falas comuns assinalam estapercepção: “trabalhar para o tráfico”). E o lucro, como nas demaisempresas (embora em algumas delas seus gestores não digam istoabertamente), torna-se o objetivo máximo a ser alcançado, o funda-mento da ética que vigora no meio e que é transmitida às novasgerações.

Variando entre tais características, o movimento (como é cha-mado o tráfico de drogas), nos momentos de maior estabilidade,encaixa seus bandos dentro de uma hierarquia necessária aos ne-gócios (criando um corpo funcional composto de um pólo militarou guerreiro e um outro comercial); como, inversamente, nos mo-mentos de instabilidade (na maior parte dos casos resultantes darepressão policial ou do rearranjo de forças dentro de uma facção)patrocina a pulverização dos grupos, potencializa sua formaçãorizomática, sua formação de bando, para assim refazer seu territó-rio de atuação ou simplesmente “fazer caixa”. Força de uma má-quina bimodal posta em um estado de variação contínua. Força deum trenó puxado por lobos.

A cadeia (ou o reformatório para menores) aparece assim, talcomo nos inspira a reflexão etnológica, como o espaço-tempo doencontro. Lugar em que os indivíduos (donos, gerentes, soldados, va-pores, olheiros) podem interagir, estreitando ou formando novos vín-culos, acertando velhas pendências, se for o caso. Encontro força-do, certamente, porque ninguém vai parar ali de boa e espontâneavontade. É dentro do sistema penitenciário que se estabelece o pontoprincipal de articulação de todos os grupos locais de uma facção,de um Comando. É a cadeia que fornece as amarras para as pontassoltas, o espaço maior de negociação. Espaço estriado, espaço duro

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de sofrimento, espaço da aliança no sofrimento. Espaço da “forma-Estado”.

Escolhi como contraponto à cadeia um outro lugar de encon-tro, de troca e de composição de alianças que de certa maneira po-demos nomear de “espaço livre”: os bailes nas comunidades. Se acadeia é responsável por essa articulação dura das alianças, quesuportam ou dão existência ao corpo dos Comandos, é no baile queos conhecidos se tornam amigos e aliados. Na freqüentação comum,no tempo da festa.

O baile (funk, geralmente) na comunidade responde pelas se-guintes possibilidades da experiência existencial (a lista não é exaus-tiva), sendo o lugar e o tempo de diversão para muitos jovens quelá residem (para alguns, o único); de arranjar namoradas; de co-nhecer jovens que se deslocam de outras localidades para partici-par da festa (não é recomendável freqüentar o baile na área de umComando inimigo; o risco de ser descoberto e pagar com a vida porser um alemão é muito grande, mesmo para quem não é do tráfico);de apreciar novas músicas; de aprender novos passos de dança; defazer o rap que acabou de compor chegar aos ouvintes; de estarcom sua turma (geralmente grupos etários ou de vizinhança que seformam nas localidades; independentemente do grau de cada umna hierarquia do tráfico ou do fato de que parte do grupo não te-nha entrado para o movimento); de rir e se divertir, simplesmente.Para o tráfico, é igualmente o momento de aumentar a venda dedrogas (mesmo que o baile não seja patrocinado pelo movimento; oque faz deste “tempo-espaço livre” igualmente um “tempo-espaçodo mercado”) e de fazer novos aliados em outras comunidades,provando abertamente do jogo das alianças. É a ocasião doestreitamento dos vínculos com a comunidade e com os conheci-dos ou amigos de outras localidades (os crias de áreas sob a mesmabandeira), que em um momento ou outro da vida futura de um in-divíduo pode ser de grande valia. Espaço-tempo reservado amicropolítica das alianças, reservado à composição do campo de

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afecções de cada indivíduo.Simplificaria muito o quadro se dissesse que no dia-a-dia vivi-

do na comunidade não se encontra essa mesma micropolítica. Obaile deve ser visto como um momento emblemático dessamultiplicidade de encontros. Encontros de importância capital, semdúvida, na medida em que funcionam como um segundo pólo deamarração, de ligação afetiva dos indivíduos, complementar à pri-são. Esta responde por um vínculo duradouro (o que não quer di-zer que um dia possa ser quebrado) construído em um ambientede dor e privação. (A união dos presos é, justamente, uma maneirade resistir às péssimas condições encontradas nas cadeias cariocas- eis o que está na origem do Comando). O baile, por sua vez, res-ponde pela aliança que se forma através do riso e da alegria, doencontro de homens livres (em sua possível liberdade – toda liber-dade, ainda mais nos dias de hoje, é sempre relativa; ainda maispara quem é do tráfico). Alianças do futuro, feitas pelos jovens, poraqueles que irão assumir ou já estão assumindo a frente do movi-mento. Celebração da vida, do amor, do sexo, da vaidade, do di-nheiro, do poder, do valor da amizade por aqueles já condenados,de antemão, à morte ou à prisão. Em resumo, à necessária disper-são dos grupos que irão recobrir o território da cidade, estabele-cendo, onde for possível, o comércio da droga (crescimento contí-nuo do rizoma do tráfico), inaugurando em cada comunidade aslinhas de filiação local com sua hierarquia de patrões, gerentes, sol-dados, vapores etc., conjuga-se o tempo-espaço da convergênciados grupos e indivíduos (o que garante a existência, perpetuação einfluência dos Comandos). Um movimento (de dispersão e con-centração das atividades sobre um território) imbricado no outro(de convergência dos interesses sob a bandeira de um Comando,seja na prisão, seja nos momentos de celebração). Dois movimen-tos que são como faces da mesma moeda, uma vez que um não sefaz sem o outro.

Encerro minha argumentação chamando a atenção para um

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aspecto constantemente olvidado e que aqui mesmo, pela maneiracomo procurei apresentar o assunto, não pude desenvolver direta-mente.13 O exame deste assunto não pode ser conduzido sem a com-preensão dos códigos culturais locais; sem o entendimento das esco-lhas éticas que informam os comportamentos; sem olhar para as ex-pectativas e os sonhos que embalam a juventude pobre carioca; semo estranhamento dos limites sombrios impostos ao seu desenvolvi-mento e realização – aquilo que, com toda propriedade, podemoschamar de “grande injustiça”. A menos que façamos a opção porampliar a distância que já nos separa de nossos vizinhos e nos con-tentemos com a verdade maniqueísta (devemos sempre nos pergun-tar a quem interessa tal versão das coisas) publicizada pela mídia.

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Recebido em: dezembro de 2005Aprovado em: março de 2006

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NOTAS1 Para uma apreciação introdutória do conceito de “rede” na literatura sociológica ver, entre

outros: Barnes (1968); Both (1976); Swartz, Turner e Tunden (1976); Mayer (1987).2 Sobre este ponto vale a pena mencionar o caso descrito por Adler (1993) em sua etnografia

sobre o mercado de drogas californiano. Embora com padrões de consumo e mecanismosde distribuição distintos daqueles que temos por objeto de interesse aqui (como ela no-meia no subtítulo do seu trabalho – an ethnography of an upper-level drug dealing), lá, igual-mente, se experimenta uma variância de papéis – entre atacadistas e varejistas – por partedos traficantes de drogas.

3 Sobre as taxas de mortalidade no Rio de Janeiro, associadas às guerras do tráfico e ao com-bate policial desta atividade, ver o excelente trabalho de Dowdney, 2003.

4 Essa discussão sobre a biopolítica se encontra em minha tese de doutoramento; Barbosa, 2005.5 Para o contexto europeu, Rugiero e South (1995) assinalam algo semelhante ao propor a

distinção entre “crime em associação” e “crime em organização”.6 Notável é a similitude da distribuição dos cargos e funções nesses grupos com o que se

passa no Rio de Janeiro: lá também contam com vigias (entre nós chamados olheiros oufogueteiros); com guarda-costas (soldados do patrão); mensageiros (aviões); depositários dadroga (o que também se passa nas favelas); gerentes e capatazes.

7 Pontos de venda no “asfalto”, localizados nas imediações de um morro ou favela e gerenciadospelo grupo ali dominante.

8 Embora existam casos de patrões que estendam sua área de influência para englobar váriascomunidades. Em alguns casos, o antigo dono permanece como frente (frente de morro) ou,se está preso (o que é o caso mais comum), mantém um gerente de sua confiança comofrente do morro. Entretanto, deve remeter parte dos lucros àquele que o fortalece ou “fecharcom ele” (com o deslocamento de homens e armas) sempre que solicitado. Afinal, é o seualiado. As possibilidades de composição, neste caso, são variadas.

9 Para o exame das relações entre o tráfico de drogas e as demais “especialidades criminosas”,ver Rafael, 2001.

10 Ver a noção de “devir” na obra de Deleuze e Guattari (1995-7, v. 4, p. 11-115). Ao utilizar estanoção “devir-bando” busco me furtar a uma certa reificação ou tipologização onde poderianos conduzir o uso da noção de bando. Não se trata do que é, mas do que acontece a umgrupo ou a um corpo coletivo.

11 “Forma-Estado” porque o Estado não se resume a uma única realização, a uma instituiçãoou corpo funcional. O conceito “Forma-Estado” nos permite considerar, em sintonia com areflexão de Pierre Clastres (1990), que uma lei ou forma de interioridade informa suas di-versas realizações (DELEUZE; GUATARRI, 1995-7, v. 5, p. 24; p. 145-61). Isto vale tanto para as“sociedades primitivas” quanto, e esse é o caso que nos interessa, para os grupos e facçõesdo crime. Estamos diante de um agenciamento específico, onde as linhas de força conver-gem no sentido de constituir, por subordinação e hierarquização, um único centro de po-der (p. 123). Estamos diante de tendências que “buscam” o Estado, de vetores que traba-lham na direção de constituir ou reforçar um aparelho de Estado, como, ao inverso, diantede movimentos que tendem a afastar-se dele, precaver-se dele ou aboli-lo (p. 119).

12 Sobre o surgimento do Comando Vermelho, ver Misse, 1999.13 O que procurei fazer em outros trabalhos. Ver, especialmente, Barbosa, 1998.

7O Estado delinqüente: uma nova

modalidade de crime?

André Moysés Gaio

Professor do Departamento de Ciências Sociais da UniversidadeFederal de Juiz de Fora e Doutor em História Social pela PUC/SP.

Abstract. This article shall highlightthe first results of an ongoingresearch and which intends topresent the notion of delinquentState in order to explain a crimepattern which counts on theinitiative and leadership of publicagents. The task at hand is to alterthe notions of organized crime andmafia organization, because weconsider them inadequate for arigorous treatment of theaforementioned crime pattern.

Keywords: State, Crime, delinquencyand Brasil.

Resumo. Este artigo deverá eviden-ciar os primeiros resultados de umapesquisa em andamento e que pre-tende apresentar a noção de Estadodelinqüente para explicar uma mo-dalidade de crime que conta com ainiciativa e liderança de agentes pú-blicos. Trata-se de substituir as no-ções de crime organizado e organi-zação mafiosa por considerarmosinadequadas para um tratamento ri-goroso da modalidade de crimesupracitada.

Palavras Chave: Estado, Crime, de-linqüência e Brasil.

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Nossa preocupação, ao tentarmos desenvolver o conceito deEstado delinqüente, não está ligada a qualquer objetivo dedemonização do Estado tal como ocorreu no fim da década de 1980,através de uma campanha que propunha uma redução drástica dotamanho do Estado e o privilegiamento do mercado como eixo apartir do qual uma sociedade deve se organizar.

A partir da recuperação do capítulo da história brasileira, ini-ciado com o processo de redemocratização, cotejado com algumasexperiências similares na América Latina (embora o caso brasileiroseja priorizado), demarcaremos as condicionantes que permitiramo desenvolvimento, segundo acreditamos, de uma progressiva ocu-pação do Estado por agentes públicos (nos três Poderes da Repú-blica e nos vários níveis da Federação da República Brasileira) quenão estariam apenas a serviço de grupos e organizações externasao Estado, mas que liderariam esses na tarefa de predar os benspúblicos.

Trata-se de evidenciar também a inadequação evidente na uti-lização de conceitos como os de bando, quadrilha, crime organiza-do e organização mafiosa para descrever crimes que contam com ainiciativa e liderança de agentes públicos brasileiros.

DITADURAS MILITARES, TRANSIÇÕES DEMOCRÁTICAS,DROGAS E CRIMINALIDADE

Quando quisermos avaliar a extensão e a profundidade em quea política (politics), tal como é estruturada e praticada na AméricaLatina, está contaminada pela atuação do crime organizado, deve-mos estar informados sobre a natureza dos regimes políticos, asdiversas relações que se estabelecem entre o Estado e a Sociedade,a cultura política sob a qual se estruturam as práticas sociais e asmodalidades de intervenção das instituições do Estado.

Muito se escreveu sobre o nascimento e o crescimento do cri-

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me organizado na década de 1980. Mesmo que o marco cronológi-co esteja correto, as explicações sobre o crescimento e os padrõesde atuação do crime organizado na região são as mais diversas.Duas são as mais influentes: uma que afirma ser o processo deglobalização a causa mais importante e outra que enfatiza uma di-nâmica mais interna nos vários países (fatores econômicos, políti-cos, culturais etc).

A implantação de ditaduras militares, a partir da década de1960, foi, certamente, o mais importante estímulo para a criação e odesenvolvimento do crime organizado na América Latina porquecriou as condições institucionais para que os criminosos operas-sem com certa liberdade. Sob a inspiração dos princípios da guerrafria, os militares e civis que formavam o núcleo dirigente dos regi-mes políticos ditatoriais se concentraram nas tarefas de repressãopolítica a amplos setores das populações dos países da região tidospor subversivos e, por isso, a criminalidade pulverizada, oumicrocriminalidade ainda incipiente, pouca atenção mereceu.

A ausência do Estado de Direito incentivava o nascimento deorganizações criminosas. A ausência de mecanismos deaccountability permitia também que os dirigentes das novas dita-duras iniciassem a tarefa de pilhagem dos recursos dos Estados,transferindo os mesmos para agências bancárias de outros países,especialmente da Suíça.

Como a única forma de legitimação e busca de apoio populardas ditaduras era o crescimento econômico, políticas de bem-estar,busca de padrões de qualidade para as políticas sociais, provimen-to de segurança para as populações e aumento da renda individualeram completamente ignorados, apenas importando o crescimen-to do produto interno bruto. Tal crescimento, quando ocorreu, foifinanciado por dívidas externas impagáveis e ilegalmente contraí-das. Este mecanismo de financiamento do crescimento econômicose esgotou quando ocorreu a famosa crise da dívida, no início dadécada de 1980, que trouxe duas condicionantes básicas para a pro-

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liferação do crime organizado: miséria e a quase completa desor-ganização da estrutura institucional do Estado, destacando que al-guns países ainda não tinham completado as tarefas necessáriaspara a criação de um Estado moderno, configurando o que alguémjá denominou de Quasi-states.

Os resultados de vinte anos de tais práticas, na medida em quealgumas ditaduras se prolongaram até o final dos anos de 1980,foram dramáticos. Especializando-se na tarefa de repressão políti-ca, as polícias não tinham desenvolvido capacidade de investiga-ção e um setor de inteligência, o Poder Judiciário foi completamen-te politizado, quando não suprimido pelos Generais, a capacidadede fiscalização era inexpressiva e não havia leis específicas sobre aprática do crime organizado.

Seguiram-se à queda das ditaduras períodos de completa de-sorganização social, concentração de renda e governos instáveis,condições propícias para o desenvolvimento do crime organizado.

Em países como a Bolívia, acusações freqüentes de que o tráfi-co de drogas era comandado a partir da Presidência da Repúblicapor Generais como Hugo Banzer e Garcia Meza, procuraram de-monstrar que o crime organizado já estava institucionalizado, masem países como o Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile, Peru,a prática generalizada da corrupção, pobreza e condiçõesinstitucionais completamente adversas ao controle do crime foramsuficientes para impulsionar a articulação da criminalidade orga-nizada.

O caso mexicano, diverso dos demais supracitados, particular-mente devido ao fato de que este país não viveu uma experiênciade ditadura militar e mesmo de ruptura institucional grave, rece-beu, no entanto, um poderoso estímulo à prática da corrupção pelomonopólio do poder por parte do Partido Republicano Institucional(PRI) que, durante 80 anos, não teve adversários importantes quecontestassem o seu poder. A literatura sobre a corrupção no Méxi-co durante o reinado do PRI é abundante, e o crescimento de orga-

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nizações criminosas nesse país certamente recebeu poderosos estí-mulos por parte dos dirigentes políticos mexicanos.

ASSOCIAÇÃO MAFIOSA

A Colômbia, em âmbito regional, ocupou um papel de desta-que no processo de constituição do crime organizado, mais preci-samente, de organizações mafiosas. Tal distinção é importante es-pecialmente porque as organizações de tipo mafioso são aquelasem que os nexos entre política e crime são estabelecidos, além daspráticas de intimidação (intimidazione), perpétuo vínculo hierárquico(assoggettamento) e a lei do silêncio (omertà).

A criação do conceito de associação mafiosa, todavia, nos re-mete ao estudo do caso italiano. O Código Penal italiano, no artigo416 bis, conceitua máfia ou associação mafiosa com precisão:

[...] A associação é de tipo mafioso quando aqueles que delafazem parte se utilizam da força para intimidação, submis-são e da lei do silêncio (omertà) para praticarem delito, paraobter de modo direto ou indireto a gestão ou o controle daatividade econômica de concessões, autorizações e contra-tos de serviços públicos ou para conseguirem lucros ou van-tagens injustas para siour para terceiros com a finalidade deimpedir ou criar obstáculos ao livre exercício do voto, ou paraconseguir votos para si ou para terceiros em ocasiões de con-sulta eleitoral [...].

A legislação italiana, ao separar o crime organizado, os bandose as quadrilhas da associação mafiosa, procurou identificar um fe-nômeno particular e que precisa ter um marco conceitual precisopara que o combate a tal modalidade de crime possa ser exercidopela mobilização de recursos especiais, seja na repressão, seja naprevenção. A operação mãos limpas, a partir de 1992, propiciou ascondições necessárias para o início de um trabalho de repressão e/

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ou contenção das atividades das máfias.A possibilidade de combater o crime organizado, particular-

mente as organizações mafiosas, no contexto de um regime demo-crático, tem como paradigma a solução italiana e que foi denomi-nada operação mãos limpas (mani pulite). Tal operação foi uma com-binação de importantes reformas nas leis penais, processuais e cons-titucionais e propiciou a criação de estruturas institucionais paracoordenar, planejar e implementar as ações que visavam combateras organizações de tipo mafioso, além de outras formas de crimeorganizado na Itália.

A origem da operação mãos limpas está relacionada à ligaçãoentre política e corrupção, o famoso caixa 2. Tudo começou em 1992,em Milão, uma das cidades mais ricas da Itália e que parecia estarimune às ações da máfia, particularmente porque se dizia que oambiente propício para a atuação dos grupos mafiosos era o sul daItália.

O engenheiro Mário Chiesa, membro do Partido Socialista Ita-liano e eleito Deputado Provincial, foi nomeado Presidente do PioAlbergo Trivulzio, instituição muito considerada pelos milanesesporque era um asilo para idosos e sempre tinha prestado ótimosserviços. Chiesa fica desanimado com tal nomeação- um cargo pou-co importante, segundo ele, mas não a recusa. Ato contínuo, BettinoCraxi, ex-Primeiro Ministro e Secretário Geral do Partido Socialis-ta, exige que o engenheiro contribua para o caixa do Partido comaltas somas. A solução encontrada foi a de se reunir com os forne-cedores do Albergo e exigir o pagamento de comissões para queeles continuassem como fornecedores. Não satisfeito, descobre queo Albergo possuía muitos bens que poderiam ser mobilizados paraas finanças do partido.

Um dos fornecedores, não agüentando pagar a comissão, pro-cura o Judiciário e denuncia Chiesa. O Juiz, Antonio Di Pietro, com-bina com o fornecedor uma armadilha para flagrar Chiesa. Preso esubmetido a seguidos interrogatórios, fica sabendo que Craxi o

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chama de mariolo (picareta, gatuno, insignificante). Depois de ummês de silêncio, concorda em falar sobre suas ligações com BettinoCraxi, o filho do ex-Primeiro Ministro, entre outros.

O caso Chiesa se desenvolve ao mesmo tempo em que os JuízesGiovanni Falcone e Paolo Borselino são assassinados. Segue-se umaintensa mobilização popular e a prisão de empresários, vereado-res, governadores, secretários municipais e regionais. Mais tarde,foram indiciados dois ex-primeiros ministros. Uma fase decisivada operação mãos limpas tinha se iniciado.

Desde 1974, na Itália, um Direito Penal de emergência já esta-va sendo implementado: inicialmente, medidas que visavam àampliação dos poderes da polícia; em seguida, a ênfase recaiu so-bre a legislação antiterrorista (1979) e, finalmente, a introdução dasleis contra o crime organizado e contra as organizações de tipomafioso (anos de 1980 e 90).

É interessante sublinhar que o foco da última fase da operaçãoera a conexão entre a política e a criminalidade e é este nexo, pre-cisamente, que impõe a necessidade de tipificar uma organizaçãocriminosa como associação mafiosa.

Muito importante também é assinalar que, sem a presença dasociedade nas ruas exigindo o fim da máfia e, por isso, também dospolíticos, empresários, juízes, advogados, militares a ela associa-dos, a operação mãos limpas não teria condições de investigar epunir as quase cinco mil pessoas indiciadas.

As alterações legais que se tornaram paradigmas para a lutacontra as organizações de tipo mafioso foram: proteção dos cola-boradores da justiça, regime jurídico especial para os arrependidos,colaboradores e os dissociados, prisão compulsória dos imputados,ampliação da prisão cautelar, proibição da liberdade provisória,segredo instrutório, interrogatório sem a presença do defensor, in-terferências de um processo em outro, arresto dos bens de seqües-tradores e das pessoas de seu círculo de relações. A polícia teve osseus poderes ampliados na medida em que teria o poder de busca

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sem mandato, a liberação para fazer interceptações telefônicas, apermissão de infiltrar agentes que poderiam cometer delitos paradestruir a organização, entre outros.

Talvez a modificação mais importante foi a da centralizaçãodos trabalhos de investigação e de formação de uma competentebase de dados por uma superprocuradoria. Tal medida foi definidapelo Juiz, Giovanni Falcone, como sendo decisiva para o sucessono combate às organizações mafiosas. A criação de um AltoComissariado composto por órgãos policiais e diversos entes pú-blicos e privados e de um Conselho Geral que deveria ajudar nacoordenação das atividades de informação e investigação (presidi-das pelo superprocurador) foram também essenciais para imporpesadas derrotas à máfia.

