31
1 CADERNOS de ESTUDOS AÇORIANOS CADERNO Nº 5 junho 2010 DEDICADO a ÁLAMO OLIVEIRA Todas as edições estão em linha em http://www.lusofonias.net Editor AICL - Colóquios da Lusofonia Coordenadoras Helena Chrystello / Rosário Girão dos Santos CONVENÇÃO: O Acordo Ortográfico 1990 rege os Colóquios da Lusofonia para todos os textos escritos após 1911 (data do 1º Acordo Ortográfico) Editado por ©™® COLÓQUIOS DA LUSOFONIA (AICL, ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL COLÓQUIOS DA LUSOFONIA - revisto outubro de 18 Em linha ISSN 2183-9239 CD-ROM ISSN 2183-9115 1 Criado e ministrado por Martins Garcia, posteriormente, por Urbano Bettencourt Nota introdutória do editor, Chrys Chrystello No XI Colóquio da Lusofonia na Lagoa em 2009 (4º Encontro Açoriano), decidimos obviar ao fim do Curso de Estudos Açorianos na Universidade dos Açores 1 e organizar na Universidade do Minho, Braga, com a colega Rosário Girão, um Curso Breve “AÇORIANIDADE(s) e INSULARIDADE(s)”. A partir desse ano, diversos alunos de mestrado da Universidade do Minho, entre outras, trabalharam autores açorianos traduzindo excertos para francês e inglês e tais autores açorianos foram incluídos em doutoramentos e mestrados na Polónia e Roménia. Decidimos então criar no nosso portal AICL (www.lusofonias.net) os Cadernos de Estudos Açorianos para dar a conhecer excertos de obras (na sua maioria esgotadas) de autores açorianos e, assim, abrir uma janela de conhecimento e divulgação sobre esta peculiar e rica escrita que entendemos ser diferente. Em janeiro 2010, brotaram estes despretensiosos CADERNOS de ESTUDOS AÇORIANOS para acesso generalizado, fácil leitura e descarga em formato pdf. A sua conceção assenta na premência de dar a conhecer a AÇORIANIDADE LITERÁRIA,

CADERNOS de ESTUDOS AÇORIANOS - lusofonias.nete-suplementos... · 3 Dos autores contemporâneos de que falamos nos últimos Cadernos, selecionei alguns daqueles por quem nutro mais

  • Upload
    buitruc

  • View
    214

  • Download
    1

Embed Size (px)

Citation preview

1

CADERNOS de ESTUDOS ACcedilORIANOS

CADERNO Nordm 5 junho 2010 DEDICADO a AacuteLAMO OLIVEIRA

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha em httpwwwlusofoniasnet Editor AICL - Coloacutequios da Lusofonia

Coordenadoras Helena Chrystello Rosaacuterio Giratildeo dos Santos

CONVENCcedilAtildeO O Acordo Ortograacutefico 1990 rege os Coloacutequios da Lusofonia para todos os textos escritos apoacutes 1911 (data do 1ordm Acordo Ortograacutefico)

Editado por copytradereg COLOacuteQUIOS DA LUSOFONIA (AICL ASSOCIACcedilAtildeO INTERNACIONAL

COLOacuteQUIOS DA LUSOFONIA - revisto outubro de 18 Em linha ISSN 2183-9239 CD-ROM ISSN 2183-9115

1 Criado e ministrado por Martins Garcia posteriormente por Urbano Bettencourt

Nota introdutoacuteria do editor Chrys Chrystello

No XI Coloacutequio da Lusofonia na Lagoa em 2009 (4ordm Encontro Accediloriano) decidimos obviar ao fim do Curso de Estudos Accedilorianos na Universidade dos Accedilores1 e organizar na Universidade do Minho Braga com a colega Rosaacuterio Giratildeo um Curso Breve ldquoACcedilORIANIDADE(s) e INSULARIDADE(s)rdquo

A partir desse ano diversos alunos de mestrado da Universidade do Minho entre outras trabalharam autores accedilorianos traduzindo excertos para francecircs e inglecircs e tais autores accedilorianos foram incluiacutedos em doutoramentos e mestrados na Poloacutenia e Romeacutenia

Decidimos entatildeo criar no nosso portal AICL (wwwlusofoniasnet) os Cadernos de

Estudos Accedilorianos para dar a conhecer excertos de obras (na sua maioria esgotadas) de autores accedilorianos e assim abrir uma janela de conhecimento e divulgaccedilatildeo sobre esta peculiar e rica escrita que entendemos ser diferente

Em janeiro 2010 brotaram estes despretensiosos CADERNOS de ESTUDOS ACcedilORIANOS para acesso generalizado faacutecil leitura e descarga em formato pdf A sua conceccedilatildeo assenta na premecircncia de dar a conhecer a ACcedilORIANIDADE LITERAacuteRIA

2

servirem de complemento aos curriacuteculos regionais e agraves Antologias de Autores Accedilorianos que a AICL comeccedilou a publicar a partir de entatildeo

Os CADERNOS de ESTUDOS ACcedilORIANOS satildeo uma publicaccedilatildeo trimestral que tenta

chegar a leitores nunca imaginados em todo o mundo Natildeo haacute qualquer criteacuterio ndash aleacutem da arbitrariedade - a definir a ordem de apresentaccedilatildeo dos autores

Muitos autores fazem parte da ANTOLOGIA DE AUTORES ACcedilORIANOS

CONTEMPORAcircNEOS que a Helena Chrystello e a Rosaacuterio Giratildeo compilaram na versatildeo bilingue (PT-EN) em 2011 na monolingue em 2012 na Coletacircnea de Textos Dramaacuteticos de 2013 a que seguiu em 2014 uma Antologia no Feminino ldquo9 ilhas 9 escritorasrdquo Acolhemos como premissa o conceito de Martins Garcia que admite uma literatura accediloriana laquoenquanto superstrutura emanada de um habitat de uma vivecircncia e de uma mundividecircnciardquo

A accedilorianidade literaacuteria (termo cunhado por Vitorino Nemeacutesio na revista Insula

em 1932) natildeo estaacute exclusivamente relacionada com peculiaridades regionais nem com temas comummente abordados na literatura (a solidatildeo o mar a emigraccedilatildeo) ou como escreveu J Almeida Pavatildeo (1988)rdquoassume-se tal Literatura com o estatuto de uma autonomia consentacircnea com uma essencialidade que a diferencia da Continentalrdquo

Assim para noacutes [AICL] eacute Literatura de significaccedilatildeo accediloriana ldquoa escrita que se

diferencia da de outros autores de Liacutengua portuguesa com especificidades que identificam o autor talhado por elementos atmosfeacutericos e socioloacutegicos descoincidentes justaposto a vivecircncias e comportamentos seculares sendo necessaacuterio apreender a noccedilatildeo das suas Mundividecircncias e Mundivivecircncias e as infrangiacuteveis relaccedilotildees umbilicais que as caracterizam face aos antepassados agraves ilhas e locais de origemrdquo

A AICL entende que o roacutetulo comum de accedilorianidade abarca extratos diversos de

idiossincrasias mdash Um de formaccedilatildeo endoacutegena constituiacutedo pelos que nasceram e viveram nas Ilhas

independentemente do facto de se terem ou natildeo terem ausentado

2 adotando a designaccedilatildeo feliz utilizada por Aacutelamo Oliveira a propoacutesito do poeta Almeida Firmino

mdash O dos insularizados ou laquoilhanizados2raquo e de todos que consideram as ilhas como ldquosuasrdquo de um ponto de vista de matriz existencial

- Um de formaccedilatildeo exoacutegena no qual se incluem todos os que natildeo nascendo nas ilhas a elas estatildeo ligados por matrizes geracionais ateacute agrave sexta geraccedilatildeo

As obras jaacute desenvolvidas e publicadas pela AICL (Coloacutequios da Lusofonia) em

parceria com a Editora Calendaacuterio de Letras numa seacuterie de antologias visam dar a conhecer ao puacuteblico em geral e ndash muito especialmente ndash aos professores e estudantes excertos de autores cujas obras estatildeo fora do mercado comercial das livrarias e muitas vezes ateacute das bibliotecas Sugerimos pois a consulta das seguintes obras coeditadas pela Editora Calendaacuterio de Letras

bull Antologia Bilingue de (15) Autores Accedilorianos Contemporacircneos

bull Antologia (Monolingue) de (17) Autores Accedilorianos Contemporacircneos

bull Coletacircnea de Textos Dramaacuteticos de (5) Autores Accedilorianos

bull Antologia no Feminino ldquo9 Ilhas 9 Escritorasrdquo

Ou a niacutevel mais pessoal o meu livro ldquoCHROacuteNICACcedilORES (vol 2) uma circum-

navegaccedilatildeo de Timor a Macau Austraacutelia Brasil Braganccedila ateacute aos Accedilores e o ldquoCroacutenica do Quotidiano Inuacutetil 40 anos de vida literaacuteriardquo com as suas doses de accedilorianidade

Para os iniciados em autores e temas accedilorianos sugerimos que consultem A

BIBLIOGRAFIA GERAL DA ACcedilORIANIDADE A PUBLICAR EM 2017 com mais de 19 mil entradas compilada ao longo de mais de sete anos

Ali incluiacutemos autores accedilorianos (residentes expatriados e emigrados) estrangeiros

ou nacionais (accedilorianizados ou natildeo) que escreveram sobre temaacuteticas accedilorianas Exaustiva eacute mas ainda incompleta se bem que seja indicadora do se tem produzido e muito do qual merece ser lido analisado criticado trabalhado e traduzido

Nem todos os trabalhos dizem respeito a literatura jaacute que a quisemos tornar o mais

abrangente possiacutevel e englobar nela o maior nuacutemero de obras de uma forma ou outra relativas agrave ACcedilORIANIDADE Dentre as obras literaacuterias muitas natildeo seratildeo obras-primas nem relevantes outras permanecem atuais pelo seu interesse histoacuterico mas por entre o trigo e o joio haacute excelentes obras agrave espera de serem descobertas lidas e ensinadas

3

Dos autores contemporacircneos de que falamos nos uacuteltimos Cadernos selecionei alguns daqueles por quem nutro mais apreciaccedilatildeo literaacuteria Cristoacutevatildeo de Aguiar Daniel de Saacute Dias de Melo Vasco Pereira da Costa e para esta ediccedilatildeo escolhi AacuteLAMO OLIVEIRA Pretendia-se com os quatro primeiros cadernos completar o ciclo anual previsto desde o coloacutequio accediloriano de 2009 e a partir de entatildeo manter a publicaccedilatildeo trimestral

Biodados do autor

AacuteLAMO OLIVEIRA (Joseacute Henrique do) nasceu na Freguesia do Raminho ndash Terceira Accedilores ndash maio de 1945

Fez o Curso de Filosofia no Seminaacuterio de Angra e o serviccedilo militar na Guineacute-Bissau (196769)

Foi catalogador na Biblioteca Puacuteblica e Arquivo de Angra (197071) Funcionaacuterio Administrativo no Departamento Regional de Estudos e Planeamento Em 1982 foi transferido para a Direccedilatildeo Regional da Cultura e apoacutes a aposentaccedilatildeo

foi convidado a colaborar ateacute 2010 na Direccedilatildeo Regional das Comunidades Eacute soacutecio fundador do Alpendre - grupo de teatro (1976) onde tem sido diretor

artiacutestico e encenador Tem 36 livros com poesia romance conto teatro e ensaio Estaacute representado em

mais de uma dezena de antologias de poesia e de ficccedilatildeo narrativa O seu romance Ateacute Hoje Memoacuterias de Catildeo em 3ordf ediccedilatildeo recebeu em 1985 o

preacutemio laquoMareacute Vivaraquo da Cacircmara Municipal do Seixal

Em 1999 recebeu o preacutemio laquoAlmeida GarrettTeatroraquo com a peccedila A Solidatildeo da Casa do Regalo

Tem poesia e prosa traduzidas para inglecircs francecircs espanhol italiano esloveno e croata

O seu romance Jaacute Natildeo Gosto de Chocolates estaacute traduzido e publicado em inglecircs e em japonecircs

Em abril de 2002 o Programa de Estudos Portugueses Portuguese Studies Program

da Universidade da Califoacuternia em Berkeley convidou-o na qualidade de laquoescritor do semestreraquo para lecionar a sua proacutepria obra aos estudantes de Liacutengua Portuguesa sendo o primeiro portuguecircs a receber tal distinccedilatildeo

Com algumas incursotildees na aacuterea das artes plaacutesticas (exposiccedilotildees individuais e coletivas em Angra Ponta Delgada Lisboa Porto e Guineacute-Bissau nas deacutecadas de 60 a 80) criou mais de uma centena de capas para livros

Em 2010 foram-lhe conferidas as seguintes distinccedilotildees Insiacutegnia Autonoacutemica de Reconhecimento do Governo Regional dos Accedilores e Grau de Comendador da Ordem de Meacuterito da Presidecircncia da Repuacuteblica

4

OBRAS PUBLICADAS

9730 Oliveira Aacutelamo (1968) A minha matildeo aberta Opuacutesculo ed autor 9731 Oliveira Aacutelamo (1971) Patildeo verde ed autor 9732 Oliveira Aacutelamo (1972) in 14 poetas de aqui e de agora (Antologia) Angra

Uniatildeo Graacutefica Angrense 9733 Oliveira Aacutelamo (1973) Poemas de(s)amor poesia Tip Fernandes 9734 Oliveira Aacutelamo (1974) Morte ou vida do poeta Teatro Angra Livraria

Adriano G de Figueiredo 9735 Oliveira Aacutelamo (1974) Faacutebulas poesia ed autor 9736 Oliveira Aacutelamo (1974) Um Quixote 2ordf ed Teatro 9737 Oliveira Aacutelamo (1976) Os quinze misteriosos misteacuterios ed autor 9738 Oliveira Aacutelamo (1977) Manuel seis vezes pensei em ti ed autor 9739 Oliveira Aacutelamo (1977) in Antologia de poesia accediloriana do seacutec XVIII a 1975

de Pedro da Silveira Lisboa ed Saacute da Costa 9740 Oliveira Aacutelamo (1978) Manuel seis vezes pensei em ti peccedila em duas

talhadas com dez pevides 2ordf ed Angra ed autor 9741 Oliveira Aacutelamo (1978) Almeida Firmino poeta dos Accedilores DRAC SREC 9742 Oliveira Aacutelamo (1978) in Antologia panoracircmica do conto accediloriano seacutecs XIX

e XX org prefaacutecio e notas de Joatildeo de Melo Lisboa ed Vega 9743 Oliveira Aacutelamo (1979) Cantar o corpo Uniatildeo Graacutefica Angrense ed autor 9744 Oliveira Aacutelamo (1980) Eu fui ao Pico piquei-Me poesia ed autor 9745 Oliveira Aacutelamo (1982) Uma hortecircnsia para Brianda Sep Atlacircntida 9746 Oliveira Aacutelamo (1982) ldquoAbordagem (teatral) a Quando o mar galgou a terra

de Armando Cocircrtes-Rodriguesrdquo Ensaio Sep Atlacircntida Angra 9747 Oliveira Aacutelamo (1982) Burra preta com uma laacutegrima ed autor 9748 Oliveira Aacutelamo (1982) Itineraacuterio das gaivotas ed SREC DRAC 9749 Oliveira Aacutelamo (1982) laquoNota de abertura ou Almeida Firmino um poeta a

recuperarraquo in Firmino Almeida Narcose obra poeacutetica completa Angra SREC 9-20

9750 Oliveira Aacutelamo (1982) O preseacutepio de esferovite Satildeo Bartolomeu da Terceira com Etelvina Fraga Manuel Fernandes ed DRAC Biblioteca Puacuteblica e Arquivo Distrital de Angra

9751 Oliveira Aacutelamo (1983) in Antologia The Sea Within a selection of Azorean poets ed Gaacutevea-Brown EUA

9752 Oliveira Aacutelamo (1983) in 12 poetas dos Accedilores org e notas de Emanuel Jorge Botelho Lisboa IN-CM

9753 Oliveira Aacutelamo (1983) Nem mais amor que fogo poesia com Emanuel Jorge Botelho Angra ed autor

9754 Oliveira Aacutelamo (1983) Em louvor do Divino Espiacuterito Santo fotomemoacuteria de Francisco Ernesto de Oliveira Martins conto de Aacutelamo Oliveira Angra DRAC Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Emigraccedilatildeo IN-CM

9755 Oliveira Aacutelamo (1984) Missa terra lavrada ed DRAC SREC 9756 Oliveira Aacutelamo (1984) Sabeis quem eacute este Joatildeo Teatro peccedila sobre o beato

Joatildeo Baptista Machado ed Sep Atlacircntida vol 29 3-68 IAC 9757 Oliveira Aacutelamo (1984) Triste vida leva a garccedila 1ordf ed Ed Ulmeiro 9758 Oliveira Aacutelamo (1985) laquoTerceirense e pintor Joseacute Luacutecioraquo Angra IAC

Atlacircntida vol 30 2deg sem 34-35 9759 Oliveira Aacutelamo (1986) Ateacute hoje memoacuterias de catildeo 1ordf ed Ulmeiro 9760 Oliveira Aacutelamo (1986) Textos inocentes Poesia ed autor 9761 Oliveira Aacutelamo (1987) O trajo nos Accedilores com Joatildeo Afonso 2ordf ed Angra

Secretaria Regional dos Assuntos Sociais 9762 Oliveira Aacutelamo (1987) Ateacute hoje memoacuterias de catildeo 2ordf ed Ulmeiro 9763 Oliveira Aacutelamo (1987) Interaccedilatildeo entre atividades culturais na regiatildeo e ao

niacutevel local correntes ldquoascendentesrdquo e ldquodescendentesrdquo Ponta Delgada Universidade dos Accedilores

9764 Oliveira Aacutelamo (1987) Erva-Azeda Poesia Angra [si sd] 9765 Oliveira Aacutelamo (1988) Accedilores fotografia de Mauriacutecio Abreu intro e seleccedilatildeo

de textos de Aacutelamo Oliveira inglecircs por Joaquim Nascimento Setuacutebal Ed M Abreu e V Figueiredo

9766 Oliveira Aacutelamo (1988) Ateacute hoje memoacuterias de catildeo 3ordf ed ed Signo 9767 Oliveira Aacutelamo (1990) ldquoO cenaacuterio de uma geraccedilatildeordquo ineacutedito 19 Congresso

de Literaturas Lusoacutefonas de Expressatildeo Portuguesa Casa dos Accedilores de Lisboa 15-16 jun

9768 Oliveira Aacutelamo (1990) A Madeira eacute um jardim Raminho ed autor Tipografia Serafim Silva Artes Graacuteficas Maia

9769 Oliveira Aacutelamo (1991) Contos com desconto Contos Angra IAC 9770 Oliveira Aacutelamo (1992) Impressotildees de boca Angra SREC DRAC 9771 Oliveira Aacutelamo (1992) Paacutetio drsquoAlfacircndega Meia-Noite romance ficccedilatildeo col

Chatildeo da Palavra Lisboa ed Vega 9772 Oliveira Aacutelamo (1992) Eugeacutenio de Andrade nos Accedilores Fundaccedilatildeo Eugeacutenio

de Andrade Ponta Delgada Cacircmara Municipal 9773 Oliveira Aacutelamo (1994) Manuel seis vezes pensei em ti 2ordf ed Jornal de

Cultura 9774 Oliveira Aacutelamo (1994) Pai a sua benccedilatildeo Antologia de textos de autores

accedilorianos Ponta Delgada DRAC 9775 Oliveira Aacutelamo (1994) A histoacuteria da Belaacutervore na cidade da Burocraacutecia

desenhos de Virgiacutelio Toste Angra Dir Org e Admin Puacuteblica

5

9776 Oliveira Aacutelamo (1994) Accedilores Azores com Mauriacutecio Abreu trad Vanessa Seed ed M Abreu e Victor Figueiredo 1ordf ed Setuacutebal Corlito

9777 Oliveira Aacutelamo (1995) Burra preta com uma laacutegrima 2ordf ed romance Lisboa ed Salamandra

9778 Oliveira Aacutelamo (1995) Os sonhos do infante 2ordf ed Ponta Delgada Jornal de Cultura

9779 Oliveira Aacutelamo (1995) Impressotildees de boca ilustraccedilotildees David Almeida col Gaivota 76 SREC

9780 Oliveira Aacutelamo (1995) Olaacute pobreza textos de pompa e circunstacircncia Ponta Delgada Ed Eacuteter

9781 Oliveira Aacutelamo (1995) E choveu papel com Luiacutes Belerique e Miguel Silveira Angra Dir Reg Org e Administraccedilatildeo Puacuteblica

9782 Oliveira Aacutelamo (1995) Pai a sua benccedilatildeo Antologia de textos accedilorianos org com Ana Maria Bruno Mariana Mesquita e Susana Rocha ed Coingra SREC DRAC

9783 Oliveira Aacutelamo (1996) ldquoO homem suspensordquo Supl Accediloriano de Cultura nordm 43

9784 Oliveira Aacutelamo (1996) Olaacute Pobreza Ensaio ed Jornal de Cultura 9785 Oliveira Aacutelamo (1996) Os sonhos do Infante Angra Grupo Alpendre 9786 Oliveira Aacutelamo (1997) Com perfume e com veneno Lisboa ed Salamandra 9787 Oliveira Aacutelamo (1998) Mar de baleias e de baleeiros com Joatildeo Afonso

Museu dos Baleeiros Lajes ed SREC 9788 Oliveira Aacutelamo (1998) Antoacutenio porta-te como uma flor gravuras de

Antoacutenio Dacosta Lisboa ed Salamandra 9789 Oliveira Aacutelamo (1999) Jaacute natildeo gosto de chocolates Lisboa ed Salamandra 9790 Oliveira Aacutelamo (1999) Morte que mataste lira com Carlos Alberto Moniz

Teatro Lisboa ed Dito E Feito 9791 Oliveira Aacutelamo (1999) Almeida Garrett ningueacutem teatro Alpendre ed

autor 9792 Oliveira Aacutelamo (2000) A solidatildeo da Casa do Regalo Preacutemio de Teatro

Almeida Garrett 1999 ed Salamandra 9793 Oliveira Aacutelamo (2000) Memoacuterias de ilha em sonhos de histoacuteria Poemas

sobre aguarelas de Aacutelvaro Mendes ed Aacutelvaro Mendes 9794 Oliveira Aacutelamo (2000) in Nove Rumores do Mar Antologia de Poesia

Accediloriana Contemporacircnea org Eduardo Bettencourt Pinto e Vamberto Freitas Instituto Camotildees e Seixo Publishers

9795 Oliveira Aacutelamo (2000) Valter Vinagre espiacuterito nas ilhas com Valter Vinagre Manuel Hermiacutenio Monteiro ed Instituto Camotildees MNE

9796 Oliveira Aacutelamo (2001) Cantigas do fogo e da aacutegua quadras sobre aguarelas de Aacutelvaro Mendes Teatro do Ser atuaccedilotildees 1999 2003 2006

9797 Oliveira Aacutelamo (1999) Judite nome de guerra de Almada Negreiro Adaptaccedilatildeo Teatro [si sd]

9798 Oliveira Aacutelamo (1999) In Neo 1 vol 1 com Urbano Bettencourt Adelaide M Batista Carla Silva Pedro Alvim Pinheiro ed Deptordm de Liacutenguas e Literaturas Modernas Universidade dos Accedilores

9799 Oliveira Aacutelamo (1999) O homem que era feito de rede com Katherine Vaz e Vamberto Freitas ed Salamandra

9800 Oliveira Aacutelamo (2003) O meu coraccedilatildeo eacute assim Antologia editada por Diniz Borges ed Cacircmara Municipal de Angra

9801 Oliveira Aacutelamo (2003) Ateacute hoje memoacuterias de catildeo 2ordf ed Salamandra 9802 Oliveira Aacutelamo (2003) Angra cidade do mundo Sanjoaninas 1999

Terceira foto Carlos Garcia ed Fotoletras 9803 Oliveira Aacutelamo (2004) ldquoPedro da Silveira 1922-2003 um breve perfilrdquo

Boletim do Nuacutecleo Cultural da Horta vol 13 9804 Oliveira Aacutelamo (2004) A solidatildeo da Casa do Regalo Almeida Garrett

ningueacutem Teatro 2ordf ed ed Salamandra 9805 Oliveira Aacutelamo de (2005) ldquoAs mulheres em Jaacute natildeo gosto de chocolatesrdquo

Manuela Marujo Aida Baptista e Rosana Barbosa (ed) Congresso A vez e a voz da mulher imigrante portuguesa University of Toronto Dept Spanish and Portuguese 68-71

9806 Oliveira Aacutelamo (2005) Accedilores Azores com Mauriacutecio Abreu trad inglesa de Peter Ingham ed M Abreu e Victor Figueiredo 2ordf ed Setuacutebal Fotografia e Ed Lda

9807 Oliveira Aacutelamo (2006) I no longer like chocolates Trad Diniz Borges San Jose PHPC

9808 Oliveira Aacutelamo (2007) Voices from the islands an Anthology of Azorean Poetry John M K Kinsella Gaacutevea-Brown Publications Providence Rhode Island

9809 Oliveira Aacutelamo (2007) Accedilores profundos profound Azores com Paulo Filipe Monteiro e Madalena San-Bento trad Patriacutecia Correa Costa Porto Caixotim Ed

9810 Oliveira Aacutelamo (2007) Terceira uma ilha sempre em festa fot Joatildeo Costa ediccedilatildeo bilingue Praia da Vitoacuteria ed Blu

9811 Oliveira Aacutelamo (2007) O ciclo do Espiacuterito Santo The Holy Ghost Cycle com Joatildeo Manuel Magina Medina Joatildeo Antoacutenio Martins Ana Martins Angra ed J M M Medina

6

9812 Oliveira Aacutelamo (2008) Jaacute natildeo gosto de chocolates Ed Japonesa Random House Kodansha

9813 Oliveira Aacutelamo (2008) Terceira a ilha dos Impeacuterios Terceira Impeacuterios Island com Maacuterio Duarte e trad de Alexandra Grilo Praia da Vitoacuteria ed Blu

9814 Oliveira Aacutelamo (2010) Andanccedilas de pedra e cal 1ordf ed Praia da Vitoacuteria ed Blu

9815 Oliveira Aacutelamo (2010) ldquoPadre Filho Espiacuterito Santo e o futurordquo IV Congresso Internacional sobre as Festas do Espiacuterito Santo PHPC San Jose Califoacuternia

9816 Oliveira Aacutelamo (2010) In Passos de nossos avoacutes ed Manuela Marujo Aida Baptista [si sd]

9817 Oliveira Aacutelamo (2011) Caneta de tinta permanente na poesia popular dedicado a Manuel Caetano Dias ldquoCanetardquo Nova Graacutefica ed autor

9818 Oliveira Aacutelamo (2011) in Antologia Bilingue de Autores Accedilorianos Contemporacircneos de Helena Chrystello e Rosaacuterio Giratildeo AICL Coloacutequios da Lusofonia ed Calendaacuterio de Letras Vila Nova de Gaia

9819 Oliveira Aacutelamo (2011) in Antologia da Memoacuteria poeacutetica da Guerra Colonial Roberto Vecchi Margarida Calafate Ribeiro (org) Fot Manuel Botelho Notas biograacuteficas Luciana Silva e Moacutenica Silva 1ordf ed Porto Afrontamento Poesia [ISBN 9789723611748] 648 pp

9820 Oliveira Aacutelamo (2012) in Antologia de Autores Accedilorianos Contemporacircneos de Helena Chrystello e Rosaacuterio Giratildeo AICL Coloacutequios da Lusofonia ed Calendaacuterio de Letras Vila Nova de Gaia

9821 Oliveira Aacutelamo (2012) Quatro prisotildees debaixo de armas Teatro baseado no conto homoacutenimo de Vitorino Nemeacutesio ed autor

9822 Oliveira Aacutelamo (2013) ldquoAdelaide Freitasrdquo 19ordm Coloacutequio da Lusofonia Maia Accedilores

9823 Oliveira Aacutelamo (2013) Portugal pelo mundo disperso coord de Teresa Cid 1ordf ed Lisboa Tinta da China

9824 Oliveira Aacutelamo (2013) In Coletacircnea de Textos Dramaacuteticos de Helena Chrystello e Luciacutelia Roxo AICL Coloacutequios da Lusofonia ed Calendaacuterio de Letras Vila Nova de Gaia

9825 Oliveira Aacutelamo (2013) Murmuacuterios com vinho de missa 1ordf ed Angra Letras Lavadas

9826 Oliveira Aacutelamo (2013) Murmuacuterios com vinho de missa 2ordf ed Ponta Delgada Letras Lavadas

9827 Oliveira Aacutelamo (2014) ldquoNo centenaacuterio de nascimento do pintor Antoacutenio Dacosta 1914-2014rdquo IAC Atlacircntida vol LIX

9828 Oliveira Aacutelamo (2014) Marta de Jesus a verdadeira Letras Lavadas

9829 Oliveira Aacutelamo (2014) ldquoMadalena Feacuterinrdquo 20ordm Coloacutequio da Lusofonia Seia 9830 Oliveira Aacutelamo (2015) ldquoUm escritor accediloriano Manuel Machadordquo 24ordm

Coloacutequio da Lusofonia Graciosa Accedilores 9831 Oliveira Aacutelamo (2017) ldquoA laquoKriacutetika Pueacutetikaraquo um texto de Urbano

Bettencourtrdquo 27ordm Coloacutequio da Lusofonia Belmonte

GALIZA 2012

7

NA GALIZA NO 18ordm COLOacuteQUIO DA LUSOFONIA 2012

NA GALIZA NO 18ordm COLOacuteQUIO DA LUSOFONIA 2012

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

8

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

9

MOINHOS 2014 NO 21ordm COLOacuteQUIO

Estoacuteria de Natal Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 25-31

ldquoToda a manhatilde Gustavo andou numa excitaccedilatildeo desusada Levantara-se cedo sem apelos cumprindo prontamente o que noutros dias fazia com demasiada preguiccedila Com a matildee ornamentara a aacutervore de Natal e armara um lindo preseacutepio fulgurante de pedras e musgos com caminhos de areia casas de cartatildeo e pessoas de barro Bombardeou a matildee com perguntas tentando identificar as figuras com as de carne e osso na acircnsia de entender uma vez por todas as mil atribulaccedilotildees que concorreram para que o Menino Jesus fosse nascer na velha arribana dos arredores de Beleacutem Sempre que a curiosidade o fulminava os seus olhos castanhos ficavam ainda maiores e apesar dos seus escassos cinco anos natildeo se deixava satisfazer com qualquer resposta Ouvia e questionava ndash natildeo por desconfiar das palavras da matildee mas porque queria compreender os pormenores e sobretudo desfazer as contradiccedilotildees Intrigava-o a prepotecircncia daquele recenseamento imposto contranatura pelo Imperador de Roma ndash violador poderoso da vontade de povos tatildeo pequenos e indefesos como o da Judeia ndash a quem comparava com ingeacutenua repugnacircncia agrave Ameacuterica agrave Ruacutessia agrave Indoneacutesia nas suas violaccedilotildees internacionais consagradas e legitimadas Era-lhe impensaacutevel que pudessem obrigar a matildee ndash graacutevida do seu proacuteximo irmatildeo ou irmatilde ndash a ir ateacute agrave cidade para um simples dar o nome incomodando-a nesse belo embaraccedilo da vida Ele sabia que era necessaacuterio evitar qualquer perturbaccedilatildeo No ventre da matildee crescia o seu sonho mais apetecido com o qual jaacute partilhava o melhor dos seus afetos Irmatildeo ou irmatilde natildeo era duacutevida que o apoquentasse Apenas desejava que o tempo passasse depressa para que o nascimento se desse Atraveacutes da voz da matildee foi visionando os longos caminhos de terra e pedregulhos as chuvas de dezembro enlameando o corpo e a alma as noites longas e escuras dormidas ao relento de Nazareacute a Beleacutem E imaginava as apreensotildees muacuteltiplas que S Joseacute e Nossa Senhora ruminaram perante os perigos eminentes de assaltos e desfeitas incluindo as pragas engolidas contra quem assinara o edital romano e os incomodava sem rebuccedilos soacute para se dar ao luxo de saber sobre quantos desgraccedilados impunha o seu poder ldquoPorque natildeo foram de camionetardquo perguntou Gustavo E ficou a saber que nesse tempo longiacutenquo e quase lendaacuterio as camionetas eram simplesmente imprevisiacuteveis e que andar de burro era mesmo assim um privileacutegio de remediado Muitos outros ndash

10

mulheres velhos e crianccedilas ndash teratildeo ido a peacute sem mais contemplaccedilotildees Ele nem queria acreditar que pessoas como os avoacutes tivessem sido obrigadas a deixar as suas casas enfrentando os medos de caminhos pejados de salteadores soacute para satisfazerem os caprichos de um imperador que se quedava na sua enorme cidade no esplendor do seu palaacutecio com tanto de lonjura como de tropas e escravos E havia tambeacutem o despeito pela liberdade ferida um oacutedio mudo mas natildeo adormecido de quem se via sujeito ao poder estrangeiro que desrespeitava a alma a cultura a religiatildeo o direito de ser povo ldquoNaqueles dias Beleacutem tinha as casas e as ruas abarrotadas de gente de ruiacutedos e de cheirosrdquo ldquoComo nas touradasrdquo perguntou Gustavo ldquoMais do que nas touradasrdquo confidenciou a matildee Devia ter sido terriacutevel esse chegar a Beleacutem ao fim de dias de atribulada viagem mergulhar num oceano de gente que zaragateava como enxame gigantesco atropelando-se nas bichas de inscriccedilatildeo agraves portas das tabernas das casas de pasto das pensotildees dos abrigos improvisados Gritava-se pelos guardas sempre impassiacuteveis para denunciar os roubos a partilha de um lugar agrave mesa ou de um recanto onde se pudesse dormir Viam-se as consequecircncias da embriaguez atraveacutes das brigas dos insultos dos piropos soezes Mulheres de porte faacutecil deixavam-se apalpar entre gargalhadas e algumas moedas por transeuntes ocasionais As ruas nauseavam de restos de comida de excrementos de corpos por lavar A cidade era um incomensuraacutevel caixote de lixo ldquoQuando S Joseacute e Nossa Senhora entraram em Beleacutem anoitecia Foram percorrendo as ruas por entre pragas e tropeccedilotildees e os relinchos espantados da burra Havia pessoas deitadas nas valetas os corpos entranccedilados num rodilhatildeo de promiscuidades Algumas janelas deixavam passar a luz deacutebil das lamparinas de azeiterdquo ldquoAinda natildeo havia luz eleacutetricardquo interrompeu Gustavo ldquoNatildeo meu filho A eletricidade eacute bastante recenterdquo ldquoCoitadinhos Entatildeo natildeo iluminavam as aacutervores de Natalrdquo ldquoClaro que natildeo O Menino Jesus ainda natildeo tinha nascidordquo ldquoAh simrdquo E Gustavo sorriu da sua proacutepria infantilidade Nossa Senhora chegou exausta Respirava com dificuldade Tinham chegado dores de corte de faca ao seu baixo-ventre Estava na hora do parto S Joseacute desatinou numa corrida desesperada batendo a todas as portas E sempre recebeu a mesma resposta ldquoNatildeo haacute lugar nem para ficar de peacuterdquo Voltou para junto de Nossa Senhora com um desalento mortal A hipoacutetese do seu filho nascer numa rua qualquer de Beleacutem rodeado de gentes desconhecidas e despudoradas fazia-lhe subir agrave garganta uma anguacutestia de voacutemitos e de laacutegrimas Dentro de si gritava ldquoO meu filho natildeo pode nascer aqui Vai morrer de friordquo E com a burra presa pela arreata empurrava as pessoas

para o lado sem que soubesse que direccedilatildeo perseguir Nossa Senhora contorcendo-se de dores e de afliccedilotildees procurava aparentar uma serenidade impossiacutevel ldquoFossem para o hospital mamatilderdquo ldquoTambeacutem natildeo havia hospitaisrdquo ldquoQuando ficavam doentes onde eacute que se tratavamrdquo ldquoProvavelmente tratavam-se em casa A natildeo ser que fossem leprosos ndash uma doenccedila ruim que os afastava dos parentes e dos amigosrdquo ldquoComo a sidardquo Mas Gustavo natildeo esperou pela resposta Impacientava-o ter deixado S Joseacute e Nossa Senhora naufragados nas ruas de Beleacutem e o Menino Jesus quase a nascer Valeu-lhes uma velhinha que disse haver fora das portas da cidade uma pequena arribana coberta de palha Nem agradeceram a informaccedilatildeo Com a burrinha a trote correram para laacute Foi quando se deu o milagre Um pelotatildeo de anjos desceu do ceacuteu e logo agrave saiacuteda de Beleacutem transportou a burrinha com Nossa Senhora e S Joseacute ateacute agrave arribana Os anjos batendo as suas magniacuteficas asas entoavam com vozes celestes muacutesicas que satildeo apenas de anjo Cantavam a noite feliz acompanhados por bandolins violinos violas e um acordeatildeo O mais pequenino ndash roliccedilo loiro e de olhos azuis ndash importunava o coro e a tuna com o seu tambor desritmado pum pum pum pum ndash quatro toques seguidos de rufo Ningueacutem viu Mas foi muito bonito Logo que chegaram os anjos pegaram em paacutes e vassouras e aprestaram-se a limpar o curral a varrer a arribana assustando uma vaca que tambeacutem aguardava a hora de parir De seguida prepararam com feno uma cama para Nossa Senhora enquanto S Joseacute recorrendo a ferramenta abandonada fez das taacutebuas da baiacutea um confortaacutevel bercinho Acenderam duas lanternas que dependuraram sobre a cama onde Nossa Senhora gemia Depois sossegaram em saborosa expectativa De repente ouviram um grito vindo do curral seguido de choro profundo Alguns anjos acorreram lestamente O mais pequenino caiacutera numa poccedila de lama sujando o vestido e as asas Rompera tambeacutem a pele do tambor Ficou com o ar mais desolado do mundo O Chefe dos anjos logo comeccedilou a repreendecirc-lo ameaccedilando-o com o regresso forccedilado ao ceacuteu seguido duma novena de recreios interditos e fechado numa nuvem S Joseacute poreacutem depois de o limpar pacientemente pegou-lhe ao colo e levou-o para dentro Com o susto ateacute fizera chichi na fralda Gustavo sorria A matildee tentava natildeo entrar nos pormenores do parto O seu pudor empurrava-a para devaneios descritivos que Gustavo natildeo perfilava Colocou os anjos do coro e da tuna suspensos dos tirantes em posiccedilotildees de equiliacutebrio acrobaacutetico Fez com que repetissem muito baixinho a noite feliz E foi nesse entretanto que o Menino

11

Jesus nasceu Era meia-noite em ponto S Joseacute tivera o cuidado de confirmar pelo reloacutegio ldquoFoi por cesariana ou parto normalrdquo quis saber Gustavo ldquoParto normalrdquo respondeu a matildee que se apressou a empurrar os anjos pela arribana fora desatinados de contentamento voando sobre os pastores do mundo inteiro e acordando-os com o hino ldquoGloria in excelsis Deordquo Era um barulho intensamente doce iluminado por estrelas danccedilantes Algumas delas por falta de cuidado chegaram mesmo a cair Mas uma outra mais esperta e avisada desviou-se daquela confusatildeo luminosa e foi ateacute ao oriente para depois guiar os quatro reis magos que vinham de Taacutersis Aacutefrica Peacutersia e Sabaacute ateacute agrave arribana de Beleacutem Chegaram trecircs carregados de oiro incenso e mirra ndash ofertas de pouco sentido praacutetico e que mais tarde os inteacuterpretes de evangelhos procuraram em vatildeo descodificar O quarto rei poreacutem perdeu-se Soacute chegou trinta e trecircs anos mais tarde sem nada para oferecer Tambeacutem Jesus jaacute natildeo precisava Pregado na cruz apenas lhe apetecia morrer ldquoA matildee estaacute a desconversarrdquo disse Gustavo E estava O Natal era o Natal e soacute o Menino Jesus interessava Voltaram agrave arribana que estava quase vazia O anjo pequenino teimava com o Menino Jesus para que experimentasse tocar tambor Sem lhe dar qualquer atenccedilatildeo e consciente de tarefas mais urgentes mamava gostosamente A noite arrefecera Nevara sobre a serra e um vento corrupto trazia o frio ateacute agrave arribana O Menino Jesus podia enregelar Entatildeo a vaca e a burrinha aproximaram-se aquecendo-o com o seu bafo quente e huacutemido Nossa Senhora e S Joseacute sorriam e beijavam ternamente o Menino que depois de mamar adormeceu Colocaram-no no bercinho e o anjo do tambor comeccedilou a embalaacute-lo ldquoEacute por isso que o teu preseacutepio tem um anjo uma burrinha e uma vacardquo disse a matildee Gustavo olhou-o e confirmou Depois natildeo se conteve e perguntou ldquoMamatilde o Menino Jesus teve irmatildeosrdquo ldquoNatildeo meu filho Ele eacute sempre o Menino Jesusrdquo Entatildeo abraccedilando ternamente a barriga da matildee concluiu ldquoNatildeo sabe o que perdeurdquordquo

Com Perfume e Com Veneno

laquoOs membros do gabinete do senhor Presidente estavam em pacircnico Haacute dois dias

que procuravam contactar por telefone a pequena ilha para anunciarem a data do programa da visita constitucional Mas o telefone apenas devolvia ruiacutedos intermitentes que natildeo forneciam qualquer interpretaccedilatildeo teacutecnica Era como se estivessem a ligar para o ponto zero do quintal mais proacuteximo E no entanto era urgente cumprir a lei que prescrevia laquoAo menos uma vez por mandato o governo visitaraacute cada uma das suas ilhasraquo Faltava a mais pequena e mais distante Eacute que passado quase um seacuteculo o mandato terminava na semana seguinte e em veacutesperas de eleiccedilotildees nenhuma ilegalidade podia transformar-se em trunfo nas matildeos da oposiccedilatildeo Soacute que o telefone natildeo atinava com aquela ilha pequena e distante O eco nem tinha forccedilas para lhes devolver o apelo

Houve que reunir de emergecircncia As calviacutecies aumentaram branquearam cabelos

fizeram-se esforccedilos suplementares e aconteceu o habitual suores frios e derramamentos cerebrais Mas natildeo conseguiram qualquer contacto com a ilha mesmo com funcionaacuterios destacados para discar o nuacutemero durante vinte quatro horas

Sobre a mesa de reuniotildees puseram todas as hipoacuteteses avaria do uacutenico telefone

da ilha (a Companhia natildeo o podia comprovar e muito menos reparar) que os habitantes andavam a festejar o Espiacuterito Santo (era eacutepoca disso) que estavam a ensaiar folclore (em tempos tinham-lhes prometido um passeio) que os membros da filarmoacutenica estavam a aprender a tocar o hino para a eventual visita do senhor Presidente que se mantinham ocupados em qualquer acontecimento social Mas em

12

circunstacircncia alguma ficariam impedidos de passar mesmo que fugazmente pelo telefone

Puseram entatildeo hipoacuteteses mais convencionais descontentamento com a

governaccedilatildeo (nem sequer conheciam o senhor Presidente) mudanccedila de paacutetria (a Ameacuterica ali tatildeo perto e muito mais rica) algueacutem com a conivecircncia do padre dera o grito de independecircncia e pronto

(hellip) Partiram como calhou Pouca bagagem Nada de coisas supeacuterfluas O Chefe de

gabinete meteu na pasta o mais importante o discurso que o senhor Presidente iria proferir- o mesmo que jaacute lera nas outras ilhas Enfiaram tambeacutem trecircs jornalistas e um operador de cacircmara de televisatildeo para o registo oacutebvio Era o qb O senhor Presidente enjoava a bordo e por simpatia os membros do gabinete enjoavam tambeacutem Era bonito ver toda aquela solidariedade governativa Conseguiam mesmo imitar os roncos presidenciais que com a continuidade desfaleciam ateacute se transformarem em gemidos agoacutenicos Mas soacute numa viagem como aquela se conseguia avaliar o sacrifiacutecio de governar ilhasraquo

(hellip) O barco foi-se aproximando Reduziu a velocidade e deslizou como tapete rolante

ou mosca sobre taccedila de gelatina E quando o cais ficou agrave matildeo de atracar jaacute todos tinham caiacutedo no oceano do desacircnimo Eacute que nem as autoridades autaacuterquicas nem a filarmoacutenica nem grupo de folclore nem o padre nem qualquer pessoa se postara sobre o cais para esperar tatildeo ilustre comitiva Os jornalistas sentiram-se enfim analfabetos e o operador de cacircmara o escravo de todas as maacutequinas inuacuteteis Pela primeira vez era possiacutevel provar que se pode reduzir qualquer governo agrave sua insignificacircnciaraquo

(hellip) Com Perfume e Com Veneno de Aacutelamo de Oliveira Ed Salamandra 1997 in

httplivrariasolmarblogspotpt201005com-perfume-e-com-venenohtml

13

14

Por Uma Laacutegrima Gorda Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 11 a 21

ldquoA lembranccedila mais agradaacutevel que guardo (mas que eacute tambeacutem do tamanho do meu remorso) eacute a da negrinha Segunda Dei por ela no dia em que vi uma laacutegrima gorda rolar-lhe pelo rosto e estatelar-se sobre a mesa Nunca mais vi laacutegrima que se lhe comparasse em tamanho e amargura uma bola de cristal de maga velha Fiquei perplexo sem saber como era possiacutevel acumular tanta dor salgada Estava em Binta terriola da Guineacute-Bissau que fora porto importante da exportaccedilatildeo de mancarra e arroz nos tempos da escravatura suave do imperialismo lusiacuteada Estava ali fardado de soldado mal fardado apegando-me a um quotidiano enformado por horas inseguras por um teacutedio amassado a suor e a cachimbo e resignado a uma paisagem de aacutervores fendida pelas aacuteguas verdes do rio Cacheu ndash alameda por onde passeavam hipopoacutetamos crocodilos e algumas cobras Tudo isto exercia sobre mim e os meus companheiros de destino o efeito de um soporiacutefero maldito ndash mistura de medo e de torpor que nem o luar de marccedilo esmaecia Era como se a vida tivesse adormecido sobre o arame de um circo desprovido de rede em que o equiliacutebrio se desafiava a si proacuteprio e sem que houvesse a miacutenima razatildeo para evitar a queda e a morte Por isso a laacutegrima gorda de Segunda foi a minha taacutebua de salvaccedilatildeo O que ateacute hoje fiz de mais uacutetil foi ensinar a ler e a escrever agraves crianccedilas de Binta Todos os dias ocupaacutevamos uma palhota que fora abandonada logo que o arame farpado delimitou a aacuterea do quartel Apesar da falta de material didaacutetico as crianccedilas de Binta foram desenhando letras formando palavras descobrindo a grafia da voz e aprendendo que para aleacutem dos seus inconfundiacuteveis meacutetodos de comunicaccedilatildeo tambeacutem era possiacutevel fazecirc-lo atraveacutes da escrita e da leitura No meio dos progressos escolares sentia-me pai-natal ao contraacuterio recebendo mais do que dava e por isso mais feliz do que aquele pequeno bando de negrinhos que diariamente me aparecia vestido de trapos e de sujidade e visivelmente mal alimentado Mas nesse tempo de infernos de convivecircncia com a morte com a injusticcedila e outros males complementares a tarefa de professor devolvia-me alguma da dignidade perdida Foi nessa escola com teto de palha que reconquistei o equiliacutebrio mental e sobretudo o quanto necessitava para sobreviver e poder regressar mais tarde com as minhas lembranccedilas e os meus remorsos Segunda frequentava a minha escola e prendi-me a ela com todos os tentaacuteculos do coraccedilatildeo por causa da tal laacutegrima gorda que um dia deixou cair sobre a mesa

Entatildeo soube-lhe o nome e descobri a sua inteligecircncia e a sua beleza Um estuacutepido becirc maiuacutesculo fecirc-la tropeccedilar no complicado desenho ndash as barrigas sobrepostas como mulher graacutevida duas vezes Simplifiquei o desenho e dei-lhe um beijo na testa E logo o becirc saiu com a forma perfeita Dedicou-me a vitoacuteria com uma cariacutecia na matildeo e o sorriso mais cheio de ternura que algueacutem me deu Assim nasceu a nossa amizade que logo se enredou de muitas e complexas cumplicidades Almoccedilou comigo Partilhamos o rancho ndash da minha parte sem qualquer sacrifiacutecio Tratava-se duma mistela de arroz com rodinhas de salsicha enlatada sem outro sabor que natildeo fosse aquela fome tentacular e corrosiva Segunda quase me irritou com o seu apetite demolidor A sua fome era tambeacutem secular Custava-me aceitar essa verdade sem que o estocircmago natildeo me enfezasse com a sua uacutelcera de revolta Olhei-a mais uma vez e soacute vi a claridade inocente dos seus olhos lindos Passou-me a birra Segunda era como se fosse uma flor de maio ndash intacta delicada e por isso suscetiacutevel ldquoViraste infanticidardquo ouvi dizer Ignorei de quem vinha a piada Natildeo me deixei morder Queria Segunda nessa duacutebia qualidade de irmatilde e de filha ldquoQuantos anos tensrdquo ldquoOito chuvardquo Partiu levando uns restos de comida numa lata enferrujada ldquoPa mecircs irmatildeordquo disse Os seus peacutes descalccedilos levantaram uma linha de poacute vermelho que foi sumir-se de encontro aos arrevesados atalhos da tabanca Ateacute parecia que naquela lata supurenta levava a alma da felicidade E era essa reles felicidade que me deixava abaixo de catildeo Levantei-me com a vontade incontrolaacutevel de me vomitar Fui ateacute ao rio Fechei os olhos e respirei fundo O sol bateu-me no corpo com os seus raios de fogo secando o asco que me subia do estocircmago ao ceacuteu-da-boca Sabia que se gritasse me libertaria do remorso subjugante da guerra e das razotildees submersas de um colonialismo apodrecido de poder Mas estava na hora dos silecircncios quentes da vida de Aacutefrica descansar agrave sombra do torpor da sua desgraccedila Acabei por me perder numa sueca encharcado de cerveja Ser luacutecido ali natildeo era virtude que se cultivasse Antes o aacutelcool Infinitamente Acordei com o ciciar de Segunda ldquoSocirc pofessocirc Socirc pofessocircrdquo Esfreguei os olhos afastando as uacuteltimas teimosias de sono e ela laacute estava com o seu sorriso e o meu pequeno-almoccedilo Comemos e fomos para a escola Com o ridiacuteculo da minha acircnsia transferi para Segunda quanto me restava de afeto e de orgulho Babava-me perante a sua capacidade de aprender e sobretudo de apreender os significados complexos da vida Era brilhante Tanto se lhe dava navegar nos mapas sucintos da grandeza do mundo descobrindo gentes de outras longitudes e civilizaccedilotildees como se fixava no desenvolvimento das complicadas operaccedilotildees de aritmeacutetica somando ternura diminuindo tristeza multiplicando afetos dividindo solidariedade A sua vontade era contagiante Alguns meses depois sete dos meus alunos foram a Safim fazer o exame da quarta classe Ficaram aprovados com distinccedilatildeo Mas soacute Segunda me pareceu digna

15

desse privileacutegio Andava eufoacuterico e tambeacutem infantil premiado com o seu sorriso distinto E com a sua pobreza E isso eacute que me constrangia Era uma pobreza sugadora progressiva medonha irresponsaacutevel Segunda era o rosto singular dos seus companheiros de tabanca de Aacutefrica Comiam os restos da tropa Via-lhes as barrigas entumescidas de fome os olhos desvitaminados os ossos salientes sob a pele das disenterias os rostos sujos do chatildeo que lhes servia de cama os cadernos enodoados de terrosas impressotildees digitais Tudo isto me afogava no lodo de um remorso inconsequente e procurava purificar-me no meu afeto por Segunda Dei-lhe uma camisa velha a que cortara as mangas e acinturei com um cordel Ficava-lhe bem Ficou com um ar de rapariguinha exoacutetica tipo modelo para neacutegligeacutee de alta moda No dia seguinte voltou sem a camisa Dera-a ao pai Mas foi a partir desta pequena doaccedilatildeo que virei estilista Mamadu ndash balanta e muccedilulmano ndash herdara de um colono fugido agrave guerra uma velha maacutequina de costura Com ela apertava-nos as fardas a troco de alimentos que surripiaacutevamos da arrecadaccedilatildeo de geacuteneros uns quilos de arroz patildeo oacuteleo latas de conserva Procurei restos de fardas e levei-os ao homem da maacutequina de costura Desenhei um vestido de corpo justo mangas de balatildeo saia com folhos sobrepostos cintura arrematada com laccedilo nas costas ndash tudo dividido pelos dois tecidos possiacuteveis o verde liso e o camuflado ldquoNatildeo nosso sordado Natildeo sei fazerrdquo disse Mamadu Entatildeo talhei alinhavei e dei indicaccedilotildees sobre o que a agulha da maacutequina devia pespontar ldquoNosso sordado ser artistardquo o vestido suspenso pelos ombros e exposto ao olhar admirado de Mamadu Arquivei o elogio e nunca lhe confessei que naquela peccedila de roupa investi toda a minha ciecircncia sobre costura ndash e tambeacutem o meu receio e a minha ignoracircncia Eacute que soacute por acaso o vestido resultara Segunda eacute que ficou ainda mais bonita Pela primeira vez despertara-se-lhe a vaidade de mulher Confundida e enleada mirou-se no espelho do cabo enfermeiro e correu para a tabanca a fim de explorar a seduccedilatildeo do seu vestido novo Poreacutem mais uma vez o imprevisto derrotou-me Segunda apareceu-me com o vestido numa laacutestima Esquecera-me de lhe pedir que o despisse antes de se deitar Mas natildeo desisti Roubei quanto pude na arrecadaccedilatildeo de geacuteneros e fizeram-se vestidos saias calccedilotildees blusas ndash tudo com modelos diferentes - ateacute que fui apanhado pelo capitatildeo que acabou por desconfiar das minhas sucessivas incursotildees agrave palhota do Mamadu ldquoOu vestes todos ou natildeo vestes ningueacutemrdquo ordenou Aceitei o desafio E toca a desenhar a talhar a alinhavar a coser roupas diversas para as crianccedilas da escola Chegou a fazer-se um abate prematuro de fardas para que natildeo faltasse mateacuteria-prima Quando entrei na

escola estremeci Diante de mim estava um pelotatildeo infantil fardado a preceito e sem graccedila Apeteceu-me mandaacute-los despir Pelo menos a nudez dar-lhes-ia na igualdade da cor e da idade o direito agrave diferenccedila Segunda adivinhando a minha dececcedilatildeo logo me consolou ldquoTodos irmatildeordquo Sem duacutevida Mas por que preccedilo Os dias foram pingando Afeto sobre afeto Segunda tornara-se-me insubstituiacutevel Estava no meu coraccedilatildeo como polvo sadio aorta sentimental anjo da guarda de todos os perigos do meu quotidiano Por isso foi num de repente gelatinoso que dei por mim com os dedos a tocar no tempo do regresso Apercebi-me disso pela algazarra do quartel pelas calviacutecies remanescentes pelas barrigas dilatadas de cerveja pelo fel dos fiacutegados desfeitos pelas rugas da pele pelos medos reassumidos E em cada manhatilde ouvia-se um bruaacute florestal selvagem que era a manifestaccedilatildeo menos demente da alegria de acordar e de riscar mais um nuacutemero no calendaacuterio de parede Apercebi-me tambeacutem desse chegar pelo veacuteu de tristeza que se foi adensando no rosto de Segunda e ateacute pela sua impaciecircncia velada que disfarccedilava com algum autoritarismo sobre as outras crianccedilas Chegou mesmo a vingar-se sobre si proacutepria ausentando-se para dentro respirando os silecircncios da alma Cabia-me preparar Segunda para a nossa inevitaacutevel separaccedilatildeo ndash separaccedilatildeo que eu tambeacutem natildeo desejava tatildeo inseguro me sentia quanto agrave minha capacidade de sobreviver sem ela Mas o que mais me afligia era o natildeo ser capaz de lhe deixar uma razatildeo coerente para o nosso adeus naturalmente definitivo Deixara-a prender-se com o melhor dos seus afetos enquanto eu como adulto racional natildeo passara de um saacutedico e egoiacutesta abandonando-a a todas as incertezas do futuro Retirava-lhe a muleta que eu era mesmo no centro do precipiacutecio Precisava urgentemente duma esperanccedila que lhe garantisse a felicidade E afinal nem lhe podia certificar coisas tatildeo banais como a escola roupa comida Felizmente soacute depois de chegar agrave ilha eacute que percebi que era o maior perdedor Nunca mais acordei ao som da sua voz nunca mais passeei na margem do Cacheu guiado pela sua matildeo nunca mais frui dos poentes vermelhos de fogo com a sua cabeccedila no meu regaccedilo Perdi de uma vez por todas o direito aos seus insoacutelitos presentes um bolo de coco feito pela matildee o passarinho muito inho que apanhava na cerca da palhota e depois domesticava o prazer de comer a primeira manga que a estaccedilatildeo amadurava E acabaram os nossos diaacutelogos onde a Poesia pontificava na contenccedilatildeo das palavras e na extensatildeo dos silecircncios E desta vez foi sobre o meu rosto que voltei a sentir o peso disforme da sua laacutegrima gorda Fiquei sem jeito Falei a Segunda na distacircncia real das nossas terras e das nossas culturas da incerteza do meu futuro bastamente comprometido pela inutilidade dos

16

anos vividos e de todo irrecuperaacuteveis Adensei tudo com verdades dramaacuteticas deixando transparentes a incerteza a cobardia e o pecado da omissatildeo Descrevi-lhe depois as deliacutecias da terra prometida como se fossem dela Antevi-lhe um amanhatilde mentirosamente risonho e deixei-lhe relevada a beleza demagoacutegica da sua paacutetria Olhou-me atordoada inconvencida amuada distante ndash maacutescara que soacute desfez na veacutespera da partida Quando os batelotildees ndash que nos levariam Cacheu abaixo rumo a Bissau ndash chegaram rodeados de barcos-patrulha restavam vinte e quatro horas para estarmos juntos Vivemo-las tatildeo intensamente que me deitei exausto No momento de largar fizemos por nos ignorar Combinaacuteramos evitar o melodrama E Segunda laacute ficou sobre o cais de madeira o dedo na boca os olhos avaramente enxutos assombrando a alegria do meu regresso com a sua recalcada tristeza Ficou sozinha ndash sei laacute com que futuro Ainda hoje sabendo que cresceu e que cumpre o seu destino na paacutetria sem as virtudes que lhe fiz crer dou por mim a soccedilobrar com esta saudade e este remorso Sou-lhe eternamente devedor Se lhe dei alguns meses de comezinha felicidade ele deu-me a coragem de continuar vivo num tempo e num lugar onde a morte chegava a ser uma becircnccedilatildeo do ceacuteu Desses tempos de conviacutevio diaacuterio com as mil presenccedilas da morte haacute imagens que continuam a perseguir-me Bem sei que eacute um disparate jaacute que os meus ressentimentos medos e fantasmas natildeo oferecem resistecircncia de maior Tecircm vindo a diluir-se como a tinta dos maus frescos renascentistas Mas natildeo consigo esquecer-me de Segunda com o seu belo corpo esfaimado a sua resignaccedilatildeo e a sua indiferenccedila perante a presenccedila e a superioridade da tropa Por isso espanto-me que volvidos tantos anos a minha principal referecircncia da Guineacute tenha o tamanho dessa negrinha de olhos grandes e de sorriso branco cujo corpo exalava o perfume inexplorado da floresta e que gostava de se sentar comigo sobre o cais de madeira a ver o sol esconder-se atraacutes da mata de Ohio E que me queimou a alma com uma laacutegrima gorda Segunda deve ser agora uma grande poeta Valha-me esta consolaccedilatildeo sofrida que ser poeta natildeo eacute bem que se deseje nem sequer ao inimigordquo

17

2ordm Ato (Extrato) Os Sonhos do Infante Ediccedilatildeo Jornal de Cultura 1995

ldquoO uacuteltimo sonho o re-encontro Talvez ningueacutem saiba porquecirc nem para quecirc ANTOacuteNIO - Quem sois INFANTE - Que pergunta desnecessaacuteria ANTOacuteNIO - Desculpe Parece-me que o conheccedilo INFANTE - E nem precisas de fazer muito esforccedilo ANTOacuteNIO - Assim de branco INFANTE - Jaacute sei Pareccedilo-te uma noiva de bigode ANTOacuteNIO - Desculpai senhor Jaacute natildeo o via haacute tantos anos INFANTE - Haacute muitos anos ANTOacuteNIO - Andaacuteveis vestido de preto INFANTE - A cor eacute-me indiferente Os seacuteculos purificam os tons escuros Deixam aparar as impurezas Depois vatildeo corando Um dia fica soacute a cor precisa e segura ANTOacuteNIO - Natildeo estou a entender INFANTE

18

- Querias apenas dizer que enquanto os homens satildeo de memoacuteria curta a Histoacuteria encarrega-se de gravar quanto interessa na memoacuteria dos livros e das pedras ANTOacuteNIO - Reconheci-o E natildeo nascemos propriamente no mesmo seacuteculo INFANTE - Seria difiacutecil esquecerem-me Natildeo que o natildeo tenham tentado Aliaacutes este meu paiacutes nunca me mereceu ANTOacuteNIO - Como assim INFANTE - Natildeo teve corpo para arrumar a minha alma Natildeo teve matildeos para agarrar quanto lhe dei ANTOacuteNIO - E isso era possiacutevel INFANTE - Claro que era Bastava que houvesse a mesma grandeza de alma Mas natildeo De descoberta a descoberta foram-se enredando em intrigas em oacutedios em venenos Depois de cada conquista queriam outra conquista e perdiam a primeira ANTOacuteNIO - Mudar pode ser sobreviver INFANTE - Natildeo era mudar Era perder Foi assim que os meus sonhos se foram enchendo de brumas e de silecircncios ANTOacuteNIO - Senhor tanto que se fala de si INFANTE - Agora Este paiacutes sempre viveu de luas Todos os anos vai ao bauacute do passado e desenterra um morto Logo se apressa a ver-lhe os ossos a descobrir-lhe as viacutesceras da virtude do saber dos feitos Depressa sai do anonimato para ser o santo o saacutebio

o heroacutei Durante vinte e quatro horas eacute o bombo da festa a masturbaccedilatildeo coletiva o orgulho da comissatildeo ANTOacuteNIO - Jaacute ouvi isso INFANTE - Agraves vezes esquecem-se dele na praccedila Nem sequer tecircm o cuidado de lhe arrumar outra vez os ossos AFONSO - Consigo eacute diferente INFANTE - Comigo nunca foi diferente Andam agora a assoalhar-me numa pressa escolar que mete doacute Obrigam as criancinhas a saber de mim enchendo-lhes a cabeccedila com sonhos que natildeo sonhei ANTOacuteNIO - Todos dizem que sempre foi um sonhador INFANTE - Eram sonhos meus Originais Agora querem fazer passar por meus os seus proacuteprios sonhos numa acircnsia de rasurar pesadelos Quando sonhava sonhava em grande Nunca fui mediacuteocre CONSTANCcedilA - Isso sabemos INFANTE - Natildeo tanto que o tivessem aprendido ROMUALDO - Viajamos tanto INFANTE - Por necessidade Falta-vos a coragem de aventurar ANTOacuteNIO - Aventurar As nossas aventuras satildeo o que satildeo

19

INFANTE - Apenas JOSEacute - Por vezes quisemos imitar-vos INFANTE - Sem chama DIOGO - Quisemos ir aleacutem da ilha completar outras viagens INFANTE - Sem convicccedilatildeo ANTOacuteNIO - Sabemos navegar INFANTE - Sem rumo que interesse FRADE - Estais a retirar-nos a Poesia INFANTE - Natildeo Apenas a tentar dizer que a Poesia eacute sonho e eacute tanto mais grandiosa quanto maior eacute o sonho FRADE - Desisto de falar INFANTE - Desistir eacute um verbo cobarde Na verdade viveis num paiacutes desistido ANTOacuteNIO - Natildeo temos remissatildeo

INFANTE - Depende da vossa forma de redimir FRADE - Um apelo agrave Histoacuteria por exemplo INFANTE - Dei-vos estas ilhas carregadas de Histoacuteria Fiz delas o poiso de todas as viagens Aqui foram dadas em primeira matildeo as novas de achamento Aqui se desfizeram segredos aqui se informaram povos e culturas aqui o mundo se tornou sabido BEATRIZ - Foram outros tempos INFANTE - E deixaram-nos perder JOSEacute Natildeo tanto assim Ainda temos aviotildees que rapidamente nos trazem outras gentes INFANTE - Poucas DIOGO - E todos os dias sabemos do mundo sobre a hora de qualquer acontecimento INFANTE - Entatildeo porque vos queixais CATARINA - Talvez porque apenas recebemos e nada damos LEONOR - Talvez porque natildeo podemos digerir quanto recebemos ROMUALDO - Talvez porque natildeo temos tempo de sonhar connosco proacuteprios

20

AFONSO - Talvez por causa desta solidatildeo mal quebrada MARIA - Ou por termos as portas mal abertas BELISA - Natildeo termos asas INFANTE - Sois na verdade bem pequenos Natildeo sois capazes de desenterrar os vossos heroacuteis os vossos santos os vossos poetas ANTOacuteNIO - Dos nossos heroacuteis e santos pouco sabemos Permanecem quase todos sob o manto diaacutefano das lendas E os poetas satildeo malditos INFANTE - Todos os poetas satildeo malditos Eacute por isso que satildeo poetas Todos os heroacuteis e santos satildeo lendaacuterios Eacute por isso que permanecem Que conheceis de mim ROMUALDO - Pois Talvez o bastante Ou talvez coisa nenhuma JOSEacute - A vossa imagem de negro no poliacuteptico de Satildeo Vicente eacute uma referecircncia obrigatoacuteria INFANTE - Apenas tecircm referecircncias E no entanto eacute o suficiente para que o sonho aconteccedila Para que preparem todas as viagens e as realizem por seus rumos certos e cheguem agraves terras previstas E aiacute aconteccedilam os outros sonhos os do patildeo e os da cultura FRADE - Isso nos disseram aqui haacute poucos anos E nada aconteceu ANTOacuteNIO - Eis como ficaacutemos pobres e mudos

INFANTE - Mas natildeo presos As vossas amarras satildeo mais inventadas que reais Peguem nos vossos poetas e bebam o sangue da sua Poesia Sem amor natildeo haacute sonho possiacutevel (Saiacuteda falsa) ANTOacuteNIO - Jaacute vos ides INFANTE - Jaacute O tempo de estar na vossa memoacuteria chegou ao fim Volto para as paacuteginas da histoacuteria de um livro que vai ficar intocaacutevel na prateleira da vossa estante Eacute o meu tuacutemulo preferido Natildeo quero que me abandonem nas ruas a desbotar em cartazes Natildeo quero ficar em textos de circunstacircncia em programas tidos de prestiacutegio em espetaacuteculos de teatro sem teatralidade capaz O que eu tinha de ser jaacute fui Se me comeram a carne podem roer-me os ossos A um morto tanto se lhe faz ANTOacuteNIO - Afinal tambeacutem perdeste os sonhos e a vontade de sonhar INFANTE - Soacute sonha quem estaacute vivo Vocecircs estatildeo vivos Podem sonhar (Sai)rdquo

RIMANCE DE DONA BALEIA IMPRESSOtildeES DE BOCA EDICcedilOtildeES DRAC 1992 PP 31-32 E 33

ldquoestava dona baleia - foge foge meu amor a regar o seu jardim ateacute agraves aacuteguas do frio com seu repuxo de prata soacute aiacute te sei segura e sorriso de alfenim a regar o teu jardim quando o foguete estalou com teu repuxo de prata laacute no alto da vigia e sorriso de alfenim anunciando a caccedila mas a canoa da morte (que susto santa maria) corre depressa demais dona baleia - coitada daqui lhe aceno a vida logo parou de aguar feito pedrinha do cais as algas que floriam e grito seu nome drsquoaacutegua

21

bem agrave tona do mar (seu matador quem seraacute) eacute entatildeo que a tristeza procura quantos te amam o medo a afliccedilatildeo Jonas deus iemanjaacute saltam do cais dos olhos de nada lhe serve o grito aos ombros do coraccedilatildeo Nada mais posso fazer um grito aberto se ouve o arpatildeo laacute vai direito em eco de mar perfeito no seu peito embater - baleia agrave vista baleia patildeo-nosso de qualquer jeito ai pobre dona baleia e laacute vai dona baleia como te custa viver fugindo pra natildeo morrer - deus a salve do arpatildeo morreu dona baleia deus a queira proteger arpada de oacutedio velho todo o silecircncio do mar ai pobre dona baleia ficou tinto de vermelho como te custa viver os peixes choram tambeacutem envolta em lenccedilol de sangue mar manso todo rasgado dona baleia laacute vem baba de espuma agrave quilha arrastada ateacute ao cais dona baleia procura seu corpo esquartejado escapar da armadilha nas caldeiras derretido que eacute o arpatildeo voador daacute o patildeo amargurado anjo de ferro esguio e algueacutem haacute de gravar nos seus dentes de marfim eram cinco sois a arder o barco que a perseguiu cinco talhadas de lua o arpatildeo que lhe deu fim que deus lhe quis oferecer no ceacuteu as aves e as nuvens correm do sul para o norte agora dona baleia sobre o mar e sobre a ilha jaacute natildeo lhe custa viverrdquo paira o silecircncio da morte e haacute um poeta branco agrave minha porta a bater natildeo vou abri-la natildeo vou jaacute sei o que vem dizer ai pobre dona baleia como te custa viver agrave costa como um poema

a desfazer-se na areia vieram cinco mareacutes chorar a dona baleia duas choravam espuma - branca nuvem de veratildeo traziam como homenagem um buacutezio em cada matildeo as outras duas chegaram fracas de tanto chorar tanto sal nas suas laacutegrimas tanto sal e tanto mar a quinta mareacute natildeo chora traz apenas no regaccedilo um grande ramo de algas amarrado com um laccedilo deixa-o deposto na costa de seguida reza e canta satildeo cantigas de saudade versos presos na garganta desfeitas satildeo as mareacutes

CARTA DE JOAtildeO VALENTE (RAMINHENSE DA TERCEIRA) A SEU IRMAtildeO EMBARCADO NA CALIFOacuteRNIA (GASTINHAS) OU ENTAtildeO CANTIGAS DE COMO SE PICAM OS OLHOS DA MISEacuteRIA EM PICOS DE ABUNDAcircNCIA

ldquoEscrevo-te esta carta Gostei de saber que tens Pra saber como vais passando Friza e um novo mexim A saudade eacute que nos farta Socircfas clausetas sertatildes Mas por caacute vamos andando E alvaroses dingrim Muito bem graccedilas a Deus Jaacute sei que tens um fogatildeo Nestas linhas que alinhavo Uma trela e talaveija Muito mal desejo aos teus E que jaacute vives no Tatildeo Tameacutem sauacutede Por mim cavo - Mas que sorte salvo seija Desta hora a matildeo na pena E cuma pisca de doacutelas Poucas letras e saberes Te vestiste numa estocirca

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

2

servirem de complemento aos curriacuteculos regionais e agraves Antologias de Autores Accedilorianos que a AICL comeccedilou a publicar a partir de entatildeo

Os CADERNOS de ESTUDOS ACcedilORIANOS satildeo uma publicaccedilatildeo trimestral que tenta

chegar a leitores nunca imaginados em todo o mundo Natildeo haacute qualquer criteacuterio ndash aleacutem da arbitrariedade - a definir a ordem de apresentaccedilatildeo dos autores

Muitos autores fazem parte da ANTOLOGIA DE AUTORES ACcedilORIANOS

CONTEMPORAcircNEOS que a Helena Chrystello e a Rosaacuterio Giratildeo compilaram na versatildeo bilingue (PT-EN) em 2011 na monolingue em 2012 na Coletacircnea de Textos Dramaacuteticos de 2013 a que seguiu em 2014 uma Antologia no Feminino ldquo9 ilhas 9 escritorasrdquo Acolhemos como premissa o conceito de Martins Garcia que admite uma literatura accediloriana laquoenquanto superstrutura emanada de um habitat de uma vivecircncia e de uma mundividecircnciardquo

A accedilorianidade literaacuteria (termo cunhado por Vitorino Nemeacutesio na revista Insula

em 1932) natildeo estaacute exclusivamente relacionada com peculiaridades regionais nem com temas comummente abordados na literatura (a solidatildeo o mar a emigraccedilatildeo) ou como escreveu J Almeida Pavatildeo (1988)rdquoassume-se tal Literatura com o estatuto de uma autonomia consentacircnea com uma essencialidade que a diferencia da Continentalrdquo

Assim para noacutes [AICL] eacute Literatura de significaccedilatildeo accediloriana ldquoa escrita que se

diferencia da de outros autores de Liacutengua portuguesa com especificidades que identificam o autor talhado por elementos atmosfeacutericos e socioloacutegicos descoincidentes justaposto a vivecircncias e comportamentos seculares sendo necessaacuterio apreender a noccedilatildeo das suas Mundividecircncias e Mundivivecircncias e as infrangiacuteveis relaccedilotildees umbilicais que as caracterizam face aos antepassados agraves ilhas e locais de origemrdquo

A AICL entende que o roacutetulo comum de accedilorianidade abarca extratos diversos de

idiossincrasias mdash Um de formaccedilatildeo endoacutegena constituiacutedo pelos que nasceram e viveram nas Ilhas

independentemente do facto de se terem ou natildeo terem ausentado

2 adotando a designaccedilatildeo feliz utilizada por Aacutelamo Oliveira a propoacutesito do poeta Almeida Firmino

mdash O dos insularizados ou laquoilhanizados2raquo e de todos que consideram as ilhas como ldquosuasrdquo de um ponto de vista de matriz existencial

- Um de formaccedilatildeo exoacutegena no qual se incluem todos os que natildeo nascendo nas ilhas a elas estatildeo ligados por matrizes geracionais ateacute agrave sexta geraccedilatildeo

As obras jaacute desenvolvidas e publicadas pela AICL (Coloacutequios da Lusofonia) em

parceria com a Editora Calendaacuterio de Letras numa seacuterie de antologias visam dar a conhecer ao puacuteblico em geral e ndash muito especialmente ndash aos professores e estudantes excertos de autores cujas obras estatildeo fora do mercado comercial das livrarias e muitas vezes ateacute das bibliotecas Sugerimos pois a consulta das seguintes obras coeditadas pela Editora Calendaacuterio de Letras

bull Antologia Bilingue de (15) Autores Accedilorianos Contemporacircneos

bull Antologia (Monolingue) de (17) Autores Accedilorianos Contemporacircneos

bull Coletacircnea de Textos Dramaacuteticos de (5) Autores Accedilorianos

bull Antologia no Feminino ldquo9 Ilhas 9 Escritorasrdquo

Ou a niacutevel mais pessoal o meu livro ldquoCHROacuteNICACcedilORES (vol 2) uma circum-

navegaccedilatildeo de Timor a Macau Austraacutelia Brasil Braganccedila ateacute aos Accedilores e o ldquoCroacutenica do Quotidiano Inuacutetil 40 anos de vida literaacuteriardquo com as suas doses de accedilorianidade

Para os iniciados em autores e temas accedilorianos sugerimos que consultem A

BIBLIOGRAFIA GERAL DA ACcedilORIANIDADE A PUBLICAR EM 2017 com mais de 19 mil entradas compilada ao longo de mais de sete anos

Ali incluiacutemos autores accedilorianos (residentes expatriados e emigrados) estrangeiros

ou nacionais (accedilorianizados ou natildeo) que escreveram sobre temaacuteticas accedilorianas Exaustiva eacute mas ainda incompleta se bem que seja indicadora do se tem produzido e muito do qual merece ser lido analisado criticado trabalhado e traduzido

Nem todos os trabalhos dizem respeito a literatura jaacute que a quisemos tornar o mais

abrangente possiacutevel e englobar nela o maior nuacutemero de obras de uma forma ou outra relativas agrave ACcedilORIANIDADE Dentre as obras literaacuterias muitas natildeo seratildeo obras-primas nem relevantes outras permanecem atuais pelo seu interesse histoacuterico mas por entre o trigo e o joio haacute excelentes obras agrave espera de serem descobertas lidas e ensinadas

3

Dos autores contemporacircneos de que falamos nos uacuteltimos Cadernos selecionei alguns daqueles por quem nutro mais apreciaccedilatildeo literaacuteria Cristoacutevatildeo de Aguiar Daniel de Saacute Dias de Melo Vasco Pereira da Costa e para esta ediccedilatildeo escolhi AacuteLAMO OLIVEIRA Pretendia-se com os quatro primeiros cadernos completar o ciclo anual previsto desde o coloacutequio accediloriano de 2009 e a partir de entatildeo manter a publicaccedilatildeo trimestral

Biodados do autor

AacuteLAMO OLIVEIRA (Joseacute Henrique do) nasceu na Freguesia do Raminho ndash Terceira Accedilores ndash maio de 1945

Fez o Curso de Filosofia no Seminaacuterio de Angra e o serviccedilo militar na Guineacute-Bissau (196769)

Foi catalogador na Biblioteca Puacuteblica e Arquivo de Angra (197071) Funcionaacuterio Administrativo no Departamento Regional de Estudos e Planeamento Em 1982 foi transferido para a Direccedilatildeo Regional da Cultura e apoacutes a aposentaccedilatildeo

foi convidado a colaborar ateacute 2010 na Direccedilatildeo Regional das Comunidades Eacute soacutecio fundador do Alpendre - grupo de teatro (1976) onde tem sido diretor

artiacutestico e encenador Tem 36 livros com poesia romance conto teatro e ensaio Estaacute representado em

mais de uma dezena de antologias de poesia e de ficccedilatildeo narrativa O seu romance Ateacute Hoje Memoacuterias de Catildeo em 3ordf ediccedilatildeo recebeu em 1985 o

preacutemio laquoMareacute Vivaraquo da Cacircmara Municipal do Seixal

Em 1999 recebeu o preacutemio laquoAlmeida GarrettTeatroraquo com a peccedila A Solidatildeo da Casa do Regalo

Tem poesia e prosa traduzidas para inglecircs francecircs espanhol italiano esloveno e croata

O seu romance Jaacute Natildeo Gosto de Chocolates estaacute traduzido e publicado em inglecircs e em japonecircs

Em abril de 2002 o Programa de Estudos Portugueses Portuguese Studies Program

da Universidade da Califoacuternia em Berkeley convidou-o na qualidade de laquoescritor do semestreraquo para lecionar a sua proacutepria obra aos estudantes de Liacutengua Portuguesa sendo o primeiro portuguecircs a receber tal distinccedilatildeo

Com algumas incursotildees na aacuterea das artes plaacutesticas (exposiccedilotildees individuais e coletivas em Angra Ponta Delgada Lisboa Porto e Guineacute-Bissau nas deacutecadas de 60 a 80) criou mais de uma centena de capas para livros

Em 2010 foram-lhe conferidas as seguintes distinccedilotildees Insiacutegnia Autonoacutemica de Reconhecimento do Governo Regional dos Accedilores e Grau de Comendador da Ordem de Meacuterito da Presidecircncia da Repuacuteblica

4

OBRAS PUBLICADAS

9730 Oliveira Aacutelamo (1968) A minha matildeo aberta Opuacutesculo ed autor 9731 Oliveira Aacutelamo (1971) Patildeo verde ed autor 9732 Oliveira Aacutelamo (1972) in 14 poetas de aqui e de agora (Antologia) Angra

Uniatildeo Graacutefica Angrense 9733 Oliveira Aacutelamo (1973) Poemas de(s)amor poesia Tip Fernandes 9734 Oliveira Aacutelamo (1974) Morte ou vida do poeta Teatro Angra Livraria

Adriano G de Figueiredo 9735 Oliveira Aacutelamo (1974) Faacutebulas poesia ed autor 9736 Oliveira Aacutelamo (1974) Um Quixote 2ordf ed Teatro 9737 Oliveira Aacutelamo (1976) Os quinze misteriosos misteacuterios ed autor 9738 Oliveira Aacutelamo (1977) Manuel seis vezes pensei em ti ed autor 9739 Oliveira Aacutelamo (1977) in Antologia de poesia accediloriana do seacutec XVIII a 1975

de Pedro da Silveira Lisboa ed Saacute da Costa 9740 Oliveira Aacutelamo (1978) Manuel seis vezes pensei em ti peccedila em duas

talhadas com dez pevides 2ordf ed Angra ed autor 9741 Oliveira Aacutelamo (1978) Almeida Firmino poeta dos Accedilores DRAC SREC 9742 Oliveira Aacutelamo (1978) in Antologia panoracircmica do conto accediloriano seacutecs XIX

e XX org prefaacutecio e notas de Joatildeo de Melo Lisboa ed Vega 9743 Oliveira Aacutelamo (1979) Cantar o corpo Uniatildeo Graacutefica Angrense ed autor 9744 Oliveira Aacutelamo (1980) Eu fui ao Pico piquei-Me poesia ed autor 9745 Oliveira Aacutelamo (1982) Uma hortecircnsia para Brianda Sep Atlacircntida 9746 Oliveira Aacutelamo (1982) ldquoAbordagem (teatral) a Quando o mar galgou a terra

de Armando Cocircrtes-Rodriguesrdquo Ensaio Sep Atlacircntida Angra 9747 Oliveira Aacutelamo (1982) Burra preta com uma laacutegrima ed autor 9748 Oliveira Aacutelamo (1982) Itineraacuterio das gaivotas ed SREC DRAC 9749 Oliveira Aacutelamo (1982) laquoNota de abertura ou Almeida Firmino um poeta a

recuperarraquo in Firmino Almeida Narcose obra poeacutetica completa Angra SREC 9-20

9750 Oliveira Aacutelamo (1982) O preseacutepio de esferovite Satildeo Bartolomeu da Terceira com Etelvina Fraga Manuel Fernandes ed DRAC Biblioteca Puacuteblica e Arquivo Distrital de Angra

9751 Oliveira Aacutelamo (1983) in Antologia The Sea Within a selection of Azorean poets ed Gaacutevea-Brown EUA

9752 Oliveira Aacutelamo (1983) in 12 poetas dos Accedilores org e notas de Emanuel Jorge Botelho Lisboa IN-CM

9753 Oliveira Aacutelamo (1983) Nem mais amor que fogo poesia com Emanuel Jorge Botelho Angra ed autor

9754 Oliveira Aacutelamo (1983) Em louvor do Divino Espiacuterito Santo fotomemoacuteria de Francisco Ernesto de Oliveira Martins conto de Aacutelamo Oliveira Angra DRAC Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Emigraccedilatildeo IN-CM

9755 Oliveira Aacutelamo (1984) Missa terra lavrada ed DRAC SREC 9756 Oliveira Aacutelamo (1984) Sabeis quem eacute este Joatildeo Teatro peccedila sobre o beato

Joatildeo Baptista Machado ed Sep Atlacircntida vol 29 3-68 IAC 9757 Oliveira Aacutelamo (1984) Triste vida leva a garccedila 1ordf ed Ed Ulmeiro 9758 Oliveira Aacutelamo (1985) laquoTerceirense e pintor Joseacute Luacutecioraquo Angra IAC

Atlacircntida vol 30 2deg sem 34-35 9759 Oliveira Aacutelamo (1986) Ateacute hoje memoacuterias de catildeo 1ordf ed Ulmeiro 9760 Oliveira Aacutelamo (1986) Textos inocentes Poesia ed autor 9761 Oliveira Aacutelamo (1987) O trajo nos Accedilores com Joatildeo Afonso 2ordf ed Angra

Secretaria Regional dos Assuntos Sociais 9762 Oliveira Aacutelamo (1987) Ateacute hoje memoacuterias de catildeo 2ordf ed Ulmeiro 9763 Oliveira Aacutelamo (1987) Interaccedilatildeo entre atividades culturais na regiatildeo e ao

niacutevel local correntes ldquoascendentesrdquo e ldquodescendentesrdquo Ponta Delgada Universidade dos Accedilores

9764 Oliveira Aacutelamo (1987) Erva-Azeda Poesia Angra [si sd] 9765 Oliveira Aacutelamo (1988) Accedilores fotografia de Mauriacutecio Abreu intro e seleccedilatildeo

de textos de Aacutelamo Oliveira inglecircs por Joaquim Nascimento Setuacutebal Ed M Abreu e V Figueiredo

9766 Oliveira Aacutelamo (1988) Ateacute hoje memoacuterias de catildeo 3ordf ed ed Signo 9767 Oliveira Aacutelamo (1990) ldquoO cenaacuterio de uma geraccedilatildeordquo ineacutedito 19 Congresso

de Literaturas Lusoacutefonas de Expressatildeo Portuguesa Casa dos Accedilores de Lisboa 15-16 jun

9768 Oliveira Aacutelamo (1990) A Madeira eacute um jardim Raminho ed autor Tipografia Serafim Silva Artes Graacuteficas Maia

9769 Oliveira Aacutelamo (1991) Contos com desconto Contos Angra IAC 9770 Oliveira Aacutelamo (1992) Impressotildees de boca Angra SREC DRAC 9771 Oliveira Aacutelamo (1992) Paacutetio drsquoAlfacircndega Meia-Noite romance ficccedilatildeo col

Chatildeo da Palavra Lisboa ed Vega 9772 Oliveira Aacutelamo (1992) Eugeacutenio de Andrade nos Accedilores Fundaccedilatildeo Eugeacutenio

de Andrade Ponta Delgada Cacircmara Municipal 9773 Oliveira Aacutelamo (1994) Manuel seis vezes pensei em ti 2ordf ed Jornal de

Cultura 9774 Oliveira Aacutelamo (1994) Pai a sua benccedilatildeo Antologia de textos de autores

accedilorianos Ponta Delgada DRAC 9775 Oliveira Aacutelamo (1994) A histoacuteria da Belaacutervore na cidade da Burocraacutecia

desenhos de Virgiacutelio Toste Angra Dir Org e Admin Puacuteblica

5

9776 Oliveira Aacutelamo (1994) Accedilores Azores com Mauriacutecio Abreu trad Vanessa Seed ed M Abreu e Victor Figueiredo 1ordf ed Setuacutebal Corlito