Outros instrumentos criados poderiam ser citados, mas, no li-mite deste artigo, apenas gostaríamos de citar, para concluir, que oDireito Penal de emergência tinha como objetivo a defesa social.Muitas críticas foram feitas quanto ao abuso por parte da magis-tratura italiana na utilização das novas leis, ferindo direitos e res-tringindo a liberdade de muitos cidadãos. Tais críticas, como com-provado, foram corretas; todavia, quando as medidas anteriormentecitadas foram aplicadas contra os membros das organizaçõesmafiosas, permitiram, de fato, reduzir o impacto de suas ações, alémde influírem na diminuição das taxas de crimes cometidos pelamacrocriminalidade.

AS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS

Várias tentativas de apreender o fenômeno do crime organiza-do têm sido desenvolvidas por pesquisadores de todo o mundo,tentativas essas muito marcadas por contextos nacionais um tantodiferenciados, por interesses múltiplos de agências governamen-tais e por modalidades de atuação também diversas dos vários gru-

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pos. Alguns autores procuram definir tal fenômeno a partir dosesclarecimentos dos objetivos perseguidos pelas organizações:

Crime organizado é uma empresa não-ideológica envolven-do um número de pessoas com fortes laços de interação, or-ganizada em base hierárquica, com pelos menos três níveis,com o propósito de conseguir bens e poder pelo engajamentoem atividades legais e ilegais (H. Abadinsk. Organized cri-me).

Outros procuram descrever suas características organizacionaise os tipos de ações:

Os elementos chaves para descrever um crime organizadosão: durabilidade, continuidade, hierarquia, multiplicidade,violência ou ameaça de, e corrupção (R.J. Kelly-The natureof organized crime).

Agências governamentais sempre procuram uma definição emque seja incorporada a participação de agentes públicos que coo-peram com os criminosos:

Crime organizado é uma sociedade que procura operar forado controle do povo americano e de seu governo.Isto envol-ve milhares de criminosos, trabalhando em estruturas tãocomplexas como uma grande corporação.CRIME ORGANIZADO é a ilegítima atividade de uma or-ganização traficando bens e serviços ilegais, incluindo, masnão se limitando, ao jogo, prostituição, agiotagem, substân-cias controladas, extorsão, ou outra atividade ilegítima con-tínua, ou outra prática ilegal que tenha o objetivo de gran-des ganhos econômicos através de práticas fraudulentas oucoercitivas ou influência imprópria no governo (Pennsylvaniacrime commision.

.Segue a mesma linha a definição do Federal Bureau of

Investigation (FBI):

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CRIME ORGANIZADO é qualquer grupo que tenha umaestrutura formalizada e cujo objetivo primário seja obter lu-cros através do uso da violência, ou ameaça da violência,corrupção de funcionários públicos, suborno ou extorsão egeralmente têm um impacto significativo na população lo-cal, da região ou país como um todo (FBI).

O CASO BRASILEIRO

O Brasil não possui uma legislação que trata com clareza asorganizações criminosas ou o crime organizado, na medida em queo artigo 228 do Código Penal qualifica uma organização criminosa,bandos ou quadrilhas, definidos apenas como uma associação detrês ou mais pessoas. Tal definição, como salienta Leite (2006, P.55), referiu-se apenas à criminalidade sem qualquer sofisticação, com-plexidade ou estruturação diferenciada e, por isso, não possui qual-quer utilidade e não demanda a criação de legislações e institui-ções para prevenir e reprimir as organizações criminosas e mafiosas.

A literatura especializada, todavia, ocupa-se, freqüentemente,com o tema do crime organizado, porém, tem falhado na tentativade encontrar objetos que caibam nos conceitos desenvolvidos.

Mingardi (1998), por exemplo, elaborou no quadro abaixo paratentar esclarecer os diferentes tipos de organizações criminosas e,acreditamos, fracassou, criando novas confusões.

Crime organizado tradicional Crime comum Empresa lícita

1 Atividades ilícitas Sim Não2 Atividades clandestinas Sim Não3 Hierarquia Não Sim4 Previsão de lucros Não Sim5 Divisão de trabalho Não Sim6 Uso da violência Sim Não

Quadro 1 - Tipologia de organizações criminais(continua)

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Crime organizado tradicional Crime comum Empresa lícita

7 Simbiose com o Estado Não Sim8 Mercadorias ilícitas Sim Não9 Planejamento empresarial Não Sim10 Uso da intimidação Sim Não11 Venda de serviços ilícitos Sim Não12 Clientelismo Não Não13 Lei do silêncio Não Não14 Monopólio da violência Não Não15 Controle territorial Não Não

(Fonte: Guaracy Mingardi).

O crime organizado tradicional, segundo Mingardi, que seria aassociação mafiosa, nada tem de tradicional. Separá-lo de uma em-presa lícita seria desconhecer que a máfia procura, tanto quanto pos-sível, criar empresas legais para lavar dinheiro e para diversificar osseus negócios. O Juiz Giovanni Falcone nos alertou sobre a capaci-dade de as máfias se adaptarem ao moderno mundo globalizado,assim como Sterling (1994). Consideramos artificial a distinção, por-tanto, entre o crime organizado tradicional e a empresa lícita.

Mingardi citou dois exemplos da existência de uma organiza-ção criminosa do tipo tradicional, o comando vermelho (embora otráfico de drogas não se enquadre, segundo o próprio Mingardi, nocrime organizado tradicional) e o jogo do bicho; dois exemplos deempresa lícita são o roubo de cargas e veículos. De qualquer forma, aestrutura dos grupos supracitados não é trabalhada exaustivamentepelo autor e, por isso, conceito e objetos dificilmente se encontram.

Borges (2002) destacou a ausência de consenso entre os estudi-osos brasileiros a respeito de uma definição do que seja o crimeorganizado e de sua tipificação legal. Também destacou a dificul-dade de se operar com conceitos de crime organizado e máfia por-que não se adequam às organizações criminosas brasileiras.

(conclusão)

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Maierovitch (1995), profundo conhecedor do caso italiano, tambémapresenta um conceito de crime organizado pouco adequado àsituação brasileira, embora completamente afinado com o fenôme-no das associações mafiosas.

A relação do crime organizado com a política, no Brasil, aindanão recebeu o tratamento analítico adequado, não tanto devido àinexistência de qualificação dos pesquisadores, mas à ausência dedados seguros que possam suportar algumas generalizações, par-ticularmente devido à falta de cooperação dos órgãos do Estado ouà ausência de estrutura dos mesmos para operar com bancos dedados confiáveis. É preciso sublinhar, no entanto, que as informa-ções mais importantes sobre a máfia italiana são recentes, datamde 20 anos atrás, conseguidas, sobretudo, devido à competência eobstinação dos Juízes italianos Giovanni Falconi e Paolo Borselino,ambos assassinados pelos mafiosos.

Quando se quer estabelecer algum nexo entre a política e o cri-me organizado, se utiliza de um modelo já desgastado: alguns crimi-nosos supostamente “compram” algum servidor público, mais oumenos “qualificado”, e, com isso, alguns serviços são prestados. Outromodelo é a contratação de criminosos por servidores públicos para arealização de alguns trabalhos sujos, tais como a intimidação ou eli-minação física de adversários. É muito pouco para que se possa cha-mar tais atividades de crime organizado ou associação mafiosa.

CRIME ORGANIZADO E DEMOCRACIA

No mesmo ano em que aconteceu o fim da ditadura militar doBrasil (1984), foi dado o sinal de que algo de novo estava ocorren-do. “Nevou” no Rio de Janeiro. A expressão tornada popular signi-ficava que traficantes brasileiros, em conexão com traficantes co-lombianos, despejaram grande quantidade de cocaína nessa cida-de, a preços muito baixos, em um país que ainda consumia muito

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pouco esta droga. Tal estratégia resultou, a médio prazo, numa ex-plosão da demanda por parte dos brasileiros e no desenvolvimen-to de grupos tais como o comando vermelho (em associação comos colombianos e paraguaios) e o jogo do bicho que passou tam-bém a atuar no tráfico de drogas. Ambos tiveram alguma influên-cia na política do Estado do Rio de Janeiro, particularmente emduas modalidades: em primeiro lugar, influenciando na eleição delíderes comunitários das favelas ou mesmo eliminando líderes quese opunham ao tráfico de drogas; em segundo lugar, servindo agrupos políticos de orientações ideológicas variadas, sendo contra-tados para simular combates, visando criar uma situação que de-monstrasse o descontrole dos governos em relação à segurançapública (especialmente contra os governos de Leonel Brizola).

O financiamento de políticos por parte de organizações crimi-nosas ou máfias nunca se tornou um padrão ou nunca foivigorosamente comprovado.

CORRUPÇÃO E POLÍTICA

A corrupção nos níveis mais altos da esfera pública foi umacena que se repetiu muitas vezes. Vários Presidentes foram afasta-dos de seus cargos em razão de denúncias graves de corrupção ouforam processados após o fim de seus mandatos: Alberto Fujimori(Peru), Carlos Salinas (México), Fernando Collor (Brasil), CarlosAndrés Perez (Venezulela), Carlos Menem (Argentina).

As denúncias de enriquecimento pessoal desses políticos ge-ralmente reduziam as investigações a meros desvios individuaisou de pequenos grupos. Poucas investigações, excetuando-se oscasos brasileiro e mexicano, chegaram ao estabelecimento de liga-ções dos ex-Presidentes com organizações mafiosas ou criminosas.No caso do ex-Presidente Collor, a investigação conseguiu ilumi-nar as relações entre Paulo César Farias, tesoureiro da campanha

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presidencial, figura influente no seu governo, com o tráfico de co-caína e lavagem de dinheiro associado à máfia italiana ‘Ndrangheta’e aos cartéis colombianos.

Os casos supracitados, todavia, excetuando o brasileiro, nãoconseguiram estabelecer nexos entre as práticas de corrupção e aexistência prévia de uma associação entre tais políticos e gruposcriminosos preexistentes.

O conceito de corrupção, contestado corretamente por sua ge-neralidade, serve mais para medir a opinião da opinião pública sobrea imagem de determinadas instituições e de governos do que paraesclarecer os mecanismos pelos quais as Instituições do estado sãodominadas por práticas em que os agentes públicos se desviamdos seus papéis formais, determinados pela lei, do que para escla-recer sobre as dinâmicas das práticas criminosas e os objetivos dosgrupos que as praticam.

O conceito de corrupção é inadequado para esclarecer a práti-ca das organizações criminosas ou das associações mafiosas por-que trata de questões mais afeitas a comportamentos individuais(nepotismo, por exemplo).

Tal conceito ainda se prestava a certas aplicações em tempospretéritos, mas a atual extensão das ações criminosas dos agentespúblicos tornou o mesmo obsoleto.

GLOBALIZAÇÃO E ESTADO NACIONAL

É verdade que a globalização ofereceu novas oportunidadespara a atuação do crime organizado e das associações mafiosas.São muitas as operações realizadas e que revelaram e ainda reve-lam uma atuação concertada entre os traficantes colombianos, bra-sileiros, argentinos e paraguaios. A presença das máfias russas eitalianas atuando em acordo com os grupos latino-americanos tam-bém já é bastante conhecida e se desdobra em operações variadas:

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tráfico de drogas (cocaína, maconha, heroína, smart drugs), comprade empresas estatais, exploração de máquinas de jogos, tráfico dearmas e seqüestros.

A precarização da soberania dos países da região também serevela na constituição de paraísos fiscais, particularmente noParaguai e no Uruguai, responsáveis pela lavagem de dinheiro dasorganizações criminosas. Brasil e Argentina também demonstramcerta fragilidade no controle do dinheiro sujo.

A globalização, todavia, se apresenta mais dramática quandoa analisamos como um processo de internalização de tendênciasglobais. O ajuste que cada país faz de impulsos produzidos emoutras regiões é que consideramos ser a dimensão decisiva do pro-cesso de globalização. Em graus diferentes e sob dinâmicas diver-sas, os países da região passaram a assimilar processos de desinte-gração social, fruto da crise do emprego, redução de políticas soci-ais de bem-estar, perda da eficiência da estrutura do Estado, crisedos esquemas clássicos de representação política etc, origináriosde outros contextos.

Em todos os países latino-americanos o crescimento da econo-mia informal já representa um grave problema; nesse setor, saláriosbaixos, ausência de proteção social, sensação de não-pertencimentoà sociedade, tornaram-se poderosos estímulos à participação no cri-me. No Brasil, onde essa tendência apresenta sua configuração maispreocupante (quase 50% da força de trabalho está na informalidade),os números mostram que apenas no Rio de Janeiro o tráfico de dro-gas emprega quase 200 mil pessoas. O problema se repete na Argen-tina, no Paraguai, no Uruguai, na Bolívia.

No momento em que foi percebida uma recuperaçãoinstitucional do tema da criminalidade por muitos países da re-gião, com a criação de leis e instituições para combater o micro e omacro crime, revelou-se também a inoperância na aplicação dasnovas leis e a ausência de recursos para que as novas instituiçõesatuassem.

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A sensação de que os mecanismos clássicos de representaçãopolítica estão falidos, dá ensejo a uma dinâmica social que estimulaa tentativa de controle do Poder Legislativo para satisfazer a inte-resses de grupos específicos, incluindo aí o crime organizado.

A recuperação institucional da luta contra o crime, no entanto,produziu alguns frutos e forçou uma mudança na estratégia de atu-ação das organizações criminosas. Na Colômbia, o fim dos cartéispromoveu a constituição de pequenos grupos que traficam quanti-dades menores de cocaína para evitar a perseguição das forças le-gais; no Brasil, o tráfico de drogas está vinculado também a peque-nas organizações, embora tenha surgido dentro do sistema peni-tenciário um novo grupo chamado primeiro comando da capital eque tem obtido algum sucesso em suas ações. É um grupo maior,sediado em São Paulo e que conta com alguns milhares de compo-nentes, mas a atuação de tal grupo ainda (pelos dados disponíveisno momento) não permite que possamos qualificá-lo como crimeorganizado ou associação mafiosa, embora se aproxime rapidamen-te do primeiro tipo.

O ESTADO DELINQÜENTE BRASILEIRO: APROXIMAÇÕES

O nexo crime e política, atualmente, tem uma dinâmica peculi-ar: está destituído de qualquer ideologia ou projeto de longo prazo;atua, preferencialmente, nos níveis locais ou regionais (municípios eEstados); incorpora a Polícia, o Poder Judiciário, o Poder Executivo,o Poder Legislativo, empresas privadas e criminosos nos mesmosesquemas; busca menos a proteção de grupos (embora isso aindatenha alguma importância) do que a consecução de benefícios atra-vés de licitações públicas viciadas, distribuição de benesses, predaçãodo patrimônio público, criação de consórcios entre agentes públicose que pode conter a participação de agentes internos, mas lideradospelos primeiros, para a realização de crimes de forma contínua.

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Desde o escândalo com a comissão do orçamento do Congres-so nacional às últimas operações da Polícia Federal, o padrão doscrimes que envolve a participação dos agentes públicos parece seconformar ao padrão acima citado: a liderança de agentes públicosem crimes dos mais variados.

O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito daCâmara dos Deputados que investigou o narcotráfico no Brasil,documento ainda pouco discutido pelos pesquisadores, conseguiudesvendar as mais variadas modalidades de crime do Estado de-linqüente. Investigando o narcotráfico em 18 Estados e no Municí-pio de Campinas, indiciou 567 criminosos, dentre eles 143 agentespúblicos (vereadores, prefeitos, deputados, senadores, juízes,desembargadores, policiais civis, militares e federais, delegados,funcionários civis de prefeituras e estados da federação).

Os agentes públicos quase sempre lideravam as operações cri-minosas, envolvendo violência ou não (preferencialmente). Alucratividade advinda com as atividades expostas pelo Relatóriosuperavam em muito a do comando vermelho (estimada em 264milhões de reais por ano).

É importante ressaltar que o Relatório continha ao menos duasfalhas importantes: a primeira, diz respeito a falhas em apontarmuitas pessoas como não sendo servidor público; a segunda, porinvestigar superficialmente alguns Estados. A situação de MinasGerais, por exemplo, foi discutida em apenas duas páginas! Muitopouco para uma das principais rotas de drogas do país. A CPI doCrime Organizado da Assembléia Legislativa de Minas Gerais su-priu, em parte, a falha da CPI do Tráfico, indicando muitos agentespúblicos envolvidos com tráfico de drogas, roubo de cargas e ou-tros crimes congêneres.

O Estado delinqüente se mostra mais ativo nos municípios enos Estados membros da Federação e, por isso, ainda não mereceumaior atenção dos pesquisadores, da mídia e da população.

Os agentes públicos que estruturam o Estado delinqüente ope-

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ram, como já afirmamos, preferencialmente por métodos não-vio-lentos ou intimidação, sem a presença de hierarquia rígida e divi-são do trabalho complexa, dominam o conhecimento de sistemasabstratos (GIDDENS, 1991) e a rotina da administração pública,embora também utilizem profissionais externos ao Estado em al-gum momento.

Os mais variados tipos de grupos e esquemas criados poragentes públicos não envolvem qualquer coordenação nacional,regional ou municipal e, portanto, a predação do patrimônio pú-blico é feita de forma pulverizada, com os mais variados gruposatuando de forma descoordenada. A extensão e a escala da pilha-gem do patrimônio público por agentes públicos, resulta, enfim,que o Estado brasileiro se torna um Estado delinqüente. Os con-ceitos de corrupção e de crime do colarinho branco já não sãocapazes de descrever e explicar a dinâmica de um Estado em queos seus componentes, das mais diferentes esferas, se ocupam dapilhagem dos bens públicos, da venda de sentenças judiciais emuma escala jamais prevista, de parlamentares que negociam suasposições e de polícias aliadas aos traficantes e criminosos em ge-ral, por exemplo. Não há, atualmente, qualquer grupo mafiosoatuando para controlar o Poder Executivo dos Estados da região.A política se tornou a miséria da ideologia e a delinqüência ins-creveu-se como rotina.

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__________ .A máquina e a revolta. São Paulo: Brasiliense, 1985.

Recebido em: janeiro de 2006Aprovado em: abril de 2006

Resumo. Aos trinta e três anos do golpede estado sofrido em Chile, pode-se ad-vertir que uma de suas maiores conseqü-ências foi a desarticulação das institui-ções, organizações populares e as cren-ças nas funções do estado como protetore promotor da cidadania. O Estado cons-tituiu-se, paradoxalmente, no aniquiladordestes mesmos, pelo que não se está fren-te a um trauma psíquico de índole indi-vidual senão que sua origem está anco-rada em sua estrutura social. O presenteartigo explora a relação entre memóriaenquistada, a que se entenderá como umconstruto cognitivo, afetivo e social quese vai desenvolvendo e definindo a par-tir do contexto sociopolítico e como estavai-se constituindo e transmitindotransgeneracionalmente. Esta análise estábaseada em dois estudos que exploramtanto os processos de memória comotransgeracionalidade do trauma desdeum olhar psicossocial.

Palavras Chave: Chile, Ditadura, Traumae Memória.

A Memória enquistada: umaaproximação ao trauma transgeracional

Cecilia Rodríguez* e Adriana Espinoza**

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*Psicóloga clínica e membro da equipe clínica do Programa de Reparação e Atendi-mento Integral em Saúde e Direitos Humanos (PRAIS)

**Ph.D. em Counselling Psychology University of British Colúmbia, Canadá, membroda equipe clínica do Programa de Reparação e Atendimento Integral em Saúde e

Direitos Humanos (PRAIS)

Abstract. Approaching thirty-three yearsof the coup d’ etat that affected Chile, itcan be observed that at the social level oneof the consequences was the dismantlingof the institutions, organizations, and thebeliefs in the functions of the State asprotector and provider of the citizens.Instead it became the destructor of itscitizens, therefore we are not only facinga psychic individual trauma, but ratherits origins are anchored in its socialstructure. It is only now, due to therecognition of the truth of the repressivesituations, the impunity, and the recurrentretraumatizations, when it is possible tograsp the impact, the consequences andhow these patterns are a part of oursociety.

Keywords: Chile, Dictatorchip, Traumaend memory.

Versão em Português: Sócrates Jacobo MoqueteGuzmán e Paulo Cesar Pontes Fraga

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CONTEXTO HISTÓRICO

No ano de 1973, o Chile foi vítima de um golpe de estado queinstaurou uma ditadura militar, que se perpetrou no poder por 17 lon-gos anos. Segundo relatórios oficiais chilenos, de instituições interna-cionais e de organizações não governamentais, estima-se que a popu-lação diretamente afetada por algum tipo de violação aos seus direi-tos, durante este período, atingiu cerca de 10% da população. Destamaneira, os diretamente atingidos são aqueles grupos familiares emque um ou vários de seus membros foram objeto de desaparecimentoforçado, de execução política, tortura, exílio, exclusão ou outras açõesrepressivas, ficando expostos de maneira recorrente e acumulativa aum processo de traumatização extrema com graves compromissos nasaúde física, psicológica e social (MINOLETTI, 2002).

Atualmente, ainda não é possível dimensionar precisamente apopulação diretamente afetada. Organismos não governamentais,que trabalham na defesa dos direitos humanos, estimam que apro-ximadamente dois milhões de pessoas foram vítimas da repressãodo Estado. É importante assinalar que estes dados são difíceis deserem comprovados com precisão devido à gravidade destas situa-ções e ao acobertamento que foi produzido durante a ditadura. Asinformações conhecidas estão descritas no Relatório Rettig, docu-mento produzido a partir dos resultados da Comisión de Verdad yReconciliación e pelo Informe de Prisión Política y Tortura, conhecidocomo o Relatório Valech, os quais registraram casos de parte dapopulação que foi presa, está desaparecida, foi executada sumaria-mente ou foi vitimada pela tortura. Não foram incluídas, nestescasos, pessoas que não cumpriram com requisitos de documenta-ção, crianças, pessoas falecidas, as que sofreram exílio, exclusão eoutras formas de violação.

No contexto latino-americano, diferentes países viveram ter-rorismos de Estado similares à ditadura chilena. As ações perpetra-das pelos governos que se seguiram nestes países, de um modo

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geral, se caracterizaram por resolver os problemas relacionados comas vítimas diretas dos regimes ditatoriais através de leis de repara-ção, indenizações econômicas, mesas de diálogo, leis de ponto finale leis de anistia, entre outros. Somado a este quadro de ações, pode-se ainda apontar a desclassificação dos arquivos secretos da CIA; aabertura de processos judiciais relacionados com a ação das políci-as secretas dos países do cone sul (Brasil, Paraguai, Uruguai, Ar-gentina e Chile), que operavam em conivência, na chamada Opera-ção Condor como exemplos da magnitude da repressão políticalatino-americana, transcendendo as culturas e as gerações.

A transição das ditaduras militares levou consigo o surgimentoda memória como um conceito que permite definir e emoldurar oshorrores vividos e as lições que devem ser aprendidas do passado.Estas discussões estão centradas, ademais, nas novas representa-ções sociais que surgem a partir destes processos de transição, en-tre as quais se encontram: novas formas de cidadania, construçõesde sujeitos coletivos, problemas de identidade, a globalização eoutros processos sociais. No entanto, muitos destes novos gover-nos democráticos, em nome da reconciliação social, parece que op-taram por uma política de esquecimento institucionalizado do pas-sado histórico.

O caso chileno oferece um exemplo das enormes contradiçõesque surgem ao tratar de estabelecer um processo de reconciliação ereparação baseado na ausência de justiça real, verdade e fortemen-te marcada pela impunidade.

Durante a campanha eleitoral do Acordo (1989), uma coliga-ção de partidos de centro- esquerda, que se uniram para derrotar ogoverno de Pinochet, no plebiscito de 1988, foi enfatizada a ques-tão dos crimes da ditadura como parte fundamental de seu discur-so eleitoral. No entanto, uma vez no poder, houve uma mudançasignificativa de postura e o primeiro presidente democrático,Patricio Aylwin, anuncia que a restituição da justiça se fará “na me-dida do possível”, decretando assim o que será a política oficial

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dos governos do Acordo, que ainda regem o Chile.Em concordância com este procedimento, o Relatório de Pri-

são Política e Tortura, desenvolvido durante a presidência deRicardo Lagos, reconhece publicamente a existência de tortura noChile; ainda que a intenção parecesse ser reparatória, através deuma aceitação publica do fato, o governo decidiu que não seriampublicados os nomes dos torturadores envolvidos pelos próximos50 anos. Tal postura criou uma situação inusitada: reconhecia-se aprática disseminada de tortura no país, mas não existiam tortura-dores. Desta maneira, o governo retira de si as responsabilidades,obscurecendo o caráter reparatório de seu discurso e levando a so-ciedade chilena a um fracasso na elaboração de ações visando àprevenção das situações de violação aos direitos humanos, trans-formando-se, desta forma, num mandato caracterizado pela impu-nidade e pela retraumatização.

TRAUMA, TRAUMATIZAÇÃO EXTREMAE TRAUMA PSICOSSOCIAL

Para compreender todas as conseqüências geradas após o re-gime ditatorial, é necessário recorrer ao conceito de trauma e comoeste foi se desenvolvendo. Inicialmente, a análise centrou-se emconcepções intrapsíquicas. Desta maneira, o primeiro enfoque quese deteve em esclarecer o conceito de trauma foi dado pela teoriapsicanalítica. Freud (1980), em conjunto com Breuer, estabelece umarelação entre ambos os estados, pontuando o trauma psíquico eenfatizando que “qualquer acontecimento que provoque os efeitospenosos do medo, da angústia, da vergonha ou dor psíquica, podeatuar como trauma” (1980, p. 12).

Se o desenvolvimento do conceito se deu a partir do enfoquecentrado no indivíduo como agente principal, outras abordagenspassaram a considerar o contexto social e outros fatores que o inte-

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gram como elemento produtor de traumas. Bettelheim (1981) pro-põe o conceito de traumatização extrema, enfatizando o trauma , eagregando o termo “extremo” para destacar a sua natureza especifi-ca, que nem em sua maneira de ocorrer, suas conseqüências a curto ea longo prazo, sua sintomatologia, e suas implicações sociopolíticas,pode ser comparado com outros eventos traumáticos. O autor des-taca, ainda, o caráter de intencionalidade política, que está marcadapela forma de exercer o poder na sociedade. Visa, então, adesestruturação do sujeito devido a suas posições ideológicas e suapratica política, o qual é produzido por outro ser humano.

Keilson (1992) propõe uma traumatização seqüencial, conceitono qual o período pós-ditatorial ou pós-guerra não somente evi-dencia as conseqüências prolongadas das experiências traumáti-cas, sendo parte integrante do próprio processo traumático. Apli-cando o referencial de Keilson ao caso chileno, é possível observaras seguintes seqüências:

Primeira seqüência Traumática: Tem seu início com o golpemilitar e culmina no momento em que ocorre a situação repressivaespecífica.

Segunda seqüência Traumática: Começa no momento em queuma situação repressiva afeta diretamente a um sujeito ou à famí-lia e se fecha com o processo de termo do regime militar.

Terceira seqüência Traumática: Inicia-se ao terminar a ditadu-ra, não estando claro quando se produzirá seu termo. É a seqüên-cia mais importante e complexa, já que o caráter traumático depen-derá das características do processo (DO SOLAR; PIPER, 1995).

As autoras deste artigo concebem o trauma gerado pelo terro-rismo de Estado, segundo a concepção teórica de Martín-Baró (1992),que define o fenômeno como um processo psicossocial, produto deuma vivência prolongada de violência que mudou a maneira deser e de agir dos indivíduos. Enfatiza que suas origens são encon-tradas no conjunto das relações sociais, mantendo-se por diversasmediações institucionais, grupais e individuais. O autor reconhe-

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ce, ainda, que o entendimento e a solução não só requerem o aten-dimento terapêutico do problema individual, mas, também, apon-tam a necessidade de se abordar as estruturas e as condições soci-ais traumatógenas.

Nesse processo histórico, o processo dialético do indivíduo étanto ativo quanto passivo, o que permite assumir que seu desen-lace não é irreversível. Assim, quando a experiência traumática estávinculada a um fator estressante e a um meio traumatizanteimplementado a partir de uma ordem política, a sua prolongadamanutenção é o componente que alimenta e produz uma gravedeterioração no rendimento ocupacional, nas relações sociais e noprojeto histórico de vida.

O proposto anteriormente se contrapõe ao conceito de Trans-torno por Estresse Pós-traumático (PTSD), freqüentemente utiliza-do no âmbito médico e cuja definição diagnóstica está expressa noManual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-4),e o Código Internacional de Doenças (CID-10). Esses códigos fa-zem referência à aparição de sintomas identificáveis em relação aum fato traumático, neste se homologam os elicitadores de desas-tres naturais com elicitadores que provenham de outros seres hu-manos, ambos como agentes causadores do transtorno.

Tal fenômeno é ainda mais complexo quando advindo de açõespremeditadas, como é o caso da repressão política exercida peloEstado e aplicada por seus agentes. A visão dos modelos médicostradicionais e dominantes percebeu o trauma a partir de seu cará-ter individual, prescindindo de sua perspectiva histórica: sua di-mensão social, cultural e suas conseqüências a longo prazo.

RETRAUMATIZAÇÃO

O trauma psicossocial tem um caráter recorrente e episódico,evoluindo no tempo com exacerbações geradas por situações polí-

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ticas e sociais que têm uma relação de significância com essas expe-riências traumáticas.

Pastrana e Venegas (2001) assinalam que a retraumatização, aoter sua origem no social, se expressa numa agressão constante ecotidiana, já que o contexto sóciopolítico é o que afeta de maneiradireta o estado de animo e a qualidade de vida da pessoa. O indiví-duo afetado re-experimenta os sintomas quase com a mesma in-tensidade do evento traumático original, o que se expressa numdevir de afetos, emoções e pensamentos derivados da experiênciatraumática do passado. Corroborando o proposto por Bastias, Mery,Rodríguez e Soto (2001), que sustentam que com cada episódioretraumatizante se acentuam sentimentos de raiva, injustiça e im-potência, abandono, perda e frustração por expectativas não cum-pridas por parte do Estado. Da mesma forma, acentuam-se o usode estratégias cognitivas e comportamentais, como a tendência adesqualificar, racionalizar e reagir, evadindo a dor, agudizando asintomatologia, a evolução dos diagnósticos e transtornos, reque-rendo por sua vez períodos mais prolongados de intervenção.

Ao entender como o trauma vai se enraizando pelasretraumatizações, podemos conceber o período de pós-ditaduracomo parte integrante do processo de traumatização global e detransgeneracionalidade do dano.

TRANSGERACIONALIDADE

O conceito de transgeracionalidade surge nos anos de 1950,quando o governo Alemão decide indenizar as vítimas doholocausto e, por necessidade, resolve estabelecer os critérios paraefetuar a reparação. Os elementos que foram levados em conta noprocesso de reparação se associavam aos danos produzidos na saú-de física, excluindo sintomatologia e transtornos de origem psico-lógica. Na efetivação da associação entre ambos os fatores, dão-se

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conta de uma sintomatologia específica dos sobreviventes, assimcomo de seus filhos, expressa nas manifestações de ordem psicoló-gica como psicopatológica, propondo-se a hipótese de que os so-breviventes foram afetados em diversos graus por sua experiênciatraumática.

Estudos concluem que estas manifestações representam umasíndrome relacionada com processos de adaptação pré e pós-guer-ra. Eitinger (1980) assinala o fenômeno como um fator específicodos sobreviventes e que estaria em relação direta com o grau deseveridade das torturas e as vivências aí experimentadas. Estudosposteriores corroboram o fator transmissão de geração do impactodo dano que assume na segunda geração e que compromete áreasvinculadas com a construção do mundo, com as característicasintrapsíquicas (ansiedade, depressão, somatizações, culpa etc.), comas relações familiares, a vulnerabilidade e o modo de conciliar osconflitos (SOLOMON, 1997).

No Chile, as investigações a esse respeito, levadas a cabo comvítimas de perseguição política, indicam que o processo social incidena construção e reconstrução transgeracional das dinâmicasintrafamiliares do processo traumático. Os filhos de famílias afeta-das foram e seguem sendo confrontados com uma série de manda-tos, expectativas e legados que incidem diretamente na construçãoe realização ou não de seus projetos de vida. Isto se confirma e seobserva no genocídio que sofreu o povo. Armenio em 1915, já quedepois de oito décadas ainda se percebe os efeitos na segunda eterceira geração com uma alta presença de psicopatologia, nesteúltimo segmento da população estudada (KUPELIAN;KALAYJIAN; KASSANIAN, 1997), compartilhando conclusões jáencontradas nos estudos mencionados referentes ao Holocausto.Os estudos reforçariam o proposto por Pugent-Rene (1991), queassinala que:

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Quando não há elaboração nem representação da violênciasofrida se produz, por uma parte, uma ruptura e perda datransmissão da história familiar e social e por outra, o horrorse inscreve como um excesso inominável no psiquismo dospais, o que forçará sua inscrição no corpo e psiquismo dageração seguinte e atuará como uma linha de força, comoeixo que orienta um destino (p. 111).

Por sua vez, Tisseron (1997) propõe que o funcionamento psí-quico individual não só se relaciona com os conflitos próprios epelas experiências particulares de cada um, mas também pelasvivências comuns e os acidentes singulares que marcaram a vidados pais, avôs, parentes e amigos. Pelo que, compreender o trau-ma, tanto na primeira como nas gerações seguintes, atinge sua es-sência ou ápice quando apreendemos a totalidade de suas relaçõeshistóricas.

As investigações tiveram um desenvolvimento histórico, quese prolonga há décadas de trabalho nesta temática, o que incidiuna ampliação e no aprofundamento do conceito. Apesar disso, nãose realizaram estudos em partes significativas da população, ad-quirindo, atualmente, grande relevância tanto no aprofundamentodas conseqüências, como na definição do conceito, dado que aênfase na abordagem se baseou na consangüinidade e descendên-cia. Ao propor que o homem e suas gerações são provenientes demúltiplos processos, desenvolvidos em diferentes momentos e con-textos sociopolíticos, que vão em nosso país desde o golpe de Es-tado, ditadura e governos de transição, é que resgatamos o pro-posto por Barudy (1979). Segundo esse autor, os padrõescomportamentais são pautas relacionais, que não são efeito dacausalidade, mas sim de uma produção humana contextual,biopsicosocial e interdependente, numa rede de interações recí-procas que se afetam constantemente. Portanto, entenderemos portransgeneracionalidade o assinalado por Bastias, Mery, Rodrígueze Soto (2001):

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Como a tendência a repetir rigidamente pautas relacionais,que se desenvolveriam posteriorimente ao fato repressivoentre as vítimas e aquela pessoa com as quais possuem umvínculo, seja por consangüinidade ou por laços afetivos,quem repetiriam ditas pautas. Isto se reflete na modalidadede suas relações interpessoais, perpetuando, assim, a funci-onalidade do sistema individual, familiar e social (p. 59).

PESQUISA

Esta investigação proporciona uma análise sistêmica no pro-cesso de entendimento de como estes padrões transcendem a esfe-ra individual, socializando-se coletivamente. O desenhometodológico desenvolvido na pesquisa foi a Grounded Theory e aamostra esteve constituída por 23 mulheres e 10 homens, com ida-des que variam entre os 12 e os 70 anos. Os níveis socioeconômicosaos quais pertenciam variam dos estratos médios altos até os estra-tos baixos. Alguns dos entrevistados eram beneficiários de açõesde organizações não governamentais, Programa de Reparação eAtendimento Integral em Saúde e Direitos Humanos (PRAIS) eoutras pessoas não eram beneficiárias de programa algum.

A população estudada possui alguns antecedentes comuns,como o fato de ter tido um familiar ou amigo próximo que vivencioualgum tipo de repressão política, tal como prisão política, exclusão,exílio, execução política, detenção e desaparecimento.

Nesta investigação, aparece em evidência atransgeneracionalidade do dano. A presença atual do dano é per-cebida, de forma geral, em todos os entrevistados, no referente àpermanência de sentimentos de injustiça, na raiva e no sentimentode impotência. Existe, entre os entrevistados, a necessidade de se-guir desenvolvendo estratégias para mitigá-los. Em nível mais es-pecífico, isto é, não na totalidade da mostra, observou-se que exis-tem diferentes graus de elaboração a respeito do sucedido; a

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radicalização se observa como uma das conseqüências mais influ-entes na qualidade de vida atual destas pessoas; existem diferentesníveis de obstaculização dos projetos pessoais e é freqüente quepercebam o contexto sociopolítico atual como um palco, onde aimpunidade se faz apresente sendo um agente retraumatizante.Alguns sentem ainda medo pela possibilidade de um novo golpede Estado e de envolver-se politicamente.

Distinguiu-se as variáveis que, notadamente, incidem no fenô-meno: o nível de informação manejada é fundamental nacronificação do dano; a psicoterapia incide na elaboração do suce-dido; a maneira que tem a família para enfrentá-lo influi na manu-tenção do dano; a característica de personalidade tendente a focali-zar-se no passado influi em como as pessoas elaboram e cronificamem maior ou menor medida o sucedido.

Assim mesmo, observou-se uma série de estratégias que todostiveram que desenvolver ao longo destes anos, principalmente,evitar a dor, o medo e a utilização de redes de apoio, manutençãoda memória histórica e do acontecido pela vítima.

Em síntese, as repercussões assinaladas se relacionam com osefeitos da transgeracionalidade do dano, transcendendo aconsangüinidade das pessoas comprometidas com as ditas experi-ências, perpetuando, assim, o sistema, já que estas seretroalimentariam cotidianamente. Os danos se expressam nas per-cepções, afetos, cognições e nas condutas, gerando estratégias deação e interação e conseqüências, tanto gerais como específicas, quepoderiam mostrar a ação da sociedade.

MEMÓRIA

Conceitualmente, a noção de “memória” foi se desenvolvendoa partir do aporte de diversas disciplinas das ciências sociais. Osociólogo francês Maurice Halbwachs (1992), assinala que a me-

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mória coletiva se constitui através da integração de memórias in-dividuais, as quais estão sempre emolduradas socialmente. Estesmarcos são portadores da representação geral da sociedade ou deum grupo social, de suas necessidades e valores. Este processo, decompartilhar e criar narrativas comuns, é fundamental na recorda-ção de eventos coletivos, os quais, com freqüência, são reforçadospor rituais e comemorações grupais.

Estes conceitos serviram de base para compreender como seutiliza a memória, e para recuperar e entender importantes even-tos históricos. Bem como a Segunda Guerra Mundial, o Holocausto,a Guerra de Coréia, do Vietnã, as ditaduras na América Latina eoutros eventos traumáticos são os que impulsionam especialistas eacadêmicos de diferentes disciplinas a desenvolver teorias que per-mitam compreender as sutilezas e complexidades dos processossociais de construção de memória em relação ao trauma(VÁZQUEZ, 2001).

A memória histórica é uma recordação coletiva, uma evocaçãovoltada para o presente que tenta resgatar o valor simbólico dasações coletivas vividas por um povo no passado. De tal forma quese transforma numa ação destinada à preservação da identidade eà continuidade de um grupo social, tendo em vista não esquecer oaprendido.

Por outro lado, a memória social pode ser entendida como umaconstrução sócio-histórica que incorpora ao mesmo tempo umaestrutura de sentimentos. Isto é, as memórias sociais são produzi-das como um grupo de simbolizações a partir de textos, imagens,canções, monumentos, rituais e as conseguintes emoções associa-das (SIMON; ROSENBERG; EPPERT, 2000), impulsionando o de-senvolvimento de movimentos e a construção de novas represen-tações sociais que permitem a re-significação e elaboração dos trau-mas passados (MÉNDEZ, 2005).

Jean-Louis Dèotte (1998) propõe a existência de dois tipos deesquecimento: o esquecimento passivo e o esquecimento ativo.

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Ambos cumprem funções diversas, dependendo de como são in-terpretados e utilizados tanto individual como coletivamente. Oesquecimento passivo se caracteriza pela implantação de estratégi-as de evitação, de negação e de imposição do silêncio opressivo enegador.

Por outro lado, o esquecimento ativo é complementar à me-mória, e é aquele processo que opera depois que se produziu umregistro do acontecimento traumático. Isto é, quando teve um reco-nhecimento publico dos abusos vividos de tal forma que só atravésde um processo de elaboração coletiva destas vivências traumáti-cas é possível aceitar, simbolizar e integrar o acontecido a partir dotrabalho da recordação e da memória.

Tzvetan Todorov (2000) propõe uma análise dos usos da me-mória a partir de dois conceitos: memória literal e memória exem-plar. A memória literal nos permite manter o evento traumático emseu sentido textual. Esta visão estática nos permite estabelecer cau-sas e efeitos; explicar as conseqüências desse evento tanto no indi-víduo quanto no grupo social. Permite-nos também estabelecer certacontinuidade entre o ser que foi e quem é no presente, como tam-bém o passado e presente de um povo ou comunidade.

A memória exemplar, por outro lado, é potencialmentelibertadora, já que nos permite utilizar o passado com vistas aopresente, quando conseguimos processar as lições vivenciadas, as-sumidas num presente e projetadas ao futuro. Isto não necessaria-mente implica negar nem esquecer o traumático do evento já quese pode inscrever como uma manifestação de uma categoria maisgeral, como um modelo para compreender situações novas, comagentes diferentes. Este processo também implica um trabalho deduelo que neutralize a dor causada pela recordação, controlando-ae colocando-a em posição marginal, o que permite que a recorda-ção se abra à analogia, à generalização para poder extrair uma li-ção que nos permita separar-nos do “eu” e assim conseguir enten-der o “outro”.

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As autoras concebem a memória como um construtocognitivo, afetivo e social que nos permite estabelecer e elaborarquem somos e como nos desenvolvemos como indivíduos atra-vés do tempo; portanto, a memória está estreitamente vinculadaà maneira como conformamos nossa identidade. Por outro lado, amemória se emoldura num contexto social que é o que alimenta enutre as memórias individuais através das memórias coletivas,entendendo-se estas memórias individuais como uma sorte dedescendência ou produto das experiências grupais, isto é, um re-flexo e parte do social, pelo que nossa memória é transmitida intere transgeneracionalmente.

MEMÓRIA ENQUISTADA

É assim que propomos o conceito de memória enquistada, ba-seado no proposto por Tisseron (1997). O autor explica que quandoos eventos traumáticos ultrapassam a capacidade de o indivíduoelaborá-los via psiquismo, o impacto destes acontecimentos ficainstalado como um corpo estranho, silenciando, desta forma, aque-las vivências que não são processadas.

A memória enquistada refere-se a esta memória literal e passi-va que se tem ancorada em nosso ser, que criamos a partir da expe-riência individual de eventos traumáticos, o que se sustenta nasrelações dialéticas nas quais co-existimos. Portanto, os efeitos soci-ais dos traumas extremos vão sendo incorporados lentamente, as-similando-se lentamente, chegando a ser encarnado no corpo indi-vidual como um nodo interno que por sua vez se transmite emforma de recordações e narrativas a outros, através de mecanismosde repetição e manutenção de padrões sociais e culturais deriva-dos dos efeitos do trauma psicossocial. Esses traumas são transfe-ridos às gerações e a seu meio social conformando nossa identida-de e intersubjetividade de maneira rígida no tempo.

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Desde uma perspectiva social, a memória enquistada nos aju-da a entender a ação político do grupo FILHOS, constituídos porfilhos(as), sobrinhas(os), netos(as) de mortos e desaparecidos polí-ticos. Este grupo se forma a partir da necessidade de ter um lugarde pertencimento e de contenção emocional, no qual pudessemexplorar suas próprias temáticas com relação ao desaparecimentoe à morte de seus familiares. O processo de geração de práticaspolíticas que experimentou este grupo está sendo pesquisado numestudo narrativo que explora o significado da construção de práti-cas de memória e resistência, seus efeitos curadores, bem como asconseqüências transgeracionais do trauma neste grupo de jovens(ESPINOZA, 2006).

Os resultados destas investigações (BASTIAS; MERY;RODRÍGUEZ; SOTO, 2001; ESPINOZA, 2006) sugerem que, entreos efeitos dos danos transgeneracionais se encontra a falta de infor-mação com respeito ao contexto em que se produz o desapareci-mento ou a morte e a conseqüente vivência imperfeita de elabora-ção do duelo; bem como, o desconhecimento das histórias pessoaisde seus familiares. Tais fatos, unidos ao silêncio familiar e social,são elementos fundamentais que atuam no processo de construçãode uma memória política e pública de seus seres queridos. Estafalta de informação pode também ser entendida como vazios namemória que impedem a elaboração dos processos traumáticos,favorecendo o enraizamento das poucas vivências e recordaçõesque têm de seus próximos.