9777 Oliveira Aacutelamo (1995) Burra preta com uma laacutegrima 2ordf ed romance Lisboa ed Salamandra

9778 Oliveira Aacutelamo (1995) Os sonhos do infante 2ordf ed Ponta Delgada Jornal de Cultura

9779 Oliveira Aacutelamo (1995) Impressotildees de boca ilustraccedilotildees David Almeida col Gaivota 76 SREC

9780 Oliveira Aacutelamo (1995) Olaacute pobreza textos de pompa e circunstacircncia Ponta Delgada Ed Eacuteter

9781 Oliveira Aacutelamo (1995) E choveu papel com Luiacutes Belerique e Miguel Silveira Angra Dir Reg Org e Administraccedilatildeo Puacuteblica

9782 Oliveira Aacutelamo (1995) Pai a sua benccedilatildeo Antologia de textos accedilorianos org com Ana Maria Bruno Mariana Mesquita e Susana Rocha ed Coingra SREC DRAC

9783 Oliveira Aacutelamo (1996) ldquoO homem suspensordquo Supl Accediloriano de Cultura nordm 43

9784 Oliveira Aacutelamo (1996) Olaacute Pobreza Ensaio ed Jornal de Cultura 9785 Oliveira Aacutelamo (1996) Os sonhos do Infante Angra Grupo Alpendre 9786 Oliveira Aacutelamo (1997) Com perfume e com veneno Lisboa ed Salamandra 9787 Oliveira Aacutelamo (1998) Mar de baleias e de baleeiros com Joatildeo Afonso

Museu dos Baleeiros Lajes ed SREC 9788 Oliveira Aacutelamo (1998) Antoacutenio porta-te como uma flor gravuras de

Antoacutenio Dacosta Lisboa ed Salamandra 9789 Oliveira Aacutelamo (1999) Jaacute natildeo gosto de chocolates Lisboa ed Salamandra 9790 Oliveira Aacutelamo (1999) Morte que mataste lira com Carlos Alberto Moniz

Teatro Lisboa ed Dito E Feito 9791 Oliveira Aacutelamo (1999) Almeida Garrett ningueacutem teatro Alpendre ed

autor 9792 Oliveira Aacutelamo (2000) A solidatildeo da Casa do Regalo Preacutemio de Teatro

Almeida Garrett 1999 ed Salamandra 9793 Oliveira Aacutelamo (2000) Memoacuterias de ilha em sonhos de histoacuteria Poemas

sobre aguarelas de Aacutelvaro Mendes ed Aacutelvaro Mendes 9794 Oliveira Aacutelamo (2000) in Nove Rumores do Mar Antologia de Poesia

Accediloriana Contemporacircnea org Eduardo Bettencourt Pinto e Vamberto Freitas Instituto Camotildees e Seixo Publishers

9795 Oliveira Aacutelamo (2000) Valter Vinagre espiacuterito nas ilhas com Valter Vinagre Manuel Hermiacutenio Monteiro ed Instituto Camotildees MNE

9796 Oliveira Aacutelamo (2001) Cantigas do fogo e da aacutegua quadras sobre aguarelas de Aacutelvaro Mendes Teatro do Ser atuaccedilotildees 1999 2003 2006

9797 Oliveira Aacutelamo (1999) Judite nome de guerra de Almada Negreiro Adaptaccedilatildeo Teatro [si sd]

9798 Oliveira Aacutelamo (1999) In Neo 1 vol 1 com Urbano Bettencourt Adelaide M Batista Carla Silva Pedro Alvim Pinheiro ed Deptordm de Liacutenguas e Literaturas Modernas Universidade dos Accedilores

9799 Oliveira Aacutelamo (1999) O homem que era feito de rede com Katherine Vaz e Vamberto Freitas ed Salamandra

9800 Oliveira Aacutelamo (2003) O meu coraccedilatildeo eacute assim Antologia editada por Diniz Borges ed Cacircmara Municipal de Angra

9801 Oliveira Aacutelamo (2003) Ateacute hoje memoacuterias de catildeo 2ordf ed Salamandra 9802 Oliveira Aacutelamo (2003) Angra cidade do mundo Sanjoaninas 1999

Terceira foto Carlos Garcia ed Fotoletras 9803 Oliveira Aacutelamo (2004) ldquoPedro da Silveira 1922-2003 um breve perfilrdquo

Boletim do Nuacutecleo Cultural da Horta vol 13 9804 Oliveira Aacutelamo (2004) A solidatildeo da Casa do Regalo Almeida Garrett

ningueacutem Teatro 2ordf ed ed Salamandra 9805 Oliveira Aacutelamo de (2005) ldquoAs mulheres em Jaacute natildeo gosto de chocolatesrdquo

Manuela Marujo Aida Baptista e Rosana Barbosa (ed) Congresso A vez e a voz da mulher imigrante portuguesa University of Toronto Dept Spanish and Portuguese 68-71

9806 Oliveira Aacutelamo (2005) Accedilores Azores com Mauriacutecio Abreu trad inglesa de Peter Ingham ed M Abreu e Victor Figueiredo 2ordf ed Setuacutebal Fotografia e Ed Lda

9807 Oliveira Aacutelamo (2006) I no longer like chocolates Trad Diniz Borges San Jose PHPC

9808 Oliveira Aacutelamo (2007) Voices from the islands an Anthology of Azorean Poetry John M K Kinsella Gaacutevea-Brown Publications Providence Rhode Island

9809 Oliveira Aacutelamo (2007) Accedilores profundos profound Azores com Paulo Filipe Monteiro e Madalena San-Bento trad Patriacutecia Correa Costa Porto Caixotim Ed

9810 Oliveira Aacutelamo (2007) Terceira uma ilha sempre em festa fot Joatildeo Costa ediccedilatildeo bilingue Praia da Vitoacuteria ed Blu

9811 Oliveira Aacutelamo (2007) O ciclo do Espiacuterito Santo The Holy Ghost Cycle com Joatildeo Manuel Magina Medina Joatildeo Antoacutenio Martins Ana Martins Angra ed J M M Medina

6

9812 Oliveira Aacutelamo (2008) Jaacute natildeo gosto de chocolates Ed Japonesa Random House Kodansha

9813 Oliveira Aacutelamo (2008) Terceira a ilha dos Impeacuterios Terceira Impeacuterios Island com Maacuterio Duarte e trad de Alexandra Grilo Praia da Vitoacuteria ed Blu

9814 Oliveira Aacutelamo (2010) Andanccedilas de pedra e cal 1ordf ed Praia da Vitoacuteria ed Blu

9815 Oliveira Aacutelamo (2010) ldquoPadre Filho Espiacuterito Santo e o futurordquo IV Congresso Internacional sobre as Festas do Espiacuterito Santo PHPC San Jose Califoacuternia

9816 Oliveira Aacutelamo (2010) In Passos de nossos avoacutes ed Manuela Marujo Aida Baptista [si sd]

9817 Oliveira Aacutelamo (2011) Caneta de tinta permanente na poesia popular dedicado a Manuel Caetano Dias ldquoCanetardquo Nova Graacutefica ed autor

9818 Oliveira Aacutelamo (2011) in Antologia Bilingue de Autores Accedilorianos Contemporacircneos de Helena Chrystello e Rosaacuterio Giratildeo AICL Coloacutequios da Lusofonia ed Calendaacuterio de Letras Vila Nova de Gaia

9819 Oliveira Aacutelamo (2011) in Antologia da Memoacuteria poeacutetica da Guerra Colonial Roberto Vecchi Margarida Calafate Ribeiro (org) Fot Manuel Botelho Notas biograacuteficas Luciana Silva e Moacutenica Silva 1ordf ed Porto Afrontamento Poesia [ISBN 9789723611748] 648 pp

9820 Oliveira Aacutelamo (2012) in Antologia de Autores Accedilorianos Contemporacircneos de Helena Chrystello e Rosaacuterio Giratildeo AICL Coloacutequios da Lusofonia ed Calendaacuterio de Letras Vila Nova de Gaia

9821 Oliveira Aacutelamo (2012) Quatro prisotildees debaixo de armas Teatro baseado no conto homoacutenimo de Vitorino Nemeacutesio ed autor

9822 Oliveira Aacutelamo (2013) ldquoAdelaide Freitasrdquo 19ordm Coloacutequio da Lusofonia Maia Accedilores

9823 Oliveira Aacutelamo (2013) Portugal pelo mundo disperso coord de Teresa Cid 1ordf ed Lisboa Tinta da China

9824 Oliveira Aacutelamo (2013) In Coletacircnea de Textos Dramaacuteticos de Helena Chrystello e Luciacutelia Roxo AICL Coloacutequios da Lusofonia ed Calendaacuterio de Letras Vila Nova de Gaia

9825 Oliveira Aacutelamo (2013) Murmuacuterios com vinho de missa 1ordf ed Angra Letras Lavadas

9826 Oliveira Aacutelamo (2013) Murmuacuterios com vinho de missa 2ordf ed Ponta Delgada Letras Lavadas

9827 Oliveira Aacutelamo (2014) ldquoNo centenaacuterio de nascimento do pintor Antoacutenio Dacosta 1914-2014rdquo IAC Atlacircntida vol LIX

9828 Oliveira Aacutelamo (2014) Marta de Jesus a verdadeira Letras Lavadas

9829 Oliveira Aacutelamo (2014) ldquoMadalena Feacuterinrdquo 20ordm Coloacutequio da Lusofonia Seia 9830 Oliveira Aacutelamo (2015) ldquoUm escritor accediloriano Manuel Machadordquo 24ordm

Coloacutequio da Lusofonia Graciosa Accedilores 9831 Oliveira Aacutelamo (2017) ldquoA laquoKriacutetika Pueacutetikaraquo um texto de Urbano

Bettencourtrdquo 27ordm Coloacutequio da Lusofonia Belmonte

GALIZA 2012

7

NA GALIZA NO 18ordm COLOacuteQUIO DA LUSOFONIA 2012

NA GALIZA NO 18ordm COLOacuteQUIO DA LUSOFONIA 2012

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

8

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

9

MOINHOS 2014 NO 21ordm COLOacuteQUIO

Estoacuteria de Natal Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 25-31

ldquoToda a manhatilde Gustavo andou numa excitaccedilatildeo desusada Levantara-se cedo sem apelos cumprindo prontamente o que noutros dias fazia com demasiada preguiccedila Com a matildee ornamentara a aacutervore de Natal e armara um lindo preseacutepio fulgurante de pedras e musgos com caminhos de areia casas de cartatildeo e pessoas de barro Bombardeou a matildee com perguntas tentando identificar as figuras com as de carne e osso na acircnsia de entender uma vez por todas as mil atribulaccedilotildees que concorreram para que o Menino Jesus fosse nascer na velha arribana dos arredores de Beleacutem Sempre que a curiosidade o fulminava os seus olhos castanhos ficavam ainda maiores e apesar dos seus escassos cinco anos natildeo se deixava satisfazer com qualquer resposta Ouvia e questionava ndash natildeo por desconfiar das palavras da matildee mas porque queria compreender os pormenores e sobretudo desfazer as contradiccedilotildees Intrigava-o a prepotecircncia daquele recenseamento imposto contranatura pelo Imperador de Roma ndash violador poderoso da vontade de povos tatildeo pequenos e indefesos como o da Judeia ndash a quem comparava com ingeacutenua repugnacircncia agrave Ameacuterica agrave Ruacutessia agrave Indoneacutesia nas suas violaccedilotildees internacionais consagradas e legitimadas Era-lhe impensaacutevel que pudessem obrigar a matildee ndash graacutevida do seu proacuteximo irmatildeo ou irmatilde ndash a ir ateacute agrave cidade para um simples dar o nome incomodando-a nesse belo embaraccedilo da vida Ele sabia que era necessaacuterio evitar qualquer perturbaccedilatildeo No ventre da matildee crescia o seu sonho mais apetecido com o qual jaacute partilhava o melhor dos seus afetos Irmatildeo ou irmatilde natildeo era duacutevida que o apoquentasse Apenas desejava que o tempo passasse depressa para que o nascimento se desse Atraveacutes da voz da matildee foi visionando os longos caminhos de terra e pedregulhos as chuvas de dezembro enlameando o corpo e a alma as noites longas e escuras dormidas ao relento de Nazareacute a Beleacutem E imaginava as apreensotildees muacuteltiplas que S Joseacute e Nossa Senhora ruminaram perante os perigos eminentes de assaltos e desfeitas incluindo as pragas engolidas contra quem assinara o edital romano e os incomodava sem rebuccedilos soacute para se dar ao luxo de saber sobre quantos desgraccedilados impunha o seu poder ldquoPorque natildeo foram de camionetardquo perguntou Gustavo E ficou a saber que nesse tempo longiacutenquo e quase lendaacuterio as camionetas eram simplesmente imprevisiacuteveis e que andar de burro era mesmo assim um privileacutegio de remediado Muitos outros ndash

10

mulheres velhos e crianccedilas ndash teratildeo ido a peacute sem mais contemplaccedilotildees Ele nem queria acreditar que pessoas como os avoacutes tivessem sido obrigadas a deixar as suas casas enfrentando os medos de caminhos pejados de salteadores soacute para satisfazerem os caprichos de um imperador que se quedava na sua enorme cidade no esplendor do seu palaacutecio com tanto de lonjura como de tropas e escravos E havia tambeacutem o despeito pela liberdade ferida um oacutedio mudo mas natildeo adormecido de quem se via sujeito ao poder estrangeiro que desrespeitava a alma a cultura a religiatildeo o direito de ser povo ldquoNaqueles dias Beleacutem tinha as casas e as ruas abarrotadas de gente de ruiacutedos e de cheirosrdquo ldquoComo nas touradasrdquo perguntou Gustavo ldquoMais do que nas touradasrdquo confidenciou a matildee Devia ter sido terriacutevel esse chegar a Beleacutem ao fim de dias de atribulada viagem mergulhar num oceano de gente que zaragateava como enxame gigantesco atropelando-se nas bichas de inscriccedilatildeo agraves portas das tabernas das casas de pasto das pensotildees dos abrigos improvisados Gritava-se pelos guardas sempre impassiacuteveis para denunciar os roubos a partilha de um lugar agrave mesa ou de um recanto onde se pudesse dormir Viam-se as consequecircncias da embriaguez atraveacutes das brigas dos insultos dos piropos soezes Mulheres de porte faacutecil deixavam-se apalpar entre gargalhadas e algumas moedas por transeuntes ocasionais As ruas nauseavam de restos de comida de excrementos de corpos por lavar A cidade era um incomensuraacutevel caixote de lixo ldquoQuando S Joseacute e Nossa Senhora entraram em Beleacutem anoitecia Foram percorrendo as ruas por entre pragas e tropeccedilotildees e os relinchos espantados da burra Havia pessoas deitadas nas valetas os corpos entranccedilados num rodilhatildeo de promiscuidades Algumas janelas deixavam passar a luz deacutebil das lamparinas de azeiterdquo ldquoAinda natildeo havia luz eleacutetricardquo interrompeu Gustavo ldquoNatildeo meu filho A eletricidade eacute bastante recenterdquo ldquoCoitadinhos Entatildeo natildeo iluminavam as aacutervores de Natalrdquo ldquoClaro que natildeo O Menino Jesus ainda natildeo tinha nascidordquo ldquoAh simrdquo E Gustavo sorriu da sua proacutepria infantilidade Nossa Senhora chegou exausta Respirava com dificuldade Tinham chegado dores de corte de faca ao seu baixo-ventre Estava na hora do parto S Joseacute desatinou numa corrida desesperada batendo a todas as portas E sempre recebeu a mesma resposta ldquoNatildeo haacute lugar nem para ficar de peacuterdquo Voltou para junto de Nossa Senhora com um desalento mortal A hipoacutetese do seu filho nascer numa rua qualquer de Beleacutem rodeado de gentes desconhecidas e despudoradas fazia-lhe subir agrave garganta uma anguacutestia de voacutemitos e de laacutegrimas Dentro de si gritava ldquoO meu filho natildeo pode nascer aqui Vai morrer de friordquo E com a burra presa pela arreata empurrava as pessoas

para o lado sem que soubesse que direccedilatildeo perseguir Nossa Senhora contorcendo-se de dores e de afliccedilotildees procurava aparentar uma serenidade impossiacutevel ldquoFossem para o hospital mamatilderdquo ldquoTambeacutem natildeo havia hospitaisrdquo ldquoQuando ficavam doentes onde eacute que se tratavamrdquo ldquoProvavelmente tratavam-se em casa A natildeo ser que fossem leprosos ndash uma doenccedila ruim que os afastava dos parentes e dos amigosrdquo ldquoComo a sidardquo Mas Gustavo natildeo esperou pela resposta Impacientava-o ter deixado S Joseacute e Nossa Senhora naufragados nas ruas de Beleacutem e o Menino Jesus quase a nascer Valeu-lhes uma velhinha que disse haver fora das portas da cidade uma pequena arribana coberta de palha Nem agradeceram a informaccedilatildeo Com a burrinha a trote correram para laacute Foi quando se deu o milagre Um pelotatildeo de anjos desceu do ceacuteu e logo agrave saiacuteda de Beleacutem transportou a burrinha com Nossa Senhora e S Joseacute ateacute agrave arribana Os anjos batendo as suas magniacuteficas asas entoavam com vozes celestes muacutesicas que satildeo apenas de anjo Cantavam a noite feliz acompanhados por bandolins violinos violas e um acordeatildeo O mais pequenino ndash roliccedilo loiro e de olhos azuis ndash importunava o coro e a tuna com o seu tambor desritmado pum pum pum pum ndash quatro toques seguidos de rufo Ningueacutem viu Mas foi muito bonito Logo que chegaram os anjos pegaram em paacutes e vassouras e aprestaram-se a limpar o curral a varrer a arribana assustando uma vaca que tambeacutem aguardava a hora de parir De seguida prepararam com feno uma cama para Nossa Senhora enquanto S Joseacute recorrendo a ferramenta abandonada fez das taacutebuas da baiacutea um confortaacutevel bercinho Acenderam duas lanternas que dependuraram sobre a cama onde Nossa Senhora gemia Depois sossegaram em saborosa expectativa De repente ouviram um grito vindo do curral seguido de choro profundo Alguns anjos acorreram lestamente O mais pequenino caiacutera numa poccedila de lama sujando o vestido e as asas Rompera tambeacutem a pele do tambor Ficou com o ar mais desolado do mundo O Chefe dos anjos logo comeccedilou a repreendecirc-lo ameaccedilando-o com o regresso forccedilado ao ceacuteu seguido duma novena de recreios interditos e fechado numa nuvem S Joseacute poreacutem depois de o limpar pacientemente pegou-lhe ao colo e levou-o para dentro Com o susto ateacute fizera chichi na fralda Gustavo sorria A matildee tentava natildeo entrar nos pormenores do parto O seu pudor empurrava-a para devaneios descritivos que Gustavo natildeo perfilava Colocou os anjos do coro e da tuna suspensos dos tirantes em posiccedilotildees de equiliacutebrio acrobaacutetico Fez com que repetissem muito baixinho a noite feliz E foi nesse entretanto que o Menino

11

Jesus nasceu Era meia-noite em ponto S Joseacute tivera o cuidado de confirmar pelo reloacutegio ldquoFoi por cesariana ou parto normalrdquo quis saber Gustavo ldquoParto normalrdquo respondeu a matildee que se apressou a empurrar os anjos pela arribana fora desatinados de contentamento voando sobre os pastores do mundo inteiro e acordando-os com o hino ldquoGloria in excelsis Deordquo Era um barulho intensamente doce iluminado por estrelas danccedilantes Algumas delas por falta de cuidado chegaram mesmo a cair Mas uma outra mais esperta e avisada desviou-se daquela confusatildeo luminosa e foi ateacute ao oriente para depois guiar os quatro reis magos que vinham de Taacutersis Aacutefrica Peacutersia e Sabaacute ateacute agrave arribana de Beleacutem Chegaram trecircs carregados de oiro incenso e mirra ndash ofertas de pouco sentido praacutetico e que mais tarde os inteacuterpretes de evangelhos procuraram em vatildeo descodificar O quarto rei poreacutem perdeu-se Soacute chegou trinta e trecircs anos mais tarde sem nada para oferecer Tambeacutem Jesus jaacute natildeo precisava Pregado na cruz apenas lhe apetecia morrer ldquoA matildee estaacute a desconversarrdquo disse Gustavo E estava O Natal era o Natal e soacute o Menino Jesus interessava Voltaram agrave arribana que estava quase vazia O anjo pequenino teimava com o Menino Jesus para que experimentasse tocar tambor Sem lhe dar qualquer atenccedilatildeo e consciente de tarefas mais urgentes mamava gostosamente A noite arrefecera Nevara sobre a serra e um vento corrupto trazia o frio ateacute agrave arribana O Menino Jesus podia enregelar Entatildeo a vaca e a burrinha aproximaram-se aquecendo-o com o seu bafo quente e huacutemido Nossa Senhora e S Joseacute sorriam e beijavam ternamente o Menino que depois de mamar adormeceu Colocaram-no no bercinho e o anjo do tambor comeccedilou a embalaacute-lo ldquoEacute por isso que o teu preseacutepio tem um anjo uma burrinha e uma vacardquo disse a matildee Gustavo olhou-o e confirmou Depois natildeo se conteve e perguntou ldquoMamatilde o Menino Jesus teve irmatildeosrdquo ldquoNatildeo meu filho Ele eacute sempre o Menino Jesusrdquo Entatildeo abraccedilando ternamente a barriga da matildee concluiu ldquoNatildeo sabe o que perdeurdquordquo

Com Perfume e Com Veneno

laquoOs membros do gabinete do senhor Presidente estavam em pacircnico Haacute dois dias

que procuravam contactar por telefone a pequena ilha para anunciarem a data do programa da visita constitucional Mas o telefone apenas devolvia ruiacutedos intermitentes que natildeo forneciam qualquer interpretaccedilatildeo teacutecnica Era como se estivessem a ligar para o ponto zero do quintal mais proacuteximo E no entanto era urgente cumprir a lei que prescrevia laquoAo menos uma vez por mandato o governo visitaraacute cada uma das suas ilhasraquo Faltava a mais pequena e mais distante Eacute que passado quase um seacuteculo o mandato terminava na semana seguinte e em veacutesperas de eleiccedilotildees nenhuma ilegalidade podia transformar-se em trunfo nas matildeos da oposiccedilatildeo Soacute que o telefone natildeo atinava com aquela ilha pequena e distante O eco nem tinha forccedilas para lhes devolver o apelo

Houve que reunir de emergecircncia As calviacutecies aumentaram branquearam cabelos

fizeram-se esforccedilos suplementares e aconteceu o habitual suores frios e derramamentos cerebrais Mas natildeo conseguiram qualquer contacto com a ilha mesmo com funcionaacuterios destacados para discar o nuacutemero durante vinte quatro horas

Sobre a mesa de reuniotildees puseram todas as hipoacuteteses avaria do uacutenico telefone

da ilha (a Companhia natildeo o podia comprovar e muito menos reparar) que os habitantes andavam a festejar o Espiacuterito Santo (era eacutepoca disso) que estavam a ensaiar folclore (em tempos tinham-lhes prometido um passeio) que os membros da filarmoacutenica estavam a aprender a tocar o hino para a eventual visita do senhor Presidente que se mantinham ocupados em qualquer acontecimento social Mas em

12

circunstacircncia alguma ficariam impedidos de passar mesmo que fugazmente pelo telefone

Puseram entatildeo hipoacuteteses mais convencionais descontentamento com a

governaccedilatildeo (nem sequer conheciam o senhor Presidente) mudanccedila de paacutetria (a Ameacuterica ali tatildeo perto e muito mais rica) algueacutem com a conivecircncia do padre dera o grito de independecircncia e pronto

(hellip) Partiram como calhou Pouca bagagem Nada de coisas supeacuterfluas O Chefe de

gabinete meteu na pasta o mais importante o discurso que o senhor Presidente iria proferir- o mesmo que jaacute lera nas outras ilhas Enfiaram tambeacutem trecircs jornalistas e um operador de cacircmara de televisatildeo para o registo oacutebvio Era o qb O senhor Presidente enjoava a bordo e por simpatia os membros do gabinete enjoavam tambeacutem Era bonito ver toda aquela solidariedade governativa Conseguiam mesmo imitar os roncos presidenciais que com a continuidade desfaleciam ateacute se transformarem em gemidos agoacutenicos Mas soacute numa viagem como aquela se conseguia avaliar o sacrifiacutecio de governar ilhasraquo

(hellip) O barco foi-se aproximando Reduziu a velocidade e deslizou como tapete rolante

ou mosca sobre taccedila de gelatina E quando o cais ficou agrave matildeo de atracar jaacute todos tinham caiacutedo no oceano do desacircnimo Eacute que nem as autoridades autaacuterquicas nem a filarmoacutenica nem grupo de folclore nem o padre nem qualquer pessoa se postara sobre o cais para esperar tatildeo ilustre comitiva Os jornalistas sentiram-se enfim analfabetos e o operador de cacircmara o escravo de todas as maacutequinas inuacuteteis Pela primeira vez era possiacutevel provar que se pode reduzir qualquer governo agrave sua insignificacircnciaraquo

(hellip) Com Perfume e Com Veneno de Aacutelamo de Oliveira Ed Salamandra 1997 in

httplivrariasolmarblogspotpt201005com-perfume-e-com-venenohtml

13

14

Por Uma Laacutegrima Gorda Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 11 a 21

ldquoA lembranccedila mais agradaacutevel que guardo (mas que eacute tambeacutem do tamanho do meu remorso) eacute a da negrinha Segunda Dei por ela no dia em que vi uma laacutegrima gorda rolar-lhe pelo rosto e estatelar-se sobre a mesa Nunca mais vi laacutegrima que se lhe comparasse em tamanho e amargura uma bola de cristal de maga velha Fiquei perplexo sem saber como era possiacutevel acumular tanta dor salgada Estava em Binta terriola da Guineacute-Bissau que fora porto importante da exportaccedilatildeo de mancarra e arroz nos tempos da escravatura suave do imperialismo lusiacuteada Estava ali fardado de soldado mal fardado apegando-me a um quotidiano enformado por horas inseguras por um teacutedio amassado a suor e a cachimbo e resignado a uma paisagem de aacutervores fendida pelas aacuteguas verdes do rio Cacheu ndash alameda por onde passeavam hipopoacutetamos crocodilos e algumas cobras Tudo isto exercia sobre mim e os meus companheiros de destino o efeito de um soporiacutefero maldito ndash mistura de medo e de torpor que nem o luar de marccedilo esmaecia Era como se a vida tivesse adormecido sobre o arame de um circo desprovido de rede em que o equiliacutebrio se desafiava a si proacuteprio e sem que houvesse a miacutenima razatildeo para evitar a queda e a morte Por isso a laacutegrima gorda de Segunda foi a minha taacutebua de salvaccedilatildeo O que ateacute hoje fiz de mais uacutetil foi ensinar a ler e a escrever agraves crianccedilas de Binta Todos os dias ocupaacutevamos uma palhota que fora abandonada logo que o arame farpado delimitou a aacuterea do quartel Apesar da falta de material didaacutetico as crianccedilas de Binta foram desenhando letras formando palavras descobrindo a grafia da voz e aprendendo que para aleacutem dos seus inconfundiacuteveis meacutetodos de comunicaccedilatildeo tambeacutem era possiacutevel fazecirc-lo atraveacutes da escrita e da leitura No meio dos progressos escolares sentia-me pai-natal ao contraacuterio recebendo mais do que dava e por isso mais feliz do que aquele pequeno bando de negrinhos que diariamente me aparecia vestido de trapos e de sujidade e visivelmente mal alimentado Mas nesse tempo de infernos de convivecircncia com a morte com a injusticcedila e outros males complementares a tarefa de professor devolvia-me alguma da dignidade perdida Foi nessa escola com teto de palha que reconquistei o equiliacutebrio mental e sobretudo o quanto necessitava para sobreviver e poder regressar mais tarde com as minhas lembranccedilas e os meus remorsos Segunda frequentava a minha escola e prendi-me a ela com todos os tentaacuteculos do coraccedilatildeo por causa da tal laacutegrima gorda que um dia deixou cair sobre a mesa

Entatildeo soube-lhe o nome e descobri a sua inteligecircncia e a sua beleza Um estuacutepido becirc maiuacutesculo fecirc-la tropeccedilar no complicado desenho ndash as barrigas sobrepostas como mulher graacutevida duas vezes Simplifiquei o desenho e dei-lhe um beijo na testa E logo o becirc saiu com a forma perfeita Dedicou-me a vitoacuteria com uma cariacutecia na matildeo e o sorriso mais cheio de ternura que algueacutem me deu Assim nasceu a nossa amizade que logo se enredou de muitas e complexas cumplicidades Almoccedilou comigo Partilhamos o rancho ndash da minha parte sem qualquer sacrifiacutecio Tratava-se duma mistela de arroz com rodinhas de salsicha enlatada sem outro sabor que natildeo fosse aquela fome tentacular e corrosiva Segunda quase me irritou com o seu apetite demolidor A sua fome era tambeacutem secular Custava-me aceitar essa verdade sem que o estocircmago natildeo me enfezasse com a sua uacutelcera de revolta Olhei-a mais uma vez e soacute vi a claridade inocente dos seus olhos lindos Passou-me a birra Segunda era como se fosse uma flor de maio ndash intacta delicada e por isso suscetiacutevel ldquoViraste infanticidardquo ouvi dizer Ignorei de quem vinha a piada Natildeo me deixei morder Queria Segunda nessa duacutebia qualidade de irmatilde e de filha ldquoQuantos anos tensrdquo ldquoOito chuvardquo Partiu levando uns restos de comida numa lata enferrujada ldquoPa mecircs irmatildeordquo disse Os seus peacutes descalccedilos levantaram uma linha de poacute vermelho que foi sumir-se de encontro aos arrevesados atalhos da tabanca Ateacute parecia que naquela lata supurenta levava a alma da felicidade E era essa reles felicidade que me deixava abaixo de catildeo Levantei-me com a vontade incontrolaacutevel de me vomitar Fui ateacute ao rio Fechei os olhos e respirei fundo O sol bateu-me no corpo com os seus raios de fogo secando o asco que me subia do estocircmago ao ceacuteu-da-boca Sabia que se gritasse me libertaria do remorso subjugante da guerra e das razotildees submersas de um colonialismo apodrecido de poder Mas estava na hora dos silecircncios quentes da vida de Aacutefrica descansar agrave sombra do torpor da sua desgraccedila Acabei por me perder numa sueca encharcado de cerveja Ser luacutecido ali natildeo era virtude que se cultivasse Antes o aacutelcool Infinitamente Acordei com o ciciar de Segunda ldquoSocirc pofessocirc Socirc pofessocircrdquo Esfreguei os olhos afastando as uacuteltimas teimosias de sono e ela laacute estava com o seu sorriso e o meu pequeno-almoccedilo Comemos e fomos para a escola Com o ridiacuteculo da minha acircnsia transferi para Segunda quanto me restava de afeto e de orgulho Babava-me perante a sua capacidade de aprender e sobretudo de apreender os significados complexos da vida Era brilhante Tanto se lhe dava navegar nos mapas sucintos da grandeza do mundo descobrindo gentes de outras longitudes e civilizaccedilotildees como se fixava no desenvolvimento das complicadas operaccedilotildees de aritmeacutetica somando ternura diminuindo tristeza multiplicando afetos dividindo solidariedade A sua vontade era contagiante Alguns meses depois sete dos meus alunos foram a Safim fazer o exame da quarta classe Ficaram aprovados com distinccedilatildeo Mas soacute Segunda me pareceu digna

15

desse privileacutegio Andava eufoacuterico e tambeacutem infantil premiado com o seu sorriso distinto E com a sua pobreza E isso eacute que me constrangia Era uma pobreza sugadora progressiva medonha irresponsaacutevel Segunda era o rosto singular dos seus companheiros de tabanca de Aacutefrica Comiam os restos da tropa Via-lhes as barrigas entumescidas de fome os olhos desvitaminados os ossos salientes sob a pele das disenterias os rostos sujos do chatildeo que lhes servia de cama os cadernos enodoados de terrosas impressotildees digitais Tudo isto me afogava no lodo de um remorso inconsequente e procurava purificar-me no meu afeto por Segunda Dei-lhe uma camisa velha a que cortara as mangas e acinturei com um cordel Ficava-lhe bem Ficou com um ar de rapariguinha exoacutetica tipo modelo para neacutegligeacutee de alta moda No dia seguinte voltou sem a camisa Dera-a ao pai Mas foi a partir desta pequena doaccedilatildeo que virei estilista Mamadu ndash balanta e muccedilulmano ndash herdara de um colono fugido agrave guerra uma velha maacutequina de costura Com ela apertava-nos as fardas a troco de alimentos que surripiaacutevamos da arrecadaccedilatildeo de geacuteneros uns quilos de arroz patildeo oacuteleo latas de conserva Procurei restos de fardas e levei-os ao homem da maacutequina de costura Desenhei um vestido de corpo justo mangas de balatildeo saia com folhos sobrepostos cintura arrematada com laccedilo nas costas ndash tudo dividido pelos dois tecidos possiacuteveis o verde liso e o camuflado ldquoNatildeo nosso sordado Natildeo sei fazerrdquo disse Mamadu Entatildeo talhei alinhavei e dei indicaccedilotildees sobre o que a agulha da maacutequina devia pespontar ldquoNosso sordado ser artistardquo o vestido suspenso pelos ombros e exposto ao olhar admirado de Mamadu Arquivei o elogio e nunca lhe confessei que naquela peccedila de roupa investi toda a minha ciecircncia sobre costura ndash e tambeacutem o meu receio e a minha ignoracircncia Eacute que soacute por acaso o vestido resultara Segunda eacute que ficou ainda mais bonita Pela primeira vez despertara-se-lhe a vaidade de mulher Confundida e enleada mirou-se no espelho do cabo enfermeiro e correu para a tabanca a fim de explorar a seduccedilatildeo do seu vestido novo Poreacutem mais uma vez o imprevisto derrotou-me Segunda apareceu-me com o vestido numa laacutestima Esquecera-me de lhe pedir que o despisse antes de se deitar Mas natildeo desisti Roubei quanto pude na arrecadaccedilatildeo de geacuteneros e fizeram-se vestidos saias calccedilotildees blusas ndash tudo com modelos diferentes - ateacute que fui apanhado pelo capitatildeo que acabou por desconfiar das minhas sucessivas incursotildees agrave palhota do Mamadu ldquoOu vestes todos ou natildeo vestes ningueacutemrdquo ordenou Aceitei o desafio E toca a desenhar a talhar a alinhavar a coser roupas diversas para as crianccedilas da escola Chegou a fazer-se um abate prematuro de fardas para que natildeo faltasse mateacuteria-prima Quando entrei na

escola estremeci Diante de mim estava um pelotatildeo infantil fardado a preceito e sem graccedila Apeteceu-me mandaacute-los despir Pelo menos a nudez dar-lhes-ia na igualdade da cor e da idade o direito agrave diferenccedila Segunda adivinhando a minha dececcedilatildeo logo me consolou ldquoTodos irmatildeordquo Sem duacutevida Mas por que preccedilo Os dias foram pingando Afeto sobre afeto Segunda tornara-se-me insubstituiacutevel Estava no meu coraccedilatildeo como polvo sadio aorta sentimental anjo da guarda de todos os perigos do meu quotidiano Por isso foi num de repente gelatinoso que dei por mim com os dedos a tocar no tempo do regresso Apercebi-me disso pela algazarra do quartel pelas calviacutecies remanescentes pelas barrigas dilatadas de cerveja pelo fel dos fiacutegados desfeitos pelas rugas da pele pelos medos reassumidos E em cada manhatilde ouvia-se um bruaacute florestal selvagem que era a manifestaccedilatildeo menos demente da alegria de acordar e de riscar mais um nuacutemero no calendaacuterio de parede Apercebi-me tambeacutem desse chegar pelo veacuteu de tristeza que se foi adensando no rosto de Segunda e ateacute pela sua impaciecircncia velada que disfarccedilava com algum autoritarismo sobre as outras crianccedilas Chegou mesmo a vingar-se sobre si proacutepria ausentando-se para dentro respirando os silecircncios da alma Cabia-me preparar Segunda para a nossa inevitaacutevel separaccedilatildeo ndash separaccedilatildeo que eu tambeacutem natildeo desejava tatildeo inseguro me sentia quanto agrave minha capacidade de sobreviver sem ela Mas o que mais me afligia era o natildeo ser capaz de lhe deixar uma razatildeo coerente para o nosso adeus naturalmente definitivo Deixara-a prender-se com o melhor dos seus afetos enquanto eu como adulto racional natildeo passara de um saacutedico e egoiacutesta abandonando-a a todas as incertezas do futuro Retirava-lhe a muleta que eu era mesmo no centro do precipiacutecio Precisava urgentemente duma esperanccedila que lhe garantisse a felicidade E afinal nem lhe podia certificar coisas tatildeo banais como a escola roupa comida Felizmente soacute depois de chegar agrave ilha eacute que percebi que era o maior perdedor Nunca mais acordei ao som da sua voz nunca mais passeei na margem do Cacheu guiado pela sua matildeo nunca mais frui dos poentes vermelhos de fogo com a sua cabeccedila no meu regaccedilo Perdi de uma vez por todas o direito aos seus insoacutelitos presentes um bolo de coco feito pela matildee o passarinho muito inho que apanhava na cerca da palhota e depois domesticava o prazer de comer a primeira manga que a estaccedilatildeo amadurava E acabaram os nossos diaacutelogos onde a Poesia pontificava na contenccedilatildeo das palavras e na extensatildeo dos silecircncios E desta vez foi sobre o meu rosto que voltei a sentir o peso disforme da sua laacutegrima gorda Fiquei sem jeito Falei a Segunda na distacircncia real das nossas terras e das nossas culturas da incerteza do meu futuro bastamente comprometido pela inutilidade dos

16

anos vividos e de todo irrecuperaacuteveis Adensei tudo com verdades dramaacuteticas deixando transparentes a incerteza a cobardia e o pecado da omissatildeo Descrevi-lhe depois as deliacutecias da terra prometida como se fossem dela Antevi-lhe um amanhatilde mentirosamente risonho e deixei-lhe relevada a beleza demagoacutegica da sua paacutetria Olhou-me atordoada inconvencida amuada distante ndash maacutescara que soacute desfez na veacutespera da partida Quando os batelotildees ndash que nos levariam Cacheu abaixo rumo a Bissau ndash chegaram rodeados de barcos-patrulha restavam vinte e quatro horas para estarmos juntos Vivemo-las tatildeo intensamente que me deitei exausto No momento de largar fizemos por nos ignorar Combinaacuteramos evitar o melodrama E Segunda laacute ficou sobre o cais de madeira o dedo na boca os olhos avaramente enxutos assombrando a alegria do meu regresso com a sua recalcada tristeza Ficou sozinha ndash sei laacute com que futuro Ainda hoje sabendo que cresceu e que cumpre o seu destino na paacutetria sem as virtudes que lhe fiz crer dou por mim a soccedilobrar com esta saudade e este remorso Sou-lhe eternamente devedor Se lhe dei alguns meses de comezinha felicidade ele deu-me a coragem de continuar vivo num tempo e num lugar onde a morte chegava a ser uma becircnccedilatildeo do ceacuteu Desses tempos de conviacutevio diaacuterio com as mil presenccedilas da morte haacute imagens que continuam a perseguir-me Bem sei que eacute um disparate jaacute que os meus ressentimentos medos e fantasmas natildeo oferecem resistecircncia de maior Tecircm vindo a diluir-se como a tinta dos maus frescos renascentistas Mas natildeo consigo esquecer-me de Segunda com o seu belo corpo esfaimado a sua resignaccedilatildeo e a sua indiferenccedila perante a presenccedila e a superioridade da tropa Por isso espanto-me que volvidos tantos anos a minha principal referecircncia da Guineacute tenha o tamanho dessa negrinha de olhos grandes e de sorriso branco cujo corpo exalava o perfume inexplorado da floresta e que gostava de se sentar comigo sobre o cais de madeira a ver o sol esconder-se atraacutes da mata de Ohio E que me queimou a alma com uma laacutegrima gorda Segunda deve ser agora uma grande poeta Valha-me esta consolaccedilatildeo sofrida que ser poeta natildeo eacute bem que se deseje nem sequer ao inimigordquo

17

2ordm Ato (Extrato) Os Sonhos do Infante Ediccedilatildeo Jornal de Cultura 1995

ldquoO uacuteltimo sonho o re-encontro Talvez ningueacutem saiba porquecirc nem para quecirc ANTOacuteNIO - Quem sois INFANTE - Que pergunta desnecessaacuteria ANTOacuteNIO - Desculpe Parece-me que o conheccedilo INFANTE - E nem precisas de fazer muito esforccedilo ANTOacuteNIO - Assim de branco INFANTE - Jaacute sei Pareccedilo-te uma noiva de bigode ANTOacuteNIO - Desculpai senhor Jaacute natildeo o via haacute tantos anos INFANTE - Haacute muitos anos ANTOacuteNIO - Andaacuteveis vestido de preto INFANTE - A cor eacute-me indiferente Os seacuteculos purificam os tons escuros Deixam aparar as impurezas Depois vatildeo corando Um dia fica soacute a cor precisa e segura ANTOacuteNIO - Natildeo estou a entender INFANTE

18

- Querias apenas dizer que enquanto os homens satildeo de memoacuteria curta a Histoacuteria encarrega-se de gravar quanto interessa na memoacuteria dos livros e das pedras ANTOacuteNIO - Reconheci-o E natildeo nascemos propriamente no mesmo seacuteculo INFANTE - Seria difiacutecil esquecerem-me Natildeo que o natildeo tenham tentado Aliaacutes este meu paiacutes nunca me mereceu ANTOacuteNIO - Como assim INFANTE - Natildeo teve corpo para arrumar a minha alma Natildeo teve matildeos para agarrar quanto lhe dei ANTOacuteNIO - E isso era possiacutevel INFANTE - Claro que era Bastava que houvesse a mesma grandeza de alma Mas natildeo De descoberta a descoberta foram-se enredando em intrigas em oacutedios em venenos Depois de cada conquista queriam outra conquista e perdiam a primeira ANTOacuteNIO - Mudar pode ser sobreviver INFANTE - Natildeo era mudar Era perder Foi assim que os meus sonhos se foram enchendo de brumas e de silecircncios ANTOacuteNIO - Senhor tanto que se fala de si INFANTE - Agora Este paiacutes sempre viveu de luas Todos os anos vai ao bauacute do passado e desenterra um morto Logo se apressa a ver-lhe os ossos a descobrir-lhe as viacutesceras da virtude do saber dos feitos Depressa sai do anonimato para ser o santo o saacutebio

o heroacutei Durante vinte e quatro horas eacute o bombo da festa a masturbaccedilatildeo coletiva o orgulho da comissatildeo ANTOacuteNIO - Jaacute ouvi isso INFANTE - Agraves vezes esquecem-se dele na praccedila Nem sequer tecircm o cuidado de lhe arrumar outra vez os ossos AFONSO - Consigo eacute diferente INFANTE - Comigo nunca foi diferente Andam agora a assoalhar-me numa pressa escolar que mete doacute Obrigam as criancinhas a saber de mim enchendo-lhes a cabeccedila com sonhos que natildeo sonhei ANTOacuteNIO - Todos dizem que sempre foi um sonhador INFANTE - Eram sonhos meus Originais Agora querem fazer passar por meus os seus proacuteprios sonhos numa acircnsia de rasurar pesadelos Quando sonhava sonhava em grande Nunca fui mediacuteocre CONSTANCcedilA - Isso sabemos INFANTE - Natildeo tanto que o tivessem aprendido ROMUALDO - Viajamos tanto INFANTE - Por necessidade Falta-vos a coragem de aventurar ANTOacuteNIO - Aventurar As nossas aventuras satildeo o que satildeo

19

INFANTE - Apenas JOSEacute - Por vezes quisemos imitar-vos INFANTE - Sem chama DIOGO - Quisemos ir aleacutem da ilha completar outras viagens INFANTE - Sem convicccedilatildeo ANTOacuteNIO - Sabemos navegar INFANTE - Sem rumo que interesse FRADE - Estais a retirar-nos a Poesia INFANTE - Natildeo Apenas a tentar dizer que a Poesia eacute sonho e eacute tanto mais grandiosa quanto maior eacute o sonho FRADE - Desisto de falar INFANTE - Desistir eacute um verbo cobarde Na verdade viveis num paiacutes desistido ANTOacuteNIO - Natildeo temos remissatildeo

INFANTE - Depende da vossa forma de redimir FRADE - Um apelo agrave Histoacuteria por exemplo INFANTE - Dei-vos estas ilhas carregadas de Histoacuteria Fiz delas o poiso de todas as viagens Aqui foram dadas em primeira matildeo as novas de achamento Aqui se desfizeram segredos aqui se informaram povos e culturas aqui o mundo se tornou sabido BEATRIZ - Foram outros tempos INFANTE - E deixaram-nos perder JOSEacute Natildeo tanto assim Ainda temos aviotildees que rapidamente nos trazem outras gentes INFANTE - Poucas DIOGO - E todos os dias sabemos do mundo sobre a hora de qualquer acontecimento INFANTE - Entatildeo porque vos queixais CATARINA - Talvez porque apenas recebemos e nada damos LEONOR - Talvez porque natildeo podemos digerir quanto recebemos ROMUALDO - Talvez porque natildeo temos tempo de sonhar connosco proacuteprios

20

AFONSO - Talvez por causa desta solidatildeo mal quebrada MARIA - Ou por termos as portas mal abertas BELISA - Natildeo termos asas INFANTE - Sois na verdade bem pequenos Natildeo sois capazes de desenterrar os vossos heroacuteis os vossos santos os vossos poetas ANTOacuteNIO - Dos nossos heroacuteis e santos pouco sabemos Permanecem quase todos sob o manto diaacutefano das lendas E os poetas satildeo malditos INFANTE - Todos os poetas satildeo malditos Eacute por isso que satildeo poetas Todos os heroacuteis e santos satildeo lendaacuterios Eacute por isso que permanecem Que conheceis de mim ROMUALDO - Pois Talvez o bastante Ou talvez coisa nenhuma JOSEacute - A vossa imagem de negro no poliacuteptico de Satildeo Vicente eacute uma referecircncia obrigatoacuteria INFANTE - Apenas tecircm referecircncias E no entanto eacute o suficiente para que o sonho aconteccedila Para que preparem todas as viagens e as realizem por seus rumos certos e cheguem agraves terras previstas E aiacute aconteccedilam os outros sonhos os do patildeo e os da cultura FRADE - Isso nos disseram aqui haacute poucos anos E nada aconteceu ANTOacuteNIO - Eis como ficaacutemos pobres e mudos

INFANTE - Mas natildeo presos As vossas amarras satildeo mais inventadas que reais Peguem nos vossos poetas e bebam o sangue da sua Poesia Sem amor natildeo haacute sonho possiacutevel (Saiacuteda falsa) ANTOacuteNIO - Jaacute vos ides INFANTE - Jaacute O tempo de estar na vossa memoacuteria chegou ao fim Volto para as paacuteginas da histoacuteria de um livro que vai ficar intocaacutevel na prateleira da vossa estante Eacute o meu tuacutemulo preferido Natildeo quero que me abandonem nas ruas a desbotar em cartazes Natildeo quero ficar em textos de circunstacircncia em programas tidos de prestiacutegio em espetaacuteculos de teatro sem teatralidade capaz O que eu tinha de ser jaacute fui Se me comeram a carne podem roer-me os ossos A um morto tanto se lhe faz ANTOacuteNIO - Afinal tambeacutem perdeste os sonhos e a vontade de sonhar INFANTE - Soacute sonha quem estaacute vivo Vocecircs estatildeo vivos Podem sonhar (Sai)rdquo

RIMANCE DE DONA BALEIA IMPRESSOtildeES DE BOCA EDICcedilOtildeES DRAC 1992 PP 31-32 E 33

ldquoestava dona baleia - foge foge meu amor a regar o seu jardim ateacute agraves aacuteguas do frio com seu repuxo de prata soacute aiacute te sei segura e sorriso de alfenim a regar o teu jardim quando o foguete estalou com teu repuxo de prata laacute no alto da vigia e sorriso de alfenim anunciando a caccedila mas a canoa da morte (que susto santa maria) corre depressa demais dona baleia - coitada daqui lhe aceno a vida logo parou de aguar feito pedrinha do cais as algas que floriam e grito seu nome drsquoaacutegua

21

bem agrave tona do mar (seu matador quem seraacute) eacute entatildeo que a tristeza procura quantos te amam o medo a afliccedilatildeo Jonas deus iemanjaacute saltam do cais dos olhos de nada lhe serve o grito aos ombros do coraccedilatildeo Nada mais posso fazer um grito aberto se ouve o arpatildeo laacute vai direito em eco de mar perfeito no seu peito embater - baleia agrave vista baleia patildeo-nosso de qualquer jeito ai pobre dona baleia e laacute vai dona baleia como te custa viver fugindo pra natildeo morrer - deus a salve do arpatildeo morreu dona baleia deus a queira proteger arpada de oacutedio velho todo o silecircncio do mar ai pobre dona baleia ficou tinto de vermelho como te custa viver os peixes choram tambeacutem envolta em lenccedilol de sangue mar manso todo rasgado dona baleia laacute vem baba de espuma agrave quilha arrastada ateacute ao cais dona baleia procura seu corpo esquartejado escapar da armadilha nas caldeiras derretido que eacute o arpatildeo voador daacute o patildeo amargurado anjo de ferro esguio e algueacutem haacute de gravar nos seus dentes de marfim eram cinco sois a arder o barco que a perseguiu cinco talhadas de lua o arpatildeo que lhe deu fim que deus lhe quis oferecer no ceacuteu as aves e as nuvens correm do sul para o norte agora dona baleia sobre o mar e sobre a ilha jaacute natildeo lhe custa viverrdquo paira o silecircncio da morte e haacute um poeta branco agrave minha porta a bater natildeo vou abri-la natildeo vou jaacute sei o que vem dizer ai pobre dona baleia como te custa viver agrave costa como um poema

a desfazer-se na areia vieram cinco mareacutes chorar a dona baleia duas choravam espuma - branca nuvem de veratildeo traziam como homenagem um buacutezio em cada matildeo as outras duas chegaram fracas de tanto chorar tanto sal nas suas laacutegrimas tanto sal e tanto mar a quinta mareacute natildeo chora traz apenas no regaccedilo um grande ramo de algas amarrado com um laccedilo deixa-o deposto na costa de seguida reza e canta satildeo cantigas de saudade versos presos na garganta desfeitas satildeo as mareacutes

CARTA DE JOAtildeO VALENTE (RAMINHENSE DA TERCEIRA) A SEU IRMAtildeO EMBARCADO NA CALIFOacuteRNIA (GASTINHAS) OU ENTAtildeO CANTIGAS DE COMO SE PICAM OS OLHOS DA MISEacuteRIA EM PICOS DE ABUNDAcircNCIA

ldquoEscrevo-te esta carta Gostei de saber que tens Pra saber como vais passando Friza e um novo mexim A saudade eacute que nos farta Socircfas clausetas sertatildes Mas por caacute vamos andando E alvaroses dingrim Muito bem graccedilas a Deus Jaacute sei que tens um fogatildeo Nestas linhas que alinhavo Uma trela e talaveija Muito mal desejo aos teus E que jaacute vives no Tatildeo Tameacutem sauacutede Por mim cavo - Mas que sorte salvo seija Desta hora a matildeo na pena E cuma pisca de doacutelas Poucas letras e saberes Te vestiste numa estocirca

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

3

Dos autores contemporacircneos de que falamos nos uacuteltimos Cadernos selecionei alguns daqueles por quem nutro mais apreciaccedilatildeo literaacuteria Cristoacutevatildeo de Aguiar Daniel de Saacute Dias de Melo Vasco Pereira da Costa e para esta ediccedilatildeo escolhi AacuteLAMO OLIVEIRA Pretendia-se com os quatro primeiros cadernos completar o ciclo anual previsto desde o coloacutequio accediloriano de 2009 e a partir de entatildeo manter a publicaccedilatildeo trimestral

Biodados do autor

AacuteLAMO OLIVEIRA (Joseacute Henrique do) nasceu na Freguesia do Raminho ndash Terceira Accedilores ndash maio de 1945

Fez o Curso de Filosofia no Seminaacuterio de Angra e o serviccedilo militar na Guineacute-Bissau (196769)

Foi catalogador na Biblioteca Puacuteblica e Arquivo de Angra (197071) Funcionaacuterio Administrativo no Departamento Regional de Estudos e Planeamento Em 1982 foi transferido para a Direccedilatildeo Regional da Cultura e apoacutes a aposentaccedilatildeo

foi convidado a colaborar ateacute 2010 na Direccedilatildeo Regional das Comunidades Eacute soacutecio fundador do Alpendre - grupo de teatro (1976) onde tem sido diretor

artiacutestico e encenador Tem 36 livros com poesia romance conto teatro e ensaio Estaacute representado em

mais de uma dezena de antologias de poesia e de ficccedilatildeo narrativa O seu romance Ateacute Hoje Memoacuterias de Catildeo em 3ordf ediccedilatildeo recebeu em 1985 o

preacutemio laquoMareacute Vivaraquo da Cacircmara Municipal do Seixal

Em 1999 recebeu o preacutemio laquoAlmeida GarrettTeatroraquo com a peccedila A Solidatildeo da Casa do Regalo

Tem poesia e prosa traduzidas para inglecircs francecircs espanhol italiano esloveno e croata

O seu romance Jaacute Natildeo Gosto de Chocolates estaacute traduzido e publicado em inglecircs e em japonecircs

Em abril de 2002 o Programa de Estudos Portugueses Portuguese Studies Program

da Universidade da Califoacuternia em Berkeley convidou-o na qualidade de laquoescritor do semestreraquo para lecionar a sua proacutepria obra aos estudantes de Liacutengua Portuguesa sendo o primeiro portuguecircs a receber tal distinccedilatildeo

Com algumas incursotildees na aacuterea das artes plaacutesticas (exposiccedilotildees individuais e coletivas em Angra Ponta Delgada Lisboa Porto e Guineacute-Bissau nas deacutecadas de 60 a 80) criou mais de uma centena de capas para livros

Em 2010 foram-lhe conferidas as seguintes distinccedilotildees Insiacutegnia Autonoacutemica de Reconhecimento do Governo Regional dos Accedilores e Grau de Comendador da Ordem de Meacuterito da Presidecircncia da Repuacuteblica

4

OBRAS PUBLICADAS

9730 Oliveira Aacutelamo (1968) A minha matildeo aberta Opuacutesculo ed autor 9731 Oliveira Aacutelamo (1971) Patildeo verde ed autor 9732 Oliveira Aacutelamo (1972) in 14 poetas de aqui e de agora (Antologia) Angra

Uniatildeo Graacutefica Angrense 9733 Oliveira Aacutelamo (1973) Poemas de(s)amor poesia Tip Fernandes 9734 Oliveira Aacutelamo (1974) Morte ou vida do poeta Teatro Angra Livraria

Adriano G de Figueiredo 9735 Oliveira Aacutelamo (1974) Faacutebulas poesia ed autor 9736 Oliveira Aacutelamo (1974) Um Quixote 2ordf ed Teatro 9737 Oliveira Aacutelamo (1976) Os quinze misteriosos misteacuterios ed autor 9738 Oliveira Aacutelamo (1977) Manuel seis vezes pensei em ti ed autor 9739 Oliveira Aacutelamo (1977) in Antologia de poesia accediloriana do seacutec XVIII a 1975

de Pedro da Silveira Lisboa ed Saacute da Costa 9740 Oliveira Aacutelamo (1978) Manuel seis vezes pensei em ti peccedila em duas

talhadas com dez pevides 2ordf ed Angra ed autor 9741 Oliveira Aacutelamo (1978) Almeida Firmino poeta dos Accedilores DRAC SREC 9742 Oliveira Aacutelamo (1978) in Antologia panoracircmica do conto accediloriano seacutecs XIX

e XX org prefaacutecio e notas de Joatildeo de Melo Lisboa ed Vega 9743 Oliveira Aacutelamo (1979) Cantar o corpo Uniatildeo Graacutefica Angrense ed autor 9744 Oliveira Aacutelamo (1980) Eu fui ao Pico piquei-Me poesia ed autor 9745 Oliveira Aacutelamo (1982) Uma hortecircnsia para Brianda Sep Atlacircntida 9746 Oliveira Aacutelamo (1982) ldquoAbordagem (teatral) a Quando o mar galgou a terra

de Armando Cocircrtes-Rodriguesrdquo Ensaio Sep Atlacircntida Angra 9747 Oliveira Aacutelamo (1982) Burra preta com uma laacutegrima ed autor 9748 Oliveira Aacutelamo (1982) Itineraacuterio das gaivotas ed SREC DRAC 9749 Oliveira Aacutelamo (1982) laquoNota de abertura ou Almeida Firmino um poeta a

recuperarraquo in Firmino Almeida Narcose obra poeacutetica completa Angra SREC 9-20

9750 Oliveira Aacutelamo (1982) O preseacutepio de esferovite Satildeo Bartolomeu da Terceira com Etelvina Fraga Manuel Fernandes ed DRAC Biblioteca Puacuteblica e Arquivo Distrital de Angra

9751 Oliveira Aacutelamo (1983) in Antologia The Sea Within a selection of Azorean poets ed Gaacutevea-Brown EUA

9752 Oliveira Aacutelamo (1983) in 12 poetas dos Accedilores org e notas de Emanuel Jorge Botelho Lisboa IN-CM

9753 Oliveira Aacutelamo (1983) Nem mais amor que fogo poesia com Emanuel Jorge Botelho Angra ed autor

9754 Oliveira Aacutelamo (1983) Em louvor do Divino Espiacuterito Santo fotomemoacuteria de Francisco Ernesto de Oliveira Martins conto de Aacutelamo Oliveira Angra DRAC Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Emigraccedilatildeo IN-CM

9755 Oliveira Aacutelamo (1984) Missa terra lavrada ed DRAC SREC 9756 Oliveira Aacutelamo (1984) Sabeis quem eacute este Joatildeo Teatro peccedila sobre o beato

Joatildeo Baptista Machado ed Sep Atlacircntida vol 29 3-68 IAC 9757 Oliveira Aacutelamo (1984) Triste vida leva a garccedila 1ordf ed Ed Ulmeiro 9758 Oliveira Aacutelamo (1985) laquoTerceirense e pintor Joseacute Luacutecioraquo Angra IAC

Atlacircntida vol 30 2deg sem 34-35 9759 Oliveira Aacutelamo (1986) Ateacute hoje memoacuterias de catildeo 1ordf ed Ulmeiro 9760 Oliveira Aacutelamo (1986) Textos inocentes Poesia ed autor 9761 Oliveira Aacutelamo (1987) O trajo nos Accedilores com Joatildeo Afonso 2ordf ed Angra

Secretaria Regional dos Assuntos Sociais 9762 Oliveira Aacutelamo (1987) Ateacute hoje memoacuterias de catildeo 2ordf ed Ulmeiro 9763 Oliveira Aacutelamo (1987) Interaccedilatildeo entre atividades culturais na regiatildeo e ao

niacutevel local correntes ldquoascendentesrdquo e ldquodescendentesrdquo Ponta Delgada Universidade dos Accedilores

9764 Oliveira Aacutelamo (1987) Erva-Azeda Poesia Angra [si sd] 9765 Oliveira Aacutelamo (1988) Accedilores fotografia de Mauriacutecio Abreu intro e seleccedilatildeo

de textos de Aacutelamo Oliveira inglecircs por Joaquim Nascimento Setuacutebal Ed M Abreu e V Figueiredo

9766 Oliveira Aacutelamo (1988) Ateacute hoje memoacuterias de catildeo 3ordf ed ed Signo 9767 Oliveira Aacutelamo (1990) ldquoO cenaacuterio de uma geraccedilatildeordquo ineacutedito 19 Congresso

de Literaturas Lusoacutefonas de Expressatildeo Portuguesa Casa dos Accedilores de Lisboa 15-16 jun

9768 Oliveira Aacutelamo (1990) A Madeira eacute um jardim Raminho ed autor Tipografia Serafim Silva Artes Graacuteficas Maia

9769 Oliveira Aacutelamo (1991) Contos com desconto Contos Angra IAC 9770 Oliveira Aacutelamo (1992) Impressotildees de boca Angra SREC DRAC 9771 Oliveira Aacutelamo (1992) Paacutetio drsquoAlfacircndega Meia-Noite romance ficccedilatildeo col

Chatildeo da Palavra Lisboa ed Vega 9772 Oliveira Aacutelamo (1992) Eugeacutenio de Andrade nos Accedilores Fundaccedilatildeo Eugeacutenio

de Andrade Ponta Delgada Cacircmara Municipal 9773 Oliveira Aacutelamo (1994) Manuel seis vezes pensei em ti 2ordf ed Jornal de

Cultura 9774 Oliveira Aacutelamo (1994) Pai a sua benccedilatildeo Antologia de textos de autores

accedilorianos Ponta Delgada DRAC 9775 Oliveira Aacutelamo (1994) A histoacuteria da Belaacutervore na cidade da Burocraacutecia

desenhos de Virgiacutelio Toste Angra Dir Org e Admin Puacuteblica

5

9776 Oliveira Aacutelamo (1994) Accedilores Azores com Mauriacutecio Abreu trad Vanessa Seed ed M Abreu e Victor Figueiredo 1ordf ed Setuacutebal Corlito

9777 Oliveira Aacutelamo (1995) Burra preta com uma laacutegrima 2ordf ed romance Lisboa ed Salamandra

9778 Oliveira Aacutelamo (1995) Os sonhos do infante 2ordf ed Ponta Delgada Jornal de Cultura

9779 Oliveira Aacutelamo (1995) Impressotildees de boca ilustraccedilotildees David Almeida col Gaivota 76 SREC

9780 Oliveira Aacutelamo (1995) Olaacute pobreza textos de pompa e circunstacircncia Ponta Delgada Ed Eacuteter

9781 Oliveira Aacutelamo (1995) E choveu papel com Luiacutes Belerique e Miguel Silveira Angra Dir Reg Org e Administraccedilatildeo Puacuteblica

9782 Oliveira Aacutelamo (1995) Pai a sua benccedilatildeo Antologia de textos accedilorianos org com Ana Maria Bruno Mariana Mesquita e Susana Rocha ed Coingra SREC DRAC

9783 Oliveira Aacutelamo (1996) ldquoO homem suspensordquo Supl Accediloriano de Cultura nordm 43

9784 Oliveira Aacutelamo (1996) Olaacute Pobreza Ensaio ed Jornal de Cultura 9785 Oliveira Aacutelamo (1996) Os sonhos do Infante Angra Grupo Alpendre 9786 Oliveira Aacutelamo (1997) Com perfume e com veneno Lisboa ed Salamandra 9787 Oliveira Aacutelamo (1998) Mar de baleias e de baleeiros com Joatildeo Afonso

Museu dos Baleeiros Lajes ed SREC 9788 Oliveira Aacutelamo (1998) Antoacutenio porta-te como uma flor gravuras de

Antoacutenio Dacosta Lisboa ed Salamandra 9789 Oliveira Aacutelamo (1999) Jaacute natildeo gosto de chocolates Lisboa ed Salamandra 9790 Oliveira Aacutelamo (1999) Morte que mataste lira com Carlos Alberto Moniz

Teatro Lisboa ed Dito E Feito 9791 Oliveira Aacutelamo (1999) Almeida Garrett ningueacutem teatro Alpendre ed

autor 9792 Oliveira Aacutelamo (2000) A solidatildeo da Casa do Regalo Preacutemio de Teatro

Almeida Garrett 1999 ed Salamandra 9793 Oliveira Aacutelamo (2000) Memoacuterias de ilha em sonhos de histoacuteria Poemas

sobre aguarelas de Aacutelvaro Mendes ed Aacutelvaro Mendes 9794 Oliveira Aacutelamo (2000) in Nove Rumores do Mar Antologia de Poesia

Accediloriana Contemporacircnea org Eduardo Bettencourt Pinto e Vamberto Freitas Instituto Camotildees e Seixo Publishers

9795 Oliveira Aacutelamo (2000) Valter Vinagre espiacuterito nas ilhas com Valter Vinagre Manuel Hermiacutenio Monteiro ed Instituto Camotildees MNE

9796 Oliveira Aacutelamo (2001) Cantigas do fogo e da aacutegua quadras sobre aguarelas de Aacutelvaro Mendes Teatro do Ser atuaccedilotildees 1999 2003 2006

9797 Oliveira Aacutelamo (1999) Judite nome de guerra de Almada Negreiro Adaptaccedilatildeo Teatro [si sd]

9798 Oliveira Aacutelamo (1999) In Neo 1 vol 1 com Urbano Bettencourt Adelaide M Batista Carla Silva Pedro Alvim Pinheiro ed Deptordm de Liacutenguas e Literaturas Modernas Universidade dos Accedilores

9799 Oliveira Aacutelamo (1999) O homem que era feito de rede com Katherine Vaz e Vamberto Freitas ed Salamandra

9800 Oliveira Aacutelamo (2003) O meu coraccedilatildeo eacute assim Antologia editada por Diniz Borges ed Cacircmara Municipal de Angra

9801 Oliveira Aacutelamo (2003) Ateacute hoje memoacuterias de catildeo 2ordf ed Salamandra 9802 Oliveira Aacutelamo (2003) Angra cidade do mundo Sanjoaninas 1999

Terceira foto Carlos Garcia ed Fotoletras 9803 Oliveira Aacutelamo (2004) ldquoPedro da Silveira 1922-2003 um breve perfilrdquo

Boletim do Nuacutecleo Cultural da Horta vol 13 9804 Oliveira Aacutelamo (2004) A solidatildeo da Casa do Regalo Almeida Garrett

ningueacutem Teatro 2ordf ed ed Salamandra 9805 Oliveira Aacutelamo de (2005) ldquoAs mulheres em Jaacute natildeo gosto de chocolatesrdquo

Manuela Marujo Aida Baptista e Rosana Barbosa (ed) Congresso A vez e a voz da mulher imigrante portuguesa University of Toronto Dept Spanish and Portuguese 68-71

9806 Oliveira Aacutelamo (2005) Accedilores Azores com Mauriacutecio Abreu trad inglesa de Peter Ingham ed M Abreu e Victor Figueiredo 2ordf ed Setuacutebal Fotografia e Ed Lda

9807 Oliveira Aacutelamo (2006) I no longer like chocolates Trad Diniz Borges San Jose PHPC

9808 Oliveira Aacutelamo (2007) Voices from the islands an Anthology of Azorean Poetry John M K Kinsella Gaacutevea-Brown Publications Providence Rhode Island

9809 Oliveira Aacutelamo (2007) Accedilores profundos profound Azores com Paulo Filipe Monteiro e Madalena San-Bento trad Patriacutecia Correa Costa Porto Caixotim Ed

9810 Oliveira Aacutelamo (2007) Terceira uma ilha sempre em festa fot Joatildeo Costa ediccedilatildeo bilingue Praia da Vitoacuteria ed Blu

9811 Oliveira Aacutelamo (2007) O ciclo do Espiacuterito Santo The Holy Ghost Cycle com Joatildeo Manuel Magina Medina Joatildeo Antoacutenio Martins Ana Martins Angra ed J M M Medina

6

9812 Oliveira Aacutelamo (2008) Jaacute natildeo gosto de chocolates Ed Japonesa Random House Kodansha

9813 Oliveira Aacutelamo (2008) Terceira a ilha dos Impeacuterios Terceira Impeacuterios Island com Maacuterio Duarte e trad de Alexandra Grilo Praia da Vitoacuteria ed Blu

9814 Oliveira Aacutelamo (2010) Andanccedilas de pedra e cal 1ordf ed Praia da Vitoacuteria ed Blu

9815 Oliveira Aacutelamo (2010) ldquoPadre Filho Espiacuterito Santo e o futurordquo IV Congresso Internacional sobre as Festas do Espiacuterito Santo PHPC San Jose Califoacuternia

9816 Oliveira Aacutelamo (2010) In Passos de nossos avoacutes ed Manuela Marujo Aida Baptista [si sd]

9817 Oliveira Aacutelamo (2011) Caneta de tinta permanente na poesia popular dedicado a Manuel Caetano Dias ldquoCanetardquo Nova Graacutefica ed autor

9818 Oliveira Aacutelamo (2011) in Antologia Bilingue de Autores Accedilorianos Contemporacircneos de Helena Chrystello e Rosaacuterio Giratildeo AICL Coloacutequios da Lusofonia ed Calendaacuterio de Letras Vila Nova de Gaia

9819 Oliveira Aacutelamo (2011) in Antologia da Memoacuteria poeacutetica da Guerra Colonial Roberto Vecchi Margarida Calafate Ribeiro (org) Fot Manuel Botelho Notas biograacuteficas Luciana Silva e Moacutenica Silva 1ordf ed Porto Afrontamento Poesia [ISBN 9789723611748] 648 pp

9820 Oliveira Aacutelamo (2012) in Antologia de Autores Accedilorianos Contemporacircneos de Helena Chrystello e Rosaacuterio Giratildeo AICL Coloacutequios da Lusofonia ed Calendaacuterio de Letras Vila Nova de Gaia

9821 Oliveira Aacutelamo (2012) Quatro prisotildees debaixo de armas Teatro baseado no conto homoacutenimo de Vitorino Nemeacutesio ed autor

9822 Oliveira Aacutelamo (2013) ldquoAdelaide Freitasrdquo 19ordm Coloacutequio da Lusofonia Maia Accedilores

9823 Oliveira Aacutelamo (2013) Portugal pelo mundo disperso coord de Teresa Cid 1ordf ed Lisboa Tinta da China

9824 Oliveira Aacutelamo (2013) In Coletacircnea de Textos Dramaacuteticos de Helena Chrystello e Luciacutelia Roxo AICL Coloacutequios da Lusofonia ed Calendaacuterio de Letras Vila Nova de Gaia

9825 Oliveira Aacutelamo (2013) Murmuacuterios com vinho de missa 1ordf ed Angra Letras Lavadas

9826 Oliveira Aacutelamo (2013) Murmuacuterios com vinho de missa 2ordf ed Ponta Delgada Letras Lavadas

9827 Oliveira Aacutelamo (2014) ldquoNo centenaacuterio de nascimento do pintor Antoacutenio Dacosta 1914-2014rdquo IAC Atlacircntida vol LIX

9828 Oliveira Aacutelamo (2014) Marta de Jesus a verdadeira Letras Lavadas

9829 Oliveira Aacutelamo (2014) ldquoMadalena Feacuterinrdquo 20ordm Coloacutequio da Lusofonia Seia 9830 Oliveira Aacutelamo (2015) ldquoUm escritor accediloriano Manuel Machadordquo 24ordm

Coloacutequio da Lusofonia Graciosa Accedilores 9831 Oliveira Aacutelamo (2017) ldquoA laquoKriacutetika Pueacutetikaraquo um texto de Urbano

Bettencourtrdquo 27ordm Coloacutequio da Lusofonia Belmonte

GALIZA 2012

7

NA GALIZA NO 18ordm COLOacuteQUIO DA LUSOFONIA 2012

NA GALIZA NO 18ordm COLOacuteQUIO DA LUSOFONIA 2012

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

8

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

9

MOINHOS 2014 NO 21ordm COLOacuteQUIO

Estoacuteria de Natal Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 25-31

ldquoToda a manhatilde Gustavo andou numa excitaccedilatildeo desusada Levantara-se cedo sem apelos cumprindo prontamente o que noutros dias fazia com demasiada preguiccedila Com a matildee ornamentara a aacutervore de Natal e armara um lindo preseacutepio fulgurante de pedras e musgos com caminhos de areia casas de cartatildeo e pessoas de barro Bombardeou a matildee com perguntas tentando identificar as figuras com as de carne e osso na acircnsia de entender uma vez por todas as mil atribulaccedilotildees que concorreram para que o Menino Jesus fosse nascer na velha arribana dos arredores de Beleacutem Sempre que a curiosidade o fulminava os seus olhos castanhos ficavam ainda maiores e apesar dos seus escassos cinco anos natildeo se deixava satisfazer com qualquer resposta Ouvia e questionava ndash natildeo por desconfiar das palavras da matildee mas porque queria compreender os pormenores e sobretudo desfazer as contradiccedilotildees Intrigava-o a prepotecircncia daquele recenseamento imposto contranatura pelo Imperador de Roma ndash violador poderoso da vontade de povos tatildeo pequenos e indefesos como o da Judeia ndash a quem comparava com ingeacutenua repugnacircncia agrave Ameacuterica agrave Ruacutessia agrave Indoneacutesia nas suas violaccedilotildees internacionais consagradas e legitimadas Era-lhe impensaacutevel que pudessem obrigar a matildee ndash graacutevida do seu proacuteximo irmatildeo ou irmatilde ndash a ir ateacute agrave cidade para um simples dar o nome incomodando-a nesse belo embaraccedilo da vida Ele sabia que era necessaacuterio evitar qualquer perturbaccedilatildeo No ventre da matildee crescia o seu sonho mais apetecido com o qual jaacute partilhava o melhor dos seus afetos Irmatildeo ou irmatilde natildeo era duacutevida que o apoquentasse Apenas desejava que o tempo passasse depressa para que o nascimento se desse Atraveacutes da voz da matildee foi visionando os longos caminhos de terra e pedregulhos as chuvas de dezembro enlameando o corpo e a alma as noites longas e escuras dormidas ao relento de Nazareacute a Beleacutem E imaginava as apreensotildees muacuteltiplas que S Joseacute e Nossa Senhora ruminaram perante os perigos eminentes de assaltos e desfeitas incluindo as pragas engolidas contra quem assinara o edital romano e os incomodava sem rebuccedilos soacute para se dar ao luxo de saber sobre quantos desgraccedilados impunha o seu poder ldquoPorque natildeo foram de camionetardquo perguntou Gustavo E ficou a saber que nesse tempo longiacutenquo e quase lendaacuterio as camionetas eram simplesmente imprevisiacuteveis e que andar de burro era mesmo assim um privileacutegio de remediado Muitos outros ndash

10

mulheres velhos e crianccedilas ndash teratildeo ido a peacute sem mais contemplaccedilotildees Ele nem queria acreditar que pessoas como os avoacutes tivessem sido obrigadas a deixar as suas casas enfrentando os medos de caminhos pejados de salteadores soacute para satisfazerem os caprichos de um imperador que se quedava na sua enorme cidade no esplendor do seu palaacutecio com tanto de lonjura como de tropas e escravos E havia tambeacutem o despeito pela liberdade ferida um oacutedio mudo mas natildeo adormecido de quem se via sujeito ao poder estrangeiro que desrespeitava a alma a cultura a religiatildeo o direito de ser povo ldquoNaqueles dias Beleacutem tinha as casas e as ruas abarrotadas de gente de ruiacutedos e de cheirosrdquo ldquoComo nas touradasrdquo perguntou Gustavo ldquoMais do que nas touradasrdquo confidenciou a matildee Devia ter sido terriacutevel esse chegar a Beleacutem ao fim de dias de atribulada viagem mergulhar num oceano de gente que zaragateava como enxame gigantesco atropelando-se nas bichas de inscriccedilatildeo agraves portas das tabernas das casas de pasto das pensotildees dos abrigos improvisados Gritava-se pelos guardas sempre impassiacuteveis para denunciar os roubos a partilha de um lugar agrave mesa ou de um recanto onde se pudesse dormir Viam-se as consequecircncias da embriaguez atraveacutes das brigas dos insultos dos piropos soezes Mulheres de porte faacutecil deixavam-se apalpar entre gargalhadas e algumas moedas por transeuntes ocasionais As ruas nauseavam de restos de comida de excrementos de corpos por lavar A cidade era um incomensuraacutevel caixote de lixo ldquoQuando S Joseacute e Nossa Senhora entraram em Beleacutem anoitecia Foram percorrendo as ruas por entre pragas e tropeccedilotildees e os relinchos espantados da burra Havia pessoas deitadas nas valetas os corpos entranccedilados num rodilhatildeo de promiscuidades Algumas janelas deixavam passar a luz deacutebil das lamparinas de azeiterdquo ldquoAinda natildeo havia luz eleacutetricardquo interrompeu Gustavo ldquoNatildeo meu filho A eletricidade eacute bastante recenterdquo ldquoCoitadinhos Entatildeo natildeo iluminavam as aacutervores de Natalrdquo ldquoClaro que natildeo O Menino Jesus ainda natildeo tinha nascidordquo ldquoAh simrdquo E Gustavo sorriu da sua proacutepria infantilidade Nossa Senhora chegou exausta Respirava com dificuldade Tinham chegado dores de corte de faca ao seu baixo-ventre Estava na hora do parto S Joseacute desatinou numa corrida desesperada batendo a todas as portas E sempre recebeu a mesma resposta ldquoNatildeo haacute lugar nem para ficar de peacuterdquo Voltou para junto de Nossa Senhora com um desalento mortal A hipoacutetese do seu filho nascer numa rua qualquer de Beleacutem rodeado de gentes desconhecidas e despudoradas fazia-lhe subir agrave garganta uma anguacutestia de voacutemitos e de laacutegrimas Dentro de si gritava ldquoO meu filho natildeo pode nascer aqui Vai morrer de friordquo E com a burra presa pela arreata empurrava as pessoas

para o lado sem que soubesse que direccedilatildeo perseguir Nossa Senhora contorcendo-se de dores e de afliccedilotildees procurava aparentar uma serenidade impossiacutevel ldquoFossem para o hospital mamatilderdquo ldquoTambeacutem natildeo havia hospitaisrdquo ldquoQuando ficavam doentes onde eacute que se tratavamrdquo ldquoProvavelmente tratavam-se em casa A natildeo ser que fossem leprosos ndash uma doenccedila ruim que os afastava dos parentes e dos amigosrdquo ldquoComo a sidardquo Mas Gustavo natildeo esperou pela resposta Impacientava-o ter deixado S Joseacute e Nossa Senhora naufragados nas ruas de Beleacutem e o Menino Jesus quase a nascer Valeu-lhes uma velhinha que disse haver fora das portas da cidade uma pequena arribana coberta de palha Nem agradeceram a informaccedilatildeo Com a burrinha a trote correram para laacute Foi quando se deu o milagre Um pelotatildeo de anjos desceu do ceacuteu e logo agrave saiacuteda de Beleacutem transportou a burrinha com Nossa Senhora e S Joseacute ateacute agrave arribana Os anjos batendo as suas magniacuteficas asas entoavam com vozes celestes muacutesicas que satildeo apenas de anjo Cantavam a noite feliz acompanhados por bandolins violinos violas e um acordeatildeo O mais pequenino ndash roliccedilo loiro e de olhos azuis ndash importunava o coro e a tuna com o seu tambor desritmado pum pum pum pum ndash quatro toques seguidos de rufo Ningueacutem viu Mas foi muito bonito Logo que chegaram os anjos pegaram em paacutes e vassouras e aprestaram-se a limpar o curral a varrer a arribana assustando uma vaca que tambeacutem aguardava a hora de parir De seguida prepararam com feno uma cama para Nossa Senhora enquanto S Joseacute recorrendo a ferramenta abandonada fez das taacutebuas da baiacutea um confortaacutevel bercinho Acenderam duas lanternas que dependuraram sobre a cama onde Nossa Senhora gemia Depois sossegaram em saborosa expectativa De repente ouviram um grito vindo do curral seguido de choro profundo Alguns anjos acorreram lestamente O mais pequenino caiacutera numa poccedila de lama sujando o vestido e as asas Rompera tambeacutem a pele do tambor Ficou com o ar mais desolado do mundo O Chefe dos anjos logo comeccedilou a repreendecirc-lo ameaccedilando-o com o regresso forccedilado ao ceacuteu seguido duma novena de recreios interditos e fechado numa nuvem S Joseacute poreacutem depois de o limpar pacientemente pegou-lhe ao colo e levou-o para dentro Com o susto ateacute fizera chichi na fralda Gustavo sorria A matildee tentava natildeo entrar nos pormenores do parto O seu pudor empurrava-a para devaneios descritivos que Gustavo natildeo perfilava Colocou os anjos do coro e da tuna suspensos dos tirantes em posiccedilotildees de equiliacutebrio acrobaacutetico Fez com que repetissem muito baixinho a noite feliz E foi nesse entretanto que o Menino

11

Jesus nasceu Era meia-noite em ponto S Joseacute tivera o cuidado de confirmar pelo reloacutegio ldquoFoi por cesariana ou parto normalrdquo quis saber Gustavo ldquoParto normalrdquo respondeu a matildee que se apressou a empurrar os anjos pela arribana fora desatinados de contentamento voando sobre os pastores do mundo inteiro e acordando-os com o hino ldquoGloria in excelsis Deordquo Era um barulho intensamente doce iluminado por estrelas danccedilantes Algumas delas por falta de cuidado chegaram mesmo a cair Mas uma outra mais esperta e avisada desviou-se daquela confusatildeo luminosa e foi ateacute ao oriente para depois guiar os quatro reis magos que vinham de Taacutersis Aacutefrica Peacutersia e Sabaacute ateacute agrave arribana de Beleacutem Chegaram trecircs carregados de oiro incenso e mirra ndash ofertas de pouco sentido praacutetico e que mais tarde os inteacuterpretes de evangelhos procuraram em vatildeo descodificar O quarto rei poreacutem perdeu-se Soacute chegou trinta e trecircs anos mais tarde sem nada para oferecer Tambeacutem Jesus jaacute natildeo precisava Pregado na cruz apenas lhe apetecia morrer ldquoA matildee estaacute a desconversarrdquo disse Gustavo E estava O Natal era o Natal e soacute o Menino Jesus interessava Voltaram agrave arribana que estava quase vazia O anjo pequenino teimava com o Menino Jesus para que experimentasse tocar tambor Sem lhe dar qualquer atenccedilatildeo e consciente de tarefas mais urgentes mamava gostosamente A noite arrefecera Nevara sobre a serra e um vento corrupto trazia o frio ateacute agrave arribana O Menino Jesus podia enregelar Entatildeo a vaca e a burrinha aproximaram-se aquecendo-o com o seu bafo quente e huacutemido Nossa Senhora e S Joseacute sorriam e beijavam ternamente o Menino que depois de mamar adormeceu Colocaram-no no bercinho e o anjo do tambor comeccedilou a embalaacute-lo ldquoEacute por isso que o teu preseacutepio tem um anjo uma burrinha e uma vacardquo disse a matildee Gustavo olhou-o e confirmou Depois natildeo se conteve e perguntou ldquoMamatilde o Menino Jesus teve irmatildeosrdquo ldquoNatildeo meu filho Ele eacute sempre o Menino Jesusrdquo Entatildeo abraccedilando ternamente a barriga da matildee concluiu ldquoNatildeo sabe o que perdeurdquordquo

Com Perfume e Com Veneno

laquoOs membros do gabinete do senhor Presidente estavam em pacircnico Haacute dois dias

que procuravam contactar por telefone a pequena ilha para anunciarem a data do programa da visita constitucional Mas o telefone apenas devolvia ruiacutedos intermitentes que natildeo forneciam qualquer interpretaccedilatildeo teacutecnica Era como se estivessem a ligar para o ponto zero do quintal mais proacuteximo E no entanto era urgente cumprir a lei que prescrevia laquoAo menos uma vez por mandato o governo visitaraacute cada uma das suas ilhasraquo Faltava a mais pequena e mais distante Eacute que passado quase um seacuteculo o mandato terminava na semana seguinte e em veacutesperas de eleiccedilotildees nenhuma ilegalidade podia transformar-se em trunfo nas matildeos da oposiccedilatildeo Soacute que o telefone natildeo atinava com aquela ilha pequena e distante O eco nem tinha forccedilas para lhes devolver o apelo

Houve que reunir de emergecircncia As calviacutecies aumentaram branquearam cabelos

fizeram-se esforccedilos suplementares e aconteceu o habitual suores frios e derramamentos cerebrais Mas natildeo conseguiram qualquer contacto com a ilha mesmo com funcionaacuterios destacados para discar o nuacutemero durante vinte quatro horas

Sobre a mesa de reuniotildees puseram todas as hipoacuteteses avaria do uacutenico telefone

da ilha (a Companhia natildeo o podia comprovar e muito menos reparar) que os habitantes andavam a festejar o Espiacuterito Santo (era eacutepoca disso) que estavam a ensaiar folclore (em tempos tinham-lhes prometido um passeio) que os membros da filarmoacutenica estavam a aprender a tocar o hino para a eventual visita do senhor Presidente que se mantinham ocupados em qualquer acontecimento social Mas em

12

circunstacircncia alguma ficariam impedidos de passar mesmo que fugazmente pelo telefone

Puseram entatildeo hipoacuteteses mais convencionais descontentamento com a

governaccedilatildeo (nem sequer conheciam o senhor Presidente) mudanccedila de paacutetria (a Ameacuterica ali tatildeo perto e muito mais rica) algueacutem com a conivecircncia do padre dera o grito de independecircncia e pronto

(hellip) Partiram como calhou Pouca bagagem Nada de coisas supeacuterfluas O Chefe de

gabinete meteu na pasta o mais importante o discurso que o senhor Presidente iria proferir- o mesmo que jaacute lera nas outras ilhas Enfiaram tambeacutem trecircs jornalistas e um operador de cacircmara de televisatildeo para o registo oacutebvio Era o qb O senhor Presidente enjoava a bordo e por simpatia os membros do gabinete enjoavam tambeacutem Era bonito ver toda aquela solidariedade governativa Conseguiam mesmo imitar os roncos presidenciais que com a continuidade desfaleciam ateacute se transformarem em gemidos agoacutenicos Mas soacute numa viagem como aquela se conseguia avaliar o sacrifiacutecio de governar ilhasraquo

(hellip) O barco foi-se aproximando Reduziu a velocidade e deslizou como tapete rolante

ou mosca sobre taccedila de gelatina E quando o cais ficou agrave matildeo de atracar jaacute todos tinham caiacutedo no oceano do desacircnimo Eacute que nem as autoridades autaacuterquicas nem a filarmoacutenica nem grupo de folclore nem o padre nem qualquer pessoa se postara sobre o cais para esperar tatildeo ilustre comitiva Os jornalistas sentiram-se enfim analfabetos e o operador de cacircmara o escravo de todas as maacutequinas inuacuteteis Pela primeira vez era possiacutevel provar que se pode reduzir qualquer governo agrave sua insignificacircnciaraquo