A rigidez desta memória enquistada determina não só os pa-drões afetivos e comportamentais, mas também as eleições, deci-sões e a maneira através das quais nos apossamos de nosso meio.Da mesma forma, os efeitos estão subordinados aos acontecimen-tos nacionais e a seus efeitos retraumatizantes, existindo uma sortede bloqueios e negações por parte da sociedade frente aos episódi-os traumáticos. O coletivo se manifesta de forma alienada, soman-do-se a isso uma desconfiança generalizada que obstrui a capaci-

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dade empática, condicionando a vinculação e validação afetiva, li-mitando o estabelecimento e a participação em redes de apoio quepermitam ir gerando códigos adequados a sua experiência e integrá-los a uma simbologia compartilhada socialmente. As recordaçõesse voltam infrutuosas numa sorte de alienação social, evidencian-do-se na diminuição do protagonismo e participação cidadã, nomarco do exercício do poder político. Tais posturas estão em acor-do com o modelo neoliberal imperante que implanta a passividadesocial como uma forma autoritária de controle econômico e políti-co para perpetuar o sistema.

DISCUSSÃO

Um dos discursos mais comuns que se repetem em torno douso da memória é a necessidade de conhecer a verdade para que“nunca mais” voltem a acontecer as atrocidades do passado. Estafunção da memória supõe que o esquecimento coletivo levaria, ir-remediavelmente, à repetição compulsiva daqueles atos que nãosão devidamente vigiados pela memória, conformando um esque-cimento passivo que é utilizado tanto pelos indivíduos como pelocoletivo.

Em nível individual, podemos vislumbrar o uso deste esqueci-mento como uma estratégia para tentar aplacar os múltiplos efei-tos traumáticos da violência política. Os que se manifestam numanegação da realidade, um impedimento de estímulos, umaautocensura e um desejo de situar-se no presente visando ao futu-ro, mas evitando todo contato com um passado doloroso. Este pro-cedimento dificulta o resgate de aspectos presentes e futuros, fi-cando clara a maneira de agir, pensar, sentir, impondo obstáculos aseus projetos pessoais, e a sensação de ter que cumprir com lega-dos e lealdades familiares e coletivas.

De acordo com as metodologias utilizadas na população estu-

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dada, cabe destacar a manutenção da memória sócio histórica e doacontecido com a vítima, na qual se distingue um contínuo, que vaidesde uma forte ênfase em manter as recordações; o não forçarnem o acesso nem a retirada destes, até o tratar de não os abordar.Observa-se que as pessoas que utilizam estratégias centradas namanutenção ou negação da memória sócio histórica e a recordaçãodo sucedido, tendem a abordar, de maneira pouco flexível, as difi-culdades cotidianas.

É possível que haja relação com a atitude por parte das pesso-as de centrar-se, principalmente, em elementos do passado, o quepoderia fundamentar-se numa atitude familiar e de seu meio am-biente, concordante com esta manutenção, como também com anecessidade de reivindicar a memória, impossibilitando a elabora-ção do vivenciado. O dito anteriormente incide na persistência desentimentos de raiva, impotência e injustiça, os quais se agudizame se mantêm devido às expectativas criadas – e que não se resolve-ram como eles esperam - com respeito às ofertas e soluções a nívelpolítico, social e judicial, com relação ao tema das violações aosdireitos humanos em decorrência do tempo, já que num primeiromomento acreditavam que o fim da ditadura traria conseqüênciasreparatórias. É importante mencionar que as estratégias desenvol-vidas foram um elemento funcional que permitiu a coesão numcontexto sociopolítico caracterizado pela implantação daahistoricidade, sendo um elemento de resistência para eles.

Em nível coletivo, pode-se inferir que, no Chile, existe a impo-sição de um esquecimento passivo desenvolvido dentro dos mar-cos da transição, estabelecendo um padrão institucional de comovai ser assumida nossa memória. Isso impede a elaboração dos fa-tos traumáticos no nível social e instala a ocorrência de eventosrelativo a violações, que incorpora novas situações ao játraumatizado contexto, sendo a retraumatização um vetor e com-ponente fundamental da transgeracionalidade.

É assim que este processo dialético se nutre e aprofunda tanto

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no psiquismo como no imaginário social e é expulso através dasverbalizações e recordações, as quais vão ratificando uma determi-nada imagem, que impede outros tipos de elaboração. A dor queimplica é cada vez mais temível, já que ao tratar de integrar outrosaspectos tão parcializados, ocultos e privatizados, abre-se um pro-cesso de duelo, que implica uma redefinição e reorganização difícilde realizar e, portanto de assumir.

O mencionado se manifesta no funcionamento da sociedade,onde se implanta a dicotomia vista desde a idealização contra adesumanização, o qual facilitaria a justificativa de atitudes e con-dutas, permitindo desta maneira não se responsabilizar pelas situ-ações. O Estado, através de suas instituições, maquinaria e deci-sões administrativas, técnicas, políticas e judiciais omite, nega, si-lencia e encapsula a dor: “o que não se vê, não existe”. E assimimplementa uma memória literal que permite manter o evento trau-mático encravado no tempo e inalterável.

O elemento perigoso desse tipo de memória é que seu uso de-semboca no assujeitamento do presente ao passado. Um exemplodisso foi a situação vivida na comemoração dos 30 anos do golpede Estado, que se caracterizou pelo contínuo bombardeio de ima-gens. O preocupante desta excessiva exposição foi a completa faltade elaboração emocional que permitisse ao cidadão começar umprocesso de integração desse passado traumático. É assim que, paraalguns, produz-se a saturação e, conseqüente, o desinteresse pelotema e, para outros, a re-traumatização, produto da impossibilida-de de elaboração de suas próprias experiências. Em ambos, estepassado se apoderava do presente.

Os níveis de informação trabalhados, tanto em qualidade comoem quantidade, resultam de grande importância para as avaliaçõesque realizam a respeito do dano que se produziu neles e em seusfamiliares. A escassez de informações se deve, principalmente, porum lado, pelo fato de que são familiares ou amigos de executadospolíticos ou detentos desaparecidos e, por outro, porque a vítima,

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apesar de encontrar-se presente, não expressa nem compartilha ovivido (BASTIAS; MERY; RODRÍGUEZ; SOTO, 2001). No estudode Espinoza (2006), observa-se a existência de um processo de frag-mentação das memórias pessoais e sociais, devido à falta de obje-tos e recordações a respeito de seus familiares, impedindo a possi-bilidade de conhecê-los, já que os cuidadores não tocavam nos te-mas com o fim principal de protegê-los da dor ou porque não seencontravam em condições de abordar o vivenciado. É como socia-lizar a informação, vista como um aprendizado. Como um elemen-to também ameaçador já que coexiste com o medo, a perda de se-gurança em planos afetivos, sociais e econômicos.

Em ambos os estudos, observou-se uma tendência àdicotomização em suas apreciações, o que os leva a não se relacio-nar com aquelas pessoas que avaliam como não pertencentes a suaideologia e, portanto, a seus valores, limitando o poder redefinir deforma mais acabada o sucedido. Desta maneira, os níveis deradicalização eram esperáveis, já que não existia outra alternativadevido ao fato de que os espaços em que tiveram que se desenvol-ver eram restringidos pelo contexto sociopolítico que a ditaduraimplantou. Portanto, estando inserido num contexto radicalizado,o mais provável é que as pessoas se localizem num dos extremos.Sendo assim, a sociedade, em seu conjunto, viu-se definida nessetipo de relações. As pessoas entrevistadas seriam um reflexo destefuncionamento, o que implicaria não se contatar com um outro di-ferente e validá-lo como tal, limitando assim as possibilidades dedesenvolvimento. Dado o contexto sociopolítico, as famílias gera-ram pautas relacionais que, como se disse anteriormente, serigidizaram incidindo na privatização do dano, tendo que viver, dealguma maneira, sem poder expressar o que sentiam, inclusive noâmbito familiar. Isto se reforçaria pela ausência de reconhecimentosocial de suas vivências e pelos reforços sistematizados por partedo Estado.

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SUGESTÕES

Para que se estabeleçam as mudanças no indivíduo e no con-junto da sociedade é prioritário gerar, reforçar e utilizar as redes deapoio, tanto de caráter informal como formal, já que o sentido decrença e pertencimento a agrupamentos ajuda a estabelecer víncu-los íntimos e satisfatórios. Isso permite redefinir os acontecimen-tos, aprender novas estratégias, elaborar e integrar a totalidade dosacontecimentos conseguindo flexibilizar as verbalizações e asinterações, tornando possível, deste modo, deixar fluir as recorda-ções e os sentimentos. Permite-se, assim, resolver seus conflitos edesembrulhar-se de uma maneira que é vivida com funcionalida-de. Através da comunidade pode-se transformar a estrutura socialpara resolver os problemas propostos, criando espaços onde se per-mita resgatar aqueles símbolos que fazem parte da memória sociale histórica, conseguindo transformar o ato de recordar num ele-mento curador ou gerador de novos significados. Fortalece-se, as-sim, as concorrências da pessoa, rompendo a estigmatização eprivatização do dano.

É importante recordar que os processos de reparação social noscontextos onde se produziu uma traumatização pela ação do Esta-do requerem, necessariamente, a vontade política para que se esta-beleça a verdade e a justiça, já que são condições indispensáveispara as elaborações traumáticas e para a prevenção dasretraumatizações. Mais ainda, requer que o Estado seja o facilitadorde um uso ativo do esquecimento, isto é, que promova as instânci-as públicas que permitam a inscrição dos eventos traumáticos nocoletivo para sua elaboração social. É importante ter uma transiçãodesde a memória literal à memória exemplar, que permita a elabo-ração dos sentimentos de raiva, injustiça e impotência, tanto nasvítimas, como nas pessoas próximas e em todas aquelas pessoasque se sentem afetadas.

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Recebido em: janeiro de 2006

Aprovado em: abril de 2006

Resumo. Tendo como ponto de par-tida o conceito de religião popular,este sucinto trabalho concebe as di-ferentes vertentes do sincretismo re-ligioso afro-brasileiro como proces-sos de construção de sentido queconcorrem para o enfrentamento dasduras condições de vida que,enraizadas na diáspora africana, fo-ram impostas aos negros-brasileirose até hoje não estão totalmente su-peradas. Quanto ao método, ao in-vés de um discurso único de referên-cia, buscou-se a construção de refe-rências nas regiões de encontro dediscursos. Na condição daquele quesabe e soube bem expressar essa pos-sibilidade, o afro-descendente é con-siderado o principal sujeito históri-co, político e epistemológico. O ob-jetivo deste trabalho é contribuirpara os debates que envolvem o uni-verso religioso afro-brasileiro, sobre-tudo aqueles voltados aos problemasda produção de sentido, de conheci-mento e de subjetividades.

Palavras Chave: religiões afro-brasi-leiras, produção de sentido,subjetivação.

O conceito de religião popular e asreligiões afro-brasileiras:cultura,

sincretismo, resistência e singularidade*

Alexandre Magno Teixeira de Carvalho

Doutor em Ciências (ENSP/Fiocruz) eSanitarista da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro (SES/RJ)

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Abstract. By the concept of popularreligion, this paper views the afro-brazilian religious syncretism like aprocess of sense construction and away of life. The Brazilian afro-descendent was counted the meanhistorical, political andepistemological subject. The methodis based in a construction ofdiscoursive intersections instead ofan only discourse. The aim is add tothe afro-brazilian religious universecontest, essentially to the questionsof sense production, knowledgeproduction and subjectivity.

Keywords: afro-brazilian religions,sense production, subjectivity.

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Sou preto e branco, quero dizer, me destorço para pinçar naspontas do mesmo compasso os dualismos do mundo, não aceito omaniqueísmo do bem e do mal, antes me obstino em admitir que

no branco existe o preto e no preto, o brancoPaulo Mendes Campos

Há uma tentativa de eliminação daquilo que eu chamo deprocessos de singularização (...) Tudo o que é do domínio da

ruptura, da surpresa e da angústia, mas também do desejo, davontade de amar e de criar deve se encaixar de algum jeito nos

registros de referências dominantes. Há sempre um arranjo quetenta prever tudo o que possa ser da natureza de uma dissidência

do pensamento e do desejoFelix Guattari

À guisa de introdução, é interessante notar que há no meiocientífico1 um preconceito (uma espécie de senso-comumintelectualizado ou mesmo obstáculo epistemológico, se assim op-tarmos por designá-lo) que desqualifica a expressão religiosa dospobres e, por efeito da sobreposição do preconceito racial e cultu-ral ao sócio-econômico, dos negros2 : não raro, Marx é usado comoreferência, como se fosse possível transpor automaticamente, deforma acrítica, os conceitos que Marx utiliza em sua “Crítica dafilosofia do Direito de Hegel (introdução)” para o contexto doprocesso político latino-americano. Talvez um dos erros tenha sidoaceitar que “a crítica da religião é o pressuposto de toda a críti-ca”, universalizando uma crítica que tinha seu tempo e lugar naAlemanha do século XIX. O sujeito da religião popular, como ve-remos mais adiante na concepção de Parker (1996) e de outrosautores, não pode ser confundido com o Estado ou a sociedadealemã que produziam “a religião como consciência invertida domundo” (MARX, 2001, p. 45). No contexto da obra de Marx, de1843/1844, lutar contra a religião, fazer a crítica da religião eralutar contra a ordem capitalista que imperava. A idéia de “consci-ência invertida do mundo”, todavia, se pensada do ponto de vis-

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ta do latino-americano em processo de colonização-exploração,ganha uma conotação bem diferente: em vez de alienação-subtra-ção e inversão para controle e “persuasão” (a la Lutero), consciên-cia invertida como crítica (negação) de um mundo explorador eopressor e, simultaneamente, como proposição (afirmação) de ummundo Outro. Refletindo sobre aspectos históricos da religiãonegra, Luz (1983, p. 28) afirma que “longe de ser ‘ópio do povo’, areligião negra é ponto básico, é fonte de afirmação dos valorescivilizatórios negros e núcleo de resistência às variadas formas deaspirações neocolonialistas”.

No contexto do debate sobre as relações entre religião populare transformação revolucionária do mundo, há um enunciado deMarx (2001, p.49) que merece ser explorado e relativizado:

a história [...] atravessa muitos estágios ao conduzir uma for-mação antiga ao sepulcro. A última fase de uma formaçãohistórico-mundana é a comédia [...]. Por que tem a históriaum curso assim? A fim de que a humanidade se afaste alegre-mente [rindo] 3 do seu passado.

Se, por um lado, o “povo de santo” que constrói/reconstrói areligiosidade afro-brasileira desconhece os Diálogos cômicos deLuciano, por outro, conhece muito bem as gargalhadas [afastar-serindo do passado] dos Exus e Bombogiras da Umbanda (de raizbanto) que ajudam a transformar sofrimento em ação. Quando secompreende o sentido e a importância de Exu no complexo cultu-ral jêje-nagô, não é difícil pensá-lo - Exu, o princípio dinâmico, Se-nhor dos Caminhos – como o conjunto das forças da História, ouaté mesmo como a própria História.

Contestando um possível caráter alienante da religião popu-lar, Parker (1996, p. 271) lembra que “num continente subdesen-volvido e majoritariamente cristão como a América Latina, a reli-gião subsiste e, inclusive, se revitaliza como sentido significativonas massas populares. A função de protesto contra a opressão que

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a religião cumpriu em muitos processos de luta e resistência popu-lar apresenta o desafio para reconsiderar o problema”. O autorsustenta a hipótese de “que o povo, enquanto agente histórico-social, produz coletivamente suas representações e práticas sim-bólico-religiosas, através de um processo no qual se evidencia, demaneira diferenciada, segundo a posição relativa na estrutura declasses e no campo religioso, seu caráter dominado e, ao mesmotempo, relativamente autônomo. Através de um processo de pro-dução de sentido, condicionado e condicionante, as diversas fra-ções e classes subalternas expressam em algumas de suasmultiformes manifestações religiosas um protesto simbólico”(PARKER, 1996, p. 272).

Analisando as tensões entre religião popular e modernizaçãocapitalista (ou secularização modernizante) e as especificidadesdesse processo na América Latina, Parker (1996) argumenta que oconceito de “religião popular” é mais adequado que o de “religio-sidade popular” para “tratar cientificamente do fenômeno das reli-giões populares” no continente. A religião popular é vista como“manifestação da mentalidade coletiva sujeita às influências de umprocesso de modernização capitalista e de suas manifestações naurbanização, na industrialização, na escolarização e nas mudançasnas estruturas produtivas e culturais” (PARKER, 1996, p. 42). Esseautor pensa a religião popular no seu contexto de produçãosociocultural e histórico e diferencia “cultura popular latino-ame-ricana” do conceito gramsciano de “cultura subalterna”. Nessa pers-pectiva, cultura é entendida como o:

conjunto de práticas coletivas significativas baseadas nosprocessos de trabalho em função da satisfação de vasta gamade necessidades humanas, que se institucionalizam nas es-truturas de signos e de símbolos, que são transmitidas poruma série de veículos de comunicação e internalizadas emhábitos, costumes, formas de ser, de pensar e de sentir(PARKER, 1996, p. 52).

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Seguindo a linha da crítica culturalista, Parker compreende areligião popular como uma “contracultura da modernidade” e aconceitua como “hemiderna”4 . O autor percebe nas expressões re-ligiosas populares um pensamento sincrético5 que é “um pensa-mento hemiderno, que coexiste, aproveita-se e ao mesmo tempo re-jeita e critica a modernidade” (PARKER, 1996, p. 323-328). Por meiode um complexo processo de produção simbólica, as esferas da re-alidade (o natural, o social e o sentido existencial) tendem a uma“síntese vital”.

Ao fazer referência aos processos de construção das crenças epráticas religiosas pelo povo do continente latino-americano, Parker(1996, p. 26) salienta:

Na base da estrutura social, entre os indígenas e mestiços,entre os negros, mulatos e cafuzos, gerou-se uma dinâmicade criatividade religiosa que, a partir do seu próprio univer-so lingüístico-simbólico, reinventa uma expressão religiosapara enfrentar sua nova situação.

Dessa maneira, por meio da expressão religiosa, sustenta oautor, os “grupos subalternos” tentam superar a experiência trau-mática de domínio e submissão “ao regime colonial e de explora-ção econômica desses senhores “cristãos”, que com eles cometiamtoda sorte de ultrajes, e às diversas formas pelas quais a Igreja pro-curava (compulsiva ou persuasivamente) batizá-los para incorporá-los à cristandade colonial”. Observe-se que aí o autor destaca o papelde resistência e ação da religião popular contra, simultaneamente,o processo de colonização-exploração e contra a própria religiãodos colonizadores (oficial).

O autor distingue quatro tipos de respostas religiosas dadaspelos indígenas aos colonizadores da América Latina:

a) a atitude rebelde; b) a submissão e a integração à cristan-dade colonial; c) a resistência ativa à ordem colonial com

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conotações messiânicas; d) a submissão parcial, aceitando ocristianismo, porém assegurando a existência de crenças an-cestrais por meio do sincretismo (PARKER, 1996, p. 27).

O processo de sincretismo é destacado como característica e“resposta religiosa” que “dá origem aos sincretismos das atuaismanifestações de nossas religiões populares” (Parker, 1996, p.34).Deve-se, contudo, questionar a categoria “submissão parcial”: sehouve (e há) uma “submissão parcial” é porque houve (e há), tam-bém, uma “insubmissão parcial”. A idéia de insubordinação, contu-do, fica apenas implícita na construção do discurso de Parker. Ocontrário (a idéia de submissão tornar-se implícita) aconteceria se aopção do autor fosse “insubmissão parcial”. Trata-se de uma arma-dilha semântica, nem sempre fácil de se perceber quando se cons-trói uma categoria discursiva.

Uma outra perigosa armadilha que se deve evitar é aquela que,sob o manto semântico do conceito de “popular”, mascara, dilui e“recalca”, como bem assinala Luz (1983), a força do processo de cons-trução cultural negro e suas dimensões estética, ética e política. Sodré(1999, p. 126-134) faz uma leitura negativa do conceito de sincretismo.Para ele, a palavra “sincretismo” (que serve, “em geral como um bi-ombo ‘harmônico-pluralista’ para esconder a realidade da discrimi-nação”) traz embutida a idéia de “identidade etnocultural única”brasileira, fomentada pelos discursos elitistas ou de Estado “na ten-tativa de aprisionar as singularidades num único lugar simbólico”(SODRÉ, 1999, p. 127). Dessa visada, a idéia de sincretismo aparececomo produto de um processo de dominação ideológica e econômi-ca que articula “denegação do racismo” e “discriminação identitária”.Os textos de Hélio Jaguaribe e de Celso Ribeiro Bastos, entre outrosexemplos de apropriação do termo ‘sincretismo’ pelas elites nacio-nais citados por Sodré, corroboram os enunciados de sua crítica. To-davia, no mesmo texto, mais a frente, Sodré faz uma leitura diferentedos movimentos sincréticos que se dão no interior do universo ético-político-religioso afro-descendente:

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os nagôs reinterpretaram aqui a sua singularidadecivilizatória, traduzindo a realidade original (africana) emrepresentações adequadas à especificidade do território bra-sileiro [...]. A reinterpretação nagô sempre foi ao mesmo tem-po ético-religiosa e política, o que implica luta para instituir efazer aceitar a realidade reinterpretada ou traduzida [...]. Acomunidade litúrgica afro-brasileira ou de terreiro implica aidéia de um corpo grupal forte o suficiente para dar prote-ção contra as adversidades, contra o estrangeiro hostil [...]. Aliturgia não deixa, assim, de vestir ou exprimir uma práticapolítica bastante clara (SODRÉ, 1999, p. 167-170).

Luz (1983, p. 27-38) adota o conceito de “religião(ões) negra(s)no Brasil” ao invés de “religião afro-brasileira”. Para nós, de acor-do com Barbosa (2002) e em desacordo com a idéia de ‘contribui-ção’, “o centro da cultura brasileira é a cultura do negro”. Desseponto de vista, as chamadas religiões afro-brasileiras podem serpensadas como reinvenções das religiões negras que tiveram suasorigens no contexto brasileiro da escravidão. Por esses motivos,parece-nos mais adequado usar o conceito de religião(ões) afro-brasileira(s), enquanto religião(ões) negra(s), de matriz(es)africana(s), forjada(s) no Brasil. Propomos que os processos desincretismo sejam vistos e pensados de outro ponto de vista: o in-terno ao próprio processo. Dessa maneira, pretende-se ‘libertá-lo’– o processo sincrético – da dupla armadilha que, tanto à direitaquanto à esquerda, acaba por lhe reservar tão somente o lugar deveículo a serviço da ‘dominação’ e por lhe subtrair o que pode terde libertador e revolucionário.