(hellip) Com Perfume e Com Veneno de Aacutelamo de Oliveira Ed Salamandra 1997 in

httplivrariasolmarblogspotpt201005com-perfume-e-com-venenohtml

13

14

Por Uma Laacutegrima Gorda Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 11 a 21

ldquoA lembranccedila mais agradaacutevel que guardo (mas que eacute tambeacutem do tamanho do meu remorso) eacute a da negrinha Segunda Dei por ela no dia em que vi uma laacutegrima gorda rolar-lhe pelo rosto e estatelar-se sobre a mesa Nunca mais vi laacutegrima que se lhe comparasse em tamanho e amargura uma bola de cristal de maga velha Fiquei perplexo sem saber como era possiacutevel acumular tanta dor salgada Estava em Binta terriola da Guineacute-Bissau que fora porto importante da exportaccedilatildeo de mancarra e arroz nos tempos da escravatura suave do imperialismo lusiacuteada Estava ali fardado de soldado mal fardado apegando-me a um quotidiano enformado por horas inseguras por um teacutedio amassado a suor e a cachimbo e resignado a uma paisagem de aacutervores fendida pelas aacuteguas verdes do rio Cacheu ndash alameda por onde passeavam hipopoacutetamos crocodilos e algumas cobras Tudo isto exercia sobre mim e os meus companheiros de destino o efeito de um soporiacutefero maldito ndash mistura de medo e de torpor que nem o luar de marccedilo esmaecia Era como se a vida tivesse adormecido sobre o arame de um circo desprovido de rede em que o equiliacutebrio se desafiava a si proacuteprio e sem que houvesse a miacutenima razatildeo para evitar a queda e a morte Por isso a laacutegrima gorda de Segunda foi a minha taacutebua de salvaccedilatildeo O que ateacute hoje fiz de mais uacutetil foi ensinar a ler e a escrever agraves crianccedilas de Binta Todos os dias ocupaacutevamos uma palhota que fora abandonada logo que o arame farpado delimitou a aacuterea do quartel Apesar da falta de material didaacutetico as crianccedilas de Binta foram desenhando letras formando palavras descobrindo a grafia da voz e aprendendo que para aleacutem dos seus inconfundiacuteveis meacutetodos de comunicaccedilatildeo tambeacutem era possiacutevel fazecirc-lo atraveacutes da escrita e da leitura No meio dos progressos escolares sentia-me pai-natal ao contraacuterio recebendo mais do que dava e por isso mais feliz do que aquele pequeno bando de negrinhos que diariamente me aparecia vestido de trapos e de sujidade e visivelmente mal alimentado Mas nesse tempo de infernos de convivecircncia com a morte com a injusticcedila e outros males complementares a tarefa de professor devolvia-me alguma da dignidade perdida Foi nessa escola com teto de palha que reconquistei o equiliacutebrio mental e sobretudo o quanto necessitava para sobreviver e poder regressar mais tarde com as minhas lembranccedilas e os meus remorsos Segunda frequentava a minha escola e prendi-me a ela com todos os tentaacuteculos do coraccedilatildeo por causa da tal laacutegrima gorda que um dia deixou cair sobre a mesa

Entatildeo soube-lhe o nome e descobri a sua inteligecircncia e a sua beleza Um estuacutepido becirc maiuacutesculo fecirc-la tropeccedilar no complicado desenho ndash as barrigas sobrepostas como mulher graacutevida duas vezes Simplifiquei o desenho e dei-lhe um beijo na testa E logo o becirc saiu com a forma perfeita Dedicou-me a vitoacuteria com uma cariacutecia na matildeo e o sorriso mais cheio de ternura que algueacutem me deu Assim nasceu a nossa amizade que logo se enredou de muitas e complexas cumplicidades Almoccedilou comigo Partilhamos o rancho ndash da minha parte sem qualquer sacrifiacutecio Tratava-se duma mistela de arroz com rodinhas de salsicha enlatada sem outro sabor que natildeo fosse aquela fome tentacular e corrosiva Segunda quase me irritou com o seu apetite demolidor A sua fome era tambeacutem secular Custava-me aceitar essa verdade sem que o estocircmago natildeo me enfezasse com a sua uacutelcera de revolta Olhei-a mais uma vez e soacute vi a claridade inocente dos seus olhos lindos Passou-me a birra Segunda era como se fosse uma flor de maio ndash intacta delicada e por isso suscetiacutevel ldquoViraste infanticidardquo ouvi dizer Ignorei de quem vinha a piada Natildeo me deixei morder Queria Segunda nessa duacutebia qualidade de irmatilde e de filha ldquoQuantos anos tensrdquo ldquoOito chuvardquo Partiu levando uns restos de comida numa lata enferrujada ldquoPa mecircs irmatildeordquo disse Os seus peacutes descalccedilos levantaram uma linha de poacute vermelho que foi sumir-se de encontro aos arrevesados atalhos da tabanca Ateacute parecia que naquela lata supurenta levava a alma da felicidade E era essa reles felicidade que me deixava abaixo de catildeo Levantei-me com a vontade incontrolaacutevel de me vomitar Fui ateacute ao rio Fechei os olhos e respirei fundo O sol bateu-me no corpo com os seus raios de fogo secando o asco que me subia do estocircmago ao ceacuteu-da-boca Sabia que se gritasse me libertaria do remorso subjugante da guerra e das razotildees submersas de um colonialismo apodrecido de poder Mas estava na hora dos silecircncios quentes da vida de Aacutefrica descansar agrave sombra do torpor da sua desgraccedila Acabei por me perder numa sueca encharcado de cerveja Ser luacutecido ali natildeo era virtude que se cultivasse Antes o aacutelcool Infinitamente Acordei com o ciciar de Segunda ldquoSocirc pofessocirc Socirc pofessocircrdquo Esfreguei os olhos afastando as uacuteltimas teimosias de sono e ela laacute estava com o seu sorriso e o meu pequeno-almoccedilo Comemos e fomos para a escola Com o ridiacuteculo da minha acircnsia transferi para Segunda quanto me restava de afeto e de orgulho Babava-me perante a sua capacidade de aprender e sobretudo de apreender os significados complexos da vida Era brilhante Tanto se lhe dava navegar nos mapas sucintos da grandeza do mundo descobrindo gentes de outras longitudes e civilizaccedilotildees como se fixava no desenvolvimento das complicadas operaccedilotildees de aritmeacutetica somando ternura diminuindo tristeza multiplicando afetos dividindo solidariedade A sua vontade era contagiante Alguns meses depois sete dos meus alunos foram a Safim fazer o exame da quarta classe Ficaram aprovados com distinccedilatildeo Mas soacute Segunda me pareceu digna

15

desse privileacutegio Andava eufoacuterico e tambeacutem infantil premiado com o seu sorriso distinto E com a sua pobreza E isso eacute que me constrangia Era uma pobreza sugadora progressiva medonha irresponsaacutevel Segunda era o rosto singular dos seus companheiros de tabanca de Aacutefrica Comiam os restos da tropa Via-lhes as barrigas entumescidas de fome os olhos desvitaminados os ossos salientes sob a pele das disenterias os rostos sujos do chatildeo que lhes servia de cama os cadernos enodoados de terrosas impressotildees digitais Tudo isto me afogava no lodo de um remorso inconsequente e procurava purificar-me no meu afeto por Segunda Dei-lhe uma camisa velha a que cortara as mangas e acinturei com um cordel Ficava-lhe bem Ficou com um ar de rapariguinha exoacutetica tipo modelo para neacutegligeacutee de alta moda No dia seguinte voltou sem a camisa Dera-a ao pai Mas foi a partir desta pequena doaccedilatildeo que virei estilista Mamadu ndash balanta e muccedilulmano ndash herdara de um colono fugido agrave guerra uma velha maacutequina de costura Com ela apertava-nos as fardas a troco de alimentos que surripiaacutevamos da arrecadaccedilatildeo de geacuteneros uns quilos de arroz patildeo oacuteleo latas de conserva Procurei restos de fardas e levei-os ao homem da maacutequina de costura Desenhei um vestido de corpo justo mangas de balatildeo saia com folhos sobrepostos cintura arrematada com laccedilo nas costas ndash tudo dividido pelos dois tecidos possiacuteveis o verde liso e o camuflado ldquoNatildeo nosso sordado Natildeo sei fazerrdquo disse Mamadu Entatildeo talhei alinhavei e dei indicaccedilotildees sobre o que a agulha da maacutequina devia pespontar ldquoNosso sordado ser artistardquo o vestido suspenso pelos ombros e exposto ao olhar admirado de Mamadu Arquivei o elogio e nunca lhe confessei que naquela peccedila de roupa investi toda a minha ciecircncia sobre costura ndash e tambeacutem o meu receio e a minha ignoracircncia Eacute que soacute por acaso o vestido resultara Segunda eacute que ficou ainda mais bonita Pela primeira vez despertara-se-lhe a vaidade de mulher Confundida e enleada mirou-se no espelho do cabo enfermeiro e correu para a tabanca a fim de explorar a seduccedilatildeo do seu vestido novo Poreacutem mais uma vez o imprevisto derrotou-me Segunda apareceu-me com o vestido numa laacutestima Esquecera-me de lhe pedir que o despisse antes de se deitar Mas natildeo desisti Roubei quanto pude na arrecadaccedilatildeo de geacuteneros e fizeram-se vestidos saias calccedilotildees blusas ndash tudo com modelos diferentes - ateacute que fui apanhado pelo capitatildeo que acabou por desconfiar das minhas sucessivas incursotildees agrave palhota do Mamadu ldquoOu vestes todos ou natildeo vestes ningueacutemrdquo ordenou Aceitei o desafio E toca a desenhar a talhar a alinhavar a coser roupas diversas para as crianccedilas da escola Chegou a fazer-se um abate prematuro de fardas para que natildeo faltasse mateacuteria-prima Quando entrei na

escola estremeci Diante de mim estava um pelotatildeo infantil fardado a preceito e sem graccedila Apeteceu-me mandaacute-los despir Pelo menos a nudez dar-lhes-ia na igualdade da cor e da idade o direito agrave diferenccedila Segunda adivinhando a minha dececcedilatildeo logo me consolou ldquoTodos irmatildeordquo Sem duacutevida Mas por que preccedilo Os dias foram pingando Afeto sobre afeto Segunda tornara-se-me insubstituiacutevel Estava no meu coraccedilatildeo como polvo sadio aorta sentimental anjo da guarda de todos os perigos do meu quotidiano Por isso foi num de repente gelatinoso que dei por mim com os dedos a tocar no tempo do regresso Apercebi-me disso pela algazarra do quartel pelas calviacutecies remanescentes pelas barrigas dilatadas de cerveja pelo fel dos fiacutegados desfeitos pelas rugas da pele pelos medos reassumidos E em cada manhatilde ouvia-se um bruaacute florestal selvagem que era a manifestaccedilatildeo menos demente da alegria de acordar e de riscar mais um nuacutemero no calendaacuterio de parede Apercebi-me tambeacutem desse chegar pelo veacuteu de tristeza que se foi adensando no rosto de Segunda e ateacute pela sua impaciecircncia velada que disfarccedilava com algum autoritarismo sobre as outras crianccedilas Chegou mesmo a vingar-se sobre si proacutepria ausentando-se para dentro respirando os silecircncios da alma Cabia-me preparar Segunda para a nossa inevitaacutevel separaccedilatildeo ndash separaccedilatildeo que eu tambeacutem natildeo desejava tatildeo inseguro me sentia quanto agrave minha capacidade de sobreviver sem ela Mas o que mais me afligia era o natildeo ser capaz de lhe deixar uma razatildeo coerente para o nosso adeus naturalmente definitivo Deixara-a prender-se com o melhor dos seus afetos enquanto eu como adulto racional natildeo passara de um saacutedico e egoiacutesta abandonando-a a todas as incertezas do futuro Retirava-lhe a muleta que eu era mesmo no centro do precipiacutecio Precisava urgentemente duma esperanccedila que lhe garantisse a felicidade E afinal nem lhe podia certificar coisas tatildeo banais como a escola roupa comida Felizmente soacute depois de chegar agrave ilha eacute que percebi que era o maior perdedor Nunca mais acordei ao som da sua voz nunca mais passeei na margem do Cacheu guiado pela sua matildeo nunca mais frui dos poentes vermelhos de fogo com a sua cabeccedila no meu regaccedilo Perdi de uma vez por todas o direito aos seus insoacutelitos presentes um bolo de coco feito pela matildee o passarinho muito inho que apanhava na cerca da palhota e depois domesticava o prazer de comer a primeira manga que a estaccedilatildeo amadurava E acabaram os nossos diaacutelogos onde a Poesia pontificava na contenccedilatildeo das palavras e na extensatildeo dos silecircncios E desta vez foi sobre o meu rosto que voltei a sentir o peso disforme da sua laacutegrima gorda Fiquei sem jeito Falei a Segunda na distacircncia real das nossas terras e das nossas culturas da incerteza do meu futuro bastamente comprometido pela inutilidade dos

16

anos vividos e de todo irrecuperaacuteveis Adensei tudo com verdades dramaacuteticas deixando transparentes a incerteza a cobardia e o pecado da omissatildeo Descrevi-lhe depois as deliacutecias da terra prometida como se fossem dela Antevi-lhe um amanhatilde mentirosamente risonho e deixei-lhe relevada a beleza demagoacutegica da sua paacutetria Olhou-me atordoada inconvencida amuada distante ndash maacutescara que soacute desfez na veacutespera da partida Quando os batelotildees ndash que nos levariam Cacheu abaixo rumo a Bissau ndash chegaram rodeados de barcos-patrulha restavam vinte e quatro horas para estarmos juntos Vivemo-las tatildeo intensamente que me deitei exausto No momento de largar fizemos por nos ignorar Combinaacuteramos evitar o melodrama E Segunda laacute ficou sobre o cais de madeira o dedo na boca os olhos avaramente enxutos assombrando a alegria do meu regresso com a sua recalcada tristeza Ficou sozinha ndash sei laacute com que futuro Ainda hoje sabendo que cresceu e que cumpre o seu destino na paacutetria sem as virtudes que lhe fiz crer dou por mim a soccedilobrar com esta saudade e este remorso Sou-lhe eternamente devedor Se lhe dei alguns meses de comezinha felicidade ele deu-me a coragem de continuar vivo num tempo e num lugar onde a morte chegava a ser uma becircnccedilatildeo do ceacuteu Desses tempos de conviacutevio diaacuterio com as mil presenccedilas da morte haacute imagens que continuam a perseguir-me Bem sei que eacute um disparate jaacute que os meus ressentimentos medos e fantasmas natildeo oferecem resistecircncia de maior Tecircm vindo a diluir-se como a tinta dos maus frescos renascentistas Mas natildeo consigo esquecer-me de Segunda com o seu belo corpo esfaimado a sua resignaccedilatildeo e a sua indiferenccedila perante a presenccedila e a superioridade da tropa Por isso espanto-me que volvidos tantos anos a minha principal referecircncia da Guineacute tenha o tamanho dessa negrinha de olhos grandes e de sorriso branco cujo corpo exalava o perfume inexplorado da floresta e que gostava de se sentar comigo sobre o cais de madeira a ver o sol esconder-se atraacutes da mata de Ohio E que me queimou a alma com uma laacutegrima gorda Segunda deve ser agora uma grande poeta Valha-me esta consolaccedilatildeo sofrida que ser poeta natildeo eacute bem que se deseje nem sequer ao inimigordquo

17

2ordm Ato (Extrato) Os Sonhos do Infante Ediccedilatildeo Jornal de Cultura 1995

ldquoO uacuteltimo sonho o re-encontro Talvez ningueacutem saiba porquecirc nem para quecirc ANTOacuteNIO - Quem sois INFANTE - Que pergunta desnecessaacuteria ANTOacuteNIO - Desculpe Parece-me que o conheccedilo INFANTE - E nem precisas de fazer muito esforccedilo ANTOacuteNIO - Assim de branco INFANTE - Jaacute sei Pareccedilo-te uma noiva de bigode ANTOacuteNIO - Desculpai senhor Jaacute natildeo o via haacute tantos anos INFANTE - Haacute muitos anos ANTOacuteNIO - Andaacuteveis vestido de preto INFANTE - A cor eacute-me indiferente Os seacuteculos purificam os tons escuros Deixam aparar as impurezas Depois vatildeo corando Um dia fica soacute a cor precisa e segura ANTOacuteNIO - Natildeo estou a entender INFANTE

18

- Querias apenas dizer que enquanto os homens satildeo de memoacuteria curta a Histoacuteria encarrega-se de gravar quanto interessa na memoacuteria dos livros e das pedras ANTOacuteNIO - Reconheci-o E natildeo nascemos propriamente no mesmo seacuteculo INFANTE - Seria difiacutecil esquecerem-me Natildeo que o natildeo tenham tentado Aliaacutes este meu paiacutes nunca me mereceu ANTOacuteNIO - Como assim INFANTE - Natildeo teve corpo para arrumar a minha alma Natildeo teve matildeos para agarrar quanto lhe dei ANTOacuteNIO - E isso era possiacutevel INFANTE - Claro que era Bastava que houvesse a mesma grandeza de alma Mas natildeo De descoberta a descoberta foram-se enredando em intrigas em oacutedios em venenos Depois de cada conquista queriam outra conquista e perdiam a primeira ANTOacuteNIO - Mudar pode ser sobreviver INFANTE - Natildeo era mudar Era perder Foi assim que os meus sonhos se foram enchendo de brumas e de silecircncios ANTOacuteNIO - Senhor tanto que se fala de si INFANTE - Agora Este paiacutes sempre viveu de luas Todos os anos vai ao bauacute do passado e desenterra um morto Logo se apressa a ver-lhe os ossos a descobrir-lhe as viacutesceras da virtude do saber dos feitos Depressa sai do anonimato para ser o santo o saacutebio

o heroacutei Durante vinte e quatro horas eacute o bombo da festa a masturbaccedilatildeo coletiva o orgulho da comissatildeo ANTOacuteNIO - Jaacute ouvi isso INFANTE - Agraves vezes esquecem-se dele na praccedila Nem sequer tecircm o cuidado de lhe arrumar outra vez os ossos AFONSO - Consigo eacute diferente INFANTE - Comigo nunca foi diferente Andam agora a assoalhar-me numa pressa escolar que mete doacute Obrigam as criancinhas a saber de mim enchendo-lhes a cabeccedila com sonhos que natildeo sonhei ANTOacuteNIO - Todos dizem que sempre foi um sonhador INFANTE - Eram sonhos meus Originais Agora querem fazer passar por meus os seus proacuteprios sonhos numa acircnsia de rasurar pesadelos Quando sonhava sonhava em grande Nunca fui mediacuteocre CONSTANCcedilA - Isso sabemos INFANTE - Natildeo tanto que o tivessem aprendido ROMUALDO - Viajamos tanto INFANTE - Por necessidade Falta-vos a coragem de aventurar ANTOacuteNIO - Aventurar As nossas aventuras satildeo o que satildeo

19

INFANTE - Apenas JOSEacute - Por vezes quisemos imitar-vos INFANTE - Sem chama DIOGO - Quisemos ir aleacutem da ilha completar outras viagens INFANTE - Sem convicccedilatildeo ANTOacuteNIO - Sabemos navegar INFANTE - Sem rumo que interesse FRADE - Estais a retirar-nos a Poesia INFANTE - Natildeo Apenas a tentar dizer que a Poesia eacute sonho e eacute tanto mais grandiosa quanto maior eacute o sonho FRADE - Desisto de falar INFANTE - Desistir eacute um verbo cobarde Na verdade viveis num paiacutes desistido ANTOacuteNIO - Natildeo temos remissatildeo

INFANTE - Depende da vossa forma de redimir FRADE - Um apelo agrave Histoacuteria por exemplo INFANTE - Dei-vos estas ilhas carregadas de Histoacuteria Fiz delas o poiso de todas as viagens Aqui foram dadas em primeira matildeo as novas de achamento Aqui se desfizeram segredos aqui se informaram povos e culturas aqui o mundo se tornou sabido BEATRIZ - Foram outros tempos INFANTE - E deixaram-nos perder JOSEacute Natildeo tanto assim Ainda temos aviotildees que rapidamente nos trazem outras gentes INFANTE - Poucas DIOGO - E todos os dias sabemos do mundo sobre a hora de qualquer acontecimento INFANTE - Entatildeo porque vos queixais CATARINA - Talvez porque apenas recebemos e nada damos LEONOR - Talvez porque natildeo podemos digerir quanto recebemos ROMUALDO - Talvez porque natildeo temos tempo de sonhar connosco proacuteprios

20

AFONSO - Talvez por causa desta solidatildeo mal quebrada MARIA - Ou por termos as portas mal abertas BELISA - Natildeo termos asas INFANTE - Sois na verdade bem pequenos Natildeo sois capazes de desenterrar os vossos heroacuteis os vossos santos os vossos poetas ANTOacuteNIO - Dos nossos heroacuteis e santos pouco sabemos Permanecem quase todos sob o manto diaacutefano das lendas E os poetas satildeo malditos INFANTE - Todos os poetas satildeo malditos Eacute por isso que satildeo poetas Todos os heroacuteis e santos satildeo lendaacuterios Eacute por isso que permanecem Que conheceis de mim ROMUALDO - Pois Talvez o bastante Ou talvez coisa nenhuma JOSEacute - A vossa imagem de negro no poliacuteptico de Satildeo Vicente eacute uma referecircncia obrigatoacuteria INFANTE - Apenas tecircm referecircncias E no entanto eacute o suficiente para que o sonho aconteccedila Para que preparem todas as viagens e as realizem por seus rumos certos e cheguem agraves terras previstas E aiacute aconteccedilam os outros sonhos os do patildeo e os da cultura FRADE - Isso nos disseram aqui haacute poucos anos E nada aconteceu ANTOacuteNIO - Eis como ficaacutemos pobres e mudos

INFANTE - Mas natildeo presos As vossas amarras satildeo mais inventadas que reais Peguem nos vossos poetas e bebam o sangue da sua Poesia Sem amor natildeo haacute sonho possiacutevel (Saiacuteda falsa) ANTOacuteNIO - Jaacute vos ides INFANTE - Jaacute O tempo de estar na vossa memoacuteria chegou ao fim Volto para as paacuteginas da histoacuteria de um livro que vai ficar intocaacutevel na prateleira da vossa estante Eacute o meu tuacutemulo preferido Natildeo quero que me abandonem nas ruas a desbotar em cartazes Natildeo quero ficar em textos de circunstacircncia em programas tidos de prestiacutegio em espetaacuteculos de teatro sem teatralidade capaz O que eu tinha de ser jaacute fui Se me comeram a carne podem roer-me os ossos A um morto tanto se lhe faz ANTOacuteNIO - Afinal tambeacutem perdeste os sonhos e a vontade de sonhar INFANTE - Soacute sonha quem estaacute vivo Vocecircs estatildeo vivos Podem sonhar (Sai)rdquo

RIMANCE DE DONA BALEIA IMPRESSOtildeES DE BOCA EDICcedilOtildeES DRAC 1992 PP 31-32 E 33

ldquoestava dona baleia - foge foge meu amor a regar o seu jardim ateacute agraves aacuteguas do frio com seu repuxo de prata soacute aiacute te sei segura e sorriso de alfenim a regar o teu jardim quando o foguete estalou com teu repuxo de prata laacute no alto da vigia e sorriso de alfenim anunciando a caccedila mas a canoa da morte (que susto santa maria) corre depressa demais dona baleia - coitada daqui lhe aceno a vida logo parou de aguar feito pedrinha do cais as algas que floriam e grito seu nome drsquoaacutegua

21

bem agrave tona do mar (seu matador quem seraacute) eacute entatildeo que a tristeza procura quantos te amam o medo a afliccedilatildeo Jonas deus iemanjaacute saltam do cais dos olhos de nada lhe serve o grito aos ombros do coraccedilatildeo Nada mais posso fazer um grito aberto se ouve o arpatildeo laacute vai direito em eco de mar perfeito no seu peito embater - baleia agrave vista baleia patildeo-nosso de qualquer jeito ai pobre dona baleia e laacute vai dona baleia como te custa viver fugindo pra natildeo morrer - deus a salve do arpatildeo morreu dona baleia deus a queira proteger arpada de oacutedio velho todo o silecircncio do mar ai pobre dona baleia ficou tinto de vermelho como te custa viver os peixes choram tambeacutem envolta em lenccedilol de sangue mar manso todo rasgado dona baleia laacute vem baba de espuma agrave quilha arrastada ateacute ao cais dona baleia procura seu corpo esquartejado escapar da armadilha nas caldeiras derretido que eacute o arpatildeo voador daacute o patildeo amargurado anjo de ferro esguio e algueacutem haacute de gravar nos seus dentes de marfim eram cinco sois a arder o barco que a perseguiu cinco talhadas de lua o arpatildeo que lhe deu fim que deus lhe quis oferecer no ceacuteu as aves e as nuvens correm do sul para o norte agora dona baleia sobre o mar e sobre a ilha jaacute natildeo lhe custa viverrdquo paira o silecircncio da morte e haacute um poeta branco agrave minha porta a bater natildeo vou abri-la natildeo vou jaacute sei o que vem dizer ai pobre dona baleia como te custa viver agrave costa como um poema

a desfazer-se na areia vieram cinco mareacutes chorar a dona baleia duas choravam espuma - branca nuvem de veratildeo traziam como homenagem um buacutezio em cada matildeo as outras duas chegaram fracas de tanto chorar tanto sal nas suas laacutegrimas tanto sal e tanto mar a quinta mareacute natildeo chora traz apenas no regaccedilo um grande ramo de algas amarrado com um laccedilo deixa-o deposto na costa de seguida reza e canta satildeo cantigas de saudade versos presos na garganta desfeitas satildeo as mareacutes

CARTA DE JOAtildeO VALENTE (RAMINHENSE DA TERCEIRA) A SEU IRMAtildeO EMBARCADO NA CALIFOacuteRNIA (GASTINHAS) OU ENTAtildeO CANTIGAS DE COMO SE PICAM OS OLHOS DA MISEacuteRIA EM PICOS DE ABUNDAcircNCIA

ldquoEscrevo-te esta carta Gostei de saber que tens Pra saber como vais passando Friza e um novo mexim A saudade eacute que nos farta Socircfas clausetas sertatildes Mas por caacute vamos andando E alvaroses dingrim Muito bem graccedilas a Deus Jaacute sei que tens um fogatildeo Nestas linhas que alinhavo Uma trela e talaveija Muito mal desejo aos teus E que jaacute vives no Tatildeo Tameacutem sauacutede Por mim cavo - Mas que sorte salvo seija Desta hora a matildeo na pena E cuma pisca de doacutelas Poucas letras e saberes Te vestiste numa estocirca

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

4

OBRAS PUBLICADAS

9730 Oliveira Aacutelamo (1968) A minha matildeo aberta Opuacutesculo ed autor 9731 Oliveira Aacutelamo (1971) Patildeo verde ed autor 9732 Oliveira Aacutelamo (1972) in 14 poetas de aqui e de agora (Antologia) Angra

Uniatildeo Graacutefica Angrense 9733 Oliveira Aacutelamo (1973) Poemas de(s)amor poesia Tip Fernandes 9734 Oliveira Aacutelamo (1974) Morte ou vida do poeta Teatro Angra Livraria

Adriano G de Figueiredo 9735 Oliveira Aacutelamo (1974) Faacutebulas poesia ed autor 9736 Oliveira Aacutelamo (1974) Um Quixote 2ordf ed Teatro 9737 Oliveira Aacutelamo (1976) Os quinze misteriosos misteacuterios ed autor 9738 Oliveira Aacutelamo (1977) Manuel seis vezes pensei em ti ed autor 9739 Oliveira Aacutelamo (1977) in Antologia de poesia accediloriana do seacutec XVIII a 1975

de Pedro da Silveira Lisboa ed Saacute da Costa 9740 Oliveira Aacutelamo (1978) Manuel seis vezes pensei em ti peccedila em duas

talhadas com dez pevides 2ordf ed Angra ed autor 9741 Oliveira Aacutelamo (1978) Almeida Firmino poeta dos Accedilores DRAC SREC 9742 Oliveira Aacutelamo (1978) in Antologia panoracircmica do conto accediloriano seacutecs XIX

e XX org prefaacutecio e notas de Joatildeo de Melo Lisboa ed Vega 9743 Oliveira Aacutelamo (1979) Cantar o corpo Uniatildeo Graacutefica Angrense ed autor 9744 Oliveira Aacutelamo (1980) Eu fui ao Pico piquei-Me poesia ed autor 9745 Oliveira Aacutelamo (1982) Uma hortecircnsia para Brianda Sep Atlacircntida 9746 Oliveira Aacutelamo (1982) ldquoAbordagem (teatral) a Quando o mar galgou a terra

de Armando Cocircrtes-Rodriguesrdquo Ensaio Sep Atlacircntida Angra 9747 Oliveira Aacutelamo (1982) Burra preta com uma laacutegrima ed autor 9748 Oliveira Aacutelamo (1982) Itineraacuterio das gaivotas ed SREC DRAC 9749 Oliveira Aacutelamo (1982) laquoNota de abertura ou Almeida Firmino um poeta a

recuperarraquo in Firmino Almeida Narcose obra poeacutetica completa Angra SREC 9-20

9750 Oliveira Aacutelamo (1982) O preseacutepio de esferovite Satildeo Bartolomeu da Terceira com Etelvina Fraga Manuel Fernandes ed DRAC Biblioteca Puacuteblica e Arquivo Distrital de Angra

9751 Oliveira Aacutelamo (1983) in Antologia The Sea Within a selection of Azorean poets ed Gaacutevea-Brown EUA

9752 Oliveira Aacutelamo (1983) in 12 poetas dos Accedilores org e notas de Emanuel Jorge Botelho Lisboa IN-CM

9753 Oliveira Aacutelamo (1983) Nem mais amor que fogo poesia com Emanuel Jorge Botelho Angra ed autor

9754 Oliveira Aacutelamo (1983) Em louvor do Divino Espiacuterito Santo fotomemoacuteria de Francisco Ernesto de Oliveira Martins conto de Aacutelamo Oliveira Angra DRAC Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Emigraccedilatildeo IN-CM

9755 Oliveira Aacutelamo (1984) Missa terra lavrada ed DRAC SREC 9756 Oliveira Aacutelamo (1984) Sabeis quem eacute este Joatildeo Teatro peccedila sobre o beato

Joatildeo Baptista Machado ed Sep Atlacircntida vol 29 3-68 IAC 9757 Oliveira Aacutelamo (1984) Triste vida leva a garccedila 1ordf ed Ed Ulmeiro 9758 Oliveira Aacutelamo (1985) laquoTerceirense e pintor Joseacute Luacutecioraquo Angra IAC

Atlacircntida vol 30 2deg sem 34-35 9759 Oliveira Aacutelamo (1986) Ateacute hoje memoacuterias de catildeo 1ordf ed Ulmeiro 9760 Oliveira Aacutelamo (1986) Textos inocentes Poesia ed autor 9761 Oliveira Aacutelamo (1987) O trajo nos Accedilores com Joatildeo Afonso 2ordf ed Angra

Secretaria Regional dos Assuntos Sociais 9762 Oliveira Aacutelamo (1987) Ateacute hoje memoacuterias de catildeo 2ordf ed Ulmeiro 9763 Oliveira Aacutelamo (1987) Interaccedilatildeo entre atividades culturais na regiatildeo e ao

niacutevel local correntes ldquoascendentesrdquo e ldquodescendentesrdquo Ponta Delgada Universidade dos Accedilores

9764 Oliveira Aacutelamo (1987) Erva-Azeda Poesia Angra [si sd] 9765 Oliveira Aacutelamo (1988) Accedilores fotografia de Mauriacutecio Abreu intro e seleccedilatildeo

de textos de Aacutelamo Oliveira inglecircs por Joaquim Nascimento Setuacutebal Ed M Abreu e V Figueiredo

9766 Oliveira Aacutelamo (1988) Ateacute hoje memoacuterias de catildeo 3ordf ed ed Signo 9767 Oliveira Aacutelamo (1990) ldquoO cenaacuterio de uma geraccedilatildeordquo ineacutedito 19 Congresso

de Literaturas Lusoacutefonas de Expressatildeo Portuguesa Casa dos Accedilores de Lisboa 15-16 jun

9768 Oliveira Aacutelamo (1990) A Madeira eacute um jardim Raminho ed autor Tipografia Serafim Silva Artes Graacuteficas Maia

9769 Oliveira Aacutelamo (1991) Contos com desconto Contos Angra IAC 9770 Oliveira Aacutelamo (1992) Impressotildees de boca Angra SREC DRAC 9771 Oliveira Aacutelamo (1992) Paacutetio drsquoAlfacircndega Meia-Noite romance ficccedilatildeo col

Chatildeo da Palavra Lisboa ed Vega 9772 Oliveira Aacutelamo (1992) Eugeacutenio de Andrade nos Accedilores Fundaccedilatildeo Eugeacutenio

de Andrade Ponta Delgada Cacircmara Municipal 9773 Oliveira Aacutelamo (1994) Manuel seis vezes pensei em ti 2ordf ed Jornal de

Cultura 9774 Oliveira Aacutelamo (1994) Pai a sua benccedilatildeo Antologia de textos de autores

accedilorianos Ponta Delgada DRAC 9775 Oliveira Aacutelamo (1994) A histoacuteria da Belaacutervore na cidade da Burocraacutecia

desenhos de Virgiacutelio Toste Angra Dir Org e Admin Puacuteblica

5

9776 Oliveira Aacutelamo (1994) Accedilores Azores com Mauriacutecio Abreu trad Vanessa Seed ed M Abreu e Victor Figueiredo 1ordf ed Setuacutebal Corlito

9777 Oliveira Aacutelamo (1995) Burra preta com uma laacutegrima 2ordf ed romance Lisboa ed Salamandra

9778 Oliveira Aacutelamo (1995) Os sonhos do infante 2ordf ed Ponta Delgada Jornal de Cultura

9779 Oliveira Aacutelamo (1995) Impressotildees de boca ilustraccedilotildees David Almeida col Gaivota 76 SREC

9780 Oliveira Aacutelamo (1995) Olaacute pobreza textos de pompa e circunstacircncia Ponta Delgada Ed Eacuteter

9781 Oliveira Aacutelamo (1995) E choveu papel com Luiacutes Belerique e Miguel Silveira Angra Dir Reg Org e Administraccedilatildeo Puacuteblica

9782 Oliveira Aacutelamo (1995) Pai a sua benccedilatildeo Antologia de textos accedilorianos org com Ana Maria Bruno Mariana Mesquita e Susana Rocha ed Coingra SREC DRAC

9783 Oliveira Aacutelamo (1996) ldquoO homem suspensordquo Supl Accediloriano de Cultura nordm 43

9784 Oliveira Aacutelamo (1996) Olaacute Pobreza Ensaio ed Jornal de Cultura 9785 Oliveira Aacutelamo (1996) Os sonhos do Infante Angra Grupo Alpendre 9786 Oliveira Aacutelamo (1997) Com perfume e com veneno Lisboa ed Salamandra 9787 Oliveira Aacutelamo (1998) Mar de baleias e de baleeiros com Joatildeo Afonso

Museu dos Baleeiros Lajes ed SREC 9788 Oliveira Aacutelamo (1998) Antoacutenio porta-te como uma flor gravuras de

Antoacutenio Dacosta Lisboa ed Salamandra 9789 Oliveira Aacutelamo (1999) Jaacute natildeo gosto de chocolates Lisboa ed Salamandra 9790 Oliveira Aacutelamo (1999) Morte que mataste lira com Carlos Alberto Moniz

Teatro Lisboa ed Dito E Feito 9791 Oliveira Aacutelamo (1999) Almeida Garrett ningueacutem teatro Alpendre ed

autor 9792 Oliveira Aacutelamo (2000) A solidatildeo da Casa do Regalo Preacutemio de Teatro

Almeida Garrett 1999 ed Salamandra 9793 Oliveira Aacutelamo (2000) Memoacuterias de ilha em sonhos de histoacuteria Poemas

sobre aguarelas de Aacutelvaro Mendes ed Aacutelvaro Mendes 9794 Oliveira Aacutelamo (2000) in Nove Rumores do Mar Antologia de Poesia

Accediloriana Contemporacircnea org Eduardo Bettencourt Pinto e Vamberto Freitas Instituto Camotildees e Seixo Publishers

9795 Oliveira Aacutelamo (2000) Valter Vinagre espiacuterito nas ilhas com Valter Vinagre Manuel Hermiacutenio Monteiro ed Instituto Camotildees MNE

9796 Oliveira Aacutelamo (2001) Cantigas do fogo e da aacutegua quadras sobre aguarelas de Aacutelvaro Mendes Teatro do Ser atuaccedilotildees 1999 2003 2006

9797 Oliveira Aacutelamo (1999) Judite nome de guerra de Almada Negreiro Adaptaccedilatildeo Teatro [si sd]

9798 Oliveira Aacutelamo (1999) In Neo 1 vol 1 com Urbano Bettencourt Adelaide M Batista Carla Silva Pedro Alvim Pinheiro ed Deptordm de Liacutenguas e Literaturas Modernas Universidade dos Accedilores

9799 Oliveira Aacutelamo (1999) O homem que era feito de rede com Katherine Vaz e Vamberto Freitas ed Salamandra

9800 Oliveira Aacutelamo (2003) O meu coraccedilatildeo eacute assim Antologia editada por Diniz Borges ed Cacircmara Municipal de Angra

9801 Oliveira Aacutelamo (2003) Ateacute hoje memoacuterias de catildeo 2ordf ed Salamandra 9802 Oliveira Aacutelamo (2003) Angra cidade do mundo Sanjoaninas 1999

Terceira foto Carlos Garcia ed Fotoletras 9803 Oliveira Aacutelamo (2004) ldquoPedro da Silveira 1922-2003 um breve perfilrdquo

Boletim do Nuacutecleo Cultural da Horta vol 13 9804 Oliveira Aacutelamo (2004) A solidatildeo da Casa do Regalo Almeida Garrett

ningueacutem Teatro 2ordf ed ed Salamandra 9805 Oliveira Aacutelamo de (2005) ldquoAs mulheres em Jaacute natildeo gosto de chocolatesrdquo

Manuela Marujo Aida Baptista e Rosana Barbosa (ed) Congresso A vez e a voz da mulher imigrante portuguesa University of Toronto Dept Spanish and Portuguese 68-71

9806 Oliveira Aacutelamo (2005) Accedilores Azores com Mauriacutecio Abreu trad inglesa de Peter Ingham ed M Abreu e Victor Figueiredo 2ordf ed Setuacutebal Fotografia e Ed Lda

9807 Oliveira Aacutelamo (2006) I no longer like chocolates Trad Diniz Borges San Jose PHPC

9808 Oliveira Aacutelamo (2007) Voices from the islands an Anthology of Azorean Poetry John M K Kinsella Gaacutevea-Brown Publications Providence Rhode Island

9809 Oliveira Aacutelamo (2007) Accedilores profundos profound Azores com Paulo Filipe Monteiro e Madalena San-Bento trad Patriacutecia Correa Costa Porto Caixotim Ed

9810 Oliveira Aacutelamo (2007) Terceira uma ilha sempre em festa fot Joatildeo Costa ediccedilatildeo bilingue Praia da Vitoacuteria ed Blu

9811 Oliveira Aacutelamo (2007) O ciclo do Espiacuterito Santo The Holy Ghost Cycle com Joatildeo Manuel Magina Medina Joatildeo Antoacutenio Martins Ana Martins Angra ed J M M Medina

6

9812 Oliveira Aacutelamo (2008) Jaacute natildeo gosto de chocolates Ed Japonesa Random House Kodansha

9813 Oliveira Aacutelamo (2008) Terceira a ilha dos Impeacuterios Terceira Impeacuterios Island com Maacuterio Duarte e trad de Alexandra Grilo Praia da Vitoacuteria ed Blu

9814 Oliveira Aacutelamo (2010) Andanccedilas de pedra e cal 1ordf ed Praia da Vitoacuteria ed Blu

9815 Oliveira Aacutelamo (2010) ldquoPadre Filho Espiacuterito Santo e o futurordquo IV Congresso Internacional sobre as Festas do Espiacuterito Santo PHPC San Jose Califoacuternia

9816 Oliveira Aacutelamo (2010) In Passos de nossos avoacutes ed Manuela Marujo Aida Baptista [si sd]

9817 Oliveira Aacutelamo (2011) Caneta de tinta permanente na poesia popular dedicado a Manuel Caetano Dias ldquoCanetardquo Nova Graacutefica ed autor

9818 Oliveira Aacutelamo (2011) in Antologia Bilingue de Autores Accedilorianos Contemporacircneos de Helena Chrystello e Rosaacuterio Giratildeo AICL Coloacutequios da Lusofonia ed Calendaacuterio de Letras Vila Nova de Gaia

9819 Oliveira Aacutelamo (2011) in Antologia da Memoacuteria poeacutetica da Guerra Colonial Roberto Vecchi Margarida Calafate Ribeiro (org) Fot Manuel Botelho Notas biograacuteficas Luciana Silva e Moacutenica Silva 1ordf ed Porto Afrontamento Poesia [ISBN 9789723611748] 648 pp

9820 Oliveira Aacutelamo (2012) in Antologia de Autores Accedilorianos Contemporacircneos de Helena Chrystello e Rosaacuterio Giratildeo AICL Coloacutequios da Lusofonia ed Calendaacuterio de Letras Vila Nova de Gaia

9821 Oliveira Aacutelamo (2012) Quatro prisotildees debaixo de armas Teatro baseado no conto homoacutenimo de Vitorino Nemeacutesio ed autor

9822 Oliveira Aacutelamo (2013) ldquoAdelaide Freitasrdquo 19ordm Coloacutequio da Lusofonia Maia Accedilores

9823 Oliveira Aacutelamo (2013) Portugal pelo mundo disperso coord de Teresa Cid 1ordf ed Lisboa Tinta da China

9824 Oliveira Aacutelamo (2013) In Coletacircnea de Textos Dramaacuteticos de Helena Chrystello e Luciacutelia Roxo AICL Coloacutequios da Lusofonia ed Calendaacuterio de Letras Vila Nova de Gaia

9825 Oliveira Aacutelamo (2013) Murmuacuterios com vinho de missa 1ordf ed Angra Letras Lavadas

9826 Oliveira Aacutelamo (2013) Murmuacuterios com vinho de missa 2ordf ed Ponta Delgada Letras Lavadas

9827 Oliveira Aacutelamo (2014) ldquoNo centenaacuterio de nascimento do pintor Antoacutenio Dacosta 1914-2014rdquo IAC Atlacircntida vol LIX

9828 Oliveira Aacutelamo (2014) Marta de Jesus a verdadeira Letras Lavadas

9829 Oliveira Aacutelamo (2014) ldquoMadalena Feacuterinrdquo 20ordm Coloacutequio da Lusofonia Seia 9830 Oliveira Aacutelamo (2015) ldquoUm escritor accediloriano Manuel Machadordquo 24ordm

Coloacutequio da Lusofonia Graciosa Accedilores 9831 Oliveira Aacutelamo (2017) ldquoA laquoKriacutetika Pueacutetikaraquo um texto de Urbano

Bettencourtrdquo 27ordm Coloacutequio da Lusofonia Belmonte

GALIZA 2012

7

NA GALIZA NO 18ordm COLOacuteQUIO DA LUSOFONIA 2012

NA GALIZA NO 18ordm COLOacuteQUIO DA LUSOFONIA 2012

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

8

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

9

MOINHOS 2014 NO 21ordm COLOacuteQUIO

Estoacuteria de Natal Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 25-31

ldquoToda a manhatilde Gustavo andou numa excitaccedilatildeo desusada Levantara-se cedo sem apelos cumprindo prontamente o que noutros dias fazia com demasiada preguiccedila Com a matildee ornamentara a aacutervore de Natal e armara um lindo preseacutepio fulgurante de pedras e musgos com caminhos de areia casas de cartatildeo e pessoas de barro Bombardeou a matildee com perguntas tentando identificar as figuras com as de carne e osso na acircnsia de entender uma vez por todas as mil atribulaccedilotildees que concorreram para que o Menino Jesus fosse nascer na velha arribana dos arredores de Beleacutem Sempre que a curiosidade o fulminava os seus olhos castanhos ficavam ainda maiores e apesar dos seus escassos cinco anos natildeo se deixava satisfazer com qualquer resposta Ouvia e questionava ndash natildeo por desconfiar das palavras da matildee mas porque queria compreender os pormenores e sobretudo desfazer as contradiccedilotildees Intrigava-o a prepotecircncia daquele recenseamento imposto contranatura pelo Imperador de Roma ndash violador poderoso da vontade de povos tatildeo pequenos e indefesos como o da Judeia ndash a quem comparava com ingeacutenua repugnacircncia agrave Ameacuterica agrave Ruacutessia agrave Indoneacutesia nas suas violaccedilotildees internacionais consagradas e legitimadas Era-lhe impensaacutevel que pudessem obrigar a matildee ndash graacutevida do seu proacuteximo irmatildeo ou irmatilde ndash a ir ateacute agrave cidade para um simples dar o nome incomodando-a nesse belo embaraccedilo da vida Ele sabia que era necessaacuterio evitar qualquer perturbaccedilatildeo No ventre da matildee crescia o seu sonho mais apetecido com o qual jaacute partilhava o melhor dos seus afetos Irmatildeo ou irmatilde natildeo era duacutevida que o apoquentasse Apenas desejava que o tempo passasse depressa para que o nascimento se desse Atraveacutes da voz da matildee foi visionando os longos caminhos de terra e pedregulhos as chuvas de dezembro enlameando o corpo e a alma as noites longas e escuras dormidas ao relento de Nazareacute a Beleacutem E imaginava as apreensotildees muacuteltiplas que S Joseacute e Nossa Senhora ruminaram perante os perigos eminentes de assaltos e desfeitas incluindo as pragas engolidas contra quem assinara o edital romano e os incomodava sem rebuccedilos soacute para se dar ao luxo de saber sobre quantos desgraccedilados impunha o seu poder ldquoPorque natildeo foram de camionetardquo perguntou Gustavo E ficou a saber que nesse tempo longiacutenquo e quase lendaacuterio as camionetas eram simplesmente imprevisiacuteveis e que andar de burro era mesmo assim um privileacutegio de remediado Muitos outros ndash

10

mulheres velhos e crianccedilas ndash teratildeo ido a peacute sem mais contemplaccedilotildees Ele nem queria acreditar que pessoas como os avoacutes tivessem sido obrigadas a deixar as suas casas enfrentando os medos de caminhos pejados de salteadores soacute para satisfazerem os caprichos de um imperador que se quedava na sua enorme cidade no esplendor do seu palaacutecio com tanto de lonjura como de tropas e escravos E havia tambeacutem o despeito pela liberdade ferida um oacutedio mudo mas natildeo adormecido de quem se via sujeito ao poder estrangeiro que desrespeitava a alma a cultura a religiatildeo o direito de ser povo ldquoNaqueles dias Beleacutem tinha as casas e as ruas abarrotadas de gente de ruiacutedos e de cheirosrdquo ldquoComo nas touradasrdquo perguntou Gustavo ldquoMais do que nas touradasrdquo confidenciou a matildee Devia ter sido terriacutevel esse chegar a Beleacutem ao fim de dias de atribulada viagem mergulhar num oceano de gente que zaragateava como enxame gigantesco atropelando-se nas bichas de inscriccedilatildeo agraves portas das tabernas das casas de pasto das pensotildees dos abrigos improvisados Gritava-se pelos guardas sempre impassiacuteveis para denunciar os roubos a partilha de um lugar agrave mesa ou de um recanto onde se pudesse dormir Viam-se as consequecircncias da embriaguez atraveacutes das brigas dos insultos dos piropos soezes Mulheres de porte faacutecil deixavam-se apalpar entre gargalhadas e algumas moedas por transeuntes ocasionais As ruas nauseavam de restos de comida de excrementos de corpos por lavar A cidade era um incomensuraacutevel caixote de lixo ldquoQuando S Joseacute e Nossa Senhora entraram em Beleacutem anoitecia Foram percorrendo as ruas por entre pragas e tropeccedilotildees e os relinchos espantados da burra Havia pessoas deitadas nas valetas os corpos entranccedilados num rodilhatildeo de promiscuidades Algumas janelas deixavam passar a luz deacutebil das lamparinas de azeiterdquo ldquoAinda natildeo havia luz eleacutetricardquo interrompeu Gustavo ldquoNatildeo meu filho A eletricidade eacute bastante recenterdquo ldquoCoitadinhos Entatildeo natildeo iluminavam as aacutervores de Natalrdquo ldquoClaro que natildeo O Menino Jesus ainda natildeo tinha nascidordquo ldquoAh simrdquo E Gustavo sorriu da sua proacutepria infantilidade Nossa Senhora chegou exausta Respirava com dificuldade Tinham chegado dores de corte de faca ao seu baixo-ventre Estava na hora do parto S Joseacute desatinou numa corrida desesperada batendo a todas as portas E sempre recebeu a mesma resposta ldquoNatildeo haacute lugar nem para ficar de peacuterdquo Voltou para junto de Nossa Senhora com um desalento mortal A hipoacutetese do seu filho nascer numa rua qualquer de Beleacutem rodeado de gentes desconhecidas e despudoradas fazia-lhe subir agrave garganta uma anguacutestia de voacutemitos e de laacutegrimas Dentro de si gritava ldquoO meu filho natildeo pode nascer aqui Vai morrer de friordquo E com a burra presa pela arreata empurrava as pessoas

para o lado sem que soubesse que direccedilatildeo perseguir Nossa Senhora contorcendo-se de dores e de afliccedilotildees procurava aparentar uma serenidade impossiacutevel ldquoFossem para o hospital mamatilderdquo ldquoTambeacutem natildeo havia hospitaisrdquo ldquoQuando ficavam doentes onde eacute que se tratavamrdquo ldquoProvavelmente tratavam-se em casa A natildeo ser que fossem leprosos ndash uma doenccedila ruim que os afastava dos parentes e dos amigosrdquo ldquoComo a sidardquo Mas Gustavo natildeo esperou pela resposta Impacientava-o ter deixado S Joseacute e Nossa Senhora naufragados nas ruas de Beleacutem e o Menino Jesus quase a nascer Valeu-lhes uma velhinha que disse haver fora das portas da cidade uma pequena arribana coberta de palha Nem agradeceram a informaccedilatildeo Com a burrinha a trote correram para laacute Foi quando se deu o milagre Um pelotatildeo de anjos desceu do ceacuteu e logo agrave saiacuteda de Beleacutem transportou a burrinha com Nossa Senhora e S Joseacute ateacute agrave arribana Os anjos batendo as suas magniacuteficas asas entoavam com vozes celestes muacutesicas que satildeo apenas de anjo Cantavam a noite feliz acompanhados por bandolins violinos violas e um acordeatildeo O mais pequenino ndash roliccedilo loiro e de olhos azuis ndash importunava o coro e a tuna com o seu tambor desritmado pum pum pum pum ndash quatro toques seguidos de rufo Ningueacutem viu Mas foi muito bonito Logo que chegaram os anjos pegaram em paacutes e vassouras e aprestaram-se a limpar o curral a varrer a arribana assustando uma vaca que tambeacutem aguardava a hora de parir De seguida prepararam com feno uma cama para Nossa Senhora enquanto S Joseacute recorrendo a ferramenta abandonada fez das taacutebuas da baiacutea um confortaacutevel bercinho Acenderam duas lanternas que dependuraram sobre a cama onde Nossa Senhora gemia Depois sossegaram em saborosa expectativa De repente ouviram um grito vindo do curral seguido de choro profundo Alguns anjos acorreram lestamente O mais pequenino caiacutera numa poccedila de lama sujando o vestido e as asas Rompera tambeacutem a pele do tambor Ficou com o ar mais desolado do mundo O Chefe dos anjos logo comeccedilou a repreendecirc-lo ameaccedilando-o com o regresso forccedilado ao ceacuteu seguido duma novena de recreios interditos e fechado numa nuvem S Joseacute poreacutem depois de o limpar pacientemente pegou-lhe ao colo e levou-o para dentro Com o susto ateacute fizera chichi na fralda Gustavo sorria A matildee tentava natildeo entrar nos pormenores do parto O seu pudor empurrava-a para devaneios descritivos que Gustavo natildeo perfilava Colocou os anjos do coro e da tuna suspensos dos tirantes em posiccedilotildees de equiliacutebrio acrobaacutetico Fez com que repetissem muito baixinho a noite feliz E foi nesse entretanto que o Menino

11

Jesus nasceu Era meia-noite em ponto S Joseacute tivera o cuidado de confirmar pelo reloacutegio ldquoFoi por cesariana ou parto normalrdquo quis saber Gustavo ldquoParto normalrdquo respondeu a matildee que se apressou a empurrar os anjos pela arribana fora desatinados de contentamento voando sobre os pastores do mundo inteiro e acordando-os com o hino ldquoGloria in excelsis Deordquo Era um barulho intensamente doce iluminado por estrelas danccedilantes Algumas delas por falta de cuidado chegaram mesmo a cair Mas uma outra mais esperta e avisada desviou-se daquela confusatildeo luminosa e foi ateacute ao oriente para depois guiar os quatro reis magos que vinham de Taacutersis Aacutefrica Peacutersia e Sabaacute ateacute agrave arribana de Beleacutem Chegaram trecircs carregados de oiro incenso e mirra ndash ofertas de pouco sentido praacutetico e que mais tarde os inteacuterpretes de evangelhos procuraram em vatildeo descodificar O quarto rei poreacutem perdeu-se Soacute chegou trinta e trecircs anos mais tarde sem nada para oferecer Tambeacutem Jesus jaacute natildeo precisava Pregado na cruz apenas lhe apetecia morrer ldquoA matildee estaacute a desconversarrdquo disse Gustavo E estava O Natal era o Natal e soacute o Menino Jesus interessava Voltaram agrave arribana que estava quase vazia O anjo pequenino teimava com o Menino Jesus para que experimentasse tocar tambor Sem lhe dar qualquer atenccedilatildeo e consciente de tarefas mais urgentes mamava gostosamente A noite arrefecera Nevara sobre a serra e um vento corrupto trazia o frio ateacute agrave arribana O Menino Jesus podia enregelar Entatildeo a vaca e a burrinha aproximaram-se aquecendo-o com o seu bafo quente e huacutemido Nossa Senhora e S Joseacute sorriam e beijavam ternamente o Menino que depois de mamar adormeceu Colocaram-no no bercinho e o anjo do tambor comeccedilou a embalaacute-lo ldquoEacute por isso que o teu preseacutepio tem um anjo uma burrinha e uma vacardquo disse a matildee Gustavo olhou-o e confirmou Depois natildeo se conteve e perguntou ldquoMamatilde o Menino Jesus teve irmatildeosrdquo ldquoNatildeo meu filho Ele eacute sempre o Menino Jesusrdquo Entatildeo abraccedilando ternamente a barriga da matildee concluiu ldquoNatildeo sabe o que perdeurdquordquo

Com Perfume e Com Veneno

laquoOs membros do gabinete do senhor Presidente estavam em pacircnico Haacute dois dias

que procuravam contactar por telefone a pequena ilha para anunciarem a data do programa da visita constitucional Mas o telefone apenas devolvia ruiacutedos intermitentes que natildeo forneciam qualquer interpretaccedilatildeo teacutecnica Era como se estivessem a ligar para o ponto zero do quintal mais proacuteximo E no entanto era urgente cumprir a lei que prescrevia laquoAo menos uma vez por mandato o governo visitaraacute cada uma das suas ilhasraquo Faltava a mais pequena e mais distante Eacute que passado quase um seacuteculo o mandato terminava na semana seguinte e em veacutesperas de eleiccedilotildees nenhuma ilegalidade podia transformar-se em trunfo nas matildeos da oposiccedilatildeo Soacute que o telefone natildeo atinava com aquela ilha pequena e distante O eco nem tinha forccedilas para lhes devolver o apelo

Houve que reunir de emergecircncia As calviacutecies aumentaram branquearam cabelos

fizeram-se esforccedilos suplementares e aconteceu o habitual suores frios e derramamentos cerebrais Mas natildeo conseguiram qualquer contacto com a ilha mesmo com funcionaacuterios destacados para discar o nuacutemero durante vinte quatro horas

Sobre a mesa de reuniotildees puseram todas as hipoacuteteses avaria do uacutenico telefone

da ilha (a Companhia natildeo o podia comprovar e muito menos reparar) que os habitantes andavam a festejar o Espiacuterito Santo (era eacutepoca disso) que estavam a ensaiar folclore (em tempos tinham-lhes prometido um passeio) que os membros da filarmoacutenica estavam a aprender a tocar o hino para a eventual visita do senhor Presidente que se mantinham ocupados em qualquer acontecimento social Mas em

12

circunstacircncia alguma ficariam impedidos de passar mesmo que fugazmente pelo telefone

Puseram entatildeo hipoacuteteses mais convencionais descontentamento com a

governaccedilatildeo (nem sequer conheciam o senhor Presidente) mudanccedila de paacutetria (a Ameacuterica ali tatildeo perto e muito mais rica) algueacutem com a conivecircncia do padre dera o grito de independecircncia e pronto

(hellip) Partiram como calhou Pouca bagagem Nada de coisas supeacuterfluas O Chefe de

gabinete meteu na pasta o mais importante o discurso que o senhor Presidente iria proferir- o mesmo que jaacute lera nas outras ilhas Enfiaram tambeacutem trecircs jornalistas e um operador de cacircmara de televisatildeo para o registo oacutebvio Era o qb O senhor Presidente enjoava a bordo e por simpatia os membros do gabinete enjoavam tambeacutem Era bonito ver toda aquela solidariedade governativa Conseguiam mesmo imitar os roncos presidenciais que com a continuidade desfaleciam ateacute se transformarem em gemidos agoacutenicos Mas soacute numa viagem como aquela se conseguia avaliar o sacrifiacutecio de governar ilhasraquo

(hellip) O barco foi-se aproximando Reduziu a velocidade e deslizou como tapete rolante

ou mosca sobre taccedila de gelatina E quando o cais ficou agrave matildeo de atracar jaacute todos tinham caiacutedo no oceano do desacircnimo Eacute que nem as autoridades autaacuterquicas nem a filarmoacutenica nem grupo de folclore nem o padre nem qualquer pessoa se postara sobre o cais para esperar tatildeo ilustre comitiva Os jornalistas sentiram-se enfim analfabetos e o operador de cacircmara o escravo de todas as maacutequinas inuacuteteis Pela primeira vez era possiacutevel provar que se pode reduzir qualquer governo agrave sua insignificacircnciaraquo

(hellip) Com Perfume e Com Veneno de Aacutelamo de Oliveira Ed Salamandra 1997 in

httplivrariasolmarblogspotpt201005com-perfume-e-com-venenohtml

13

14

Por Uma Laacutegrima Gorda Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 11 a 21

ldquoA lembranccedila mais agradaacutevel que guardo (mas que eacute tambeacutem do tamanho do meu remorso) eacute a da negrinha Segunda Dei por ela no dia em que vi uma laacutegrima gorda rolar-lhe pelo rosto e estatelar-se sobre a mesa Nunca mais vi laacutegrima que se lhe comparasse em tamanho e amargura uma bola de cristal de maga velha Fiquei perplexo sem saber como era possiacutevel acumular tanta dor salgada Estava em Binta terriola da Guineacute-Bissau que fora porto importante da exportaccedilatildeo de mancarra e arroz nos tempos da escravatura suave do imperialismo lusiacuteada Estava ali fardado de soldado mal fardado apegando-me a um quotidiano enformado por horas inseguras por um teacutedio amassado a suor e a cachimbo e resignado a uma paisagem de aacutervores fendida pelas aacuteguas verdes do rio Cacheu ndash alameda por onde passeavam hipopoacutetamos crocodilos e algumas cobras Tudo isto exercia sobre mim e os meus companheiros de destino o efeito de um soporiacutefero maldito ndash mistura de medo e de torpor que nem o luar de marccedilo esmaecia Era como se a vida tivesse adormecido sobre o arame de um circo desprovido de rede em que o equiliacutebrio se desafiava a si proacuteprio e sem que houvesse a miacutenima razatildeo para evitar a queda e a morte Por isso a laacutegrima gorda de Segunda foi a minha taacutebua de salvaccedilatildeo O que ateacute hoje fiz de mais uacutetil foi ensinar a ler e a escrever agraves crianccedilas de Binta Todos os dias ocupaacutevamos uma palhota que fora abandonada logo que o arame farpado delimitou a aacuterea do quartel Apesar da falta de material didaacutetico as crianccedilas de Binta foram desenhando letras formando palavras descobrindo a grafia da voz e aprendendo que para aleacutem dos seus inconfundiacuteveis meacutetodos de comunicaccedilatildeo tambeacutem era possiacutevel fazecirc-lo atraveacutes da escrita e da leitura No meio dos progressos escolares sentia-me pai-natal ao contraacuterio recebendo mais do que dava e por isso mais feliz do que aquele pequeno bando de negrinhos que diariamente me aparecia vestido de trapos e de sujidade e visivelmente mal alimentado Mas nesse tempo de infernos de convivecircncia com a morte com a injusticcedila e outros males complementares a tarefa de professor devolvia-me alguma da dignidade perdida Foi nessa escola com teto de palha que reconquistei o equiliacutebrio mental e sobretudo o quanto necessitava para sobreviver e poder regressar mais tarde com as minhas lembranccedilas e os meus remorsos Segunda frequentava a minha escola e prendi-me a ela com todos os tentaacuteculos do coraccedilatildeo por causa da tal laacutegrima gorda que um dia deixou cair sobre a mesa

Entatildeo soube-lhe o nome e descobri a sua inteligecircncia e a sua beleza Um estuacutepido becirc maiuacutesculo fecirc-la tropeccedilar no complicado desenho ndash as barrigas sobrepostas como mulher graacutevida duas vezes Simplifiquei o desenho e dei-lhe um beijo na testa E logo o becirc saiu com a forma perfeita Dedicou-me a vitoacuteria com uma cariacutecia na matildeo e o sorriso mais cheio de ternura que algueacutem me deu Assim nasceu a nossa amizade que logo se enredou de muitas e complexas cumplicidades Almoccedilou comigo Partilhamos o rancho ndash da minha parte sem qualquer sacrifiacutecio Tratava-se duma mistela de arroz com rodinhas de salsicha enlatada sem outro sabor que natildeo fosse aquela fome tentacular e corrosiva Segunda quase me irritou com o seu apetite demolidor A sua fome era tambeacutem secular Custava-me aceitar essa verdade sem que o estocircmago natildeo me enfezasse com a sua uacutelcera de revolta Olhei-a mais uma vez e soacute vi a claridade inocente dos seus olhos lindos Passou-me a birra Segunda era como se fosse uma flor de maio ndash intacta delicada e por isso suscetiacutevel ldquoViraste infanticidardquo ouvi dizer Ignorei de quem vinha a piada Natildeo me deixei morder Queria Segunda nessa duacutebia qualidade de irmatilde e de filha ldquoQuantos anos tensrdquo ldquoOito chuvardquo Partiu levando uns restos de comida numa lata enferrujada ldquoPa mecircs irmatildeordquo disse Os seus peacutes descalccedilos levantaram uma linha de poacute vermelho que foi sumir-se de encontro aos arrevesados atalhos da tabanca Ateacute parecia que naquela lata supurenta levava a alma da felicidade E era essa reles felicidade que me deixava abaixo de catildeo Levantei-me com a vontade incontrolaacutevel de me vomitar Fui ateacute ao rio Fechei os olhos e respirei fundo O sol bateu-me no corpo com os seus raios de fogo secando o asco que me subia do estocircmago ao ceacuteu-da-boca Sabia que se gritasse me libertaria do remorso subjugante da guerra e das razotildees submersas de um colonialismo apodrecido de poder Mas estava na hora dos silecircncios quentes da vida de Aacutefrica descansar agrave sombra do torpor da sua desgraccedila Acabei por me perder numa sueca encharcado de cerveja Ser luacutecido ali natildeo era virtude que se cultivasse Antes o aacutelcool Infinitamente Acordei com o ciciar de Segunda ldquoSocirc pofessocirc Socirc pofessocircrdquo Esfreguei os olhos afastando as uacuteltimas teimosias de sono e ela laacute estava com o seu sorriso e o meu pequeno-almoccedilo Comemos e fomos para a escola Com o ridiacuteculo da minha acircnsia transferi para Segunda quanto me restava de afeto e de orgulho Babava-me perante a sua capacidade de aprender e sobretudo de apreender os significados complexos da vida Era brilhante Tanto se lhe dava navegar nos mapas sucintos da grandeza do mundo descobrindo gentes de outras longitudes e civilizaccedilotildees como se fixava no desenvolvimento das complicadas operaccedilotildees de aritmeacutetica somando ternura diminuindo tristeza multiplicando afetos dividindo solidariedade A sua vontade era contagiante Alguns meses depois sete dos meus alunos foram a Safim fazer o exame da quarta classe Ficaram aprovados com distinccedilatildeo Mas soacute Segunda me pareceu digna

15

desse privileacutegio Andava eufoacuterico e tambeacutem infantil premiado com o seu sorriso distinto E com a sua pobreza E isso eacute que me constrangia Era uma pobreza sugadora progressiva medonha irresponsaacutevel Segunda era o rosto singular dos seus companheiros de tabanca de Aacutefrica Comiam os restos da tropa Via-lhes as barrigas entumescidas de fome os olhos desvitaminados os ossos salientes sob a pele das disenterias os rostos sujos do chatildeo que lhes servia de cama os cadernos enodoados de terrosas impressotildees digitais Tudo isto me afogava no lodo de um remorso inconsequente e procurava purificar-me no meu afeto por Segunda Dei-lhe uma camisa velha a que cortara as mangas e acinturei com um cordel Ficava-lhe bem Ficou com um ar de rapariguinha exoacutetica tipo modelo para neacutegligeacutee de alta moda No dia seguinte voltou sem a camisa Dera-a ao pai Mas foi a partir desta pequena doaccedilatildeo que virei estilista Mamadu ndash balanta e muccedilulmano ndash herdara de um colono fugido agrave guerra uma velha maacutequina de costura Com ela apertava-nos as fardas a troco de alimentos que surripiaacutevamos da arrecadaccedilatildeo de geacuteneros uns quilos de arroz patildeo oacuteleo latas de conserva Procurei restos de fardas e levei-os ao homem da maacutequina de costura Desenhei um vestido de corpo justo mangas de balatildeo saia com folhos sobrepostos cintura arrematada com laccedilo nas costas ndash tudo dividido pelos dois tecidos possiacuteveis o verde liso e o camuflado ldquoNatildeo nosso sordado Natildeo sei fazerrdquo disse Mamadu Entatildeo talhei alinhavei e dei indicaccedilotildees sobre o que a agulha da maacutequina devia pespontar ldquoNosso sordado ser artistardquo o vestido suspenso pelos ombros e exposto ao olhar admirado de Mamadu Arquivei o elogio e nunca lhe confessei que naquela peccedila de roupa investi toda a minha ciecircncia sobre costura ndash e tambeacutem o meu receio e a minha ignoracircncia Eacute que soacute por acaso o vestido resultara Segunda eacute que ficou ainda mais bonita Pela primeira vez despertara-se-lhe a vaidade de mulher Confundida e enleada mirou-se no espelho do cabo enfermeiro e correu para a tabanca a fim de explorar a seduccedilatildeo do seu vestido novo Poreacutem mais uma vez o imprevisto derrotou-me Segunda apareceu-me com o vestido numa laacutestima Esquecera-me de lhe pedir que o despisse antes de se deitar Mas natildeo desisti Roubei quanto pude na arrecadaccedilatildeo de geacuteneros e fizeram-se vestidos saias calccedilotildees blusas ndash tudo com modelos diferentes - ateacute que fui apanhado pelo capitatildeo que acabou por desconfiar das minhas sucessivas incursotildees agrave palhota do Mamadu ldquoOu vestes todos ou natildeo vestes ningueacutemrdquo ordenou Aceitei o desafio E toca a desenhar a talhar a alinhavar a coser roupas diversas para as crianccedilas da escola Chegou a fazer-se um abate prematuro de fardas para que natildeo faltasse mateacuteria-prima Quando entrei na

escola estremeci Diante de mim estava um pelotatildeo infantil fardado a preceito e sem graccedila Apeteceu-me mandaacute-los despir Pelo menos a nudez dar-lhes-ia na igualdade da cor e da idade o direito agrave diferenccedila Segunda adivinhando a minha dececcedilatildeo logo me consolou ldquoTodos irmatildeordquo Sem duacutevida Mas por que preccedilo Os dias foram pingando Afeto sobre afeto Segunda tornara-se-me insubstituiacutevel Estava no meu coraccedilatildeo como polvo sadio aorta sentimental anjo da guarda de todos os perigos do meu quotidiano Por isso foi num de repente gelatinoso que dei por mim com os dedos a tocar no tempo do regresso Apercebi-me disso pela algazarra do quartel pelas calviacutecies remanescentes pelas barrigas dilatadas de cerveja pelo fel dos fiacutegados desfeitos pelas rugas da pele pelos medos reassumidos E em cada manhatilde ouvia-se um bruaacute florestal selvagem que era a manifestaccedilatildeo menos demente da alegria de acordar e de riscar mais um nuacutemero no calendaacuterio de parede Apercebi-me tambeacutem desse chegar pelo veacuteu de tristeza que se foi adensando no rosto de Segunda e ateacute pela sua impaciecircncia velada que disfarccedilava com algum autoritarismo sobre as outras crianccedilas Chegou mesmo a vingar-se sobre si proacutepria ausentando-se para dentro respirando os silecircncios da alma Cabia-me preparar Segunda para a nossa inevitaacutevel separaccedilatildeo ndash separaccedilatildeo que eu tambeacutem natildeo desejava tatildeo inseguro me sentia quanto agrave minha capacidade de sobreviver sem ela Mas o que mais me afligia era o natildeo ser capaz de lhe deixar uma razatildeo coerente para o nosso adeus naturalmente definitivo Deixara-a prender-se com o melhor dos seus afetos enquanto eu como adulto racional natildeo passara de um saacutedico e egoiacutesta abandonando-a a todas as incertezas do futuro Retirava-lhe a muleta que eu era mesmo no centro do precipiacutecio Precisava urgentemente duma esperanccedila que lhe garantisse a felicidade E afinal nem lhe podia certificar coisas tatildeo banais como a escola roupa comida Felizmente soacute depois de chegar agrave ilha eacute que percebi que era o maior perdedor Nunca mais acordei ao som da sua voz nunca mais passeei na margem do Cacheu guiado pela sua matildeo nunca mais frui dos poentes vermelhos de fogo com a sua cabeccedila no meu regaccedilo Perdi de uma vez por todas o direito aos seus insoacutelitos presentes um bolo de coco feito pela matildee o passarinho muito inho que apanhava na cerca da palhota e depois domesticava o prazer de comer a primeira manga que a estaccedilatildeo amadurava E acabaram os nossos diaacutelogos onde a Poesia pontificava na contenccedilatildeo das palavras e na extensatildeo dos silecircncios E desta vez foi sobre o meu rosto que voltei a sentir o peso disforme da sua laacutegrima gorda Fiquei sem jeito Falei a Segunda na distacircncia real das nossas terras e das nossas culturas da incerteza do meu futuro bastamente comprometido pela inutilidade dos

16

anos vividos e de todo irrecuperaacuteveis Adensei tudo com verdades dramaacuteticas deixando transparentes a incerteza a cobardia e o pecado da omissatildeo Descrevi-lhe depois as deliacutecias da terra prometida como se fossem dela Antevi-lhe um amanhatilde mentirosamente risonho e deixei-lhe relevada a beleza demagoacutegica da sua paacutetria Olhou-me atordoada inconvencida amuada distante ndash maacutescara que soacute desfez na veacutespera da partida Quando os batelotildees ndash que nos levariam Cacheu abaixo rumo a Bissau ndash chegaram rodeados de barcos-patrulha restavam vinte e quatro horas para estarmos juntos Vivemo-las tatildeo intensamente que me deitei exausto No momento de largar fizemos por nos ignorar Combinaacuteramos evitar o melodrama E Segunda laacute ficou sobre o cais de madeira o dedo na boca os olhos avaramente enxutos assombrando a alegria do meu regresso com a sua recalcada tristeza Ficou sozinha ndash sei laacute com que futuro Ainda hoje sabendo que cresceu e que cumpre o seu destino na paacutetria sem as virtudes que lhe fiz crer dou por mim a soccedilobrar com esta saudade e este remorso Sou-lhe eternamente devedor Se lhe dei alguns meses de comezinha felicidade ele deu-me a coragem de continuar vivo num tempo e num lugar onde a morte chegava a ser uma becircnccedilatildeo do ceacuteu Desses tempos de conviacutevio diaacuterio com as mil presenccedilas da morte haacute imagens que continuam a perseguir-me Bem sei que eacute um disparate jaacute que os meus ressentimentos medos e fantasmas natildeo oferecem resistecircncia de maior Tecircm vindo a diluir-se como a tinta dos maus frescos renascentistas Mas natildeo consigo esquecer-me de Segunda com o seu belo corpo esfaimado a sua resignaccedilatildeo e a sua indiferenccedila perante a presenccedila e a superioridade da tropa Por isso espanto-me que volvidos tantos anos a minha principal referecircncia da Guineacute tenha o tamanho dessa negrinha de olhos grandes e de sorriso branco cujo corpo exalava o perfume inexplorado da floresta e que gostava de se sentar comigo sobre o cais de madeira a ver o sol esconder-se atraacutes da mata de Ohio E que me queimou a alma com uma laacutegrima gorda Segunda deve ser agora uma grande poeta Valha-me esta consolaccedilatildeo sofrida que ser poeta natildeo eacute bem que se deseje nem sequer ao inimigordquo

17

2ordm Ato (Extrato) Os Sonhos do Infante Ediccedilatildeo Jornal de Cultura 1995

ldquoO uacuteltimo sonho o re-encontro Talvez ningueacutem saiba porquecirc nem para quecirc ANTOacuteNIO - Quem sois INFANTE - Que pergunta desnecessaacuteria ANTOacuteNIO - Desculpe Parece-me que o conheccedilo INFANTE - E nem precisas de fazer muito esforccedilo ANTOacuteNIO - Assim de branco INFANTE - Jaacute sei Pareccedilo-te uma noiva de bigode ANTOacuteNIO - Desculpai senhor Jaacute natildeo o via haacute tantos anos INFANTE - Haacute muitos anos ANTOacuteNIO - Andaacuteveis vestido de preto INFANTE - A cor eacute-me indiferente Os seacuteculos purificam os tons escuros Deixam aparar as impurezas Depois vatildeo corando Um dia fica soacute a cor precisa e segura ANTOacuteNIO - Natildeo estou a entender INFANTE

18

- Querias apenas dizer que enquanto os homens satildeo de memoacuteria curta a Histoacuteria encarrega-se de gravar quanto interessa na memoacuteria dos livros e das pedras ANTOacuteNIO - Reconheci-o E natildeo nascemos propriamente no mesmo seacuteculo INFANTE - Seria difiacutecil esquecerem-me Natildeo que o natildeo tenham tentado Aliaacutes este meu paiacutes nunca me mereceu ANTOacuteNIO - Como assim INFANTE - Natildeo teve corpo para arrumar a minha alma Natildeo teve matildeos para agarrar quanto lhe dei ANTOacuteNIO - E isso era possiacutevel INFANTE - Claro que era Bastava que houvesse a mesma grandeza de alma Mas natildeo De descoberta a descoberta foram-se enredando em intrigas em oacutedios em venenos Depois de cada conquista queriam outra conquista e perdiam a primeira ANTOacuteNIO - Mudar pode ser sobreviver INFANTE - Natildeo era mudar Era perder Foi assim que os meus sonhos se foram enchendo de brumas e de silecircncios ANTOacuteNIO - Senhor tanto que se fala de si INFANTE - Agora Este paiacutes sempre viveu de luas Todos os anos vai ao bauacute do passado e desenterra um morto Logo se apressa a ver-lhe os ossos a descobrir-lhe as viacutesceras da virtude do saber dos feitos Depressa sai do anonimato para ser o santo o saacutebio

o heroacutei Durante vinte e quatro horas eacute o bombo da festa a masturbaccedilatildeo coletiva o orgulho da comissatildeo ANTOacuteNIO - Jaacute ouvi isso INFANTE - Agraves vezes esquecem-se dele na praccedila Nem sequer tecircm o cuidado de lhe arrumar outra vez os ossos AFONSO - Consigo eacute diferente INFANTE - Comigo nunca foi diferente Andam agora a assoalhar-me numa pressa escolar que mete doacute Obrigam as criancinhas a saber de mim enchendo-lhes a cabeccedila com sonhos que natildeo sonhei ANTOacuteNIO - Todos dizem que sempre foi um sonhador INFANTE - Eram sonhos meus Originais Agora querem fazer passar por meus os seus proacuteprios sonhos numa acircnsia de rasurar pesadelos Quando sonhava sonhava em grande Nunca fui mediacuteocre CONSTANCcedilA - Isso sabemos INFANTE - Natildeo tanto que o tivessem aprendido ROMUALDO - Viajamos tanto INFANTE - Por necessidade Falta-vos a coragem de aventurar ANTOacuteNIO - Aventurar As nossas aventuras satildeo o que satildeo

19

INFANTE - Apenas JOSEacute - Por vezes quisemos imitar-vos INFANTE - Sem chama DIOGO - Quisemos ir aleacutem da ilha completar outras viagens INFANTE - Sem convicccedilatildeo ANTOacuteNIO - Sabemos navegar INFANTE - Sem rumo que interesse FRADE - Estais a retirar-nos a Poesia INFANTE - Natildeo Apenas a tentar dizer que a Poesia eacute sonho e eacute tanto mais grandiosa quanto maior eacute o sonho FRADE - Desisto de falar INFANTE - Desistir eacute um verbo cobarde Na verdade viveis num paiacutes desistido ANTOacuteNIO - Natildeo temos remissatildeo

INFANTE - Depende da vossa forma de redimir FRADE - Um apelo agrave Histoacuteria por exemplo INFANTE - Dei-vos estas ilhas carregadas de Histoacuteria Fiz delas o poiso de todas as viagens Aqui foram dadas em primeira matildeo as novas de achamento Aqui se desfizeram segredos aqui se informaram povos e culturas aqui o mundo se tornou sabido BEATRIZ - Foram outros tempos INFANTE - E deixaram-nos perder JOSEacute Natildeo tanto assim Ainda temos aviotildees que rapidamente nos trazem outras gentes INFANTE - Poucas DIOGO - E todos os dias sabemos do mundo sobre a hora de qualquer acontecimento INFANTE - Entatildeo porque vos queixais CATARINA - Talvez porque apenas recebemos e nada damos LEONOR - Talvez porque natildeo podemos digerir quanto recebemos ROMUALDO - Talvez porque natildeo temos tempo de sonhar connosco proacuteprios

20

AFONSO - Talvez por causa desta solidatildeo mal quebrada MARIA - Ou por termos as portas mal abertas BELISA - Natildeo termos asas INFANTE - Sois na verdade bem pequenos Natildeo sois capazes de desenterrar os vossos heroacuteis os vossos santos os vossos poetas ANTOacuteNIO - Dos nossos heroacuteis e santos pouco sabemos Permanecem quase todos sob o manto diaacutefano das lendas E os poetas satildeo malditos INFANTE - Todos os poetas satildeo malditos Eacute por isso que satildeo poetas Todos os heroacuteis e santos satildeo lendaacuterios Eacute por isso que permanecem Que conheceis de mim ROMUALDO - Pois Talvez o bastante Ou talvez coisa nenhuma JOSEacute - A vossa imagem de negro no poliacuteptico de Satildeo Vicente eacute uma referecircncia obrigatoacuteria INFANTE - Apenas tecircm referecircncias E no entanto eacute o suficiente para que o sonho aconteccedila Para que preparem todas as viagens e as realizem por seus rumos certos e cheguem agraves terras previstas E aiacute aconteccedilam os outros sonhos os do patildeo e os da cultura FRADE - Isso nos disseram aqui haacute poucos anos E nada aconteceu ANTOacuteNIO - Eis como ficaacutemos pobres e mudos

INFANTE - Mas natildeo presos As vossas amarras satildeo mais inventadas que reais Peguem nos vossos poetas e bebam o sangue da sua Poesia Sem amor natildeo haacute sonho possiacutevel (Saiacuteda falsa) ANTOacuteNIO - Jaacute vos ides INFANTE - Jaacute O tempo de estar na vossa memoacuteria chegou ao fim Volto para as paacuteginas da histoacuteria de um livro que vai ficar intocaacutevel na prateleira da vossa estante Eacute o meu tuacutemulo preferido Natildeo quero que me abandonem nas ruas a desbotar em cartazes Natildeo quero ficar em textos de circunstacircncia em programas tidos de prestiacutegio em espetaacuteculos de teatro sem teatralidade capaz O que eu tinha de ser jaacute fui Se me comeram a carne podem roer-me os ossos A um morto tanto se lhe faz ANTOacuteNIO - Afinal tambeacutem perdeste os sonhos e a vontade de sonhar INFANTE - Soacute sonha quem estaacute vivo Vocecircs estatildeo vivos Podem sonhar (Sai)rdquo

RIMANCE DE DONA BALEIA IMPRESSOtildeES DE BOCA EDICcedilOtildeES DRAC 1992 PP 31-32 E 33

ldquoestava dona baleia - foge foge meu amor a regar o seu jardim ateacute agraves aacuteguas do frio com seu repuxo de prata soacute aiacute te sei segura e sorriso de alfenim a regar o teu jardim quando o foguete estalou com teu repuxo de prata laacute no alto da vigia e sorriso de alfenim anunciando a caccedila mas a canoa da morte (que susto santa maria) corre depressa demais dona baleia - coitada daqui lhe aceno a vida logo parou de aguar feito pedrinha do cais as algas que floriam e grito seu nome drsquoaacutegua

21

bem agrave tona do mar (seu matador quem seraacute) eacute entatildeo que a tristeza procura quantos te amam o medo a afliccedilatildeo Jonas deus iemanjaacute saltam do cais dos olhos de nada lhe serve o grito aos ombros do coraccedilatildeo Nada mais posso fazer um grito aberto se ouve o arpatildeo laacute vai direito em eco de mar perfeito no seu peito embater - baleia agrave vista baleia patildeo-nosso de qualquer jeito ai pobre dona baleia e laacute vai dona baleia como te custa viver fugindo pra natildeo morrer - deus a salve do arpatildeo morreu dona baleia deus a queira proteger arpada de oacutedio velho todo o silecircncio do mar ai pobre dona baleia ficou tinto de vermelho como te custa viver os peixes choram tambeacutem envolta em lenccedilol de sangue mar manso todo rasgado dona baleia laacute vem baba de espuma agrave quilha arrastada ateacute ao cais dona baleia procura seu corpo esquartejado escapar da armadilha nas caldeiras derretido que eacute o arpatildeo voador daacute o patildeo amargurado anjo de ferro esguio e algueacutem haacute de gravar nos seus dentes de marfim eram cinco sois a arder o barco que a perseguiu cinco talhadas de lua o arpatildeo que lhe deu fim que deus lhe quis oferecer no ceacuteu as aves e as nuvens correm do sul para o norte agora dona baleia sobre o mar e sobre a ilha jaacute natildeo lhe custa viverrdquo paira o silecircncio da morte e haacute um poeta branco agrave minha porta a bater natildeo vou abri-la natildeo vou jaacute sei o que vem dizer ai pobre dona baleia como te custa viver agrave costa como um poema

a desfazer-se na areia vieram cinco mareacutes chorar a dona baleia duas choravam espuma - branca nuvem de veratildeo traziam como homenagem um buacutezio em cada matildeo as outras duas chegaram fracas de tanto chorar tanto sal nas suas laacutegrimas tanto sal e tanto mar a quinta mareacute natildeo chora traz apenas no regaccedilo um grande ramo de algas amarrado com um laccedilo deixa-o deposto na costa de seguida reza e canta satildeo cantigas de saudade versos presos na garganta desfeitas satildeo as mareacutes

CARTA DE JOAtildeO VALENTE (RAMINHENSE DA TERCEIRA) A SEU IRMAtildeO EMBARCADO NA CALIFOacuteRNIA (GASTINHAS) OU ENTAtildeO CANTIGAS DE COMO SE PICAM OS OLHOS DA MISEacuteRIA EM PICOS DE ABUNDAcircNCIA

ldquoEscrevo-te esta carta Gostei de saber que tens Pra saber como vais passando Friza e um novo mexim A saudade eacute que nos farta Socircfas clausetas sertatildes Mas por caacute vamos andando E alvaroses dingrim Muito bem graccedilas a Deus Jaacute sei que tens um fogatildeo Nestas linhas que alinhavo Uma trela e talaveija Muito mal desejo aos teus E que jaacute vives no Tatildeo Tameacutem sauacutede Por mim cavo - Mas que sorte salvo seija Desta hora a matildeo na pena E cuma pisca de doacutelas Poucas letras e saberes Te vestiste numa estocirca

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

5

9776 Oliveira Aacutelamo (1994) Accedilores Azores com Mauriacutecio Abreu trad Vanessa Seed ed M Abreu e Victor Figueiredo 1ordf ed Setuacutebal Corlito

9777 Oliveira Aacutelamo (1995) Burra preta com uma laacutegrima 2ordf ed romance Lisboa ed Salamandra

9778 Oliveira Aacutelamo (1995) Os sonhos do infante 2ordf ed Ponta Delgada Jornal de Cultura

9779 Oliveira Aacutelamo (1995) Impressotildees de boca ilustraccedilotildees David Almeida col Gaivota 76 SREC

9780 Oliveira Aacutelamo (1995) Olaacute pobreza textos de pompa e circunstacircncia Ponta Delgada Ed Eacuteter

9781 Oliveira Aacutelamo (1995) E choveu papel com Luiacutes Belerique e Miguel Silveira Angra Dir Reg Org e Administraccedilatildeo Puacuteblica

9782 Oliveira Aacutelamo (1995) Pai a sua benccedilatildeo Antologia de textos accedilorianos org com Ana Maria Bruno Mariana Mesquita e Susana Rocha ed Coingra SREC DRAC

9783 Oliveira Aacutelamo (1996) ldquoO homem suspensordquo Supl Accediloriano de Cultura nordm 43

9784 Oliveira Aacutelamo (1996) Olaacute Pobreza Ensaio ed Jornal de Cultura 9785 Oliveira Aacutelamo (1996) Os sonhos do Infante Angra Grupo Alpendre 9786 Oliveira Aacutelamo (1997) Com perfume e com veneno Lisboa ed Salamandra 9787 Oliveira Aacutelamo (1998) Mar de baleias e de baleeiros com Joatildeo Afonso

Museu dos Baleeiros Lajes ed SREC 9788 Oliveira Aacutelamo (1998) Antoacutenio porta-te como uma flor gravuras de

Antoacutenio Dacosta Lisboa ed Salamandra 9789 Oliveira Aacutelamo (1999) Jaacute natildeo gosto de chocolates Lisboa ed Salamandra 9790 Oliveira Aacutelamo (1999) Morte que mataste lira com Carlos Alberto Moniz

Teatro Lisboa ed Dito E Feito 9791 Oliveira Aacutelamo (1999) Almeida Garrett ningueacutem teatro Alpendre ed

autor 9792 Oliveira Aacutelamo (2000) A solidatildeo da Casa do Regalo Preacutemio de Teatro

Almeida Garrett 1999 ed Salamandra 9793 Oliveira Aacutelamo (2000) Memoacuterias de ilha em sonhos de histoacuteria Poemas

sobre aguarelas de Aacutelvaro Mendes ed Aacutelvaro Mendes 9794 Oliveira Aacutelamo (2000) in Nove Rumores do Mar Antologia de Poesia

Accediloriana Contemporacircnea org Eduardo Bettencourt Pinto e Vamberto Freitas Instituto Camotildees e Seixo Publishers

9795 Oliveira Aacutelamo (2000) Valter Vinagre espiacuterito nas ilhas com Valter Vinagre Manuel Hermiacutenio Monteiro ed Instituto Camotildees MNE

9796 Oliveira Aacutelamo (2001) Cantigas do fogo e da aacutegua quadras sobre aguarelas de Aacutelvaro Mendes Teatro do Ser atuaccedilotildees 1999 2003 2006

9797 Oliveira Aacutelamo (1999) Judite nome de guerra de Almada Negreiro Adaptaccedilatildeo Teatro [si sd]

9798 Oliveira Aacutelamo (1999) In Neo 1 vol 1 com Urbano Bettencourt Adelaide M Batista Carla Silva Pedro Alvim Pinheiro ed Deptordm de Liacutenguas e Literaturas Modernas Universidade dos Accedilores

9799 Oliveira Aacutelamo (1999) O homem que era feito de rede com Katherine Vaz e Vamberto Freitas ed Salamandra

9800 Oliveira Aacutelamo (2003) O meu coraccedilatildeo eacute assim Antologia editada por Diniz Borges ed Cacircmara Municipal de Angra

9801 Oliveira Aacutelamo (2003) Ateacute hoje memoacuterias de catildeo 2ordf ed Salamandra 9802 Oliveira Aacutelamo (2003) Angra cidade do mundo Sanjoaninas 1999

Terceira foto Carlos Garcia ed Fotoletras 9803 Oliveira Aacutelamo (2004) ldquoPedro da Silveira 1922-2003 um breve perfilrdquo

Boletim do Nuacutecleo Cultural da Horta vol 13 9804 Oliveira Aacutelamo (2004) A solidatildeo da Casa do Regalo Almeida Garrett

ningueacutem Teatro 2ordf ed ed Salamandra 9805 Oliveira Aacutelamo de (2005) ldquoAs mulheres em Jaacute natildeo gosto de chocolatesrdquo

Manuela Marujo Aida Baptista e Rosana Barbosa (ed) Congresso A vez e a voz da mulher imigrante portuguesa University of Toronto Dept Spanish and Portuguese 68-71

9806 Oliveira Aacutelamo (2005) Accedilores Azores com Mauriacutecio Abreu trad inglesa de Peter Ingham ed M Abreu e Victor Figueiredo 2ordf ed Setuacutebal Fotografia e Ed Lda

9807 Oliveira Aacutelamo (2006) I no longer like chocolates Trad Diniz Borges San Jose PHPC

9808 Oliveira Aacutelamo (2007) Voices from the islands an Anthology of Azorean Poetry John M K Kinsella Gaacutevea-Brown Publications Providence Rhode Island

9809 Oliveira Aacutelamo (2007) Accedilores profundos profound Azores com Paulo Filipe Monteiro e Madalena San-Bento trad Patriacutecia Correa Costa Porto Caixotim Ed

9810 Oliveira Aacutelamo (2007) Terceira uma ilha sempre em festa fot Joatildeo Costa ediccedilatildeo bilingue Praia da Vitoacuteria ed Blu

9811 Oliveira Aacutelamo (2007) O ciclo do Espiacuterito Santo The Holy Ghost Cycle com Joatildeo Manuel Magina Medina Joatildeo Antoacutenio Martins Ana Martins Angra ed J M M Medina

6

9812 Oliveira Aacutelamo (2008) Jaacute natildeo gosto de chocolates Ed Japonesa Random House Kodansha

9813 Oliveira Aacutelamo (2008) Terceira a ilha dos Impeacuterios Terceira Impeacuterios Island com Maacuterio Duarte e trad de Alexandra Grilo Praia da Vitoacuteria ed Blu

9814 Oliveira Aacutelamo (2010) Andanccedilas de pedra e cal 1ordf ed Praia da Vitoacuteria ed Blu

9815 Oliveira Aacutelamo (2010) ldquoPadre Filho Espiacuterito Santo e o futurordquo IV Congresso Internacional sobre as Festas do Espiacuterito Santo PHPC San Jose Califoacuternia

9816 Oliveira Aacutelamo (2010) In Passos de nossos avoacutes ed Manuela Marujo Aida Baptista [si sd]

9817 Oliveira Aacutelamo (2011) Caneta de tinta permanente na poesia popular dedicado a Manuel Caetano Dias ldquoCanetardquo Nova Graacutefica ed autor

9818 Oliveira Aacutelamo (2011) in Antologia Bilingue de Autores Accedilorianos Contemporacircneos de Helena Chrystello e Rosaacuterio Giratildeo AICL Coloacutequios da Lusofonia ed Calendaacuterio de Letras Vila Nova de Gaia

9819 Oliveira Aacutelamo (2011) in Antologia da Memoacuteria poeacutetica da Guerra Colonial Roberto Vecchi Margarida Calafate Ribeiro (org) Fot Manuel Botelho Notas biograacuteficas Luciana Silva e Moacutenica Silva 1ordf ed Porto Afrontamento Poesia [ISBN 9789723611748] 648 pp

9820 Oliveira Aacutelamo (2012) in Antologia de Autores Accedilorianos Contemporacircneos de Helena Chrystello e Rosaacuterio Giratildeo AICL Coloacutequios da Lusofonia ed Calendaacuterio de Letras Vila Nova de Gaia

9821 Oliveira Aacutelamo (2012) Quatro prisotildees debaixo de armas Teatro baseado no conto homoacutenimo de Vitorino Nemeacutesio ed autor

9822 Oliveira Aacutelamo (2013) ldquoAdelaide Freitasrdquo 19ordm Coloacutequio da Lusofonia Maia Accedilores

9823 Oliveira Aacutelamo (2013) Portugal pelo mundo disperso coord de Teresa Cid 1ordf ed Lisboa Tinta da China

9824 Oliveira Aacutelamo (2013) In Coletacircnea de Textos Dramaacuteticos de Helena Chrystello e Luciacutelia Roxo AICL Coloacutequios da Lusofonia ed Calendaacuterio de Letras Vila Nova de Gaia

9825 Oliveira Aacutelamo (2013) Murmuacuterios com vinho de missa 1ordf ed Angra Letras Lavadas

9826 Oliveira Aacutelamo (2013) Murmuacuterios com vinho de missa 2ordf ed Ponta Delgada Letras Lavadas

9827 Oliveira Aacutelamo (2014) ldquoNo centenaacuterio de nascimento do pintor Antoacutenio Dacosta 1914-2014rdquo IAC Atlacircntida vol LIX

9828 Oliveira Aacutelamo (2014) Marta de Jesus a verdadeira Letras Lavadas

9829 Oliveira Aacutelamo (2014) ldquoMadalena Feacuterinrdquo 20ordm Coloacutequio da Lusofonia Seia 9830 Oliveira Aacutelamo (2015) ldquoUm escritor accediloriano Manuel Machadordquo 24ordm

Coloacutequio da Lusofonia Graciosa Accedilores 9831 Oliveira Aacutelamo (2017) ldquoA laquoKriacutetika Pueacutetikaraquo um texto de Urbano

Bettencourtrdquo 27ordm Coloacutequio da Lusofonia Belmonte

GALIZA 2012

7

NA GALIZA NO 18ordm COLOacuteQUIO DA LUSOFONIA 2012

NA GALIZA NO 18ordm COLOacuteQUIO DA LUSOFONIA 2012

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

8

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

9

MOINHOS 2014 NO 21ordm COLOacuteQUIO

Estoacuteria de Natal Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 25-31

ldquoToda a manhatilde Gustavo andou numa excitaccedilatildeo desusada Levantara-se cedo sem apelos cumprindo prontamente o que noutros dias fazia com demasiada preguiccedila Com a matildee ornamentara a aacutervore de Natal e armara um lindo preseacutepio fulgurante de pedras e musgos com caminhos de areia casas de cartatildeo e pessoas de barro Bombardeou a matildee com perguntas tentando identificar as figuras com as de carne e osso na acircnsia de entender uma vez por todas as mil atribulaccedilotildees que concorreram para que o Menino Jesus fosse nascer na velha arribana dos arredores de Beleacutem Sempre que a curiosidade o fulminava os seus olhos castanhos ficavam ainda maiores e apesar dos seus escassos cinco anos natildeo se deixava satisfazer com qualquer resposta Ouvia e questionava ndash natildeo por desconfiar das palavras da matildee mas porque queria compreender os pormenores e sobretudo desfazer as contradiccedilotildees Intrigava-o a prepotecircncia daquele recenseamento imposto contranatura pelo Imperador de Roma ndash violador poderoso da vontade de povos tatildeo pequenos e indefesos como o da Judeia ndash a quem comparava com ingeacutenua repugnacircncia agrave Ameacuterica agrave Ruacutessia agrave Indoneacutesia nas suas violaccedilotildees internacionais consagradas e legitimadas Era-lhe impensaacutevel que pudessem obrigar a matildee ndash graacutevida do seu proacuteximo irmatildeo ou irmatilde ndash a ir ateacute agrave cidade para um simples dar o nome incomodando-a nesse belo embaraccedilo da vida Ele sabia que era necessaacuterio evitar qualquer perturbaccedilatildeo No ventre da matildee crescia o seu sonho mais apetecido com o qual jaacute partilhava o melhor dos seus afetos Irmatildeo ou irmatilde natildeo era duacutevida que o apoquentasse Apenas desejava que o tempo passasse depressa para que o nascimento se desse Atraveacutes da voz da matildee foi visionando os longos caminhos de terra e pedregulhos as chuvas de dezembro enlameando o corpo e a alma as noites longas e escuras dormidas ao relento de Nazareacute a Beleacutem E imaginava as apreensotildees muacuteltiplas que S Joseacute e Nossa Senhora ruminaram perante os perigos eminentes de assaltos e desfeitas incluindo as pragas engolidas contra quem assinara o edital romano e os incomodava sem rebuccedilos soacute para se dar ao luxo de saber sobre quantos desgraccedilados impunha o seu poder ldquoPorque natildeo foram de camionetardquo perguntou Gustavo E ficou a saber que nesse tempo longiacutenquo e quase lendaacuterio as camionetas eram simplesmente imprevisiacuteveis e que andar de burro era mesmo assim um privileacutegio de remediado Muitos outros ndash

10

mulheres velhos e crianccedilas ndash teratildeo ido a peacute sem mais contemplaccedilotildees Ele nem queria acreditar que pessoas como os avoacutes tivessem sido obrigadas a deixar as suas casas enfrentando os medos de caminhos pejados de salteadores soacute para satisfazerem os caprichos de um imperador que se quedava na sua enorme cidade no esplendor do seu palaacutecio com tanto de lonjura como de tropas e escravos E havia tambeacutem o despeito pela liberdade ferida um oacutedio mudo mas natildeo adormecido de quem se via sujeito ao poder estrangeiro que desrespeitava a alma a cultura a religiatildeo o direito de ser povo ldquoNaqueles dias Beleacutem tinha as casas e as ruas abarrotadas de gente de ruiacutedos e de cheirosrdquo ldquoComo nas touradasrdquo perguntou Gustavo ldquoMais do que nas touradasrdquo confidenciou a matildee Devia ter sido terriacutevel esse chegar a Beleacutem ao fim de dias de atribulada viagem mergulhar num oceano de gente que zaragateava como enxame gigantesco atropelando-se nas bichas de inscriccedilatildeo agraves portas das tabernas das casas de pasto das pensotildees dos abrigos improvisados Gritava-se pelos guardas sempre impassiacuteveis para denunciar os roubos a partilha de um lugar agrave mesa ou de um recanto onde se pudesse dormir Viam-se as consequecircncias da embriaguez atraveacutes das brigas dos insultos dos piropos soezes Mulheres de porte faacutecil deixavam-se apalpar entre gargalhadas e algumas moedas por transeuntes ocasionais As ruas nauseavam de restos de comida de excrementos de corpos por lavar A cidade era um incomensuraacutevel caixote de lixo ldquoQuando S Joseacute e Nossa Senhora entraram em Beleacutem anoitecia Foram percorrendo as ruas por entre pragas e tropeccedilotildees e os relinchos espantados da burra Havia pessoas deitadas nas valetas os corpos entranccedilados num rodilhatildeo de promiscuidades Algumas janelas deixavam passar a luz deacutebil das lamparinas de azeiterdquo ldquoAinda natildeo havia luz eleacutetricardquo interrompeu Gustavo ldquoNatildeo meu filho A eletricidade eacute bastante recenterdquo ldquoCoitadinhos Entatildeo natildeo iluminavam as aacutervores de Natalrdquo ldquoClaro que natildeo O Menino Jesus ainda natildeo tinha nascidordquo ldquoAh simrdquo E Gustavo sorriu da sua proacutepria infantilidade Nossa Senhora chegou exausta Respirava com dificuldade Tinham chegado dores de corte de faca ao seu baixo-ventre Estava na hora do parto S Joseacute desatinou numa corrida desesperada batendo a todas as portas E sempre recebeu a mesma resposta ldquoNatildeo haacute lugar nem para ficar de peacuterdquo Voltou para junto de Nossa Senhora com um desalento mortal A hipoacutetese do seu filho nascer numa rua qualquer de Beleacutem rodeado de gentes desconhecidas e despudoradas fazia-lhe subir agrave garganta uma anguacutestia de voacutemitos e de laacutegrimas Dentro de si gritava ldquoO meu filho natildeo pode nascer aqui Vai morrer de friordquo E com a burra presa pela arreata empurrava as pessoas

para o lado sem que soubesse que direccedilatildeo perseguir Nossa Senhora contorcendo-se de dores e de afliccedilotildees procurava aparentar uma serenidade impossiacutevel ldquoFossem para o hospital mamatilderdquo ldquoTambeacutem natildeo havia hospitaisrdquo ldquoQuando ficavam doentes onde eacute que se tratavamrdquo ldquoProvavelmente tratavam-se em casa A natildeo ser que fossem leprosos ndash uma doenccedila ruim que os afastava dos parentes e dos amigosrdquo ldquoComo a sidardquo Mas Gustavo natildeo esperou pela resposta Impacientava-o ter deixado S Joseacute e Nossa Senhora naufragados nas ruas de Beleacutem e o Menino Jesus quase a nascer Valeu-lhes uma velhinha que disse haver fora das portas da cidade uma pequena arribana coberta de palha Nem agradeceram a informaccedilatildeo Com a burrinha a trote correram para laacute Foi quando se deu o milagre Um pelotatildeo de anjos desceu do ceacuteu e logo agrave saiacuteda de Beleacutem transportou a burrinha com Nossa Senhora e S Joseacute ateacute agrave arribana Os anjos batendo as suas magniacuteficas asas entoavam com vozes celestes muacutesicas que satildeo apenas de anjo Cantavam a noite feliz acompanhados por bandolins violinos violas e um acordeatildeo O mais pequenino ndash roliccedilo loiro e de olhos azuis ndash importunava o coro e a tuna com o seu tambor desritmado pum pum pum pum ndash quatro toques seguidos de rufo Ningueacutem viu Mas foi muito bonito Logo que chegaram os anjos pegaram em paacutes e vassouras e aprestaram-se a limpar o curral a varrer a arribana assustando uma vaca que tambeacutem aguardava a hora de parir De seguida prepararam com feno uma cama para Nossa Senhora enquanto S Joseacute recorrendo a ferramenta abandonada fez das taacutebuas da baiacutea um confortaacutevel bercinho Acenderam duas lanternas que dependuraram sobre a cama onde Nossa Senhora gemia Depois sossegaram em saborosa expectativa De repente ouviram um grito vindo do curral seguido de choro profundo Alguns anjos acorreram lestamente O mais pequenino caiacutera numa poccedila de lama sujando o vestido e as asas Rompera tambeacutem a pele do tambor Ficou com o ar mais desolado do mundo O Chefe dos anjos logo comeccedilou a repreendecirc-lo ameaccedilando-o com o regresso forccedilado ao ceacuteu seguido duma novena de recreios interditos e fechado numa nuvem S Joseacute poreacutem depois de o limpar pacientemente pegou-lhe ao colo e levou-o para dentro Com o susto ateacute fizera chichi na fralda Gustavo sorria A matildee tentava natildeo entrar nos pormenores do parto O seu pudor empurrava-a para devaneios descritivos que Gustavo natildeo perfilava Colocou os anjos do coro e da tuna suspensos dos tirantes em posiccedilotildees de equiliacutebrio acrobaacutetico Fez com que repetissem muito baixinho a noite feliz E foi nesse entretanto que o Menino

11

Jesus nasceu Era meia-noite em ponto S Joseacute tivera o cuidado de confirmar pelo reloacutegio ldquoFoi por cesariana ou parto normalrdquo quis saber Gustavo ldquoParto normalrdquo respondeu a matildee que se apressou a empurrar os anjos pela arribana fora desatinados de contentamento voando sobre os pastores do mundo inteiro e acordando-os com o hino ldquoGloria in excelsis Deordquo Era um barulho intensamente doce iluminado por estrelas danccedilantes Algumas delas por falta de cuidado chegaram mesmo a cair Mas uma outra mais esperta e avisada desviou-se daquela confusatildeo luminosa e foi ateacute ao oriente para depois guiar os quatro reis magos que vinham de Taacutersis Aacutefrica Peacutersia e Sabaacute ateacute agrave arribana de Beleacutem Chegaram trecircs carregados de oiro incenso e mirra ndash ofertas de pouco sentido praacutetico e que mais tarde os inteacuterpretes de evangelhos procuraram em vatildeo descodificar O quarto rei poreacutem perdeu-se Soacute chegou trinta e trecircs anos mais tarde sem nada para oferecer Tambeacutem Jesus jaacute natildeo precisava Pregado na cruz apenas lhe apetecia morrer ldquoA matildee estaacute a desconversarrdquo disse Gustavo E estava O Natal era o Natal e soacute o Menino Jesus interessava Voltaram agrave arribana que estava quase vazia O anjo pequenino teimava com o Menino Jesus para que experimentasse tocar tambor Sem lhe dar qualquer atenccedilatildeo e consciente de tarefas mais urgentes mamava gostosamente A noite arrefecera Nevara sobre a serra e um vento corrupto trazia o frio ateacute agrave arribana O Menino Jesus podia enregelar Entatildeo a vaca e a burrinha aproximaram-se aquecendo-o com o seu bafo quente e huacutemido Nossa Senhora e S Joseacute sorriam e beijavam ternamente o Menino que depois de mamar adormeceu Colocaram-no no bercinho e o anjo do tambor comeccedilou a embalaacute-lo ldquoEacute por isso que o teu preseacutepio tem um anjo uma burrinha e uma vacardquo disse a matildee Gustavo olhou-o e confirmou Depois natildeo se conteve e perguntou ldquoMamatilde o Menino Jesus teve irmatildeosrdquo ldquoNatildeo meu filho Ele eacute sempre o Menino Jesusrdquo Entatildeo abraccedilando ternamente a barriga da matildee concluiu ldquoNatildeo sabe o que perdeurdquordquo

Com Perfume e Com Veneno

laquoOs membros do gabinete do senhor Presidente estavam em pacircnico Haacute dois dias

que procuravam contactar por telefone a pequena ilha para anunciarem a data do programa da visita constitucional Mas o telefone apenas devolvia ruiacutedos intermitentes que natildeo forneciam qualquer interpretaccedilatildeo teacutecnica Era como se estivessem a ligar para o ponto zero do quintal mais proacuteximo E no entanto era urgente cumprir a lei que prescrevia laquoAo menos uma vez por mandato o governo visitaraacute cada uma das suas ilhasraquo Faltava a mais pequena e mais distante Eacute que passado quase um seacuteculo o mandato terminava na semana seguinte e em veacutesperas de eleiccedilotildees nenhuma ilegalidade podia transformar-se em trunfo nas matildeos da oposiccedilatildeo Soacute que o telefone natildeo atinava com aquela ilha pequena e distante O eco nem tinha forccedilas para lhes devolver o apelo

Houve que reunir de emergecircncia As calviacutecies aumentaram branquearam cabelos

fizeram-se esforccedilos suplementares e aconteceu o habitual suores frios e derramamentos cerebrais Mas natildeo conseguiram qualquer contacto com a ilha mesmo com funcionaacuterios destacados para discar o nuacutemero durante vinte quatro horas

Sobre a mesa de reuniotildees puseram todas as hipoacuteteses avaria do uacutenico telefone

da ilha (a Companhia natildeo o podia comprovar e muito menos reparar) que os habitantes andavam a festejar o Espiacuterito Santo (era eacutepoca disso) que estavam a ensaiar folclore (em tempos tinham-lhes prometido um passeio) que os membros da filarmoacutenica estavam a aprender a tocar o hino para a eventual visita do senhor Presidente que se mantinham ocupados em qualquer acontecimento social Mas em

12

circunstacircncia alguma ficariam impedidos de passar mesmo que fugazmente pelo telefone

Puseram entatildeo hipoacuteteses mais convencionais descontentamento com a

governaccedilatildeo (nem sequer conheciam o senhor Presidente) mudanccedila de paacutetria (a Ameacuterica ali tatildeo perto e muito mais rica) algueacutem com a conivecircncia do padre dera o grito de independecircncia e pronto

(hellip) Partiram como calhou Pouca bagagem Nada de coisas supeacuterfluas O Chefe de

gabinete meteu na pasta o mais importante o discurso que o senhor Presidente iria proferir- o mesmo que jaacute lera nas outras ilhas Enfiaram tambeacutem trecircs jornalistas e um operador de cacircmara de televisatildeo para o registo oacutebvio Era o qb O senhor Presidente enjoava a bordo e por simpatia os membros do gabinete enjoavam tambeacutem Era bonito ver toda aquela solidariedade governativa Conseguiam mesmo imitar os roncos presidenciais que com a continuidade desfaleciam ateacute se transformarem em gemidos agoacutenicos Mas soacute numa viagem como aquela se conseguia avaliar o sacrifiacutecio de governar ilhasraquo

(hellip) O barco foi-se aproximando Reduziu a velocidade e deslizou como tapete rolante

ou mosca sobre taccedila de gelatina E quando o cais ficou agrave matildeo de atracar jaacute todos tinham caiacutedo no oceano do desacircnimo Eacute que nem as autoridades autaacuterquicas nem a filarmoacutenica nem grupo de folclore nem o padre nem qualquer pessoa se postara sobre o cais para esperar tatildeo ilustre comitiva Os jornalistas sentiram-se enfim analfabetos e o operador de cacircmara o escravo de todas as maacutequinas inuacuteteis Pela primeira vez era possiacutevel provar que se pode reduzir qualquer governo agrave sua insignificacircnciaraquo

(hellip) Com Perfume e Com Veneno de Aacutelamo de Oliveira Ed Salamandra 1997 in

httplivrariasolmarblogspotpt201005com-perfume-e-com-venenohtml

13

14

Por Uma Laacutegrima Gorda Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 11 a 21

ldquoA lembranccedila mais agradaacutevel que guardo (mas que eacute tambeacutem do tamanho do meu remorso) eacute a da negrinha Segunda Dei por ela no dia em que vi uma laacutegrima gorda rolar-lhe pelo rosto e estatelar-se sobre a mesa Nunca mais vi laacutegrima que se lhe comparasse em tamanho e amargura uma bola de cristal de maga velha Fiquei perplexo sem saber como era possiacutevel acumular tanta dor salgada Estava em Binta terriola da Guineacute-Bissau que fora porto importante da exportaccedilatildeo de mancarra e arroz nos tempos da escravatura suave do imperialismo lusiacuteada Estava ali fardado de soldado mal fardado apegando-me a um quotidiano enformado por horas inseguras por um teacutedio amassado a suor e a cachimbo e resignado a uma paisagem de aacutervores fendida pelas aacuteguas verdes do rio Cacheu ndash alameda por onde passeavam hipopoacutetamos crocodilos e algumas cobras Tudo isto exercia sobre mim e os meus companheiros de destino o efeito de um soporiacutefero maldito ndash mistura de medo e de torpor que nem o luar de marccedilo esmaecia Era como se a vida tivesse adormecido sobre o arame de um circo desprovido de rede em que o equiliacutebrio se desafiava a si proacuteprio e sem que houvesse a miacutenima razatildeo para evitar a queda e a morte Por isso a laacutegrima gorda de Segunda foi a minha taacutebua de salvaccedilatildeo O que ateacute hoje fiz de mais uacutetil foi ensinar a ler e a escrever agraves crianccedilas de Binta Todos os dias ocupaacutevamos uma palhota que fora abandonada logo que o arame farpado delimitou a aacuterea do quartel Apesar da falta de material didaacutetico as crianccedilas de Binta foram desenhando letras formando palavras descobrindo a grafia da voz e aprendendo que para aleacutem dos seus inconfundiacuteveis meacutetodos de comunicaccedilatildeo tambeacutem era possiacutevel fazecirc-lo atraveacutes da escrita e da leitura No meio dos progressos escolares sentia-me pai-natal ao contraacuterio recebendo mais do que dava e por isso mais feliz do que aquele pequeno bando de negrinhos que diariamente me aparecia vestido de trapos e de sujidade e visivelmente mal alimentado Mas nesse tempo de infernos de convivecircncia com a morte com a injusticcedila e outros males complementares a tarefa de professor devolvia-me alguma da dignidade perdida Foi nessa escola com teto de palha que reconquistei o equiliacutebrio mental e sobretudo o quanto necessitava para sobreviver e poder regressar mais tarde com as minhas lembranccedilas e os meus remorsos Segunda frequentava a minha escola e prendi-me a ela com todos os tentaacuteculos do coraccedilatildeo por causa da tal laacutegrima gorda que um dia deixou cair sobre a mesa

Entatildeo soube-lhe o nome e descobri a sua inteligecircncia e a sua beleza Um estuacutepido becirc maiuacutesculo fecirc-la tropeccedilar no complicado desenho ndash as barrigas sobrepostas como mulher graacutevida duas vezes Simplifiquei o desenho e dei-lhe um beijo na testa E logo o becirc saiu com a forma perfeita Dedicou-me a vitoacuteria com uma cariacutecia na matildeo e o sorriso mais cheio de ternura que algueacutem me deu Assim nasceu a nossa amizade que logo se enredou de muitas e complexas cumplicidades Almoccedilou comigo Partilhamos o rancho ndash da minha parte sem qualquer sacrifiacutecio Tratava-se duma mistela de arroz com rodinhas de salsicha enlatada sem outro sabor que natildeo fosse aquela fome tentacular e corrosiva Segunda quase me irritou com o seu apetite demolidor A sua fome era tambeacutem secular Custava-me aceitar essa verdade sem que o estocircmago natildeo me enfezasse com a sua uacutelcera de revolta Olhei-a mais uma vez e soacute vi a claridade inocente dos seus olhos lindos Passou-me a birra Segunda era como se fosse uma flor de maio ndash intacta delicada e por isso suscetiacutevel ldquoViraste infanticidardquo ouvi dizer Ignorei de quem vinha a piada Natildeo me deixei morder Queria Segunda nessa duacutebia qualidade de irmatilde e de filha ldquoQuantos anos tensrdquo ldquoOito chuvardquo Partiu levando uns restos de comida numa lata enferrujada ldquoPa mecircs irmatildeordquo disse Os seus peacutes descalccedilos levantaram uma linha de poacute vermelho que foi sumir-se de encontro aos arrevesados atalhos da tabanca Ateacute parecia que naquela lata supurenta levava a alma da felicidade E era essa reles felicidade que me deixava abaixo de catildeo Levantei-me com a vontade incontrolaacutevel de me vomitar Fui ateacute ao rio Fechei os olhos e respirei fundo O sol bateu-me no corpo com os seus raios de fogo secando o asco que me subia do estocircmago ao ceacuteu-da-boca Sabia que se gritasse me libertaria do remorso subjugante da guerra e das razotildees submersas de um colonialismo apodrecido de poder Mas estava na hora dos silecircncios quentes da vida de Aacutefrica descansar agrave sombra do torpor da sua desgraccedila Acabei por me perder numa sueca encharcado de cerveja Ser luacutecido ali natildeo era virtude que se cultivasse Antes o aacutelcool Infinitamente Acordei com o ciciar de Segunda ldquoSocirc pofessocirc Socirc pofessocircrdquo Esfreguei os olhos afastando as uacuteltimas teimosias de sono e ela laacute estava com o seu sorriso e o meu pequeno-almoccedilo Comemos e fomos para a escola Com o ridiacuteculo da minha acircnsia transferi para Segunda quanto me restava de afeto e de orgulho Babava-me perante a sua capacidade de aprender e sobretudo de apreender os significados complexos da vida Era brilhante Tanto se lhe dava navegar nos mapas sucintos da grandeza do mundo descobrindo gentes de outras longitudes e civilizaccedilotildees como se fixava no desenvolvimento das complicadas operaccedilotildees de aritmeacutetica somando ternura diminuindo tristeza multiplicando afetos dividindo solidariedade A sua vontade era contagiante Alguns meses depois sete dos meus alunos foram a Safim fazer o exame da quarta classe Ficaram aprovados com distinccedilatildeo Mas soacute Segunda me pareceu digna

15

desse privileacutegio Andava eufoacuterico e tambeacutem infantil premiado com o seu sorriso distinto E com a sua pobreza E isso eacute que me constrangia Era uma pobreza sugadora progressiva medonha irresponsaacutevel Segunda era o rosto singular dos seus companheiros de tabanca de Aacutefrica Comiam os restos da tropa Via-lhes as barrigas entumescidas de fome os olhos desvitaminados os ossos salientes sob a pele das disenterias os rostos sujos do chatildeo que lhes servia de cama os cadernos enodoados de terrosas impressotildees digitais Tudo isto me afogava no lodo de um remorso inconsequente e procurava purificar-me no meu afeto por Segunda Dei-lhe uma camisa velha a que cortara as mangas e acinturei com um cordel Ficava-lhe bem Ficou com um ar de rapariguinha exoacutetica tipo modelo para neacutegligeacutee de alta moda No dia seguinte voltou sem a camisa Dera-a ao pai Mas foi a partir desta pequena doaccedilatildeo que virei estilista Mamadu ndash balanta e muccedilulmano ndash herdara de um colono fugido agrave guerra uma velha maacutequina de costura Com ela apertava-nos as fardas a troco de alimentos que surripiaacutevamos da arrecadaccedilatildeo de geacuteneros uns quilos de arroz patildeo oacuteleo latas de conserva Procurei restos de fardas e levei-os ao homem da maacutequina de costura Desenhei um vestido de corpo justo mangas de balatildeo saia com folhos sobrepostos cintura arrematada com laccedilo nas costas ndash tudo dividido pelos dois tecidos possiacuteveis o verde liso e o camuflado ldquoNatildeo nosso sordado Natildeo sei fazerrdquo disse Mamadu Entatildeo talhei alinhavei e dei indicaccedilotildees sobre o que a agulha da maacutequina devia pespontar ldquoNosso sordado ser artistardquo o vestido suspenso pelos ombros e exposto ao olhar admirado de Mamadu Arquivei o elogio e nunca lhe confessei que naquela peccedila de roupa investi toda a minha ciecircncia sobre costura ndash e tambeacutem o meu receio e a minha ignoracircncia Eacute que soacute por acaso o vestido resultara Segunda eacute que ficou ainda mais bonita Pela primeira vez despertara-se-lhe a vaidade de mulher Confundida e enleada mirou-se no espelho do cabo enfermeiro e correu para a tabanca a fim de explorar a seduccedilatildeo do seu vestido novo Poreacutem mais uma vez o imprevisto derrotou-me Segunda apareceu-me com o vestido numa laacutestima Esquecera-me de lhe pedir que o despisse antes de se deitar Mas natildeo desisti Roubei quanto pude na arrecadaccedilatildeo de geacuteneros e fizeram-se vestidos saias calccedilotildees blusas ndash tudo com modelos diferentes - ateacute que fui apanhado pelo capitatildeo que acabou por desconfiar das minhas sucessivas incursotildees agrave palhota do Mamadu ldquoOu vestes todos ou natildeo vestes ningueacutemrdquo ordenou Aceitei o desafio E toca a desenhar a talhar a alinhavar a coser roupas diversas para as crianccedilas da escola Chegou a fazer-se um abate prematuro de fardas para que natildeo faltasse mateacuteria-prima Quando entrei na

escola estremeci Diante de mim estava um pelotatildeo infantil fardado a preceito e sem graccedila Apeteceu-me mandaacute-los despir Pelo menos a nudez dar-lhes-ia na igualdade da cor e da idade o direito agrave diferenccedila Segunda adivinhando a minha dececcedilatildeo logo me consolou ldquoTodos irmatildeordquo Sem duacutevida Mas por que preccedilo Os dias foram pingando Afeto sobre afeto Segunda tornara-se-me insubstituiacutevel Estava no meu coraccedilatildeo como polvo sadio aorta sentimental anjo da guarda de todos os perigos do meu quotidiano Por isso foi num de repente gelatinoso que dei por mim com os dedos a tocar no tempo do regresso Apercebi-me disso pela algazarra do quartel pelas calviacutecies remanescentes pelas barrigas dilatadas de cerveja pelo fel dos fiacutegados desfeitos pelas rugas da pele pelos medos reassumidos E em cada manhatilde ouvia-se um bruaacute florestal selvagem que era a manifestaccedilatildeo menos demente da alegria de acordar e de riscar mais um nuacutemero no calendaacuterio de parede Apercebi-me tambeacutem desse chegar pelo veacuteu de tristeza que se foi adensando no rosto de Segunda e ateacute pela sua impaciecircncia velada que disfarccedilava com algum autoritarismo sobre as outras crianccedilas Chegou mesmo a vingar-se sobre si proacutepria ausentando-se para dentro respirando os silecircncios da alma Cabia-me preparar Segunda para a nossa inevitaacutevel separaccedilatildeo ndash separaccedilatildeo que eu tambeacutem natildeo desejava tatildeo inseguro me sentia quanto agrave minha capacidade de sobreviver sem ela Mas o que mais me afligia era o natildeo ser capaz de lhe deixar uma razatildeo coerente para o nosso adeus naturalmente definitivo Deixara-a prender-se com o melhor dos seus afetos enquanto eu como adulto racional natildeo passara de um saacutedico e egoiacutesta abandonando-a a todas as incertezas do futuro Retirava-lhe a muleta que eu era mesmo no centro do precipiacutecio Precisava urgentemente duma esperanccedila que lhe garantisse a felicidade E afinal nem lhe podia certificar coisas tatildeo banais como a escola roupa comida Felizmente soacute depois de chegar agrave ilha eacute que percebi que era o maior perdedor Nunca mais acordei ao som da sua voz nunca mais passeei na margem do Cacheu guiado pela sua matildeo nunca mais frui dos poentes vermelhos de fogo com a sua cabeccedila no meu regaccedilo Perdi de uma vez por todas o direito aos seus insoacutelitos presentes um bolo de coco feito pela matildee o passarinho muito inho que apanhava na cerca da palhota e depois domesticava o prazer de comer a primeira manga que a estaccedilatildeo amadurava E acabaram os nossos diaacutelogos onde a Poesia pontificava na contenccedilatildeo das palavras e na extensatildeo dos silecircncios E desta vez foi sobre o meu rosto que voltei a sentir o peso disforme da sua laacutegrima gorda Fiquei sem jeito Falei a Segunda na distacircncia real das nossas terras e das nossas culturas da incerteza do meu futuro bastamente comprometido pela inutilidade dos

16

anos vividos e de todo irrecuperaacuteveis Adensei tudo com verdades dramaacuteticas deixando transparentes a incerteza a cobardia e o pecado da omissatildeo Descrevi-lhe depois as deliacutecias da terra prometida como se fossem dela Antevi-lhe um amanhatilde mentirosamente risonho e deixei-lhe relevada a beleza demagoacutegica da sua paacutetria Olhou-me atordoada inconvencida amuada distante ndash maacutescara que soacute desfez na veacutespera da partida Quando os batelotildees ndash que nos levariam Cacheu abaixo rumo a Bissau ndash chegaram rodeados de barcos-patrulha restavam vinte e quatro horas para estarmos juntos Vivemo-las tatildeo intensamente que me deitei exausto No momento de largar fizemos por nos ignorar Combinaacuteramos evitar o melodrama E Segunda laacute ficou sobre o cais de madeira o dedo na boca os olhos avaramente enxutos assombrando a alegria do meu regresso com a sua recalcada tristeza Ficou sozinha ndash sei laacute com que futuro Ainda hoje sabendo que cresceu e que cumpre o seu destino na paacutetria sem as virtudes que lhe fiz crer dou por mim a soccedilobrar com esta saudade e este remorso Sou-lhe eternamente devedor Se lhe dei alguns meses de comezinha felicidade ele deu-me a coragem de continuar vivo num tempo e num lugar onde a morte chegava a ser uma becircnccedilatildeo do ceacuteu Desses tempos de conviacutevio diaacuterio com as mil presenccedilas da morte haacute imagens que continuam a perseguir-me Bem sei que eacute um disparate jaacute que os meus ressentimentos medos e fantasmas natildeo oferecem resistecircncia de maior Tecircm vindo a diluir-se como a tinta dos maus frescos renascentistas Mas natildeo consigo esquecer-me de Segunda com o seu belo corpo esfaimado a sua resignaccedilatildeo e a sua indiferenccedila perante a presenccedila e a superioridade da tropa Por isso espanto-me que volvidos tantos anos a minha principal referecircncia da Guineacute tenha o tamanho dessa negrinha de olhos grandes e de sorriso branco cujo corpo exalava o perfume inexplorado da floresta e que gostava de se sentar comigo sobre o cais de madeira a ver o sol esconder-se atraacutes da mata de Ohio E que me queimou a alma com uma laacutegrima gorda Segunda deve ser agora uma grande poeta Valha-me esta consolaccedilatildeo sofrida que ser poeta natildeo eacute bem que se deseje nem sequer ao inimigordquo

17

2ordm Ato (Extrato) Os Sonhos do Infante Ediccedilatildeo Jornal de Cultura 1995

ldquoO uacuteltimo sonho o re-encontro Talvez ningueacutem saiba porquecirc nem para quecirc ANTOacuteNIO - Quem sois INFANTE - Que pergunta desnecessaacuteria ANTOacuteNIO - Desculpe Parece-me que o conheccedilo INFANTE - E nem precisas de fazer muito esforccedilo ANTOacuteNIO - Assim de branco INFANTE - Jaacute sei Pareccedilo-te uma noiva de bigode ANTOacuteNIO - Desculpai senhor Jaacute natildeo o via haacute tantos anos INFANTE - Haacute muitos anos ANTOacuteNIO - Andaacuteveis vestido de preto INFANTE - A cor eacute-me indiferente Os seacuteculos purificam os tons escuros Deixam aparar as impurezas Depois vatildeo corando Um dia fica soacute a cor precisa e segura ANTOacuteNIO - Natildeo estou a entender INFANTE

18

- Querias apenas dizer que enquanto os homens satildeo de memoacuteria curta a Histoacuteria encarrega-se de gravar quanto interessa na memoacuteria dos livros e das pedras ANTOacuteNIO - Reconheci-o E natildeo nascemos propriamente no mesmo seacuteculo INFANTE - Seria difiacutecil esquecerem-me Natildeo que o natildeo tenham tentado Aliaacutes este meu paiacutes nunca me mereceu ANTOacuteNIO - Como assim INFANTE - Natildeo teve corpo para arrumar a minha alma Natildeo teve matildeos para agarrar quanto lhe dei ANTOacuteNIO - E isso era possiacutevel INFANTE - Claro que era Bastava que houvesse a mesma grandeza de alma Mas natildeo De descoberta a descoberta foram-se enredando em intrigas em oacutedios em venenos Depois de cada conquista queriam outra conquista e perdiam a primeira ANTOacuteNIO - Mudar pode ser sobreviver INFANTE - Natildeo era mudar Era perder Foi assim que os meus sonhos se foram enchendo de brumas e de silecircncios ANTOacuteNIO - Senhor tanto que se fala de si INFANTE - Agora Este paiacutes sempre viveu de luas Todos os anos vai ao bauacute do passado e desenterra um morto Logo se apressa a ver-lhe os ossos a descobrir-lhe as viacutesceras da virtude do saber dos feitos Depressa sai do anonimato para ser o santo o saacutebio

o heroacutei Durante vinte e quatro horas eacute o bombo da festa a masturbaccedilatildeo coletiva o orgulho da comissatildeo ANTOacuteNIO - Jaacute ouvi isso INFANTE - Agraves vezes esquecem-se dele na praccedila Nem sequer tecircm o cuidado de lhe arrumar outra vez os ossos AFONSO - Consigo eacute diferente INFANTE - Comigo nunca foi diferente Andam agora a assoalhar-me numa pressa escolar que mete doacute Obrigam as criancinhas a saber de mim enchendo-lhes a cabeccedila com sonhos que natildeo sonhei ANTOacuteNIO - Todos dizem que sempre foi um sonhador INFANTE - Eram sonhos meus Originais Agora querem fazer passar por meus os seus proacuteprios sonhos numa acircnsia de rasurar pesadelos Quando sonhava sonhava em grande Nunca fui mediacuteocre CONSTANCcedilA - Isso sabemos INFANTE - Natildeo tanto que o tivessem aprendido ROMUALDO - Viajamos tanto INFANTE - Por necessidade Falta-vos a coragem de aventurar ANTOacuteNIO - Aventurar As nossas aventuras satildeo o que satildeo

19

INFANTE - Apenas JOSEacute - Por vezes quisemos imitar-vos INFANTE - Sem chama DIOGO - Quisemos ir aleacutem da ilha completar outras viagens INFANTE - Sem convicccedilatildeo ANTOacuteNIO - Sabemos navegar INFANTE - Sem rumo que interesse FRADE - Estais a retirar-nos a Poesia INFANTE - Natildeo Apenas a tentar dizer que a Poesia eacute sonho e eacute tanto mais grandiosa quanto maior eacute o sonho FRADE - Desisto de falar INFANTE - Desistir eacute um verbo cobarde Na verdade viveis num paiacutes desistido ANTOacuteNIO - Natildeo temos remissatildeo

INFANTE - Depende da vossa forma de redimir FRADE - Um apelo agrave Histoacuteria por exemplo INFANTE - Dei-vos estas ilhas carregadas de Histoacuteria Fiz delas o poiso de todas as viagens Aqui foram dadas em primeira matildeo as novas de achamento Aqui se desfizeram segredos aqui se informaram povos e culturas aqui o mundo se tornou sabido BEATRIZ - Foram outros tempos INFANTE - E deixaram-nos perder JOSEacute Natildeo tanto assim Ainda temos aviotildees que rapidamente nos trazem outras gentes INFANTE - Poucas DIOGO - E todos os dias sabemos do mundo sobre a hora de qualquer acontecimento INFANTE - Entatildeo porque vos queixais CATARINA - Talvez porque apenas recebemos e nada damos LEONOR - Talvez porque natildeo podemos digerir quanto recebemos ROMUALDO - Talvez porque natildeo temos tempo de sonhar connosco proacuteprios

20

AFONSO - Talvez por causa desta solidatildeo mal quebrada MARIA - Ou por termos as portas mal abertas BELISA - Natildeo termos asas INFANTE - Sois na verdade bem pequenos Natildeo sois capazes de desenterrar os vossos heroacuteis os vossos santos os vossos poetas ANTOacuteNIO - Dos nossos heroacuteis e santos pouco sabemos Permanecem quase todos sob o manto diaacutefano das lendas E os poetas satildeo malditos INFANTE - Todos os poetas satildeo malditos Eacute por isso que satildeo poetas Todos os heroacuteis e santos satildeo lendaacuterios Eacute por isso que permanecem Que conheceis de mim ROMUALDO - Pois Talvez o bastante Ou talvez coisa nenhuma JOSEacute - A vossa imagem de negro no poliacuteptico de Satildeo Vicente eacute uma referecircncia obrigatoacuteria INFANTE - Apenas tecircm referecircncias E no entanto eacute o suficiente para que o sonho aconteccedila Para que preparem todas as viagens e as realizem por seus rumos certos e cheguem agraves terras previstas E aiacute aconteccedilam os outros sonhos os do patildeo e os da cultura FRADE - Isso nos disseram aqui haacute poucos anos E nada aconteceu ANTOacuteNIO - Eis como ficaacutemos pobres e mudos

INFANTE - Mas natildeo presos As vossas amarras satildeo mais inventadas que reais Peguem nos vossos poetas e bebam o sangue da sua Poesia Sem amor natildeo haacute sonho possiacutevel (Saiacuteda falsa) ANTOacuteNIO - Jaacute vos ides INFANTE - Jaacute O tempo de estar na vossa memoacuteria chegou ao fim Volto para as paacuteginas da histoacuteria de um livro que vai ficar intocaacutevel na prateleira da vossa estante Eacute o meu tuacutemulo preferido Natildeo quero que me abandonem nas ruas a desbotar em cartazes Natildeo quero ficar em textos de circunstacircncia em programas tidos de prestiacutegio em espetaacuteculos de teatro sem teatralidade capaz O que eu tinha de ser jaacute fui Se me comeram a carne podem roer-me os ossos A um morto tanto se lhe faz ANTOacuteNIO - Afinal tambeacutem perdeste os sonhos e a vontade de sonhar INFANTE - Soacute sonha quem estaacute vivo Vocecircs estatildeo vivos Podem sonhar (Sai)rdquo

RIMANCE DE DONA BALEIA IMPRESSOtildeES DE BOCA EDICcedilOtildeES DRAC 1992 PP 31-32 E 33

ldquoestava dona baleia - foge foge meu amor a regar o seu jardim ateacute agraves aacuteguas do frio com seu repuxo de prata soacute aiacute te sei segura e sorriso de alfenim a regar o teu jardim quando o foguete estalou com teu repuxo de prata laacute no alto da vigia e sorriso de alfenim anunciando a caccedila mas a canoa da morte (que susto santa maria) corre depressa demais dona baleia - coitada daqui lhe aceno a vida logo parou de aguar feito pedrinha do cais as algas que floriam e grito seu nome drsquoaacutegua

21

bem agrave tona do mar (seu matador quem seraacute) eacute entatildeo que a tristeza procura quantos te amam o medo a afliccedilatildeo Jonas deus iemanjaacute saltam do cais dos olhos de nada lhe serve o grito aos ombros do coraccedilatildeo Nada mais posso fazer um grito aberto se ouve o arpatildeo laacute vai direito em eco de mar perfeito no seu peito embater - baleia agrave vista baleia patildeo-nosso de qualquer jeito ai pobre dona baleia e laacute vai dona baleia como te custa viver fugindo pra natildeo morrer - deus a salve do arpatildeo morreu dona baleia deus a queira proteger arpada de oacutedio velho todo o silecircncio do mar ai pobre dona baleia ficou tinto de vermelho como te custa viver os peixes choram tambeacutem envolta em lenccedilol de sangue mar manso todo rasgado dona baleia laacute vem baba de espuma agrave quilha arrastada ateacute ao cais dona baleia procura seu corpo esquartejado escapar da armadilha nas caldeiras derretido que eacute o arpatildeo voador daacute o patildeo amargurado anjo de ferro esguio e algueacutem haacute de gravar nos seus dentes de marfim eram cinco sois a arder o barco que a perseguiu cinco talhadas de lua o arpatildeo que lhe deu fim que deus lhe quis oferecer no ceacuteu as aves e as nuvens correm do sul para o norte agora dona baleia sobre o mar e sobre a ilha jaacute natildeo lhe custa viverrdquo paira o silecircncio da morte e haacute um poeta branco agrave minha porta a bater natildeo vou abri-la natildeo vou jaacute sei o que vem dizer ai pobre dona baleia como te custa viver agrave costa como um poema

a desfazer-se na areia vieram cinco mareacutes chorar a dona baleia duas choravam espuma - branca nuvem de veratildeo traziam como homenagem um buacutezio em cada matildeo as outras duas chegaram fracas de tanto chorar tanto sal nas suas laacutegrimas tanto sal e tanto mar a quinta mareacute natildeo chora traz apenas no regaccedilo um grande ramo de algas amarrado com um laccedilo deixa-o deposto na costa de seguida reza e canta satildeo cantigas de saudade versos presos na garganta desfeitas satildeo as mareacutes

CARTA DE JOAtildeO VALENTE (RAMINHENSE DA TERCEIRA) A SEU IRMAtildeO EMBARCADO NA CALIFOacuteRNIA (GASTINHAS) OU ENTAtildeO CANTIGAS DE COMO SE PICAM OS OLHOS DA MISEacuteRIA EM PICOS DE ABUNDAcircNCIA

ldquoEscrevo-te esta carta Gostei de saber que tens Pra saber como vais passando Friza e um novo mexim A saudade eacute que nos farta Socircfas clausetas sertatildes Mas por caacute vamos andando E alvaroses dingrim Muito bem graccedilas a Deus Jaacute sei que tens um fogatildeo Nestas linhas que alinhavo Uma trela e talaveija Muito mal desejo aos teus E que jaacute vives no Tatildeo Tameacutem sauacutede Por mim cavo - Mas que sorte salvo seija Desta hora a matildeo na pena E cuma pisca de doacutelas Poucas letras e saberes Te vestiste numa estocirca

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

6

9812 Oliveira Aacutelamo (2008) Jaacute natildeo gosto de chocolates Ed Japonesa Random House Kodansha

9813 Oliveira Aacutelamo (2008) Terceira a ilha dos Impeacuterios Terceira Impeacuterios Island com Maacuterio Duarte e trad de Alexandra Grilo Praia da Vitoacuteria ed Blu

9814 Oliveira Aacutelamo (2010) Andanccedilas de pedra e cal 1ordf ed Praia da Vitoacuteria ed Blu

9815 Oliveira Aacutelamo (2010) ldquoPadre Filho Espiacuterito Santo e o futurordquo IV Congresso Internacional sobre as Festas do Espiacuterito Santo PHPC San Jose Califoacuternia

9816 Oliveira Aacutelamo (2010) In Passos de nossos avoacutes ed Manuela Marujo Aida Baptista [si sd]

9817 Oliveira Aacutelamo (2011) Caneta de tinta permanente na poesia popular dedicado a Manuel Caetano Dias ldquoCanetardquo Nova Graacutefica ed autor

9818 Oliveira Aacutelamo (2011) in Antologia Bilingue de Autores Accedilorianos Contemporacircneos de Helena Chrystello e Rosaacuterio Giratildeo AICL Coloacutequios da Lusofonia ed Calendaacuterio de Letras Vila Nova de Gaia

9819 Oliveira Aacutelamo (2011) in Antologia da Memoacuteria poeacutetica da Guerra Colonial Roberto Vecchi Margarida Calafate Ribeiro (org) Fot Manuel Botelho Notas biograacuteficas Luciana Silva e Moacutenica Silva 1ordf ed Porto Afrontamento Poesia [ISBN 9789723611748] 648 pp

9820 Oliveira Aacutelamo (2012) in Antologia de Autores Accedilorianos Contemporacircneos de Helena Chrystello e Rosaacuterio Giratildeo AICL Coloacutequios da Lusofonia ed Calendaacuterio de Letras Vila Nova de Gaia

9821 Oliveira Aacutelamo (2012) Quatro prisotildees debaixo de armas Teatro baseado no conto homoacutenimo de Vitorino Nemeacutesio ed autor

9822 Oliveira Aacutelamo (2013) ldquoAdelaide Freitasrdquo 19ordm Coloacutequio da Lusofonia Maia Accedilores

9823 Oliveira Aacutelamo (2013) Portugal pelo mundo disperso coord de Teresa Cid 1ordf ed Lisboa Tinta da China

9824 Oliveira Aacutelamo (2013) In Coletacircnea de Textos Dramaacuteticos de Helena Chrystello e Luciacutelia Roxo AICL Coloacutequios da Lusofonia ed Calendaacuterio de Letras Vila Nova de Gaia

9825 Oliveira Aacutelamo (2013) Murmuacuterios com vinho de missa 1ordf ed Angra Letras Lavadas

9826 Oliveira Aacutelamo (2013) Murmuacuterios com vinho de missa 2ordf ed Ponta Delgada Letras Lavadas

9827 Oliveira Aacutelamo (2014) ldquoNo centenaacuterio de nascimento do pintor Antoacutenio Dacosta 1914-2014rdquo IAC Atlacircntida vol LIX

9828 Oliveira Aacutelamo (2014) Marta de Jesus a verdadeira Letras Lavadas

9829 Oliveira Aacutelamo (2014) ldquoMadalena Feacuterinrdquo 20ordm Coloacutequio da Lusofonia Seia 9830 Oliveira Aacutelamo (2015) ldquoUm escritor accediloriano Manuel Machadordquo 24ordm

Coloacutequio da Lusofonia Graciosa Accedilores 9831 Oliveira Aacutelamo (2017) ldquoA laquoKriacutetika Pueacutetikaraquo um texto de Urbano

Bettencourtrdquo 27ordm Coloacutequio da Lusofonia Belmonte

GALIZA 2012

7

NA GALIZA NO 18ordm COLOacuteQUIO DA LUSOFONIA 2012

NA GALIZA NO 18ordm COLOacuteQUIO DA LUSOFONIA 2012

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

8

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

9

MOINHOS 2014 NO 21ordm COLOacuteQUIO

Estoacuteria de Natal Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 25-31

ldquoToda a manhatilde Gustavo andou numa excitaccedilatildeo desusada Levantara-se cedo sem apelos cumprindo prontamente o que noutros dias fazia com demasiada preguiccedila Com a matildee ornamentara a aacutervore de Natal e armara um lindo preseacutepio fulgurante de pedras e musgos com caminhos de areia casas de cartatildeo e pessoas de barro Bombardeou a matildee com perguntas tentando identificar as figuras com as de carne e osso na acircnsia de entender uma vez por todas as mil atribulaccedilotildees que concorreram para que o Menino Jesus fosse nascer na velha arribana dos arredores de Beleacutem Sempre que a curiosidade o fulminava os seus olhos castanhos ficavam ainda maiores e apesar dos seus escassos cinco anos natildeo se deixava satisfazer com qualquer resposta Ouvia e questionava ndash natildeo por desconfiar das palavras da matildee mas porque queria compreender os pormenores e sobretudo desfazer as contradiccedilotildees Intrigava-o a prepotecircncia daquele recenseamento imposto contranatura pelo Imperador de Roma ndash violador poderoso da vontade de povos tatildeo pequenos e indefesos como o da Judeia ndash a quem comparava com ingeacutenua repugnacircncia agrave Ameacuterica agrave Ruacutessia agrave Indoneacutesia nas suas violaccedilotildees internacionais consagradas e legitimadas Era-lhe impensaacutevel que pudessem obrigar a matildee ndash graacutevida do seu proacuteximo irmatildeo ou irmatilde ndash a ir ateacute agrave cidade para um simples dar o nome incomodando-a nesse belo embaraccedilo da vida Ele sabia que era necessaacuterio evitar qualquer perturbaccedilatildeo No ventre da matildee crescia o seu sonho mais apetecido com o qual jaacute partilhava o melhor dos seus afetos Irmatildeo ou irmatilde natildeo era duacutevida que o apoquentasse Apenas desejava que o tempo passasse depressa para que o nascimento se desse Atraveacutes da voz da matildee foi visionando os longos caminhos de terra e pedregulhos as chuvas de dezembro enlameando o corpo e a alma as noites longas e escuras dormidas ao relento de Nazareacute a Beleacutem E imaginava as apreensotildees muacuteltiplas que S Joseacute e Nossa Senhora ruminaram perante os perigos eminentes de assaltos e desfeitas incluindo as pragas engolidas contra quem assinara o edital romano e os incomodava sem rebuccedilos soacute para se dar ao luxo de saber sobre quantos desgraccedilados impunha o seu poder ldquoPorque natildeo foram de camionetardquo perguntou Gustavo E ficou a saber que nesse tempo longiacutenquo e quase lendaacuterio as camionetas eram simplesmente imprevisiacuteveis e que andar de burro era mesmo assim um privileacutegio de remediado Muitos outros ndash

10

mulheres velhos e crianccedilas ndash teratildeo ido a peacute sem mais contemplaccedilotildees Ele nem queria acreditar que pessoas como os avoacutes tivessem sido obrigadas a deixar as suas casas enfrentando os medos de caminhos pejados de salteadores soacute para satisfazerem os caprichos de um imperador que se quedava na sua enorme cidade no esplendor do seu palaacutecio com tanto de lonjura como de tropas e escravos E havia tambeacutem o despeito pela liberdade ferida um oacutedio mudo mas natildeo adormecido de quem se via sujeito ao poder estrangeiro que desrespeitava a alma a cultura a religiatildeo o direito de ser povo ldquoNaqueles dias Beleacutem tinha as casas e as ruas abarrotadas de gente de ruiacutedos e de cheirosrdquo ldquoComo nas touradasrdquo perguntou Gustavo ldquoMais do que nas touradasrdquo confidenciou a matildee Devia ter sido terriacutevel esse chegar a Beleacutem ao fim de dias de atribulada viagem mergulhar num oceano de gente que zaragateava como enxame gigantesco atropelando-se nas bichas de inscriccedilatildeo agraves portas das tabernas das casas de pasto das pensotildees dos abrigos improvisados Gritava-se pelos guardas sempre impassiacuteveis para denunciar os roubos a partilha de um lugar agrave mesa ou de um recanto onde se pudesse dormir Viam-se as consequecircncias da embriaguez atraveacutes das brigas dos insultos dos piropos soezes Mulheres de porte faacutecil deixavam-se apalpar entre gargalhadas e algumas moedas por transeuntes ocasionais As ruas nauseavam de restos de comida de excrementos de corpos por lavar A cidade era um incomensuraacutevel caixote de lixo ldquoQuando S Joseacute e Nossa Senhora entraram em Beleacutem anoitecia Foram percorrendo as ruas por entre pragas e tropeccedilotildees e os relinchos espantados da burra Havia pessoas deitadas nas valetas os corpos entranccedilados num rodilhatildeo de promiscuidades Algumas janelas deixavam passar a luz deacutebil das lamparinas de azeiterdquo ldquoAinda natildeo havia luz eleacutetricardquo interrompeu Gustavo ldquoNatildeo meu filho A eletricidade eacute bastante recenterdquo ldquoCoitadinhos Entatildeo natildeo iluminavam as aacutervores de Natalrdquo ldquoClaro que natildeo O Menino Jesus ainda natildeo tinha nascidordquo ldquoAh simrdquo E Gustavo sorriu da sua proacutepria infantilidade Nossa Senhora chegou exausta Respirava com dificuldade Tinham chegado dores de corte de faca ao seu baixo-ventre Estava na hora do parto S Joseacute desatinou numa corrida desesperada batendo a todas as portas E sempre recebeu a mesma resposta ldquoNatildeo haacute lugar nem para ficar de peacuterdquo Voltou para junto de Nossa Senhora com um desalento mortal A hipoacutetese do seu filho nascer numa rua qualquer de Beleacutem rodeado de gentes desconhecidas e despudoradas fazia-lhe subir agrave garganta uma anguacutestia de voacutemitos e de laacutegrimas Dentro de si gritava ldquoO meu filho natildeo pode nascer aqui Vai morrer de friordquo E com a burra presa pela arreata empurrava as pessoas

para o lado sem que soubesse que direccedilatildeo perseguir Nossa Senhora contorcendo-se de dores e de afliccedilotildees procurava aparentar uma serenidade impossiacutevel ldquoFossem para o hospital mamatilderdquo ldquoTambeacutem natildeo havia hospitaisrdquo ldquoQuando ficavam doentes onde eacute que se tratavamrdquo ldquoProvavelmente tratavam-se em casa A natildeo ser que fossem leprosos ndash uma doenccedila ruim que os afastava dos parentes e dos amigosrdquo ldquoComo a sidardquo Mas Gustavo natildeo esperou pela resposta Impacientava-o ter deixado S Joseacute e Nossa Senhora naufragados nas ruas de Beleacutem e o Menino Jesus quase a nascer Valeu-lhes uma velhinha que disse haver fora das portas da cidade uma pequena arribana coberta de palha Nem agradeceram a informaccedilatildeo Com a burrinha a trote correram para laacute Foi quando se deu o milagre Um pelotatildeo de anjos desceu do ceacuteu e logo agrave saiacuteda de Beleacutem transportou a burrinha com Nossa Senhora e S Joseacute ateacute agrave arribana Os anjos batendo as suas magniacuteficas asas entoavam com vozes celestes muacutesicas que satildeo apenas de anjo Cantavam a noite feliz acompanhados por bandolins violinos violas e um acordeatildeo O mais pequenino ndash roliccedilo loiro e de olhos azuis ndash importunava o coro e a tuna com o seu tambor desritmado pum pum pum pum ndash quatro toques seguidos de rufo Ningueacutem viu Mas foi muito bonito Logo que chegaram os anjos pegaram em paacutes e vassouras e aprestaram-se a limpar o curral a varrer a arribana assustando uma vaca que tambeacutem aguardava a hora de parir De seguida prepararam com feno uma cama para Nossa Senhora enquanto S Joseacute recorrendo a ferramenta abandonada fez das taacutebuas da baiacutea um confortaacutevel bercinho Acenderam duas lanternas que dependuraram sobre a cama onde Nossa Senhora gemia Depois sossegaram em saborosa expectativa De repente ouviram um grito vindo do curral seguido de choro profundo Alguns anjos acorreram lestamente O mais pequenino caiacutera numa poccedila de lama sujando o vestido e as asas Rompera tambeacutem a pele do tambor Ficou com o ar mais desolado do mundo O Chefe dos anjos logo comeccedilou a repreendecirc-lo ameaccedilando-o com o regresso forccedilado ao ceacuteu seguido duma novena de recreios interditos e fechado numa nuvem S Joseacute poreacutem depois de o limpar pacientemente pegou-lhe ao colo e levou-o para dentro Com o susto ateacute fizera chichi na fralda Gustavo sorria A matildee tentava natildeo entrar nos pormenores do parto O seu pudor empurrava-a para devaneios descritivos que Gustavo natildeo perfilava Colocou os anjos do coro e da tuna suspensos dos tirantes em posiccedilotildees de equiliacutebrio acrobaacutetico Fez com que repetissem muito baixinho a noite feliz E foi nesse entretanto que o Menino

11

Jesus nasceu Era meia-noite em ponto S Joseacute tivera o cuidado de confirmar pelo reloacutegio ldquoFoi por cesariana ou parto normalrdquo quis saber Gustavo ldquoParto normalrdquo respondeu a matildee que se apressou a empurrar os anjos pela arribana fora desatinados de contentamento voando sobre os pastores do mundo inteiro e acordando-os com o hino ldquoGloria in excelsis Deordquo Era um barulho intensamente doce iluminado por estrelas danccedilantes Algumas delas por falta de cuidado chegaram mesmo a cair Mas uma outra mais esperta e avisada desviou-se daquela confusatildeo luminosa e foi ateacute ao oriente para depois guiar os quatro reis magos que vinham de Taacutersis Aacutefrica Peacutersia e Sabaacute ateacute agrave arribana de Beleacutem Chegaram trecircs carregados de oiro incenso e mirra ndash ofertas de pouco sentido praacutetico e que mais tarde os inteacuterpretes de evangelhos procuraram em vatildeo descodificar O quarto rei poreacutem perdeu-se Soacute chegou trinta e trecircs anos mais tarde sem nada para oferecer Tambeacutem Jesus jaacute natildeo precisava Pregado na cruz apenas lhe apetecia morrer ldquoA matildee estaacute a desconversarrdquo disse Gustavo E estava O Natal era o Natal e soacute o Menino Jesus interessava Voltaram agrave arribana que estava quase vazia O anjo pequenino teimava com o Menino Jesus para que experimentasse tocar tambor Sem lhe dar qualquer atenccedilatildeo e consciente de tarefas mais urgentes mamava gostosamente A noite arrefecera Nevara sobre a serra e um vento corrupto trazia o frio ateacute agrave arribana O Menino Jesus podia enregelar Entatildeo a vaca e a burrinha aproximaram-se aquecendo-o com o seu bafo quente e huacutemido Nossa Senhora e S Joseacute sorriam e beijavam ternamente o Menino que depois de mamar adormeceu Colocaram-no no bercinho e o anjo do tambor comeccedilou a embalaacute-lo ldquoEacute por isso que o teu preseacutepio tem um anjo uma burrinha e uma vacardquo disse a matildee Gustavo olhou-o e confirmou Depois natildeo se conteve e perguntou ldquoMamatilde o Menino Jesus teve irmatildeosrdquo ldquoNatildeo meu filho Ele eacute sempre o Menino Jesusrdquo Entatildeo abraccedilando ternamente a barriga da matildee concluiu ldquoNatildeo sabe o que perdeurdquordquo

Com Perfume e Com Veneno

laquoOs membros do gabinete do senhor Presidente estavam em pacircnico Haacute dois dias

que procuravam contactar por telefone a pequena ilha para anunciarem a data do programa da visita constitucional Mas o telefone apenas devolvia ruiacutedos intermitentes que natildeo forneciam qualquer interpretaccedilatildeo teacutecnica Era como se estivessem a ligar para o ponto zero do quintal mais proacuteximo E no entanto era urgente cumprir a lei que prescrevia laquoAo menos uma vez por mandato o governo visitaraacute cada uma das suas ilhasraquo Faltava a mais pequena e mais distante Eacute que passado quase um seacuteculo o mandato terminava na semana seguinte e em veacutesperas de eleiccedilotildees nenhuma ilegalidade podia transformar-se em trunfo nas matildeos da oposiccedilatildeo Soacute que o telefone natildeo atinava com aquela ilha pequena e distante O eco nem tinha forccedilas para lhes devolver o apelo

Houve que reunir de emergecircncia As calviacutecies aumentaram branquearam cabelos

fizeram-se esforccedilos suplementares e aconteceu o habitual suores frios e derramamentos cerebrais Mas natildeo conseguiram qualquer contacto com a ilha mesmo com funcionaacuterios destacados para discar o nuacutemero durante vinte quatro horas

Sobre a mesa de reuniotildees puseram todas as hipoacuteteses avaria do uacutenico telefone

da ilha (a Companhia natildeo o podia comprovar e muito menos reparar) que os habitantes andavam a festejar o Espiacuterito Santo (era eacutepoca disso) que estavam a ensaiar folclore (em tempos tinham-lhes prometido um passeio) que os membros da filarmoacutenica estavam a aprender a tocar o hino para a eventual visita do senhor Presidente que se mantinham ocupados em qualquer acontecimento social Mas em

12

circunstacircncia alguma ficariam impedidos de passar mesmo que fugazmente pelo telefone

Puseram entatildeo hipoacuteteses mais convencionais descontentamento com a

governaccedilatildeo (nem sequer conheciam o senhor Presidente) mudanccedila de paacutetria (a Ameacuterica ali tatildeo perto e muito mais rica) algueacutem com a conivecircncia do padre dera o grito de independecircncia e pronto

(hellip) Partiram como calhou Pouca bagagem Nada de coisas supeacuterfluas O Chefe de

gabinete meteu na pasta o mais importante o discurso que o senhor Presidente iria proferir- o mesmo que jaacute lera nas outras ilhas Enfiaram tambeacutem trecircs jornalistas e um operador de cacircmara de televisatildeo para o registo oacutebvio Era o qb O senhor Presidente enjoava a bordo e por simpatia os membros do gabinete enjoavam tambeacutem Era bonito ver toda aquela solidariedade governativa Conseguiam mesmo imitar os roncos presidenciais que com a continuidade desfaleciam ateacute se transformarem em gemidos agoacutenicos Mas soacute numa viagem como aquela se conseguia avaliar o sacrifiacutecio de governar ilhasraquo

(hellip) O barco foi-se aproximando Reduziu a velocidade e deslizou como tapete rolante

ou mosca sobre taccedila de gelatina E quando o cais ficou agrave matildeo de atracar jaacute todos tinham caiacutedo no oceano do desacircnimo Eacute que nem as autoridades autaacuterquicas nem a filarmoacutenica nem grupo de folclore nem o padre nem qualquer pessoa se postara sobre o cais para esperar tatildeo ilustre comitiva Os jornalistas sentiram-se enfim analfabetos e o operador de cacircmara o escravo de todas as maacutequinas inuacuteteis Pela primeira vez era possiacutevel provar que se pode reduzir qualquer governo agrave sua insignificacircnciaraquo

(hellip) Com Perfume e Com Veneno de Aacutelamo de Oliveira Ed Salamandra 1997 in

httplivrariasolmarblogspotpt201005com-perfume-e-com-venenohtml

13

14

Por Uma Laacutegrima Gorda Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 11 a 21

ldquoA lembranccedila mais agradaacutevel que guardo (mas que eacute tambeacutem do tamanho do meu remorso) eacute a da negrinha Segunda Dei por ela no dia em que vi uma laacutegrima gorda rolar-lhe pelo rosto e estatelar-se sobre a mesa Nunca mais vi laacutegrima que se lhe comparasse em tamanho e amargura uma bola de cristal de maga velha Fiquei perplexo sem saber como era possiacutevel acumular tanta dor salgada Estava em Binta terriola da Guineacute-Bissau que fora porto importante da exportaccedilatildeo de mancarra e arroz nos tempos da escravatura suave do imperialismo lusiacuteada Estava ali fardado de soldado mal fardado apegando-me a um quotidiano enformado por horas inseguras por um teacutedio amassado a suor e a cachimbo e resignado a uma paisagem de aacutervores fendida pelas aacuteguas verdes do rio Cacheu ndash alameda por onde passeavam hipopoacutetamos crocodilos e algumas cobras Tudo isto exercia sobre mim e os meus companheiros de destino o efeito de um soporiacutefero maldito ndash mistura de medo e de torpor que nem o luar de marccedilo esmaecia Era como se a vida tivesse adormecido sobre o arame de um circo desprovido de rede em que o equiliacutebrio se desafiava a si proacuteprio e sem que houvesse a miacutenima razatildeo para evitar a queda e a morte Por isso a laacutegrima gorda de Segunda foi a minha taacutebua de salvaccedilatildeo O que ateacute hoje fiz de mais uacutetil foi ensinar a ler e a escrever agraves crianccedilas de Binta Todos os dias ocupaacutevamos uma palhota que fora abandonada logo que o arame farpado delimitou a aacuterea do quartel Apesar da falta de material didaacutetico as crianccedilas de Binta foram desenhando letras formando palavras descobrindo a grafia da voz e aprendendo que para aleacutem dos seus inconfundiacuteveis meacutetodos de comunicaccedilatildeo tambeacutem era possiacutevel fazecirc-lo atraveacutes da escrita e da leitura No meio dos progressos escolares sentia-me pai-natal ao contraacuterio recebendo mais do que dava e por isso mais feliz do que aquele pequeno bando de negrinhos que diariamente me aparecia vestido de trapos e de sujidade e visivelmente mal alimentado Mas nesse tempo de infernos de convivecircncia com a morte com a injusticcedila e outros males complementares a tarefa de professor devolvia-me alguma da dignidade perdida Foi nessa escola com teto de palha que reconquistei o equiliacutebrio mental e sobretudo o quanto necessitava para sobreviver e poder regressar mais tarde com as minhas lembranccedilas e os meus remorsos Segunda frequentava a minha escola e prendi-me a ela com todos os tentaacuteculos do coraccedilatildeo por causa da tal laacutegrima gorda que um dia deixou cair sobre a mesa

Entatildeo soube-lhe o nome e descobri a sua inteligecircncia e a sua beleza Um estuacutepido becirc maiuacutesculo fecirc-la tropeccedilar no complicado desenho ndash as barrigas sobrepostas como mulher graacutevida duas vezes Simplifiquei o desenho e dei-lhe um beijo na testa E logo o becirc saiu com a forma perfeita Dedicou-me a vitoacuteria com uma cariacutecia na matildeo e o sorriso mais cheio de ternura que algueacutem me deu Assim nasceu a nossa amizade que logo se enredou de muitas e complexas cumplicidades Almoccedilou comigo Partilhamos o rancho ndash da minha parte sem qualquer sacrifiacutecio Tratava-se duma mistela de arroz com rodinhas de salsicha enlatada sem outro sabor que natildeo fosse aquela fome tentacular e corrosiva Segunda quase me irritou com o seu apetite demolidor A sua fome era tambeacutem secular Custava-me aceitar essa verdade sem que o estocircmago natildeo me enfezasse com a sua uacutelcera de revolta Olhei-a mais uma vez e soacute vi a claridade inocente dos seus olhos lindos Passou-me a birra Segunda era como se fosse uma flor de maio ndash intacta delicada e por isso suscetiacutevel ldquoViraste infanticidardquo ouvi dizer Ignorei de quem vinha a piada Natildeo me deixei morder Queria Segunda nessa duacutebia qualidade de irmatilde e de filha ldquoQuantos anos tensrdquo ldquoOito chuvardquo Partiu levando uns restos de comida numa lata enferrujada ldquoPa mecircs irmatildeordquo disse Os seus peacutes descalccedilos levantaram uma linha de poacute vermelho que foi sumir-se de encontro aos arrevesados atalhos da tabanca Ateacute parecia que naquela lata supurenta levava a alma da felicidade E era essa reles felicidade que me deixava abaixo de catildeo Levantei-me com a vontade incontrolaacutevel de me vomitar Fui ateacute ao rio Fechei os olhos e respirei fundo O sol bateu-me no corpo com os seus raios de fogo secando o asco que me subia do estocircmago ao ceacuteu-da-boca Sabia que se gritasse me libertaria do remorso subjugante da guerra e das razotildees submersas de um colonialismo apodrecido de poder Mas estava na hora dos silecircncios quentes da vida de Aacutefrica descansar agrave sombra do torpor da sua desgraccedila Acabei por me perder numa sueca encharcado de cerveja Ser luacutecido ali natildeo era virtude que se cultivasse Antes o aacutelcool Infinitamente Acordei com o ciciar de Segunda ldquoSocirc pofessocirc Socirc pofessocircrdquo Esfreguei os olhos afastando as uacuteltimas teimosias de sono e ela laacute estava com o seu sorriso e o meu pequeno-almoccedilo Comemos e fomos para a escola Com o ridiacuteculo da minha acircnsia transferi para Segunda quanto me restava de afeto e de orgulho Babava-me perante a sua capacidade de aprender e sobretudo de apreender os significados complexos da vida Era brilhante Tanto se lhe dava navegar nos mapas sucintos da grandeza do mundo descobrindo gentes de outras longitudes e civilizaccedilotildees como se fixava no desenvolvimento das complicadas operaccedilotildees de aritmeacutetica somando ternura diminuindo tristeza multiplicando afetos dividindo solidariedade A sua vontade era contagiante Alguns meses depois sete dos meus alunos foram a Safim fazer o exame da quarta classe Ficaram aprovados com distinccedilatildeo Mas soacute Segunda me pareceu digna

15

desse privileacutegio Andava eufoacuterico e tambeacutem infantil premiado com o seu sorriso distinto E com a sua pobreza E isso eacute que me constrangia Era uma pobreza sugadora progressiva medonha irresponsaacutevel Segunda era o rosto singular dos seus companheiros de tabanca de Aacutefrica Comiam os restos da tropa Via-lhes as barrigas entumescidas de fome os olhos desvitaminados os ossos salientes sob a pele das disenterias os rostos sujos do chatildeo que lhes servia de cama os cadernos enodoados de terrosas impressotildees digitais Tudo isto me afogava no lodo de um remorso inconsequente e procurava purificar-me no meu afeto por Segunda Dei-lhe uma camisa velha a que cortara as mangas e acinturei com um cordel Ficava-lhe bem Ficou com um ar de rapariguinha exoacutetica tipo modelo para neacutegligeacutee de alta moda No dia seguinte voltou sem a camisa Dera-a ao pai Mas foi a partir desta pequena doaccedilatildeo que virei estilista Mamadu ndash balanta e muccedilulmano ndash herdara de um colono fugido agrave guerra uma velha maacutequina de costura Com ela apertava-nos as fardas a troco de alimentos que surripiaacutevamos da arrecadaccedilatildeo de geacuteneros uns quilos de arroz patildeo oacuteleo latas de conserva Procurei restos de fardas e levei-os ao homem da maacutequina de costura Desenhei um vestido de corpo justo mangas de balatildeo saia com folhos sobrepostos cintura arrematada com laccedilo nas costas ndash tudo dividido pelos dois tecidos possiacuteveis o verde liso e o camuflado ldquoNatildeo nosso sordado Natildeo sei fazerrdquo disse Mamadu Entatildeo talhei alinhavei e dei indicaccedilotildees sobre o que a agulha da maacutequina devia pespontar ldquoNosso sordado ser artistardquo o vestido suspenso pelos ombros e exposto ao olhar admirado de Mamadu Arquivei o elogio e nunca lhe confessei que naquela peccedila de roupa investi toda a minha ciecircncia sobre costura ndash e tambeacutem o meu receio e a minha ignoracircncia Eacute que soacute por acaso o vestido resultara Segunda eacute que ficou ainda mais bonita Pela primeira vez despertara-se-lhe a vaidade de mulher Confundida e enleada mirou-se no espelho do cabo enfermeiro e correu para a tabanca a fim de explorar a seduccedilatildeo do seu vestido novo Poreacutem mais uma vez o imprevisto derrotou-me Segunda apareceu-me com o vestido numa laacutestima Esquecera-me de lhe pedir que o despisse antes de se deitar Mas natildeo desisti Roubei quanto pude na arrecadaccedilatildeo de geacuteneros e fizeram-se vestidos saias calccedilotildees blusas ndash tudo com modelos diferentes - ateacute que fui apanhado pelo capitatildeo que acabou por desconfiar das minhas sucessivas incursotildees agrave palhota do Mamadu ldquoOu vestes todos ou natildeo vestes ningueacutemrdquo ordenou Aceitei o desafio E toca a desenhar a talhar a alinhavar a coser roupas diversas para as crianccedilas da escola Chegou a fazer-se um abate prematuro de fardas para que natildeo faltasse mateacuteria-prima Quando entrei na

escola estremeci Diante de mim estava um pelotatildeo infantil fardado a preceito e sem graccedila Apeteceu-me mandaacute-los despir Pelo menos a nudez dar-lhes-ia na igualdade da cor e da idade o direito agrave diferenccedila Segunda adivinhando a minha dececcedilatildeo logo me consolou ldquoTodos irmatildeordquo Sem duacutevida Mas por que preccedilo Os dias foram pingando Afeto sobre afeto Segunda tornara-se-me insubstituiacutevel Estava no meu coraccedilatildeo como polvo sadio aorta sentimental anjo da guarda de todos os perigos do meu quotidiano Por isso foi num de repente gelatinoso que dei por mim com os dedos a tocar no tempo do regresso Apercebi-me disso pela algazarra do quartel pelas calviacutecies remanescentes pelas barrigas dilatadas de cerveja pelo fel dos fiacutegados desfeitos pelas rugas da pele pelos medos reassumidos E em cada manhatilde ouvia-se um bruaacute florestal selvagem que era a manifestaccedilatildeo menos demente da alegria de acordar e de riscar mais um nuacutemero no calendaacuterio de parede Apercebi-me tambeacutem desse chegar pelo veacuteu de tristeza que se foi adensando no rosto de Segunda e ateacute pela sua impaciecircncia velada que disfarccedilava com algum autoritarismo sobre as outras crianccedilas Chegou mesmo a vingar-se sobre si proacutepria ausentando-se para dentro respirando os silecircncios da alma Cabia-me preparar Segunda para a nossa inevitaacutevel separaccedilatildeo ndash separaccedilatildeo que eu tambeacutem natildeo desejava tatildeo inseguro me sentia quanto agrave minha capacidade de sobreviver sem ela Mas o que mais me afligia era o natildeo ser capaz de lhe deixar uma razatildeo coerente para o nosso adeus naturalmente definitivo Deixara-a prender-se com o melhor dos seus afetos enquanto eu como adulto racional natildeo passara de um saacutedico e egoiacutesta abandonando-a a todas as incertezas do futuro Retirava-lhe a muleta que eu era mesmo no centro do precipiacutecio Precisava urgentemente duma esperanccedila que lhe garantisse a felicidade E afinal nem lhe podia certificar coisas tatildeo banais como a escola roupa comida Felizmente soacute depois de chegar agrave ilha eacute que percebi que era o maior perdedor Nunca mais acordei ao som da sua voz nunca mais passeei na margem do Cacheu guiado pela sua matildeo nunca mais frui dos poentes vermelhos de fogo com a sua cabeccedila no meu regaccedilo Perdi de uma vez por todas o direito aos seus insoacutelitos presentes um bolo de coco feito pela matildee o passarinho muito inho que apanhava na cerca da palhota e depois domesticava o prazer de comer a primeira manga que a estaccedilatildeo amadurava E acabaram os nossos diaacutelogos onde a Poesia pontificava na contenccedilatildeo das palavras e na extensatildeo dos silecircncios E desta vez foi sobre o meu rosto que voltei a sentir o peso disforme da sua laacutegrima gorda Fiquei sem jeito Falei a Segunda na distacircncia real das nossas terras e das nossas culturas da incerteza do meu futuro bastamente comprometido pela inutilidade dos

16

anos vividos e de todo irrecuperaacuteveis Adensei tudo com verdades dramaacuteticas deixando transparentes a incerteza a cobardia e o pecado da omissatildeo Descrevi-lhe depois as deliacutecias da terra prometida como se fossem dela Antevi-lhe um amanhatilde mentirosamente risonho e deixei-lhe relevada a beleza demagoacutegica da sua paacutetria Olhou-me atordoada inconvencida amuada distante ndash maacutescara que soacute desfez na veacutespera da partida Quando os batelotildees ndash que nos levariam Cacheu abaixo rumo a Bissau ndash chegaram rodeados de barcos-patrulha restavam vinte e quatro horas para estarmos juntos Vivemo-las tatildeo intensamente que me deitei exausto No momento de largar fizemos por nos ignorar Combinaacuteramos evitar o melodrama E Segunda laacute ficou sobre o cais de madeira o dedo na boca os olhos avaramente enxutos assombrando a alegria do meu regresso com a sua recalcada tristeza Ficou sozinha ndash sei laacute com que futuro Ainda hoje sabendo que cresceu e que cumpre o seu destino na paacutetria sem as virtudes que lhe fiz crer dou por mim a soccedilobrar com esta saudade e este remorso Sou-lhe eternamente devedor Se lhe dei alguns meses de comezinha felicidade ele deu-me a coragem de continuar vivo num tempo e num lugar onde a morte chegava a ser uma becircnccedilatildeo do ceacuteu Desses tempos de conviacutevio diaacuterio com as mil presenccedilas da morte haacute imagens que continuam a perseguir-me Bem sei que eacute um disparate jaacute que os meus ressentimentos medos e fantasmas natildeo oferecem resistecircncia de maior Tecircm vindo a diluir-se como a tinta dos maus frescos renascentistas Mas natildeo consigo esquecer-me de Segunda com o seu belo corpo esfaimado a sua resignaccedilatildeo e a sua indiferenccedila perante a presenccedila e a superioridade da tropa Por isso espanto-me que volvidos tantos anos a minha principal referecircncia da Guineacute tenha o tamanho dessa negrinha de olhos grandes e de sorriso branco cujo corpo exalava o perfume inexplorado da floresta e que gostava de se sentar comigo sobre o cais de madeira a ver o sol esconder-se atraacutes da mata de Ohio E que me queimou a alma com uma laacutegrima gorda Segunda deve ser agora uma grande poeta Valha-me esta consolaccedilatildeo sofrida que ser poeta natildeo eacute bem que se deseje nem sequer ao inimigordquo

17

2ordm Ato (Extrato) Os Sonhos do Infante Ediccedilatildeo Jornal de Cultura 1995

ldquoO uacuteltimo sonho o re-encontro Talvez ningueacutem saiba porquecirc nem para quecirc ANTOacuteNIO - Quem sois INFANTE - Que pergunta desnecessaacuteria ANTOacuteNIO - Desculpe Parece-me que o conheccedilo INFANTE - E nem precisas de fazer muito esforccedilo ANTOacuteNIO - Assim de branco INFANTE - Jaacute sei Pareccedilo-te uma noiva de bigode ANTOacuteNIO - Desculpai senhor Jaacute natildeo o via haacute tantos anos INFANTE - Haacute muitos anos ANTOacuteNIO - Andaacuteveis vestido de preto INFANTE - A cor eacute-me indiferente Os seacuteculos purificam os tons escuros Deixam aparar as impurezas Depois vatildeo corando Um dia fica soacute a cor precisa e segura ANTOacuteNIO - Natildeo estou a entender INFANTE

18

- Querias apenas dizer que enquanto os homens satildeo de memoacuteria curta a Histoacuteria encarrega-se de gravar quanto interessa na memoacuteria dos livros e das pedras ANTOacuteNIO - Reconheci-o E natildeo nascemos propriamente no mesmo seacuteculo INFANTE - Seria difiacutecil esquecerem-me Natildeo que o natildeo tenham tentado Aliaacutes este meu paiacutes nunca me mereceu ANTOacuteNIO - Como assim INFANTE - Natildeo teve corpo para arrumar a minha alma Natildeo teve matildeos para agarrar quanto lhe dei ANTOacuteNIO - E isso era possiacutevel INFANTE - Claro que era Bastava que houvesse a mesma grandeza de alma Mas natildeo De descoberta a descoberta foram-se enredando em intrigas em oacutedios em venenos Depois de cada conquista queriam outra conquista e perdiam a primeira ANTOacuteNIO - Mudar pode ser sobreviver INFANTE - Natildeo era mudar Era perder Foi assim que os meus sonhos se foram enchendo de brumas e de silecircncios ANTOacuteNIO - Senhor tanto que se fala de si INFANTE - Agora Este paiacutes sempre viveu de luas Todos os anos vai ao bauacute do passado e desenterra um morto Logo se apressa a ver-lhe os ossos a descobrir-lhe as viacutesceras da virtude do saber dos feitos Depressa sai do anonimato para ser o santo o saacutebio

o heroacutei Durante vinte e quatro horas eacute o bombo da festa a masturbaccedilatildeo coletiva o orgulho da comissatildeo ANTOacuteNIO - Jaacute ouvi isso INFANTE - Agraves vezes esquecem-se dele na praccedila Nem sequer tecircm o cuidado de lhe arrumar outra vez os ossos AFONSO - Consigo eacute diferente INFANTE - Comigo nunca foi diferente Andam agora a assoalhar-me numa pressa escolar que mete doacute Obrigam as criancinhas a saber de mim enchendo-lhes a cabeccedila com sonhos que natildeo sonhei ANTOacuteNIO - Todos dizem que sempre foi um sonhador INFANTE - Eram sonhos meus Originais Agora querem fazer passar por meus os seus proacuteprios sonhos numa acircnsia de rasurar pesadelos Quando sonhava sonhava em grande Nunca fui mediacuteocre CONSTANCcedilA - Isso sabemos INFANTE - Natildeo tanto que o tivessem aprendido ROMUALDO - Viajamos tanto INFANTE - Por necessidade Falta-vos a coragem de aventurar ANTOacuteNIO - Aventurar As nossas aventuras satildeo o que satildeo