O sincretismo, pois, elemento característico e de fundação dasreligiões afro-brasileiras, não é uma simples “colcha de retalhos”,associação superficial de símbolos ou imagens ou sobreposiçãomecânica de elementos culturais oriundos de tempos e lugares di-ferentes. O sincretismo não é algo tão simples e pueril que se possacompreender com uma olhadela de superfície: é um processo com-plexo que resulta na construção de culturas singulares e não parece

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correto considerá-lo como expressão de submissão (mesmo que essaidéia de submissão receba o adjetivo ‘parcial’). O pensamentosincrético tem características lógicas, semiológicas e sociológicaspróprias e deve-se evitar o perigo da “armadilha evolucionista”(PARKER, 1996, p. 326), aquela que o considera uma etapa menosevoluída ou inferior da história do pensamento humano, destina-da a desaparecer com o progresso. Bastide (1983. p. X-XII), por exem-plo, admitiu:

os problemas por mim levantados sobre o sincretismo nãoexistiam na realidade e não passavam de falsos problemas,uma vez que eu abordara o candomblé com uma mentalida-de etnocêntrica e assim teria de converter-me a uma outramentalidade, caso quisesse compreendê-lo [...]. De qualquermodo, esse primeiro revés transformou-se numa primeiravitória. Com efeito, levou-me ao método que depois passei aseguir – o de repensar o candomblé não somente nos seusaspectos africanos mas também no seu sincretismo, partin-do do interior e não do exterior, capacitando-me assim amudar inteiramente minhas categorias lógicas. Aquilo que aprincípio parecia-me incoerente transformava-se agora emcoerente [...]. A descoberta de sistemas, certamente diversos,mas de todo modo análogos na África e no Brasil, permite-me inferir da riqueza dessa perspectiva6 .

Quando se faz referência ao sincretismo afro-brasileiro, as pri-meiras imagens que vêm à mente são aquelas que associam orixása santos e outras entidades católicas (sincretismo afro-católico). Luz(1983, p. 36-37) argumenta que não há nesse processo nenhumafusão ou sincretismo, mas apenas simples associações simbólicasnas quais “as imagens católicas constituem-se em simples variá-veis conjunturais que em nada alteram a estrutura simbólicasincrônica negra”. Braga (1999, p. 166) levanta a hipótese de que anoção de sincretismo afro-católico deve ter sido em parte construídapela Igreja Católica,

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na sua política de converter um número cada vez maior deindivíduos. A explicação que ganhou cidadania de verdadeexclusiva e absoluta remete sempre a responsabilidade paraos negros que teriam buscado, para ludibriar seus senhores,a identificação de seus deuses e seus mitos com os santoscatólicos. É difícil imaginar esses senhores absolutamenteestúpidos aceitando tacitamente essas imaginosas explica-ções. Se aconteceram, e a história registra algumas ocorrên-cias, foram casos isolados que não servem para explicar, poruma única via, a regra do encontro de dois universos mági-co-religiosos que deveriam se interpenetrar, com concessõese trocas de elementos componenciais de suas estruturas sa-gradas.

Berkenbrock (1997, p. 100), teólogo católico fortemente influ-enciado pela Teologia da Libertação, por outro lado, alega que:

O fechamento das organizações eclesiais dos brancos frenteaos negros deixa claro que a sociedade branca não estavapreparada para dar lugar aos negros. Do lado dos negros, aformação de irmandades próprias contribui para a formaçãoda consciência de raça. Nas irmandades, os negros encontra-vam-se entre si e deram assim início a um catolicismo popu-lar negro, com santos protetores próprios e uma forma pró-pria de festas [...]. A formação de irmandades destes negroscatolicizados à força teve um papel preponderante na trans-missão das tradições religiosas africanas e no surgimento dosincretismo afro-católico.

Com base em Arthur Ramos e Roger Bastide, Berkenbrock(1997, p. 132) também defende que “[o] sincretismo entre cristia-nismo e religiões africanas não é uma exclusividade brasileira [...][ele] já começou na África, inclusive antes mesmo da escravização”.Há, no entanto, três outras vertentes sincréticas fundamentais(BERKENBROCK, 1997, p. 114 – 115) resultantes dos encontros econfrontos entre: 1) diferentes cultos e doutrinas africanas7 ; 2) ele-mentos de religiões indígenas e africanas e 3) entre as referênciasanteriores e o Espiritismo de Allan Kardec, esta última já em fase

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bem tardia, o que pode servir como exemplo da abertura e da dinâ-mica religiosa afro-brasileira. Essa separação em vertentes ou dire-ções, contudo, também não é suficiente, cremos, para abarcar todaa riqueza e a complexidade do que poderíamos chamar de proces-so sincrético afro-brasileiro, pois combinações as mais diversas8

entre as quatro vertentes citadas ainda hoje se processam em vári-os espaços-tempo afro-brasileiros, especialmente no contexto di-versificado da Umbanda9 .

Com base em Geertz10 (1989), Pessoa de Barros e Teixeira (2000,p. 103), pode-se definir o candomblé como um complexo cultural“resultante da elaboração das várias visões de mundo e de ethos pro-venientes das múltiplas etnias africanas que, a partir do século XVI,foram trazidas para o Brasil” e salientam a resistência cultural e po-lítica e a ação de coesão social desempenhadas pelos terreiros. Luz(1983, p. 29) destaca que “o ponto central de reagrupamento dosafricanos e seus descendentes no Brasil foi a religião, caracterizadapelas bem organizadas comunidades religiosas”. Pessoa de Barros(2003, p. 32-33) considera essa forma de organização político-religio-sa uma das mais importantes formas de luta e resistência11 do afro-descendente, tendo sido fundamental para a preservação das cultu-ras, inclusive de elementos das línguas originárias (proibidas pelocolonizador12 ), que foram reconstruídas numa espécie de nova lín-gua para comunicação entre escravos de diferentes etnias.

Pode-se supor que, ainda nos porões dos navios negreiros13 ,em plena travessia do Atlântico, o sincretismo já fosse uma estraté-gia de superação da opressão, da exploração e do sofrimento14 : pormeio de súplicas e ações humanas, orixás, inquices e voduns foramprovavelmente se encontrando (e confrontando) naquele lugar depassagem traumático que exigia a criação de novos laços de solida-riedade e, num movimento de reconstrução, ajudaram a redefinirrelações interpessoais e formas de relação com o sagrado. Sodré(1999, p. 166-167) salienta que a historiografia evidencia rivalida-des de vários tipos (africanos entre si, negros e pardos, crioulos e

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africanos) e que até hoje persistem diferentes tradições etnoculturais.Porém,

sabe-se em contrapartida da solidariedade nascida entre oscativos durante a travessia do Atlântico [...] Os “antigos”[mais velhos] dos cultos afro-brasileiros falam de um inter-câmbio profundo entre as comunidades, capaz de passar porcima de velhas divisões étnicas. [...] Apesar dos conflitos even-tuais, a hibridização, a mistura de influências, parece ter cons-tituído sempre um padrão. Para os nagôs [...] a troca (a pala-vra acerto é, aliás, bastante valorizada pelos “antigos” naBahia) era regra fundamental.

Chegando aos portos brasileiros, grupos e famílias submeti-dos ao mercado de compra de escravos sofriam novas separações;e novas separações, por sua vez, exigiam novos rearranjos, novasfusões, incrementando uma dinâmica religiosa sincrética. Pode-sepresumir que estavam sendo lançadas, nesse período, as primeirassementes do que hoje são chamadas de, mui genericamente, religi-ões afro-brasileiras.

Berkenbrock (1997, p. 115) acredita que os primeiros contatosentre índios e africanos tenham se dado por ocasião de fugas nasquais escravos encontraram refúgio com os índios. Segundo o au-tor, “as tradições religiosas do Norte do Brasil são hoje um exem-plo típico da influência africana sobre as religiões indígenas”. Bastide(apud BERKENBROCK, 1997, p. 88) supunha que nas organizaçõescomunitárias quilombolas já existissem elementos de religiões afro-brasileiras. Nesses territórios, onde também brancos e índios bus-cavam abrigo e possibilidade de construção da vida em novas ba-ses comunitárias, supõe-se, preservação de culturas ancestrais emovimentos de síntese se davam sem provocar grandes tensõesinternas. Luz destaca que, na África, o culto dos ancestrais está vin-culado à fundação de um território. Segundo ele, rituais do hojechamado candomblé de caboclo15 são provas do respeito à diversi-dade cultural e do poder de síntese das religiões negras:

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Não se veneram as divindades dos panteões indígenas bra-sileiros, mas os espíritos individuais ou coletivos de diver-sas tribos, em particular daqueles em cujas terras foram es-tabelecidos os negros [...]. À maneira bantu [...], são cultuadosos pretos-velhos, espíritos dos antigos escravos, primeirosancestrais negros em terra americana que se somaram aosespíritos aborígenes a quem reconhecem direitos prioritários(SANTOS apud LUZ, 1983, p. 36).

Note-se que essa deferência jamais é dada ao branco estrangei-ro e colonizador, mas tão somente ao índio, ancestral natural dasterras que passaram a se denominar Brasil, reconhecido como legí-timo “dono da terra” (BRAGA, 1999, p. 165). Como se pode perce-ber, trata-se de um processo complexo no qual a construção de umaprática religiosa de síntese demarca uma afirmação solidária deprincípios éticos e políticos fundados no respeito ao Outro e nasolidariedade.

A despeito de a tendência de afirmação de especificidades ét-nicas (“reafricanização”16 ) que se pode observar atualmente, sen-do o discurso da “pureza” das nações sua expressão mais parado-xal, a realidade é que o simples fato de reunir em um mesmo terri-tório existencial vários orixás já é por si só um processo bastantesingular e sincrético. Originalmente, na África, o culto de orixá se-parava, demarcava território e podia até mesmo expressar confli-tos interétnicos. O afro-descendente, por sua vez, desenvolveu umadinâmica religiosa de fundamental importância para a sobrevivên-cia e transmissão de elementos culturais africanos (elementos devisão de mundo, de conhecimento, de ethos), dinâmica essa que,como já dissemos, foi capaz de manter a coesão social e o poder deorganização política17 , mesmo nas condições mais adversas, comoa diáspora e a escravidão; bem como, posteriormente, nas condi-ções de total desorganização econômica e social a que foram lança-dos os ex-escravos por meio de uma “Abolição” que, não tendosignificado nenhuma mudança na estrutura de poder nem na es-trutura agrária do país, não lhes reservou sorte muito melhor do

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que a do período anterior. De escravos a proletários miseráveis, desou sub-empregados: era essa a “liberdade” oferecida (vender suaforça de trabalho num mercado precaríssimo e disputar espaço como imigrante europeu em condições desiguais) pelas forças do Capi-tal ascendentes no Brasil. Do século XIX para cá, pouco se avançouem relação ao preconceito e à discriminação que se expressam comclareza no mercado de trabalho, como se pode notar na matériarecentemente publicada no Jornal do Brasil (05/06/04): “Negro sofremais com o desemprego: estudo do IBGE mostra que, na média,branco ainda tem o dobro da renda”.

Fernandes Portugal entende que o “Candomblé é um redutode rebeldia, é um quilombo, ele resiste em forma religiosa a todasas intempéries, a todos os governos, a todas as ditaduras no Brasil”(PORTUGAL apud BERKENBROCK, 1997, p. 435). Nesses contex-tos, “a religião negra constituiu-se num ponto de resistência de lutado homem negro em busca de sua libertação e de real e universalintegração” (LUZ, 1983, p. 38). Barbosa (2002, p. 13) observa que:

o processo de recriação do candomblé ou da umbanda é tãocomplexo quanto a transformação da religião pagã do Medi-terrâneo no catolicismo. Só que nós olhamos para a religiãopagã se transformando no catolicismo com respeito e espíri-to científico. E olhamos para a reinvenção do negro comouma bagunça [...] O curandeiro, chefe religioso ou mãe desanto que reinventou a religião negra, abrindo etnicamentea relação de orixás, fez uma invenção [...] notável.

Há nesses processos de singularização chamados desincretismo, operações de síntese e de transformação ricas e muitoelaboradas. É possível pensá-los como agenciamentos coletivos deenunciação (DELEUZE, 1992), como processos de construção cole-tiva de singularidades. Está-se aqui a pensar em modos desubjetivação singulares que desembocam na construção de novasformas de sensibilidade, de relação com o outro, de processos cria-tivos e até mesmo de significação do trabalho e modos de produ-

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ção. Trata-se de singularizações existenciais que inserem o desejona produção sem render-se ao “trabalho produtivo” (MARX, 1978);que fomentam um gosto de viver, uma vontade de construir o mun-do no qual se encontram; que engendram dispositivos para mudaros tipos de valores que são produzidos e impostos pela sociedadedo Capital. Considerando-se, de acordo com Guattari e Rolnik(1986), que uma das principais características do processo de pro-dução de subjetividade nas sociedadades capitalísticas é a tendên-cia a bloquear processos de singularização, reafirma-se a impor-tância dos processos de sincretismo religioso afro-brasileiro comomovimentos de resistência e de afirmação. É preciso, pois, considerá-los nas suas positividades e do seu interior, como processos de criaçãode espaços-tempo religiosos e não como alienação, desvio, pobrezaintelectual ou falta de consciência. Para se compreender isso, é reco-mendável experimentar uma lógica (forma do pensamento) maisgenerosa do que a analítico-conceitual: uma síntese afecto-percepto-conceito18 que pretenda não capturar o sentido, mas sim ser tomadopor ele e seguir suas rajadas e abalos (CARVALHO, 2005).

Diante do apresentado anteriormente, é fácil observar que es-tivemos o tempo inteiro a pensar em processos coletivos (grupos ecomunidades) que levam a construções dinâmicas de redes de apoiosocial (VALLA, 1998; 2001) e que expressam esforços concretos desuperação de dificuldades vitais e de afirmação de valores e visõesde mundo não-hegemônicos - o que inclui, obviamente, diversasformas de luta cotidiana contra o racismo.

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Recebido em: outubro de 2005

Aprovado em: janeiro de 2006

NOTAS:

* Este texto, revisto e modificado para esta publicação, é parte integrante da tese de doutora-do de minha autoria intitulada “O sujeito nas encruzilhadas da Saúde: um discurso sobre oprocesso de construção de sentido e de conhecimento sobre sofrimento difuso e realiza-ção do ser no âmbito das religiões afro-brasileiras e sua importância para o campo da Saú-de Coletiva”, defendida e aprovada em 19 de janeiro de 2005. Foi também apresentado emuma mesa redonda no IX Congresso De La SOLAR (Sociedade Latino-americana de Estudossobre América Latina e Caribe), na UERJ, em novembro de 2004.

1 É preciso, obviamente, fazer exceção às disciplinas que têm por objetivo a religião (Sociolo-gia e História das Religiões, Antropologia Cultural etc).

2 Em “Cultura Negra e Ideologia do Recalque” (1983), Marco Aurélio Luz empreende uma con-tundente e competente análise dos obstáculos metodológicos e epistemológicos para umaantropologia negra.

3 A tradução de Frederico (1995, p.104) para essa passagem merece ser transcrita: “A história[...] atravessa muitas fases, enquanto conduz ao cemitério uma velha figura. A última fasede uma formação no nível da história mundial é sua comédia [...] Por que essa marcha dahistória? Para que a Humanidade possa separar-se rindo de seu passado”.

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4 Hemiderna é um neologismo cunhado pelo autor e quer dizer hemi-moderna: “É anti-mo-dernista enquanto a modernidade e sua racionalidade instrumental têm de alienante edesumanizante, enquanto têm de racionalização das diversas formas de dominação e decontrole, enquanto têm de tendência para a diminuição da vida [...] Porém, a cultura popu-lar e sua religião não é anti-moderna enquanto acolhe tudo aquilo que a modernidadeofereceu como avanço efetivo nas condições de vida e na possibilidade de satisfação dasautênticas necessidades do homem [...] Há diversas formas e modelos religiosos hemidernos,com maior ou menor potencialidade humanizante, o que dependerá de cada situação só-cio-cultural e de cada conjuntura histórica” (PARKER, 1996, p. 170-171).

5 Parker (1996, p. 315-316) define seu conceito de pensamento sincrético: “Creio que certosprocessos simbólicos, certas crenças e ritos, certas representações e estruturas significati-vas [...] em sua complexidade, são suscetíveis de serem compreendidos como manifesta-ções de uma estrutura de pensamento que não obedece nem aos cânones do pensamentomítico tradicional, nem aos do pensamento moderno, técnico e científico. Por isso, propo-nho que se fale de um “pensamento sincrético”, subjacente, não só nem exclusivamente nasrepresentações e ritos religiosos, mas no conjunto de crenças, pensamentos e opiniõespopulares sobre o mundo, a sociedade, a política, a cultura, a família, a vida e o cosmo [...]Estamos frente a um processo de trabalho simbólico de caráter “informal”, segundo o qual oengenho popular constrói ou reconstrói sistemas de representações coletivas [...] de talforma que da composição de velhas e novas obras se produzem novas sínteses. Esta produ-ção simbólica [...] está bastante longe da produção racional, formal, planificada e sistemáti-ca, às vezes estandardizada, de representações e conceitos, empregando insumos de idéiaspreviamente criticadas e depuradas, que caracterizam o pensamento intelectual e “culto”.

6 O autor acrescenta: “nos dias de hoje ela deveria ser aplicada ao ‘espiritismo de Umbanda’(BASTIDE, 1983, p. XII).

7 Sodré (1999, p. 166) faz a seguinte observação: “O universo ‘nagô’ é, na verdade, resultantede um interculturalismo ativo, que promovia tanto a síntese de modulações identitárias(ijexá, ketu,egbá e outros) quanto o sincretismo com traços de outras formações étnicas(fon, mali e outros), aqui conhecidas pelo nome genérico de “jeje”. Quando se fala de cultos‘nagô-ketu’, ‘jeje-nagô’ e “congo-angola”, está-se fazendo alusão às combinações sincréticasdessa ordem”.

8 Espiritismo de Umbanda, Umbanda Esotérica, Umbanda do Norte, Umbanda Omolokum,Tambor de Mina, entre muitas outras denominações e organizações, são exemplos de pos-sibilidades de articulação complexa entre elementos religiosos distintos.

9 “O sincretismo da Umbanda recolhe hoje em si todas as tradições afro-brasileiras, ao ladodo culto a espíritos de índios e escravos falecidos, diversas formas de culto para almas, deforma muitas vezes kardecista, como também elementos católicos e orientais” (KOCH-WESERapud BERKENBROCK, 1997, p. 152).

10 No texto “A religião como sistema cultural”, Geertz define o seu conceito de cultura: “eledenota um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos,um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quaisos homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividadesem relação à vida” (GEERTZ, 1989, p. 103).

11 Pessoa de Barros (1998,1999a, 1999b, 2000, 2003) aponta vários autores que desenvolve-ram essa temática, entre os quais, Pollak, Edson Carneiro, Gomes, Júlio Braga e Muniz Sodré.

12 “Preservar aqui as línguas africanas não foi nada fácil: o colonizador português não deutrégua, combatendo as línguas e evitando até a concentração de escravos de uma mesma

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etnia nos navios negreiros e nas propriedades coloniais – uma tática para diminuir as resis-tências dos africanos e descendentes à escravização. Essa política, a variedade de línguas eas hostilidades que os negros trouxeram dificultaram a formação de núcleos solidários quegarantissem a retenção do patrimônio cultural africano, incluindo-se aí suas línguas [...] masnem sempre os negros foram prisioneiros da diversidade lingüística que os dividia, e aolongo do período colonial houve várias tentativas de construção de uma identidade co-mum entre os escravos: a formação de quilombos, a realização de revoltas e a organizaçãode batuques e calundus (rituais semelhantes ao candomblé) são evidências disso” (VILLALTA,2004, p. 59). Considerando-se, de acordo com Villalta (2004), as duras condições em que sedeu o processo de imposição da língua portuguesa e de sujeição dos povos pelos coloniza-dores, não é difícil concordar com a tese da construção de uma língua de resistência.

13 Levando-se em conta que cada navio transportava em média 500 escravos (sem contar aprática sórdida da superlotação que, dobrando ou mesmo triplicando o número de escra-vos transportados, visava “compensar” as perdas por morte durante o trajeto ao mesmotempo em que concorria para aumentar ainda mais o número de óbitos) oriundos de múl-tiplas etnias em travessias atlânticas que duravam de 6 a 18 meses, pode-se ter uma idéiados intensos e inevitáveis encontros e confrontos que nesse lugar de passagem se davam.

14 “A primeira separação ocorria com a prisão de pessoas que seriam escravizadas. Não eramsociedades completas que eram arrancadas de seu contexto, mas apenas partes da socie-dade, especialmente jovens e homens em sua grande maioria. Estes presos foram mistura-dos nos portos africanos com outros, procedentes de outros grupos culturais [...] Nos navi-os negreiros, iniciava-se a triste aventura comum destas pessoas. Advindos de diversas cul-turas e línguas, eles eram empurrados juntos. A miséria comum levava a uma certa solidari-edade entre os sobreviventes [...] O apelido popular da época aos navios negreiros diz muitoda realidade: tumbeiros” (BERKENBROCK, 1997, p. 82-83).

15 Braga (1999, p. 164) afirma que o candomblé de caboclo é uma manifestação religiosa afro-brasileira, “variante do candomblé que incorporou um número considerável de elementosda cultura religiosa indígena, e de outras práticas religiosas como, por exemplo, o espiritis-mo popular”.

16 Não é nosso objetivo aprofundar o debate sobre reafricanização. Para obter detalhes e refe-rências sobre o assunto, consultar Berkenbrock (1997, p. 119-123). Bastide (1983, p. XIV-XVI)aponta dois movimentos, considerados por ele como “tendências opostas”: reafricanização(“alimentado pelo vaivém, entre o Brasil e a Nigéria, de homens, mercadorias e idéias”) e “ame-ricanização” (“que abrange a grande expansão do candomblé caboclo”). Esse último autor sepergunta: “Como agem e se equilibram esses dois movimentos inversos?”.

17 E pode-se dizer, concordando com Pessoa de Barros e Teixeira (2000), que a experiênciaquilombola foi uma forma de resistência política das mais contundentes.

18 Não é possível, nos limites deste trabalho, avançar nessa discussão teórico-metodológica.Recomendo, pois, a leitura de minha tese de doutorado.

Ampliando o conceito de redução do dano? Uma visão desde a América Latina

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A crise de representação e o espaçoda mídia na política

Rosângela Schulz

Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do RioGrande do Sul – UFRGS (Brasil) e Professora da Universidade de

Santa Cruz do Sul (UNISC).

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Abstract. This article has as objectiveto discuss the interference of thejournalistic field in policy,particularly, in the field ofrepresentation. It is compound ofthree parts: crisis of representationand the part of media in thetransformation of models; effect ofthe journalistic field in the policyfield and implications of thisdiscussion in the Brazilian scenery.

Keywords: Politics, Media,representation and Brazil

Resumo. Este artigo tem como obje-tivo discutir a interferência do cam-po jornalístico no político, particu-larmente, no campo da representa-ção. É composto de três momentos:crise de representação e papel damídia nas transformações do mode-lo; efeitos do campo jornalístico nocampo político e implicações destadiscussão no cenário brasileiro.