19

INFANTE - Apenas JOSEacute - Por vezes quisemos imitar-vos INFANTE - Sem chama DIOGO - Quisemos ir aleacutem da ilha completar outras viagens INFANTE - Sem convicccedilatildeo ANTOacuteNIO - Sabemos navegar INFANTE - Sem rumo que interesse FRADE - Estais a retirar-nos a Poesia INFANTE - Natildeo Apenas a tentar dizer que a Poesia eacute sonho e eacute tanto mais grandiosa quanto maior eacute o sonho FRADE - Desisto de falar INFANTE - Desistir eacute um verbo cobarde Na verdade viveis num paiacutes desistido ANTOacuteNIO - Natildeo temos remissatildeo

INFANTE - Depende da vossa forma de redimir FRADE - Um apelo agrave Histoacuteria por exemplo INFANTE - Dei-vos estas ilhas carregadas de Histoacuteria Fiz delas o poiso de todas as viagens Aqui foram dadas em primeira matildeo as novas de achamento Aqui se desfizeram segredos aqui se informaram povos e culturas aqui o mundo se tornou sabido BEATRIZ - Foram outros tempos INFANTE - E deixaram-nos perder JOSEacute Natildeo tanto assim Ainda temos aviotildees que rapidamente nos trazem outras gentes INFANTE - Poucas DIOGO - E todos os dias sabemos do mundo sobre a hora de qualquer acontecimento INFANTE - Entatildeo porque vos queixais CATARINA - Talvez porque apenas recebemos e nada damos LEONOR - Talvez porque natildeo podemos digerir quanto recebemos ROMUALDO - Talvez porque natildeo temos tempo de sonhar connosco proacuteprios

20

AFONSO - Talvez por causa desta solidatildeo mal quebrada MARIA - Ou por termos as portas mal abertas BELISA - Natildeo termos asas INFANTE - Sois na verdade bem pequenos Natildeo sois capazes de desenterrar os vossos heroacuteis os vossos santos os vossos poetas ANTOacuteNIO - Dos nossos heroacuteis e santos pouco sabemos Permanecem quase todos sob o manto diaacutefano das lendas E os poetas satildeo malditos INFANTE - Todos os poetas satildeo malditos Eacute por isso que satildeo poetas Todos os heroacuteis e santos satildeo lendaacuterios Eacute por isso que permanecem Que conheceis de mim ROMUALDO - Pois Talvez o bastante Ou talvez coisa nenhuma JOSEacute - A vossa imagem de negro no poliacuteptico de Satildeo Vicente eacute uma referecircncia obrigatoacuteria INFANTE - Apenas tecircm referecircncias E no entanto eacute o suficiente para que o sonho aconteccedila Para que preparem todas as viagens e as realizem por seus rumos certos e cheguem agraves terras previstas E aiacute aconteccedilam os outros sonhos os do patildeo e os da cultura FRADE - Isso nos disseram aqui haacute poucos anos E nada aconteceu ANTOacuteNIO - Eis como ficaacutemos pobres e mudos

INFANTE - Mas natildeo presos As vossas amarras satildeo mais inventadas que reais Peguem nos vossos poetas e bebam o sangue da sua Poesia Sem amor natildeo haacute sonho possiacutevel (Saiacuteda falsa) ANTOacuteNIO - Jaacute vos ides INFANTE - Jaacute O tempo de estar na vossa memoacuteria chegou ao fim Volto para as paacuteginas da histoacuteria de um livro que vai ficar intocaacutevel na prateleira da vossa estante Eacute o meu tuacutemulo preferido Natildeo quero que me abandonem nas ruas a desbotar em cartazes Natildeo quero ficar em textos de circunstacircncia em programas tidos de prestiacutegio em espetaacuteculos de teatro sem teatralidade capaz O que eu tinha de ser jaacute fui Se me comeram a carne podem roer-me os ossos A um morto tanto se lhe faz ANTOacuteNIO - Afinal tambeacutem perdeste os sonhos e a vontade de sonhar INFANTE - Soacute sonha quem estaacute vivo Vocecircs estatildeo vivos Podem sonhar (Sai)rdquo

RIMANCE DE DONA BALEIA IMPRESSOtildeES DE BOCA EDICcedilOtildeES DRAC 1992 PP 31-32 E 33

ldquoestava dona baleia - foge foge meu amor a regar o seu jardim ateacute agraves aacuteguas do frio com seu repuxo de prata soacute aiacute te sei segura e sorriso de alfenim a regar o teu jardim quando o foguete estalou com teu repuxo de prata laacute no alto da vigia e sorriso de alfenim anunciando a caccedila mas a canoa da morte (que susto santa maria) corre depressa demais dona baleia - coitada daqui lhe aceno a vida logo parou de aguar feito pedrinha do cais as algas que floriam e grito seu nome drsquoaacutegua

21

bem agrave tona do mar (seu matador quem seraacute) eacute entatildeo que a tristeza procura quantos te amam o medo a afliccedilatildeo Jonas deus iemanjaacute saltam do cais dos olhos de nada lhe serve o grito aos ombros do coraccedilatildeo Nada mais posso fazer um grito aberto se ouve o arpatildeo laacute vai direito em eco de mar perfeito no seu peito embater - baleia agrave vista baleia patildeo-nosso de qualquer jeito ai pobre dona baleia e laacute vai dona baleia como te custa viver fugindo pra natildeo morrer - deus a salve do arpatildeo morreu dona baleia deus a queira proteger arpada de oacutedio velho todo o silecircncio do mar ai pobre dona baleia ficou tinto de vermelho como te custa viver os peixes choram tambeacutem envolta em lenccedilol de sangue mar manso todo rasgado dona baleia laacute vem baba de espuma agrave quilha arrastada ateacute ao cais dona baleia procura seu corpo esquartejado escapar da armadilha nas caldeiras derretido que eacute o arpatildeo voador daacute o patildeo amargurado anjo de ferro esguio e algueacutem haacute de gravar nos seus dentes de marfim eram cinco sois a arder o barco que a perseguiu cinco talhadas de lua o arpatildeo que lhe deu fim que deus lhe quis oferecer no ceacuteu as aves e as nuvens correm do sul para o norte agora dona baleia sobre o mar e sobre a ilha jaacute natildeo lhe custa viverrdquo paira o silecircncio da morte e haacute um poeta branco agrave minha porta a bater natildeo vou abri-la natildeo vou jaacute sei o que vem dizer ai pobre dona baleia como te custa viver agrave costa como um poema

a desfazer-se na areia vieram cinco mareacutes chorar a dona baleia duas choravam espuma - branca nuvem de veratildeo traziam como homenagem um buacutezio em cada matildeo as outras duas chegaram fracas de tanto chorar tanto sal nas suas laacutegrimas tanto sal e tanto mar a quinta mareacute natildeo chora traz apenas no regaccedilo um grande ramo de algas amarrado com um laccedilo deixa-o deposto na costa de seguida reza e canta satildeo cantigas de saudade versos presos na garganta desfeitas satildeo as mareacutes

CARTA DE JOAtildeO VALENTE (RAMINHENSE DA TERCEIRA) A SEU IRMAtildeO EMBARCADO NA CALIFOacuteRNIA (GASTINHAS) OU ENTAtildeO CANTIGAS DE COMO SE PICAM OS OLHOS DA MISEacuteRIA EM PICOS DE ABUNDAcircNCIA

ldquoEscrevo-te esta carta Gostei de saber que tens Pra saber como vais passando Friza e um novo mexim A saudade eacute que nos farta Socircfas clausetas sertatildes Mas por caacute vamos andando E alvaroses dingrim Muito bem graccedilas a Deus Jaacute sei que tens um fogatildeo Nestas linhas que alinhavo Uma trela e talaveija Muito mal desejo aos teus E que jaacute vives no Tatildeo Tameacutem sauacutede Por mim cavo - Mas que sorte salvo seija Desta hora a matildeo na pena E cuma pisca de doacutelas Poucas letras e saberes Te vestiste numa estocirca

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

7

NA GALIZA NO 18ordm COLOacuteQUIO DA LUSOFONIA 2012

NA GALIZA NO 18ordm COLOacuteQUIO DA LUSOFONIA 2012

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

8

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

9

MOINHOS 2014 NO 21ordm COLOacuteQUIO

Estoacuteria de Natal Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 25-31

ldquoToda a manhatilde Gustavo andou numa excitaccedilatildeo desusada Levantara-se cedo sem apelos cumprindo prontamente o que noutros dias fazia com demasiada preguiccedila Com a matildee ornamentara a aacutervore de Natal e armara um lindo preseacutepio fulgurante de pedras e musgos com caminhos de areia casas de cartatildeo e pessoas de barro Bombardeou a matildee com perguntas tentando identificar as figuras com as de carne e osso na acircnsia de entender uma vez por todas as mil atribulaccedilotildees que concorreram para que o Menino Jesus fosse nascer na velha arribana dos arredores de Beleacutem Sempre que a curiosidade o fulminava os seus olhos castanhos ficavam ainda maiores e apesar dos seus escassos cinco anos natildeo se deixava satisfazer com qualquer resposta Ouvia e questionava ndash natildeo por desconfiar das palavras da matildee mas porque queria compreender os pormenores e sobretudo desfazer as contradiccedilotildees Intrigava-o a prepotecircncia daquele recenseamento imposto contranatura pelo Imperador de Roma ndash violador poderoso da vontade de povos tatildeo pequenos e indefesos como o da Judeia ndash a quem comparava com ingeacutenua repugnacircncia agrave Ameacuterica agrave Ruacutessia agrave Indoneacutesia nas suas violaccedilotildees internacionais consagradas e legitimadas Era-lhe impensaacutevel que pudessem obrigar a matildee ndash graacutevida do seu proacuteximo irmatildeo ou irmatilde ndash a ir ateacute agrave cidade para um simples dar o nome incomodando-a nesse belo embaraccedilo da vida Ele sabia que era necessaacuterio evitar qualquer perturbaccedilatildeo No ventre da matildee crescia o seu sonho mais apetecido com o qual jaacute partilhava o melhor dos seus afetos Irmatildeo ou irmatilde natildeo era duacutevida que o apoquentasse Apenas desejava que o tempo passasse depressa para que o nascimento se desse Atraveacutes da voz da matildee foi visionando os longos caminhos de terra e pedregulhos as chuvas de dezembro enlameando o corpo e a alma as noites longas e escuras dormidas ao relento de Nazareacute a Beleacutem E imaginava as apreensotildees muacuteltiplas que S Joseacute e Nossa Senhora ruminaram perante os perigos eminentes de assaltos e desfeitas incluindo as pragas engolidas contra quem assinara o edital romano e os incomodava sem rebuccedilos soacute para se dar ao luxo de saber sobre quantos desgraccedilados impunha o seu poder ldquoPorque natildeo foram de camionetardquo perguntou Gustavo E ficou a saber que nesse tempo longiacutenquo e quase lendaacuterio as camionetas eram simplesmente imprevisiacuteveis e que andar de burro era mesmo assim um privileacutegio de remediado Muitos outros ndash

10

mulheres velhos e crianccedilas ndash teratildeo ido a peacute sem mais contemplaccedilotildees Ele nem queria acreditar que pessoas como os avoacutes tivessem sido obrigadas a deixar as suas casas enfrentando os medos de caminhos pejados de salteadores soacute para satisfazerem os caprichos de um imperador que se quedava na sua enorme cidade no esplendor do seu palaacutecio com tanto de lonjura como de tropas e escravos E havia tambeacutem o despeito pela liberdade ferida um oacutedio mudo mas natildeo adormecido de quem se via sujeito ao poder estrangeiro que desrespeitava a alma a cultura a religiatildeo o direito de ser povo ldquoNaqueles dias Beleacutem tinha as casas e as ruas abarrotadas de gente de ruiacutedos e de cheirosrdquo ldquoComo nas touradasrdquo perguntou Gustavo ldquoMais do que nas touradasrdquo confidenciou a matildee Devia ter sido terriacutevel esse chegar a Beleacutem ao fim de dias de atribulada viagem mergulhar num oceano de gente que zaragateava como enxame gigantesco atropelando-se nas bichas de inscriccedilatildeo agraves portas das tabernas das casas de pasto das pensotildees dos abrigos improvisados Gritava-se pelos guardas sempre impassiacuteveis para denunciar os roubos a partilha de um lugar agrave mesa ou de um recanto onde se pudesse dormir Viam-se as consequecircncias da embriaguez atraveacutes das brigas dos insultos dos piropos soezes Mulheres de porte faacutecil deixavam-se apalpar entre gargalhadas e algumas moedas por transeuntes ocasionais As ruas nauseavam de restos de comida de excrementos de corpos por lavar A cidade era um incomensuraacutevel caixote de lixo ldquoQuando S Joseacute e Nossa Senhora entraram em Beleacutem anoitecia Foram percorrendo as ruas por entre pragas e tropeccedilotildees e os relinchos espantados da burra Havia pessoas deitadas nas valetas os corpos entranccedilados num rodilhatildeo de promiscuidades Algumas janelas deixavam passar a luz deacutebil das lamparinas de azeiterdquo ldquoAinda natildeo havia luz eleacutetricardquo interrompeu Gustavo ldquoNatildeo meu filho A eletricidade eacute bastante recenterdquo ldquoCoitadinhos Entatildeo natildeo iluminavam as aacutervores de Natalrdquo ldquoClaro que natildeo O Menino Jesus ainda natildeo tinha nascidordquo ldquoAh simrdquo E Gustavo sorriu da sua proacutepria infantilidade Nossa Senhora chegou exausta Respirava com dificuldade Tinham chegado dores de corte de faca ao seu baixo-ventre Estava na hora do parto S Joseacute desatinou numa corrida desesperada batendo a todas as portas E sempre recebeu a mesma resposta ldquoNatildeo haacute lugar nem para ficar de peacuterdquo Voltou para junto de Nossa Senhora com um desalento mortal A hipoacutetese do seu filho nascer numa rua qualquer de Beleacutem rodeado de gentes desconhecidas e despudoradas fazia-lhe subir agrave garganta uma anguacutestia de voacutemitos e de laacutegrimas Dentro de si gritava ldquoO meu filho natildeo pode nascer aqui Vai morrer de friordquo E com a burra presa pela arreata empurrava as pessoas

para o lado sem que soubesse que direccedilatildeo perseguir Nossa Senhora contorcendo-se de dores e de afliccedilotildees procurava aparentar uma serenidade impossiacutevel ldquoFossem para o hospital mamatilderdquo ldquoTambeacutem natildeo havia hospitaisrdquo ldquoQuando ficavam doentes onde eacute que se tratavamrdquo ldquoProvavelmente tratavam-se em casa A natildeo ser que fossem leprosos ndash uma doenccedila ruim que os afastava dos parentes e dos amigosrdquo ldquoComo a sidardquo Mas Gustavo natildeo esperou pela resposta Impacientava-o ter deixado S Joseacute e Nossa Senhora naufragados nas ruas de Beleacutem e o Menino Jesus quase a nascer Valeu-lhes uma velhinha que disse haver fora das portas da cidade uma pequena arribana coberta de palha Nem agradeceram a informaccedilatildeo Com a burrinha a trote correram para laacute Foi quando se deu o milagre Um pelotatildeo de anjos desceu do ceacuteu e logo agrave saiacuteda de Beleacutem transportou a burrinha com Nossa Senhora e S Joseacute ateacute agrave arribana Os anjos batendo as suas magniacuteficas asas entoavam com vozes celestes muacutesicas que satildeo apenas de anjo Cantavam a noite feliz acompanhados por bandolins violinos violas e um acordeatildeo O mais pequenino ndash roliccedilo loiro e de olhos azuis ndash importunava o coro e a tuna com o seu tambor desritmado pum pum pum pum ndash quatro toques seguidos de rufo Ningueacutem viu Mas foi muito bonito Logo que chegaram os anjos pegaram em paacutes e vassouras e aprestaram-se a limpar o curral a varrer a arribana assustando uma vaca que tambeacutem aguardava a hora de parir De seguida prepararam com feno uma cama para Nossa Senhora enquanto S Joseacute recorrendo a ferramenta abandonada fez das taacutebuas da baiacutea um confortaacutevel bercinho Acenderam duas lanternas que dependuraram sobre a cama onde Nossa Senhora gemia Depois sossegaram em saborosa expectativa De repente ouviram um grito vindo do curral seguido de choro profundo Alguns anjos acorreram lestamente O mais pequenino caiacutera numa poccedila de lama sujando o vestido e as asas Rompera tambeacutem a pele do tambor Ficou com o ar mais desolado do mundo O Chefe dos anjos logo comeccedilou a repreendecirc-lo ameaccedilando-o com o regresso forccedilado ao ceacuteu seguido duma novena de recreios interditos e fechado numa nuvem S Joseacute poreacutem depois de o limpar pacientemente pegou-lhe ao colo e levou-o para dentro Com o susto ateacute fizera chichi na fralda Gustavo sorria A matildee tentava natildeo entrar nos pormenores do parto O seu pudor empurrava-a para devaneios descritivos que Gustavo natildeo perfilava Colocou os anjos do coro e da tuna suspensos dos tirantes em posiccedilotildees de equiliacutebrio acrobaacutetico Fez com que repetissem muito baixinho a noite feliz E foi nesse entretanto que o Menino

11

Jesus nasceu Era meia-noite em ponto S Joseacute tivera o cuidado de confirmar pelo reloacutegio ldquoFoi por cesariana ou parto normalrdquo quis saber Gustavo ldquoParto normalrdquo respondeu a matildee que se apressou a empurrar os anjos pela arribana fora desatinados de contentamento voando sobre os pastores do mundo inteiro e acordando-os com o hino ldquoGloria in excelsis Deordquo Era um barulho intensamente doce iluminado por estrelas danccedilantes Algumas delas por falta de cuidado chegaram mesmo a cair Mas uma outra mais esperta e avisada desviou-se daquela confusatildeo luminosa e foi ateacute ao oriente para depois guiar os quatro reis magos que vinham de Taacutersis Aacutefrica Peacutersia e Sabaacute ateacute agrave arribana de Beleacutem Chegaram trecircs carregados de oiro incenso e mirra ndash ofertas de pouco sentido praacutetico e que mais tarde os inteacuterpretes de evangelhos procuraram em vatildeo descodificar O quarto rei poreacutem perdeu-se Soacute chegou trinta e trecircs anos mais tarde sem nada para oferecer Tambeacutem Jesus jaacute natildeo precisava Pregado na cruz apenas lhe apetecia morrer ldquoA matildee estaacute a desconversarrdquo disse Gustavo E estava O Natal era o Natal e soacute o Menino Jesus interessava Voltaram agrave arribana que estava quase vazia O anjo pequenino teimava com o Menino Jesus para que experimentasse tocar tambor Sem lhe dar qualquer atenccedilatildeo e consciente de tarefas mais urgentes mamava gostosamente A noite arrefecera Nevara sobre a serra e um vento corrupto trazia o frio ateacute agrave arribana O Menino Jesus podia enregelar Entatildeo a vaca e a burrinha aproximaram-se aquecendo-o com o seu bafo quente e huacutemido Nossa Senhora e S Joseacute sorriam e beijavam ternamente o Menino que depois de mamar adormeceu Colocaram-no no bercinho e o anjo do tambor comeccedilou a embalaacute-lo ldquoEacute por isso que o teu preseacutepio tem um anjo uma burrinha e uma vacardquo disse a matildee Gustavo olhou-o e confirmou Depois natildeo se conteve e perguntou ldquoMamatilde o Menino Jesus teve irmatildeosrdquo ldquoNatildeo meu filho Ele eacute sempre o Menino Jesusrdquo Entatildeo abraccedilando ternamente a barriga da matildee concluiu ldquoNatildeo sabe o que perdeurdquordquo

Com Perfume e Com Veneno

laquoOs membros do gabinete do senhor Presidente estavam em pacircnico Haacute dois dias

que procuravam contactar por telefone a pequena ilha para anunciarem a data do programa da visita constitucional Mas o telefone apenas devolvia ruiacutedos intermitentes que natildeo forneciam qualquer interpretaccedilatildeo teacutecnica Era como se estivessem a ligar para o ponto zero do quintal mais proacuteximo E no entanto era urgente cumprir a lei que prescrevia laquoAo menos uma vez por mandato o governo visitaraacute cada uma das suas ilhasraquo Faltava a mais pequena e mais distante Eacute que passado quase um seacuteculo o mandato terminava na semana seguinte e em veacutesperas de eleiccedilotildees nenhuma ilegalidade podia transformar-se em trunfo nas matildeos da oposiccedilatildeo Soacute que o telefone natildeo atinava com aquela ilha pequena e distante O eco nem tinha forccedilas para lhes devolver o apelo

Houve que reunir de emergecircncia As calviacutecies aumentaram branquearam cabelos

fizeram-se esforccedilos suplementares e aconteceu o habitual suores frios e derramamentos cerebrais Mas natildeo conseguiram qualquer contacto com a ilha mesmo com funcionaacuterios destacados para discar o nuacutemero durante vinte quatro horas

Sobre a mesa de reuniotildees puseram todas as hipoacuteteses avaria do uacutenico telefone

da ilha (a Companhia natildeo o podia comprovar e muito menos reparar) que os habitantes andavam a festejar o Espiacuterito Santo (era eacutepoca disso) que estavam a ensaiar folclore (em tempos tinham-lhes prometido um passeio) que os membros da filarmoacutenica estavam a aprender a tocar o hino para a eventual visita do senhor Presidente que se mantinham ocupados em qualquer acontecimento social Mas em

12

circunstacircncia alguma ficariam impedidos de passar mesmo que fugazmente pelo telefone

Puseram entatildeo hipoacuteteses mais convencionais descontentamento com a

governaccedilatildeo (nem sequer conheciam o senhor Presidente) mudanccedila de paacutetria (a Ameacuterica ali tatildeo perto e muito mais rica) algueacutem com a conivecircncia do padre dera o grito de independecircncia e pronto

(hellip) Partiram como calhou Pouca bagagem Nada de coisas supeacuterfluas O Chefe de

gabinete meteu na pasta o mais importante o discurso que o senhor Presidente iria proferir- o mesmo que jaacute lera nas outras ilhas Enfiaram tambeacutem trecircs jornalistas e um operador de cacircmara de televisatildeo para o registo oacutebvio Era o qb O senhor Presidente enjoava a bordo e por simpatia os membros do gabinete enjoavam tambeacutem Era bonito ver toda aquela solidariedade governativa Conseguiam mesmo imitar os roncos presidenciais que com a continuidade desfaleciam ateacute se transformarem em gemidos agoacutenicos Mas soacute numa viagem como aquela se conseguia avaliar o sacrifiacutecio de governar ilhasraquo

(hellip) O barco foi-se aproximando Reduziu a velocidade e deslizou como tapete rolante

ou mosca sobre taccedila de gelatina E quando o cais ficou agrave matildeo de atracar jaacute todos tinham caiacutedo no oceano do desacircnimo Eacute que nem as autoridades autaacuterquicas nem a filarmoacutenica nem grupo de folclore nem o padre nem qualquer pessoa se postara sobre o cais para esperar tatildeo ilustre comitiva Os jornalistas sentiram-se enfim analfabetos e o operador de cacircmara o escravo de todas as maacutequinas inuacuteteis Pela primeira vez era possiacutevel provar que se pode reduzir qualquer governo agrave sua insignificacircnciaraquo

(hellip) Com Perfume e Com Veneno de Aacutelamo de Oliveira Ed Salamandra 1997 in

httplivrariasolmarblogspotpt201005com-perfume-e-com-venenohtml

13

14

Por Uma Laacutegrima Gorda Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 11 a 21

ldquoA lembranccedila mais agradaacutevel que guardo (mas que eacute tambeacutem do tamanho do meu remorso) eacute a da negrinha Segunda Dei por ela no dia em que vi uma laacutegrima gorda rolar-lhe pelo rosto e estatelar-se sobre a mesa Nunca mais vi laacutegrima que se lhe comparasse em tamanho e amargura uma bola de cristal de maga velha Fiquei perplexo sem saber como era possiacutevel acumular tanta dor salgada Estava em Binta terriola da Guineacute-Bissau que fora porto importante da exportaccedilatildeo de mancarra e arroz nos tempos da escravatura suave do imperialismo lusiacuteada Estava ali fardado de soldado mal fardado apegando-me a um quotidiano enformado por horas inseguras por um teacutedio amassado a suor e a cachimbo e resignado a uma paisagem de aacutervores fendida pelas aacuteguas verdes do rio Cacheu ndash alameda por onde passeavam hipopoacutetamos crocodilos e algumas cobras Tudo isto exercia sobre mim e os meus companheiros de destino o efeito de um soporiacutefero maldito ndash mistura de medo e de torpor que nem o luar de marccedilo esmaecia Era como se a vida tivesse adormecido sobre o arame de um circo desprovido de rede em que o equiliacutebrio se desafiava a si proacuteprio e sem que houvesse a miacutenima razatildeo para evitar a queda e a morte Por isso a laacutegrima gorda de Segunda foi a minha taacutebua de salvaccedilatildeo O que ateacute hoje fiz de mais uacutetil foi ensinar a ler e a escrever agraves crianccedilas de Binta Todos os dias ocupaacutevamos uma palhota que fora abandonada logo que o arame farpado delimitou a aacuterea do quartel Apesar da falta de material didaacutetico as crianccedilas de Binta foram desenhando letras formando palavras descobrindo a grafia da voz e aprendendo que para aleacutem dos seus inconfundiacuteveis meacutetodos de comunicaccedilatildeo tambeacutem era possiacutevel fazecirc-lo atraveacutes da escrita e da leitura No meio dos progressos escolares sentia-me pai-natal ao contraacuterio recebendo mais do que dava e por isso mais feliz do que aquele pequeno bando de negrinhos que diariamente me aparecia vestido de trapos e de sujidade e visivelmente mal alimentado Mas nesse tempo de infernos de convivecircncia com a morte com a injusticcedila e outros males complementares a tarefa de professor devolvia-me alguma da dignidade perdida Foi nessa escola com teto de palha que reconquistei o equiliacutebrio mental e sobretudo o quanto necessitava para sobreviver e poder regressar mais tarde com as minhas lembranccedilas e os meus remorsos Segunda frequentava a minha escola e prendi-me a ela com todos os tentaacuteculos do coraccedilatildeo por causa da tal laacutegrima gorda que um dia deixou cair sobre a mesa

Entatildeo soube-lhe o nome e descobri a sua inteligecircncia e a sua beleza Um estuacutepido becirc maiuacutesculo fecirc-la tropeccedilar no complicado desenho ndash as barrigas sobrepostas como mulher graacutevida duas vezes Simplifiquei o desenho e dei-lhe um beijo na testa E logo o becirc saiu com a forma perfeita Dedicou-me a vitoacuteria com uma cariacutecia na matildeo e o sorriso mais cheio de ternura que algueacutem me deu Assim nasceu a nossa amizade que logo se enredou de muitas e complexas cumplicidades Almoccedilou comigo Partilhamos o rancho ndash da minha parte sem qualquer sacrifiacutecio Tratava-se duma mistela de arroz com rodinhas de salsicha enlatada sem outro sabor que natildeo fosse aquela fome tentacular e corrosiva Segunda quase me irritou com o seu apetite demolidor A sua fome era tambeacutem secular Custava-me aceitar essa verdade sem que o estocircmago natildeo me enfezasse com a sua uacutelcera de revolta Olhei-a mais uma vez e soacute vi a claridade inocente dos seus olhos lindos Passou-me a birra Segunda era como se fosse uma flor de maio ndash intacta delicada e por isso suscetiacutevel ldquoViraste infanticidardquo ouvi dizer Ignorei de quem vinha a piada Natildeo me deixei morder Queria Segunda nessa duacutebia qualidade de irmatilde e de filha ldquoQuantos anos tensrdquo ldquoOito chuvardquo Partiu levando uns restos de comida numa lata enferrujada ldquoPa mecircs irmatildeordquo disse Os seus peacutes descalccedilos levantaram uma linha de poacute vermelho que foi sumir-se de encontro aos arrevesados atalhos da tabanca Ateacute parecia que naquela lata supurenta levava a alma da felicidade E era essa reles felicidade que me deixava abaixo de catildeo Levantei-me com a vontade incontrolaacutevel de me vomitar Fui ateacute ao rio Fechei os olhos e respirei fundo O sol bateu-me no corpo com os seus raios de fogo secando o asco que me subia do estocircmago ao ceacuteu-da-boca Sabia que se gritasse me libertaria do remorso subjugante da guerra e das razotildees submersas de um colonialismo apodrecido de poder Mas estava na hora dos silecircncios quentes da vida de Aacutefrica descansar agrave sombra do torpor da sua desgraccedila Acabei por me perder numa sueca encharcado de cerveja Ser luacutecido ali natildeo era virtude que se cultivasse Antes o aacutelcool Infinitamente Acordei com o ciciar de Segunda ldquoSocirc pofessocirc Socirc pofessocircrdquo Esfreguei os olhos afastando as uacuteltimas teimosias de sono e ela laacute estava com o seu sorriso e o meu pequeno-almoccedilo Comemos e fomos para a escola Com o ridiacuteculo da minha acircnsia transferi para Segunda quanto me restava de afeto e de orgulho Babava-me perante a sua capacidade de aprender e sobretudo de apreender os significados complexos da vida Era brilhante Tanto se lhe dava navegar nos mapas sucintos da grandeza do mundo descobrindo gentes de outras longitudes e civilizaccedilotildees como se fixava no desenvolvimento das complicadas operaccedilotildees de aritmeacutetica somando ternura diminuindo tristeza multiplicando afetos dividindo solidariedade A sua vontade era contagiante Alguns meses depois sete dos meus alunos foram a Safim fazer o exame da quarta classe Ficaram aprovados com distinccedilatildeo Mas soacute Segunda me pareceu digna

15

desse privileacutegio Andava eufoacuterico e tambeacutem infantil premiado com o seu sorriso distinto E com a sua pobreza E isso eacute que me constrangia Era uma pobreza sugadora progressiva medonha irresponsaacutevel Segunda era o rosto singular dos seus companheiros de tabanca de Aacutefrica Comiam os restos da tropa Via-lhes as barrigas entumescidas de fome os olhos desvitaminados os ossos salientes sob a pele das disenterias os rostos sujos do chatildeo que lhes servia de cama os cadernos enodoados de terrosas impressotildees digitais Tudo isto me afogava no lodo de um remorso inconsequente e procurava purificar-me no meu afeto por Segunda Dei-lhe uma camisa velha a que cortara as mangas e acinturei com um cordel Ficava-lhe bem Ficou com um ar de rapariguinha exoacutetica tipo modelo para neacutegligeacutee de alta moda No dia seguinte voltou sem a camisa Dera-a ao pai Mas foi a partir desta pequena doaccedilatildeo que virei estilista Mamadu ndash balanta e muccedilulmano ndash herdara de um colono fugido agrave guerra uma velha maacutequina de costura Com ela apertava-nos as fardas a troco de alimentos que surripiaacutevamos da arrecadaccedilatildeo de geacuteneros uns quilos de arroz patildeo oacuteleo latas de conserva Procurei restos de fardas e levei-os ao homem da maacutequina de costura Desenhei um vestido de corpo justo mangas de balatildeo saia com folhos sobrepostos cintura arrematada com laccedilo nas costas ndash tudo dividido pelos dois tecidos possiacuteveis o verde liso e o camuflado ldquoNatildeo nosso sordado Natildeo sei fazerrdquo disse Mamadu Entatildeo talhei alinhavei e dei indicaccedilotildees sobre o que a agulha da maacutequina devia pespontar ldquoNosso sordado ser artistardquo o vestido suspenso pelos ombros e exposto ao olhar admirado de Mamadu Arquivei o elogio e nunca lhe confessei que naquela peccedila de roupa investi toda a minha ciecircncia sobre costura ndash e tambeacutem o meu receio e a minha ignoracircncia Eacute que soacute por acaso o vestido resultara Segunda eacute que ficou ainda mais bonita Pela primeira vez despertara-se-lhe a vaidade de mulher Confundida e enleada mirou-se no espelho do cabo enfermeiro e correu para a tabanca a fim de explorar a seduccedilatildeo do seu vestido novo Poreacutem mais uma vez o imprevisto derrotou-me Segunda apareceu-me com o vestido numa laacutestima Esquecera-me de lhe pedir que o despisse antes de se deitar Mas natildeo desisti Roubei quanto pude na arrecadaccedilatildeo de geacuteneros e fizeram-se vestidos saias calccedilotildees blusas ndash tudo com modelos diferentes - ateacute que fui apanhado pelo capitatildeo que acabou por desconfiar das minhas sucessivas incursotildees agrave palhota do Mamadu ldquoOu vestes todos ou natildeo vestes ningueacutemrdquo ordenou Aceitei o desafio E toca a desenhar a talhar a alinhavar a coser roupas diversas para as crianccedilas da escola Chegou a fazer-se um abate prematuro de fardas para que natildeo faltasse mateacuteria-prima Quando entrei na

escola estremeci Diante de mim estava um pelotatildeo infantil fardado a preceito e sem graccedila Apeteceu-me mandaacute-los despir Pelo menos a nudez dar-lhes-ia na igualdade da cor e da idade o direito agrave diferenccedila Segunda adivinhando a minha dececcedilatildeo logo me consolou ldquoTodos irmatildeordquo Sem duacutevida Mas por que preccedilo Os dias foram pingando Afeto sobre afeto Segunda tornara-se-me insubstituiacutevel Estava no meu coraccedilatildeo como polvo sadio aorta sentimental anjo da guarda de todos os perigos do meu quotidiano Por isso foi num de repente gelatinoso que dei por mim com os dedos a tocar no tempo do regresso Apercebi-me disso pela algazarra do quartel pelas calviacutecies remanescentes pelas barrigas dilatadas de cerveja pelo fel dos fiacutegados desfeitos pelas rugas da pele pelos medos reassumidos E em cada manhatilde ouvia-se um bruaacute florestal selvagem que era a manifestaccedilatildeo menos demente da alegria de acordar e de riscar mais um nuacutemero no calendaacuterio de parede Apercebi-me tambeacutem desse chegar pelo veacuteu de tristeza que se foi adensando no rosto de Segunda e ateacute pela sua impaciecircncia velada que disfarccedilava com algum autoritarismo sobre as outras crianccedilas Chegou mesmo a vingar-se sobre si proacutepria ausentando-se para dentro respirando os silecircncios da alma Cabia-me preparar Segunda para a nossa inevitaacutevel separaccedilatildeo ndash separaccedilatildeo que eu tambeacutem natildeo desejava tatildeo inseguro me sentia quanto agrave minha capacidade de sobreviver sem ela Mas o que mais me afligia era o natildeo ser capaz de lhe deixar uma razatildeo coerente para o nosso adeus naturalmente definitivo Deixara-a prender-se com o melhor dos seus afetos enquanto eu como adulto racional natildeo passara de um saacutedico e egoiacutesta abandonando-a a todas as incertezas do futuro Retirava-lhe a muleta que eu era mesmo no centro do precipiacutecio Precisava urgentemente duma esperanccedila que lhe garantisse a felicidade E afinal nem lhe podia certificar coisas tatildeo banais como a escola roupa comida Felizmente soacute depois de chegar agrave ilha eacute que percebi que era o maior perdedor Nunca mais acordei ao som da sua voz nunca mais passeei na margem do Cacheu guiado pela sua matildeo nunca mais frui dos poentes vermelhos de fogo com a sua cabeccedila no meu regaccedilo Perdi de uma vez por todas o direito aos seus insoacutelitos presentes um bolo de coco feito pela matildee o passarinho muito inho que apanhava na cerca da palhota e depois domesticava o prazer de comer a primeira manga que a estaccedilatildeo amadurava E acabaram os nossos diaacutelogos onde a Poesia pontificava na contenccedilatildeo das palavras e na extensatildeo dos silecircncios E desta vez foi sobre o meu rosto que voltei a sentir o peso disforme da sua laacutegrima gorda Fiquei sem jeito Falei a Segunda na distacircncia real das nossas terras e das nossas culturas da incerteza do meu futuro bastamente comprometido pela inutilidade dos

16

anos vividos e de todo irrecuperaacuteveis Adensei tudo com verdades dramaacuteticas deixando transparentes a incerteza a cobardia e o pecado da omissatildeo Descrevi-lhe depois as deliacutecias da terra prometida como se fossem dela Antevi-lhe um amanhatilde mentirosamente risonho e deixei-lhe relevada a beleza demagoacutegica da sua paacutetria Olhou-me atordoada inconvencida amuada distante ndash maacutescara que soacute desfez na veacutespera da partida Quando os batelotildees ndash que nos levariam Cacheu abaixo rumo a Bissau ndash chegaram rodeados de barcos-patrulha restavam vinte e quatro horas para estarmos juntos Vivemo-las tatildeo intensamente que me deitei exausto No momento de largar fizemos por nos ignorar Combinaacuteramos evitar o melodrama E Segunda laacute ficou sobre o cais de madeira o dedo na boca os olhos avaramente enxutos assombrando a alegria do meu regresso com a sua recalcada tristeza Ficou sozinha ndash sei laacute com que futuro Ainda hoje sabendo que cresceu e que cumpre o seu destino na paacutetria sem as virtudes que lhe fiz crer dou por mim a soccedilobrar com esta saudade e este remorso Sou-lhe eternamente devedor Se lhe dei alguns meses de comezinha felicidade ele deu-me a coragem de continuar vivo num tempo e num lugar onde a morte chegava a ser uma becircnccedilatildeo do ceacuteu Desses tempos de conviacutevio diaacuterio com as mil presenccedilas da morte haacute imagens que continuam a perseguir-me Bem sei que eacute um disparate jaacute que os meus ressentimentos medos e fantasmas natildeo oferecem resistecircncia de maior Tecircm vindo a diluir-se como a tinta dos maus frescos renascentistas Mas natildeo consigo esquecer-me de Segunda com o seu belo corpo esfaimado a sua resignaccedilatildeo e a sua indiferenccedila perante a presenccedila e a superioridade da tropa Por isso espanto-me que volvidos tantos anos a minha principal referecircncia da Guineacute tenha o tamanho dessa negrinha de olhos grandes e de sorriso branco cujo corpo exalava o perfume inexplorado da floresta e que gostava de se sentar comigo sobre o cais de madeira a ver o sol esconder-se atraacutes da mata de Ohio E que me queimou a alma com uma laacutegrima gorda Segunda deve ser agora uma grande poeta Valha-me esta consolaccedilatildeo sofrida que ser poeta natildeo eacute bem que se deseje nem sequer ao inimigordquo

17

2ordm Ato (Extrato) Os Sonhos do Infante Ediccedilatildeo Jornal de Cultura 1995

ldquoO uacuteltimo sonho o re-encontro Talvez ningueacutem saiba porquecirc nem para quecirc ANTOacuteNIO - Quem sois INFANTE - Que pergunta desnecessaacuteria ANTOacuteNIO - Desculpe Parece-me que o conheccedilo INFANTE - E nem precisas de fazer muito esforccedilo ANTOacuteNIO - Assim de branco INFANTE - Jaacute sei Pareccedilo-te uma noiva de bigode ANTOacuteNIO - Desculpai senhor Jaacute natildeo o via haacute tantos anos INFANTE - Haacute muitos anos ANTOacuteNIO - Andaacuteveis vestido de preto INFANTE - A cor eacute-me indiferente Os seacuteculos purificam os tons escuros Deixam aparar as impurezas Depois vatildeo corando Um dia fica soacute a cor precisa e segura ANTOacuteNIO - Natildeo estou a entender INFANTE

18

- Querias apenas dizer que enquanto os homens satildeo de memoacuteria curta a Histoacuteria encarrega-se de gravar quanto interessa na memoacuteria dos livros e das pedras ANTOacuteNIO - Reconheci-o E natildeo nascemos propriamente no mesmo seacuteculo INFANTE - Seria difiacutecil esquecerem-me Natildeo que o natildeo tenham tentado Aliaacutes este meu paiacutes nunca me mereceu ANTOacuteNIO - Como assim INFANTE - Natildeo teve corpo para arrumar a minha alma Natildeo teve matildeos para agarrar quanto lhe dei ANTOacuteNIO - E isso era possiacutevel INFANTE - Claro que era Bastava que houvesse a mesma grandeza de alma Mas natildeo De descoberta a descoberta foram-se enredando em intrigas em oacutedios em venenos Depois de cada conquista queriam outra conquista e perdiam a primeira ANTOacuteNIO - Mudar pode ser sobreviver INFANTE - Natildeo era mudar Era perder Foi assim que os meus sonhos se foram enchendo de brumas e de silecircncios ANTOacuteNIO - Senhor tanto que se fala de si INFANTE - Agora Este paiacutes sempre viveu de luas Todos os anos vai ao bauacute do passado e desenterra um morto Logo se apressa a ver-lhe os ossos a descobrir-lhe as viacutesceras da virtude do saber dos feitos Depressa sai do anonimato para ser o santo o saacutebio

o heroacutei Durante vinte e quatro horas eacute o bombo da festa a masturbaccedilatildeo coletiva o orgulho da comissatildeo ANTOacuteNIO - Jaacute ouvi isso INFANTE - Agraves vezes esquecem-se dele na praccedila Nem sequer tecircm o cuidado de lhe arrumar outra vez os ossos AFONSO - Consigo eacute diferente INFANTE - Comigo nunca foi diferente Andam agora a assoalhar-me numa pressa escolar que mete doacute Obrigam as criancinhas a saber de mim enchendo-lhes a cabeccedila com sonhos que natildeo sonhei ANTOacuteNIO - Todos dizem que sempre foi um sonhador INFANTE - Eram sonhos meus Originais Agora querem fazer passar por meus os seus proacuteprios sonhos numa acircnsia de rasurar pesadelos Quando sonhava sonhava em grande Nunca fui mediacuteocre CONSTANCcedilA - Isso sabemos INFANTE - Natildeo tanto que o tivessem aprendido ROMUALDO - Viajamos tanto INFANTE - Por necessidade Falta-vos a coragem de aventurar ANTOacuteNIO - Aventurar As nossas aventuras satildeo o que satildeo

19

INFANTE - Apenas JOSEacute - Por vezes quisemos imitar-vos INFANTE - Sem chama DIOGO - Quisemos ir aleacutem da ilha completar outras viagens INFANTE - Sem convicccedilatildeo ANTOacuteNIO - Sabemos navegar INFANTE - Sem rumo que interesse FRADE - Estais a retirar-nos a Poesia INFANTE - Natildeo Apenas a tentar dizer que a Poesia eacute sonho e eacute tanto mais grandiosa quanto maior eacute o sonho FRADE - Desisto de falar INFANTE - Desistir eacute um verbo cobarde Na verdade viveis num paiacutes desistido ANTOacuteNIO - Natildeo temos remissatildeo

INFANTE - Depende da vossa forma de redimir FRADE - Um apelo agrave Histoacuteria por exemplo INFANTE - Dei-vos estas ilhas carregadas de Histoacuteria Fiz delas o poiso de todas as viagens Aqui foram dadas em primeira matildeo as novas de achamento Aqui se desfizeram segredos aqui se informaram povos e culturas aqui o mundo se tornou sabido BEATRIZ - Foram outros tempos INFANTE - E deixaram-nos perder JOSEacute Natildeo tanto assim Ainda temos aviotildees que rapidamente nos trazem outras gentes INFANTE - Poucas DIOGO - E todos os dias sabemos do mundo sobre a hora de qualquer acontecimento INFANTE - Entatildeo porque vos queixais CATARINA - Talvez porque apenas recebemos e nada damos LEONOR - Talvez porque natildeo podemos digerir quanto recebemos ROMUALDO - Talvez porque natildeo temos tempo de sonhar connosco proacuteprios

20

AFONSO - Talvez por causa desta solidatildeo mal quebrada MARIA - Ou por termos as portas mal abertas BELISA - Natildeo termos asas INFANTE - Sois na verdade bem pequenos Natildeo sois capazes de desenterrar os vossos heroacuteis os vossos santos os vossos poetas ANTOacuteNIO - Dos nossos heroacuteis e santos pouco sabemos Permanecem quase todos sob o manto diaacutefano das lendas E os poetas satildeo malditos INFANTE - Todos os poetas satildeo malditos Eacute por isso que satildeo poetas Todos os heroacuteis e santos satildeo lendaacuterios Eacute por isso que permanecem Que conheceis de mim ROMUALDO - Pois Talvez o bastante Ou talvez coisa nenhuma JOSEacute - A vossa imagem de negro no poliacuteptico de Satildeo Vicente eacute uma referecircncia obrigatoacuteria INFANTE - Apenas tecircm referecircncias E no entanto eacute o suficiente para que o sonho aconteccedila Para que preparem todas as viagens e as realizem por seus rumos certos e cheguem agraves terras previstas E aiacute aconteccedilam os outros sonhos os do patildeo e os da cultura FRADE - Isso nos disseram aqui haacute poucos anos E nada aconteceu ANTOacuteNIO - Eis como ficaacutemos pobres e mudos

INFANTE - Mas natildeo presos As vossas amarras satildeo mais inventadas que reais Peguem nos vossos poetas e bebam o sangue da sua Poesia Sem amor natildeo haacute sonho possiacutevel (Saiacuteda falsa) ANTOacuteNIO - Jaacute vos ides INFANTE - Jaacute O tempo de estar na vossa memoacuteria chegou ao fim Volto para as paacuteginas da histoacuteria de um livro que vai ficar intocaacutevel na prateleira da vossa estante Eacute o meu tuacutemulo preferido Natildeo quero que me abandonem nas ruas a desbotar em cartazes Natildeo quero ficar em textos de circunstacircncia em programas tidos de prestiacutegio em espetaacuteculos de teatro sem teatralidade capaz O que eu tinha de ser jaacute fui Se me comeram a carne podem roer-me os ossos A um morto tanto se lhe faz ANTOacuteNIO - Afinal tambeacutem perdeste os sonhos e a vontade de sonhar INFANTE - Soacute sonha quem estaacute vivo Vocecircs estatildeo vivos Podem sonhar (Sai)rdquo

RIMANCE DE DONA BALEIA IMPRESSOtildeES DE BOCA EDICcedilOtildeES DRAC 1992 PP 31-32 E 33

ldquoestava dona baleia - foge foge meu amor a regar o seu jardim ateacute agraves aacuteguas do frio com seu repuxo de prata soacute aiacute te sei segura e sorriso de alfenim a regar o teu jardim quando o foguete estalou com teu repuxo de prata laacute no alto da vigia e sorriso de alfenim anunciando a caccedila mas a canoa da morte (que susto santa maria) corre depressa demais dona baleia - coitada daqui lhe aceno a vida logo parou de aguar feito pedrinha do cais as algas que floriam e grito seu nome drsquoaacutegua

21

bem agrave tona do mar (seu matador quem seraacute) eacute entatildeo que a tristeza procura quantos te amam o medo a afliccedilatildeo Jonas deus iemanjaacute saltam do cais dos olhos de nada lhe serve o grito aos ombros do coraccedilatildeo Nada mais posso fazer um grito aberto se ouve o arpatildeo laacute vai direito em eco de mar perfeito no seu peito embater - baleia agrave vista baleia patildeo-nosso de qualquer jeito ai pobre dona baleia e laacute vai dona baleia como te custa viver fugindo pra natildeo morrer - deus a salve do arpatildeo morreu dona baleia deus a queira proteger arpada de oacutedio velho todo o silecircncio do mar ai pobre dona baleia ficou tinto de vermelho como te custa viver os peixes choram tambeacutem envolta em lenccedilol de sangue mar manso todo rasgado dona baleia laacute vem baba de espuma agrave quilha arrastada ateacute ao cais dona baleia procura seu corpo esquartejado escapar da armadilha nas caldeiras derretido que eacute o arpatildeo voador daacute o patildeo amargurado anjo de ferro esguio e algueacutem haacute de gravar nos seus dentes de marfim eram cinco sois a arder o barco que a perseguiu cinco talhadas de lua o arpatildeo que lhe deu fim que deus lhe quis oferecer no ceacuteu as aves e as nuvens correm do sul para o norte agora dona baleia sobre o mar e sobre a ilha jaacute natildeo lhe custa viverrdquo paira o silecircncio da morte e haacute um poeta branco agrave minha porta a bater natildeo vou abri-la natildeo vou jaacute sei o que vem dizer ai pobre dona baleia como te custa viver agrave costa como um poema

a desfazer-se na areia vieram cinco mareacutes chorar a dona baleia duas choravam espuma - branca nuvem de veratildeo traziam como homenagem um buacutezio em cada matildeo as outras duas chegaram fracas de tanto chorar tanto sal nas suas laacutegrimas tanto sal e tanto mar a quinta mareacute natildeo chora traz apenas no regaccedilo um grande ramo de algas amarrado com um laccedilo deixa-o deposto na costa de seguida reza e canta satildeo cantigas de saudade versos presos na garganta desfeitas satildeo as mareacutes

CARTA DE JOAtildeO VALENTE (RAMINHENSE DA TERCEIRA) A SEU IRMAtildeO EMBARCADO NA CALIFOacuteRNIA (GASTINHAS) OU ENTAtildeO CANTIGAS DE COMO SE PICAM OS OLHOS DA MISEacuteRIA EM PICOS DE ABUNDAcircNCIA

ldquoEscrevo-te esta carta Gostei de saber que tens Pra saber como vais passando Friza e um novo mexim A saudade eacute que nos farta Socircfas clausetas sertatildes Mas por caacute vamos andando E alvaroses dingrim Muito bem graccedilas a Deus Jaacute sei que tens um fogatildeo Nestas linhas que alinhavo Uma trela e talaveija Muito mal desejo aos teus E que jaacute vives no Tatildeo Tameacutem sauacutede Por mim cavo - Mas que sorte salvo seija Desta hora a matildeo na pena E cuma pisca de doacutelas Poucas letras e saberes Te vestiste numa estocirca

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

8

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

MAIA 19ordm COLOacuteQUIO 2013

9

MOINHOS 2014 NO 21ordm COLOacuteQUIO

Estoacuteria de Natal Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 25-31

ldquoToda a manhatilde Gustavo andou numa excitaccedilatildeo desusada Levantara-se cedo sem apelos cumprindo prontamente o que noutros dias fazia com demasiada preguiccedila Com a matildee ornamentara a aacutervore de Natal e armara um lindo preseacutepio fulgurante de pedras e musgos com caminhos de areia casas de cartatildeo e pessoas de barro Bombardeou a matildee com perguntas tentando identificar as figuras com as de carne e osso na acircnsia de entender uma vez por todas as mil atribulaccedilotildees que concorreram para que o Menino Jesus fosse nascer na velha arribana dos arredores de Beleacutem Sempre que a curiosidade o fulminava os seus olhos castanhos ficavam ainda maiores e apesar dos seus escassos cinco anos natildeo se deixava satisfazer com qualquer resposta Ouvia e questionava ndash natildeo por desconfiar das palavras da matildee mas porque queria compreender os pormenores e sobretudo desfazer as contradiccedilotildees Intrigava-o a prepotecircncia daquele recenseamento imposto contranatura pelo Imperador de Roma ndash violador poderoso da vontade de povos tatildeo pequenos e indefesos como o da Judeia ndash a quem comparava com ingeacutenua repugnacircncia agrave Ameacuterica agrave Ruacutessia agrave Indoneacutesia nas suas violaccedilotildees internacionais consagradas e legitimadas Era-lhe impensaacutevel que pudessem obrigar a matildee ndash graacutevida do seu proacuteximo irmatildeo ou irmatilde ndash a ir ateacute agrave cidade para um simples dar o nome incomodando-a nesse belo embaraccedilo da vida Ele sabia que era necessaacuterio evitar qualquer perturbaccedilatildeo No ventre da matildee crescia o seu sonho mais apetecido com o qual jaacute partilhava o melhor dos seus afetos Irmatildeo ou irmatilde natildeo era duacutevida que o apoquentasse Apenas desejava que o tempo passasse depressa para que o nascimento se desse Atraveacutes da voz da matildee foi visionando os longos caminhos de terra e pedregulhos as chuvas de dezembro enlameando o corpo e a alma as noites longas e escuras dormidas ao relento de Nazareacute a Beleacutem E imaginava as apreensotildees muacuteltiplas que S Joseacute e Nossa Senhora ruminaram perante os perigos eminentes de assaltos e desfeitas incluindo as pragas engolidas contra quem assinara o edital romano e os incomodava sem rebuccedilos soacute para se dar ao luxo de saber sobre quantos desgraccedilados impunha o seu poder ldquoPorque natildeo foram de camionetardquo perguntou Gustavo E ficou a saber que nesse tempo longiacutenquo e quase lendaacuterio as camionetas eram simplesmente imprevisiacuteveis e que andar de burro era mesmo assim um privileacutegio de remediado Muitos outros ndash

10

mulheres velhos e crianccedilas ndash teratildeo ido a peacute sem mais contemplaccedilotildees Ele nem queria acreditar que pessoas como os avoacutes tivessem sido obrigadas a deixar as suas casas enfrentando os medos de caminhos pejados de salteadores soacute para satisfazerem os caprichos de um imperador que se quedava na sua enorme cidade no esplendor do seu palaacutecio com tanto de lonjura como de tropas e escravos E havia tambeacutem o despeito pela liberdade ferida um oacutedio mudo mas natildeo adormecido de quem se via sujeito ao poder estrangeiro que desrespeitava a alma a cultura a religiatildeo o direito de ser povo ldquoNaqueles dias Beleacutem tinha as casas e as ruas abarrotadas de gente de ruiacutedos e de cheirosrdquo ldquoComo nas touradasrdquo perguntou Gustavo ldquoMais do que nas touradasrdquo confidenciou a matildee Devia ter sido terriacutevel esse chegar a Beleacutem ao fim de dias de atribulada viagem mergulhar num oceano de gente que zaragateava como enxame gigantesco atropelando-se nas bichas de inscriccedilatildeo agraves portas das tabernas das casas de pasto das pensotildees dos abrigos improvisados Gritava-se pelos guardas sempre impassiacuteveis para denunciar os roubos a partilha de um lugar agrave mesa ou de um recanto onde se pudesse dormir Viam-se as consequecircncias da embriaguez atraveacutes das brigas dos insultos dos piropos soezes Mulheres de porte faacutecil deixavam-se apalpar entre gargalhadas e algumas moedas por transeuntes ocasionais As ruas nauseavam de restos de comida de excrementos de corpos por lavar A cidade era um incomensuraacutevel caixote de lixo ldquoQuando S Joseacute e Nossa Senhora entraram em Beleacutem anoitecia Foram percorrendo as ruas por entre pragas e tropeccedilotildees e os relinchos espantados da burra Havia pessoas deitadas nas valetas os corpos entranccedilados num rodilhatildeo de promiscuidades Algumas janelas deixavam passar a luz deacutebil das lamparinas de azeiterdquo ldquoAinda natildeo havia luz eleacutetricardquo interrompeu Gustavo ldquoNatildeo meu filho A eletricidade eacute bastante recenterdquo ldquoCoitadinhos Entatildeo natildeo iluminavam as aacutervores de Natalrdquo ldquoClaro que natildeo O Menino Jesus ainda natildeo tinha nascidordquo ldquoAh simrdquo E Gustavo sorriu da sua proacutepria infantilidade Nossa Senhora chegou exausta Respirava com dificuldade Tinham chegado dores de corte de faca ao seu baixo-ventre Estava na hora do parto S Joseacute desatinou numa corrida desesperada batendo a todas as portas E sempre recebeu a mesma resposta ldquoNatildeo haacute lugar nem para ficar de peacuterdquo Voltou para junto de Nossa Senhora com um desalento mortal A hipoacutetese do seu filho nascer numa rua qualquer de Beleacutem rodeado de gentes desconhecidas e despudoradas fazia-lhe subir agrave garganta uma anguacutestia de voacutemitos e de laacutegrimas Dentro de si gritava ldquoO meu filho natildeo pode nascer aqui Vai morrer de friordquo E com a burra presa pela arreata empurrava as pessoas

para o lado sem que soubesse que direccedilatildeo perseguir Nossa Senhora contorcendo-se de dores e de afliccedilotildees procurava aparentar uma serenidade impossiacutevel ldquoFossem para o hospital mamatilderdquo ldquoTambeacutem natildeo havia hospitaisrdquo ldquoQuando ficavam doentes onde eacute que se tratavamrdquo ldquoProvavelmente tratavam-se em casa A natildeo ser que fossem leprosos ndash uma doenccedila ruim que os afastava dos parentes e dos amigosrdquo ldquoComo a sidardquo Mas Gustavo natildeo esperou pela resposta Impacientava-o ter deixado S Joseacute e Nossa Senhora naufragados nas ruas de Beleacutem e o Menino Jesus quase a nascer Valeu-lhes uma velhinha que disse haver fora das portas da cidade uma pequena arribana coberta de palha Nem agradeceram a informaccedilatildeo Com a burrinha a trote correram para laacute Foi quando se deu o milagre Um pelotatildeo de anjos desceu do ceacuteu e logo agrave saiacuteda de Beleacutem transportou a burrinha com Nossa Senhora e S Joseacute ateacute agrave arribana Os anjos batendo as suas magniacuteficas asas entoavam com vozes celestes muacutesicas que satildeo apenas de anjo Cantavam a noite feliz acompanhados por bandolins violinos violas e um acordeatildeo O mais pequenino ndash roliccedilo loiro e de olhos azuis ndash importunava o coro e a tuna com o seu tambor desritmado pum pum pum pum ndash quatro toques seguidos de rufo Ningueacutem viu Mas foi muito bonito Logo que chegaram os anjos pegaram em paacutes e vassouras e aprestaram-se a limpar o curral a varrer a arribana assustando uma vaca que tambeacutem aguardava a hora de parir De seguida prepararam com feno uma cama para Nossa Senhora enquanto S Joseacute recorrendo a ferramenta abandonada fez das taacutebuas da baiacutea um confortaacutevel bercinho Acenderam duas lanternas que dependuraram sobre a cama onde Nossa Senhora gemia Depois sossegaram em saborosa expectativa De repente ouviram um grito vindo do curral seguido de choro profundo Alguns anjos acorreram lestamente O mais pequenino caiacutera numa poccedila de lama sujando o vestido e as asas Rompera tambeacutem a pele do tambor Ficou com o ar mais desolado do mundo O Chefe dos anjos logo comeccedilou a repreendecirc-lo ameaccedilando-o com o regresso forccedilado ao ceacuteu seguido duma novena de recreios interditos e fechado numa nuvem S Joseacute poreacutem depois de o limpar pacientemente pegou-lhe ao colo e levou-o para dentro Com o susto ateacute fizera chichi na fralda Gustavo sorria A matildee tentava natildeo entrar nos pormenores do parto O seu pudor empurrava-a para devaneios descritivos que Gustavo natildeo perfilava Colocou os anjos do coro e da tuna suspensos dos tirantes em posiccedilotildees de equiliacutebrio acrobaacutetico Fez com que repetissem muito baixinho a noite feliz E foi nesse entretanto que o Menino

11

Jesus nasceu Era meia-noite em ponto S Joseacute tivera o cuidado de confirmar pelo reloacutegio ldquoFoi por cesariana ou parto normalrdquo quis saber Gustavo ldquoParto normalrdquo respondeu a matildee que se apressou a empurrar os anjos pela arribana fora desatinados de contentamento voando sobre os pastores do mundo inteiro e acordando-os com o hino ldquoGloria in excelsis Deordquo Era um barulho intensamente doce iluminado por estrelas danccedilantes Algumas delas por falta de cuidado chegaram mesmo a cair Mas uma outra mais esperta e avisada desviou-se daquela confusatildeo luminosa e foi ateacute ao oriente para depois guiar os quatro reis magos que vinham de Taacutersis Aacutefrica Peacutersia e Sabaacute ateacute agrave arribana de Beleacutem Chegaram trecircs carregados de oiro incenso e mirra ndash ofertas de pouco sentido praacutetico e que mais tarde os inteacuterpretes de evangelhos procuraram em vatildeo descodificar O quarto rei poreacutem perdeu-se Soacute chegou trinta e trecircs anos mais tarde sem nada para oferecer Tambeacutem Jesus jaacute natildeo precisava Pregado na cruz apenas lhe apetecia morrer ldquoA matildee estaacute a desconversarrdquo disse Gustavo E estava O Natal era o Natal e soacute o Menino Jesus interessava Voltaram agrave arribana que estava quase vazia O anjo pequenino teimava com o Menino Jesus para que experimentasse tocar tambor Sem lhe dar qualquer atenccedilatildeo e consciente de tarefas mais urgentes mamava gostosamente A noite arrefecera Nevara sobre a serra e um vento corrupto trazia o frio ateacute agrave arribana O Menino Jesus podia enregelar Entatildeo a vaca e a burrinha aproximaram-se aquecendo-o com o seu bafo quente e huacutemido Nossa Senhora e S Joseacute sorriam e beijavam ternamente o Menino que depois de mamar adormeceu Colocaram-no no bercinho e o anjo do tambor comeccedilou a embalaacute-lo ldquoEacute por isso que o teu preseacutepio tem um anjo uma burrinha e uma vacardquo disse a matildee Gustavo olhou-o e confirmou Depois natildeo se conteve e perguntou ldquoMamatilde o Menino Jesus teve irmatildeosrdquo ldquoNatildeo meu filho Ele eacute sempre o Menino Jesusrdquo Entatildeo abraccedilando ternamente a barriga da matildee concluiu ldquoNatildeo sabe o que perdeurdquordquo

Com Perfume e Com Veneno

laquoOs membros do gabinete do senhor Presidente estavam em pacircnico Haacute dois dias

que procuravam contactar por telefone a pequena ilha para anunciarem a data do programa da visita constitucional Mas o telefone apenas devolvia ruiacutedos intermitentes que natildeo forneciam qualquer interpretaccedilatildeo teacutecnica Era como se estivessem a ligar para o ponto zero do quintal mais proacuteximo E no entanto era urgente cumprir a lei que prescrevia laquoAo menos uma vez por mandato o governo visitaraacute cada uma das suas ilhasraquo Faltava a mais pequena e mais distante Eacute que passado quase um seacuteculo o mandato terminava na semana seguinte e em veacutesperas de eleiccedilotildees nenhuma ilegalidade podia transformar-se em trunfo nas matildeos da oposiccedilatildeo Soacute que o telefone natildeo atinava com aquela ilha pequena e distante O eco nem tinha forccedilas para lhes devolver o apelo

Houve que reunir de emergecircncia As calviacutecies aumentaram branquearam cabelos

fizeram-se esforccedilos suplementares e aconteceu o habitual suores frios e derramamentos cerebrais Mas natildeo conseguiram qualquer contacto com a ilha mesmo com funcionaacuterios destacados para discar o nuacutemero durante vinte quatro horas

Sobre a mesa de reuniotildees puseram todas as hipoacuteteses avaria do uacutenico telefone

da ilha (a Companhia natildeo o podia comprovar e muito menos reparar) que os habitantes andavam a festejar o Espiacuterito Santo (era eacutepoca disso) que estavam a ensaiar folclore (em tempos tinham-lhes prometido um passeio) que os membros da filarmoacutenica estavam a aprender a tocar o hino para a eventual visita do senhor Presidente que se mantinham ocupados em qualquer acontecimento social Mas em

12

circunstacircncia alguma ficariam impedidos de passar mesmo que fugazmente pelo telefone

Puseram entatildeo hipoacuteteses mais convencionais descontentamento com a

governaccedilatildeo (nem sequer conheciam o senhor Presidente) mudanccedila de paacutetria (a Ameacuterica ali tatildeo perto e muito mais rica) algueacutem com a conivecircncia do padre dera o grito de independecircncia e pronto

(hellip) Partiram como calhou Pouca bagagem Nada de coisas supeacuterfluas O Chefe de

gabinete meteu na pasta o mais importante o discurso que o senhor Presidente iria proferir- o mesmo que jaacute lera nas outras ilhas Enfiaram tambeacutem trecircs jornalistas e um operador de cacircmara de televisatildeo para o registo oacutebvio Era o qb O senhor Presidente enjoava a bordo e por simpatia os membros do gabinete enjoavam tambeacutem Era bonito ver toda aquela solidariedade governativa Conseguiam mesmo imitar os roncos presidenciais que com a continuidade desfaleciam ateacute se transformarem em gemidos agoacutenicos Mas soacute numa viagem como aquela se conseguia avaliar o sacrifiacutecio de governar ilhasraquo

(hellip) O barco foi-se aproximando Reduziu a velocidade e deslizou como tapete rolante

ou mosca sobre taccedila de gelatina E quando o cais ficou agrave matildeo de atracar jaacute todos tinham caiacutedo no oceano do desacircnimo Eacute que nem as autoridades autaacuterquicas nem a filarmoacutenica nem grupo de folclore nem o padre nem qualquer pessoa se postara sobre o cais para esperar tatildeo ilustre comitiva Os jornalistas sentiram-se enfim analfabetos e o operador de cacircmara o escravo de todas as maacutequinas inuacuteteis Pela primeira vez era possiacutevel provar que se pode reduzir qualquer governo agrave sua insignificacircnciaraquo

(hellip) Com Perfume e Com Veneno de Aacutelamo de Oliveira Ed Salamandra 1997 in

httplivrariasolmarblogspotpt201005com-perfume-e-com-venenohtml

13

14

Por Uma Laacutegrima Gorda Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 11 a 21

ldquoA lembranccedila mais agradaacutevel que guardo (mas que eacute tambeacutem do tamanho do meu remorso) eacute a da negrinha Segunda Dei por ela no dia em que vi uma laacutegrima gorda rolar-lhe pelo rosto e estatelar-se sobre a mesa Nunca mais vi laacutegrima que se lhe comparasse em tamanho e amargura uma bola de cristal de maga velha Fiquei perplexo sem saber como era possiacutevel acumular tanta dor salgada Estava em Binta terriola da Guineacute-Bissau que fora porto importante da exportaccedilatildeo de mancarra e arroz nos tempos da escravatura suave do imperialismo lusiacuteada Estava ali fardado de soldado mal fardado apegando-me a um quotidiano enformado por horas inseguras por um teacutedio amassado a suor e a cachimbo e resignado a uma paisagem de aacutervores fendida pelas aacuteguas verdes do rio Cacheu ndash alameda por onde passeavam hipopoacutetamos crocodilos e algumas cobras Tudo isto exercia sobre mim e os meus companheiros de destino o efeito de um soporiacutefero maldito ndash mistura de medo e de torpor que nem o luar de marccedilo esmaecia Era como se a vida tivesse adormecido sobre o arame de um circo desprovido de rede em que o equiliacutebrio se desafiava a si proacuteprio e sem que houvesse a miacutenima razatildeo para evitar a queda e a morte Por isso a laacutegrima gorda de Segunda foi a minha taacutebua de salvaccedilatildeo O que ateacute hoje fiz de mais uacutetil foi ensinar a ler e a escrever agraves crianccedilas de Binta Todos os dias ocupaacutevamos uma palhota que fora abandonada logo que o arame farpado delimitou a aacuterea do quartel Apesar da falta de material didaacutetico as crianccedilas de Binta foram desenhando letras formando palavras descobrindo a grafia da voz e aprendendo que para aleacutem dos seus inconfundiacuteveis meacutetodos de comunicaccedilatildeo tambeacutem era possiacutevel fazecirc-lo atraveacutes da escrita e da leitura No meio dos progressos escolares sentia-me pai-natal ao contraacuterio recebendo mais do que dava e por isso mais feliz do que aquele pequeno bando de negrinhos que diariamente me aparecia vestido de trapos e de sujidade e visivelmente mal alimentado Mas nesse tempo de infernos de convivecircncia com a morte com a injusticcedila e outros males complementares a tarefa de professor devolvia-me alguma da dignidade perdida Foi nessa escola com teto de palha que reconquistei o equiliacutebrio mental e sobretudo o quanto necessitava para sobreviver e poder regressar mais tarde com as minhas lembranccedilas e os meus remorsos Segunda frequentava a minha escola e prendi-me a ela com todos os tentaacuteculos do coraccedilatildeo por causa da tal laacutegrima gorda que um dia deixou cair sobre a mesa

Entatildeo soube-lhe o nome e descobri a sua inteligecircncia e a sua beleza Um estuacutepido becirc maiuacutesculo fecirc-la tropeccedilar no complicado desenho ndash as barrigas sobrepostas como mulher graacutevida duas vezes Simplifiquei o desenho e dei-lhe um beijo na testa E logo o becirc saiu com a forma perfeita Dedicou-me a vitoacuteria com uma cariacutecia na matildeo e o sorriso mais cheio de ternura que algueacutem me deu Assim nasceu a nossa amizade que logo se enredou de muitas e complexas cumplicidades Almoccedilou comigo Partilhamos o rancho ndash da minha parte sem qualquer sacrifiacutecio Tratava-se duma mistela de arroz com rodinhas de salsicha enlatada sem outro sabor que natildeo fosse aquela fome tentacular e corrosiva Segunda quase me irritou com o seu apetite demolidor A sua fome era tambeacutem secular Custava-me aceitar essa verdade sem que o estocircmago natildeo me enfezasse com a sua uacutelcera de revolta Olhei-a mais uma vez e soacute vi a claridade inocente dos seus olhos lindos Passou-me a birra Segunda era como se fosse uma flor de maio ndash intacta delicada e por isso suscetiacutevel ldquoViraste infanticidardquo ouvi dizer Ignorei de quem vinha a piada Natildeo me deixei morder Queria Segunda nessa duacutebia qualidade de irmatilde e de filha ldquoQuantos anos tensrdquo ldquoOito chuvardquo Partiu levando uns restos de comida numa lata enferrujada ldquoPa mecircs irmatildeordquo disse Os seus peacutes descalccedilos levantaram uma linha de poacute vermelho que foi sumir-se de encontro aos arrevesados atalhos da tabanca Ateacute parecia que naquela lata supurenta levava a alma da felicidade E era essa reles felicidade que me deixava abaixo de catildeo Levantei-me com a vontade incontrolaacutevel de me vomitar Fui ateacute ao rio Fechei os olhos e respirei fundo O sol bateu-me no corpo com os seus raios de fogo secando o asco que me subia do estocircmago ao ceacuteu-da-boca Sabia que se gritasse me libertaria do remorso subjugante da guerra e das razotildees submersas de um colonialismo apodrecido de poder Mas estava na hora dos silecircncios quentes da vida de Aacutefrica descansar agrave sombra do torpor da sua desgraccedila Acabei por me perder numa sueca encharcado de cerveja Ser luacutecido ali natildeo era virtude que se cultivasse Antes o aacutelcool Infinitamente Acordei com o ciciar de Segunda ldquoSocirc pofessocirc Socirc pofessocircrdquo Esfreguei os olhos afastando as uacuteltimas teimosias de sono e ela laacute estava com o seu sorriso e o meu pequeno-almoccedilo Comemos e fomos para a escola Com o ridiacuteculo da minha acircnsia transferi para Segunda quanto me restava de afeto e de orgulho Babava-me perante a sua capacidade de aprender e sobretudo de apreender os significados complexos da vida Era brilhante Tanto se lhe dava navegar nos mapas sucintos da grandeza do mundo descobrindo gentes de outras longitudes e civilizaccedilotildees como se fixava no desenvolvimento das complicadas operaccedilotildees de aritmeacutetica somando ternura diminuindo tristeza multiplicando afetos dividindo solidariedade A sua vontade era contagiante Alguns meses depois sete dos meus alunos foram a Safim fazer o exame da quarta classe Ficaram aprovados com distinccedilatildeo Mas soacute Segunda me pareceu digna

15

desse privileacutegio Andava eufoacuterico e tambeacutem infantil premiado com o seu sorriso distinto E com a sua pobreza E isso eacute que me constrangia Era uma pobreza sugadora progressiva medonha irresponsaacutevel Segunda era o rosto singular dos seus companheiros de tabanca de Aacutefrica Comiam os restos da tropa Via-lhes as barrigas entumescidas de fome os olhos desvitaminados os ossos salientes sob a pele das disenterias os rostos sujos do chatildeo que lhes servia de cama os cadernos enodoados de terrosas impressotildees digitais Tudo isto me afogava no lodo de um remorso inconsequente e procurava purificar-me no meu afeto por Segunda Dei-lhe uma camisa velha a que cortara as mangas e acinturei com um cordel Ficava-lhe bem Ficou com um ar de rapariguinha exoacutetica tipo modelo para neacutegligeacutee de alta moda No dia seguinte voltou sem a camisa Dera-a ao pai Mas foi a partir desta pequena doaccedilatildeo que virei estilista Mamadu ndash balanta e muccedilulmano ndash herdara de um colono fugido agrave guerra uma velha maacutequina de costura Com ela apertava-nos as fardas a troco de alimentos que surripiaacutevamos da arrecadaccedilatildeo de geacuteneros uns quilos de arroz patildeo oacuteleo latas de conserva Procurei restos de fardas e levei-os ao homem da maacutequina de costura Desenhei um vestido de corpo justo mangas de balatildeo saia com folhos sobrepostos cintura arrematada com laccedilo nas costas ndash tudo dividido pelos dois tecidos possiacuteveis o verde liso e o camuflado ldquoNatildeo nosso sordado Natildeo sei fazerrdquo disse Mamadu Entatildeo talhei alinhavei e dei indicaccedilotildees sobre o que a agulha da maacutequina devia pespontar ldquoNosso sordado ser artistardquo o vestido suspenso pelos ombros e exposto ao olhar admirado de Mamadu Arquivei o elogio e nunca lhe confessei que naquela peccedila de roupa investi toda a minha ciecircncia sobre costura ndash e tambeacutem o meu receio e a minha ignoracircncia Eacute que soacute por acaso o vestido resultara Segunda eacute que ficou ainda mais bonita Pela primeira vez despertara-se-lhe a vaidade de mulher Confundida e enleada mirou-se no espelho do cabo enfermeiro e correu para a tabanca a fim de explorar a seduccedilatildeo do seu vestido novo Poreacutem mais uma vez o imprevisto derrotou-me Segunda apareceu-me com o vestido numa laacutestima Esquecera-me de lhe pedir que o despisse antes de se deitar Mas natildeo desisti Roubei quanto pude na arrecadaccedilatildeo de geacuteneros e fizeram-se vestidos saias calccedilotildees blusas ndash tudo com modelos diferentes - ateacute que fui apanhado pelo capitatildeo que acabou por desconfiar das minhas sucessivas incursotildees agrave palhota do Mamadu ldquoOu vestes todos ou natildeo vestes ningueacutemrdquo ordenou Aceitei o desafio E toca a desenhar a talhar a alinhavar a coser roupas diversas para as crianccedilas da escola Chegou a fazer-se um abate prematuro de fardas para que natildeo faltasse mateacuteria-prima Quando entrei na

escola estremeci Diante de mim estava um pelotatildeo infantil fardado a preceito e sem graccedila Apeteceu-me mandaacute-los despir Pelo menos a nudez dar-lhes-ia na igualdade da cor e da idade o direito agrave diferenccedila Segunda adivinhando a minha dececcedilatildeo logo me consolou ldquoTodos irmatildeordquo Sem duacutevida Mas por que preccedilo Os dias foram pingando Afeto sobre afeto Segunda tornara-se-me insubstituiacutevel Estava no meu coraccedilatildeo como polvo sadio aorta sentimental anjo da guarda de todos os perigos do meu quotidiano Por isso foi num de repente gelatinoso que dei por mim com os dedos a tocar no tempo do regresso Apercebi-me disso pela algazarra do quartel pelas calviacutecies remanescentes pelas barrigas dilatadas de cerveja pelo fel dos fiacutegados desfeitos pelas rugas da pele pelos medos reassumidos E em cada manhatilde ouvia-se um bruaacute florestal selvagem que era a manifestaccedilatildeo menos demente da alegria de acordar e de riscar mais um nuacutemero no calendaacuterio de parede Apercebi-me tambeacutem desse chegar pelo veacuteu de tristeza que se foi adensando no rosto de Segunda e ateacute pela sua impaciecircncia velada que disfarccedilava com algum autoritarismo sobre as outras crianccedilas Chegou mesmo a vingar-se sobre si proacutepria ausentando-se para dentro respirando os silecircncios da alma Cabia-me preparar Segunda para a nossa inevitaacutevel separaccedilatildeo ndash separaccedilatildeo que eu tambeacutem natildeo desejava tatildeo inseguro me sentia quanto agrave minha capacidade de sobreviver sem ela Mas o que mais me afligia era o natildeo ser capaz de lhe deixar uma razatildeo coerente para o nosso adeus naturalmente definitivo Deixara-a prender-se com o melhor dos seus afetos enquanto eu como adulto racional natildeo passara de um saacutedico e egoiacutesta abandonando-a a todas as incertezas do futuro Retirava-lhe a muleta que eu era mesmo no centro do precipiacutecio Precisava urgentemente duma esperanccedila que lhe garantisse a felicidade E afinal nem lhe podia certificar coisas tatildeo banais como a escola roupa comida Felizmente soacute depois de chegar agrave ilha eacute que percebi que era o maior perdedor Nunca mais acordei ao som da sua voz nunca mais passeei na margem do Cacheu guiado pela sua matildeo nunca mais frui dos poentes vermelhos de fogo com a sua cabeccedila no meu regaccedilo Perdi de uma vez por todas o direito aos seus insoacutelitos presentes um bolo de coco feito pela matildee o passarinho muito inho que apanhava na cerca da palhota e depois domesticava o prazer de comer a primeira manga que a estaccedilatildeo amadurava E acabaram os nossos diaacutelogos onde a Poesia pontificava na contenccedilatildeo das palavras e na extensatildeo dos silecircncios E desta vez foi sobre o meu rosto que voltei a sentir o peso disforme da sua laacutegrima gorda Fiquei sem jeito Falei a Segunda na distacircncia real das nossas terras e das nossas culturas da incerteza do meu futuro bastamente comprometido pela inutilidade dos

16

anos vividos e de todo irrecuperaacuteveis Adensei tudo com verdades dramaacuteticas deixando transparentes a incerteza a cobardia e o pecado da omissatildeo Descrevi-lhe depois as deliacutecias da terra prometida como se fossem dela Antevi-lhe um amanhatilde mentirosamente risonho e deixei-lhe relevada a beleza demagoacutegica da sua paacutetria Olhou-me atordoada inconvencida amuada distante ndash maacutescara que soacute desfez na veacutespera da partida Quando os batelotildees ndash que nos levariam Cacheu abaixo rumo a Bissau ndash chegaram rodeados de barcos-patrulha restavam vinte e quatro horas para estarmos juntos Vivemo-las tatildeo intensamente que me deitei exausto No momento de largar fizemos por nos ignorar Combinaacuteramos evitar o melodrama E Segunda laacute ficou sobre o cais de madeira o dedo na boca os olhos avaramente enxutos assombrando a alegria do meu regresso com a sua recalcada tristeza Ficou sozinha ndash sei laacute com que futuro Ainda hoje sabendo que cresceu e que cumpre o seu destino na paacutetria sem as virtudes que lhe fiz crer dou por mim a soccedilobrar com esta saudade e este remorso Sou-lhe eternamente devedor Se lhe dei alguns meses de comezinha felicidade ele deu-me a coragem de continuar vivo num tempo e num lugar onde a morte chegava a ser uma becircnccedilatildeo do ceacuteu Desses tempos de conviacutevio diaacuterio com as mil presenccedilas da morte haacute imagens que continuam a perseguir-me Bem sei que eacute um disparate jaacute que os meus ressentimentos medos e fantasmas natildeo oferecem resistecircncia de maior Tecircm vindo a diluir-se como a tinta dos maus frescos renascentistas Mas natildeo consigo esquecer-me de Segunda com o seu belo corpo esfaimado a sua resignaccedilatildeo e a sua indiferenccedila perante a presenccedila e a superioridade da tropa Por isso espanto-me que volvidos tantos anos a minha principal referecircncia da Guineacute tenha o tamanho dessa negrinha de olhos grandes e de sorriso branco cujo corpo exalava o perfume inexplorado da floresta e que gostava de se sentar comigo sobre o cais de madeira a ver o sol esconder-se atraacutes da mata de Ohio E que me queimou a alma com uma laacutegrima gorda Segunda deve ser agora uma grande poeta Valha-me esta consolaccedilatildeo sofrida que ser poeta natildeo eacute bem que se deseje nem sequer ao inimigordquo

17

2ordm Ato (Extrato) Os Sonhos do Infante Ediccedilatildeo Jornal de Cultura 1995

ldquoO uacuteltimo sonho o re-encontro Talvez ningueacutem saiba porquecirc nem para quecirc ANTOacuteNIO - Quem sois INFANTE - Que pergunta desnecessaacuteria ANTOacuteNIO - Desculpe Parece-me que o conheccedilo INFANTE - E nem precisas de fazer muito esforccedilo ANTOacuteNIO - Assim de branco INFANTE - Jaacute sei Pareccedilo-te uma noiva de bigode ANTOacuteNIO - Desculpai senhor Jaacute natildeo o via haacute tantos anos INFANTE - Haacute muitos anos ANTOacuteNIO - Andaacuteveis vestido de preto INFANTE - A cor eacute-me indiferente Os seacuteculos purificam os tons escuros Deixam aparar as impurezas Depois vatildeo corando Um dia fica soacute a cor precisa e segura ANTOacuteNIO - Natildeo estou a entender INFANTE

18

- Querias apenas dizer que enquanto os homens satildeo de memoacuteria curta a Histoacuteria encarrega-se de gravar quanto interessa na memoacuteria dos livros e das pedras ANTOacuteNIO - Reconheci-o E natildeo nascemos propriamente no mesmo seacuteculo INFANTE - Seria difiacutecil esquecerem-me Natildeo que o natildeo tenham tentado Aliaacutes este meu paiacutes nunca me mereceu ANTOacuteNIO - Como assim INFANTE - Natildeo teve corpo para arrumar a minha alma Natildeo teve matildeos para agarrar quanto lhe dei ANTOacuteNIO - E isso era possiacutevel INFANTE - Claro que era Bastava que houvesse a mesma grandeza de alma Mas natildeo De descoberta a descoberta foram-se enredando em intrigas em oacutedios em venenos Depois de cada conquista queriam outra conquista e perdiam a primeira ANTOacuteNIO - Mudar pode ser sobreviver INFANTE - Natildeo era mudar Era perder Foi assim que os meus sonhos se foram enchendo de brumas e de silecircncios ANTOacuteNIO - Senhor tanto que se fala de si INFANTE - Agora Este paiacutes sempre viveu de luas Todos os anos vai ao bauacute do passado e desenterra um morto Logo se apressa a ver-lhe os ossos a descobrir-lhe as viacutesceras da virtude do saber dos feitos Depressa sai do anonimato para ser o santo o saacutebio

o heroacutei Durante vinte e quatro horas eacute o bombo da festa a masturbaccedilatildeo coletiva o orgulho da comissatildeo ANTOacuteNIO - Jaacute ouvi isso INFANTE - Agraves vezes esquecem-se dele na praccedila Nem sequer tecircm o cuidado de lhe arrumar outra vez os ossos AFONSO - Consigo eacute diferente INFANTE - Comigo nunca foi diferente Andam agora a assoalhar-me numa pressa escolar que mete doacute Obrigam as criancinhas a saber de mim enchendo-lhes a cabeccedila com sonhos que natildeo sonhei ANTOacuteNIO - Todos dizem que sempre foi um sonhador INFANTE - Eram sonhos meus Originais Agora querem fazer passar por meus os seus proacuteprios sonhos numa acircnsia de rasurar pesadelos Quando sonhava sonhava em grande Nunca fui mediacuteocre CONSTANCcedilA - Isso sabemos INFANTE - Natildeo tanto que o tivessem aprendido ROMUALDO - Viajamos tanto INFANTE - Por necessidade Falta-vos a coragem de aventurar ANTOacuteNIO - Aventurar As nossas aventuras satildeo o que satildeo

19

INFANTE - Apenas JOSEacute - Por vezes quisemos imitar-vos INFANTE - Sem chama DIOGO - Quisemos ir aleacutem da ilha completar outras viagens INFANTE - Sem convicccedilatildeo ANTOacuteNIO - Sabemos navegar INFANTE - Sem rumo que interesse FRADE - Estais a retirar-nos a Poesia INFANTE - Natildeo Apenas a tentar dizer que a Poesia eacute sonho e eacute tanto mais grandiosa quanto maior eacute o sonho FRADE - Desisto de falar INFANTE - Desistir eacute um verbo cobarde Na verdade viveis num paiacutes desistido ANTOacuteNIO - Natildeo temos remissatildeo

INFANTE - Depende da vossa forma de redimir FRADE - Um apelo agrave Histoacuteria por exemplo INFANTE - Dei-vos estas ilhas carregadas de Histoacuteria Fiz delas o poiso de todas as viagens Aqui foram dadas em primeira matildeo as novas de achamento Aqui se desfizeram segredos aqui se informaram povos e culturas aqui o mundo se tornou sabido BEATRIZ - Foram outros tempos INFANTE - E deixaram-nos perder JOSEacute Natildeo tanto assim Ainda temos aviotildees que rapidamente nos trazem outras gentes INFANTE - Poucas DIOGO - E todos os dias sabemos do mundo sobre a hora de qualquer acontecimento INFANTE - Entatildeo porque vos queixais CATARINA - Talvez porque apenas recebemos e nada damos LEONOR - Talvez porque natildeo podemos digerir quanto recebemos ROMUALDO - Talvez porque natildeo temos tempo de sonhar connosco proacuteprios

20

AFONSO - Talvez por causa desta solidatildeo mal quebrada MARIA - Ou por termos as portas mal abertas BELISA - Natildeo termos asas INFANTE - Sois na verdade bem pequenos Natildeo sois capazes de desenterrar os vossos heroacuteis os vossos santos os vossos poetas ANTOacuteNIO - Dos nossos heroacuteis e santos pouco sabemos Permanecem quase todos sob o manto diaacutefano das lendas E os poetas satildeo malditos INFANTE - Todos os poetas satildeo malditos Eacute por isso que satildeo poetas Todos os heroacuteis e santos satildeo lendaacuterios Eacute por isso que permanecem Que conheceis de mim ROMUALDO - Pois Talvez o bastante Ou talvez coisa nenhuma JOSEacute - A vossa imagem de negro no poliacuteptico de Satildeo Vicente eacute uma referecircncia obrigatoacuteria INFANTE - Apenas tecircm referecircncias E no entanto eacute o suficiente para que o sonho aconteccedila Para que preparem todas as viagens e as realizem por seus rumos certos e cheguem agraves terras previstas E aiacute aconteccedilam os outros sonhos os do patildeo e os da cultura FRADE - Isso nos disseram aqui haacute poucos anos E nada aconteceu ANTOacuteNIO - Eis como ficaacutemos pobres e mudos

INFANTE - Mas natildeo presos As vossas amarras satildeo mais inventadas que reais Peguem nos vossos poetas e bebam o sangue da sua Poesia Sem amor natildeo haacute sonho possiacutevel (Saiacuteda falsa) ANTOacuteNIO - Jaacute vos ides INFANTE - Jaacute O tempo de estar na vossa memoacuteria chegou ao fim Volto para as paacuteginas da histoacuteria de um livro que vai ficar intocaacutevel na prateleira da vossa estante Eacute o meu tuacutemulo preferido Natildeo quero que me abandonem nas ruas a desbotar em cartazes Natildeo quero ficar em textos de circunstacircncia em programas tidos de prestiacutegio em espetaacuteculos de teatro sem teatralidade capaz O que eu tinha de ser jaacute fui Se me comeram a carne podem roer-me os ossos A um morto tanto se lhe faz ANTOacuteNIO - Afinal tambeacutem perdeste os sonhos e a vontade de sonhar INFANTE - Soacute sonha quem estaacute vivo Vocecircs estatildeo vivos Podem sonhar (Sai)rdquo

RIMANCE DE DONA BALEIA IMPRESSOtildeES DE BOCA EDICcedilOtildeES DRAC 1992 PP 31-32 E 33

ldquoestava dona baleia - foge foge meu amor a regar o seu jardim ateacute agraves aacuteguas do frio com seu repuxo de prata soacute aiacute te sei segura e sorriso de alfenim a regar o teu jardim quando o foguete estalou com teu repuxo de prata laacute no alto da vigia e sorriso de alfenim anunciando a caccedila mas a canoa da morte (que susto santa maria) corre depressa demais dona baleia - coitada daqui lhe aceno a vida logo parou de aguar feito pedrinha do cais as algas que floriam e grito seu nome drsquoaacutegua

21

bem agrave tona do mar (seu matador quem seraacute) eacute entatildeo que a tristeza procura quantos te amam o medo a afliccedilatildeo Jonas deus iemanjaacute saltam do cais dos olhos de nada lhe serve o grito aos ombros do coraccedilatildeo Nada mais posso fazer um grito aberto se ouve o arpatildeo laacute vai direito em eco de mar perfeito no seu peito embater - baleia agrave vista baleia patildeo-nosso de qualquer jeito ai pobre dona baleia e laacute vai dona baleia como te custa viver fugindo pra natildeo morrer - deus a salve do arpatildeo morreu dona baleia deus a queira proteger arpada de oacutedio velho todo o silecircncio do mar ai pobre dona baleia ficou tinto de vermelho como te custa viver os peixes choram tambeacutem envolta em lenccedilol de sangue mar manso todo rasgado dona baleia laacute vem baba de espuma agrave quilha arrastada ateacute ao cais dona baleia procura seu corpo esquartejado escapar da armadilha nas caldeiras derretido que eacute o arpatildeo voador daacute o patildeo amargurado anjo de ferro esguio e algueacutem haacute de gravar nos seus dentes de marfim eram cinco sois a arder o barco que a perseguiu cinco talhadas de lua o arpatildeo que lhe deu fim que deus lhe quis oferecer no ceacuteu as aves e as nuvens correm do sul para o norte agora dona baleia sobre o mar e sobre a ilha jaacute natildeo lhe custa viverrdquo paira o silecircncio da morte e haacute um poeta branco agrave minha porta a bater natildeo vou abri-la natildeo vou jaacute sei o que vem dizer ai pobre dona baleia como te custa viver agrave costa como um poema

a desfazer-se na areia vieram cinco mareacutes chorar a dona baleia duas choravam espuma - branca nuvem de veratildeo traziam como homenagem um buacutezio em cada matildeo as outras duas chegaram fracas de tanto chorar tanto sal nas suas laacutegrimas tanto sal e tanto mar a quinta mareacute natildeo chora traz apenas no regaccedilo um grande ramo de algas amarrado com um laccedilo deixa-o deposto na costa de seguida reza e canta satildeo cantigas de saudade versos presos na garganta desfeitas satildeo as mareacutes

CARTA DE JOAtildeO VALENTE (RAMINHENSE DA TERCEIRA) A SEU IRMAtildeO EMBARCADO NA CALIFOacuteRNIA (GASTINHAS) OU ENTAtildeO CANTIGAS DE COMO SE PICAM OS OLHOS DA MISEacuteRIA EM PICOS DE ABUNDAcircNCIA

ldquoEscrevo-te esta carta Gostei de saber que tens Pra saber como vais passando Friza e um novo mexim A saudade eacute que nos farta Socircfas clausetas sertatildes Mas por caacute vamos andando E alvaroses dingrim Muito bem graccedilas a Deus Jaacute sei que tens um fogatildeo Nestas linhas que alinhavo Uma trela e talaveija Muito mal desejo aos teus E que jaacute vives no Tatildeo Tameacutem sauacutede Por mim cavo - Mas que sorte salvo seija Desta hora a matildeo na pena E cuma pisca de doacutelas Poucas letras e saberes Te vestiste numa estocirca

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

9

MOINHOS 2014 NO 21ordm COLOacuteQUIO

Estoacuteria de Natal Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 25-31

ldquoToda a manhatilde Gustavo andou numa excitaccedilatildeo desusada Levantara-se cedo sem apelos cumprindo prontamente o que noutros dias fazia com demasiada preguiccedila Com a matildee ornamentara a aacutervore de Natal e armara um lindo preseacutepio fulgurante de pedras e musgos com caminhos de areia casas de cartatildeo e pessoas de barro Bombardeou a matildee com perguntas tentando identificar as figuras com as de carne e osso na acircnsia de entender uma vez por todas as mil atribulaccedilotildees que concorreram para que o Menino Jesus fosse nascer na velha arribana dos arredores de Beleacutem Sempre que a curiosidade o fulminava os seus olhos castanhos ficavam ainda maiores e apesar dos seus escassos cinco anos natildeo se deixava satisfazer com qualquer resposta Ouvia e questionava ndash natildeo por desconfiar das palavras da matildee mas porque queria compreender os pormenores e sobretudo desfazer as contradiccedilotildees Intrigava-o a prepotecircncia daquele recenseamento imposto contranatura pelo Imperador de Roma ndash violador poderoso da vontade de povos tatildeo pequenos e indefesos como o da Judeia ndash a quem comparava com ingeacutenua repugnacircncia agrave Ameacuterica agrave Ruacutessia agrave Indoneacutesia nas suas violaccedilotildees internacionais consagradas e legitimadas Era-lhe impensaacutevel que pudessem obrigar a matildee ndash graacutevida do seu proacuteximo irmatildeo ou irmatilde ndash a ir ateacute agrave cidade para um simples dar o nome incomodando-a nesse belo embaraccedilo da vida Ele sabia que era necessaacuterio evitar qualquer perturbaccedilatildeo No ventre da matildee crescia o seu sonho mais apetecido com o qual jaacute partilhava o melhor dos seus afetos Irmatildeo ou irmatilde natildeo era duacutevida que o apoquentasse Apenas desejava que o tempo passasse depressa para que o nascimento se desse Atraveacutes da voz da matildee foi visionando os longos caminhos de terra e pedregulhos as chuvas de dezembro enlameando o corpo e a alma as noites longas e escuras dormidas ao relento de Nazareacute a Beleacutem E imaginava as apreensotildees muacuteltiplas que S Joseacute e Nossa Senhora ruminaram perante os perigos eminentes de assaltos e desfeitas incluindo as pragas engolidas contra quem assinara o edital romano e os incomodava sem rebuccedilos soacute para se dar ao luxo de saber sobre quantos desgraccedilados impunha o seu poder ldquoPorque natildeo foram de camionetardquo perguntou Gustavo E ficou a saber que nesse tempo longiacutenquo e quase lendaacuterio as camionetas eram simplesmente imprevisiacuteveis e que andar de burro era mesmo assim um privileacutegio de remediado Muitos outros ndash

10

mulheres velhos e crianccedilas ndash teratildeo ido a peacute sem mais contemplaccedilotildees Ele nem queria acreditar que pessoas como os avoacutes tivessem sido obrigadas a deixar as suas casas enfrentando os medos de caminhos pejados de salteadores soacute para satisfazerem os caprichos de um imperador que se quedava na sua enorme cidade no esplendor do seu palaacutecio com tanto de lonjura como de tropas e escravos E havia tambeacutem o despeito pela liberdade ferida um oacutedio mudo mas natildeo adormecido de quem se via sujeito ao poder estrangeiro que desrespeitava a alma a cultura a religiatildeo o direito de ser povo ldquoNaqueles dias Beleacutem tinha as casas e as ruas abarrotadas de gente de ruiacutedos e de cheirosrdquo ldquoComo nas touradasrdquo perguntou Gustavo ldquoMais do que nas touradasrdquo confidenciou a matildee Devia ter sido terriacutevel esse chegar a Beleacutem ao fim de dias de atribulada viagem mergulhar num oceano de gente que zaragateava como enxame gigantesco atropelando-se nas bichas de inscriccedilatildeo agraves portas das tabernas das casas de pasto das pensotildees dos abrigos improvisados Gritava-se pelos guardas sempre impassiacuteveis para denunciar os roubos a partilha de um lugar agrave mesa ou de um recanto onde se pudesse dormir Viam-se as consequecircncias da embriaguez atraveacutes das brigas dos insultos dos piropos soezes Mulheres de porte faacutecil deixavam-se apalpar entre gargalhadas e algumas moedas por transeuntes ocasionais As ruas nauseavam de restos de comida de excrementos de corpos por lavar A cidade era um incomensuraacutevel caixote de lixo ldquoQuando S Joseacute e Nossa Senhora entraram em Beleacutem anoitecia Foram percorrendo as ruas por entre pragas e tropeccedilotildees e os relinchos espantados da burra Havia pessoas deitadas nas valetas os corpos entranccedilados num rodilhatildeo de promiscuidades Algumas janelas deixavam passar a luz deacutebil das lamparinas de azeiterdquo ldquoAinda natildeo havia luz eleacutetricardquo interrompeu Gustavo ldquoNatildeo meu filho A eletricidade eacute bastante recenterdquo ldquoCoitadinhos Entatildeo natildeo iluminavam as aacutervores de Natalrdquo ldquoClaro que natildeo O Menino Jesus ainda natildeo tinha nascidordquo ldquoAh simrdquo E Gustavo sorriu da sua proacutepria infantilidade Nossa Senhora chegou exausta Respirava com dificuldade Tinham chegado dores de corte de faca ao seu baixo-ventre Estava na hora do parto S Joseacute desatinou numa corrida desesperada batendo a todas as portas E sempre recebeu a mesma resposta ldquoNatildeo haacute lugar nem para ficar de peacuterdquo Voltou para junto de Nossa Senhora com um desalento mortal A hipoacutetese do seu filho nascer numa rua qualquer de Beleacutem rodeado de gentes desconhecidas e despudoradas fazia-lhe subir agrave garganta uma anguacutestia de voacutemitos e de laacutegrimas Dentro de si gritava ldquoO meu filho natildeo pode nascer aqui Vai morrer de friordquo E com a burra presa pela arreata empurrava as pessoas

para o lado sem que soubesse que direccedilatildeo perseguir Nossa Senhora contorcendo-se de dores e de afliccedilotildees procurava aparentar uma serenidade impossiacutevel ldquoFossem para o hospital mamatilderdquo ldquoTambeacutem natildeo havia hospitaisrdquo ldquoQuando ficavam doentes onde eacute que se tratavamrdquo ldquoProvavelmente tratavam-se em casa A natildeo ser que fossem leprosos ndash uma doenccedila ruim que os afastava dos parentes e dos amigosrdquo ldquoComo a sidardquo Mas Gustavo natildeo esperou pela resposta Impacientava-o ter deixado S Joseacute e Nossa Senhora naufragados nas ruas de Beleacutem e o Menino Jesus quase a nascer Valeu-lhes uma velhinha que disse haver fora das portas da cidade uma pequena arribana coberta de palha Nem agradeceram a informaccedilatildeo Com a burrinha a trote correram para laacute Foi quando se deu o milagre Um pelotatildeo de anjos desceu do ceacuteu e logo agrave saiacuteda de Beleacutem transportou a burrinha com Nossa Senhora e S Joseacute ateacute agrave arribana Os anjos batendo as suas magniacuteficas asas entoavam com vozes celestes muacutesicas que satildeo apenas de anjo Cantavam a noite feliz acompanhados por bandolins violinos violas e um acordeatildeo O mais pequenino ndash roliccedilo loiro e de olhos azuis ndash importunava o coro e a tuna com o seu tambor desritmado pum pum pum pum ndash quatro toques seguidos de rufo Ningueacutem viu Mas foi muito bonito Logo que chegaram os anjos pegaram em paacutes e vassouras e aprestaram-se a limpar o curral a varrer a arribana assustando uma vaca que tambeacutem aguardava a hora de parir De seguida prepararam com feno uma cama para Nossa Senhora enquanto S Joseacute recorrendo a ferramenta abandonada fez das taacutebuas da baiacutea um confortaacutevel bercinho Acenderam duas lanternas que dependuraram sobre a cama onde Nossa Senhora gemia Depois sossegaram em saborosa expectativa De repente ouviram um grito vindo do curral seguido de choro profundo Alguns anjos acorreram lestamente O mais pequenino caiacutera numa poccedila de lama sujando o vestido e as asas Rompera tambeacutem a pele do tambor Ficou com o ar mais desolado do mundo O Chefe dos anjos logo comeccedilou a repreendecirc-lo ameaccedilando-o com o regresso forccedilado ao ceacuteu seguido duma novena de recreios interditos e fechado numa nuvem S Joseacute poreacutem depois de o limpar pacientemente pegou-lhe ao colo e levou-o para dentro Com o susto ateacute fizera chichi na fralda Gustavo sorria A matildee tentava natildeo entrar nos pormenores do parto O seu pudor empurrava-a para devaneios descritivos que Gustavo natildeo perfilava Colocou os anjos do coro e da tuna suspensos dos tirantes em posiccedilotildees de equiliacutebrio acrobaacutetico Fez com que repetissem muito baixinho a noite feliz E foi nesse entretanto que o Menino

11

Jesus nasceu Era meia-noite em ponto S Joseacute tivera o cuidado de confirmar pelo reloacutegio ldquoFoi por cesariana ou parto normalrdquo quis saber Gustavo ldquoParto normalrdquo respondeu a matildee que se apressou a empurrar os anjos pela arribana fora desatinados de contentamento voando sobre os pastores do mundo inteiro e acordando-os com o hino ldquoGloria in excelsis Deordquo Era um barulho intensamente doce iluminado por estrelas danccedilantes Algumas delas por falta de cuidado chegaram mesmo a cair Mas uma outra mais esperta e avisada desviou-se daquela confusatildeo luminosa e foi ateacute ao oriente para depois guiar os quatro reis magos que vinham de Taacutersis Aacutefrica Peacutersia e Sabaacute ateacute agrave arribana de Beleacutem Chegaram trecircs carregados de oiro incenso e mirra ndash ofertas de pouco sentido praacutetico e que mais tarde os inteacuterpretes de evangelhos procuraram em vatildeo descodificar O quarto rei poreacutem perdeu-se Soacute chegou trinta e trecircs anos mais tarde sem nada para oferecer Tambeacutem Jesus jaacute natildeo precisava Pregado na cruz apenas lhe apetecia morrer ldquoA matildee estaacute a desconversarrdquo disse Gustavo E estava O Natal era o Natal e soacute o Menino Jesus interessava Voltaram agrave arribana que estava quase vazia O anjo pequenino teimava com o Menino Jesus para que experimentasse tocar tambor Sem lhe dar qualquer atenccedilatildeo e consciente de tarefas mais urgentes mamava gostosamente A noite arrefecera Nevara sobre a serra e um vento corrupto trazia o frio ateacute agrave arribana O Menino Jesus podia enregelar Entatildeo a vaca e a burrinha aproximaram-se aquecendo-o com o seu bafo quente e huacutemido Nossa Senhora e S Joseacute sorriam e beijavam ternamente o Menino que depois de mamar adormeceu Colocaram-no no bercinho e o anjo do tambor comeccedilou a embalaacute-lo ldquoEacute por isso que o teu preseacutepio tem um anjo uma burrinha e uma vacardquo disse a matildee Gustavo olhou-o e confirmou Depois natildeo se conteve e perguntou ldquoMamatilde o Menino Jesus teve irmatildeosrdquo ldquoNatildeo meu filho Ele eacute sempre o Menino Jesusrdquo Entatildeo abraccedilando ternamente a barriga da matildee concluiu ldquoNatildeo sabe o que perdeurdquordquo

Com Perfume e Com Veneno

laquoOs membros do gabinete do senhor Presidente estavam em pacircnico Haacute dois dias

que procuravam contactar por telefone a pequena ilha para anunciarem a data do programa da visita constitucional Mas o telefone apenas devolvia ruiacutedos intermitentes que natildeo forneciam qualquer interpretaccedilatildeo teacutecnica Era como se estivessem a ligar para o ponto zero do quintal mais proacuteximo E no entanto era urgente cumprir a lei que prescrevia laquoAo menos uma vez por mandato o governo visitaraacute cada uma das suas ilhasraquo Faltava a mais pequena e mais distante Eacute que passado quase um seacuteculo o mandato terminava na semana seguinte e em veacutesperas de eleiccedilotildees nenhuma ilegalidade podia transformar-se em trunfo nas matildeos da oposiccedilatildeo Soacute que o telefone natildeo atinava com aquela ilha pequena e distante O eco nem tinha forccedilas para lhes devolver o apelo

Houve que reunir de emergecircncia As calviacutecies aumentaram branquearam cabelos

fizeram-se esforccedilos suplementares e aconteceu o habitual suores frios e derramamentos cerebrais Mas natildeo conseguiram qualquer contacto com a ilha mesmo com funcionaacuterios destacados para discar o nuacutemero durante vinte quatro horas

Sobre a mesa de reuniotildees puseram todas as hipoacuteteses avaria do uacutenico telefone

da ilha (a Companhia natildeo o podia comprovar e muito menos reparar) que os habitantes andavam a festejar o Espiacuterito Santo (era eacutepoca disso) que estavam a ensaiar folclore (em tempos tinham-lhes prometido um passeio) que os membros da filarmoacutenica estavam a aprender a tocar o hino para a eventual visita do senhor Presidente que se mantinham ocupados em qualquer acontecimento social Mas em

12

circunstacircncia alguma ficariam impedidos de passar mesmo que fugazmente pelo telefone

Puseram entatildeo hipoacuteteses mais convencionais descontentamento com a

governaccedilatildeo (nem sequer conheciam o senhor Presidente) mudanccedila de paacutetria (a Ameacuterica ali tatildeo perto e muito mais rica) algueacutem com a conivecircncia do padre dera o grito de independecircncia e pronto

(hellip) Partiram como calhou Pouca bagagem Nada de coisas supeacuterfluas O Chefe de

gabinete meteu na pasta o mais importante o discurso que o senhor Presidente iria proferir- o mesmo que jaacute lera nas outras ilhas Enfiaram tambeacutem trecircs jornalistas e um operador de cacircmara de televisatildeo para o registo oacutebvio Era o qb O senhor Presidente enjoava a bordo e por simpatia os membros do gabinete enjoavam tambeacutem Era bonito ver toda aquela solidariedade governativa Conseguiam mesmo imitar os roncos presidenciais que com a continuidade desfaleciam ateacute se transformarem em gemidos agoacutenicos Mas soacute numa viagem como aquela se conseguia avaliar o sacrifiacutecio de governar ilhasraquo

(hellip) O barco foi-se aproximando Reduziu a velocidade e deslizou como tapete rolante

ou mosca sobre taccedila de gelatina E quando o cais ficou agrave matildeo de atracar jaacute todos tinham caiacutedo no oceano do desacircnimo Eacute que nem as autoridades autaacuterquicas nem a filarmoacutenica nem grupo de folclore nem o padre nem qualquer pessoa se postara sobre o cais para esperar tatildeo ilustre comitiva Os jornalistas sentiram-se enfim analfabetos e o operador de cacircmara o escravo de todas as maacutequinas inuacuteteis Pela primeira vez era possiacutevel provar que se pode reduzir qualquer governo agrave sua insignificacircnciaraquo

(hellip) Com Perfume e Com Veneno de Aacutelamo de Oliveira Ed Salamandra 1997 in

httplivrariasolmarblogspotpt201005com-perfume-e-com-venenohtml

13

14

Por Uma Laacutegrima Gorda Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 11 a 21

ldquoA lembranccedila mais agradaacutevel que guardo (mas que eacute tambeacutem do tamanho do meu remorso) eacute a da negrinha Segunda Dei por ela no dia em que vi uma laacutegrima gorda rolar-lhe pelo rosto e estatelar-se sobre a mesa Nunca mais vi laacutegrima que se lhe comparasse em tamanho e amargura uma bola de cristal de maga velha Fiquei perplexo sem saber como era possiacutevel acumular tanta dor salgada Estava em Binta terriola da Guineacute-Bissau que fora porto importante da exportaccedilatildeo de mancarra e arroz nos tempos da escravatura suave do imperialismo lusiacuteada Estava ali fardado de soldado mal fardado apegando-me a um quotidiano enformado por horas inseguras por um teacutedio amassado a suor e a cachimbo e resignado a uma paisagem de aacutervores fendida pelas aacuteguas verdes do rio Cacheu ndash alameda por onde passeavam hipopoacutetamos crocodilos e algumas cobras Tudo isto exercia sobre mim e os meus companheiros de destino o efeito de um soporiacutefero maldito ndash mistura de medo e de torpor que nem o luar de marccedilo esmaecia Era como se a vida tivesse adormecido sobre o arame de um circo desprovido de rede em que o equiliacutebrio se desafiava a si proacuteprio e sem que houvesse a miacutenima razatildeo para evitar a queda e a morte Por isso a laacutegrima gorda de Segunda foi a minha taacutebua de salvaccedilatildeo O que ateacute hoje fiz de mais uacutetil foi ensinar a ler e a escrever agraves crianccedilas de Binta Todos os dias ocupaacutevamos uma palhota que fora abandonada logo que o arame farpado delimitou a aacuterea do quartel Apesar da falta de material didaacutetico as crianccedilas de Binta foram desenhando letras formando palavras descobrindo a grafia da voz e aprendendo que para aleacutem dos seus inconfundiacuteveis meacutetodos de comunicaccedilatildeo tambeacutem era possiacutevel fazecirc-lo atraveacutes da escrita e da leitura No meio dos progressos escolares sentia-me pai-natal ao contraacuterio recebendo mais do que dava e por isso mais feliz do que aquele pequeno bando de negrinhos que diariamente me aparecia vestido de trapos e de sujidade e visivelmente mal alimentado Mas nesse tempo de infernos de convivecircncia com a morte com a injusticcedila e outros males complementares a tarefa de professor devolvia-me alguma da dignidade perdida Foi nessa escola com teto de palha que reconquistei o equiliacutebrio mental e sobretudo o quanto necessitava para sobreviver e poder regressar mais tarde com as minhas lembranccedilas e os meus remorsos Segunda frequentava a minha escola e prendi-me a ela com todos os tentaacuteculos do coraccedilatildeo por causa da tal laacutegrima gorda que um dia deixou cair sobre a mesa

Entatildeo soube-lhe o nome e descobri a sua inteligecircncia e a sua beleza Um estuacutepido becirc maiuacutesculo fecirc-la tropeccedilar no complicado desenho ndash as barrigas sobrepostas como mulher graacutevida duas vezes Simplifiquei o desenho e dei-lhe um beijo na testa E logo o becirc saiu com a forma perfeita Dedicou-me a vitoacuteria com uma cariacutecia na matildeo e o sorriso mais cheio de ternura que algueacutem me deu Assim nasceu a nossa amizade que logo se enredou de muitas e complexas cumplicidades Almoccedilou comigo Partilhamos o rancho ndash da minha parte sem qualquer sacrifiacutecio Tratava-se duma mistela de arroz com rodinhas de salsicha enlatada sem outro sabor que natildeo fosse aquela fome tentacular e corrosiva Segunda quase me irritou com o seu apetite demolidor A sua fome era tambeacutem secular Custava-me aceitar essa verdade sem que o estocircmago natildeo me enfezasse com a sua uacutelcera de revolta Olhei-a mais uma vez e soacute vi a claridade inocente dos seus olhos lindos Passou-me a birra Segunda era como se fosse uma flor de maio ndash intacta delicada e por isso suscetiacutevel ldquoViraste infanticidardquo ouvi dizer Ignorei de quem vinha a piada Natildeo me deixei morder Queria Segunda nessa duacutebia qualidade de irmatilde e de filha ldquoQuantos anos tensrdquo ldquoOito chuvardquo Partiu levando uns restos de comida numa lata enferrujada ldquoPa mecircs irmatildeordquo disse Os seus peacutes descalccedilos levantaram uma linha de poacute vermelho que foi sumir-se de encontro aos arrevesados atalhos da tabanca Ateacute parecia que naquela lata supurenta levava a alma da felicidade E era essa reles felicidade que me deixava abaixo de catildeo Levantei-me com a vontade incontrolaacutevel de me vomitar Fui ateacute ao rio Fechei os olhos e respirei fundo O sol bateu-me no corpo com os seus raios de fogo secando o asco que me subia do estocircmago ao ceacuteu-da-boca Sabia que se gritasse me libertaria do remorso subjugante da guerra e das razotildees submersas de um colonialismo apodrecido de poder Mas estava na hora dos silecircncios quentes da vida de Aacutefrica descansar agrave sombra do torpor da sua desgraccedila Acabei por me perder numa sueca encharcado de cerveja Ser luacutecido ali natildeo era virtude que se cultivasse Antes o aacutelcool Infinitamente Acordei com o ciciar de Segunda ldquoSocirc pofessocirc Socirc pofessocircrdquo Esfreguei os olhos afastando as uacuteltimas teimosias de sono e ela laacute estava com o seu sorriso e o meu pequeno-almoccedilo Comemos e fomos para a escola Com o ridiacuteculo da minha acircnsia transferi para Segunda quanto me restava de afeto e de orgulho Babava-me perante a sua capacidade de aprender e sobretudo de apreender os significados complexos da vida Era brilhante Tanto se lhe dava navegar nos mapas sucintos da grandeza do mundo descobrindo gentes de outras longitudes e civilizaccedilotildees como se fixava no desenvolvimento das complicadas operaccedilotildees de aritmeacutetica somando ternura diminuindo tristeza multiplicando afetos dividindo solidariedade A sua vontade era contagiante Alguns meses depois sete dos meus alunos foram a Safim fazer o exame da quarta classe Ficaram aprovados com distinccedilatildeo Mas soacute Segunda me pareceu digna

15

desse privileacutegio Andava eufoacuterico e tambeacutem infantil premiado com o seu sorriso distinto E com a sua pobreza E isso eacute que me constrangia Era uma pobreza sugadora progressiva medonha irresponsaacutevel Segunda era o rosto singular dos seus companheiros de tabanca de Aacutefrica Comiam os restos da tropa Via-lhes as barrigas entumescidas de fome os olhos desvitaminados os ossos salientes sob a pele das disenterias os rostos sujos do chatildeo que lhes servia de cama os cadernos enodoados de terrosas impressotildees digitais Tudo isto me afogava no lodo de um remorso inconsequente e procurava purificar-me no meu afeto por Segunda Dei-lhe uma camisa velha a que cortara as mangas e acinturei com um cordel Ficava-lhe bem Ficou com um ar de rapariguinha exoacutetica tipo modelo para neacutegligeacutee de alta moda No dia seguinte voltou sem a camisa Dera-a ao pai Mas foi a partir desta pequena doaccedilatildeo que virei estilista Mamadu ndash balanta e muccedilulmano ndash herdara de um colono fugido agrave guerra uma velha maacutequina de costura Com ela apertava-nos as fardas a troco de alimentos que surripiaacutevamos da arrecadaccedilatildeo de geacuteneros uns quilos de arroz patildeo oacuteleo latas de conserva Procurei restos de fardas e levei-os ao homem da maacutequina de costura Desenhei um vestido de corpo justo mangas de balatildeo saia com folhos sobrepostos cintura arrematada com laccedilo nas costas ndash tudo dividido pelos dois tecidos possiacuteveis o verde liso e o camuflado ldquoNatildeo nosso sordado Natildeo sei fazerrdquo disse Mamadu Entatildeo talhei alinhavei e dei indicaccedilotildees sobre o que a agulha da maacutequina devia pespontar ldquoNosso sordado ser artistardquo o vestido suspenso pelos ombros e exposto ao olhar admirado de Mamadu Arquivei o elogio e nunca lhe confessei que naquela peccedila de roupa investi toda a minha ciecircncia sobre costura ndash e tambeacutem o meu receio e a minha ignoracircncia Eacute que soacute por acaso o vestido resultara Segunda eacute que ficou ainda mais bonita Pela primeira vez despertara-se-lhe a vaidade de mulher Confundida e enleada mirou-se no espelho do cabo enfermeiro e correu para a tabanca a fim de explorar a seduccedilatildeo do seu vestido novo Poreacutem mais uma vez o imprevisto derrotou-me Segunda apareceu-me com o vestido numa laacutestima Esquecera-me de lhe pedir que o despisse antes de se deitar Mas natildeo desisti Roubei quanto pude na arrecadaccedilatildeo de geacuteneros e fizeram-se vestidos saias calccedilotildees blusas ndash tudo com modelos diferentes - ateacute que fui apanhado pelo capitatildeo que acabou por desconfiar das minhas sucessivas incursotildees agrave palhota do Mamadu ldquoOu vestes todos ou natildeo vestes ningueacutemrdquo ordenou Aceitei o desafio E toca a desenhar a talhar a alinhavar a coser roupas diversas para as crianccedilas da escola Chegou a fazer-se um abate prematuro de fardas para que natildeo faltasse mateacuteria-prima Quando entrei na

escola estremeci Diante de mim estava um pelotatildeo infantil fardado a preceito e sem graccedila Apeteceu-me mandaacute-los despir Pelo menos a nudez dar-lhes-ia na igualdade da cor e da idade o direito agrave diferenccedila Segunda adivinhando a minha dececcedilatildeo logo me consolou ldquoTodos irmatildeordquo Sem duacutevida Mas por que preccedilo Os dias foram pingando Afeto sobre afeto Segunda tornara-se-me insubstituiacutevel Estava no meu coraccedilatildeo como polvo sadio aorta sentimental anjo da guarda de todos os perigos do meu quotidiano Por isso foi num de repente gelatinoso que dei por mim com os dedos a tocar no tempo do regresso Apercebi-me disso pela algazarra do quartel pelas calviacutecies remanescentes pelas barrigas dilatadas de cerveja pelo fel dos fiacutegados desfeitos pelas rugas da pele pelos medos reassumidos E em cada manhatilde ouvia-se um bruaacute florestal selvagem que era a manifestaccedilatildeo menos demente da alegria de acordar e de riscar mais um nuacutemero no calendaacuterio de parede Apercebi-me tambeacutem desse chegar pelo veacuteu de tristeza que se foi adensando no rosto de Segunda e ateacute pela sua impaciecircncia velada que disfarccedilava com algum autoritarismo sobre as outras crianccedilas Chegou mesmo a vingar-se sobre si proacutepria ausentando-se para dentro respirando os silecircncios da alma Cabia-me preparar Segunda para a nossa inevitaacutevel separaccedilatildeo ndash separaccedilatildeo que eu tambeacutem natildeo desejava tatildeo inseguro me sentia quanto agrave minha capacidade de sobreviver sem ela Mas o que mais me afligia era o natildeo ser capaz de lhe deixar uma razatildeo coerente para o nosso adeus naturalmente definitivo Deixara-a prender-se com o melhor dos seus afetos enquanto eu como adulto racional natildeo passara de um saacutedico e egoiacutesta abandonando-a a todas as incertezas do futuro Retirava-lhe a muleta que eu era mesmo no centro do precipiacutecio Precisava urgentemente duma esperanccedila que lhe garantisse a felicidade E afinal nem lhe podia certificar coisas tatildeo banais como a escola roupa comida Felizmente soacute depois de chegar agrave ilha eacute que percebi que era o maior perdedor Nunca mais acordei ao som da sua voz nunca mais passeei na margem do Cacheu guiado pela sua matildeo nunca mais frui dos poentes vermelhos de fogo com a sua cabeccedila no meu regaccedilo Perdi de uma vez por todas o direito aos seus insoacutelitos presentes um bolo de coco feito pela matildee o passarinho muito inho que apanhava na cerca da palhota e depois domesticava o prazer de comer a primeira manga que a estaccedilatildeo amadurava E acabaram os nossos diaacutelogos onde a Poesia pontificava na contenccedilatildeo das palavras e na extensatildeo dos silecircncios E desta vez foi sobre o meu rosto que voltei a sentir o peso disforme da sua laacutegrima gorda Fiquei sem jeito Falei a Segunda na distacircncia real das nossas terras e das nossas culturas da incerteza do meu futuro bastamente comprometido pela inutilidade dos

16

anos vividos e de todo irrecuperaacuteveis Adensei tudo com verdades dramaacuteticas deixando transparentes a incerteza a cobardia e o pecado da omissatildeo Descrevi-lhe depois as deliacutecias da terra prometida como se fossem dela Antevi-lhe um amanhatilde mentirosamente risonho e deixei-lhe relevada a beleza demagoacutegica da sua paacutetria Olhou-me atordoada inconvencida amuada distante ndash maacutescara que soacute desfez na veacutespera da partida Quando os batelotildees ndash que nos levariam Cacheu abaixo rumo a Bissau ndash chegaram rodeados de barcos-patrulha restavam vinte e quatro horas para estarmos juntos Vivemo-las tatildeo intensamente que me deitei exausto No momento de largar fizemos por nos ignorar Combinaacuteramos evitar o melodrama E Segunda laacute ficou sobre o cais de madeira o dedo na boca os olhos avaramente enxutos assombrando a alegria do meu regresso com a sua recalcada tristeza Ficou sozinha ndash sei laacute com que futuro Ainda hoje sabendo que cresceu e que cumpre o seu destino na paacutetria sem as virtudes que lhe fiz crer dou por mim a soccedilobrar com esta saudade e este remorso Sou-lhe eternamente devedor Se lhe dei alguns meses de comezinha felicidade ele deu-me a coragem de continuar vivo num tempo e num lugar onde a morte chegava a ser uma becircnccedilatildeo do ceacuteu Desses tempos de conviacutevio diaacuterio com as mil presenccedilas da morte haacute imagens que continuam a perseguir-me Bem sei que eacute um disparate jaacute que os meus ressentimentos medos e fantasmas natildeo oferecem resistecircncia de maior Tecircm vindo a diluir-se como a tinta dos maus frescos renascentistas Mas natildeo consigo esquecer-me de Segunda com o seu belo corpo esfaimado a sua resignaccedilatildeo e a sua indiferenccedila perante a presenccedila e a superioridade da tropa Por isso espanto-me que volvidos tantos anos a minha principal referecircncia da Guineacute tenha o tamanho dessa negrinha de olhos grandes e de sorriso branco cujo corpo exalava o perfume inexplorado da floresta e que gostava de se sentar comigo sobre o cais de madeira a ver o sol esconder-se atraacutes da mata de Ohio E que me queimou a alma com uma laacutegrima gorda Segunda deve ser agora uma grande poeta Valha-me esta consolaccedilatildeo sofrida que ser poeta natildeo eacute bem que se deseje nem sequer ao inimigordquo

17

2ordm Ato (Extrato) Os Sonhos do Infante Ediccedilatildeo Jornal de Cultura 1995

ldquoO uacuteltimo sonho o re-encontro Talvez ningueacutem saiba porquecirc nem para quecirc ANTOacuteNIO - Quem sois INFANTE - Que pergunta desnecessaacuteria ANTOacuteNIO - Desculpe Parece-me que o conheccedilo INFANTE - E nem precisas de fazer muito esforccedilo ANTOacuteNIO - Assim de branco INFANTE - Jaacute sei Pareccedilo-te uma noiva de bigode ANTOacuteNIO - Desculpai senhor Jaacute natildeo o via haacute tantos anos INFANTE - Haacute muitos anos ANTOacuteNIO - Andaacuteveis vestido de preto INFANTE - A cor eacute-me indiferente Os seacuteculos purificam os tons escuros Deixam aparar as impurezas Depois vatildeo corando Um dia fica soacute a cor precisa e segura ANTOacuteNIO - Natildeo estou a entender INFANTE

18

- Querias apenas dizer que enquanto os homens satildeo de memoacuteria curta a Histoacuteria encarrega-se de gravar quanto interessa na memoacuteria dos livros e das pedras ANTOacuteNIO - Reconheci-o E natildeo nascemos propriamente no mesmo seacuteculo INFANTE - Seria difiacutecil esquecerem-me Natildeo que o natildeo tenham tentado Aliaacutes este meu paiacutes nunca me mereceu ANTOacuteNIO - Como assim INFANTE - Natildeo teve corpo para arrumar a minha alma Natildeo teve matildeos para agarrar quanto lhe dei ANTOacuteNIO - E isso era possiacutevel INFANTE - Claro que era Bastava que houvesse a mesma grandeza de alma Mas natildeo De descoberta a descoberta foram-se enredando em intrigas em oacutedios em venenos Depois de cada conquista queriam outra conquista e perdiam a primeira ANTOacuteNIO - Mudar pode ser sobreviver INFANTE - Natildeo era mudar Era perder Foi assim que os meus sonhos se foram enchendo de brumas e de silecircncios ANTOacuteNIO - Senhor tanto que se fala de si INFANTE - Agora Este paiacutes sempre viveu de luas Todos os anos vai ao bauacute do passado e desenterra um morto Logo se apressa a ver-lhe os ossos a descobrir-lhe as viacutesceras da virtude do saber dos feitos Depressa sai do anonimato para ser o santo o saacutebio

o heroacutei Durante vinte e quatro horas eacute o bombo da festa a masturbaccedilatildeo coletiva o orgulho da comissatildeo ANTOacuteNIO - Jaacute ouvi isso INFANTE - Agraves vezes esquecem-se dele na praccedila Nem sequer tecircm o cuidado de lhe arrumar outra vez os ossos AFONSO - Consigo eacute diferente INFANTE - Comigo nunca foi diferente Andam agora a assoalhar-me numa pressa escolar que mete doacute Obrigam as criancinhas a saber de mim enchendo-lhes a cabeccedila com sonhos que natildeo sonhei ANTOacuteNIO - Todos dizem que sempre foi um sonhador INFANTE - Eram sonhos meus Originais Agora querem fazer passar por meus os seus proacuteprios sonhos numa acircnsia de rasurar pesadelos Quando sonhava sonhava em grande Nunca fui mediacuteocre CONSTANCcedilA - Isso sabemos INFANTE - Natildeo tanto que o tivessem aprendido ROMUALDO - Viajamos tanto INFANTE - Por necessidade Falta-vos a coragem de aventurar ANTOacuteNIO - Aventurar As nossas aventuras satildeo o que satildeo

19

INFANTE - Apenas JOSEacute - Por vezes quisemos imitar-vos INFANTE - Sem chama DIOGO - Quisemos ir aleacutem da ilha completar outras viagens INFANTE - Sem convicccedilatildeo ANTOacuteNIO - Sabemos navegar INFANTE - Sem rumo que interesse FRADE - Estais a retirar-nos a Poesia INFANTE - Natildeo Apenas a tentar dizer que a Poesia eacute sonho e eacute tanto mais grandiosa quanto maior eacute o sonho FRADE - Desisto de falar INFANTE - Desistir eacute um verbo cobarde Na verdade viveis num paiacutes desistido ANTOacuteNIO - Natildeo temos remissatildeo

INFANTE - Depende da vossa forma de redimir FRADE - Um apelo agrave Histoacuteria por exemplo INFANTE - Dei-vos estas ilhas carregadas de Histoacuteria Fiz delas o poiso de todas as viagens Aqui foram dadas em primeira matildeo as novas de achamento Aqui se desfizeram segredos aqui se informaram povos e culturas aqui o mundo se tornou sabido BEATRIZ - Foram outros tempos INFANTE - E deixaram-nos perder JOSEacute Natildeo tanto assim Ainda temos aviotildees que rapidamente nos trazem outras gentes INFANTE - Poucas DIOGO - E todos os dias sabemos do mundo sobre a hora de qualquer acontecimento INFANTE - Entatildeo porque vos queixais CATARINA - Talvez porque apenas recebemos e nada damos LEONOR - Talvez porque natildeo podemos digerir quanto recebemos ROMUALDO - Talvez porque natildeo temos tempo de sonhar connosco proacuteprios

20

AFONSO - Talvez por causa desta solidatildeo mal quebrada MARIA - Ou por termos as portas mal abertas BELISA - Natildeo termos asas INFANTE - Sois na verdade bem pequenos Natildeo sois capazes de desenterrar os vossos heroacuteis os vossos santos os vossos poetas ANTOacuteNIO - Dos nossos heroacuteis e santos pouco sabemos Permanecem quase todos sob o manto diaacutefano das lendas E os poetas satildeo malditos INFANTE - Todos os poetas satildeo malditos Eacute por isso que satildeo poetas Todos os heroacuteis e santos satildeo lendaacuterios Eacute por isso que permanecem Que conheceis de mim ROMUALDO - Pois Talvez o bastante Ou talvez coisa nenhuma JOSEacute - A vossa imagem de negro no poliacuteptico de Satildeo Vicente eacute uma referecircncia obrigatoacuteria INFANTE - Apenas tecircm referecircncias E no entanto eacute o suficiente para que o sonho aconteccedila Para que preparem todas as viagens e as realizem por seus rumos certos e cheguem agraves terras previstas E aiacute aconteccedilam os outros sonhos os do patildeo e os da cultura FRADE - Isso nos disseram aqui haacute poucos anos E nada aconteceu ANTOacuteNIO - Eis como ficaacutemos pobres e mudos

INFANTE - Mas natildeo presos As vossas amarras satildeo mais inventadas que reais Peguem nos vossos poetas e bebam o sangue da sua Poesia Sem amor natildeo haacute sonho possiacutevel (Saiacuteda falsa) ANTOacuteNIO - Jaacute vos ides INFANTE - Jaacute O tempo de estar na vossa memoacuteria chegou ao fim Volto para as paacuteginas da histoacuteria de um livro que vai ficar intocaacutevel na prateleira da vossa estante Eacute o meu tuacutemulo preferido Natildeo quero que me abandonem nas ruas a desbotar em cartazes Natildeo quero ficar em textos de circunstacircncia em programas tidos de prestiacutegio em espetaacuteculos de teatro sem teatralidade capaz O que eu tinha de ser jaacute fui Se me comeram a carne podem roer-me os ossos A um morto tanto se lhe faz ANTOacuteNIO - Afinal tambeacutem perdeste os sonhos e a vontade de sonhar INFANTE - Soacute sonha quem estaacute vivo Vocecircs estatildeo vivos Podem sonhar (Sai)rdquo

RIMANCE DE DONA BALEIA IMPRESSOtildeES DE BOCA EDICcedilOtildeES DRAC 1992 PP 31-32 E 33

ldquoestava dona baleia - foge foge meu amor a regar o seu jardim ateacute agraves aacuteguas do frio com seu repuxo de prata soacute aiacute te sei segura e sorriso de alfenim a regar o teu jardim quando o foguete estalou com teu repuxo de prata laacute no alto da vigia e sorriso de alfenim anunciando a caccedila mas a canoa da morte (que susto santa maria) corre depressa demais dona baleia - coitada daqui lhe aceno a vida logo parou de aguar feito pedrinha do cais as algas que floriam e grito seu nome drsquoaacutegua

21

bem agrave tona do mar (seu matador quem seraacute) eacute entatildeo que a tristeza procura quantos te amam o medo a afliccedilatildeo Jonas deus iemanjaacute saltam do cais dos olhos de nada lhe serve o grito aos ombros do coraccedilatildeo Nada mais posso fazer um grito aberto se ouve o arpatildeo laacute vai direito em eco de mar perfeito no seu peito embater - baleia agrave vista baleia patildeo-nosso de qualquer jeito ai pobre dona baleia e laacute vai dona baleia como te custa viver fugindo pra natildeo morrer - deus a salve do arpatildeo morreu dona baleia deus a queira proteger arpada de oacutedio velho todo o silecircncio do mar ai pobre dona baleia ficou tinto de vermelho como te custa viver os peixes choram tambeacutem envolta em lenccedilol de sangue mar manso todo rasgado dona baleia laacute vem baba de espuma agrave quilha arrastada ateacute ao cais dona baleia procura seu corpo esquartejado escapar da armadilha nas caldeiras derretido que eacute o arpatildeo voador daacute o patildeo amargurado anjo de ferro esguio e algueacutem haacute de gravar nos seus dentes de marfim eram cinco sois a arder o barco que a perseguiu cinco talhadas de lua o arpatildeo que lhe deu fim que deus lhe quis oferecer no ceacuteu as aves e as nuvens correm do sul para o norte agora dona baleia sobre o mar e sobre a ilha jaacute natildeo lhe custa viverrdquo paira o silecircncio da morte e haacute um poeta branco agrave minha porta a bater natildeo vou abri-la natildeo vou jaacute sei o que vem dizer ai pobre dona baleia como te custa viver agrave costa como um poema

a desfazer-se na areia vieram cinco mareacutes chorar a dona baleia duas choravam espuma - branca nuvem de veratildeo traziam como homenagem um buacutezio em cada matildeo as outras duas chegaram fracas de tanto chorar tanto sal nas suas laacutegrimas tanto sal e tanto mar a quinta mareacute natildeo chora traz apenas no regaccedilo um grande ramo de algas amarrado com um laccedilo deixa-o deposto na costa de seguida reza e canta satildeo cantigas de saudade versos presos na garganta desfeitas satildeo as mareacutes

CARTA DE JOAtildeO VALENTE (RAMINHENSE DA TERCEIRA) A SEU IRMAtildeO EMBARCADO NA CALIFOacuteRNIA (GASTINHAS) OU ENTAtildeO CANTIGAS DE COMO SE PICAM OS OLHOS DA MISEacuteRIA EM PICOS DE ABUNDAcircNCIA

ldquoEscrevo-te esta carta Gostei de saber que tens Pra saber como vais passando Friza e um novo mexim A saudade eacute que nos farta Socircfas clausetas sertatildes Mas por caacute vamos andando E alvaroses dingrim Muito bem graccedilas a Deus Jaacute sei que tens um fogatildeo Nestas linhas que alinhavo Uma trela e talaveija Muito mal desejo aos teus E que jaacute vives no Tatildeo Tameacutem sauacutede Por mim cavo - Mas que sorte salvo seija Desta hora a matildeo na pena E cuma pisca de doacutelas Poucas letras e saberes Te vestiste numa estocirca

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

10

mulheres velhos e crianccedilas ndash teratildeo ido a peacute sem mais contemplaccedilotildees Ele nem queria acreditar que pessoas como os avoacutes tivessem sido obrigadas a deixar as suas casas enfrentando os medos de caminhos pejados de salteadores soacute para satisfazerem os caprichos de um imperador que se quedava na sua enorme cidade no esplendor do seu palaacutecio com tanto de lonjura como de tropas e escravos E havia tambeacutem o despeito pela liberdade ferida um oacutedio mudo mas natildeo adormecido de quem se via sujeito ao poder estrangeiro que desrespeitava a alma a cultura a religiatildeo o direito de ser povo ldquoNaqueles dias Beleacutem tinha as casas e as ruas abarrotadas de gente de ruiacutedos e de cheirosrdquo ldquoComo nas touradasrdquo perguntou Gustavo ldquoMais do que nas touradasrdquo confidenciou a matildee Devia ter sido terriacutevel esse chegar a Beleacutem ao fim de dias de atribulada viagem mergulhar num oceano de gente que zaragateava como enxame gigantesco atropelando-se nas bichas de inscriccedilatildeo agraves portas das tabernas das casas de pasto das pensotildees dos abrigos improvisados Gritava-se pelos guardas sempre impassiacuteveis para denunciar os roubos a partilha de um lugar agrave mesa ou de um recanto onde se pudesse dormir Viam-se as consequecircncias da embriaguez atraveacutes das brigas dos insultos dos piropos soezes Mulheres de porte faacutecil deixavam-se apalpar entre gargalhadas e algumas moedas por transeuntes ocasionais As ruas nauseavam de restos de comida de excrementos de corpos por lavar A cidade era um incomensuraacutevel caixote de lixo ldquoQuando S Joseacute e Nossa Senhora entraram em Beleacutem anoitecia Foram percorrendo as ruas por entre pragas e tropeccedilotildees e os relinchos espantados da burra Havia pessoas deitadas nas valetas os corpos entranccedilados num rodilhatildeo de promiscuidades Algumas janelas deixavam passar a luz deacutebil das lamparinas de azeiterdquo ldquoAinda natildeo havia luz eleacutetricardquo interrompeu Gustavo ldquoNatildeo meu filho A eletricidade eacute bastante recenterdquo ldquoCoitadinhos Entatildeo natildeo iluminavam as aacutervores de Natalrdquo ldquoClaro que natildeo O Menino Jesus ainda natildeo tinha nascidordquo ldquoAh simrdquo E Gustavo sorriu da sua proacutepria infantilidade Nossa Senhora chegou exausta Respirava com dificuldade Tinham chegado dores de corte de faca ao seu baixo-ventre Estava na hora do parto S Joseacute desatinou numa corrida desesperada batendo a todas as portas E sempre recebeu a mesma resposta ldquoNatildeo haacute lugar nem para ficar de peacuterdquo Voltou para junto de Nossa Senhora com um desalento mortal A hipoacutetese do seu filho nascer numa rua qualquer de Beleacutem rodeado de gentes desconhecidas e despudoradas fazia-lhe subir agrave garganta uma anguacutestia de voacutemitos e de laacutegrimas Dentro de si gritava ldquoO meu filho natildeo pode nascer aqui Vai morrer de friordquo E com a burra presa pela arreata empurrava as pessoas

para o lado sem que soubesse que direccedilatildeo perseguir Nossa Senhora contorcendo-se de dores e de afliccedilotildees procurava aparentar uma serenidade impossiacutevel ldquoFossem para o hospital mamatilderdquo ldquoTambeacutem natildeo havia hospitaisrdquo ldquoQuando ficavam doentes onde eacute que se tratavamrdquo ldquoProvavelmente tratavam-se em casa A natildeo ser que fossem leprosos ndash uma doenccedila ruim que os afastava dos parentes e dos amigosrdquo ldquoComo a sidardquo Mas Gustavo natildeo esperou pela resposta Impacientava-o ter deixado S Joseacute e Nossa Senhora naufragados nas ruas de Beleacutem e o Menino Jesus quase a nascer Valeu-lhes uma velhinha que disse haver fora das portas da cidade uma pequena arribana coberta de palha Nem agradeceram a informaccedilatildeo Com a burrinha a trote correram para laacute Foi quando se deu o milagre Um pelotatildeo de anjos desceu do ceacuteu e logo agrave saiacuteda de Beleacutem transportou a burrinha com Nossa Senhora e S Joseacute ateacute agrave arribana Os anjos batendo as suas magniacuteficas asas entoavam com vozes celestes muacutesicas que satildeo apenas de anjo Cantavam a noite feliz acompanhados por bandolins violinos violas e um acordeatildeo O mais pequenino ndash roliccedilo loiro e de olhos azuis ndash importunava o coro e a tuna com o seu tambor desritmado pum pum pum pum ndash quatro toques seguidos de rufo Ningueacutem viu Mas foi muito bonito Logo que chegaram os anjos pegaram em paacutes e vassouras e aprestaram-se a limpar o curral a varrer a arribana assustando uma vaca que tambeacutem aguardava a hora de parir De seguida prepararam com feno uma cama para Nossa Senhora enquanto S Joseacute recorrendo a ferramenta abandonada fez das taacutebuas da baiacutea um confortaacutevel bercinho Acenderam duas lanternas que dependuraram sobre a cama onde Nossa Senhora gemia Depois sossegaram em saborosa expectativa De repente ouviram um grito vindo do curral seguido de choro profundo Alguns anjos acorreram lestamente O mais pequenino caiacutera numa poccedila de lama sujando o vestido e as asas Rompera tambeacutem a pele do tambor Ficou com o ar mais desolado do mundo O Chefe dos anjos logo comeccedilou a repreendecirc-lo ameaccedilando-o com o regresso forccedilado ao ceacuteu seguido duma novena de recreios interditos e fechado numa nuvem S Joseacute poreacutem depois de o limpar pacientemente pegou-lhe ao colo e levou-o para dentro Com o susto ateacute fizera chichi na fralda Gustavo sorria A matildee tentava natildeo entrar nos pormenores do parto O seu pudor empurrava-a para devaneios descritivos que Gustavo natildeo perfilava Colocou os anjos do coro e da tuna suspensos dos tirantes em posiccedilotildees de equiliacutebrio acrobaacutetico Fez com que repetissem muito baixinho a noite feliz E foi nesse entretanto que o Menino

11

Jesus nasceu Era meia-noite em ponto S Joseacute tivera o cuidado de confirmar pelo reloacutegio ldquoFoi por cesariana ou parto normalrdquo quis saber Gustavo ldquoParto normalrdquo respondeu a matildee que se apressou a empurrar os anjos pela arribana fora desatinados de contentamento voando sobre os pastores do mundo inteiro e acordando-os com o hino ldquoGloria in excelsis Deordquo Era um barulho intensamente doce iluminado por estrelas danccedilantes Algumas delas por falta de cuidado chegaram mesmo a cair Mas uma outra mais esperta e avisada desviou-se daquela confusatildeo luminosa e foi ateacute ao oriente para depois guiar os quatro reis magos que vinham de Taacutersis Aacutefrica Peacutersia e Sabaacute ateacute agrave arribana de Beleacutem Chegaram trecircs carregados de oiro incenso e mirra ndash ofertas de pouco sentido praacutetico e que mais tarde os inteacuterpretes de evangelhos procuraram em vatildeo descodificar O quarto rei poreacutem perdeu-se Soacute chegou trinta e trecircs anos mais tarde sem nada para oferecer Tambeacutem Jesus jaacute natildeo precisava Pregado na cruz apenas lhe apetecia morrer ldquoA matildee estaacute a desconversarrdquo disse Gustavo E estava O Natal era o Natal e soacute o Menino Jesus interessava Voltaram agrave arribana que estava quase vazia O anjo pequenino teimava com o Menino Jesus para que experimentasse tocar tambor Sem lhe dar qualquer atenccedilatildeo e consciente de tarefas mais urgentes mamava gostosamente A noite arrefecera Nevara sobre a serra e um vento corrupto trazia o frio ateacute agrave arribana O Menino Jesus podia enregelar Entatildeo a vaca e a burrinha aproximaram-se aquecendo-o com o seu bafo quente e huacutemido Nossa Senhora e S Joseacute sorriam e beijavam ternamente o Menino que depois de mamar adormeceu Colocaram-no no bercinho e o anjo do tambor comeccedilou a embalaacute-lo ldquoEacute por isso que o teu preseacutepio tem um anjo uma burrinha e uma vacardquo disse a matildee Gustavo olhou-o e confirmou Depois natildeo se conteve e perguntou ldquoMamatilde o Menino Jesus teve irmatildeosrdquo ldquoNatildeo meu filho Ele eacute sempre o Menino Jesusrdquo Entatildeo abraccedilando ternamente a barriga da matildee concluiu ldquoNatildeo sabe o que perdeurdquordquo

Com Perfume e Com Veneno

laquoOs membros do gabinete do senhor Presidente estavam em pacircnico Haacute dois dias

que procuravam contactar por telefone a pequena ilha para anunciarem a data do programa da visita constitucional Mas o telefone apenas devolvia ruiacutedos intermitentes que natildeo forneciam qualquer interpretaccedilatildeo teacutecnica Era como se estivessem a ligar para o ponto zero do quintal mais proacuteximo E no entanto era urgente cumprir a lei que prescrevia laquoAo menos uma vez por mandato o governo visitaraacute cada uma das suas ilhasraquo Faltava a mais pequena e mais distante Eacute que passado quase um seacuteculo o mandato terminava na semana seguinte e em veacutesperas de eleiccedilotildees nenhuma ilegalidade podia transformar-se em trunfo nas matildeos da oposiccedilatildeo Soacute que o telefone natildeo atinava com aquela ilha pequena e distante O eco nem tinha forccedilas para lhes devolver o apelo

Houve que reunir de emergecircncia As calviacutecies aumentaram branquearam cabelos

fizeram-se esforccedilos suplementares e aconteceu o habitual suores frios e derramamentos cerebrais Mas natildeo conseguiram qualquer contacto com a ilha mesmo com funcionaacuterios destacados para discar o nuacutemero durante vinte quatro horas

Sobre a mesa de reuniotildees puseram todas as hipoacuteteses avaria do uacutenico telefone

da ilha (a Companhia natildeo o podia comprovar e muito menos reparar) que os habitantes andavam a festejar o Espiacuterito Santo (era eacutepoca disso) que estavam a ensaiar folclore (em tempos tinham-lhes prometido um passeio) que os membros da filarmoacutenica estavam a aprender a tocar o hino para a eventual visita do senhor Presidente que se mantinham ocupados em qualquer acontecimento social Mas em

12

circunstacircncia alguma ficariam impedidos de passar mesmo que fugazmente pelo telefone

Puseram entatildeo hipoacuteteses mais convencionais descontentamento com a

governaccedilatildeo (nem sequer conheciam o senhor Presidente) mudanccedila de paacutetria (a Ameacuterica ali tatildeo perto e muito mais rica) algueacutem com a conivecircncia do padre dera o grito de independecircncia e pronto

(hellip) Partiram como calhou Pouca bagagem Nada de coisas supeacuterfluas O Chefe de

gabinete meteu na pasta o mais importante o discurso que o senhor Presidente iria proferir- o mesmo que jaacute lera nas outras ilhas Enfiaram tambeacutem trecircs jornalistas e um operador de cacircmara de televisatildeo para o registo oacutebvio Era o qb O senhor Presidente enjoava a bordo e por simpatia os membros do gabinete enjoavam tambeacutem Era bonito ver toda aquela solidariedade governativa Conseguiam mesmo imitar os roncos presidenciais que com a continuidade desfaleciam ateacute se transformarem em gemidos agoacutenicos Mas soacute numa viagem como aquela se conseguia avaliar o sacrifiacutecio de governar ilhasraquo

(hellip) O barco foi-se aproximando Reduziu a velocidade e deslizou como tapete rolante

ou mosca sobre taccedila de gelatina E quando o cais ficou agrave matildeo de atracar jaacute todos tinham caiacutedo no oceano do desacircnimo Eacute que nem as autoridades autaacuterquicas nem a filarmoacutenica nem grupo de folclore nem o padre nem qualquer pessoa se postara sobre o cais para esperar tatildeo ilustre comitiva Os jornalistas sentiram-se enfim analfabetos e o operador de cacircmara o escravo de todas as maacutequinas inuacuteteis Pela primeira vez era possiacutevel provar que se pode reduzir qualquer governo agrave sua insignificacircnciaraquo

(hellip) Com Perfume e Com Veneno de Aacutelamo de Oliveira Ed Salamandra 1997 in

httplivrariasolmarblogspotpt201005com-perfume-e-com-venenohtml

13

14

Por Uma Laacutegrima Gorda Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 11 a 21

ldquoA lembranccedila mais agradaacutevel que guardo (mas que eacute tambeacutem do tamanho do meu remorso) eacute a da negrinha Segunda Dei por ela no dia em que vi uma laacutegrima gorda rolar-lhe pelo rosto e estatelar-se sobre a mesa Nunca mais vi laacutegrima que se lhe comparasse em tamanho e amargura uma bola de cristal de maga velha Fiquei perplexo sem saber como era possiacutevel acumular tanta dor salgada Estava em Binta terriola da Guineacute-Bissau que fora porto importante da exportaccedilatildeo de mancarra e arroz nos tempos da escravatura suave do imperialismo lusiacuteada Estava ali fardado de soldado mal fardado apegando-me a um quotidiano enformado por horas inseguras por um teacutedio amassado a suor e a cachimbo e resignado a uma paisagem de aacutervores fendida pelas aacuteguas verdes do rio Cacheu ndash alameda por onde passeavam hipopoacutetamos crocodilos e algumas cobras Tudo isto exercia sobre mim e os meus companheiros de destino o efeito de um soporiacutefero maldito ndash mistura de medo e de torpor que nem o luar de marccedilo esmaecia Era como se a vida tivesse adormecido sobre o arame de um circo desprovido de rede em que o equiliacutebrio se desafiava a si proacuteprio e sem que houvesse a miacutenima razatildeo para evitar a queda e a morte Por isso a laacutegrima gorda de Segunda foi a minha taacutebua de salvaccedilatildeo O que ateacute hoje fiz de mais uacutetil foi ensinar a ler e a escrever agraves crianccedilas de Binta Todos os dias ocupaacutevamos uma palhota que fora abandonada logo que o arame farpado delimitou a aacuterea do quartel Apesar da falta de material didaacutetico as crianccedilas de Binta foram desenhando letras formando palavras descobrindo a grafia da voz e aprendendo que para aleacutem dos seus inconfundiacuteveis meacutetodos de comunicaccedilatildeo tambeacutem era possiacutevel fazecirc-lo atraveacutes da escrita e da leitura No meio dos progressos escolares sentia-me pai-natal ao contraacuterio recebendo mais do que dava e por isso mais feliz do que aquele pequeno bando de negrinhos que diariamente me aparecia vestido de trapos e de sujidade e visivelmente mal alimentado Mas nesse tempo de infernos de convivecircncia com a morte com a injusticcedila e outros males complementares a tarefa de professor devolvia-me alguma da dignidade perdida Foi nessa escola com teto de palha que reconquistei o equiliacutebrio mental e sobretudo o quanto necessitava para sobreviver e poder regressar mais tarde com as minhas lembranccedilas e os meus remorsos Segunda frequentava a minha escola e prendi-me a ela com todos os tentaacuteculos do coraccedilatildeo por causa da tal laacutegrima gorda que um dia deixou cair sobre a mesa

Entatildeo soube-lhe o nome e descobri a sua inteligecircncia e a sua beleza Um estuacutepido becirc maiuacutesculo fecirc-la tropeccedilar no complicado desenho ndash as barrigas sobrepostas como mulher graacutevida duas vezes Simplifiquei o desenho e dei-lhe um beijo na testa E logo o becirc saiu com a forma perfeita Dedicou-me a vitoacuteria com uma cariacutecia na matildeo e o sorriso mais cheio de ternura que algueacutem me deu Assim nasceu a nossa amizade que logo se enredou de muitas e complexas cumplicidades Almoccedilou comigo Partilhamos o rancho ndash da minha parte sem qualquer sacrifiacutecio Tratava-se duma mistela de arroz com rodinhas de salsicha enlatada sem outro sabor que natildeo fosse aquela fome tentacular e corrosiva Segunda quase me irritou com o seu apetite demolidor A sua fome era tambeacutem secular Custava-me aceitar essa verdade sem que o estocircmago natildeo me enfezasse com a sua uacutelcera de revolta Olhei-a mais uma vez e soacute vi a claridade inocente dos seus olhos lindos Passou-me a birra Segunda era como se fosse uma flor de maio ndash intacta delicada e por isso suscetiacutevel ldquoViraste infanticidardquo ouvi dizer Ignorei de quem vinha a piada Natildeo me deixei morder Queria Segunda nessa duacutebia qualidade de irmatilde e de filha ldquoQuantos anos tensrdquo ldquoOito chuvardquo Partiu levando uns restos de comida numa lata enferrujada ldquoPa mecircs irmatildeordquo disse Os seus peacutes descalccedilos levantaram uma linha de poacute vermelho que foi sumir-se de encontro aos arrevesados atalhos da tabanca Ateacute parecia que naquela lata supurenta levava a alma da felicidade E era essa reles felicidade que me deixava abaixo de catildeo Levantei-me com a vontade incontrolaacutevel de me vomitar Fui ateacute ao rio Fechei os olhos e respirei fundo O sol bateu-me no corpo com os seus raios de fogo secando o asco que me subia do estocircmago ao ceacuteu-da-boca Sabia que se gritasse me libertaria do remorso subjugante da guerra e das razotildees submersas de um colonialismo apodrecido de poder Mas estava na hora dos silecircncios quentes da vida de Aacutefrica descansar agrave sombra do torpor da sua desgraccedila Acabei por me perder numa sueca encharcado de cerveja Ser luacutecido ali natildeo era virtude que se cultivasse Antes o aacutelcool Infinitamente Acordei com o ciciar de Segunda ldquoSocirc pofessocirc Socirc pofessocircrdquo Esfreguei os olhos afastando as uacuteltimas teimosias de sono e ela laacute estava com o seu sorriso e o meu pequeno-almoccedilo Comemos e fomos para a escola Com o ridiacuteculo da minha acircnsia transferi para Segunda quanto me restava de afeto e de orgulho Babava-me perante a sua capacidade de aprender e sobretudo de apreender os significados complexos da vida Era brilhante Tanto se lhe dava navegar nos mapas sucintos da grandeza do mundo descobrindo gentes de outras longitudes e civilizaccedilotildees como se fixava no desenvolvimento das complicadas operaccedilotildees de aritmeacutetica somando ternura diminuindo tristeza multiplicando afetos dividindo solidariedade A sua vontade era contagiante Alguns meses depois sete dos meus alunos foram a Safim fazer o exame da quarta classe Ficaram aprovados com distinccedilatildeo Mas soacute Segunda me pareceu digna

15

desse privileacutegio Andava eufoacuterico e tambeacutem infantil premiado com o seu sorriso distinto E com a sua pobreza E isso eacute que me constrangia Era uma pobreza sugadora progressiva medonha irresponsaacutevel Segunda era o rosto singular dos seus companheiros de tabanca de Aacutefrica Comiam os restos da tropa Via-lhes as barrigas entumescidas de fome os olhos desvitaminados os ossos salientes sob a pele das disenterias os rostos sujos do chatildeo que lhes servia de cama os cadernos enodoados de terrosas impressotildees digitais Tudo isto me afogava no lodo de um remorso inconsequente e procurava purificar-me no meu afeto por Segunda Dei-lhe uma camisa velha a que cortara as mangas e acinturei com um cordel Ficava-lhe bem Ficou com um ar de rapariguinha exoacutetica tipo modelo para neacutegligeacutee de alta moda No dia seguinte voltou sem a camisa Dera-a ao pai Mas foi a partir desta pequena doaccedilatildeo que virei estilista Mamadu ndash balanta e muccedilulmano ndash herdara de um colono fugido agrave guerra uma velha maacutequina de costura Com ela apertava-nos as fardas a troco de alimentos que surripiaacutevamos da arrecadaccedilatildeo de geacuteneros uns quilos de arroz patildeo oacuteleo latas de conserva Procurei restos de fardas e levei-os ao homem da maacutequina de costura Desenhei um vestido de corpo justo mangas de balatildeo saia com folhos sobrepostos cintura arrematada com laccedilo nas costas ndash tudo dividido pelos dois tecidos possiacuteveis o verde liso e o camuflado ldquoNatildeo nosso sordado Natildeo sei fazerrdquo disse Mamadu Entatildeo talhei alinhavei e dei indicaccedilotildees sobre o que a agulha da maacutequina devia pespontar ldquoNosso sordado ser artistardquo o vestido suspenso pelos ombros e exposto ao olhar admirado de Mamadu Arquivei o elogio e nunca lhe confessei que naquela peccedila de roupa investi toda a minha ciecircncia sobre costura ndash e tambeacutem o meu receio e a minha ignoracircncia Eacute que soacute por acaso o vestido resultara Segunda eacute que ficou ainda mais bonita Pela primeira vez despertara-se-lhe a vaidade de mulher Confundida e enleada mirou-se no espelho do cabo enfermeiro e correu para a tabanca a fim de explorar a seduccedilatildeo do seu vestido novo Poreacutem mais uma vez o imprevisto derrotou-me Segunda apareceu-me com o vestido numa laacutestima Esquecera-me de lhe pedir que o despisse antes de se deitar Mas natildeo desisti Roubei quanto pude na arrecadaccedilatildeo de geacuteneros e fizeram-se vestidos saias calccedilotildees blusas ndash tudo com modelos diferentes - ateacute que fui apanhado pelo capitatildeo que acabou por desconfiar das minhas sucessivas incursotildees agrave palhota do Mamadu ldquoOu vestes todos ou natildeo vestes ningueacutemrdquo ordenou Aceitei o desafio E toca a desenhar a talhar a alinhavar a coser roupas diversas para as crianccedilas da escola Chegou a fazer-se um abate prematuro de fardas para que natildeo faltasse mateacuteria-prima Quando entrei na

escola estremeci Diante de mim estava um pelotatildeo infantil fardado a preceito e sem graccedila Apeteceu-me mandaacute-los despir Pelo menos a nudez dar-lhes-ia na igualdade da cor e da idade o direito agrave diferenccedila Segunda adivinhando a minha dececcedilatildeo logo me consolou ldquoTodos irmatildeordquo Sem duacutevida Mas por que preccedilo Os dias foram pingando Afeto sobre afeto Segunda tornara-se-me insubstituiacutevel Estava no meu coraccedilatildeo como polvo sadio aorta sentimental anjo da guarda de todos os perigos do meu quotidiano Por isso foi num de repente gelatinoso que dei por mim com os dedos a tocar no tempo do regresso Apercebi-me disso pela algazarra do quartel pelas calviacutecies remanescentes pelas barrigas dilatadas de cerveja pelo fel dos fiacutegados desfeitos pelas rugas da pele pelos medos reassumidos E em cada manhatilde ouvia-se um bruaacute florestal selvagem que era a manifestaccedilatildeo menos demente da alegria de acordar e de riscar mais um nuacutemero no calendaacuterio de parede Apercebi-me tambeacutem desse chegar pelo veacuteu de tristeza que se foi adensando no rosto de Segunda e ateacute pela sua impaciecircncia velada que disfarccedilava com algum autoritarismo sobre as outras crianccedilas Chegou mesmo a vingar-se sobre si proacutepria ausentando-se para dentro respirando os silecircncios da alma Cabia-me preparar Segunda para a nossa inevitaacutevel separaccedilatildeo ndash separaccedilatildeo que eu tambeacutem natildeo desejava tatildeo inseguro me sentia quanto agrave minha capacidade de sobreviver sem ela Mas o que mais me afligia era o natildeo ser capaz de lhe deixar uma razatildeo coerente para o nosso adeus naturalmente definitivo Deixara-a prender-se com o melhor dos seus afetos enquanto eu como adulto racional natildeo passara de um saacutedico e egoiacutesta abandonando-a a todas as incertezas do futuro Retirava-lhe a muleta que eu era mesmo no centro do precipiacutecio Precisava urgentemente duma esperanccedila que lhe garantisse a felicidade E afinal nem lhe podia certificar coisas tatildeo banais como a escola roupa comida Felizmente soacute depois de chegar agrave ilha eacute que percebi que era o maior perdedor Nunca mais acordei ao som da sua voz nunca mais passeei na margem do Cacheu guiado pela sua matildeo nunca mais frui dos poentes vermelhos de fogo com a sua cabeccedila no meu regaccedilo Perdi de uma vez por todas o direito aos seus insoacutelitos presentes um bolo de coco feito pela matildee o passarinho muito inho que apanhava na cerca da palhota e depois domesticava o prazer de comer a primeira manga que a estaccedilatildeo amadurava E acabaram os nossos diaacutelogos onde a Poesia pontificava na contenccedilatildeo das palavras e na extensatildeo dos silecircncios E desta vez foi sobre o meu rosto que voltei a sentir o peso disforme da sua laacutegrima gorda Fiquei sem jeito Falei a Segunda na distacircncia real das nossas terras e das nossas culturas da incerteza do meu futuro bastamente comprometido pela inutilidade dos

16

anos vividos e de todo irrecuperaacuteveis Adensei tudo com verdades dramaacuteticas deixando transparentes a incerteza a cobardia e o pecado da omissatildeo Descrevi-lhe depois as deliacutecias da terra prometida como se fossem dela Antevi-lhe um amanhatilde mentirosamente risonho e deixei-lhe relevada a beleza demagoacutegica da sua paacutetria Olhou-me atordoada inconvencida amuada distante ndash maacutescara que soacute desfez na veacutespera da partida Quando os batelotildees ndash que nos levariam Cacheu abaixo rumo a Bissau ndash chegaram rodeados de barcos-patrulha restavam vinte e quatro horas para estarmos juntos Vivemo-las tatildeo intensamente que me deitei exausto No momento de largar fizemos por nos ignorar Combinaacuteramos evitar o melodrama E Segunda laacute ficou sobre o cais de madeira o dedo na boca os olhos avaramente enxutos assombrando a alegria do meu regresso com a sua recalcada tristeza Ficou sozinha ndash sei laacute com que futuro Ainda hoje sabendo que cresceu e que cumpre o seu destino na paacutetria sem as virtudes que lhe fiz crer dou por mim a soccedilobrar com esta saudade e este remorso Sou-lhe eternamente devedor Se lhe dei alguns meses de comezinha felicidade ele deu-me a coragem de continuar vivo num tempo e num lugar onde a morte chegava a ser uma becircnccedilatildeo do ceacuteu Desses tempos de conviacutevio diaacuterio com as mil presenccedilas da morte haacute imagens que continuam a perseguir-me Bem sei que eacute um disparate jaacute que os meus ressentimentos medos e fantasmas natildeo oferecem resistecircncia de maior Tecircm vindo a diluir-se como a tinta dos maus frescos renascentistas Mas natildeo consigo esquecer-me de Segunda com o seu belo corpo esfaimado a sua resignaccedilatildeo e a sua indiferenccedila perante a presenccedila e a superioridade da tropa Por isso espanto-me que volvidos tantos anos a minha principal referecircncia da Guineacute tenha o tamanho dessa negrinha de olhos grandes e de sorriso branco cujo corpo exalava o perfume inexplorado da floresta e que gostava de se sentar comigo sobre o cais de madeira a ver o sol esconder-se atraacutes da mata de Ohio E que me queimou a alma com uma laacutegrima gorda Segunda deve ser agora uma grande poeta Valha-me esta consolaccedilatildeo sofrida que ser poeta natildeo eacute bem que se deseje nem sequer ao inimigordquo

17

2ordm Ato (Extrato) Os Sonhos do Infante Ediccedilatildeo Jornal de Cultura 1995

ldquoO uacuteltimo sonho o re-encontro Talvez ningueacutem saiba porquecirc nem para quecirc ANTOacuteNIO - Quem sois INFANTE - Que pergunta desnecessaacuteria ANTOacuteNIO - Desculpe Parece-me que o conheccedilo INFANTE - E nem precisas de fazer muito esforccedilo ANTOacuteNIO - Assim de branco INFANTE - Jaacute sei Pareccedilo-te uma noiva de bigode ANTOacuteNIO - Desculpai senhor Jaacute natildeo o via haacute tantos anos INFANTE - Haacute muitos anos ANTOacuteNIO - Andaacuteveis vestido de preto INFANTE - A cor eacute-me indiferente Os seacuteculos purificam os tons escuros Deixam aparar as impurezas Depois vatildeo corando Um dia fica soacute a cor precisa e segura ANTOacuteNIO - Natildeo estou a entender INFANTE

18

- Querias apenas dizer que enquanto os homens satildeo de memoacuteria curta a Histoacuteria encarrega-se de gravar quanto interessa na memoacuteria dos livros e das pedras ANTOacuteNIO - Reconheci-o E natildeo nascemos propriamente no mesmo seacuteculo INFANTE - Seria difiacutecil esquecerem-me Natildeo que o natildeo tenham tentado Aliaacutes este meu paiacutes nunca me mereceu ANTOacuteNIO - Como assim INFANTE - Natildeo teve corpo para arrumar a minha alma Natildeo teve matildeos para agarrar quanto lhe dei ANTOacuteNIO - E isso era possiacutevel INFANTE - Claro que era Bastava que houvesse a mesma grandeza de alma Mas natildeo De descoberta a descoberta foram-se enredando em intrigas em oacutedios em venenos Depois de cada conquista queriam outra conquista e perdiam a primeira ANTOacuteNIO - Mudar pode ser sobreviver INFANTE - Natildeo era mudar Era perder Foi assim que os meus sonhos se foram enchendo de brumas e de silecircncios ANTOacuteNIO - Senhor tanto que se fala de si INFANTE - Agora Este paiacutes sempre viveu de luas Todos os anos vai ao bauacute do passado e desenterra um morto Logo se apressa a ver-lhe os ossos a descobrir-lhe as viacutesceras da virtude do saber dos feitos Depressa sai do anonimato para ser o santo o saacutebio

o heroacutei Durante vinte e quatro horas eacute o bombo da festa a masturbaccedilatildeo coletiva o orgulho da comissatildeo ANTOacuteNIO - Jaacute ouvi isso INFANTE - Agraves vezes esquecem-se dele na praccedila Nem sequer tecircm o cuidado de lhe arrumar outra vez os ossos AFONSO - Consigo eacute diferente INFANTE - Comigo nunca foi diferente Andam agora a assoalhar-me numa pressa escolar que mete doacute Obrigam as criancinhas a saber de mim enchendo-lhes a cabeccedila com sonhos que natildeo sonhei ANTOacuteNIO - Todos dizem que sempre foi um sonhador INFANTE - Eram sonhos meus Originais Agora querem fazer passar por meus os seus proacuteprios sonhos numa acircnsia de rasurar pesadelos Quando sonhava sonhava em grande Nunca fui mediacuteocre CONSTANCcedilA - Isso sabemos INFANTE - Natildeo tanto que o tivessem aprendido ROMUALDO - Viajamos tanto INFANTE - Por necessidade Falta-vos a coragem de aventurar ANTOacuteNIO - Aventurar As nossas aventuras satildeo o que satildeo

19

INFANTE - Apenas JOSEacute - Por vezes quisemos imitar-vos INFANTE - Sem chama DIOGO - Quisemos ir aleacutem da ilha completar outras viagens INFANTE - Sem convicccedilatildeo ANTOacuteNIO - Sabemos navegar INFANTE - Sem rumo que interesse FRADE - Estais a retirar-nos a Poesia INFANTE - Natildeo Apenas a tentar dizer que a Poesia eacute sonho e eacute tanto mais grandiosa quanto maior eacute o sonho FRADE - Desisto de falar INFANTE - Desistir eacute um verbo cobarde Na verdade viveis num paiacutes desistido ANTOacuteNIO - Natildeo temos remissatildeo

INFANTE - Depende da vossa forma de redimir FRADE - Um apelo agrave Histoacuteria por exemplo INFANTE - Dei-vos estas ilhas carregadas de Histoacuteria Fiz delas o poiso de todas as viagens Aqui foram dadas em primeira matildeo as novas de achamento Aqui se desfizeram segredos aqui se informaram povos e culturas aqui o mundo se tornou sabido BEATRIZ - Foram outros tempos INFANTE - E deixaram-nos perder JOSEacute Natildeo tanto assim Ainda temos aviotildees que rapidamente nos trazem outras gentes INFANTE - Poucas DIOGO - E todos os dias sabemos do mundo sobre a hora de qualquer acontecimento INFANTE - Entatildeo porque vos queixais CATARINA - Talvez porque apenas recebemos e nada damos LEONOR - Talvez porque natildeo podemos digerir quanto recebemos ROMUALDO - Talvez porque natildeo temos tempo de sonhar connosco proacuteprios

20

AFONSO - Talvez por causa desta solidatildeo mal quebrada MARIA - Ou por termos as portas mal abertas BELISA - Natildeo termos asas INFANTE - Sois na verdade bem pequenos Natildeo sois capazes de desenterrar os vossos heroacuteis os vossos santos os vossos poetas ANTOacuteNIO - Dos nossos heroacuteis e santos pouco sabemos Permanecem quase todos sob o manto diaacutefano das lendas E os poetas satildeo malditos INFANTE - Todos os poetas satildeo malditos Eacute por isso que satildeo poetas Todos os heroacuteis e santos satildeo lendaacuterios Eacute por isso que permanecem Que conheceis de mim ROMUALDO - Pois Talvez o bastante Ou talvez coisa nenhuma JOSEacute - A vossa imagem de negro no poliacuteptico de Satildeo Vicente eacute uma referecircncia obrigatoacuteria INFANTE - Apenas tecircm referecircncias E no entanto eacute o suficiente para que o sonho aconteccedila Para que preparem todas as viagens e as realizem por seus rumos certos e cheguem agraves terras previstas E aiacute aconteccedilam os outros sonhos os do patildeo e os da cultura FRADE - Isso nos disseram aqui haacute poucos anos E nada aconteceu ANTOacuteNIO - Eis como ficaacutemos pobres e mudos

INFANTE - Mas natildeo presos As vossas amarras satildeo mais inventadas que reais Peguem nos vossos poetas e bebam o sangue da sua Poesia Sem amor natildeo haacute sonho possiacutevel (Saiacuteda falsa) ANTOacuteNIO - Jaacute vos ides INFANTE - Jaacute O tempo de estar na vossa memoacuteria chegou ao fim Volto para as paacuteginas da histoacuteria de um livro que vai ficar intocaacutevel na prateleira da vossa estante Eacute o meu tuacutemulo preferido Natildeo quero que me abandonem nas ruas a desbotar em cartazes Natildeo quero ficar em textos de circunstacircncia em programas tidos de prestiacutegio em espetaacuteculos de teatro sem teatralidade capaz O que eu tinha de ser jaacute fui Se me comeram a carne podem roer-me os ossos A um morto tanto se lhe faz ANTOacuteNIO - Afinal tambeacutem perdeste os sonhos e a vontade de sonhar INFANTE - Soacute sonha quem estaacute vivo Vocecircs estatildeo vivos Podem sonhar (Sai)rdquo

RIMANCE DE DONA BALEIA IMPRESSOtildeES DE BOCA EDICcedilOtildeES DRAC 1992 PP 31-32 E 33

ldquoestava dona baleia - foge foge meu amor a regar o seu jardim ateacute agraves aacuteguas do frio com seu repuxo de prata soacute aiacute te sei segura e sorriso de alfenim a regar o teu jardim quando o foguete estalou com teu repuxo de prata laacute no alto da vigia e sorriso de alfenim anunciando a caccedila mas a canoa da morte (que susto santa maria) corre depressa demais dona baleia - coitada daqui lhe aceno a vida logo parou de aguar feito pedrinha do cais as algas que floriam e grito seu nome drsquoaacutegua

21

bem agrave tona do mar (seu matador quem seraacute) eacute entatildeo que a tristeza procura quantos te amam o medo a afliccedilatildeo Jonas deus iemanjaacute saltam do cais dos olhos de nada lhe serve o grito aos ombros do coraccedilatildeo Nada mais posso fazer um grito aberto se ouve o arpatildeo laacute vai direito em eco de mar perfeito no seu peito embater - baleia agrave vista baleia patildeo-nosso de qualquer jeito ai pobre dona baleia e laacute vai dona baleia como te custa viver fugindo pra natildeo morrer - deus a salve do arpatildeo morreu dona baleia deus a queira proteger arpada de oacutedio velho todo o silecircncio do mar ai pobre dona baleia ficou tinto de vermelho como te custa viver os peixes choram tambeacutem envolta em lenccedilol de sangue mar manso todo rasgado dona baleia laacute vem baba de espuma agrave quilha arrastada ateacute ao cais dona baleia procura seu corpo esquartejado escapar da armadilha nas caldeiras derretido que eacute o arpatildeo voador daacute o patildeo amargurado anjo de ferro esguio e algueacutem haacute de gravar nos seus dentes de marfim eram cinco sois a arder o barco que a perseguiu cinco talhadas de lua o arpatildeo que lhe deu fim que deus lhe quis oferecer no ceacuteu as aves e as nuvens correm do sul para o norte agora dona baleia sobre o mar e sobre a ilha jaacute natildeo lhe custa viverrdquo paira o silecircncio da morte e haacute um poeta branco agrave minha porta a bater natildeo vou abri-la natildeo vou jaacute sei o que vem dizer ai pobre dona baleia como te custa viver agrave costa como um poema

a desfazer-se na areia vieram cinco mareacutes chorar a dona baleia duas choravam espuma - branca nuvem de veratildeo traziam como homenagem um buacutezio em cada matildeo as outras duas chegaram fracas de tanto chorar tanto sal nas suas laacutegrimas tanto sal e tanto mar a quinta mareacute natildeo chora traz apenas no regaccedilo um grande ramo de algas amarrado com um laccedilo deixa-o deposto na costa de seguida reza e canta satildeo cantigas de saudade versos presos na garganta desfeitas satildeo as mareacutes

CARTA DE JOAtildeO VALENTE (RAMINHENSE DA TERCEIRA) A SEU IRMAtildeO EMBARCADO NA CALIFOacuteRNIA (GASTINHAS) OU ENTAtildeO CANTIGAS DE COMO SE PICAM OS OLHOS DA MISEacuteRIA EM PICOS DE ABUNDAcircNCIA

ldquoEscrevo-te esta carta Gostei de saber que tens Pra saber como vais passando Friza e um novo mexim A saudade eacute que nos farta Socircfas clausetas sertatildes Mas por caacute vamos andando E alvaroses dingrim Muito bem graccedilas a Deus Jaacute sei que tens um fogatildeo Nestas linhas que alinhavo Uma trela e talaveija Muito mal desejo aos teus E que jaacute vives no Tatildeo Tameacutem sauacutede Por mim cavo - Mas que sorte salvo seija Desta hora a matildeo na pena E cuma pisca de doacutelas Poucas letras e saberes Te vestiste numa estocirca