Palavras Chave: Política, Mídia, re-presentação e Brasil.

SCHULZ, Rosângela

Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria.v. 9, n.15, jan./jun., 2006, p. 199-224.

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Nas últimas décadas do século XX, a democracia representati-va tem estado sob olhares atentos em função de dois aspectos apa-rentemente contraditórios: por um lado, a convicção de que a de-mocracia é o melhor dos regimes e, por outro, a sensação de crisedo modelo. A contradição é logo superada ao compreender quenão se trata de uma crise da democracia como um todo, mas daconstatação dos limites da representação, fruto da complexizaçãoda própria sociedade. Muitas são as investigações que tentam con-tribuir para o entendimento da democracia representativa moder-na, e este trabalho se inscreve nestes tantos olhares e tem a preten-são de discutir a interferência do campo jornalístico no político,particularmente, no campo da representação. Esta discussão é basepara a investigação que desenvolvo tendo como tema a representa-ção no Brasil, onde procuro analisar o discurso da mídia impressasobre o Congresso Nacional, com o intuito de verificar quais asimplicações deste para a democracia representativa brasileira. Nestepaper, discuto a crise da representação e o espaço da mídia a partirde dois autores – Bernard Manin e Patrick Champagne – buscandocom estes conceitos analisar o discurso da mídia impressa brasilei-ra. O texto se divide em três momentos: no primeiro, trato da crisede representação e do papel da mídia nas transformações do mo-delo; no segundo, a discussão mais específica sobre efeitos do cam-po jornalístico no campo político e, por último, as implicações des-ta discussão no cenário brasileiro.

I

Se a idéia de um esgotamento do modelo democrático tem sidoafastada pelas discussões, a percepção de limites na forma de re-presentação se solidificou. No entanto, é salutar pensar a crise comoum fenômeno dentro de um contexto amplo, ligado ao processo deinstitucionalização da democracia representativa no ocidente, pro-cesso longo e conflitivo, como bem coloca Santos:

A crise de representação e o espaço da mídia na política

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Sua forma atual resultou de sedimentação e enraizamentohistóricos, antes que de engenharia iluminista e sectária [...]sabe-se que o perfil das democracias européias não foi pre-concebido por nenhum doutrinário, sendo resultado colateralda destilação de conflitos reais (1998, p. 151).

A democracia representativa com voto universal e eleições paratodos os cargos executivos e legislativos é resultado de um “proces-so histórico por vezes violento, sempre doloroso e, amiúde, fabricante desurpresas” (idem, p. 148). Em seu longo processo deinstitucionalização, o modelo sofreu significativas transformaçõese o atual momento parece apresentar um novo paradoxo: odistanciamento entre representantes e representados e o esgotamen-to dos partidos como local por excelência da disputa política.

Manin, na obra Principes du Gouvernement Représentatif, elabo-ra uma arqueologia do governo representativo, dividindo-o em trêsmomentos: Parlamentarismo; Democracia dos partidos e Democra-cia do público. Através da análise de cada um destes momentos,contribui não somente para a discussão das transformações sofri-das pelo modelo ao longo de sua constituição, mas também cominformações sobre o papel exercido pelos meios de comunicaçãopara o (re)desenho da representação.

1. No Parlamentarismo, segundo o autor, a escolha do repre-sentante estava relacionada à confiança e aos vínculos locais docandidato, sendo que os eleitos eram sempre os notáveis. O depu-tado eleito votava na assembléia conforme sua consciência. Nãoexistia uma relação direta entre a opinião pública e a expressão elei-toral. As discussões entre os representantes estavam restritas aoparlamento. Este modelo se esgota a partir da ampliação do corpoeleitoral e de um vasto número de cidadãos que passam a ter odireito do voto.

2. A democracia dos Partidos está vinculada ao nascimento dospartidos de massa e à ampliação dos números de eleitores. Estesdois fenômenos geram modificações no governo representativo: a

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fidelidade partidária e a expressão de pertencimento a uma classeentram em foco quando ocorre a escolha dos candidatos. O repre-sentante eleito deixa de ser o notável local, para ser o militante, ohomem do partido. Ghiglione e Bromberg salientam que na demo-cracia dos partidos “ce qui change, c’est l’objet de la confiance. Elle nes’adresse plus à une personnalité, mais à un parti (1998, p. 16). Segundoos autores esta confiança não se cristaliza em função de uma pro-messa eleitoral do candidato, mas de um sentimento depertencimento e de identificação; o que permanece similar é que,como ocorria no Parlamentarismo, o eleitor não conhece o projetodo partido, vota em função de uma crença.

A votação do representante eleito neste período está vinculadaao programa do partido. Existe uma coincidência entre a opiniãopública e a expressão eleitoral, já que o representante tem de pen-sar na reeleição e assim leva em consideração a opinião dos eleitos,bem como da oposição. A discussão não se restringe somente aoparlamento, ocorrendo também dentro dos partidos e entre eles.

As razões que levam a uma nova metamorfose do modelo nãoestão claramente delimitadas. Segundo Ghiglione e Bromberg, osfatores são: a erosão da clivagem direita/esquerda1 ; os efeitos dosufrágio universal; a mudança de atitudes e comportamentos doseleitores; o papel das mídias e, principalmente, da televisão. O con-traste entre os ideais democráticos - não cumpridos - e a democra-cia real é, para Bobbio (1986), o motivo da transformação pela qualestá passando a democracia representativa. Paul Hirst sugere que oproblema está na identificação da democracia representativa e dogoverno do povo o que para ele não passa de uma “falha típica dovocabulário democrático” (1992, p. 32). Medina sustenta que os fenô-menos atuais aparecem menos como marcas de uma crise do mode-lo do que como “[...] desplaziamentos y reacomodo en uma combinatóriade elementos presentes desde los orígenes de la democracia moderna”(MEDINA, 1998, p. 128)2 . Como se observa, existe um consenso en-tre os diversos autores de que ocorre uma transformação.

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A argumentação de Manin é que há uma simetria entre o queestá ocorrendo neste momento e o período de passagem do Parla-mentarismo para a Democracia do Partido: “hoje, como então, a idéiade uma crise de representação é um tema usual, o que nos leva a crer queestamos diante de uma crise é muito menos da representação como tal doque de uma forma particular de governo representativo” (1995, p. 7).Concluindo, o autor sugere que o que está em declínio “são as rela-ções de identificação entre representantes e representados e a determina-ção da política pública por parte do eleitorado” (idem, p. 7). São estasmodificações no próprio campo político que geram uma nova me-tamorfose do modelo de governo representativo, constituindo onovo tipo-ideal, elaborado por Manin, denominado democracia dopúblico.

3. Na democracia do público, a escolha do representante estávinculada à pessoa do candidato, à confiabilidade que o eleitor temem determinado candidato, na resposta aos termos colocados paraa escolha (os temas apresentados nas campanhas) e na presença docomunicador. Nas palavras do autor:

À présent, la stratégie électorale des candidats et des partiesrepose sur la construction d’images assez vagues, danslesquelles la personnalité des leaders occupe une placeprééminente, plutôt que sur la promesse de politiquesdéterminées. Enfin, le personnel politique est maintenantprincipalement constitué ou environné d’individusappartenant à des cercles particuliers, distincts du reste dela population par leur profession, leur culture et leur modede vie. La scène publique est dominée par un ensemble dejournalistes, d’experts en communication et de spécialistesdes sondages dans lequel on a peine à voir un refletreprésentatif de la société. Les hommes politiquesparviennent au pouvoir en raison de leurs talentsmediatiques, non parce qu’ils sont socialment semblabes àleurs électeurs ou proches d’eux. L’écart semble s’accroîtreentre le gouvernement et la société, entre les représentants etles représentés (idem, 1996, p. 249)

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Quanto à independência parcial dos representantes, o argu-mento de Manin é que as imagens determinam a escolha dos líde-res. Manin argumenta que, agora, os representantes têm de tratarde domínios muito mais amplos, que os problemas que discutem esobre os quais legislam se modificaram, bem como os interessesdos eleitores. Santos esclarece esta questão:

À medida que o processo de divisão social do trabalho avan-ça, especializam-se, como é natural, os interesses. Isso sig-nifica dizer que alguém capaz de representar, digamos, ele-tricistas e carpinteiros, ou proprietários de terras e exporta-dores, deixa de poder fazê-lo na extensão em que, ao se dife-renciar, esses interesses tornam-se potencialmente e, às ve-zes, de fato conflitivos. Quando os interesses se fracionamsurge a necessidade dos candidatos expressarem espectrocada vez mais amplo do eleitorado. Assim, enquanto os can-didatos buscam representar número cada vez maior de inte-resses, garantindo o mínimo de votos legalmente exigidos,os grupos de interesse exigem defesa cada vez mais específi-ca, singular e excludente (idem, 1998, p. 159).

Os partidos políticos também não saem ilesos deste novo qua-dro. Embora sejam o espaço institucional, por excelência, da dispu-ta política na representação, elaboram mudanças significativas, pois“sus referentes sociales; su grupo de referencia anterior (la classe obrera,los católicos o los francoparlantes) se va esfumando ante sus ojosobligándolo a buscar apoyos de todo el mundo” (MEDINA, 1998, p. 138).A ampliação do número de eleitores, a fragmentação de interessesdestes vastos contingentes populacionais, os diferentes sujeitos quetêm de ser atingidos pelos discurso dos candidatos, o grande lequede temas que tem de ser debatido nos pleitos eleitorais, entre ou-tros fatores, levam os partidos políticos à construção de programase plataformas muito amplos e impossíveis de serem cumpridos,projetando a frustração nos eleitores e a busca de outros locais deexpressão de reivindicações e/ou interesses. Em razão desta dis-tância entre os interesses, Manin afirma não existir coincidência

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entre as expressões eleitorais e aquelas não eleitorais da opinião,diferentemente do que ocorria na democracia dos partidos.

Esta multiplicidade de fatores em jogo leva a uma variação docomportamento eleitoral, tanto na postura do candidato, quanto nado eleitor. Tantos são os temas que os candidatos apresentam que“les électeurs semblent répondre aux termes du choix offert par les hommespolitiques, plutôt qu’exprimir leur identité sociale ou culturalle” (MANIN,1995, p. 284). Na democracia do público, o eleitorado aparece comoum público que apenas reage ao que é exposto na cena política, par-ticularmente através de imagens apresentadas na mídia.

Dois pontos, tratados por Manin, são fundamentais para estadiscussão: as pesquisas de opinião e a neutralidade relativa dasmídias. Manin valoriza as sondagens de opinião, pois “opèrent selonla structure formalle qui été considérée comme caractéristique de cettenouvelle forme du gouvernement représentatif: la scène et le public,l’initiative et la réaction” (1995, p. 296). Conforme o autor, o eleitoradoaparece novamente como um público que reage a uma dada iniciati-va política, pois este tipo de opinião não é uma expressão espontâ-nea da opinião popular; já que as questões propostas são anterior-mente elaboradas, os entrevistados apenas têm de responder3 .

Outra característica da democracia do público é que os canais(jornal, televisão, rádio e institutos de sondagem) onde se forma aopinião pública4 são relativamente neutros, no sentido de não esta-rem diretamente ligados a partidos políticos em competição, em-bora possam apresentar preferências políticas. A neutralidade rela-tiva das mídias na democracia do público é um contraponto à faltade neutralidade na democracia dos partidos, onde os meios de in-formação estavam atrelados aos partidos, como acontecia na Fran-ça, onde jornais expunham posições ideológicas bem definidas. Eleargumenta que atualmente isto não acontece, pois as informaçõessão veiculadas pelos diferentes meios de forma homogênea, nãoexistindo uma diferença gritante entre o que é noticiado em um ououtro veículo5 . Seguindo sua tese:

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le résultant de cette neutralisation relative des médias vis-à-vis des clivages partisans est que les individus forment icileurs opinions politiques en puisant aux mêmes sourcesd’information, quel que soit le parti politique dont ils sesentent proches (idem, 1995, p. 294).

O elemento novo aqui é que, embora os indivíduos formemopiniões divergentes sobre os objetos políticos, estas opiniões sãoconstruídas sobre objetos identicamente apresentados a todos e sãopercebidos de forma relativamente homogênea. Isso permite que aidentificação entre eleitor e candidato se forme a partir de prefe-rências sobre os objetos e não a partir de preferências partidárias.Uma conseqüência desta relativa neutralidade na divulgação deinformações é a volatilidade do voto, a existência de um novo elei-tor indeciso: o sujeito informado, interessado pela política e relati-vamente instruído. Em função da amplitude do número de eleito-res e de temas, os representantes ou candidatos têm que debaterem público, constituindo, desse modo, um novo local para a apre-sentação dos políticos e para o debate: as mídias. Assim, as assem-bléias deixam de ser o local por excelência da discussão do políticoe passam a dividir esse espaço com as mídias.

Sem dúvida, a arqueologia do modelo representativo de go-verno, elaborada por Manin, sugere uma série de novos elementospara serem considerados quando se tenta entender a representa-ção e, o que nos interessa particularmente, o espaço ocupado pelamídia nas modificações deste modelo. Se Manin deixa entreverque algumas das transformações que o campo político6 e o modelorepresentativo vêm sofrendo nas últimas décadas estão ligadas ainterferência do campo jornalístico, Patrick Champagne permite oaprofundamento do entendimento do espaço do campo jornalísticoe de seus atores.

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II

Em seu livro Fazer a Opinião: o novo jogo político, Champagne(1998), através da análise de uma manifestação de agricultores naFrança, discute o papel determinante da mídia na política. Sua po-sição é similar àquela manifestada por Manin. Se o último vê a mídiacomo o novo fórum de deliberação pública, Champagne afirma que:

O aparecimento, o desenvolvimento e, sobretudo, a difusãodos novos meios modernos de comunicação [...] implicaramum deslocamento progressivo do centro de gravidade doespaço político que passou das assembléias parlamentarespara a mídia (1998, p. 139).

Para os dois autores, a mídia tem centralidade no formato doatual modelo democrático representativo, mas enquanto Manin si-naliza sua importância na metamorfose do modelo, Champagne pa-rece ir além, ao sugerir para esta um papel de ator político. Paralevar a cabo esta discussão dois conceitos apresentados porChampagne são fundamentais. O primeiro deles é o conceito depolítica. Segundo o autor, a política é

[...] antes uma luta simbólica na qual cada ator político pro-cura monopolizar a palavra pública ou, pelo menos, fazertriunfar sua visão de mundo e impô-la como visão corretaou verdadeira ao maior número possível daqueles que são,econômica e, sobretudo, culturalmente, desfavorecidos (idem,1998, p. 23/4)7

O entendimento da política como luta simbólica na qual estáem disputa o monopólio da palavra pública ou a imposição de umaverdade, abre a possibilidade de os atores políticos disputarem esteespaço simbólico não sejam somente do campo político tradicional- candidatos, representantes -, mas também atores de outros cam-pos que fazem fronteiras ou disputam espaços no campo da repre-

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sentação. É fundamental compreender, como o faz Bourdieu, quehoje os jornalistas fazem parte do campo político:

Une des transformations les plus importantes de la politiquedepuis une vingtaine d’années est liée au fait que des agentsqui pouvaient se considérer ou être considérés comme desspectateurs du champ politique, sont devenus des agents empremière personne. Je veux parler des journalistes et enparticulier des journalistes de télévision et aussi desspécialistes des sondages (2000, p. 61).

Os novos agentes não têm sua importância centrada apenasno fato de ter e/ou possibilitar o acesso ao espaço público, mas no deproduzir efeitos, de transformar o estado de outro campo. Destaforma, a mídia e seus atores podem ser percebidos como agentespresentes no campo político e que, com esta presença, modificamsua estrutura, suas regras de funcionamento.

Champagne traz um elemento complementar para demarcar aimportância da mídia na política atual e faz isto através de sua defi-nição de poder.

o poder dos que têm um interesse em acreditar e fazer acre-ditar no poder da mídia, entre os quais se encontram, emprimeiro lugar, os que participam do poder da mídia. A for-ça dessa crença coletiva na eficácia da mídia e os efeitos bemreais que ela produz na maior parte dos atores de campopolítico-jornalístico deixam-se ver na maioria das ações po-líticas explicitamente dirigidas para a mídia (1996, p. 148).

O poder da mídia está na construção da crença coletiva de suaeficácia. E esta crença parece estar ligada a dois elementos funda-mentais para sua interferência no político, que são: a opinião públi-ca e a neutralidade.

Ao tratar da opinião pública, Champagne logo chama atençãopara a imprecisão da noção ao afirmar que “o que existe é somenteum conjunto, mais ou menos diferenciado, de agentes em luta que procu-

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ram impor seu conceito (em geral, de forma interessada) de ”opinião pú-blica” (idem, p. 81). Após longa discussão sobre os diversos signifi-cados que o conceito assumiu em diferentes momentos históricos8 ,demonstra a preocupação de que o mesmo vem se ligando às son-dagens de opinião e, particularmente, à crença construída social-mente9 na veracidade destas pesquisas, muito em função do res-paldo que estas vêem tendo do campo científico, o que denominade “transferência ilegítima de autoridade científica”10 (idem, p. 22).Champagne, como outros autores, está temeroso do caráter demo-crático que tem sido dado às pesquisas: segundo seus idealizadores,elas expressariam a vontade popular, pois todos os cidadãos têmdireito a uma opinião, sendo que as sondagens seriam a forma de-mocrática de expressá-las. O problema das sondagens de opiniãositua-se, conforme o autor, no fato de que o que dá valor às respos-tas e o que determina as amostras não é um critério técnico (seleci-onar quem tem opinião), mas um princípio político (para ser váli-da, todos os cidadãos têm que se pronunciar) ligado ao sufrágiouniversal.

Se a opinião pública há muito tempo é um referencial para ospolíticos, a cientificidade das pesquisas, bem como sua dissemina-ção – a todo momento os políticos são submetidos a índices de po-pularidade, a verdadeiros plebiscitos políticos -, deram maiorcentralidade a este conceito e mais poder aos seus porta-vozes, osquais acabam por “reafirmar o poder próprio da imprensa em face dopoder político ao procurarem desestabilizar seus agentes” (idem, p. 135).O que se evidencia pela modificação da “natureza do capital políticonecessária para ter sucesso na política”11 (idem, p. 142/3). O capitalnecessário agora está ligado à sedução midiática; como já haviamencionado Manin, o que importa é a capacidade de se apresentarbem frente a um público heterogêneo. Champagne aprofunda estaproblemática ao sustentar que este fenômeno leva os jornalistas ase constituírem como “atores em tempo integral e (que) intervêm ativa-mente na luta (política)”, devendo sua força “ao fato de que invocaram,

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contra os políticos, a própria lógica do campo político” (idem, p. 144).Quer dizer, os jornalistas levam os políticos a se preocupar com achamada vontade popular. Por mais que os políticos se manifes-tem contra as sondagens, eles acabam por determinar suas açõesem função dos percentuais de popularidade apresentados nos veí-culos de comunicação. Os políticos têm de buscar no veículo o res-gate de sua popularidade, através de amplas campanhas que bene-ficiam, em última instância, a própria mídia.

Bourdieu contribui para a discussão ao ressaltar que:

[...] a influência do campo jornalístico reforça as tendência dosagentes comprometidos com o campo político a submeter-se àpressão das expectativas e das exigências da maioria, por vezespassionais e irrefletidas, e freqüentemente constituídas comoreivindicações mobilizadoras pela expressão que recebem naimprensa. Salvo quando se utiliza das liberdades e dos poderescríticos que lhe são assegurados por sua autonomia, a impren-sa, sobretudo televisiva (e comercial), age no mesmo sentidoque a pesquisa de opinião, com a qual ela própria deve contar:embora possa servir também como instrumento de demagogiaracional tendente a reforçar o fechamento sobre si do campopolítico, a pesquisa de opinião instaura com os eleitores umarelação direta, sem mediação, que descarta todos os agentes indi-viduais ou coletivos (tais como os partidos ou os sindicatos)socialmente delegados para elaborar e propor opiniões consti-tuídas; ela despoja todos os mandatários e todos os porta-vo-zes de sua pretensão [...] ao monopólio da expressão legítimada “opinião pública” e, ao mesmo tempo, de sua capacidadede trabalhar em uma elaboração crítica (e por vezes coletiva,como nas assembléias legislativas) das opiniões reais ou supos-tas de seus mandantes (1997, p. 114/5).

O autor completa dizendo que esta influência do campojornalístico e da disseminação de sondagens de opinião contribui“[...] para enfraquecer a autonomia do campo político e, por conseguinte,a capacidade concedida aos representantes (políticos ou outros) de invocarsua competência de peritos ou sua autoridade de guardiões dos valorescoletivos” (idem, p. 116).

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Se para Manin as sondagens de opinião contribuíram para queos eleitores aparecessem como um público que apenas reage a umadada iniciativa política, para Champagne a disseminação das son-dagens de opinião e seus efeitos no campo político levam, “em últi-ma análise, o povo (a ser) utilizado para proceder a ajustes de contas in-ternas à classe político- jornalística” (1995, p. 135).

Outro ponto fundamental para o entendimento do poder quea mídia tem no atual modelo democrático representativo está liga-do à forma como apresenta as informações, a questão da neutrali-dade. Por um lado, ocorre o que Manin chamou de relativa neutrali-dade das mídias, quer dizer, o desmantelamento da imprensaengajada, partidária, tendo como conseqüência a homogeneizaçãodas informações; por outro lado, ocorre também a falsa neutralidadeassinalada por Champagne, onde a mídia se coloca como um sim-ples canal de informações que tem a obrigação de dizer a verdade,como se não existisse uma lógica do mercado e da concorrênciaque atinge este campo. Essa lógica, “essa busca interessada,encarniçada, do extra-ordinário pode ter [...] efeitos políticos” como co-loca Bourdieu (1997, p. 27)12 , bem como pode ocultar um espaço doque pode ser dito e de quem tem competência para dizê-lo. Bourdieumostra que o porta-voz somente se constitui através do reconheci-mento de seu discurso pelo receptor, seu discurso tem de ser dele-gado e autorizado, em suas palavras:

o porta-voz autorizado consegue agir com palavras em rela-ção a outros agentes e, por meio de seu trabalho, agir sobreas próprias coisas, na medida em que sua fala concentra ca-pital simbólico acumulado pelo grupo que lhe conferir omandato e do qual ele é, por assim dizer, o procurador (1996,p. 89).