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

11

Jesus nasceu Era meia-noite em ponto S Joseacute tivera o cuidado de confirmar pelo reloacutegio ldquoFoi por cesariana ou parto normalrdquo quis saber Gustavo ldquoParto normalrdquo respondeu a matildee que se apressou a empurrar os anjos pela arribana fora desatinados de contentamento voando sobre os pastores do mundo inteiro e acordando-os com o hino ldquoGloria in excelsis Deordquo Era um barulho intensamente doce iluminado por estrelas danccedilantes Algumas delas por falta de cuidado chegaram mesmo a cair Mas uma outra mais esperta e avisada desviou-se daquela confusatildeo luminosa e foi ateacute ao oriente para depois guiar os quatro reis magos que vinham de Taacutersis Aacutefrica Peacutersia e Sabaacute ateacute agrave arribana de Beleacutem Chegaram trecircs carregados de oiro incenso e mirra ndash ofertas de pouco sentido praacutetico e que mais tarde os inteacuterpretes de evangelhos procuraram em vatildeo descodificar O quarto rei poreacutem perdeu-se Soacute chegou trinta e trecircs anos mais tarde sem nada para oferecer Tambeacutem Jesus jaacute natildeo precisava Pregado na cruz apenas lhe apetecia morrer ldquoA matildee estaacute a desconversarrdquo disse Gustavo E estava O Natal era o Natal e soacute o Menino Jesus interessava Voltaram agrave arribana que estava quase vazia O anjo pequenino teimava com o Menino Jesus para que experimentasse tocar tambor Sem lhe dar qualquer atenccedilatildeo e consciente de tarefas mais urgentes mamava gostosamente A noite arrefecera Nevara sobre a serra e um vento corrupto trazia o frio ateacute agrave arribana O Menino Jesus podia enregelar Entatildeo a vaca e a burrinha aproximaram-se aquecendo-o com o seu bafo quente e huacutemido Nossa Senhora e S Joseacute sorriam e beijavam ternamente o Menino que depois de mamar adormeceu Colocaram-no no bercinho e o anjo do tambor comeccedilou a embalaacute-lo ldquoEacute por isso que o teu preseacutepio tem um anjo uma burrinha e uma vacardquo disse a matildee Gustavo olhou-o e confirmou Depois natildeo se conteve e perguntou ldquoMamatilde o Menino Jesus teve irmatildeosrdquo ldquoNatildeo meu filho Ele eacute sempre o Menino Jesusrdquo Entatildeo abraccedilando ternamente a barriga da matildee concluiu ldquoNatildeo sabe o que perdeurdquordquo

Com Perfume e Com Veneno

laquoOs membros do gabinete do senhor Presidente estavam em pacircnico Haacute dois dias

que procuravam contactar por telefone a pequena ilha para anunciarem a data do programa da visita constitucional Mas o telefone apenas devolvia ruiacutedos intermitentes que natildeo forneciam qualquer interpretaccedilatildeo teacutecnica Era como se estivessem a ligar para o ponto zero do quintal mais proacuteximo E no entanto era urgente cumprir a lei que prescrevia laquoAo menos uma vez por mandato o governo visitaraacute cada uma das suas ilhasraquo Faltava a mais pequena e mais distante Eacute que passado quase um seacuteculo o mandato terminava na semana seguinte e em veacutesperas de eleiccedilotildees nenhuma ilegalidade podia transformar-se em trunfo nas matildeos da oposiccedilatildeo Soacute que o telefone natildeo atinava com aquela ilha pequena e distante O eco nem tinha forccedilas para lhes devolver o apelo

Houve que reunir de emergecircncia As calviacutecies aumentaram branquearam cabelos

fizeram-se esforccedilos suplementares e aconteceu o habitual suores frios e derramamentos cerebrais Mas natildeo conseguiram qualquer contacto com a ilha mesmo com funcionaacuterios destacados para discar o nuacutemero durante vinte quatro horas

Sobre a mesa de reuniotildees puseram todas as hipoacuteteses avaria do uacutenico telefone

da ilha (a Companhia natildeo o podia comprovar e muito menos reparar) que os habitantes andavam a festejar o Espiacuterito Santo (era eacutepoca disso) que estavam a ensaiar folclore (em tempos tinham-lhes prometido um passeio) que os membros da filarmoacutenica estavam a aprender a tocar o hino para a eventual visita do senhor Presidente que se mantinham ocupados em qualquer acontecimento social Mas em

12

circunstacircncia alguma ficariam impedidos de passar mesmo que fugazmente pelo telefone

Puseram entatildeo hipoacuteteses mais convencionais descontentamento com a

governaccedilatildeo (nem sequer conheciam o senhor Presidente) mudanccedila de paacutetria (a Ameacuterica ali tatildeo perto e muito mais rica) algueacutem com a conivecircncia do padre dera o grito de independecircncia e pronto

(hellip) Partiram como calhou Pouca bagagem Nada de coisas supeacuterfluas O Chefe de

gabinete meteu na pasta o mais importante o discurso que o senhor Presidente iria proferir- o mesmo que jaacute lera nas outras ilhas Enfiaram tambeacutem trecircs jornalistas e um operador de cacircmara de televisatildeo para o registo oacutebvio Era o qb O senhor Presidente enjoava a bordo e por simpatia os membros do gabinete enjoavam tambeacutem Era bonito ver toda aquela solidariedade governativa Conseguiam mesmo imitar os roncos presidenciais que com a continuidade desfaleciam ateacute se transformarem em gemidos agoacutenicos Mas soacute numa viagem como aquela se conseguia avaliar o sacrifiacutecio de governar ilhasraquo

(hellip) O barco foi-se aproximando Reduziu a velocidade e deslizou como tapete rolante

ou mosca sobre taccedila de gelatina E quando o cais ficou agrave matildeo de atracar jaacute todos tinham caiacutedo no oceano do desacircnimo Eacute que nem as autoridades autaacuterquicas nem a filarmoacutenica nem grupo de folclore nem o padre nem qualquer pessoa se postara sobre o cais para esperar tatildeo ilustre comitiva Os jornalistas sentiram-se enfim analfabetos e o operador de cacircmara o escravo de todas as maacutequinas inuacuteteis Pela primeira vez era possiacutevel provar que se pode reduzir qualquer governo agrave sua insignificacircnciaraquo

(hellip) Com Perfume e Com Veneno de Aacutelamo de Oliveira Ed Salamandra 1997 in

httplivrariasolmarblogspotpt201005com-perfume-e-com-venenohtml

13

14

Por Uma Laacutegrima Gorda Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 11 a 21

ldquoA lembranccedila mais agradaacutevel que guardo (mas que eacute tambeacutem do tamanho do meu remorso) eacute a da negrinha Segunda Dei por ela no dia em que vi uma laacutegrima gorda rolar-lhe pelo rosto e estatelar-se sobre a mesa Nunca mais vi laacutegrima que se lhe comparasse em tamanho e amargura uma bola de cristal de maga velha Fiquei perplexo sem saber como era possiacutevel acumular tanta dor salgada Estava em Binta terriola da Guineacute-Bissau que fora porto importante da exportaccedilatildeo de mancarra e arroz nos tempos da escravatura suave do imperialismo lusiacuteada Estava ali fardado de soldado mal fardado apegando-me a um quotidiano enformado por horas inseguras por um teacutedio amassado a suor e a cachimbo e resignado a uma paisagem de aacutervores fendida pelas aacuteguas verdes do rio Cacheu ndash alameda por onde passeavam hipopoacutetamos crocodilos e algumas cobras Tudo isto exercia sobre mim e os meus companheiros de destino o efeito de um soporiacutefero maldito ndash mistura de medo e de torpor que nem o luar de marccedilo esmaecia Era como se a vida tivesse adormecido sobre o arame de um circo desprovido de rede em que o equiliacutebrio se desafiava a si proacuteprio e sem que houvesse a miacutenima razatildeo para evitar a queda e a morte Por isso a laacutegrima gorda de Segunda foi a minha taacutebua de salvaccedilatildeo O que ateacute hoje fiz de mais uacutetil foi ensinar a ler e a escrever agraves crianccedilas de Binta Todos os dias ocupaacutevamos uma palhota que fora abandonada logo que o arame farpado delimitou a aacuterea do quartel Apesar da falta de material didaacutetico as crianccedilas de Binta foram desenhando letras formando palavras descobrindo a grafia da voz e aprendendo que para aleacutem dos seus inconfundiacuteveis meacutetodos de comunicaccedilatildeo tambeacutem era possiacutevel fazecirc-lo atraveacutes da escrita e da leitura No meio dos progressos escolares sentia-me pai-natal ao contraacuterio recebendo mais do que dava e por isso mais feliz do que aquele pequeno bando de negrinhos que diariamente me aparecia vestido de trapos e de sujidade e visivelmente mal alimentado Mas nesse tempo de infernos de convivecircncia com a morte com a injusticcedila e outros males complementares a tarefa de professor devolvia-me alguma da dignidade perdida Foi nessa escola com teto de palha que reconquistei o equiliacutebrio mental e sobretudo o quanto necessitava para sobreviver e poder regressar mais tarde com as minhas lembranccedilas e os meus remorsos Segunda frequentava a minha escola e prendi-me a ela com todos os tentaacuteculos do coraccedilatildeo por causa da tal laacutegrima gorda que um dia deixou cair sobre a mesa

Entatildeo soube-lhe o nome e descobri a sua inteligecircncia e a sua beleza Um estuacutepido becirc maiuacutesculo fecirc-la tropeccedilar no complicado desenho ndash as barrigas sobrepostas como mulher graacutevida duas vezes Simplifiquei o desenho e dei-lhe um beijo na testa E logo o becirc saiu com a forma perfeita Dedicou-me a vitoacuteria com uma cariacutecia na matildeo e o sorriso mais cheio de ternura que algueacutem me deu Assim nasceu a nossa amizade que logo se enredou de muitas e complexas cumplicidades Almoccedilou comigo Partilhamos o rancho ndash da minha parte sem qualquer sacrifiacutecio Tratava-se duma mistela de arroz com rodinhas de salsicha enlatada sem outro sabor que natildeo fosse aquela fome tentacular e corrosiva Segunda quase me irritou com o seu apetite demolidor A sua fome era tambeacutem secular Custava-me aceitar essa verdade sem que o estocircmago natildeo me enfezasse com a sua uacutelcera de revolta Olhei-a mais uma vez e soacute vi a claridade inocente dos seus olhos lindos Passou-me a birra Segunda era como se fosse uma flor de maio ndash intacta delicada e por isso suscetiacutevel ldquoViraste infanticidardquo ouvi dizer Ignorei de quem vinha a piada Natildeo me deixei morder Queria Segunda nessa duacutebia qualidade de irmatilde e de filha ldquoQuantos anos tensrdquo ldquoOito chuvardquo Partiu levando uns restos de comida numa lata enferrujada ldquoPa mecircs irmatildeordquo disse Os seus peacutes descalccedilos levantaram uma linha de poacute vermelho que foi sumir-se de encontro aos arrevesados atalhos da tabanca Ateacute parecia que naquela lata supurenta levava a alma da felicidade E era essa reles felicidade que me deixava abaixo de catildeo Levantei-me com a vontade incontrolaacutevel de me vomitar Fui ateacute ao rio Fechei os olhos e respirei fundo O sol bateu-me no corpo com os seus raios de fogo secando o asco que me subia do estocircmago ao ceacuteu-da-boca Sabia que se gritasse me libertaria do remorso subjugante da guerra e das razotildees submersas de um colonialismo apodrecido de poder Mas estava na hora dos silecircncios quentes da vida de Aacutefrica descansar agrave sombra do torpor da sua desgraccedila Acabei por me perder numa sueca encharcado de cerveja Ser luacutecido ali natildeo era virtude que se cultivasse Antes o aacutelcool Infinitamente Acordei com o ciciar de Segunda ldquoSocirc pofessocirc Socirc pofessocircrdquo Esfreguei os olhos afastando as uacuteltimas teimosias de sono e ela laacute estava com o seu sorriso e o meu pequeno-almoccedilo Comemos e fomos para a escola Com o ridiacuteculo da minha acircnsia transferi para Segunda quanto me restava de afeto e de orgulho Babava-me perante a sua capacidade de aprender e sobretudo de apreender os significados complexos da vida Era brilhante Tanto se lhe dava navegar nos mapas sucintos da grandeza do mundo descobrindo gentes de outras longitudes e civilizaccedilotildees como se fixava no desenvolvimento das complicadas operaccedilotildees de aritmeacutetica somando ternura diminuindo tristeza multiplicando afetos dividindo solidariedade A sua vontade era contagiante Alguns meses depois sete dos meus alunos foram a Safim fazer o exame da quarta classe Ficaram aprovados com distinccedilatildeo Mas soacute Segunda me pareceu digna

15

desse privileacutegio Andava eufoacuterico e tambeacutem infantil premiado com o seu sorriso distinto E com a sua pobreza E isso eacute que me constrangia Era uma pobreza sugadora progressiva medonha irresponsaacutevel Segunda era o rosto singular dos seus companheiros de tabanca de Aacutefrica Comiam os restos da tropa Via-lhes as barrigas entumescidas de fome os olhos desvitaminados os ossos salientes sob a pele das disenterias os rostos sujos do chatildeo que lhes servia de cama os cadernos enodoados de terrosas impressotildees digitais Tudo isto me afogava no lodo de um remorso inconsequente e procurava purificar-me no meu afeto por Segunda Dei-lhe uma camisa velha a que cortara as mangas e acinturei com um cordel Ficava-lhe bem Ficou com um ar de rapariguinha exoacutetica tipo modelo para neacutegligeacutee de alta moda No dia seguinte voltou sem a camisa Dera-a ao pai Mas foi a partir desta pequena doaccedilatildeo que virei estilista Mamadu ndash balanta e muccedilulmano ndash herdara de um colono fugido agrave guerra uma velha maacutequina de costura Com ela apertava-nos as fardas a troco de alimentos que surripiaacutevamos da arrecadaccedilatildeo de geacuteneros uns quilos de arroz patildeo oacuteleo latas de conserva Procurei restos de fardas e levei-os ao homem da maacutequina de costura Desenhei um vestido de corpo justo mangas de balatildeo saia com folhos sobrepostos cintura arrematada com laccedilo nas costas ndash tudo dividido pelos dois tecidos possiacuteveis o verde liso e o camuflado ldquoNatildeo nosso sordado Natildeo sei fazerrdquo disse Mamadu Entatildeo talhei alinhavei e dei indicaccedilotildees sobre o que a agulha da maacutequina devia pespontar ldquoNosso sordado ser artistardquo o vestido suspenso pelos ombros e exposto ao olhar admirado de Mamadu Arquivei o elogio e nunca lhe confessei que naquela peccedila de roupa investi toda a minha ciecircncia sobre costura ndash e tambeacutem o meu receio e a minha ignoracircncia Eacute que soacute por acaso o vestido resultara Segunda eacute que ficou ainda mais bonita Pela primeira vez despertara-se-lhe a vaidade de mulher Confundida e enleada mirou-se no espelho do cabo enfermeiro e correu para a tabanca a fim de explorar a seduccedilatildeo do seu vestido novo Poreacutem mais uma vez o imprevisto derrotou-me Segunda apareceu-me com o vestido numa laacutestima Esquecera-me de lhe pedir que o despisse antes de se deitar Mas natildeo desisti Roubei quanto pude na arrecadaccedilatildeo de geacuteneros e fizeram-se vestidos saias calccedilotildees blusas ndash tudo com modelos diferentes - ateacute que fui apanhado pelo capitatildeo que acabou por desconfiar das minhas sucessivas incursotildees agrave palhota do Mamadu ldquoOu vestes todos ou natildeo vestes ningueacutemrdquo ordenou Aceitei o desafio E toca a desenhar a talhar a alinhavar a coser roupas diversas para as crianccedilas da escola Chegou a fazer-se um abate prematuro de fardas para que natildeo faltasse mateacuteria-prima Quando entrei na

escola estremeci Diante de mim estava um pelotatildeo infantil fardado a preceito e sem graccedila Apeteceu-me mandaacute-los despir Pelo menos a nudez dar-lhes-ia na igualdade da cor e da idade o direito agrave diferenccedila Segunda adivinhando a minha dececcedilatildeo logo me consolou ldquoTodos irmatildeordquo Sem duacutevida Mas por que preccedilo Os dias foram pingando Afeto sobre afeto Segunda tornara-se-me insubstituiacutevel Estava no meu coraccedilatildeo como polvo sadio aorta sentimental anjo da guarda de todos os perigos do meu quotidiano Por isso foi num de repente gelatinoso que dei por mim com os dedos a tocar no tempo do regresso Apercebi-me disso pela algazarra do quartel pelas calviacutecies remanescentes pelas barrigas dilatadas de cerveja pelo fel dos fiacutegados desfeitos pelas rugas da pele pelos medos reassumidos E em cada manhatilde ouvia-se um bruaacute florestal selvagem que era a manifestaccedilatildeo menos demente da alegria de acordar e de riscar mais um nuacutemero no calendaacuterio de parede Apercebi-me tambeacutem desse chegar pelo veacuteu de tristeza que se foi adensando no rosto de Segunda e ateacute pela sua impaciecircncia velada que disfarccedilava com algum autoritarismo sobre as outras crianccedilas Chegou mesmo a vingar-se sobre si proacutepria ausentando-se para dentro respirando os silecircncios da alma Cabia-me preparar Segunda para a nossa inevitaacutevel separaccedilatildeo ndash separaccedilatildeo que eu tambeacutem natildeo desejava tatildeo inseguro me sentia quanto agrave minha capacidade de sobreviver sem ela Mas o que mais me afligia era o natildeo ser capaz de lhe deixar uma razatildeo coerente para o nosso adeus naturalmente definitivo Deixara-a prender-se com o melhor dos seus afetos enquanto eu como adulto racional natildeo passara de um saacutedico e egoiacutesta abandonando-a a todas as incertezas do futuro Retirava-lhe a muleta que eu era mesmo no centro do precipiacutecio Precisava urgentemente duma esperanccedila que lhe garantisse a felicidade E afinal nem lhe podia certificar coisas tatildeo banais como a escola roupa comida Felizmente soacute depois de chegar agrave ilha eacute que percebi que era o maior perdedor Nunca mais acordei ao som da sua voz nunca mais passeei na margem do Cacheu guiado pela sua matildeo nunca mais frui dos poentes vermelhos de fogo com a sua cabeccedila no meu regaccedilo Perdi de uma vez por todas o direito aos seus insoacutelitos presentes um bolo de coco feito pela matildee o passarinho muito inho que apanhava na cerca da palhota e depois domesticava o prazer de comer a primeira manga que a estaccedilatildeo amadurava E acabaram os nossos diaacutelogos onde a Poesia pontificava na contenccedilatildeo das palavras e na extensatildeo dos silecircncios E desta vez foi sobre o meu rosto que voltei a sentir o peso disforme da sua laacutegrima gorda Fiquei sem jeito Falei a Segunda na distacircncia real das nossas terras e das nossas culturas da incerteza do meu futuro bastamente comprometido pela inutilidade dos

16

anos vividos e de todo irrecuperaacuteveis Adensei tudo com verdades dramaacuteticas deixando transparentes a incerteza a cobardia e o pecado da omissatildeo Descrevi-lhe depois as deliacutecias da terra prometida como se fossem dela Antevi-lhe um amanhatilde mentirosamente risonho e deixei-lhe relevada a beleza demagoacutegica da sua paacutetria Olhou-me atordoada inconvencida amuada distante ndash maacutescara que soacute desfez na veacutespera da partida Quando os batelotildees ndash que nos levariam Cacheu abaixo rumo a Bissau ndash chegaram rodeados de barcos-patrulha restavam vinte e quatro horas para estarmos juntos Vivemo-las tatildeo intensamente que me deitei exausto No momento de largar fizemos por nos ignorar Combinaacuteramos evitar o melodrama E Segunda laacute ficou sobre o cais de madeira o dedo na boca os olhos avaramente enxutos assombrando a alegria do meu regresso com a sua recalcada tristeza Ficou sozinha ndash sei laacute com que futuro Ainda hoje sabendo que cresceu e que cumpre o seu destino na paacutetria sem as virtudes que lhe fiz crer dou por mim a soccedilobrar com esta saudade e este remorso Sou-lhe eternamente devedor Se lhe dei alguns meses de comezinha felicidade ele deu-me a coragem de continuar vivo num tempo e num lugar onde a morte chegava a ser uma becircnccedilatildeo do ceacuteu Desses tempos de conviacutevio diaacuterio com as mil presenccedilas da morte haacute imagens que continuam a perseguir-me Bem sei que eacute um disparate jaacute que os meus ressentimentos medos e fantasmas natildeo oferecem resistecircncia de maior Tecircm vindo a diluir-se como a tinta dos maus frescos renascentistas Mas natildeo consigo esquecer-me de Segunda com o seu belo corpo esfaimado a sua resignaccedilatildeo e a sua indiferenccedila perante a presenccedila e a superioridade da tropa Por isso espanto-me que volvidos tantos anos a minha principal referecircncia da Guineacute tenha o tamanho dessa negrinha de olhos grandes e de sorriso branco cujo corpo exalava o perfume inexplorado da floresta e que gostava de se sentar comigo sobre o cais de madeira a ver o sol esconder-se atraacutes da mata de Ohio E que me queimou a alma com uma laacutegrima gorda Segunda deve ser agora uma grande poeta Valha-me esta consolaccedilatildeo sofrida que ser poeta natildeo eacute bem que se deseje nem sequer ao inimigordquo

17

2ordm Ato (Extrato) Os Sonhos do Infante Ediccedilatildeo Jornal de Cultura 1995

ldquoO uacuteltimo sonho o re-encontro Talvez ningueacutem saiba porquecirc nem para quecirc ANTOacuteNIO - Quem sois INFANTE - Que pergunta desnecessaacuteria ANTOacuteNIO - Desculpe Parece-me que o conheccedilo INFANTE - E nem precisas de fazer muito esforccedilo ANTOacuteNIO - Assim de branco INFANTE - Jaacute sei Pareccedilo-te uma noiva de bigode ANTOacuteNIO - Desculpai senhor Jaacute natildeo o via haacute tantos anos INFANTE - Haacute muitos anos ANTOacuteNIO - Andaacuteveis vestido de preto INFANTE - A cor eacute-me indiferente Os seacuteculos purificam os tons escuros Deixam aparar as impurezas Depois vatildeo corando Um dia fica soacute a cor precisa e segura ANTOacuteNIO - Natildeo estou a entender INFANTE

18

- Querias apenas dizer que enquanto os homens satildeo de memoacuteria curta a Histoacuteria encarrega-se de gravar quanto interessa na memoacuteria dos livros e das pedras ANTOacuteNIO - Reconheci-o E natildeo nascemos propriamente no mesmo seacuteculo INFANTE - Seria difiacutecil esquecerem-me Natildeo que o natildeo tenham tentado Aliaacutes este meu paiacutes nunca me mereceu ANTOacuteNIO - Como assim INFANTE - Natildeo teve corpo para arrumar a minha alma Natildeo teve matildeos para agarrar quanto lhe dei ANTOacuteNIO - E isso era possiacutevel INFANTE - Claro que era Bastava que houvesse a mesma grandeza de alma Mas natildeo De descoberta a descoberta foram-se enredando em intrigas em oacutedios em venenos Depois de cada conquista queriam outra conquista e perdiam a primeira ANTOacuteNIO - Mudar pode ser sobreviver INFANTE - Natildeo era mudar Era perder Foi assim que os meus sonhos se foram enchendo de brumas e de silecircncios ANTOacuteNIO - Senhor tanto que se fala de si INFANTE - Agora Este paiacutes sempre viveu de luas Todos os anos vai ao bauacute do passado e desenterra um morto Logo se apressa a ver-lhe os ossos a descobrir-lhe as viacutesceras da virtude do saber dos feitos Depressa sai do anonimato para ser o santo o saacutebio

o heroacutei Durante vinte e quatro horas eacute o bombo da festa a masturbaccedilatildeo coletiva o orgulho da comissatildeo ANTOacuteNIO - Jaacute ouvi isso INFANTE - Agraves vezes esquecem-se dele na praccedila Nem sequer tecircm o cuidado de lhe arrumar outra vez os ossos AFONSO - Consigo eacute diferente INFANTE - Comigo nunca foi diferente Andam agora a assoalhar-me numa pressa escolar que mete doacute Obrigam as criancinhas a saber de mim enchendo-lhes a cabeccedila com sonhos que natildeo sonhei ANTOacuteNIO - Todos dizem que sempre foi um sonhador INFANTE - Eram sonhos meus Originais Agora querem fazer passar por meus os seus proacuteprios sonhos numa acircnsia de rasurar pesadelos Quando sonhava sonhava em grande Nunca fui mediacuteocre CONSTANCcedilA - Isso sabemos INFANTE - Natildeo tanto que o tivessem aprendido ROMUALDO - Viajamos tanto INFANTE - Por necessidade Falta-vos a coragem de aventurar ANTOacuteNIO - Aventurar As nossas aventuras satildeo o que satildeo

19

INFANTE - Apenas JOSEacute - Por vezes quisemos imitar-vos INFANTE - Sem chama DIOGO - Quisemos ir aleacutem da ilha completar outras viagens INFANTE - Sem convicccedilatildeo ANTOacuteNIO - Sabemos navegar INFANTE - Sem rumo que interesse FRADE - Estais a retirar-nos a Poesia INFANTE - Natildeo Apenas a tentar dizer que a Poesia eacute sonho e eacute tanto mais grandiosa quanto maior eacute o sonho FRADE - Desisto de falar INFANTE - Desistir eacute um verbo cobarde Na verdade viveis num paiacutes desistido ANTOacuteNIO - Natildeo temos remissatildeo

INFANTE - Depende da vossa forma de redimir FRADE - Um apelo agrave Histoacuteria por exemplo INFANTE - Dei-vos estas ilhas carregadas de Histoacuteria Fiz delas o poiso de todas as viagens Aqui foram dadas em primeira matildeo as novas de achamento Aqui se desfizeram segredos aqui se informaram povos e culturas aqui o mundo se tornou sabido BEATRIZ - Foram outros tempos INFANTE - E deixaram-nos perder JOSEacute Natildeo tanto assim Ainda temos aviotildees que rapidamente nos trazem outras gentes INFANTE - Poucas DIOGO - E todos os dias sabemos do mundo sobre a hora de qualquer acontecimento INFANTE - Entatildeo porque vos queixais CATARINA - Talvez porque apenas recebemos e nada damos LEONOR - Talvez porque natildeo podemos digerir quanto recebemos ROMUALDO - Talvez porque natildeo temos tempo de sonhar connosco proacuteprios

20

AFONSO - Talvez por causa desta solidatildeo mal quebrada MARIA - Ou por termos as portas mal abertas BELISA - Natildeo termos asas INFANTE - Sois na verdade bem pequenos Natildeo sois capazes de desenterrar os vossos heroacuteis os vossos santos os vossos poetas ANTOacuteNIO - Dos nossos heroacuteis e santos pouco sabemos Permanecem quase todos sob o manto diaacutefano das lendas E os poetas satildeo malditos INFANTE - Todos os poetas satildeo malditos Eacute por isso que satildeo poetas Todos os heroacuteis e santos satildeo lendaacuterios Eacute por isso que permanecem Que conheceis de mim ROMUALDO - Pois Talvez o bastante Ou talvez coisa nenhuma JOSEacute - A vossa imagem de negro no poliacuteptico de Satildeo Vicente eacute uma referecircncia obrigatoacuteria INFANTE - Apenas tecircm referecircncias E no entanto eacute o suficiente para que o sonho aconteccedila Para que preparem todas as viagens e as realizem por seus rumos certos e cheguem agraves terras previstas E aiacute aconteccedilam os outros sonhos os do patildeo e os da cultura FRADE - Isso nos disseram aqui haacute poucos anos E nada aconteceu ANTOacuteNIO - Eis como ficaacutemos pobres e mudos

INFANTE - Mas natildeo presos As vossas amarras satildeo mais inventadas que reais Peguem nos vossos poetas e bebam o sangue da sua Poesia Sem amor natildeo haacute sonho possiacutevel (Saiacuteda falsa) ANTOacuteNIO - Jaacute vos ides INFANTE - Jaacute O tempo de estar na vossa memoacuteria chegou ao fim Volto para as paacuteginas da histoacuteria de um livro que vai ficar intocaacutevel na prateleira da vossa estante Eacute o meu tuacutemulo preferido Natildeo quero que me abandonem nas ruas a desbotar em cartazes Natildeo quero ficar em textos de circunstacircncia em programas tidos de prestiacutegio em espetaacuteculos de teatro sem teatralidade capaz O que eu tinha de ser jaacute fui Se me comeram a carne podem roer-me os ossos A um morto tanto se lhe faz ANTOacuteNIO - Afinal tambeacutem perdeste os sonhos e a vontade de sonhar INFANTE - Soacute sonha quem estaacute vivo Vocecircs estatildeo vivos Podem sonhar (Sai)rdquo

RIMANCE DE DONA BALEIA IMPRESSOtildeES DE BOCA EDICcedilOtildeES DRAC 1992 PP 31-32 E 33

ldquoestava dona baleia - foge foge meu amor a regar o seu jardim ateacute agraves aacuteguas do frio com seu repuxo de prata soacute aiacute te sei segura e sorriso de alfenim a regar o teu jardim quando o foguete estalou com teu repuxo de prata laacute no alto da vigia e sorriso de alfenim anunciando a caccedila mas a canoa da morte (que susto santa maria) corre depressa demais dona baleia - coitada daqui lhe aceno a vida logo parou de aguar feito pedrinha do cais as algas que floriam e grito seu nome drsquoaacutegua

21

bem agrave tona do mar (seu matador quem seraacute) eacute entatildeo que a tristeza procura quantos te amam o medo a afliccedilatildeo Jonas deus iemanjaacute saltam do cais dos olhos de nada lhe serve o grito aos ombros do coraccedilatildeo Nada mais posso fazer um grito aberto se ouve o arpatildeo laacute vai direito em eco de mar perfeito no seu peito embater - baleia agrave vista baleia patildeo-nosso de qualquer jeito ai pobre dona baleia e laacute vai dona baleia como te custa viver fugindo pra natildeo morrer - deus a salve do arpatildeo morreu dona baleia deus a queira proteger arpada de oacutedio velho todo o silecircncio do mar ai pobre dona baleia ficou tinto de vermelho como te custa viver os peixes choram tambeacutem envolta em lenccedilol de sangue mar manso todo rasgado dona baleia laacute vem baba de espuma agrave quilha arrastada ateacute ao cais dona baleia procura seu corpo esquartejado escapar da armadilha nas caldeiras derretido que eacute o arpatildeo voador daacute o patildeo amargurado anjo de ferro esguio e algueacutem haacute de gravar nos seus dentes de marfim eram cinco sois a arder o barco que a perseguiu cinco talhadas de lua o arpatildeo que lhe deu fim que deus lhe quis oferecer no ceacuteu as aves e as nuvens correm do sul para o norte agora dona baleia sobre o mar e sobre a ilha jaacute natildeo lhe custa viverrdquo paira o silecircncio da morte e haacute um poeta branco agrave minha porta a bater natildeo vou abri-la natildeo vou jaacute sei o que vem dizer ai pobre dona baleia como te custa viver agrave costa como um poema

a desfazer-se na areia vieram cinco mareacutes chorar a dona baleia duas choravam espuma - branca nuvem de veratildeo traziam como homenagem um buacutezio em cada matildeo as outras duas chegaram fracas de tanto chorar tanto sal nas suas laacutegrimas tanto sal e tanto mar a quinta mareacute natildeo chora traz apenas no regaccedilo um grande ramo de algas amarrado com um laccedilo deixa-o deposto na costa de seguida reza e canta satildeo cantigas de saudade versos presos na garganta desfeitas satildeo as mareacutes

CARTA DE JOAtildeO VALENTE (RAMINHENSE DA TERCEIRA) A SEU IRMAtildeO EMBARCADO NA CALIFOacuteRNIA (GASTINHAS) OU ENTAtildeO CANTIGAS DE COMO SE PICAM OS OLHOS DA MISEacuteRIA EM PICOS DE ABUNDAcircNCIA

ldquoEscrevo-te esta carta Gostei de saber que tens Pra saber como vais passando Friza e um novo mexim A saudade eacute que nos farta Socircfas clausetas sertatildes Mas por caacute vamos andando E alvaroses dingrim Muito bem graccedilas a Deus Jaacute sei que tens um fogatildeo Nestas linhas que alinhavo Uma trela e talaveija Muito mal desejo aos teus E que jaacute vives no Tatildeo Tameacutem sauacutede Por mim cavo - Mas que sorte salvo seija Desta hora a matildeo na pena E cuma pisca de doacutelas Poucas letras e saberes Te vestiste numa estocirca

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

12

circunstacircncia alguma ficariam impedidos de passar mesmo que fugazmente pelo telefone

Puseram entatildeo hipoacuteteses mais convencionais descontentamento com a

governaccedilatildeo (nem sequer conheciam o senhor Presidente) mudanccedila de paacutetria (a Ameacuterica ali tatildeo perto e muito mais rica) algueacutem com a conivecircncia do padre dera o grito de independecircncia e pronto

(hellip) Partiram como calhou Pouca bagagem Nada de coisas supeacuterfluas O Chefe de

gabinete meteu na pasta o mais importante o discurso que o senhor Presidente iria proferir- o mesmo que jaacute lera nas outras ilhas Enfiaram tambeacutem trecircs jornalistas e um operador de cacircmara de televisatildeo para o registo oacutebvio Era o qb O senhor Presidente enjoava a bordo e por simpatia os membros do gabinete enjoavam tambeacutem Era bonito ver toda aquela solidariedade governativa Conseguiam mesmo imitar os roncos presidenciais que com a continuidade desfaleciam ateacute se transformarem em gemidos agoacutenicos Mas soacute numa viagem como aquela se conseguia avaliar o sacrifiacutecio de governar ilhasraquo

(hellip) O barco foi-se aproximando Reduziu a velocidade e deslizou como tapete rolante

ou mosca sobre taccedila de gelatina E quando o cais ficou agrave matildeo de atracar jaacute todos tinham caiacutedo no oceano do desacircnimo Eacute que nem as autoridades autaacuterquicas nem a filarmoacutenica nem grupo de folclore nem o padre nem qualquer pessoa se postara sobre o cais para esperar tatildeo ilustre comitiva Os jornalistas sentiram-se enfim analfabetos e o operador de cacircmara o escravo de todas as maacutequinas inuacuteteis Pela primeira vez era possiacutevel provar que se pode reduzir qualquer governo agrave sua insignificacircnciaraquo

(hellip) Com Perfume e Com Veneno de Aacutelamo de Oliveira Ed Salamandra 1997 in

httplivrariasolmarblogspotpt201005com-perfume-e-com-venenohtml

13

14

Por Uma Laacutegrima Gorda Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 11 a 21

ldquoA lembranccedila mais agradaacutevel que guardo (mas que eacute tambeacutem do tamanho do meu remorso) eacute a da negrinha Segunda Dei por ela no dia em que vi uma laacutegrima gorda rolar-lhe pelo rosto e estatelar-se sobre a mesa Nunca mais vi laacutegrima que se lhe comparasse em tamanho e amargura uma bola de cristal de maga velha Fiquei perplexo sem saber como era possiacutevel acumular tanta dor salgada Estava em Binta terriola da Guineacute-Bissau que fora porto importante da exportaccedilatildeo de mancarra e arroz nos tempos da escravatura suave do imperialismo lusiacuteada Estava ali fardado de soldado mal fardado apegando-me a um quotidiano enformado por horas inseguras por um teacutedio amassado a suor e a cachimbo e resignado a uma paisagem de aacutervores fendida pelas aacuteguas verdes do rio Cacheu ndash alameda por onde passeavam hipopoacutetamos crocodilos e algumas cobras Tudo isto exercia sobre mim e os meus companheiros de destino o efeito de um soporiacutefero maldito ndash mistura de medo e de torpor que nem o luar de marccedilo esmaecia Era como se a vida tivesse adormecido sobre o arame de um circo desprovido de rede em que o equiliacutebrio se desafiava a si proacuteprio e sem que houvesse a miacutenima razatildeo para evitar a queda e a morte Por isso a laacutegrima gorda de Segunda foi a minha taacutebua de salvaccedilatildeo O que ateacute hoje fiz de mais uacutetil foi ensinar a ler e a escrever agraves crianccedilas de Binta Todos os dias ocupaacutevamos uma palhota que fora abandonada logo que o arame farpado delimitou a aacuterea do quartel Apesar da falta de material didaacutetico as crianccedilas de Binta foram desenhando letras formando palavras descobrindo a grafia da voz e aprendendo que para aleacutem dos seus inconfundiacuteveis meacutetodos de comunicaccedilatildeo tambeacutem era possiacutevel fazecirc-lo atraveacutes da escrita e da leitura No meio dos progressos escolares sentia-me pai-natal ao contraacuterio recebendo mais do que dava e por isso mais feliz do que aquele pequeno bando de negrinhos que diariamente me aparecia vestido de trapos e de sujidade e visivelmente mal alimentado Mas nesse tempo de infernos de convivecircncia com a morte com a injusticcedila e outros males complementares a tarefa de professor devolvia-me alguma da dignidade perdida Foi nessa escola com teto de palha que reconquistei o equiliacutebrio mental e sobretudo o quanto necessitava para sobreviver e poder regressar mais tarde com as minhas lembranccedilas e os meus remorsos Segunda frequentava a minha escola e prendi-me a ela com todos os tentaacuteculos do coraccedilatildeo por causa da tal laacutegrima gorda que um dia deixou cair sobre a mesa

Entatildeo soube-lhe o nome e descobri a sua inteligecircncia e a sua beleza Um estuacutepido becirc maiuacutesculo fecirc-la tropeccedilar no complicado desenho ndash as barrigas sobrepostas como mulher graacutevida duas vezes Simplifiquei o desenho e dei-lhe um beijo na testa E logo o becirc saiu com a forma perfeita Dedicou-me a vitoacuteria com uma cariacutecia na matildeo e o sorriso mais cheio de ternura que algueacutem me deu Assim nasceu a nossa amizade que logo se enredou de muitas e complexas cumplicidades Almoccedilou comigo Partilhamos o rancho ndash da minha parte sem qualquer sacrifiacutecio Tratava-se duma mistela de arroz com rodinhas de salsicha enlatada sem outro sabor que natildeo fosse aquela fome tentacular e corrosiva Segunda quase me irritou com o seu apetite demolidor A sua fome era tambeacutem secular Custava-me aceitar essa verdade sem que o estocircmago natildeo me enfezasse com a sua uacutelcera de revolta Olhei-a mais uma vez e soacute vi a claridade inocente dos seus olhos lindos Passou-me a birra Segunda era como se fosse uma flor de maio ndash intacta delicada e por isso suscetiacutevel ldquoViraste infanticidardquo ouvi dizer Ignorei de quem vinha a piada Natildeo me deixei morder Queria Segunda nessa duacutebia qualidade de irmatilde e de filha ldquoQuantos anos tensrdquo ldquoOito chuvardquo Partiu levando uns restos de comida numa lata enferrujada ldquoPa mecircs irmatildeordquo disse Os seus peacutes descalccedilos levantaram uma linha de poacute vermelho que foi sumir-se de encontro aos arrevesados atalhos da tabanca Ateacute parecia que naquela lata supurenta levava a alma da felicidade E era essa reles felicidade que me deixava abaixo de catildeo Levantei-me com a vontade incontrolaacutevel de me vomitar Fui ateacute ao rio Fechei os olhos e respirei fundo O sol bateu-me no corpo com os seus raios de fogo secando o asco que me subia do estocircmago ao ceacuteu-da-boca Sabia que se gritasse me libertaria do remorso subjugante da guerra e das razotildees submersas de um colonialismo apodrecido de poder Mas estava na hora dos silecircncios quentes da vida de Aacutefrica descansar agrave sombra do torpor da sua desgraccedila Acabei por me perder numa sueca encharcado de cerveja Ser luacutecido ali natildeo era virtude que se cultivasse Antes o aacutelcool Infinitamente Acordei com o ciciar de Segunda ldquoSocirc pofessocirc Socirc pofessocircrdquo Esfreguei os olhos afastando as uacuteltimas teimosias de sono e ela laacute estava com o seu sorriso e o meu pequeno-almoccedilo Comemos e fomos para a escola Com o ridiacuteculo da minha acircnsia transferi para Segunda quanto me restava de afeto e de orgulho Babava-me perante a sua capacidade de aprender e sobretudo de apreender os significados complexos da vida Era brilhante Tanto se lhe dava navegar nos mapas sucintos da grandeza do mundo descobrindo gentes de outras longitudes e civilizaccedilotildees como se fixava no desenvolvimento das complicadas operaccedilotildees de aritmeacutetica somando ternura diminuindo tristeza multiplicando afetos dividindo solidariedade A sua vontade era contagiante Alguns meses depois sete dos meus alunos foram a Safim fazer o exame da quarta classe Ficaram aprovados com distinccedilatildeo Mas soacute Segunda me pareceu digna

15

desse privileacutegio Andava eufoacuterico e tambeacutem infantil premiado com o seu sorriso distinto E com a sua pobreza E isso eacute que me constrangia Era uma pobreza sugadora progressiva medonha irresponsaacutevel Segunda era o rosto singular dos seus companheiros de tabanca de Aacutefrica Comiam os restos da tropa Via-lhes as barrigas entumescidas de fome os olhos desvitaminados os ossos salientes sob a pele das disenterias os rostos sujos do chatildeo que lhes servia de cama os cadernos enodoados de terrosas impressotildees digitais Tudo isto me afogava no lodo de um remorso inconsequente e procurava purificar-me no meu afeto por Segunda Dei-lhe uma camisa velha a que cortara as mangas e acinturei com um cordel Ficava-lhe bem Ficou com um ar de rapariguinha exoacutetica tipo modelo para neacutegligeacutee de alta moda No dia seguinte voltou sem a camisa Dera-a ao pai Mas foi a partir desta pequena doaccedilatildeo que virei estilista Mamadu ndash balanta e muccedilulmano ndash herdara de um colono fugido agrave guerra uma velha maacutequina de costura Com ela apertava-nos as fardas a troco de alimentos que surripiaacutevamos da arrecadaccedilatildeo de geacuteneros uns quilos de arroz patildeo oacuteleo latas de conserva Procurei restos de fardas e levei-os ao homem da maacutequina de costura Desenhei um vestido de corpo justo mangas de balatildeo saia com folhos sobrepostos cintura arrematada com laccedilo nas costas ndash tudo dividido pelos dois tecidos possiacuteveis o verde liso e o camuflado ldquoNatildeo nosso sordado Natildeo sei fazerrdquo disse Mamadu Entatildeo talhei alinhavei e dei indicaccedilotildees sobre o que a agulha da maacutequina devia pespontar ldquoNosso sordado ser artistardquo o vestido suspenso pelos ombros e exposto ao olhar admirado de Mamadu Arquivei o elogio e nunca lhe confessei que naquela peccedila de roupa investi toda a minha ciecircncia sobre costura ndash e tambeacutem o meu receio e a minha ignoracircncia Eacute que soacute por acaso o vestido resultara Segunda eacute que ficou ainda mais bonita Pela primeira vez despertara-se-lhe a vaidade de mulher Confundida e enleada mirou-se no espelho do cabo enfermeiro e correu para a tabanca a fim de explorar a seduccedilatildeo do seu vestido novo Poreacutem mais uma vez o imprevisto derrotou-me Segunda apareceu-me com o vestido numa laacutestima Esquecera-me de lhe pedir que o despisse antes de se deitar Mas natildeo desisti Roubei quanto pude na arrecadaccedilatildeo de geacuteneros e fizeram-se vestidos saias calccedilotildees blusas ndash tudo com modelos diferentes - ateacute que fui apanhado pelo capitatildeo que acabou por desconfiar das minhas sucessivas incursotildees agrave palhota do Mamadu ldquoOu vestes todos ou natildeo vestes ningueacutemrdquo ordenou Aceitei o desafio E toca a desenhar a talhar a alinhavar a coser roupas diversas para as crianccedilas da escola Chegou a fazer-se um abate prematuro de fardas para que natildeo faltasse mateacuteria-prima Quando entrei na

escola estremeci Diante de mim estava um pelotatildeo infantil fardado a preceito e sem graccedila Apeteceu-me mandaacute-los despir Pelo menos a nudez dar-lhes-ia na igualdade da cor e da idade o direito agrave diferenccedila Segunda adivinhando a minha dececcedilatildeo logo me consolou ldquoTodos irmatildeordquo Sem duacutevida Mas por que preccedilo Os dias foram pingando Afeto sobre afeto Segunda tornara-se-me insubstituiacutevel Estava no meu coraccedilatildeo como polvo sadio aorta sentimental anjo da guarda de todos os perigos do meu quotidiano Por isso foi num de repente gelatinoso que dei por mim com os dedos a tocar no tempo do regresso Apercebi-me disso pela algazarra do quartel pelas calviacutecies remanescentes pelas barrigas dilatadas de cerveja pelo fel dos fiacutegados desfeitos pelas rugas da pele pelos medos reassumidos E em cada manhatilde ouvia-se um bruaacute florestal selvagem que era a manifestaccedilatildeo menos demente da alegria de acordar e de riscar mais um nuacutemero no calendaacuterio de parede Apercebi-me tambeacutem desse chegar pelo veacuteu de tristeza que se foi adensando no rosto de Segunda e ateacute pela sua impaciecircncia velada que disfarccedilava com algum autoritarismo sobre as outras crianccedilas Chegou mesmo a vingar-se sobre si proacutepria ausentando-se para dentro respirando os silecircncios da alma Cabia-me preparar Segunda para a nossa inevitaacutevel separaccedilatildeo ndash separaccedilatildeo que eu tambeacutem natildeo desejava tatildeo inseguro me sentia quanto agrave minha capacidade de sobreviver sem ela Mas o que mais me afligia era o natildeo ser capaz de lhe deixar uma razatildeo coerente para o nosso adeus naturalmente definitivo Deixara-a prender-se com o melhor dos seus afetos enquanto eu como adulto racional natildeo passara de um saacutedico e egoiacutesta abandonando-a a todas as incertezas do futuro Retirava-lhe a muleta que eu era mesmo no centro do precipiacutecio Precisava urgentemente duma esperanccedila que lhe garantisse a felicidade E afinal nem lhe podia certificar coisas tatildeo banais como a escola roupa comida Felizmente soacute depois de chegar agrave ilha eacute que percebi que era o maior perdedor Nunca mais acordei ao som da sua voz nunca mais passeei na margem do Cacheu guiado pela sua matildeo nunca mais frui dos poentes vermelhos de fogo com a sua cabeccedila no meu regaccedilo Perdi de uma vez por todas o direito aos seus insoacutelitos presentes um bolo de coco feito pela matildee o passarinho muito inho que apanhava na cerca da palhota e depois domesticava o prazer de comer a primeira manga que a estaccedilatildeo amadurava E acabaram os nossos diaacutelogos onde a Poesia pontificava na contenccedilatildeo das palavras e na extensatildeo dos silecircncios E desta vez foi sobre o meu rosto que voltei a sentir o peso disforme da sua laacutegrima gorda Fiquei sem jeito Falei a Segunda na distacircncia real das nossas terras e das nossas culturas da incerteza do meu futuro bastamente comprometido pela inutilidade dos

16

anos vividos e de todo irrecuperaacuteveis Adensei tudo com verdades dramaacuteticas deixando transparentes a incerteza a cobardia e o pecado da omissatildeo Descrevi-lhe depois as deliacutecias da terra prometida como se fossem dela Antevi-lhe um amanhatilde mentirosamente risonho e deixei-lhe relevada a beleza demagoacutegica da sua paacutetria Olhou-me atordoada inconvencida amuada distante ndash maacutescara que soacute desfez na veacutespera da partida Quando os batelotildees ndash que nos levariam Cacheu abaixo rumo a Bissau ndash chegaram rodeados de barcos-patrulha restavam vinte e quatro horas para estarmos juntos Vivemo-las tatildeo intensamente que me deitei exausto No momento de largar fizemos por nos ignorar Combinaacuteramos evitar o melodrama E Segunda laacute ficou sobre o cais de madeira o dedo na boca os olhos avaramente enxutos assombrando a alegria do meu regresso com a sua recalcada tristeza Ficou sozinha ndash sei laacute com que futuro Ainda hoje sabendo que cresceu e que cumpre o seu destino na paacutetria sem as virtudes que lhe fiz crer dou por mim a soccedilobrar com esta saudade e este remorso Sou-lhe eternamente devedor Se lhe dei alguns meses de comezinha felicidade ele deu-me a coragem de continuar vivo num tempo e num lugar onde a morte chegava a ser uma becircnccedilatildeo do ceacuteu Desses tempos de conviacutevio diaacuterio com as mil presenccedilas da morte haacute imagens que continuam a perseguir-me Bem sei que eacute um disparate jaacute que os meus ressentimentos medos e fantasmas natildeo oferecem resistecircncia de maior Tecircm vindo a diluir-se como a tinta dos maus frescos renascentistas Mas natildeo consigo esquecer-me de Segunda com o seu belo corpo esfaimado a sua resignaccedilatildeo e a sua indiferenccedila perante a presenccedila e a superioridade da tropa Por isso espanto-me que volvidos tantos anos a minha principal referecircncia da Guineacute tenha o tamanho dessa negrinha de olhos grandes e de sorriso branco cujo corpo exalava o perfume inexplorado da floresta e que gostava de se sentar comigo sobre o cais de madeira a ver o sol esconder-se atraacutes da mata de Ohio E que me queimou a alma com uma laacutegrima gorda Segunda deve ser agora uma grande poeta Valha-me esta consolaccedilatildeo sofrida que ser poeta natildeo eacute bem que se deseje nem sequer ao inimigordquo

17

2ordm Ato (Extrato) Os Sonhos do Infante Ediccedilatildeo Jornal de Cultura 1995

ldquoO uacuteltimo sonho o re-encontro Talvez ningueacutem saiba porquecirc nem para quecirc ANTOacuteNIO - Quem sois INFANTE - Que pergunta desnecessaacuteria ANTOacuteNIO - Desculpe Parece-me que o conheccedilo INFANTE - E nem precisas de fazer muito esforccedilo ANTOacuteNIO - Assim de branco INFANTE - Jaacute sei Pareccedilo-te uma noiva de bigode ANTOacuteNIO - Desculpai senhor Jaacute natildeo o via haacute tantos anos INFANTE - Haacute muitos anos ANTOacuteNIO - Andaacuteveis vestido de preto INFANTE - A cor eacute-me indiferente Os seacuteculos purificam os tons escuros Deixam aparar as impurezas Depois vatildeo corando Um dia fica soacute a cor precisa e segura ANTOacuteNIO - Natildeo estou a entender INFANTE

18

- Querias apenas dizer que enquanto os homens satildeo de memoacuteria curta a Histoacuteria encarrega-se de gravar quanto interessa na memoacuteria dos livros e das pedras ANTOacuteNIO - Reconheci-o E natildeo nascemos propriamente no mesmo seacuteculo INFANTE - Seria difiacutecil esquecerem-me Natildeo que o natildeo tenham tentado Aliaacutes este meu paiacutes nunca me mereceu ANTOacuteNIO - Como assim INFANTE - Natildeo teve corpo para arrumar a minha alma Natildeo teve matildeos para agarrar quanto lhe dei ANTOacuteNIO - E isso era possiacutevel INFANTE - Claro que era Bastava que houvesse a mesma grandeza de alma Mas natildeo De descoberta a descoberta foram-se enredando em intrigas em oacutedios em venenos Depois de cada conquista queriam outra conquista e perdiam a primeira ANTOacuteNIO - Mudar pode ser sobreviver INFANTE - Natildeo era mudar Era perder Foi assim que os meus sonhos se foram enchendo de brumas e de silecircncios ANTOacuteNIO - Senhor tanto que se fala de si INFANTE - Agora Este paiacutes sempre viveu de luas Todos os anos vai ao bauacute do passado e desenterra um morto Logo se apressa a ver-lhe os ossos a descobrir-lhe as viacutesceras da virtude do saber dos feitos Depressa sai do anonimato para ser o santo o saacutebio

o heroacutei Durante vinte e quatro horas eacute o bombo da festa a masturbaccedilatildeo coletiva o orgulho da comissatildeo ANTOacuteNIO - Jaacute ouvi isso INFANTE - Agraves vezes esquecem-se dele na praccedila Nem sequer tecircm o cuidado de lhe arrumar outra vez os ossos AFONSO - Consigo eacute diferente INFANTE - Comigo nunca foi diferente Andam agora a assoalhar-me numa pressa escolar que mete doacute Obrigam as criancinhas a saber de mim enchendo-lhes a cabeccedila com sonhos que natildeo sonhei ANTOacuteNIO - Todos dizem que sempre foi um sonhador INFANTE - Eram sonhos meus Originais Agora querem fazer passar por meus os seus proacuteprios sonhos numa acircnsia de rasurar pesadelos Quando sonhava sonhava em grande Nunca fui mediacuteocre CONSTANCcedilA - Isso sabemos INFANTE - Natildeo tanto que o tivessem aprendido ROMUALDO - Viajamos tanto INFANTE - Por necessidade Falta-vos a coragem de aventurar ANTOacuteNIO - Aventurar As nossas aventuras satildeo o que satildeo

19

INFANTE - Apenas JOSEacute - Por vezes quisemos imitar-vos INFANTE - Sem chama DIOGO - Quisemos ir aleacutem da ilha completar outras viagens INFANTE - Sem convicccedilatildeo ANTOacuteNIO - Sabemos navegar INFANTE - Sem rumo que interesse FRADE - Estais a retirar-nos a Poesia INFANTE - Natildeo Apenas a tentar dizer que a Poesia eacute sonho e eacute tanto mais grandiosa quanto maior eacute o sonho FRADE - Desisto de falar INFANTE - Desistir eacute um verbo cobarde Na verdade viveis num paiacutes desistido ANTOacuteNIO - Natildeo temos remissatildeo

INFANTE - Depende da vossa forma de redimir FRADE - Um apelo agrave Histoacuteria por exemplo INFANTE - Dei-vos estas ilhas carregadas de Histoacuteria Fiz delas o poiso de todas as viagens Aqui foram dadas em primeira matildeo as novas de achamento Aqui se desfizeram segredos aqui se informaram povos e culturas aqui o mundo se tornou sabido BEATRIZ - Foram outros tempos INFANTE - E deixaram-nos perder JOSEacute Natildeo tanto assim Ainda temos aviotildees que rapidamente nos trazem outras gentes INFANTE - Poucas DIOGO - E todos os dias sabemos do mundo sobre a hora de qualquer acontecimento INFANTE - Entatildeo porque vos queixais CATARINA - Talvez porque apenas recebemos e nada damos LEONOR - Talvez porque natildeo podemos digerir quanto recebemos ROMUALDO - Talvez porque natildeo temos tempo de sonhar connosco proacuteprios

20

AFONSO - Talvez por causa desta solidatildeo mal quebrada MARIA - Ou por termos as portas mal abertas BELISA - Natildeo termos asas INFANTE - Sois na verdade bem pequenos Natildeo sois capazes de desenterrar os vossos heroacuteis os vossos santos os vossos poetas ANTOacuteNIO - Dos nossos heroacuteis e santos pouco sabemos Permanecem quase todos sob o manto diaacutefano das lendas E os poetas satildeo malditos INFANTE - Todos os poetas satildeo malditos Eacute por isso que satildeo poetas Todos os heroacuteis e santos satildeo lendaacuterios Eacute por isso que permanecem Que conheceis de mim ROMUALDO - Pois Talvez o bastante Ou talvez coisa nenhuma JOSEacute - A vossa imagem de negro no poliacuteptico de Satildeo Vicente eacute uma referecircncia obrigatoacuteria INFANTE - Apenas tecircm referecircncias E no entanto eacute o suficiente para que o sonho aconteccedila Para que preparem todas as viagens e as realizem por seus rumos certos e cheguem agraves terras previstas E aiacute aconteccedilam os outros sonhos os do patildeo e os da cultura FRADE - Isso nos disseram aqui haacute poucos anos E nada aconteceu ANTOacuteNIO - Eis como ficaacutemos pobres e mudos

INFANTE - Mas natildeo presos As vossas amarras satildeo mais inventadas que reais Peguem nos vossos poetas e bebam o sangue da sua Poesia Sem amor natildeo haacute sonho possiacutevel (Saiacuteda falsa) ANTOacuteNIO - Jaacute vos ides INFANTE - Jaacute O tempo de estar na vossa memoacuteria chegou ao fim Volto para as paacuteginas da histoacuteria de um livro que vai ficar intocaacutevel na prateleira da vossa estante Eacute o meu tuacutemulo preferido Natildeo quero que me abandonem nas ruas a desbotar em cartazes Natildeo quero ficar em textos de circunstacircncia em programas tidos de prestiacutegio em espetaacuteculos de teatro sem teatralidade capaz O que eu tinha de ser jaacute fui Se me comeram a carne podem roer-me os ossos A um morto tanto se lhe faz ANTOacuteNIO - Afinal tambeacutem perdeste os sonhos e a vontade de sonhar INFANTE - Soacute sonha quem estaacute vivo Vocecircs estatildeo vivos Podem sonhar (Sai)rdquo

RIMANCE DE DONA BALEIA IMPRESSOtildeES DE BOCA EDICcedilOtildeES DRAC 1992 PP 31-32 E 33

ldquoestava dona baleia - foge foge meu amor a regar o seu jardim ateacute agraves aacuteguas do frio com seu repuxo de prata soacute aiacute te sei segura e sorriso de alfenim a regar o teu jardim quando o foguete estalou com teu repuxo de prata laacute no alto da vigia e sorriso de alfenim anunciando a caccedila mas a canoa da morte (que susto santa maria) corre depressa demais dona baleia - coitada daqui lhe aceno a vida logo parou de aguar feito pedrinha do cais as algas que floriam e grito seu nome drsquoaacutegua

21

bem agrave tona do mar (seu matador quem seraacute) eacute entatildeo que a tristeza procura quantos te amam o medo a afliccedilatildeo Jonas deus iemanjaacute saltam do cais dos olhos de nada lhe serve o grito aos ombros do coraccedilatildeo Nada mais posso fazer um grito aberto se ouve o arpatildeo laacute vai direito em eco de mar perfeito no seu peito embater - baleia agrave vista baleia patildeo-nosso de qualquer jeito ai pobre dona baleia e laacute vai dona baleia como te custa viver fugindo pra natildeo morrer - deus a salve do arpatildeo morreu dona baleia deus a queira proteger arpada de oacutedio velho todo o silecircncio do mar ai pobre dona baleia ficou tinto de vermelho como te custa viver os peixes choram tambeacutem envolta em lenccedilol de sangue mar manso todo rasgado dona baleia laacute vem baba de espuma agrave quilha arrastada ateacute ao cais dona baleia procura seu corpo esquartejado escapar da armadilha nas caldeiras derretido que eacute o arpatildeo voador daacute o patildeo amargurado anjo de ferro esguio e algueacutem haacute de gravar nos seus dentes de marfim eram cinco sois a arder o barco que a perseguiu cinco talhadas de lua o arpatildeo que lhe deu fim que deus lhe quis oferecer no ceacuteu as aves e as nuvens correm do sul para o norte agora dona baleia sobre o mar e sobre a ilha jaacute natildeo lhe custa viverrdquo paira o silecircncio da morte e haacute um poeta branco agrave minha porta a bater natildeo vou abri-la natildeo vou jaacute sei o que vem dizer ai pobre dona baleia como te custa viver agrave costa como um poema

a desfazer-se na areia vieram cinco mareacutes chorar a dona baleia duas choravam espuma - branca nuvem de veratildeo traziam como homenagem um buacutezio em cada matildeo as outras duas chegaram fracas de tanto chorar tanto sal nas suas laacutegrimas tanto sal e tanto mar a quinta mareacute natildeo chora traz apenas no regaccedilo um grande ramo de algas amarrado com um laccedilo deixa-o deposto na costa de seguida reza e canta satildeo cantigas de saudade versos presos na garganta desfeitas satildeo as mareacutes

CARTA DE JOAtildeO VALENTE (RAMINHENSE DA TERCEIRA) A SEU IRMAtildeO EMBARCADO NA CALIFOacuteRNIA (GASTINHAS) OU ENTAtildeO CANTIGAS DE COMO SE PICAM OS OLHOS DA MISEacuteRIA EM PICOS DE ABUNDAcircNCIA

ldquoEscrevo-te esta carta Gostei de saber que tens Pra saber como vais passando Friza e um novo mexim A saudade eacute que nos farta Socircfas clausetas sertatildes Mas por caacute vamos andando E alvaroses dingrim Muito bem graccedilas a Deus Jaacute sei que tens um fogatildeo Nestas linhas que alinhavo Uma trela e talaveija Muito mal desejo aos teus E que jaacute vives no Tatildeo Tameacutem sauacutede Por mim cavo - Mas que sorte salvo seija Desta hora a matildeo na pena E cuma pisca de doacutelas Poucas letras e saberes Te vestiste numa estocirca

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

13

14

Por Uma Laacutegrima Gorda Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 11 a 21

ldquoA lembranccedila mais agradaacutevel que guardo (mas que eacute tambeacutem do tamanho do meu remorso) eacute a da negrinha Segunda Dei por ela no dia em que vi uma laacutegrima gorda rolar-lhe pelo rosto e estatelar-se sobre a mesa Nunca mais vi laacutegrima que se lhe comparasse em tamanho e amargura uma bola de cristal de maga velha Fiquei perplexo sem saber como era possiacutevel acumular tanta dor salgada Estava em Binta terriola da Guineacute-Bissau que fora porto importante da exportaccedilatildeo de mancarra e arroz nos tempos da escravatura suave do imperialismo lusiacuteada Estava ali fardado de soldado mal fardado apegando-me a um quotidiano enformado por horas inseguras por um teacutedio amassado a suor e a cachimbo e resignado a uma paisagem de aacutervores fendida pelas aacuteguas verdes do rio Cacheu ndash alameda por onde passeavam hipopoacutetamos crocodilos e algumas cobras Tudo isto exercia sobre mim e os meus companheiros de destino o efeito de um soporiacutefero maldito ndash mistura de medo e de torpor que nem o luar de marccedilo esmaecia Era como se a vida tivesse adormecido sobre o arame de um circo desprovido de rede em que o equiliacutebrio se desafiava a si proacuteprio e sem que houvesse a miacutenima razatildeo para evitar a queda e a morte Por isso a laacutegrima gorda de Segunda foi a minha taacutebua de salvaccedilatildeo O que ateacute hoje fiz de mais uacutetil foi ensinar a ler e a escrever agraves crianccedilas de Binta Todos os dias ocupaacutevamos uma palhota que fora abandonada logo que o arame farpado delimitou a aacuterea do quartel Apesar da falta de material didaacutetico as crianccedilas de Binta foram desenhando letras formando palavras descobrindo a grafia da voz e aprendendo que para aleacutem dos seus inconfundiacuteveis meacutetodos de comunicaccedilatildeo tambeacutem era possiacutevel fazecirc-lo atraveacutes da escrita e da leitura No meio dos progressos escolares sentia-me pai-natal ao contraacuterio recebendo mais do que dava e por isso mais feliz do que aquele pequeno bando de negrinhos que diariamente me aparecia vestido de trapos e de sujidade e visivelmente mal alimentado Mas nesse tempo de infernos de convivecircncia com a morte com a injusticcedila e outros males complementares a tarefa de professor devolvia-me alguma da dignidade perdida Foi nessa escola com teto de palha que reconquistei o equiliacutebrio mental e sobretudo o quanto necessitava para sobreviver e poder regressar mais tarde com as minhas lembranccedilas e os meus remorsos Segunda frequentava a minha escola e prendi-me a ela com todos os tentaacuteculos do coraccedilatildeo por causa da tal laacutegrima gorda que um dia deixou cair sobre a mesa

Entatildeo soube-lhe o nome e descobri a sua inteligecircncia e a sua beleza Um estuacutepido becirc maiuacutesculo fecirc-la tropeccedilar no complicado desenho ndash as barrigas sobrepostas como mulher graacutevida duas vezes Simplifiquei o desenho e dei-lhe um beijo na testa E logo o becirc saiu com a forma perfeita Dedicou-me a vitoacuteria com uma cariacutecia na matildeo e o sorriso mais cheio de ternura que algueacutem me deu Assim nasceu a nossa amizade que logo se enredou de muitas e complexas cumplicidades Almoccedilou comigo Partilhamos o rancho ndash da minha parte sem qualquer sacrifiacutecio Tratava-se duma mistela de arroz com rodinhas de salsicha enlatada sem outro sabor que natildeo fosse aquela fome tentacular e corrosiva Segunda quase me irritou com o seu apetite demolidor A sua fome era tambeacutem secular Custava-me aceitar essa verdade sem que o estocircmago natildeo me enfezasse com a sua uacutelcera de revolta Olhei-a mais uma vez e soacute vi a claridade inocente dos seus olhos lindos Passou-me a birra Segunda era como se fosse uma flor de maio ndash intacta delicada e por isso suscetiacutevel ldquoViraste infanticidardquo ouvi dizer Ignorei de quem vinha a piada Natildeo me deixei morder Queria Segunda nessa duacutebia qualidade de irmatilde e de filha ldquoQuantos anos tensrdquo ldquoOito chuvardquo Partiu levando uns restos de comida numa lata enferrujada ldquoPa mecircs irmatildeordquo disse Os seus peacutes descalccedilos levantaram uma linha de poacute vermelho que foi sumir-se de encontro aos arrevesados atalhos da tabanca Ateacute parecia que naquela lata supurenta levava a alma da felicidade E era essa reles felicidade que me deixava abaixo de catildeo Levantei-me com a vontade incontrolaacutevel de me vomitar Fui ateacute ao rio Fechei os olhos e respirei fundo O sol bateu-me no corpo com os seus raios de fogo secando o asco que me subia do estocircmago ao ceacuteu-da-boca Sabia que se gritasse me libertaria do remorso subjugante da guerra e das razotildees submersas de um colonialismo apodrecido de poder Mas estava na hora dos silecircncios quentes da vida de Aacutefrica descansar agrave sombra do torpor da sua desgraccedila Acabei por me perder numa sueca encharcado de cerveja Ser luacutecido ali natildeo era virtude que se cultivasse Antes o aacutelcool Infinitamente Acordei com o ciciar de Segunda ldquoSocirc pofessocirc Socirc pofessocircrdquo Esfreguei os olhos afastando as uacuteltimas teimosias de sono e ela laacute estava com o seu sorriso e o meu pequeno-almoccedilo Comemos e fomos para a escola Com o ridiacuteculo da minha acircnsia transferi para Segunda quanto me restava de afeto e de orgulho Babava-me perante a sua capacidade de aprender e sobretudo de apreender os significados complexos da vida Era brilhante Tanto se lhe dava navegar nos mapas sucintos da grandeza do mundo descobrindo gentes de outras longitudes e civilizaccedilotildees como se fixava no desenvolvimento das complicadas operaccedilotildees de aritmeacutetica somando ternura diminuindo tristeza multiplicando afetos dividindo solidariedade A sua vontade era contagiante Alguns meses depois sete dos meus alunos foram a Safim fazer o exame da quarta classe Ficaram aprovados com distinccedilatildeo Mas soacute Segunda me pareceu digna

15

desse privileacutegio Andava eufoacuterico e tambeacutem infantil premiado com o seu sorriso distinto E com a sua pobreza E isso eacute que me constrangia Era uma pobreza sugadora progressiva medonha irresponsaacutevel Segunda era o rosto singular dos seus companheiros de tabanca de Aacutefrica Comiam os restos da tropa Via-lhes as barrigas entumescidas de fome os olhos desvitaminados os ossos salientes sob a pele das disenterias os rostos sujos do chatildeo que lhes servia de cama os cadernos enodoados de terrosas impressotildees digitais Tudo isto me afogava no lodo de um remorso inconsequente e procurava purificar-me no meu afeto por Segunda Dei-lhe uma camisa velha a que cortara as mangas e acinturei com um cordel Ficava-lhe bem Ficou com um ar de rapariguinha exoacutetica tipo modelo para neacutegligeacutee de alta moda No dia seguinte voltou sem a camisa Dera-a ao pai Mas foi a partir desta pequena doaccedilatildeo que virei estilista Mamadu ndash balanta e muccedilulmano ndash herdara de um colono fugido agrave guerra uma velha maacutequina de costura Com ela apertava-nos as fardas a troco de alimentos que surripiaacutevamos da arrecadaccedilatildeo de geacuteneros uns quilos de arroz patildeo oacuteleo latas de conserva Procurei restos de fardas e levei-os ao homem da maacutequina de costura Desenhei um vestido de corpo justo mangas de balatildeo saia com folhos sobrepostos cintura arrematada com laccedilo nas costas ndash tudo dividido pelos dois tecidos possiacuteveis o verde liso e o camuflado ldquoNatildeo nosso sordado Natildeo sei fazerrdquo disse Mamadu Entatildeo talhei alinhavei e dei indicaccedilotildees sobre o que a agulha da maacutequina devia pespontar ldquoNosso sordado ser artistardquo o vestido suspenso pelos ombros e exposto ao olhar admirado de Mamadu Arquivei o elogio e nunca lhe confessei que naquela peccedila de roupa investi toda a minha ciecircncia sobre costura ndash e tambeacutem o meu receio e a minha ignoracircncia Eacute que soacute por acaso o vestido resultara Segunda eacute que ficou ainda mais bonita Pela primeira vez despertara-se-lhe a vaidade de mulher Confundida e enleada mirou-se no espelho do cabo enfermeiro e correu para a tabanca a fim de explorar a seduccedilatildeo do seu vestido novo Poreacutem mais uma vez o imprevisto derrotou-me Segunda apareceu-me com o vestido numa laacutestima Esquecera-me de lhe pedir que o despisse antes de se deitar Mas natildeo desisti Roubei quanto pude na arrecadaccedilatildeo de geacuteneros e fizeram-se vestidos saias calccedilotildees blusas ndash tudo com modelos diferentes - ateacute que fui apanhado pelo capitatildeo que acabou por desconfiar das minhas sucessivas incursotildees agrave palhota do Mamadu ldquoOu vestes todos ou natildeo vestes ningueacutemrdquo ordenou Aceitei o desafio E toca a desenhar a talhar a alinhavar a coser roupas diversas para as crianccedilas da escola Chegou a fazer-se um abate prematuro de fardas para que natildeo faltasse mateacuteria-prima Quando entrei na

escola estremeci Diante de mim estava um pelotatildeo infantil fardado a preceito e sem graccedila Apeteceu-me mandaacute-los despir Pelo menos a nudez dar-lhes-ia na igualdade da cor e da idade o direito agrave diferenccedila Segunda adivinhando a minha dececcedilatildeo logo me consolou ldquoTodos irmatildeordquo Sem duacutevida Mas por que preccedilo Os dias foram pingando Afeto sobre afeto Segunda tornara-se-me insubstituiacutevel Estava no meu coraccedilatildeo como polvo sadio aorta sentimental anjo da guarda de todos os perigos do meu quotidiano Por isso foi num de repente gelatinoso que dei por mim com os dedos a tocar no tempo do regresso Apercebi-me disso pela algazarra do quartel pelas calviacutecies remanescentes pelas barrigas dilatadas de cerveja pelo fel dos fiacutegados desfeitos pelas rugas da pele pelos medos reassumidos E em cada manhatilde ouvia-se um bruaacute florestal selvagem que era a manifestaccedilatildeo menos demente da alegria de acordar e de riscar mais um nuacutemero no calendaacuterio de parede Apercebi-me tambeacutem desse chegar pelo veacuteu de tristeza que se foi adensando no rosto de Segunda e ateacute pela sua impaciecircncia velada que disfarccedilava com algum autoritarismo sobre as outras crianccedilas Chegou mesmo a vingar-se sobre si proacutepria ausentando-se para dentro respirando os silecircncios da alma Cabia-me preparar Segunda para a nossa inevitaacutevel separaccedilatildeo ndash separaccedilatildeo que eu tambeacutem natildeo desejava tatildeo inseguro me sentia quanto agrave minha capacidade de sobreviver sem ela Mas o que mais me afligia era o natildeo ser capaz de lhe deixar uma razatildeo coerente para o nosso adeus naturalmente definitivo Deixara-a prender-se com o melhor dos seus afetos enquanto eu como adulto racional natildeo passara de um saacutedico e egoiacutesta abandonando-a a todas as incertezas do futuro Retirava-lhe a muleta que eu era mesmo no centro do precipiacutecio Precisava urgentemente duma esperanccedila que lhe garantisse a felicidade E afinal nem lhe podia certificar coisas tatildeo banais como a escola roupa comida Felizmente soacute depois de chegar agrave ilha eacute que percebi que era o maior perdedor Nunca mais acordei ao som da sua voz nunca mais passeei na margem do Cacheu guiado pela sua matildeo nunca mais frui dos poentes vermelhos de fogo com a sua cabeccedila no meu regaccedilo Perdi de uma vez por todas o direito aos seus insoacutelitos presentes um bolo de coco feito pela matildee o passarinho muito inho que apanhava na cerca da palhota e depois domesticava o prazer de comer a primeira manga que a estaccedilatildeo amadurava E acabaram os nossos diaacutelogos onde a Poesia pontificava na contenccedilatildeo das palavras e na extensatildeo dos silecircncios E desta vez foi sobre o meu rosto que voltei a sentir o peso disforme da sua laacutegrima gorda Fiquei sem jeito Falei a Segunda na distacircncia real das nossas terras e das nossas culturas da incerteza do meu futuro bastamente comprometido pela inutilidade dos

16

anos vividos e de todo irrecuperaacuteveis Adensei tudo com verdades dramaacuteticas deixando transparentes a incerteza a cobardia e o pecado da omissatildeo Descrevi-lhe depois as deliacutecias da terra prometida como se fossem dela Antevi-lhe um amanhatilde mentirosamente risonho e deixei-lhe relevada a beleza demagoacutegica da sua paacutetria Olhou-me atordoada inconvencida amuada distante ndash maacutescara que soacute desfez na veacutespera da partida Quando os batelotildees ndash que nos levariam Cacheu abaixo rumo a Bissau ndash chegaram rodeados de barcos-patrulha restavam vinte e quatro horas para estarmos juntos Vivemo-las tatildeo intensamente que me deitei exausto No momento de largar fizemos por nos ignorar Combinaacuteramos evitar o melodrama E Segunda laacute ficou sobre o cais de madeira o dedo na boca os olhos avaramente enxutos assombrando a alegria do meu regresso com a sua recalcada tristeza Ficou sozinha ndash sei laacute com que futuro Ainda hoje sabendo que cresceu e que cumpre o seu destino na paacutetria sem as virtudes que lhe fiz crer dou por mim a soccedilobrar com esta saudade e este remorso Sou-lhe eternamente devedor Se lhe dei alguns meses de comezinha felicidade ele deu-me a coragem de continuar vivo num tempo e num lugar onde a morte chegava a ser uma becircnccedilatildeo do ceacuteu Desses tempos de conviacutevio diaacuterio com as mil presenccedilas da morte haacute imagens que continuam a perseguir-me Bem sei que eacute um disparate jaacute que os meus ressentimentos medos e fantasmas natildeo oferecem resistecircncia de maior Tecircm vindo a diluir-se como a tinta dos maus frescos renascentistas Mas natildeo consigo esquecer-me de Segunda com o seu belo corpo esfaimado a sua resignaccedilatildeo e a sua indiferenccedila perante a presenccedila e a superioridade da tropa Por isso espanto-me que volvidos tantos anos a minha principal referecircncia da Guineacute tenha o tamanho dessa negrinha de olhos grandes e de sorriso branco cujo corpo exalava o perfume inexplorado da floresta e que gostava de se sentar comigo sobre o cais de madeira a ver o sol esconder-se atraacutes da mata de Ohio E que me queimou a alma com uma laacutegrima gorda Segunda deve ser agora uma grande poeta Valha-me esta consolaccedilatildeo sofrida que ser poeta natildeo eacute bem que se deseje nem sequer ao inimigordquo

17

2ordm Ato (Extrato) Os Sonhos do Infante Ediccedilatildeo Jornal de Cultura 1995

ldquoO uacuteltimo sonho o re-encontro Talvez ningueacutem saiba porquecirc nem para quecirc ANTOacuteNIO - Quem sois INFANTE - Que pergunta desnecessaacuteria ANTOacuteNIO - Desculpe Parece-me que o conheccedilo INFANTE - E nem precisas de fazer muito esforccedilo ANTOacuteNIO - Assim de branco INFANTE - Jaacute sei Pareccedilo-te uma noiva de bigode ANTOacuteNIO - Desculpai senhor Jaacute natildeo o via haacute tantos anos INFANTE - Haacute muitos anos ANTOacuteNIO - Andaacuteveis vestido de preto INFANTE - A cor eacute-me indiferente Os seacuteculos purificam os tons escuros Deixam aparar as impurezas Depois vatildeo corando Um dia fica soacute a cor precisa e segura ANTOacuteNIO - Natildeo estou a entender INFANTE

18

- Querias apenas dizer que enquanto os homens satildeo de memoacuteria curta a Histoacuteria encarrega-se de gravar quanto interessa na memoacuteria dos livros e das pedras ANTOacuteNIO - Reconheci-o E natildeo nascemos propriamente no mesmo seacuteculo INFANTE - Seria difiacutecil esquecerem-me Natildeo que o natildeo tenham tentado Aliaacutes este meu paiacutes nunca me mereceu ANTOacuteNIO - Como assim INFANTE - Natildeo teve corpo para arrumar a minha alma Natildeo teve matildeos para agarrar quanto lhe dei ANTOacuteNIO - E isso era possiacutevel INFANTE - Claro que era Bastava que houvesse a mesma grandeza de alma Mas natildeo De descoberta a descoberta foram-se enredando em intrigas em oacutedios em venenos Depois de cada conquista queriam outra conquista e perdiam a primeira ANTOacuteNIO - Mudar pode ser sobreviver INFANTE - Natildeo era mudar Era perder Foi assim que os meus sonhos se foram enchendo de brumas e de silecircncios ANTOacuteNIO - Senhor tanto que se fala de si INFANTE - Agora Este paiacutes sempre viveu de luas Todos os anos vai ao bauacute do passado e desenterra um morto Logo se apressa a ver-lhe os ossos a descobrir-lhe as viacutesceras da virtude do saber dos feitos Depressa sai do anonimato para ser o santo o saacutebio

o heroacutei Durante vinte e quatro horas eacute o bombo da festa a masturbaccedilatildeo coletiva o orgulho da comissatildeo ANTOacuteNIO - Jaacute ouvi isso INFANTE - Agraves vezes esquecem-se dele na praccedila Nem sequer tecircm o cuidado de lhe arrumar outra vez os ossos AFONSO - Consigo eacute diferente INFANTE - Comigo nunca foi diferente Andam agora a assoalhar-me numa pressa escolar que mete doacute Obrigam as criancinhas a saber de mim enchendo-lhes a cabeccedila com sonhos que natildeo sonhei ANTOacuteNIO - Todos dizem que sempre foi um sonhador INFANTE - Eram sonhos meus Originais Agora querem fazer passar por meus os seus proacuteprios sonhos numa acircnsia de rasurar pesadelos Quando sonhava sonhava em grande Nunca fui mediacuteocre CONSTANCcedilA - Isso sabemos INFANTE - Natildeo tanto que o tivessem aprendido ROMUALDO - Viajamos tanto INFANTE - Por necessidade Falta-vos a coragem de aventurar ANTOacuteNIO - Aventurar As nossas aventuras satildeo o que satildeo

19

INFANTE - Apenas JOSEacute - Por vezes quisemos imitar-vos INFANTE - Sem chama DIOGO - Quisemos ir aleacutem da ilha completar outras viagens INFANTE - Sem convicccedilatildeo ANTOacuteNIO - Sabemos navegar INFANTE - Sem rumo que interesse FRADE - Estais a retirar-nos a Poesia INFANTE - Natildeo Apenas a tentar dizer que a Poesia eacute sonho e eacute tanto mais grandiosa quanto maior eacute o sonho FRADE - Desisto de falar INFANTE - Desistir eacute um verbo cobarde Na verdade viveis num paiacutes desistido ANTOacuteNIO - Natildeo temos remissatildeo

INFANTE - Depende da vossa forma de redimir FRADE - Um apelo agrave Histoacuteria por exemplo INFANTE - Dei-vos estas ilhas carregadas de Histoacuteria Fiz delas o poiso de todas as viagens Aqui foram dadas em primeira matildeo as novas de achamento Aqui se desfizeram segredos aqui se informaram povos e culturas aqui o mundo se tornou sabido BEATRIZ - Foram outros tempos INFANTE - E deixaram-nos perder JOSEacute Natildeo tanto assim Ainda temos aviotildees que rapidamente nos trazem outras gentes INFANTE - Poucas DIOGO - E todos os dias sabemos do mundo sobre a hora de qualquer acontecimento INFANTE - Entatildeo porque vos queixais CATARINA - Talvez porque apenas recebemos e nada damos LEONOR - Talvez porque natildeo podemos digerir quanto recebemos ROMUALDO - Talvez porque natildeo temos tempo de sonhar connosco proacuteprios

20

AFONSO - Talvez por causa desta solidatildeo mal quebrada MARIA - Ou por termos as portas mal abertas BELISA - Natildeo termos asas INFANTE - Sois na verdade bem pequenos Natildeo sois capazes de desenterrar os vossos heroacuteis os vossos santos os vossos poetas ANTOacuteNIO - Dos nossos heroacuteis e santos pouco sabemos Permanecem quase todos sob o manto diaacutefano das lendas E os poetas satildeo malditos INFANTE - Todos os poetas satildeo malditos Eacute por isso que satildeo poetas Todos os heroacuteis e santos satildeo lendaacuterios Eacute por isso que permanecem Que conheceis de mim ROMUALDO - Pois Talvez o bastante Ou talvez coisa nenhuma JOSEacute - A vossa imagem de negro no poliacuteptico de Satildeo Vicente eacute uma referecircncia obrigatoacuteria INFANTE - Apenas tecircm referecircncias E no entanto eacute o suficiente para que o sonho aconteccedila Para que preparem todas as viagens e as realizem por seus rumos certos e cheguem agraves terras previstas E aiacute aconteccedilam os outros sonhos os do patildeo e os da cultura FRADE - Isso nos disseram aqui haacute poucos anos E nada aconteceu ANTOacuteNIO - Eis como ficaacutemos pobres e mudos

INFANTE - Mas natildeo presos As vossas amarras satildeo mais inventadas que reais Peguem nos vossos poetas e bebam o sangue da sua Poesia Sem amor natildeo haacute sonho possiacutevel (Saiacuteda falsa) ANTOacuteNIO - Jaacute vos ides INFANTE - Jaacute O tempo de estar na vossa memoacuteria chegou ao fim Volto para as paacuteginas da histoacuteria de um livro que vai ficar intocaacutevel na prateleira da vossa estante Eacute o meu tuacutemulo preferido Natildeo quero que me abandonem nas ruas a desbotar em cartazes Natildeo quero ficar em textos de circunstacircncia em programas tidos de prestiacutegio em espetaacuteculos de teatro sem teatralidade capaz O que eu tinha de ser jaacute fui Se me comeram a carne podem roer-me os ossos A um morto tanto se lhe faz ANTOacuteNIO - Afinal tambeacutem perdeste os sonhos e a vontade de sonhar INFANTE - Soacute sonha quem estaacute vivo Vocecircs estatildeo vivos Podem sonhar (Sai)rdquo

RIMANCE DE DONA BALEIA IMPRESSOtildeES DE BOCA EDICcedilOtildeES DRAC 1992 PP 31-32 E 33

ldquoestava dona baleia - foge foge meu amor a regar o seu jardim ateacute agraves aacuteguas do frio com seu repuxo de prata soacute aiacute te sei segura e sorriso de alfenim a regar o teu jardim quando o foguete estalou com teu repuxo de prata laacute no alto da vigia e sorriso de alfenim anunciando a caccedila mas a canoa da morte (que susto santa maria) corre depressa demais dona baleia - coitada daqui lhe aceno a vida logo parou de aguar feito pedrinha do cais as algas que floriam e grito seu nome drsquoaacutegua

21

bem agrave tona do mar (seu matador quem seraacute) eacute entatildeo que a tristeza procura quantos te amam o medo a afliccedilatildeo Jonas deus iemanjaacute saltam do cais dos olhos de nada lhe serve o grito aos ombros do coraccedilatildeo Nada mais posso fazer um grito aberto se ouve o arpatildeo laacute vai direito em eco de mar perfeito no seu peito embater - baleia agrave vista baleia patildeo-nosso de qualquer jeito ai pobre dona baleia e laacute vai dona baleia como te custa viver fugindo pra natildeo morrer - deus a salve do arpatildeo morreu dona baleia deus a queira proteger arpada de oacutedio velho todo o silecircncio do mar ai pobre dona baleia ficou tinto de vermelho como te custa viver os peixes choram tambeacutem envolta em lenccedilol de sangue mar manso todo rasgado dona baleia laacute vem baba de espuma agrave quilha arrastada ateacute ao cais dona baleia procura seu corpo esquartejado escapar da armadilha nas caldeiras derretido que eacute o arpatildeo voador daacute o patildeo amargurado anjo de ferro esguio e algueacutem haacute de gravar nos seus dentes de marfim eram cinco sois a arder o barco que a perseguiu cinco talhadas de lua o arpatildeo que lhe deu fim que deus lhe quis oferecer no ceacuteu as aves e as nuvens correm do sul para o norte agora dona baleia sobre o mar e sobre a ilha jaacute natildeo lhe custa viverrdquo paira o silecircncio da morte e haacute um poeta branco agrave minha porta a bater natildeo vou abri-la natildeo vou jaacute sei o que vem dizer ai pobre dona baleia como te custa viver agrave costa como um poema

a desfazer-se na areia vieram cinco mareacutes chorar a dona baleia duas choravam espuma - branca nuvem de veratildeo traziam como homenagem um buacutezio em cada matildeo as outras duas chegaram fracas de tanto chorar tanto sal nas suas laacutegrimas tanto sal e tanto mar a quinta mareacute natildeo chora traz apenas no regaccedilo um grande ramo de algas amarrado com um laccedilo deixa-o deposto na costa de seguida reza e canta satildeo cantigas de saudade versos presos na garganta desfeitas satildeo as mareacutes