Landowski (1992) contribui com esta discussão em dois pon-tos: no papel dos porta-vozes e na separação que faz entre públicoe opinião. Segundo o autor, entre os governados (o público) e os

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governantes (a classe política) estão os mediadores que correspondemà opinião mais os seus porta-vozes (em geral os jornalistas); os últi-mos são os encarregados de personificar o público. Os mediadorestêm em comum a competência discursiva, são sujeitos falantes. O pú-blico é quem elege os políticos e consegue no máximo ser um rumorinarticulado; a opinião, por outro lado, é quem faz pressão sobre osdirigentes, por ser um sujeito com voz. Ressalta a centralidade damídia, pois a diferenciação entre público e opinião só pode ser per-cebida no interior do “sistema de representação “midiático”[...]: “só há“silêncio do público” em função da emergência do “discurso da opinião”,isto é, no âmbito de uma teatralização da comunicação social”(LANDOWSKI, 1992, p. 26).

Esta longa discussão nos permite algumas elucubrações. É pos-sível supor que a mídia se constitui como um ator político que lutapelo espaço de representação, pelo direito de impor sua verdadeao maior número de indivíduos, assim se tornando um local privi-legiado de expressão da palavra pública em detrimento das assem-bléias e parlamentos. Nesta ótica, tal ocupação de espaço éreveladora das mudanças que, nesse momento, ocorrem na demo-cracia representativa em função da crise que se desenrola no pró-prio Poder Legislativo, fruto de uma limitação devido à comple-xidade, à diversidade de sujeitos presentes na sociedade contempo-rânea. Neste quadro, a mídia encontra espaço para agir como ator eseu discurso constrói sentido em torno de três pontos: da imprensainvestigativa (que traz ao noticiário as denúncias de atitudes espúri-as de parlamentares); da opinião pública (que se coloca como verda-deiro porta-voz) e da neutralidade em relação aos fatos (como se nãoexistisse um limite de escolhas do que pode e deve ser dito, até mes-mo pela própria lógica do mercado e da concorrência). Estes ele-mentos levam a mídia a produzir efeitos no campo político, particu-larmente na representação, afetando a autonomia do mesmo, questi-onando a competência dos representantes tradicionais, dos partidose parlamentares, ao mesmo tempo em que disputa o espaço efetivo

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de representação, de local privilegiado da palavra pública.Ao admitir que a mídia disputa a representação do público com

os representantes institucionais, os parlamentares, torna-se funda-mental uma conjectura sobre o representado. É presumível que orepresentado que ela pretende significar não é dado pelo campopolítico tradicional. A mídia impressa tem de nomear o representa-do em seu discurso e o faz através da construção da opinião públi-ca: seu representado é o cidadão que coletivamente se forma naopinião pública. Ela necessita, num primeiro momento, despir designificados o discurso que constituiu o representado como eleitor,eliminando a crença na instituição que permitiu sua existência, e,num segundo momento, dar significado ao sujeito opinião (sujeitojá existente e que passa a ganhar força como sujeito efetivo da de-mocracia através da disseminação das pesquisas), tem de consti-tuir este representado para poder se instituir como representante.

III

Remeter esta discussão para o caso brasileiro passa a ser cen-tral a partir deste momento. Para isso, é fundamental discorrermossobre a imagem do Poder Legislativo, seguida da discussão do es-paço que a mídia vem ocupando no campo político no Brasil.

Às questões que o regime democrático representativo enfrentanos países desenvolvidos soma-se, no Brasil, o fato de que as institui-ções democráticas brasileiras se mostram mais frágeis e os políticosmenos legítimos. Isto acontece por, pelo menos, três razões: a recenteexperiência democrática; a incapacidade dos governos de dar respos-tas às crises sociais e econômicas; a grande corrupção existente.

Pinto apresenta com muita pertinência um elemento importan-te para a discussão dos limites da representação. Segundo a autora,

a representação parece algumas vezes ser tomada como si-nônimo da eficácia em transformar demandas em leis ou

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políticas públicas. Tal postura tende a desconhecer a difícilrelação entre os poderes executivos e legislativos e a própriaestrutura do último. Muitas vezes a crise não é exatamentede representação, mas de eficácia (2000, p. 3).

Este parece ser o quadro que vem se construindo no Brasil.Aqui a discussão sobre a incapacidade dos parlamentares repre-sentarem os interesses dos eleitores, tão debatida em todo o mun-do democrático, se materializa através de duas imagens do PoderLegislativo: uma, onde o Congresso aparece como impotente eavassalado pelo Executivo; outra, onde mostram um Legislativoinoperante que impede a ação de um Executivo reformador(ALMEIDA; MOYA, 1997, p. 119). A disseminação destas imagenstorna relevante discutir sua pertinência.

Estudos recentes contribuem para melhor compreensão do fun-cionamento do Poder Legislativo. Figueiredo e Limonge, em artigointitulado O Congresso e as medidas provisórias: abdicação ou delega-ção?, discutem a crítica à incapacidade do Congresso Nacional delegislar, frente ao poder legislador do Executivo, viabilizado pelomecanismo de Medidas Provisórias13 . Segundo os autores, o PoderLegislativo tenta conter os avanços legislativos do Executivo, masencontra barreiras na própria lógica do campo político: não podedeixar de apoiar medidas de estabilização econômica num paísdominado por uma hiperinflação, em função de um provável ônusem um novo pleito eleitoral, em uma possível reeleição. O Con-gresso Nacional não ficou impassível frente a ampliação das MPs ede suas reedições, tentou contê-las de duas formas: estipulandoprazos para votação14 e possibilitando aos parlamentares o direitode “emendar” as mesmas (1997, p. 127). Várias foram as propostaspara controle e até mesmo eliminação do artigo 62 da Constituição,e embora não mobilizassem um amplo apoio, mostraram que “oCongresso não estava totalmente acomodado com o status quo. Ao contrá-rio, buscava redefinir suas relações com o executivo, procurando limitar orecurso deste à legislação excepcional” (idem, p. 143.)

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É importante estar atento à relação entre a crítica ao CongressoNacional e aos problemas de instabilidade econômica e social queo Brasil enfrenta, aos limites que o mesmo apresenta como sinôni-mo de eficácia, como bem colocou Pinto. O período democráticotem se caracterizado por uma luta permanente pela estabilizaçãoeconômica, o que pode ser percebido pelo elevado número de pla-nos de estabilização implantado pelos diferentes presidentes darepública15 . A intenção não é discutir os avanços e os limites destesplanos, apenas ressaltar que a expectativa da população em relaçãoà estabilização econômica e social sempre foi centrada no poder Exe-cutivo, em função de o mesmo ser o implementador dos planos. AoCongresso Nacional era relegado um papel de coadjuvante, tanto nomomento em que os planos eram lançados, quanto no momento emque estes estavam rendendo popularidade. Mas sempre que os limi-tes da política de estabilização começam a aparecer, o Congresso passaa ser ator principal, acusado de projetar instabilidade política - devi-do à lentidão na votação das reformas necessárias, em função dedisputas por cargos entre os partidos que compõem a coalizão dogoverno; por empecilhos ditados pela oposição - e com isso colocarem risco a manutenção da estabilidade do país.

Outra problemática que tem contribuído para a idéia de inefi-cácia do Poder Legislativo brasileiro localiza-se na representaçãopartidária. O senso comum é de que existe uma grande infidelida-de partidária nas votações das bancadas, constituindo a imagemde um Congresso composto de bancadas partidárias frágeis e deparlamentares que defendem projetos e emendas com interessesparticulares ou eleitorais.

Limongi e Figueiredo, a partir de estudos sobre a disciplinapartidária no Congresso Nacional, são categóricos em dizer que avotação é disciplinada pelo partido, mesmo quando as matériasvotadas são efetivamente importantes ou constam da agenda pre-sidencial. As razões para estes índices de disciplina partidária es-tão nos próprios regimentos internos do Poder Legislativo que

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“conferem amplos poderes aos líderes partidários para que ajam em nome dosinteresses de seus partidos. Os regimentos internos consagram um padrãodecisório centralizado, em que o que conta são os partidos” (1998, p. 91).

Quanto à disposição dos deputados nos diversos partidos,Limongi e Figueiredo declaram que “deputados não se distribuem demaneira aleatória pelos partidos e, portanto, líderes partidários têm opini-ões políticas e interesses comuns a representar”. E complementam afir-mando que “se os partidos fossem os agrupamentos caóticos ditados pe-las conveniências eleitorais do momento, revoltas de bancada deveriamser comuns. Não são” (idem, p. 95).

A imagem divulgada pelo senso comum de que os parlamenta-res defendem apenas interesses particulares ou eleitorais, remete àproblemática da real possibilidade de levar a efeito projetos e emen-das com este tipo de interesse. Segundo Santos, o deputado médio (agrande maioria), que pertence às Comissões Permanentes, tem pou-ca possibilidade de ver seus projetos e emendas aprovadas, pois acentralidade está no Colégio de Líderes e nas Comissões Especiais,respectivamente. Logo, seus interesses particulares ou eleitorais têmpouca possibilidade de ser efetivados (1997, p. 141).

Posição similar é apresentada por Figueiredo e Limonge:

A legislação partidária pode alimentar estratégias individu-alistas e antipartidárias. Estas estratégias, no entanto, nãoencontram solo fértil para se desenvolver no Congresso Na-cional. Projetos e emendas ditadas exclusivamente por inte-resses eleitorais, particularistas e imediatistas raramente saemdas gavetas das comissões (1998, p. 94).

A discussão sobre o tipo de interesse que os parlamentares re-presentam não tem a pretensão de insinuar que não existem pro-blemas no funcionamento do legislativo, que as denúnciasdesqualificando este poder não são procedentes. Em relação a isso,o ponto de vista da autora deste trabalho coincide com as palavrasexpressas por Figueiredo e Limongi para quem “os parlamentares se

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interessam por patronagem e sinecuras. No entanto, estamos longe de as-sumir que tal seja a motivação exclusiva ou mesmo principal” (Idem, p.102). O que parece estar em jogo não é a ineficiência da instituição,mas o segundo fator a ser analisado, que é a corrupção.

A problemática se desloca da atividade do Congresso Nacio-nal como instituição para o capital político individual de parlamen-tares. A fragilidade do limite entre a questão da ineficácia e dacorrupção torna-se visível se pensarmos como Champagne que

o capital político específico que os políticos devem acumu-lar, ao mesmo tempo de forma individual e coletiva, é umcapital simbólico feito de crédito e confiança, isto é, uma com-binação variável de crença em sua competência e moralidade(1998, p. 29).

Se o capital político é baseado no crédito e na confiança, oquestionamento da moralidade de alguns parlamentares pode tercomo conseqüência a desqualificação da instituição como um todo.Este parece ser o cenário do Brasil, como demonstra Santos:

Paradoxalmente, mas próprio das democracias, se foi o Con-gresso que se fez intérprete de um público atento agigantado,tem sido ele o indiciado como responsável pelas misérias dacultura cívica do país. Se as críticas são procedentes, tam-bém é cristalina a cumplicidade dos insaciáveis do poder nafabricação do enredo em que o Congresso aparece como bac-téria infensa à medicina constitucional de rotina (1998, p.116).

No Brasil a disputa política aparece como fraude, como con-tenda de interesses particulares, e a mídia impressa ocupa um pa-pel fundamental para a constituição desta imagem do político, prin-cipalmente em relação ao poder legislativo. A série de denúnciasde atitudes espúrias de congressistas gera reações da instituiçãocomo um todo. A implantação de Comissões Parlamentares de In-quéritos (CPIs) que julgam e penalizam os parlamentares com a

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cassação de mandatos tem se constituído na forma de moralizaçãoencontrada pelo Congresso Nacional. Os parlamentares têm mos-trado interesse em resgatar a imagem da instituição, até mesmoporque “um Congresso Nacional composto de parlamentares voltadosapenas a interesses particulares não se constitui em boa plataforma decampanha para uma possível reeleição” (FIGUEIREDO; LIMONGI,1998, p. 102).

Se este é o cenário da disputa política no Brasil, o local de ence-nação tem sido a mídia, particularmente, neste caso, a mídia im-pressa16 . Pinto salienta o espaço da mídia na política brasileira:

A circulação e recepção do discurso político nas sociedadescontemporâneas dependem da sua penetração na imprensa.O discurso circulando nos limites do campo político não temrepercussão. Mesmo em períodos eleitorais, o contato diretodos candidatos com o público tem em si menos importânciado que sua repercussão na mídia (1995, p. 68).

Além da importância assinalada pela autora, a mídia impressatem se constituído no palco das denúncias de atitudes espúrias dedeputados. Estas não atingem apenas o capital individual de umparlamentar corrupto, mas seu capital coletivo, quer dizer, o capi-tal de toda a instituição.

Dessa forma, a democracia representativa brasileira pareceapresentar características do modelo idealizado por Manin – a de-mocracia do público, já que a mídia tem provocado modificaçõestanto na forma dos candidatos se apresentarem frente a um públi-co tão heterogêneo – utilizando-se mais e mais dos veículos de co-municação e das pesquisas de opinião para montar suas campa-nhas, bem como na maneira como os eleitores têm selecionado seuscandidatos. O que parece estar em jogo no momento da escolha é apersonalidade dos candidatos, a imagem que constituem na mídia.O candidato, como coloca Manin, é alguém distante do resto dapopulação pela profissão e modo de vida17 que “parviennent au

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pouvoir en raison de leurs talents mediatiques, non parce qu’ils sontsocialment semblabes à leurs électeurs ou proches d’eux” (MANIN, 1996,p. 249). O público parece reagir, como colocou Manin, aos termos deuma oferta cada vez mais elaborada por veículos e agentes da comu-nicação, do que exprimir sua identidade social ou cultural (idem, p.284). Um elemento a ressaltar é os partidos políticos não teremcentralidade no processo eleitoral, no momento da escolha dos can-didatos pelos eleitores. Não parece uma novidade no Brasil (semdúvida, décadas de bipartidarismo do modelo autoritário contribuí-ram para isso), mas dois pontos devem ser ressaltados: a importân-cia que os partidos possuem dentro do Poder Legislativo e as modi-ficações que os mesmos vêm sofrendo em período recente18 .

A mídia brasileira também está regida pela lógica do mercadoe da concorrência.19 Os diversos veículos da mídia impressa dispu-tam a ampliação do número de leitores, direcionando a luta no cam-po político brasileiro. A forma encontrada para atrair a atenção dopúblico tem sido através de denúncias levadas a efeito pelo jorna-lismo investigativo20 . Esta forma de fazer imprensa traz a tona umasérie de atitudes impróprias dos parlamentares, de corrupção, deincompetência nas instituições do campo político. As denúncias,publicadas após algumas investigações, têm centrado o ataque aoLegislativo num primeiro momento (o que nos interessa particu-larmente), avançando para o Judiciário e, atualmente, têm comoalvo o Poder Executivo. Quando fazem as denúncias, os jornais eas revistas colocam-se como neutros – como se não existisse umconsenso em torno de determinados temas, que devem ou podemser ditos, e justificam sua posição colocando-se como representan-tes da opinião pública, assumindo um papel de interlocutores en-tre o eleitor e o político. Estas denúncias são amplamente divulgadase comentadas, levando os políticos a acatar o jogo dos meios decomunicação, ao procurarem no próprio espaço que os atacou olocal de defesa. O conjunto destas modificações possibilita que amídia se constitua como o porta-voz do discurso autorizado, reco-

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nhecido pelo receptor (BOURDIEU, 1996). A mídia passa a ser, comocoloca Champagne (1996), o local privilegiado da expressão da pa-lavra pública.

A circularidade do discurso elaborado pela mídia, através daapropriação do conceito de opinião pública, é fundamental ao in-vestigar a relação entre o discurso político e o discurso jornalístico,mesmo considerando as particularidades que este cenário toma noBrasil: a mídia impressa, através de denúncias, opiniões e críticasaos poderes constituídos, tende a agir como formadora de opinião;num segundo momento ela busca esta opinião pública através depesquisas. Santos expressa com clareza este fenômeno:

Depois de sistemática campanha desacreditando as institui-ções democráticas, os meios de comunicação encomendampesquisas de opinião e difundem, como se fosse descoberta,a falsidade de que o povo despreza o parlamento (SANTOS,1998, p. 122).

A opinião que a mídia impressa capta acaba sendo, em muito,a opinião que ela formou. Se, num primeiro momento, ela se pro-põe a medir a opinião da população, o que ela acaba fazendo éconstruir a existência da própria opinião pública, o que acaba respal-dando seus interesses no espaço da luta política, ao construir a cren-ça na existência desta opinião pública. A mídia impressa brasileira,é possível supor, através das denúncias oriundas da imprensainvestigativa, de sua constituição como porta-voz efetivo da opi-nião pública e da falsa neutralidade com que apresenta os fatosvem projetando efeitos no campo político, desconstituindo seus ato-res, colocando em xeque sua autonomia, pois não são somente ospolíticos que têm o direito de falar da política, mas também os me-diadores que ganham força através da opinião pública. As sonda-gens de opinião vêm se disseminando na imprensa nacional e, comosalientaram os autores tratados, estão se constituindo, também noBrasil, como um forte espaço de manifestação do cidadão, tendo

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como conseqüência o redirecionamento das ações e posturas dospolíticos (que tem de levar em conta os dados que medem sua po-pularidade) e a ampliação dos poderes da própria mídia impressae seus atores, no campo político.

Se, por um lado, a mídia impressa brasileira vem cumprindoum papel fundamental na democracia ao denunciar parlamentaresque agem de forma espúria, por outro lado, ela pode estarextrapolando seu papel ao assumir uma posição de tribunal, nãoapenas denunciando, mas julgando e punindo os políticos.O’Donnell assinala com clareza os perigos desta nova posição damídia na democracia moderna:

Quando, como acontece nas novas poliarquias, há um senti-mento de que o governo repetidamente incorre em práticascorruptas, a mídia tende a substituir os tribunais. Ela denun-cia possíveis delitos, nomeia seus supostos responsáveis edivulga quaisquer detalhes que julgue relevantes. Algumasautoridades corruptas são, então, poupadas de punições queteriam provavelmente resultado da intervenção dos tribu-nais ou outras agências públicas. Outros, no entanto, quepodem ser inocentes de qualquer impropriedade, assim comoaqueles contra os quais nada pôde ser provado, se vêem con-denados pela opinião pública, sem o direito a algo parecidocom um processo justo para sua defesa (O’DONNELL, 1998,p. 29/30).

Analisando a partir da ótica de O’Donnell, as CPIs passariam ater uma função de materialização de algo já efetivado anteriormen-te nos jornais, revistas e na opinião pública.

Como a política é um espaço em disputa, onde diferentes ato-res tentam impor sua visão de mundo ao maior número possívelde sujeitos, o discurso apresentado pela mídia impressa produzmodificações significativas no modelo democrático representativobrasileiro, levando a efeito a transformação do local por excelênciada discussão política das assembléias para as mídias.

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Recebido em: agosto de 2006

Aprovado em: janeiro de 2006

NOTAS

1 Os autores apresentam uma longa discussão sobre a homogeneização das ofertas políti-cas, pela direita e pela esquerda.

2 Para Medina, não á a noção de representação que define os regimes políticos modernos,mas as eleições livres e competitivas (idem, p. 128/9).

3 Além do que baixam os custos da expressão política pelos indivíduos, dão voz aos cidadãospouco engajados, “apáticos”, e esta opinião não se manifesta somente em circunstânciasimportantes, mas no cotidiano.

4 Quando Manin se refere à opinião pública, está falando de manifestações, petições e danova forma de expressão que é a sondagem de opinião.

5 Esta discussão remete ao que Bourdieu denomina de uniformidade da oferta. Segundo o au-tor, a concorrência e a lógica de mercado, que são características expressivas do campojornalístico, levam à homogeneidade do campo, pois trabalham com as mesmas fontes, asmesmas restrições, as mesmas pesquisas de opinião, os mesmos anunciantes (1997, p. 30/31).

6 Entendo campo político como o espaço social específico, relativamente autônomo, que, nos regi-

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mes de democracia parlamentar, tem como implicação específica a conquista dos cargos públicos(administração do Estado) a partir da “chegada ao poder” pela mobilização eleitoral de uma maioriade cidadãos em torno da mesma representação do mundo social (CHAMPAGNE, 1998, p. 20).

7 Bourdieu apresenta um conceito próximo; para ele: la politique est une lutte pour des idées maispour un type d’idées tout à fait particulier, à savoir les idées-forces, des idées qui donnent de la forceen fonctionnant comme force de mobilisation. Si le principe de division que je propose est reconnude tous, si mon nomos devient le nomos universel, si tout le monde voit le monde comme je le vois,j’aurais alors derrière moi toute la force des gens qui partagent ma vision (2000, p. 63).

8 Champagne dedica um capítulo para fazer a gênese social da “opinião pública”. Outras inte-ressantes discussões sobre o conceito de opinião pública e o papel das sondagens de opi-nião podem ser vistas em Landowski (1992) e Noelle-Neumann (1995) e Besson (1995).

9 Para o autor, a crença nas pesquisas de opinião está sendo construída do mesmo modocomo as manifestações de rua se constituíram socialmente: como a forma de expressão daopinião pública ao longo do século XIX.

10 Os atores do campo científico estão contribuindo com avançadas técnicas de cálculo deamostras para a elaboração de pesquisas e através da discussão dos resultados das mes-mas nos meios de comunicação. Esta discussão não é nova, pode ser vista no artigo A opi-nião pública não existe, de Pierre Bourdieu (1985).

11 Segundo Bourdieu “le capital politique est donc une espèce de capital réputationnel, un capitalsymbolique lié à la manière d’être perçu” (2000, p. 65).

12 Uma forma particular de fazer jornalismo denominada imprensa investigativa se consoli-dou e tem no campo político institucional um dos melhores locais de busca do polêmico edo espetacular.

13 As Medidas Provisórias são prerrogativas do poder Executivo, cedidas pelo próprio Con-gresso Nacional na Constituição de 1988. A crítica às MPs está estritamente ligada a suasemelhança com os Decretos-Lei, medida amplamente utilizada pelos governantes do pe-ríodo autoritário.

14 As medidas teriam um prazo – 30 dias - para ser votada pelo legislativo, caso não ocorressea votação elas seriam automaticamente rejeitadas.

15 Sarney, o primeiro Presidente da República após longo período autoritário, implantou umplano de estabilização denominado Plano Cruzado; Collor de Mello, eleito em 1989, tam-bém lançou mão de um plano de estabilização. Collor foi deposto e substituído pelo viceItamar Franco que lançou o plano Real, idealizado por seu ministro Fernando HenriqueCardoso que, devido, entre outros fatores, à popularidade do plano, acabou sendo eleitopresidente da República e reeleito quatro anos depois.

16 Sem desqualificar a importância da televisão na disseminação e desqualificação das emis-sões políticas, no Brasil a mídia impressa parece ter maior centralidade, pois é nesta que ocor-rem as denúncias que atingem o campo político e são divulgadas as pesquisas de opinião.

17 Obviamente esta é uma generalização que tem de levar em conta as diferentes eleiçõespara cargos executivos e legislativos. Esse quadro se refere mais especificamente ao planodos pleitos federais.

18 Como exemplo, temos o Partido dos Trabalhadores que ampliou em muito os sujeitos paraquem enuncia seus discursos em seus 20 anos de existência.

19 Sem dúvida, a disseminação da televisão trouxe modificações internas no campo jornalístico.20 É possível supor que este veio amplamente utilizado pela mídia impressa ocorre, até mes-

mo, em função da disputa em seu próprio campo, disputa em relação ao espaço ocupadopela televisão.

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Rogéria Martins

Socióloga e Professora do Departamento de Educação/UESC

Violência contra crianças e adolescentes:uma análise descritiva do fenômeno

RESENHA

Palavras-chave: Crianças e adolescentes, cidadania e violência

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MICHAUD, Chauí Arendt

SILVA, Helena Oliveira da e SILVA, Jailson de Souza. Análise daviolência contra a criança e o adolescente, segundo o ciclo devida no Brasil - conceitos, dados e proposições. São Paulo: Ed.Global e UNICEF, 2005.

O livro é uma referência básica para pesquisadores na área deviolência contra crianças e adolescentes, quase um “manual” naanálise das condições dos dados disponíveis sobre as formas dematerialização da violência infanto-juvenil. Apresenta uma abor-dagem ampla sobre o tema, nas suas mais diversas especificidades,tanto nos seus aspectos teóricos e de dados quantitativos, quantona sua acepção sobre proposições para enfrentamento do proble-ma. Um convite à investigação sobre a reflexão da violência queinfringe crianças e adolescentes nesse país, em que, apesar de 16anos de criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990),ainda se encontram vítimas de formas de violência diluídas no con-texto complexo das violências estruturais da sociedade.

Na oportunidade do desenvolvimento de um estudo mundialsobre violência contra crianças, promovido pelas Nações Unidas,as ações desse organismo internacional têm se mobilizado para reu-nir pesquisas sobre as formas, causas e impactos da violência queafeta crianças e adolescentes. Nesse sentido, a Unicef tentou reunirum significativo conjunto de informações e análises sobre a temática,bem como conhecer diversas experiências de combate à violênciacontra a população infanto-juvenil na realidade brasileira. O livrovem fortalecer essa proposta, através de uma síntese desses dadosno que se refere ao Brasil.

Nessa perspectiva histórica, não se pode negar as contribui-ções dos diferentes atores sociais na luta e no fortalecimento de umsistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes nesse país:dos movimentos sociais, organismos não-governamentais a insti-tuições internacionais, como a Unicef, que vem atuando num pro-grama sistemático de desenvolvimento e fomento de debates sobre

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Violência contra crianças e adolescentes: uma análise descritiva do fenômeno

a violência contra esse grupo social. O livro é fruto desse investi-mento de um universo de estudos e bibliografias sobre o tema, natentativa de reunir um conjunto de análises e experiências de com-bate às principais formas de violência contra crianças e adolescen-tes, na realidade brasileira. Além da abordagem conceitual e quan-titativa, o livro oferece, ainda que limitado, um referencial biblio-gráfico dos autores que tratam do tema, nas suas mais ecléticasacepções, inclusive com a apresentação de resumos das obras naci-onais e internacionais e um catálogo de instituições dedicadas aoenfrentamento à violência contra a infância e juventude.

A proposta do livro é recolocar para as instituições organiza-das na sociedade e os simpatizantes da temática, a análise da vio-lência no seu aspecto conceitual, fomentando a discussão do cam-po teórico para melhor clareza e precisão de suas abordagens; con-tribuir para o requinte e sofisticação dos instrumentos de coleta naapreciação dos dados, bem como precisar com mais criticidade osatores envolvidos nesse processo de violação de direitos das crian-ças e adolescentes. O livro aponta a necessidade de conhecer esseagressor e suas redes sociais, para afinar o conhecimento sobre otema. Por último, a obra se propõe a discutir também os instru-mentos de monitoramento e avaliação de projetos sistemáticos deprevenção e redução da problemática da violência.

A construção do campo teórico se estabelece a partir do reco-nhecimento das diferentes formas em que a violência se manifesta.A reflexão é dirigida por um conjunto de concepções e condiçõessociais e políticas de reprodução da violência e na percepção ematerialidades contraditórias dessa violência no cotidiano socialbrasileiro, que vão apresentando seus conceitos, de modo a anali-sar os paradigmas em que a violência se constrói (MICHAUD, 2001;CHAUÍ, 1986; ARENDT, 1970; MAFFESOLI, 2001; FOUCAULT,1988; BOURDIEU, 2002).

Na oportunidade, apresenta uma estratégia de análise de situ-ações contra crianças e adolescentes, a partir do ciclo de vida, res-

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MICHAUD, Chauí Arendt

peitando a especificidade de cada faixa etária. Essa forma de anali-sar respeita a singularidade das categorias infância e adolescência,respeitando o desenvolvimento contínuo entre essas fases, e inau-gura um novo modelo interpretativo e metodológico para a refle-xão do desenvolvimento psicossocial desses sujeitos de direito. Asua utilidade metodológica reconhece, com mais precisão, as con-dições de violência em todas as fases da vida desse segmento soci-al, permitindo contextualizar os tipos mais freqüentes e predomi-nantes e reconhecer as causas e os atores envolvidos nas respecti-vas fases da vida. Nesse sentido, promove o desenvolvimento deinstrumentos de investigação que valorizam as características par-ticulares e singulares determinantes da população infanto-juvenil.Essa é uma opção metodológica acolhida pela Unicef, que pressu-põe a condição humana constituída sob três dimensões: a singular- classificada pelo desenvolvimento infantil (na faixa de 0 a 6 anos),a particular - pré-adolescência (7 a 14 anos) e humano-genérica - aadolescência (15 a 18 anos).

Para além da reflexão teórica, a obra apresenta com dados quan-titativos expressivos (mortalidade infantil, violência doméstica,mortes no trânsito, mortes por homicídios, violência institucional,adolescentes em conflito com a lei, trabalho infantil) as incidênciasda violência no Brasil por ciclo de vida, com suas característicasestruturais e geográficas. Nesse particular, os autores fazem umacrítica ao desprestígio com que os dados são tratados, pois aindanão têm sido suficientes para fomentar a produção de políticas quepermitam minimizar a problemática. Eles apresentam uma discus-são sobre os dados básicos a respeito das diversas formas de vio-lência contra crianças e adolescentes no Brasil e analisam as impli-cações dessa configuração social nos planos político e social.

Algumas experiências vitoriosas no esforço do combate à vio-lência, com todas as suas limitações circunstanciais, ajudam na re-flexão sobre o processo de intervenção e alimentam o avanço deestratégias de ação para reduzir esse problema. Os focos de atua-

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Violência contra crianças e adolescentes: uma análise descritiva do fenômeno

ção privilegiados são experiências realizadas em alguns estadosbrasileiros relativos à mortalidade infantil/PB, trabalho no tráficode drogas e na exploração sexual/RJ e SP; violência doméstica, so-bretudo na perspectiva da violência sexual/SC; e violênciainstitucional/SP.

A conclusão dos autores envolve uma rede ampliada de vio-lência que se alimenta da pluralidade de indivíduos e instituiçõessociais - Estado, família, igrejas, empresas, meios de comunicaçãoetc., sobretudo das limitações e omissões incapazes de respondercom efetividade às dinâmicas circunscritas às esferas econômica,política e cultural, colocadas na sociedade de enfrentamento dessetipo de violência.

Revela a capacidade limitada das organizações da sociedadecivil dedicadas à defesa dos direitos da criança e do adolescente deintervir nessas dinâmicas, na medida em que, suas ações são pon-tuais e restritas aos efeitos e conseqüências que alimentam esse pro-cesso. Não se orientam para a reflexão das causas e fragmentamsuas ações, avaliando a dimensão da violência numa direção unila-teral, e não complexa, com seus variados atores sociais.

Apresenta um quadro de recomendações de fóruns e institui-ções diversas para o combate à violência infanto-juvenil e propõeno estudo elaborado, um olhar mais integrado do fenômeno da vi-olência contra crianças e adolescentes e estabelece como estratégiaa análise a partir dos ciclos de vida. Reconhece esse instrumentocomo base para a construção da intervenção, na medida em que asdiversas formas de violência incidem diferencialmente ao longo dociclo de vida.

Conclui propondo a criação de uma rede brasileira de estudo emonitoramento da violência contra crianças e adolescentes.

Ambos os autores vêm se destacando nos estudos voltados paraa temática e, dessa forma, têm provocado o debate acerca do as-sunto.

ROSSI, Adriana

Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria.v. 9, n.15, jan./jun., 2006, p. 33-57.

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Ampliando o conceito de redução do dano? Uma visão desde a América Latina

Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria.v. 9, n.15, jan./jun., 2006, p. 33-57.

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RESENHA

Paulo Cesar Pontes Fraga

Os sentidos da violência

Sociólogo e Professor do Departamento de Filosofia eCiências Humanas da UESC

Palavras-chave: Colômbia, deslocamento forçado e trabalho social

FRAGA, Paulo Cesar Pontes

Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria.v. 9, n.15, jan./jun., 2006, p. 231-236.

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Galviz, Ardilla Constanza. La Cosecha de La Ira. Bogotá; ArcanEditores; 2004

A Colômbia é palco da mais antiga guerra civil da AméricaLatina. O conflito armado que se arrasta por cerca de 40 anos atin-ge, principalmente, a área rural do país, tendo como protagonistasgrupos guerrilheiros como as FARC (Forças Armadas Revolucio-nárias da Colômbia); o Exército Nacional da Colômbia; grupos pa-ramilitares, como a Autodefesa Unida da Colômbia e o narcotráfico.

Nesse longo período de um conflito caracterizado pela extre-ma violência, ceifaram-se milhares de vidas através de uma “guer-ra suja” fomentada pelos massacres e o extermínio que atinge apopulação civil. Produziu-se, ainda, em outras milhares de vidas,as terríveis marcas da tortura física e psicológica, dos seqüestros,dos desaparecimentos e das incontáveis violações de direitos hu-manos praticadas no cotidiano da guerra. Atingidas diretamentepelas atrocidades cometidas pelos grupos em conflito, e inculpa-das, ora por colaborar com a guerrilha, ora por delatá-la, as famíli-as camponesas são obrigadas a abandonar suas casas e o trabalhono campo , migrando para a periferia das grandes cidades.

O livro LA COSECHA DE LA IRA narra a experiência de dezanos da Fundação CEDAVIDA no resgate da dignidade e na pro-moção da cidadania das famílias camponesas deslocadas(desplazadas) de suas regiões de origem pela violência política daColômbia.

As atividades da CEDAVIDA se concentram no atendimentonas áreas da saúde, capacitação para o trabalho, organização co-munitária orientada pelo processo de formação. O livro relata deforma mais detalhada o trabalho terapêutico desenvolvido com ascrianças e suas famílias nos chamados Lares Infantis.

O trabalho com a população inscreve-se numa linha pedagógi-ca de orientação psicanalítica centrada na crença de que a contri-buição para a melhoria das condições de vida não é possível, sem

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antes o que a autora denomina “reparação moral”, por meio da ela-boração do “duelo” das múltiplas perdas causadas pela violência epelo processo de êxodo de suas regiões para o meio urbano. Nessesentido, busca-se elementos intrínsecos à violência, não somente co-mum ao fenômeno do deslocamento, mas na própria “cultura daviolência”, orientada pela pedagogia camponesa e pelas relaçõesintrafamiliares dominadas pelo castigo, pela imposição, por uma fortehierarquia, pela impossibilidade de expressão da criança e pelas re-lações de gênero orientadas pelo machismo extremado.

A publicação busca, além de dar visibilidade ao trabalho de-senvolvido pela instituição e à metodologia de intervenção adota-da, apontar, segundo sua ótica, as origens e as causas da violênciaendêmica que hoje atinge a Colômbia. Amparado na concepção te-órica da psicanalista austríaca Alice Miller, o trabalho terapêuticobusca, através do resgate da história de vida e da técnica de Tera-pia de Jogos, fazer com que as vítimas da violência, ao reviveremas injustiças cometidas contra elas, vivenciem o ódio, transforman-do em “duelo” os fatos reconhecidos, de maneira que a dor trans-forme-se em empatia autêntica e madura, possibilitando o que aautora denomina a cura psíquica.

O livro divide-se em três partes. Na primeira parte a autoraaborda a violência que domina o país e os aspectos da vida dasfamílias rurais, analisando a violência sofrida em seus múltiplosaspectos, apontando o deslocamento como uma face desse com-plexo fenômeno. Partindo dessa abordagem, há o reconhecimentode que as condições sociais e econômicas da Colômbia são molda-das por uma profunda injustiça social que desencadeia um climade graves violações. Nesta conjuntura, coexistem modalidades di-versas de conflitos, expressas não somente pela Guerra Civil, mastambém pela relação Estado-Sociedade Civil, pelas relações de gê-nero e intrafamiliares marcadas por profundas desigualdades e vi-olações. A autora, dessa forma, relativiza a violência da guerra, nosentido de compreendê-la mais amplamente, afirmando que a legi-

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timidade de sua existência ancora-se no fato de que seus protago-nistas “são formados para nutrí-la”.

Em relação ao fenômeno específico do êxodo para o meio ur-bano, Galviz tece observações que se amparam na experiência doatendimento direto que a instituição realiza com as famílias. A de-cisão pelo deslocamento corresponde a um ato extremo no contex-to de violência vivenciada, pois esta resolução consiste no abando-no de nexos comunitários e familiares, fundamentais para a exis-tência da população. O deslocamento das famílias, então, ocorreapós vivenciar diversos tipos de violações, principalmente a perdade um membro da família ou quando são ameaçados de morte,constituindo-se, portanto, numa solução última.O conflito produzoutras perdas importantes, como o rompimento das relações co-munitárias, ocorrido devido ao isolamento, à desconfiança e ao si-lêncio imposto pelos grupos.

A autora atribui às instituições sociais, como a família e a esco-la, papéis fundamentais na perpetuação da violência. A pedagogiadesenvolvida no campo, segundo a autora, vincula-se a práticas dehumilhação da criança, na sua subordinação ao adulto e na obedi-ência cega às ordens que lhes são impostas. Nesse contexto, o brin-car é visto como atividade subalterna e a criança é precocementeincluída no processo laboral. O ambiente doméstico revela elemen-tos de ação violenta contra a criança, como a violência física e psi-cológica.

Na segunda parte, através da reconstituição dos relatos dascrianças e das sessões terapêuticas, é narrado o impacto que lhes éprovocado pelas experiências de perdas vividas desde a violênciano campo e o processo de migração para as cidades. É enfatizadoque cada criança vivencia e elabora essas questões de modo singu-lar, a partir dos tipos de violência sofrida; do seu estágio de desen-volvimento; da estrutura familiar a que pertence; da sua estruturapsicológica e de sua situação socioeconômica. As situações de vio-lência vinculam-se a três situações específicas: estavam presentes

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quando ocorreram fatos violentos com perdas de parentes; sofre-ram perdas de parentes, mas não estavam presentes quando ocor-reu o fato; perderam o convívio comunitário, as referências do seuentorno e de suas condições socioeconômicas, mas mantiveram osvínculos familiares. Destacam-se, na narrativa, as diversas manei-ras como as crianças expressam a vivência do conflito, seja atravésda agressão, do isolamento ou do silêncio. Desta forma, o trabalhoterapêutico desenvolvido por CEDAVIDA se orienta no sentido dea criança expressar e viver seus sentimentos bloqueados por umacultura rígida na negação da sensibilidade.

Na terceira parte, a autora faz uma síntese do trabalho, relaci-onando os atores envolvidos nos processos pedagógico eterapêutico, tecendo ainda justificativas para a opção metodológicaadotada. Aponta a descoberta de que o trabalho é mais exitoso comas crianças se elas elaboram um processo de empatia. Por suas ca-racterísticas, as mulheres vítimas de violência que, juntamente coma criança, vive profundamente esse processo de perda, foram esco-lhidas pela equipe como – “sujeitos empáticos”. Isto pois, ao supe-rarem seus “duelos”, elas são as que mais dão apoio à criança víti-ma de violência política. Descreve o envolvimento das professorase suas implicações com a questão.

A adoção de uma metodologia que abarcasse toda a complexi-dade das circunstâncias que envolvem o êxodo dos camponesesvítimas da violência política foi feita considerando aspectos impor-tantes do modus vivendi da população. Abordando-os não somentecomo objeto da violência, mas, sim, sujeito do conflito e da violên-cia que o cerca. Um ator social pelo qual os grupos em conflitotambém lutam pelo apoio.

Por fim, a autora reafirma que a opção da Fundação em traba-lhar prioritariamente com as crianças reside na crença de que oadulto violento foi uma criança violada que não elaborou os seus“duelos”, vislumbrando, desta forma, o caráter formativo do tra-balho com crianças.

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O livro tem o mérito, por um lado, de explorar uma face daguerra civil não exposta pelos veículos de comunicação: as marcasinvisíveis das inúmeras perdas de quem não é protagonista, mas éigualmente sujeito do conflito. Por outro lado, de apresentar umtrabalho cuidadoso e implicado com o bem-estar dessa população.A autora narra os fatos com a sensibilidade de quem tem compro-misso com as transformações das vidas ali expostas, ainda que res-salvemos sua postura de muitas vezes dar dimensões individuais aprocessos sociais complexos, atribuindo peso excessivo aos proces-sos de estruturação da personalidade na produção da violência,não evidenciando o papel da estrutura social e política nesse con-texto.

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NORMAS PARA A APRESENTAÇÃODE TRABALHOS

Os trabalhos devem ser entregues em três vias impressas,digitados em Word for Windows, espaço duplo, papel tamanho A4,com margens de 3cm, fonte Times New Roman, tamanho 12, notasde rodapé deverão ser digitadas em tamanho 10. Os artigos nãodevem ultrapassar 30 laudas (de 20 linhas), ou 6 mil palavras, inclu-indo as ilustrações – gráficos, tabelas, fotografias etc; as resenhasnão devem ultrapassar 5 laudas. As traduções terão uma extensãoflexível, conforme critério do conselho editorial e do comitê cientifico.

As ilustrações devem ser de qualidade, separadas do texto, nu-meradas em algarismos arábicos. Os gráficos devem ser apresenta-dos no programa Excel ou no Word.

Título do trabalho e subtítulo (se houver) devem ser centraliza-dos. Nome do(s) autor(es) alinhado(s) à direita. Indicar, em nota derodapé: titulação, instituição de origem e e-mail para contato do(s)autor(es) e órgão financiador da pesquisa (se houver).

Cada artigo deve ser acompanhado de um resumo em portugu-ês e em língua estrangeira (inglês ou francês), com até 180 pala-vras, e até 5 palavras-chave. As resenhas de livros publicados nosúltimos dois anos a contar da data de publicação da revista devemconter três palavras-chave.

Os trabalhos recebidos serão enviados a pareceristas ad hocque irão se manifestar quanto à sua aceitação.

Os autores, que tiverem seus trabalhos aprovados para publica-ção, encaminharão uma cópia impressa e arquivo em disquete ouCD-ROM, com a seguinte organização:

· Quadros, mapas, tabelas etc. em arquivo separado, com indi-cações claras, ao longo do texto, dos locais em que devem serincluídos.

· As citações de autores, no decorrer do texto, seguem a forma –(Autor, data) ou (Autor, data, página), como nos exemplos:(JAGUARIBE, 1962) ou (JAGUARIBE, 1962, p. 35). Se houvermais de um título do mesmo autor no mesmo ano, eles sãodiferenciados por uma letra após a data: (ADORNO, 1975a),(ADORNO, 1975b) etc.

· Colocar como notas de rodapé apenas informações complemen-tares e de natureza substantiva, restringindo-se ao mínimo ne-cessário. Elas devem ser digitadas ao final da página, numera-das em algarismos arábicos e em ordem seqüencial.

· As referências devem ser colocadas no final do artigo, em or-dem alfabética, de acordo com as normas da ABNT.

REFERÊNCIAS

Todas as obras referenciadas devem ser alinhadas à esquerda.Os nomes dos autores podem ser abreviados. Recomenda-se

utilizar o mesmo padrão para abreviação de nomes e sobrenomesusados na mesma lista de referência.

Livro: sobrenome do autor (em caixa alta), nome (em caixaalta e baixa). Título. nº da edição, se não for a primeira. Local dapublicação: editora, ano. Número de páginas. Exemplo:

BOGDAN, Robert; BIKLEN, Sari Knopp. Investigação qualita-tiva em educação: uma introdução à teoria e aos métodos.Tradução Maria João Alvarez, Sara Bahia dos Santos e TelmaMourinho Baptista. Porto (Portugal): Porto, 1994. 336 p.

Artigo: sobrenome do autor, seguido do nome (como no item an-terior). Titulo do artigo. Nome do periódico, local da publicação, volu-me, página inicial e final, data ou intervalo da publicação. Exemplo:

REZENDE, Fernando. A imprevidência da previdência. Revistade Economia Política, São Paulo, v. 4, n. 2, p. 51-68, abr./jun. 1984.

Parte de publicação: sobrenome do autor, seguido do nome(como nos itens anteriores). Titulo: subtítulo (se houver). In: sobre-nome do autor, seguido do nome (como nos itens anteriores). Títuloda obra: subtítulo (se houver). Número da edição. Local de publica-ção: editora, data de publicação. Número do volume e, ou localiza-ção da parte referenciada. Exemplo:

PORTO, Edgard. Desenvolvimento regional na Bahia. In:AVENA, Armando (Org.). Bahia século XXI. Salvador:SEPLANTEC, 2002. p. 97-128.

Teses acadêmicas: sobrenome do autor, seguido do nome(como nos itens anteriores). Título. Ano. Número de folhas. Grauacadêmico a que se refere (titulação) – Faculdade. Instituição emque foi apresentada, local, ano. Exemplo:

LOPES, Roberto Paulo Machado. Universidade pública edesenvolvimento local: uma abordagem a partir dos gastosda Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. 2001. 150 f.Dissertação (Mestrado em Economia) – Faculdade de CiênciasEconômicas, Universidade Federal Da Bahia, Salvador, 1998.

Endereço para envio do trabalho

REVISTA Especiaria – Cadernos de Ciências HumanasUNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ – UESC

Rod. Ilhéus – Itabuna, Km 16 – Torre Administrativa – 3º AndarSalobrinho – Ilhéus – Bahia CEP 45650-000

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