CARTA DE JOAtildeO VALENTE (RAMINHENSE DA TERCEIRA) A SEU IRMAtildeO EMBARCADO NA CALIFOacuteRNIA (GASTINHAS) OU ENTAtildeO CANTIGAS DE COMO SE PICAM OS OLHOS DA MISEacuteRIA EM PICOS DE ABUNDAcircNCIA

ldquoEscrevo-te esta carta Gostei de saber que tens Pra saber como vais passando Friza e um novo mexim A saudade eacute que nos farta Socircfas clausetas sertatildes Mas por caacute vamos andando E alvaroses dingrim Muito bem graccedilas a Deus Jaacute sei que tens um fogatildeo Nestas linhas que alinhavo Uma trela e talaveija Muito mal desejo aos teus E que jaacute vives no Tatildeo Tameacutem sauacutede Por mim cavo - Mas que sorte salvo seija Desta hora a matildeo na pena E cuma pisca de doacutelas Poucas letras e saberes Te vestiste numa estocirca

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

14

Por Uma Laacutegrima Gorda Com Perfume e com Veneno Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1997 pp 11 a 21

ldquoA lembranccedila mais agradaacutevel que guardo (mas que eacute tambeacutem do tamanho do meu remorso) eacute a da negrinha Segunda Dei por ela no dia em que vi uma laacutegrima gorda rolar-lhe pelo rosto e estatelar-se sobre a mesa Nunca mais vi laacutegrima que se lhe comparasse em tamanho e amargura uma bola de cristal de maga velha Fiquei perplexo sem saber como era possiacutevel acumular tanta dor salgada Estava em Binta terriola da Guineacute-Bissau que fora porto importante da exportaccedilatildeo de mancarra e arroz nos tempos da escravatura suave do imperialismo lusiacuteada Estava ali fardado de soldado mal fardado apegando-me a um quotidiano enformado por horas inseguras por um teacutedio amassado a suor e a cachimbo e resignado a uma paisagem de aacutervores fendida pelas aacuteguas verdes do rio Cacheu ndash alameda por onde passeavam hipopoacutetamos crocodilos e algumas cobras Tudo isto exercia sobre mim e os meus companheiros de destino o efeito de um soporiacutefero maldito ndash mistura de medo e de torpor que nem o luar de marccedilo esmaecia Era como se a vida tivesse adormecido sobre o arame de um circo desprovido de rede em que o equiliacutebrio se desafiava a si proacuteprio e sem que houvesse a miacutenima razatildeo para evitar a queda e a morte Por isso a laacutegrima gorda de Segunda foi a minha taacutebua de salvaccedilatildeo O que ateacute hoje fiz de mais uacutetil foi ensinar a ler e a escrever agraves crianccedilas de Binta Todos os dias ocupaacutevamos uma palhota que fora abandonada logo que o arame farpado delimitou a aacuterea do quartel Apesar da falta de material didaacutetico as crianccedilas de Binta foram desenhando letras formando palavras descobrindo a grafia da voz e aprendendo que para aleacutem dos seus inconfundiacuteveis meacutetodos de comunicaccedilatildeo tambeacutem era possiacutevel fazecirc-lo atraveacutes da escrita e da leitura No meio dos progressos escolares sentia-me pai-natal ao contraacuterio recebendo mais do que dava e por isso mais feliz do que aquele pequeno bando de negrinhos que diariamente me aparecia vestido de trapos e de sujidade e visivelmente mal alimentado Mas nesse tempo de infernos de convivecircncia com a morte com a injusticcedila e outros males complementares a tarefa de professor devolvia-me alguma da dignidade perdida Foi nessa escola com teto de palha que reconquistei o equiliacutebrio mental e sobretudo o quanto necessitava para sobreviver e poder regressar mais tarde com as minhas lembranccedilas e os meus remorsos Segunda frequentava a minha escola e prendi-me a ela com todos os tentaacuteculos do coraccedilatildeo por causa da tal laacutegrima gorda que um dia deixou cair sobre a mesa

Entatildeo soube-lhe o nome e descobri a sua inteligecircncia e a sua beleza Um estuacutepido becirc maiuacutesculo fecirc-la tropeccedilar no complicado desenho ndash as barrigas sobrepostas como mulher graacutevida duas vezes Simplifiquei o desenho e dei-lhe um beijo na testa E logo o becirc saiu com a forma perfeita Dedicou-me a vitoacuteria com uma cariacutecia na matildeo e o sorriso mais cheio de ternura que algueacutem me deu Assim nasceu a nossa amizade que logo se enredou de muitas e complexas cumplicidades Almoccedilou comigo Partilhamos o rancho ndash da minha parte sem qualquer sacrifiacutecio Tratava-se duma mistela de arroz com rodinhas de salsicha enlatada sem outro sabor que natildeo fosse aquela fome tentacular e corrosiva Segunda quase me irritou com o seu apetite demolidor A sua fome era tambeacutem secular Custava-me aceitar essa verdade sem que o estocircmago natildeo me enfezasse com a sua uacutelcera de revolta Olhei-a mais uma vez e soacute vi a claridade inocente dos seus olhos lindos Passou-me a birra Segunda era como se fosse uma flor de maio ndash intacta delicada e por isso suscetiacutevel ldquoViraste infanticidardquo ouvi dizer Ignorei de quem vinha a piada Natildeo me deixei morder Queria Segunda nessa duacutebia qualidade de irmatilde e de filha ldquoQuantos anos tensrdquo ldquoOito chuvardquo Partiu levando uns restos de comida numa lata enferrujada ldquoPa mecircs irmatildeordquo disse Os seus peacutes descalccedilos levantaram uma linha de poacute vermelho que foi sumir-se de encontro aos arrevesados atalhos da tabanca Ateacute parecia que naquela lata supurenta levava a alma da felicidade E era essa reles felicidade que me deixava abaixo de catildeo Levantei-me com a vontade incontrolaacutevel de me vomitar Fui ateacute ao rio Fechei os olhos e respirei fundo O sol bateu-me no corpo com os seus raios de fogo secando o asco que me subia do estocircmago ao ceacuteu-da-boca Sabia que se gritasse me libertaria do remorso subjugante da guerra e das razotildees submersas de um colonialismo apodrecido de poder Mas estava na hora dos silecircncios quentes da vida de Aacutefrica descansar agrave sombra do torpor da sua desgraccedila Acabei por me perder numa sueca encharcado de cerveja Ser luacutecido ali natildeo era virtude que se cultivasse Antes o aacutelcool Infinitamente Acordei com o ciciar de Segunda ldquoSocirc pofessocirc Socirc pofessocircrdquo Esfreguei os olhos afastando as uacuteltimas teimosias de sono e ela laacute estava com o seu sorriso e o meu pequeno-almoccedilo Comemos e fomos para a escola Com o ridiacuteculo da minha acircnsia transferi para Segunda quanto me restava de afeto e de orgulho Babava-me perante a sua capacidade de aprender e sobretudo de apreender os significados complexos da vida Era brilhante Tanto se lhe dava navegar nos mapas sucintos da grandeza do mundo descobrindo gentes de outras longitudes e civilizaccedilotildees como se fixava no desenvolvimento das complicadas operaccedilotildees de aritmeacutetica somando ternura diminuindo tristeza multiplicando afetos dividindo solidariedade A sua vontade era contagiante Alguns meses depois sete dos meus alunos foram a Safim fazer o exame da quarta classe Ficaram aprovados com distinccedilatildeo Mas soacute Segunda me pareceu digna

15

desse privileacutegio Andava eufoacuterico e tambeacutem infantil premiado com o seu sorriso distinto E com a sua pobreza E isso eacute que me constrangia Era uma pobreza sugadora progressiva medonha irresponsaacutevel Segunda era o rosto singular dos seus companheiros de tabanca de Aacutefrica Comiam os restos da tropa Via-lhes as barrigas entumescidas de fome os olhos desvitaminados os ossos salientes sob a pele das disenterias os rostos sujos do chatildeo que lhes servia de cama os cadernos enodoados de terrosas impressotildees digitais Tudo isto me afogava no lodo de um remorso inconsequente e procurava purificar-me no meu afeto por Segunda Dei-lhe uma camisa velha a que cortara as mangas e acinturei com um cordel Ficava-lhe bem Ficou com um ar de rapariguinha exoacutetica tipo modelo para neacutegligeacutee de alta moda No dia seguinte voltou sem a camisa Dera-a ao pai Mas foi a partir desta pequena doaccedilatildeo que virei estilista Mamadu ndash balanta e muccedilulmano ndash herdara de um colono fugido agrave guerra uma velha maacutequina de costura Com ela apertava-nos as fardas a troco de alimentos que surripiaacutevamos da arrecadaccedilatildeo de geacuteneros uns quilos de arroz patildeo oacuteleo latas de conserva Procurei restos de fardas e levei-os ao homem da maacutequina de costura Desenhei um vestido de corpo justo mangas de balatildeo saia com folhos sobrepostos cintura arrematada com laccedilo nas costas ndash tudo dividido pelos dois tecidos possiacuteveis o verde liso e o camuflado ldquoNatildeo nosso sordado Natildeo sei fazerrdquo disse Mamadu Entatildeo talhei alinhavei e dei indicaccedilotildees sobre o que a agulha da maacutequina devia pespontar ldquoNosso sordado ser artistardquo o vestido suspenso pelos ombros e exposto ao olhar admirado de Mamadu Arquivei o elogio e nunca lhe confessei que naquela peccedila de roupa investi toda a minha ciecircncia sobre costura ndash e tambeacutem o meu receio e a minha ignoracircncia Eacute que soacute por acaso o vestido resultara Segunda eacute que ficou ainda mais bonita Pela primeira vez despertara-se-lhe a vaidade de mulher Confundida e enleada mirou-se no espelho do cabo enfermeiro e correu para a tabanca a fim de explorar a seduccedilatildeo do seu vestido novo Poreacutem mais uma vez o imprevisto derrotou-me Segunda apareceu-me com o vestido numa laacutestima Esquecera-me de lhe pedir que o despisse antes de se deitar Mas natildeo desisti Roubei quanto pude na arrecadaccedilatildeo de geacuteneros e fizeram-se vestidos saias calccedilotildees blusas ndash tudo com modelos diferentes - ateacute que fui apanhado pelo capitatildeo que acabou por desconfiar das minhas sucessivas incursotildees agrave palhota do Mamadu ldquoOu vestes todos ou natildeo vestes ningueacutemrdquo ordenou Aceitei o desafio E toca a desenhar a talhar a alinhavar a coser roupas diversas para as crianccedilas da escola Chegou a fazer-se um abate prematuro de fardas para que natildeo faltasse mateacuteria-prima Quando entrei na

escola estremeci Diante de mim estava um pelotatildeo infantil fardado a preceito e sem graccedila Apeteceu-me mandaacute-los despir Pelo menos a nudez dar-lhes-ia na igualdade da cor e da idade o direito agrave diferenccedila Segunda adivinhando a minha dececcedilatildeo logo me consolou ldquoTodos irmatildeordquo Sem duacutevida Mas por que preccedilo Os dias foram pingando Afeto sobre afeto Segunda tornara-se-me insubstituiacutevel Estava no meu coraccedilatildeo como polvo sadio aorta sentimental anjo da guarda de todos os perigos do meu quotidiano Por isso foi num de repente gelatinoso que dei por mim com os dedos a tocar no tempo do regresso Apercebi-me disso pela algazarra do quartel pelas calviacutecies remanescentes pelas barrigas dilatadas de cerveja pelo fel dos fiacutegados desfeitos pelas rugas da pele pelos medos reassumidos E em cada manhatilde ouvia-se um bruaacute florestal selvagem que era a manifestaccedilatildeo menos demente da alegria de acordar e de riscar mais um nuacutemero no calendaacuterio de parede Apercebi-me tambeacutem desse chegar pelo veacuteu de tristeza que se foi adensando no rosto de Segunda e ateacute pela sua impaciecircncia velada que disfarccedilava com algum autoritarismo sobre as outras crianccedilas Chegou mesmo a vingar-se sobre si proacutepria ausentando-se para dentro respirando os silecircncios da alma Cabia-me preparar Segunda para a nossa inevitaacutevel separaccedilatildeo ndash separaccedilatildeo que eu tambeacutem natildeo desejava tatildeo inseguro me sentia quanto agrave minha capacidade de sobreviver sem ela Mas o que mais me afligia era o natildeo ser capaz de lhe deixar uma razatildeo coerente para o nosso adeus naturalmente definitivo Deixara-a prender-se com o melhor dos seus afetos enquanto eu como adulto racional natildeo passara de um saacutedico e egoiacutesta abandonando-a a todas as incertezas do futuro Retirava-lhe a muleta que eu era mesmo no centro do precipiacutecio Precisava urgentemente duma esperanccedila que lhe garantisse a felicidade E afinal nem lhe podia certificar coisas tatildeo banais como a escola roupa comida Felizmente soacute depois de chegar agrave ilha eacute que percebi que era o maior perdedor Nunca mais acordei ao som da sua voz nunca mais passeei na margem do Cacheu guiado pela sua matildeo nunca mais frui dos poentes vermelhos de fogo com a sua cabeccedila no meu regaccedilo Perdi de uma vez por todas o direito aos seus insoacutelitos presentes um bolo de coco feito pela matildee o passarinho muito inho que apanhava na cerca da palhota e depois domesticava o prazer de comer a primeira manga que a estaccedilatildeo amadurava E acabaram os nossos diaacutelogos onde a Poesia pontificava na contenccedilatildeo das palavras e na extensatildeo dos silecircncios E desta vez foi sobre o meu rosto que voltei a sentir o peso disforme da sua laacutegrima gorda Fiquei sem jeito Falei a Segunda na distacircncia real das nossas terras e das nossas culturas da incerteza do meu futuro bastamente comprometido pela inutilidade dos

16

anos vividos e de todo irrecuperaacuteveis Adensei tudo com verdades dramaacuteticas deixando transparentes a incerteza a cobardia e o pecado da omissatildeo Descrevi-lhe depois as deliacutecias da terra prometida como se fossem dela Antevi-lhe um amanhatilde mentirosamente risonho e deixei-lhe relevada a beleza demagoacutegica da sua paacutetria Olhou-me atordoada inconvencida amuada distante ndash maacutescara que soacute desfez na veacutespera da partida Quando os batelotildees ndash que nos levariam Cacheu abaixo rumo a Bissau ndash chegaram rodeados de barcos-patrulha restavam vinte e quatro horas para estarmos juntos Vivemo-las tatildeo intensamente que me deitei exausto No momento de largar fizemos por nos ignorar Combinaacuteramos evitar o melodrama E Segunda laacute ficou sobre o cais de madeira o dedo na boca os olhos avaramente enxutos assombrando a alegria do meu regresso com a sua recalcada tristeza Ficou sozinha ndash sei laacute com que futuro Ainda hoje sabendo que cresceu e que cumpre o seu destino na paacutetria sem as virtudes que lhe fiz crer dou por mim a soccedilobrar com esta saudade e este remorso Sou-lhe eternamente devedor Se lhe dei alguns meses de comezinha felicidade ele deu-me a coragem de continuar vivo num tempo e num lugar onde a morte chegava a ser uma becircnccedilatildeo do ceacuteu Desses tempos de conviacutevio diaacuterio com as mil presenccedilas da morte haacute imagens que continuam a perseguir-me Bem sei que eacute um disparate jaacute que os meus ressentimentos medos e fantasmas natildeo oferecem resistecircncia de maior Tecircm vindo a diluir-se como a tinta dos maus frescos renascentistas Mas natildeo consigo esquecer-me de Segunda com o seu belo corpo esfaimado a sua resignaccedilatildeo e a sua indiferenccedila perante a presenccedila e a superioridade da tropa Por isso espanto-me que volvidos tantos anos a minha principal referecircncia da Guineacute tenha o tamanho dessa negrinha de olhos grandes e de sorriso branco cujo corpo exalava o perfume inexplorado da floresta e que gostava de se sentar comigo sobre o cais de madeira a ver o sol esconder-se atraacutes da mata de Ohio E que me queimou a alma com uma laacutegrima gorda Segunda deve ser agora uma grande poeta Valha-me esta consolaccedilatildeo sofrida que ser poeta natildeo eacute bem que se deseje nem sequer ao inimigordquo

17

2ordm Ato (Extrato) Os Sonhos do Infante Ediccedilatildeo Jornal de Cultura 1995

ldquoO uacuteltimo sonho o re-encontro Talvez ningueacutem saiba porquecirc nem para quecirc ANTOacuteNIO - Quem sois INFANTE - Que pergunta desnecessaacuteria ANTOacuteNIO - Desculpe Parece-me que o conheccedilo INFANTE - E nem precisas de fazer muito esforccedilo ANTOacuteNIO - Assim de branco INFANTE - Jaacute sei Pareccedilo-te uma noiva de bigode ANTOacuteNIO - Desculpai senhor Jaacute natildeo o via haacute tantos anos INFANTE - Haacute muitos anos ANTOacuteNIO - Andaacuteveis vestido de preto INFANTE - A cor eacute-me indiferente Os seacuteculos purificam os tons escuros Deixam aparar as impurezas Depois vatildeo corando Um dia fica soacute a cor precisa e segura ANTOacuteNIO - Natildeo estou a entender INFANTE

18

- Querias apenas dizer que enquanto os homens satildeo de memoacuteria curta a Histoacuteria encarrega-se de gravar quanto interessa na memoacuteria dos livros e das pedras ANTOacuteNIO - Reconheci-o E natildeo nascemos propriamente no mesmo seacuteculo INFANTE - Seria difiacutecil esquecerem-me Natildeo que o natildeo tenham tentado Aliaacutes este meu paiacutes nunca me mereceu ANTOacuteNIO - Como assim INFANTE - Natildeo teve corpo para arrumar a minha alma Natildeo teve matildeos para agarrar quanto lhe dei ANTOacuteNIO - E isso era possiacutevel INFANTE - Claro que era Bastava que houvesse a mesma grandeza de alma Mas natildeo De descoberta a descoberta foram-se enredando em intrigas em oacutedios em venenos Depois de cada conquista queriam outra conquista e perdiam a primeira ANTOacuteNIO - Mudar pode ser sobreviver INFANTE - Natildeo era mudar Era perder Foi assim que os meus sonhos se foram enchendo de brumas e de silecircncios ANTOacuteNIO - Senhor tanto que se fala de si INFANTE - Agora Este paiacutes sempre viveu de luas Todos os anos vai ao bauacute do passado e desenterra um morto Logo se apressa a ver-lhe os ossos a descobrir-lhe as viacutesceras da virtude do saber dos feitos Depressa sai do anonimato para ser o santo o saacutebio

o heroacutei Durante vinte e quatro horas eacute o bombo da festa a masturbaccedilatildeo coletiva o orgulho da comissatildeo ANTOacuteNIO - Jaacute ouvi isso INFANTE - Agraves vezes esquecem-se dele na praccedila Nem sequer tecircm o cuidado de lhe arrumar outra vez os ossos AFONSO - Consigo eacute diferente INFANTE - Comigo nunca foi diferente Andam agora a assoalhar-me numa pressa escolar que mete doacute Obrigam as criancinhas a saber de mim enchendo-lhes a cabeccedila com sonhos que natildeo sonhei ANTOacuteNIO - Todos dizem que sempre foi um sonhador INFANTE - Eram sonhos meus Originais Agora querem fazer passar por meus os seus proacuteprios sonhos numa acircnsia de rasurar pesadelos Quando sonhava sonhava em grande Nunca fui mediacuteocre CONSTANCcedilA - Isso sabemos INFANTE - Natildeo tanto que o tivessem aprendido ROMUALDO - Viajamos tanto INFANTE - Por necessidade Falta-vos a coragem de aventurar ANTOacuteNIO - Aventurar As nossas aventuras satildeo o que satildeo

19

INFANTE - Apenas JOSEacute - Por vezes quisemos imitar-vos INFANTE - Sem chama DIOGO - Quisemos ir aleacutem da ilha completar outras viagens INFANTE - Sem convicccedilatildeo ANTOacuteNIO - Sabemos navegar INFANTE - Sem rumo que interesse FRADE - Estais a retirar-nos a Poesia INFANTE - Natildeo Apenas a tentar dizer que a Poesia eacute sonho e eacute tanto mais grandiosa quanto maior eacute o sonho FRADE - Desisto de falar INFANTE - Desistir eacute um verbo cobarde Na verdade viveis num paiacutes desistido ANTOacuteNIO - Natildeo temos remissatildeo

INFANTE - Depende da vossa forma de redimir FRADE - Um apelo agrave Histoacuteria por exemplo INFANTE - Dei-vos estas ilhas carregadas de Histoacuteria Fiz delas o poiso de todas as viagens Aqui foram dadas em primeira matildeo as novas de achamento Aqui se desfizeram segredos aqui se informaram povos e culturas aqui o mundo se tornou sabido BEATRIZ - Foram outros tempos INFANTE - E deixaram-nos perder JOSEacute Natildeo tanto assim Ainda temos aviotildees que rapidamente nos trazem outras gentes INFANTE - Poucas DIOGO - E todos os dias sabemos do mundo sobre a hora de qualquer acontecimento INFANTE - Entatildeo porque vos queixais CATARINA - Talvez porque apenas recebemos e nada damos LEONOR - Talvez porque natildeo podemos digerir quanto recebemos ROMUALDO - Talvez porque natildeo temos tempo de sonhar connosco proacuteprios

20

AFONSO - Talvez por causa desta solidatildeo mal quebrada MARIA - Ou por termos as portas mal abertas BELISA - Natildeo termos asas INFANTE - Sois na verdade bem pequenos Natildeo sois capazes de desenterrar os vossos heroacuteis os vossos santos os vossos poetas ANTOacuteNIO - Dos nossos heroacuteis e santos pouco sabemos Permanecem quase todos sob o manto diaacutefano das lendas E os poetas satildeo malditos INFANTE - Todos os poetas satildeo malditos Eacute por isso que satildeo poetas Todos os heroacuteis e santos satildeo lendaacuterios Eacute por isso que permanecem Que conheceis de mim ROMUALDO - Pois Talvez o bastante Ou talvez coisa nenhuma JOSEacute - A vossa imagem de negro no poliacuteptico de Satildeo Vicente eacute uma referecircncia obrigatoacuteria INFANTE - Apenas tecircm referecircncias E no entanto eacute o suficiente para que o sonho aconteccedila Para que preparem todas as viagens e as realizem por seus rumos certos e cheguem agraves terras previstas E aiacute aconteccedilam os outros sonhos os do patildeo e os da cultura FRADE - Isso nos disseram aqui haacute poucos anos E nada aconteceu ANTOacuteNIO - Eis como ficaacutemos pobres e mudos

INFANTE - Mas natildeo presos As vossas amarras satildeo mais inventadas que reais Peguem nos vossos poetas e bebam o sangue da sua Poesia Sem amor natildeo haacute sonho possiacutevel (Saiacuteda falsa) ANTOacuteNIO - Jaacute vos ides INFANTE - Jaacute O tempo de estar na vossa memoacuteria chegou ao fim Volto para as paacuteginas da histoacuteria de um livro que vai ficar intocaacutevel na prateleira da vossa estante Eacute o meu tuacutemulo preferido Natildeo quero que me abandonem nas ruas a desbotar em cartazes Natildeo quero ficar em textos de circunstacircncia em programas tidos de prestiacutegio em espetaacuteculos de teatro sem teatralidade capaz O que eu tinha de ser jaacute fui Se me comeram a carne podem roer-me os ossos A um morto tanto se lhe faz ANTOacuteNIO - Afinal tambeacutem perdeste os sonhos e a vontade de sonhar INFANTE - Soacute sonha quem estaacute vivo Vocecircs estatildeo vivos Podem sonhar (Sai)rdquo

RIMANCE DE DONA BALEIA IMPRESSOtildeES DE BOCA EDICcedilOtildeES DRAC 1992 PP 31-32 E 33

ldquoestava dona baleia - foge foge meu amor a regar o seu jardim ateacute agraves aacuteguas do frio com seu repuxo de prata soacute aiacute te sei segura e sorriso de alfenim a regar o teu jardim quando o foguete estalou com teu repuxo de prata laacute no alto da vigia e sorriso de alfenim anunciando a caccedila mas a canoa da morte (que susto santa maria) corre depressa demais dona baleia - coitada daqui lhe aceno a vida logo parou de aguar feito pedrinha do cais as algas que floriam e grito seu nome drsquoaacutegua

21

bem agrave tona do mar (seu matador quem seraacute) eacute entatildeo que a tristeza procura quantos te amam o medo a afliccedilatildeo Jonas deus iemanjaacute saltam do cais dos olhos de nada lhe serve o grito aos ombros do coraccedilatildeo Nada mais posso fazer um grito aberto se ouve o arpatildeo laacute vai direito em eco de mar perfeito no seu peito embater - baleia agrave vista baleia patildeo-nosso de qualquer jeito ai pobre dona baleia e laacute vai dona baleia como te custa viver fugindo pra natildeo morrer - deus a salve do arpatildeo morreu dona baleia deus a queira proteger arpada de oacutedio velho todo o silecircncio do mar ai pobre dona baleia ficou tinto de vermelho como te custa viver os peixes choram tambeacutem envolta em lenccedilol de sangue mar manso todo rasgado dona baleia laacute vem baba de espuma agrave quilha arrastada ateacute ao cais dona baleia procura seu corpo esquartejado escapar da armadilha nas caldeiras derretido que eacute o arpatildeo voador daacute o patildeo amargurado anjo de ferro esguio e algueacutem haacute de gravar nos seus dentes de marfim eram cinco sois a arder o barco que a perseguiu cinco talhadas de lua o arpatildeo que lhe deu fim que deus lhe quis oferecer no ceacuteu as aves e as nuvens correm do sul para o norte agora dona baleia sobre o mar e sobre a ilha jaacute natildeo lhe custa viverrdquo paira o silecircncio da morte e haacute um poeta branco agrave minha porta a bater natildeo vou abri-la natildeo vou jaacute sei o que vem dizer ai pobre dona baleia como te custa viver agrave costa como um poema

a desfazer-se na areia vieram cinco mareacutes chorar a dona baleia duas choravam espuma - branca nuvem de veratildeo traziam como homenagem um buacutezio em cada matildeo as outras duas chegaram fracas de tanto chorar tanto sal nas suas laacutegrimas tanto sal e tanto mar a quinta mareacute natildeo chora traz apenas no regaccedilo um grande ramo de algas amarrado com um laccedilo deixa-o deposto na costa de seguida reza e canta satildeo cantigas de saudade versos presos na garganta desfeitas satildeo as mareacutes

CARTA DE JOAtildeO VALENTE (RAMINHENSE DA TERCEIRA) A SEU IRMAtildeO EMBARCADO NA CALIFOacuteRNIA (GASTINHAS) OU ENTAtildeO CANTIGAS DE COMO SE PICAM OS OLHOS DA MISEacuteRIA EM PICOS DE ABUNDAcircNCIA

ldquoEscrevo-te esta carta Gostei de saber que tens Pra saber como vais passando Friza e um novo mexim A saudade eacute que nos farta Socircfas clausetas sertatildes Mas por caacute vamos andando E alvaroses dingrim Muito bem graccedilas a Deus Jaacute sei que tens um fogatildeo Nestas linhas que alinhavo Uma trela e talaveija Muito mal desejo aos teus E que jaacute vives no Tatildeo Tameacutem sauacutede Por mim cavo - Mas que sorte salvo seija Desta hora a matildeo na pena E cuma pisca de doacutelas Poucas letras e saberes Te vestiste numa estocirca

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

15

desse privileacutegio Andava eufoacuterico e tambeacutem infantil premiado com o seu sorriso distinto E com a sua pobreza E isso eacute que me constrangia Era uma pobreza sugadora progressiva medonha irresponsaacutevel Segunda era o rosto singular dos seus companheiros de tabanca de Aacutefrica Comiam os restos da tropa Via-lhes as barrigas entumescidas de fome os olhos desvitaminados os ossos salientes sob a pele das disenterias os rostos sujos do chatildeo que lhes servia de cama os cadernos enodoados de terrosas impressotildees digitais Tudo isto me afogava no lodo de um remorso inconsequente e procurava purificar-me no meu afeto por Segunda Dei-lhe uma camisa velha a que cortara as mangas e acinturei com um cordel Ficava-lhe bem Ficou com um ar de rapariguinha exoacutetica tipo modelo para neacutegligeacutee de alta moda No dia seguinte voltou sem a camisa Dera-a ao pai Mas foi a partir desta pequena doaccedilatildeo que virei estilista Mamadu ndash balanta e muccedilulmano ndash herdara de um colono fugido agrave guerra uma velha maacutequina de costura Com ela apertava-nos as fardas a troco de alimentos que surripiaacutevamos da arrecadaccedilatildeo de geacuteneros uns quilos de arroz patildeo oacuteleo latas de conserva Procurei restos de fardas e levei-os ao homem da maacutequina de costura Desenhei um vestido de corpo justo mangas de balatildeo saia com folhos sobrepostos cintura arrematada com laccedilo nas costas ndash tudo dividido pelos dois tecidos possiacuteveis o verde liso e o camuflado ldquoNatildeo nosso sordado Natildeo sei fazerrdquo disse Mamadu Entatildeo talhei alinhavei e dei indicaccedilotildees sobre o que a agulha da maacutequina devia pespontar ldquoNosso sordado ser artistardquo o vestido suspenso pelos ombros e exposto ao olhar admirado de Mamadu Arquivei o elogio e nunca lhe confessei que naquela peccedila de roupa investi toda a minha ciecircncia sobre costura ndash e tambeacutem o meu receio e a minha ignoracircncia Eacute que soacute por acaso o vestido resultara Segunda eacute que ficou ainda mais bonita Pela primeira vez despertara-se-lhe a vaidade de mulher Confundida e enleada mirou-se no espelho do cabo enfermeiro e correu para a tabanca a fim de explorar a seduccedilatildeo do seu vestido novo Poreacutem mais uma vez o imprevisto derrotou-me Segunda apareceu-me com o vestido numa laacutestima Esquecera-me de lhe pedir que o despisse antes de se deitar Mas natildeo desisti Roubei quanto pude na arrecadaccedilatildeo de geacuteneros e fizeram-se vestidos saias calccedilotildees blusas ndash tudo com modelos diferentes - ateacute que fui apanhado pelo capitatildeo que acabou por desconfiar das minhas sucessivas incursotildees agrave palhota do Mamadu ldquoOu vestes todos ou natildeo vestes ningueacutemrdquo ordenou Aceitei o desafio E toca a desenhar a talhar a alinhavar a coser roupas diversas para as crianccedilas da escola Chegou a fazer-se um abate prematuro de fardas para que natildeo faltasse mateacuteria-prima Quando entrei na

escola estremeci Diante de mim estava um pelotatildeo infantil fardado a preceito e sem graccedila Apeteceu-me mandaacute-los despir Pelo menos a nudez dar-lhes-ia na igualdade da cor e da idade o direito agrave diferenccedila Segunda adivinhando a minha dececcedilatildeo logo me consolou ldquoTodos irmatildeordquo Sem duacutevida Mas por que preccedilo Os dias foram pingando Afeto sobre afeto Segunda tornara-se-me insubstituiacutevel Estava no meu coraccedilatildeo como polvo sadio aorta sentimental anjo da guarda de todos os perigos do meu quotidiano Por isso foi num de repente gelatinoso que dei por mim com os dedos a tocar no tempo do regresso Apercebi-me disso pela algazarra do quartel pelas calviacutecies remanescentes pelas barrigas dilatadas de cerveja pelo fel dos fiacutegados desfeitos pelas rugas da pele pelos medos reassumidos E em cada manhatilde ouvia-se um bruaacute florestal selvagem que era a manifestaccedilatildeo menos demente da alegria de acordar e de riscar mais um nuacutemero no calendaacuterio de parede Apercebi-me tambeacutem desse chegar pelo veacuteu de tristeza que se foi adensando no rosto de Segunda e ateacute pela sua impaciecircncia velada que disfarccedilava com algum autoritarismo sobre as outras crianccedilas Chegou mesmo a vingar-se sobre si proacutepria ausentando-se para dentro respirando os silecircncios da alma Cabia-me preparar Segunda para a nossa inevitaacutevel separaccedilatildeo ndash separaccedilatildeo que eu tambeacutem natildeo desejava tatildeo inseguro me sentia quanto agrave minha capacidade de sobreviver sem ela Mas o que mais me afligia era o natildeo ser capaz de lhe deixar uma razatildeo coerente para o nosso adeus naturalmente definitivo Deixara-a prender-se com o melhor dos seus afetos enquanto eu como adulto racional natildeo passara de um saacutedico e egoiacutesta abandonando-a a todas as incertezas do futuro Retirava-lhe a muleta que eu era mesmo no centro do precipiacutecio Precisava urgentemente duma esperanccedila que lhe garantisse a felicidade E afinal nem lhe podia certificar coisas tatildeo banais como a escola roupa comida Felizmente soacute depois de chegar agrave ilha eacute que percebi que era o maior perdedor Nunca mais acordei ao som da sua voz nunca mais passeei na margem do Cacheu guiado pela sua matildeo nunca mais frui dos poentes vermelhos de fogo com a sua cabeccedila no meu regaccedilo Perdi de uma vez por todas o direito aos seus insoacutelitos presentes um bolo de coco feito pela matildee o passarinho muito inho que apanhava na cerca da palhota e depois domesticava o prazer de comer a primeira manga que a estaccedilatildeo amadurava E acabaram os nossos diaacutelogos onde a Poesia pontificava na contenccedilatildeo das palavras e na extensatildeo dos silecircncios E desta vez foi sobre o meu rosto que voltei a sentir o peso disforme da sua laacutegrima gorda Fiquei sem jeito Falei a Segunda na distacircncia real das nossas terras e das nossas culturas da incerteza do meu futuro bastamente comprometido pela inutilidade dos

16

anos vividos e de todo irrecuperaacuteveis Adensei tudo com verdades dramaacuteticas deixando transparentes a incerteza a cobardia e o pecado da omissatildeo Descrevi-lhe depois as deliacutecias da terra prometida como se fossem dela Antevi-lhe um amanhatilde mentirosamente risonho e deixei-lhe relevada a beleza demagoacutegica da sua paacutetria Olhou-me atordoada inconvencida amuada distante ndash maacutescara que soacute desfez na veacutespera da partida Quando os batelotildees ndash que nos levariam Cacheu abaixo rumo a Bissau ndash chegaram rodeados de barcos-patrulha restavam vinte e quatro horas para estarmos juntos Vivemo-las tatildeo intensamente que me deitei exausto No momento de largar fizemos por nos ignorar Combinaacuteramos evitar o melodrama E Segunda laacute ficou sobre o cais de madeira o dedo na boca os olhos avaramente enxutos assombrando a alegria do meu regresso com a sua recalcada tristeza Ficou sozinha ndash sei laacute com que futuro Ainda hoje sabendo que cresceu e que cumpre o seu destino na paacutetria sem as virtudes que lhe fiz crer dou por mim a soccedilobrar com esta saudade e este remorso Sou-lhe eternamente devedor Se lhe dei alguns meses de comezinha felicidade ele deu-me a coragem de continuar vivo num tempo e num lugar onde a morte chegava a ser uma becircnccedilatildeo do ceacuteu Desses tempos de conviacutevio diaacuterio com as mil presenccedilas da morte haacute imagens que continuam a perseguir-me Bem sei que eacute um disparate jaacute que os meus ressentimentos medos e fantasmas natildeo oferecem resistecircncia de maior Tecircm vindo a diluir-se como a tinta dos maus frescos renascentistas Mas natildeo consigo esquecer-me de Segunda com o seu belo corpo esfaimado a sua resignaccedilatildeo e a sua indiferenccedila perante a presenccedila e a superioridade da tropa Por isso espanto-me que volvidos tantos anos a minha principal referecircncia da Guineacute tenha o tamanho dessa negrinha de olhos grandes e de sorriso branco cujo corpo exalava o perfume inexplorado da floresta e que gostava de se sentar comigo sobre o cais de madeira a ver o sol esconder-se atraacutes da mata de Ohio E que me queimou a alma com uma laacutegrima gorda Segunda deve ser agora uma grande poeta Valha-me esta consolaccedilatildeo sofrida que ser poeta natildeo eacute bem que se deseje nem sequer ao inimigordquo

17

2ordm Ato (Extrato) Os Sonhos do Infante Ediccedilatildeo Jornal de Cultura 1995

ldquoO uacuteltimo sonho o re-encontro Talvez ningueacutem saiba porquecirc nem para quecirc ANTOacuteNIO - Quem sois INFANTE - Que pergunta desnecessaacuteria ANTOacuteNIO - Desculpe Parece-me que o conheccedilo INFANTE - E nem precisas de fazer muito esforccedilo ANTOacuteNIO - Assim de branco INFANTE - Jaacute sei Pareccedilo-te uma noiva de bigode ANTOacuteNIO - Desculpai senhor Jaacute natildeo o via haacute tantos anos INFANTE - Haacute muitos anos ANTOacuteNIO - Andaacuteveis vestido de preto INFANTE - A cor eacute-me indiferente Os seacuteculos purificam os tons escuros Deixam aparar as impurezas Depois vatildeo corando Um dia fica soacute a cor precisa e segura ANTOacuteNIO - Natildeo estou a entender INFANTE

18

- Querias apenas dizer que enquanto os homens satildeo de memoacuteria curta a Histoacuteria encarrega-se de gravar quanto interessa na memoacuteria dos livros e das pedras ANTOacuteNIO - Reconheci-o E natildeo nascemos propriamente no mesmo seacuteculo INFANTE - Seria difiacutecil esquecerem-me Natildeo que o natildeo tenham tentado Aliaacutes este meu paiacutes nunca me mereceu ANTOacuteNIO - Como assim INFANTE - Natildeo teve corpo para arrumar a minha alma Natildeo teve matildeos para agarrar quanto lhe dei ANTOacuteNIO - E isso era possiacutevel INFANTE - Claro que era Bastava que houvesse a mesma grandeza de alma Mas natildeo De descoberta a descoberta foram-se enredando em intrigas em oacutedios em venenos Depois de cada conquista queriam outra conquista e perdiam a primeira ANTOacuteNIO - Mudar pode ser sobreviver INFANTE - Natildeo era mudar Era perder Foi assim que os meus sonhos se foram enchendo de brumas e de silecircncios ANTOacuteNIO - Senhor tanto que se fala de si INFANTE - Agora Este paiacutes sempre viveu de luas Todos os anos vai ao bauacute do passado e desenterra um morto Logo se apressa a ver-lhe os ossos a descobrir-lhe as viacutesceras da virtude do saber dos feitos Depressa sai do anonimato para ser o santo o saacutebio

o heroacutei Durante vinte e quatro horas eacute o bombo da festa a masturbaccedilatildeo coletiva o orgulho da comissatildeo ANTOacuteNIO - Jaacute ouvi isso INFANTE - Agraves vezes esquecem-se dele na praccedila Nem sequer tecircm o cuidado de lhe arrumar outra vez os ossos AFONSO - Consigo eacute diferente INFANTE - Comigo nunca foi diferente Andam agora a assoalhar-me numa pressa escolar que mete doacute Obrigam as criancinhas a saber de mim enchendo-lhes a cabeccedila com sonhos que natildeo sonhei ANTOacuteNIO - Todos dizem que sempre foi um sonhador INFANTE - Eram sonhos meus Originais Agora querem fazer passar por meus os seus proacuteprios sonhos numa acircnsia de rasurar pesadelos Quando sonhava sonhava em grande Nunca fui mediacuteocre CONSTANCcedilA - Isso sabemos INFANTE - Natildeo tanto que o tivessem aprendido ROMUALDO - Viajamos tanto INFANTE - Por necessidade Falta-vos a coragem de aventurar ANTOacuteNIO - Aventurar As nossas aventuras satildeo o que satildeo

19

INFANTE - Apenas JOSEacute - Por vezes quisemos imitar-vos INFANTE - Sem chama DIOGO - Quisemos ir aleacutem da ilha completar outras viagens INFANTE - Sem convicccedilatildeo ANTOacuteNIO - Sabemos navegar INFANTE - Sem rumo que interesse FRADE - Estais a retirar-nos a Poesia INFANTE - Natildeo Apenas a tentar dizer que a Poesia eacute sonho e eacute tanto mais grandiosa quanto maior eacute o sonho FRADE - Desisto de falar INFANTE - Desistir eacute um verbo cobarde Na verdade viveis num paiacutes desistido ANTOacuteNIO - Natildeo temos remissatildeo

INFANTE - Depende da vossa forma de redimir FRADE - Um apelo agrave Histoacuteria por exemplo INFANTE - Dei-vos estas ilhas carregadas de Histoacuteria Fiz delas o poiso de todas as viagens Aqui foram dadas em primeira matildeo as novas de achamento Aqui se desfizeram segredos aqui se informaram povos e culturas aqui o mundo se tornou sabido BEATRIZ - Foram outros tempos INFANTE - E deixaram-nos perder JOSEacute Natildeo tanto assim Ainda temos aviotildees que rapidamente nos trazem outras gentes INFANTE - Poucas DIOGO - E todos os dias sabemos do mundo sobre a hora de qualquer acontecimento INFANTE - Entatildeo porque vos queixais CATARINA - Talvez porque apenas recebemos e nada damos LEONOR - Talvez porque natildeo podemos digerir quanto recebemos ROMUALDO - Talvez porque natildeo temos tempo de sonhar connosco proacuteprios

20

AFONSO - Talvez por causa desta solidatildeo mal quebrada MARIA - Ou por termos as portas mal abertas BELISA - Natildeo termos asas INFANTE - Sois na verdade bem pequenos Natildeo sois capazes de desenterrar os vossos heroacuteis os vossos santos os vossos poetas ANTOacuteNIO - Dos nossos heroacuteis e santos pouco sabemos Permanecem quase todos sob o manto diaacutefano das lendas E os poetas satildeo malditos INFANTE - Todos os poetas satildeo malditos Eacute por isso que satildeo poetas Todos os heroacuteis e santos satildeo lendaacuterios Eacute por isso que permanecem Que conheceis de mim ROMUALDO - Pois Talvez o bastante Ou talvez coisa nenhuma JOSEacute - A vossa imagem de negro no poliacuteptico de Satildeo Vicente eacute uma referecircncia obrigatoacuteria INFANTE - Apenas tecircm referecircncias E no entanto eacute o suficiente para que o sonho aconteccedila Para que preparem todas as viagens e as realizem por seus rumos certos e cheguem agraves terras previstas E aiacute aconteccedilam os outros sonhos os do patildeo e os da cultura FRADE - Isso nos disseram aqui haacute poucos anos E nada aconteceu ANTOacuteNIO - Eis como ficaacutemos pobres e mudos

INFANTE - Mas natildeo presos As vossas amarras satildeo mais inventadas que reais Peguem nos vossos poetas e bebam o sangue da sua Poesia Sem amor natildeo haacute sonho possiacutevel (Saiacuteda falsa) ANTOacuteNIO - Jaacute vos ides INFANTE - Jaacute O tempo de estar na vossa memoacuteria chegou ao fim Volto para as paacuteginas da histoacuteria de um livro que vai ficar intocaacutevel na prateleira da vossa estante Eacute o meu tuacutemulo preferido Natildeo quero que me abandonem nas ruas a desbotar em cartazes Natildeo quero ficar em textos de circunstacircncia em programas tidos de prestiacutegio em espetaacuteculos de teatro sem teatralidade capaz O que eu tinha de ser jaacute fui Se me comeram a carne podem roer-me os ossos A um morto tanto se lhe faz ANTOacuteNIO - Afinal tambeacutem perdeste os sonhos e a vontade de sonhar INFANTE - Soacute sonha quem estaacute vivo Vocecircs estatildeo vivos Podem sonhar (Sai)rdquo

RIMANCE DE DONA BALEIA IMPRESSOtildeES DE BOCA EDICcedilOtildeES DRAC 1992 PP 31-32 E 33

ldquoestava dona baleia - foge foge meu amor a regar o seu jardim ateacute agraves aacuteguas do frio com seu repuxo de prata soacute aiacute te sei segura e sorriso de alfenim a regar o teu jardim quando o foguete estalou com teu repuxo de prata laacute no alto da vigia e sorriso de alfenim anunciando a caccedila mas a canoa da morte (que susto santa maria) corre depressa demais dona baleia - coitada daqui lhe aceno a vida logo parou de aguar feito pedrinha do cais as algas que floriam e grito seu nome drsquoaacutegua

21

bem agrave tona do mar (seu matador quem seraacute) eacute entatildeo que a tristeza procura quantos te amam o medo a afliccedilatildeo Jonas deus iemanjaacute saltam do cais dos olhos de nada lhe serve o grito aos ombros do coraccedilatildeo Nada mais posso fazer um grito aberto se ouve o arpatildeo laacute vai direito em eco de mar perfeito no seu peito embater - baleia agrave vista baleia patildeo-nosso de qualquer jeito ai pobre dona baleia e laacute vai dona baleia como te custa viver fugindo pra natildeo morrer - deus a salve do arpatildeo morreu dona baleia deus a queira proteger arpada de oacutedio velho todo o silecircncio do mar ai pobre dona baleia ficou tinto de vermelho como te custa viver os peixes choram tambeacutem envolta em lenccedilol de sangue mar manso todo rasgado dona baleia laacute vem baba de espuma agrave quilha arrastada ateacute ao cais dona baleia procura seu corpo esquartejado escapar da armadilha nas caldeiras derretido que eacute o arpatildeo voador daacute o patildeo amargurado anjo de ferro esguio e algueacutem haacute de gravar nos seus dentes de marfim eram cinco sois a arder o barco que a perseguiu cinco talhadas de lua o arpatildeo que lhe deu fim que deus lhe quis oferecer no ceacuteu as aves e as nuvens correm do sul para o norte agora dona baleia sobre o mar e sobre a ilha jaacute natildeo lhe custa viverrdquo paira o silecircncio da morte e haacute um poeta branco agrave minha porta a bater natildeo vou abri-la natildeo vou jaacute sei o que vem dizer ai pobre dona baleia como te custa viver agrave costa como um poema

a desfazer-se na areia vieram cinco mareacutes chorar a dona baleia duas choravam espuma - branca nuvem de veratildeo traziam como homenagem um buacutezio em cada matildeo as outras duas chegaram fracas de tanto chorar tanto sal nas suas laacutegrimas tanto sal e tanto mar a quinta mareacute natildeo chora traz apenas no regaccedilo um grande ramo de algas amarrado com um laccedilo deixa-o deposto na costa de seguida reza e canta satildeo cantigas de saudade versos presos na garganta desfeitas satildeo as mareacutes

CARTA DE JOAtildeO VALENTE (RAMINHENSE DA TERCEIRA) A SEU IRMAtildeO EMBARCADO NA CALIFOacuteRNIA (GASTINHAS) OU ENTAtildeO CANTIGAS DE COMO SE PICAM OS OLHOS DA MISEacuteRIA EM PICOS DE ABUNDAcircNCIA

ldquoEscrevo-te esta carta Gostei de saber que tens Pra saber como vais passando Friza e um novo mexim A saudade eacute que nos farta Socircfas clausetas sertatildes Mas por caacute vamos andando E alvaroses dingrim Muito bem graccedilas a Deus Jaacute sei que tens um fogatildeo Nestas linhas que alinhavo Uma trela e talaveija Muito mal desejo aos teus E que jaacute vives no Tatildeo Tameacutem sauacutede Por mim cavo - Mas que sorte salvo seija Desta hora a matildeo na pena E cuma pisca de doacutelas Poucas letras e saberes Te vestiste numa estocirca

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

16

anos vividos e de todo irrecuperaacuteveis Adensei tudo com verdades dramaacuteticas deixando transparentes a incerteza a cobardia e o pecado da omissatildeo Descrevi-lhe depois as deliacutecias da terra prometida como se fossem dela Antevi-lhe um amanhatilde mentirosamente risonho e deixei-lhe relevada a beleza demagoacutegica da sua paacutetria Olhou-me atordoada inconvencida amuada distante ndash maacutescara que soacute desfez na veacutespera da partida Quando os batelotildees ndash que nos levariam Cacheu abaixo rumo a Bissau ndash chegaram rodeados de barcos-patrulha restavam vinte e quatro horas para estarmos juntos Vivemo-las tatildeo intensamente que me deitei exausto No momento de largar fizemos por nos ignorar Combinaacuteramos evitar o melodrama E Segunda laacute ficou sobre o cais de madeira o dedo na boca os olhos avaramente enxutos assombrando a alegria do meu regresso com a sua recalcada tristeza Ficou sozinha ndash sei laacute com que futuro Ainda hoje sabendo que cresceu e que cumpre o seu destino na paacutetria sem as virtudes que lhe fiz crer dou por mim a soccedilobrar com esta saudade e este remorso Sou-lhe eternamente devedor Se lhe dei alguns meses de comezinha felicidade ele deu-me a coragem de continuar vivo num tempo e num lugar onde a morte chegava a ser uma becircnccedilatildeo do ceacuteu Desses tempos de conviacutevio diaacuterio com as mil presenccedilas da morte haacute imagens que continuam a perseguir-me Bem sei que eacute um disparate jaacute que os meus ressentimentos medos e fantasmas natildeo oferecem resistecircncia de maior Tecircm vindo a diluir-se como a tinta dos maus frescos renascentistas Mas natildeo consigo esquecer-me de Segunda com o seu belo corpo esfaimado a sua resignaccedilatildeo e a sua indiferenccedila perante a presenccedila e a superioridade da tropa Por isso espanto-me que volvidos tantos anos a minha principal referecircncia da Guineacute tenha o tamanho dessa negrinha de olhos grandes e de sorriso branco cujo corpo exalava o perfume inexplorado da floresta e que gostava de se sentar comigo sobre o cais de madeira a ver o sol esconder-se atraacutes da mata de Ohio E que me queimou a alma com uma laacutegrima gorda Segunda deve ser agora uma grande poeta Valha-me esta consolaccedilatildeo sofrida que ser poeta natildeo eacute bem que se deseje nem sequer ao inimigordquo

17

2ordm Ato (Extrato) Os Sonhos do Infante Ediccedilatildeo Jornal de Cultura 1995

ldquoO uacuteltimo sonho o re-encontro Talvez ningueacutem saiba porquecirc nem para quecirc ANTOacuteNIO - Quem sois INFANTE - Que pergunta desnecessaacuteria ANTOacuteNIO - Desculpe Parece-me que o conheccedilo INFANTE - E nem precisas de fazer muito esforccedilo ANTOacuteNIO - Assim de branco INFANTE - Jaacute sei Pareccedilo-te uma noiva de bigode ANTOacuteNIO - Desculpai senhor Jaacute natildeo o via haacute tantos anos INFANTE - Haacute muitos anos ANTOacuteNIO - Andaacuteveis vestido de preto INFANTE - A cor eacute-me indiferente Os seacuteculos purificam os tons escuros Deixam aparar as impurezas Depois vatildeo corando Um dia fica soacute a cor precisa e segura ANTOacuteNIO - Natildeo estou a entender INFANTE

18

- Querias apenas dizer que enquanto os homens satildeo de memoacuteria curta a Histoacuteria encarrega-se de gravar quanto interessa na memoacuteria dos livros e das pedras ANTOacuteNIO - Reconheci-o E natildeo nascemos propriamente no mesmo seacuteculo INFANTE - Seria difiacutecil esquecerem-me Natildeo que o natildeo tenham tentado Aliaacutes este meu paiacutes nunca me mereceu ANTOacuteNIO - Como assim INFANTE - Natildeo teve corpo para arrumar a minha alma Natildeo teve matildeos para agarrar quanto lhe dei ANTOacuteNIO - E isso era possiacutevel INFANTE - Claro que era Bastava que houvesse a mesma grandeza de alma Mas natildeo De descoberta a descoberta foram-se enredando em intrigas em oacutedios em venenos Depois de cada conquista queriam outra conquista e perdiam a primeira ANTOacuteNIO - Mudar pode ser sobreviver INFANTE - Natildeo era mudar Era perder Foi assim que os meus sonhos se foram enchendo de brumas e de silecircncios ANTOacuteNIO - Senhor tanto que se fala de si INFANTE - Agora Este paiacutes sempre viveu de luas Todos os anos vai ao bauacute do passado e desenterra um morto Logo se apressa a ver-lhe os ossos a descobrir-lhe as viacutesceras da virtude do saber dos feitos Depressa sai do anonimato para ser o santo o saacutebio

o heroacutei Durante vinte e quatro horas eacute o bombo da festa a masturbaccedilatildeo coletiva o orgulho da comissatildeo ANTOacuteNIO - Jaacute ouvi isso INFANTE - Agraves vezes esquecem-se dele na praccedila Nem sequer tecircm o cuidado de lhe arrumar outra vez os ossos AFONSO - Consigo eacute diferente INFANTE - Comigo nunca foi diferente Andam agora a assoalhar-me numa pressa escolar que mete doacute Obrigam as criancinhas a saber de mim enchendo-lhes a cabeccedila com sonhos que natildeo sonhei ANTOacuteNIO - Todos dizem que sempre foi um sonhador INFANTE - Eram sonhos meus Originais Agora querem fazer passar por meus os seus proacuteprios sonhos numa acircnsia de rasurar pesadelos Quando sonhava sonhava em grande Nunca fui mediacuteocre CONSTANCcedilA - Isso sabemos INFANTE - Natildeo tanto que o tivessem aprendido ROMUALDO - Viajamos tanto INFANTE - Por necessidade Falta-vos a coragem de aventurar ANTOacuteNIO - Aventurar As nossas aventuras satildeo o que satildeo

19

INFANTE - Apenas JOSEacute - Por vezes quisemos imitar-vos INFANTE - Sem chama DIOGO - Quisemos ir aleacutem da ilha completar outras viagens INFANTE - Sem convicccedilatildeo ANTOacuteNIO - Sabemos navegar INFANTE - Sem rumo que interesse FRADE - Estais a retirar-nos a Poesia INFANTE - Natildeo Apenas a tentar dizer que a Poesia eacute sonho e eacute tanto mais grandiosa quanto maior eacute o sonho FRADE - Desisto de falar INFANTE - Desistir eacute um verbo cobarde Na verdade viveis num paiacutes desistido ANTOacuteNIO - Natildeo temos remissatildeo

INFANTE - Depende da vossa forma de redimir FRADE - Um apelo agrave Histoacuteria por exemplo INFANTE - Dei-vos estas ilhas carregadas de Histoacuteria Fiz delas o poiso de todas as viagens Aqui foram dadas em primeira matildeo as novas de achamento Aqui se desfizeram segredos aqui se informaram povos e culturas aqui o mundo se tornou sabido BEATRIZ - Foram outros tempos INFANTE - E deixaram-nos perder JOSEacute Natildeo tanto assim Ainda temos aviotildees que rapidamente nos trazem outras gentes INFANTE - Poucas DIOGO - E todos os dias sabemos do mundo sobre a hora de qualquer acontecimento INFANTE - Entatildeo porque vos queixais CATARINA - Talvez porque apenas recebemos e nada damos LEONOR - Talvez porque natildeo podemos digerir quanto recebemos ROMUALDO - Talvez porque natildeo temos tempo de sonhar connosco proacuteprios

20

AFONSO - Talvez por causa desta solidatildeo mal quebrada MARIA - Ou por termos as portas mal abertas BELISA - Natildeo termos asas INFANTE - Sois na verdade bem pequenos Natildeo sois capazes de desenterrar os vossos heroacuteis os vossos santos os vossos poetas ANTOacuteNIO - Dos nossos heroacuteis e santos pouco sabemos Permanecem quase todos sob o manto diaacutefano das lendas E os poetas satildeo malditos INFANTE - Todos os poetas satildeo malditos Eacute por isso que satildeo poetas Todos os heroacuteis e santos satildeo lendaacuterios Eacute por isso que permanecem Que conheceis de mim ROMUALDO - Pois Talvez o bastante Ou talvez coisa nenhuma JOSEacute - A vossa imagem de negro no poliacuteptico de Satildeo Vicente eacute uma referecircncia obrigatoacuteria INFANTE - Apenas tecircm referecircncias E no entanto eacute o suficiente para que o sonho aconteccedila Para que preparem todas as viagens e as realizem por seus rumos certos e cheguem agraves terras previstas E aiacute aconteccedilam os outros sonhos os do patildeo e os da cultura FRADE - Isso nos disseram aqui haacute poucos anos E nada aconteceu ANTOacuteNIO - Eis como ficaacutemos pobres e mudos

INFANTE - Mas natildeo presos As vossas amarras satildeo mais inventadas que reais Peguem nos vossos poetas e bebam o sangue da sua Poesia Sem amor natildeo haacute sonho possiacutevel (Saiacuteda falsa) ANTOacuteNIO - Jaacute vos ides INFANTE - Jaacute O tempo de estar na vossa memoacuteria chegou ao fim Volto para as paacuteginas da histoacuteria de um livro que vai ficar intocaacutevel na prateleira da vossa estante Eacute o meu tuacutemulo preferido Natildeo quero que me abandonem nas ruas a desbotar em cartazes Natildeo quero ficar em textos de circunstacircncia em programas tidos de prestiacutegio em espetaacuteculos de teatro sem teatralidade capaz O que eu tinha de ser jaacute fui Se me comeram a carne podem roer-me os ossos A um morto tanto se lhe faz ANTOacuteNIO - Afinal tambeacutem perdeste os sonhos e a vontade de sonhar INFANTE - Soacute sonha quem estaacute vivo Vocecircs estatildeo vivos Podem sonhar (Sai)rdquo

RIMANCE DE DONA BALEIA IMPRESSOtildeES DE BOCA EDICcedilOtildeES DRAC 1992 PP 31-32 E 33

ldquoestava dona baleia - foge foge meu amor a regar o seu jardim ateacute agraves aacuteguas do frio com seu repuxo de prata soacute aiacute te sei segura e sorriso de alfenim a regar o teu jardim quando o foguete estalou com teu repuxo de prata laacute no alto da vigia e sorriso de alfenim anunciando a caccedila mas a canoa da morte (que susto santa maria) corre depressa demais dona baleia - coitada daqui lhe aceno a vida logo parou de aguar feito pedrinha do cais as algas que floriam e grito seu nome drsquoaacutegua

21

bem agrave tona do mar (seu matador quem seraacute) eacute entatildeo que a tristeza procura quantos te amam o medo a afliccedilatildeo Jonas deus iemanjaacute saltam do cais dos olhos de nada lhe serve o grito aos ombros do coraccedilatildeo Nada mais posso fazer um grito aberto se ouve o arpatildeo laacute vai direito em eco de mar perfeito no seu peito embater - baleia agrave vista baleia patildeo-nosso de qualquer jeito ai pobre dona baleia e laacute vai dona baleia como te custa viver fugindo pra natildeo morrer - deus a salve do arpatildeo morreu dona baleia deus a queira proteger arpada de oacutedio velho todo o silecircncio do mar ai pobre dona baleia ficou tinto de vermelho como te custa viver os peixes choram tambeacutem envolta em lenccedilol de sangue mar manso todo rasgado dona baleia laacute vem baba de espuma agrave quilha arrastada ateacute ao cais dona baleia procura seu corpo esquartejado escapar da armadilha nas caldeiras derretido que eacute o arpatildeo voador daacute o patildeo amargurado anjo de ferro esguio e algueacutem haacute de gravar nos seus dentes de marfim eram cinco sois a arder o barco que a perseguiu cinco talhadas de lua o arpatildeo que lhe deu fim que deus lhe quis oferecer no ceacuteu as aves e as nuvens correm do sul para o norte agora dona baleia sobre o mar e sobre a ilha jaacute natildeo lhe custa viverrdquo paira o silecircncio da morte e haacute um poeta branco agrave minha porta a bater natildeo vou abri-la natildeo vou jaacute sei o que vem dizer ai pobre dona baleia como te custa viver agrave costa como um poema

a desfazer-se na areia vieram cinco mareacutes chorar a dona baleia duas choravam espuma - branca nuvem de veratildeo traziam como homenagem um buacutezio em cada matildeo as outras duas chegaram fracas de tanto chorar tanto sal nas suas laacutegrimas tanto sal e tanto mar a quinta mareacute natildeo chora traz apenas no regaccedilo um grande ramo de algas amarrado com um laccedilo deixa-o deposto na costa de seguida reza e canta satildeo cantigas de saudade versos presos na garganta desfeitas satildeo as mareacutes

CARTA DE JOAtildeO VALENTE (RAMINHENSE DA TERCEIRA) A SEU IRMAtildeO EMBARCADO NA CALIFOacuteRNIA (GASTINHAS) OU ENTAtildeO CANTIGAS DE COMO SE PICAM OS OLHOS DA MISEacuteRIA EM PICOS DE ABUNDAcircNCIA

ldquoEscrevo-te esta carta Gostei de saber que tens Pra saber como vais passando Friza e um novo mexim A saudade eacute que nos farta Socircfas clausetas sertatildes Mas por caacute vamos andando E alvaroses dingrim Muito bem graccedilas a Deus Jaacute sei que tens um fogatildeo Nestas linhas que alinhavo Uma trela e talaveija Muito mal desejo aos teus E que jaacute vives no Tatildeo Tameacutem sauacutede Por mim cavo - Mas que sorte salvo seija Desta hora a matildeo na pena E cuma pisca de doacutelas Poucas letras e saberes Te vestiste numa estocirca

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

17

2ordm Ato (Extrato) Os Sonhos do Infante Ediccedilatildeo Jornal de Cultura 1995

ldquoO uacuteltimo sonho o re-encontro Talvez ningueacutem saiba porquecirc nem para quecirc ANTOacuteNIO - Quem sois INFANTE - Que pergunta desnecessaacuteria ANTOacuteNIO - Desculpe Parece-me que o conheccedilo INFANTE - E nem precisas de fazer muito esforccedilo ANTOacuteNIO - Assim de branco INFANTE - Jaacute sei Pareccedilo-te uma noiva de bigode ANTOacuteNIO - Desculpai senhor Jaacute natildeo o via haacute tantos anos INFANTE - Haacute muitos anos ANTOacuteNIO - Andaacuteveis vestido de preto INFANTE - A cor eacute-me indiferente Os seacuteculos purificam os tons escuros Deixam aparar as impurezas Depois vatildeo corando Um dia fica soacute a cor precisa e segura ANTOacuteNIO - Natildeo estou a entender INFANTE

18

- Querias apenas dizer que enquanto os homens satildeo de memoacuteria curta a Histoacuteria encarrega-se de gravar quanto interessa na memoacuteria dos livros e das pedras ANTOacuteNIO - Reconheci-o E natildeo nascemos propriamente no mesmo seacuteculo INFANTE - Seria difiacutecil esquecerem-me Natildeo que o natildeo tenham tentado Aliaacutes este meu paiacutes nunca me mereceu ANTOacuteNIO - Como assim INFANTE - Natildeo teve corpo para arrumar a minha alma Natildeo teve matildeos para agarrar quanto lhe dei ANTOacuteNIO - E isso era possiacutevel INFANTE - Claro que era Bastava que houvesse a mesma grandeza de alma Mas natildeo De descoberta a descoberta foram-se enredando em intrigas em oacutedios em venenos Depois de cada conquista queriam outra conquista e perdiam a primeira ANTOacuteNIO - Mudar pode ser sobreviver INFANTE - Natildeo era mudar Era perder Foi assim que os meus sonhos se foram enchendo de brumas e de silecircncios ANTOacuteNIO - Senhor tanto que se fala de si INFANTE - Agora Este paiacutes sempre viveu de luas Todos os anos vai ao bauacute do passado e desenterra um morto Logo se apressa a ver-lhe os ossos a descobrir-lhe as viacutesceras da virtude do saber dos feitos Depressa sai do anonimato para ser o santo o saacutebio

o heroacutei Durante vinte e quatro horas eacute o bombo da festa a masturbaccedilatildeo coletiva o orgulho da comissatildeo ANTOacuteNIO - Jaacute ouvi isso INFANTE - Agraves vezes esquecem-se dele na praccedila Nem sequer tecircm o cuidado de lhe arrumar outra vez os ossos AFONSO - Consigo eacute diferente INFANTE - Comigo nunca foi diferente Andam agora a assoalhar-me numa pressa escolar que mete doacute Obrigam as criancinhas a saber de mim enchendo-lhes a cabeccedila com sonhos que natildeo sonhei ANTOacuteNIO - Todos dizem que sempre foi um sonhador INFANTE - Eram sonhos meus Originais Agora querem fazer passar por meus os seus proacuteprios sonhos numa acircnsia de rasurar pesadelos Quando sonhava sonhava em grande Nunca fui mediacuteocre CONSTANCcedilA - Isso sabemos INFANTE - Natildeo tanto que o tivessem aprendido ROMUALDO - Viajamos tanto INFANTE - Por necessidade Falta-vos a coragem de aventurar ANTOacuteNIO - Aventurar As nossas aventuras satildeo o que satildeo

19

INFANTE - Apenas JOSEacute - Por vezes quisemos imitar-vos INFANTE - Sem chama DIOGO - Quisemos ir aleacutem da ilha completar outras viagens INFANTE - Sem convicccedilatildeo ANTOacuteNIO - Sabemos navegar INFANTE - Sem rumo que interesse FRADE - Estais a retirar-nos a Poesia INFANTE - Natildeo Apenas a tentar dizer que a Poesia eacute sonho e eacute tanto mais grandiosa quanto maior eacute o sonho FRADE - Desisto de falar INFANTE - Desistir eacute um verbo cobarde Na verdade viveis num paiacutes desistido ANTOacuteNIO - Natildeo temos remissatildeo

INFANTE - Depende da vossa forma de redimir FRADE - Um apelo agrave Histoacuteria por exemplo INFANTE - Dei-vos estas ilhas carregadas de Histoacuteria Fiz delas o poiso de todas as viagens Aqui foram dadas em primeira matildeo as novas de achamento Aqui se desfizeram segredos aqui se informaram povos e culturas aqui o mundo se tornou sabido BEATRIZ - Foram outros tempos INFANTE - E deixaram-nos perder JOSEacute Natildeo tanto assim Ainda temos aviotildees que rapidamente nos trazem outras gentes INFANTE - Poucas DIOGO - E todos os dias sabemos do mundo sobre a hora de qualquer acontecimento INFANTE - Entatildeo porque vos queixais CATARINA - Talvez porque apenas recebemos e nada damos LEONOR - Talvez porque natildeo podemos digerir quanto recebemos ROMUALDO - Talvez porque natildeo temos tempo de sonhar connosco proacuteprios

20

AFONSO - Talvez por causa desta solidatildeo mal quebrada MARIA - Ou por termos as portas mal abertas BELISA - Natildeo termos asas INFANTE - Sois na verdade bem pequenos Natildeo sois capazes de desenterrar os vossos heroacuteis os vossos santos os vossos poetas ANTOacuteNIO - Dos nossos heroacuteis e santos pouco sabemos Permanecem quase todos sob o manto diaacutefano das lendas E os poetas satildeo malditos INFANTE - Todos os poetas satildeo malditos Eacute por isso que satildeo poetas Todos os heroacuteis e santos satildeo lendaacuterios Eacute por isso que permanecem Que conheceis de mim ROMUALDO - Pois Talvez o bastante Ou talvez coisa nenhuma JOSEacute - A vossa imagem de negro no poliacuteptico de Satildeo Vicente eacute uma referecircncia obrigatoacuteria INFANTE - Apenas tecircm referecircncias E no entanto eacute o suficiente para que o sonho aconteccedila Para que preparem todas as viagens e as realizem por seus rumos certos e cheguem agraves terras previstas E aiacute aconteccedilam os outros sonhos os do patildeo e os da cultura FRADE - Isso nos disseram aqui haacute poucos anos E nada aconteceu ANTOacuteNIO - Eis como ficaacutemos pobres e mudos

INFANTE - Mas natildeo presos As vossas amarras satildeo mais inventadas que reais Peguem nos vossos poetas e bebam o sangue da sua Poesia Sem amor natildeo haacute sonho possiacutevel (Saiacuteda falsa) ANTOacuteNIO - Jaacute vos ides INFANTE - Jaacute O tempo de estar na vossa memoacuteria chegou ao fim Volto para as paacuteginas da histoacuteria de um livro que vai ficar intocaacutevel na prateleira da vossa estante Eacute o meu tuacutemulo preferido Natildeo quero que me abandonem nas ruas a desbotar em cartazes Natildeo quero ficar em textos de circunstacircncia em programas tidos de prestiacutegio em espetaacuteculos de teatro sem teatralidade capaz O que eu tinha de ser jaacute fui Se me comeram a carne podem roer-me os ossos A um morto tanto se lhe faz ANTOacuteNIO - Afinal tambeacutem perdeste os sonhos e a vontade de sonhar INFANTE - Soacute sonha quem estaacute vivo Vocecircs estatildeo vivos Podem sonhar (Sai)rdquo

RIMANCE DE DONA BALEIA IMPRESSOtildeES DE BOCA EDICcedilOtildeES DRAC 1992 PP 31-32 E 33

ldquoestava dona baleia - foge foge meu amor a regar o seu jardim ateacute agraves aacuteguas do frio com seu repuxo de prata soacute aiacute te sei segura e sorriso de alfenim a regar o teu jardim quando o foguete estalou com teu repuxo de prata laacute no alto da vigia e sorriso de alfenim anunciando a caccedila mas a canoa da morte (que susto santa maria) corre depressa demais dona baleia - coitada daqui lhe aceno a vida logo parou de aguar feito pedrinha do cais as algas que floriam e grito seu nome drsquoaacutegua

21

bem agrave tona do mar (seu matador quem seraacute) eacute entatildeo que a tristeza procura quantos te amam o medo a afliccedilatildeo Jonas deus iemanjaacute saltam do cais dos olhos de nada lhe serve o grito aos ombros do coraccedilatildeo Nada mais posso fazer um grito aberto se ouve o arpatildeo laacute vai direito em eco de mar perfeito no seu peito embater - baleia agrave vista baleia patildeo-nosso de qualquer jeito ai pobre dona baleia e laacute vai dona baleia como te custa viver fugindo pra natildeo morrer - deus a salve do arpatildeo morreu dona baleia deus a queira proteger arpada de oacutedio velho todo o silecircncio do mar ai pobre dona baleia ficou tinto de vermelho como te custa viver os peixes choram tambeacutem envolta em lenccedilol de sangue mar manso todo rasgado dona baleia laacute vem baba de espuma agrave quilha arrastada ateacute ao cais dona baleia procura seu corpo esquartejado escapar da armadilha nas caldeiras derretido que eacute o arpatildeo voador daacute o patildeo amargurado anjo de ferro esguio e algueacutem haacute de gravar nos seus dentes de marfim eram cinco sois a arder o barco que a perseguiu cinco talhadas de lua o arpatildeo que lhe deu fim que deus lhe quis oferecer no ceacuteu as aves e as nuvens correm do sul para o norte agora dona baleia sobre o mar e sobre a ilha jaacute natildeo lhe custa viverrdquo paira o silecircncio da morte e haacute um poeta branco agrave minha porta a bater natildeo vou abri-la natildeo vou jaacute sei o que vem dizer ai pobre dona baleia como te custa viver agrave costa como um poema

a desfazer-se na areia vieram cinco mareacutes chorar a dona baleia duas choravam espuma - branca nuvem de veratildeo traziam como homenagem um buacutezio em cada matildeo as outras duas chegaram fracas de tanto chorar tanto sal nas suas laacutegrimas tanto sal e tanto mar a quinta mareacute natildeo chora traz apenas no regaccedilo um grande ramo de algas amarrado com um laccedilo deixa-o deposto na costa de seguida reza e canta satildeo cantigas de saudade versos presos na garganta desfeitas satildeo as mareacutes

CARTA DE JOAtildeO VALENTE (RAMINHENSE DA TERCEIRA) A SEU IRMAtildeO EMBARCADO NA CALIFOacuteRNIA (GASTINHAS) OU ENTAtildeO CANTIGAS DE COMO SE PICAM OS OLHOS DA MISEacuteRIA EM PICOS DE ABUNDAcircNCIA

ldquoEscrevo-te esta carta Gostei de saber que tens Pra saber como vais passando Friza e um novo mexim A saudade eacute que nos farta Socircfas clausetas sertatildes Mas por caacute vamos andando E alvaroses dingrim Muito bem graccedilas a Deus Jaacute sei que tens um fogatildeo Nestas linhas que alinhavo Uma trela e talaveija Muito mal desejo aos teus E que jaacute vives no Tatildeo Tameacutem sauacutede Por mim cavo - Mas que sorte salvo seija Desta hora a matildeo na pena E cuma pisca de doacutelas Poucas letras e saberes Te vestiste numa estocirca

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

18

- Querias apenas dizer que enquanto os homens satildeo de memoacuteria curta a Histoacuteria encarrega-se de gravar quanto interessa na memoacuteria dos livros e das pedras ANTOacuteNIO - Reconheci-o E natildeo nascemos propriamente no mesmo seacuteculo INFANTE - Seria difiacutecil esquecerem-me Natildeo que o natildeo tenham tentado Aliaacutes este meu paiacutes nunca me mereceu ANTOacuteNIO - Como assim INFANTE - Natildeo teve corpo para arrumar a minha alma Natildeo teve matildeos para agarrar quanto lhe dei ANTOacuteNIO - E isso era possiacutevel INFANTE - Claro que era Bastava que houvesse a mesma grandeza de alma Mas natildeo De descoberta a descoberta foram-se enredando em intrigas em oacutedios em venenos Depois de cada conquista queriam outra conquista e perdiam a primeira ANTOacuteNIO - Mudar pode ser sobreviver INFANTE - Natildeo era mudar Era perder Foi assim que os meus sonhos se foram enchendo de brumas e de silecircncios ANTOacuteNIO - Senhor tanto que se fala de si INFANTE - Agora Este paiacutes sempre viveu de luas Todos os anos vai ao bauacute do passado e desenterra um morto Logo se apressa a ver-lhe os ossos a descobrir-lhe as viacutesceras da virtude do saber dos feitos Depressa sai do anonimato para ser o santo o saacutebio

o heroacutei Durante vinte e quatro horas eacute o bombo da festa a masturbaccedilatildeo coletiva o orgulho da comissatildeo ANTOacuteNIO - Jaacute ouvi isso INFANTE - Agraves vezes esquecem-se dele na praccedila Nem sequer tecircm o cuidado de lhe arrumar outra vez os ossos AFONSO - Consigo eacute diferente INFANTE - Comigo nunca foi diferente Andam agora a assoalhar-me numa pressa escolar que mete doacute Obrigam as criancinhas a saber de mim enchendo-lhes a cabeccedila com sonhos que natildeo sonhei ANTOacuteNIO - Todos dizem que sempre foi um sonhador INFANTE - Eram sonhos meus Originais Agora querem fazer passar por meus os seus proacuteprios sonhos numa acircnsia de rasurar pesadelos Quando sonhava sonhava em grande Nunca fui mediacuteocre CONSTANCcedilA - Isso sabemos INFANTE - Natildeo tanto que o tivessem aprendido ROMUALDO - Viajamos tanto INFANTE - Por necessidade Falta-vos a coragem de aventurar ANTOacuteNIO - Aventurar As nossas aventuras satildeo o que satildeo

19

INFANTE - Apenas JOSEacute - Por vezes quisemos imitar-vos INFANTE - Sem chama DIOGO - Quisemos ir aleacutem da ilha completar outras viagens INFANTE - Sem convicccedilatildeo ANTOacuteNIO - Sabemos navegar INFANTE - Sem rumo que interesse FRADE - Estais a retirar-nos a Poesia INFANTE - Natildeo Apenas a tentar dizer que a Poesia eacute sonho e eacute tanto mais grandiosa quanto maior eacute o sonho FRADE - Desisto de falar INFANTE - Desistir eacute um verbo cobarde Na verdade viveis num paiacutes desistido ANTOacuteNIO - Natildeo temos remissatildeo

INFANTE - Depende da vossa forma de redimir FRADE - Um apelo agrave Histoacuteria por exemplo INFANTE - Dei-vos estas ilhas carregadas de Histoacuteria Fiz delas o poiso de todas as viagens Aqui foram dadas em primeira matildeo as novas de achamento Aqui se desfizeram segredos aqui se informaram povos e culturas aqui o mundo se tornou sabido BEATRIZ - Foram outros tempos INFANTE - E deixaram-nos perder JOSEacute Natildeo tanto assim Ainda temos aviotildees que rapidamente nos trazem outras gentes INFANTE - Poucas DIOGO - E todos os dias sabemos do mundo sobre a hora de qualquer acontecimento INFANTE - Entatildeo porque vos queixais CATARINA - Talvez porque apenas recebemos e nada damos LEONOR - Talvez porque natildeo podemos digerir quanto recebemos ROMUALDO - Talvez porque natildeo temos tempo de sonhar connosco proacuteprios

20

AFONSO - Talvez por causa desta solidatildeo mal quebrada MARIA - Ou por termos as portas mal abertas BELISA - Natildeo termos asas INFANTE - Sois na verdade bem pequenos Natildeo sois capazes de desenterrar os vossos heroacuteis os vossos santos os vossos poetas ANTOacuteNIO - Dos nossos heroacuteis e santos pouco sabemos Permanecem quase todos sob o manto diaacutefano das lendas E os poetas satildeo malditos INFANTE - Todos os poetas satildeo malditos Eacute por isso que satildeo poetas Todos os heroacuteis e santos satildeo lendaacuterios Eacute por isso que permanecem Que conheceis de mim ROMUALDO - Pois Talvez o bastante Ou talvez coisa nenhuma JOSEacute - A vossa imagem de negro no poliacuteptico de Satildeo Vicente eacute uma referecircncia obrigatoacuteria INFANTE - Apenas tecircm referecircncias E no entanto eacute o suficiente para que o sonho aconteccedila Para que preparem todas as viagens e as realizem por seus rumos certos e cheguem agraves terras previstas E aiacute aconteccedilam os outros sonhos os do patildeo e os da cultura FRADE - Isso nos disseram aqui haacute poucos anos E nada aconteceu ANTOacuteNIO - Eis como ficaacutemos pobres e mudos

INFANTE - Mas natildeo presos As vossas amarras satildeo mais inventadas que reais Peguem nos vossos poetas e bebam o sangue da sua Poesia Sem amor natildeo haacute sonho possiacutevel (Saiacuteda falsa) ANTOacuteNIO - Jaacute vos ides INFANTE - Jaacute O tempo de estar na vossa memoacuteria chegou ao fim Volto para as paacuteginas da histoacuteria de um livro que vai ficar intocaacutevel na prateleira da vossa estante Eacute o meu tuacutemulo preferido Natildeo quero que me abandonem nas ruas a desbotar em cartazes Natildeo quero ficar em textos de circunstacircncia em programas tidos de prestiacutegio em espetaacuteculos de teatro sem teatralidade capaz O que eu tinha de ser jaacute fui Se me comeram a carne podem roer-me os ossos A um morto tanto se lhe faz ANTOacuteNIO - Afinal tambeacutem perdeste os sonhos e a vontade de sonhar INFANTE - Soacute sonha quem estaacute vivo Vocecircs estatildeo vivos Podem sonhar (Sai)rdquo

RIMANCE DE DONA BALEIA IMPRESSOtildeES DE BOCA EDICcedilOtildeES DRAC 1992 PP 31-32 E 33

ldquoestava dona baleia - foge foge meu amor a regar o seu jardim ateacute agraves aacuteguas do frio com seu repuxo de prata soacute aiacute te sei segura e sorriso de alfenim a regar o teu jardim quando o foguete estalou com teu repuxo de prata laacute no alto da vigia e sorriso de alfenim anunciando a caccedila mas a canoa da morte (que susto santa maria) corre depressa demais dona baleia - coitada daqui lhe aceno a vida logo parou de aguar feito pedrinha do cais as algas que floriam e grito seu nome drsquoaacutegua

21

bem agrave tona do mar (seu matador quem seraacute) eacute entatildeo que a tristeza procura quantos te amam o medo a afliccedilatildeo Jonas deus iemanjaacute saltam do cais dos olhos de nada lhe serve o grito aos ombros do coraccedilatildeo Nada mais posso fazer um grito aberto se ouve o arpatildeo laacute vai direito em eco de mar perfeito no seu peito embater - baleia agrave vista baleia patildeo-nosso de qualquer jeito ai pobre dona baleia e laacute vai dona baleia como te custa viver fugindo pra natildeo morrer - deus a salve do arpatildeo morreu dona baleia deus a queira proteger arpada de oacutedio velho todo o silecircncio do mar ai pobre dona baleia ficou tinto de vermelho como te custa viver os peixes choram tambeacutem envolta em lenccedilol de sangue mar manso todo rasgado dona baleia laacute vem baba de espuma agrave quilha arrastada ateacute ao cais dona baleia procura seu corpo esquartejado escapar da armadilha nas caldeiras derretido que eacute o arpatildeo voador daacute o patildeo amargurado anjo de ferro esguio e algueacutem haacute de gravar nos seus dentes de marfim eram cinco sois a arder o barco que a perseguiu cinco talhadas de lua o arpatildeo que lhe deu fim que deus lhe quis oferecer no ceacuteu as aves e as nuvens correm do sul para o norte agora dona baleia sobre o mar e sobre a ilha jaacute natildeo lhe custa viverrdquo paira o silecircncio da morte e haacute um poeta branco agrave minha porta a bater natildeo vou abri-la natildeo vou jaacute sei o que vem dizer ai pobre dona baleia como te custa viver agrave costa como um poema

a desfazer-se na areia vieram cinco mareacutes chorar a dona baleia duas choravam espuma - branca nuvem de veratildeo traziam como homenagem um buacutezio em cada matildeo as outras duas chegaram fracas de tanto chorar tanto sal nas suas laacutegrimas tanto sal e tanto mar a quinta mareacute natildeo chora traz apenas no regaccedilo um grande ramo de algas amarrado com um laccedilo deixa-o deposto na costa de seguida reza e canta satildeo cantigas de saudade versos presos na garganta desfeitas satildeo as mareacutes

CARTA DE JOAtildeO VALENTE (RAMINHENSE DA TERCEIRA) A SEU IRMAtildeO EMBARCADO NA CALIFOacuteRNIA (GASTINHAS) OU ENTAtildeO CANTIGAS DE COMO SE PICAM OS OLHOS DA MISEacuteRIA EM PICOS DE ABUNDAcircNCIA

ldquoEscrevo-te esta carta Gostei de saber que tens Pra saber como vais passando Friza e um novo mexim A saudade eacute que nos farta Socircfas clausetas sertatildes Mas por caacute vamos andando E alvaroses dingrim Muito bem graccedilas a Deus Jaacute sei que tens um fogatildeo Nestas linhas que alinhavo Uma trela e talaveija Muito mal desejo aos teus E que jaacute vives no Tatildeo Tameacutem sauacutede Por mim cavo - Mas que sorte salvo seija Desta hora a matildeo na pena E cuma pisca de doacutelas Poucas letras e saberes Te vestiste numa estocirca

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

19

INFANTE - Apenas JOSEacute - Por vezes quisemos imitar-vos INFANTE - Sem chama DIOGO - Quisemos ir aleacutem da ilha completar outras viagens INFANTE - Sem convicccedilatildeo ANTOacuteNIO - Sabemos navegar INFANTE - Sem rumo que interesse FRADE - Estais a retirar-nos a Poesia INFANTE - Natildeo Apenas a tentar dizer que a Poesia eacute sonho e eacute tanto mais grandiosa quanto maior eacute o sonho FRADE - Desisto de falar INFANTE - Desistir eacute um verbo cobarde Na verdade viveis num paiacutes desistido ANTOacuteNIO - Natildeo temos remissatildeo

INFANTE - Depende da vossa forma de redimir FRADE - Um apelo agrave Histoacuteria por exemplo INFANTE - Dei-vos estas ilhas carregadas de Histoacuteria Fiz delas o poiso de todas as viagens Aqui foram dadas em primeira matildeo as novas de achamento Aqui se desfizeram segredos aqui se informaram povos e culturas aqui o mundo se tornou sabido BEATRIZ - Foram outros tempos INFANTE - E deixaram-nos perder JOSEacute Natildeo tanto assim Ainda temos aviotildees que rapidamente nos trazem outras gentes INFANTE - Poucas DIOGO - E todos os dias sabemos do mundo sobre a hora de qualquer acontecimento INFANTE - Entatildeo porque vos queixais CATARINA - Talvez porque apenas recebemos e nada damos LEONOR - Talvez porque natildeo podemos digerir quanto recebemos ROMUALDO - Talvez porque natildeo temos tempo de sonhar connosco proacuteprios

20

AFONSO - Talvez por causa desta solidatildeo mal quebrada MARIA - Ou por termos as portas mal abertas BELISA - Natildeo termos asas INFANTE - Sois na verdade bem pequenos Natildeo sois capazes de desenterrar os vossos heroacuteis os vossos santos os vossos poetas ANTOacuteNIO - Dos nossos heroacuteis e santos pouco sabemos Permanecem quase todos sob o manto diaacutefano das lendas E os poetas satildeo malditos INFANTE - Todos os poetas satildeo malditos Eacute por isso que satildeo poetas Todos os heroacuteis e santos satildeo lendaacuterios Eacute por isso que permanecem Que conheceis de mim ROMUALDO - Pois Talvez o bastante Ou talvez coisa nenhuma JOSEacute - A vossa imagem de negro no poliacuteptico de Satildeo Vicente eacute uma referecircncia obrigatoacuteria INFANTE - Apenas tecircm referecircncias E no entanto eacute o suficiente para que o sonho aconteccedila Para que preparem todas as viagens e as realizem por seus rumos certos e cheguem agraves terras previstas E aiacute aconteccedilam os outros sonhos os do patildeo e os da cultura FRADE - Isso nos disseram aqui haacute poucos anos E nada aconteceu ANTOacuteNIO - Eis como ficaacutemos pobres e mudos

INFANTE - Mas natildeo presos As vossas amarras satildeo mais inventadas que reais Peguem nos vossos poetas e bebam o sangue da sua Poesia Sem amor natildeo haacute sonho possiacutevel (Saiacuteda falsa) ANTOacuteNIO - Jaacute vos ides INFANTE - Jaacute O tempo de estar na vossa memoacuteria chegou ao fim Volto para as paacuteginas da histoacuteria de um livro que vai ficar intocaacutevel na prateleira da vossa estante Eacute o meu tuacutemulo preferido Natildeo quero que me abandonem nas ruas a desbotar em cartazes Natildeo quero ficar em textos de circunstacircncia em programas tidos de prestiacutegio em espetaacuteculos de teatro sem teatralidade capaz O que eu tinha de ser jaacute fui Se me comeram a carne podem roer-me os ossos A um morto tanto se lhe faz ANTOacuteNIO - Afinal tambeacutem perdeste os sonhos e a vontade de sonhar INFANTE - Soacute sonha quem estaacute vivo Vocecircs estatildeo vivos Podem sonhar (Sai)rdquo

RIMANCE DE DONA BALEIA IMPRESSOtildeES DE BOCA EDICcedilOtildeES DRAC 1992 PP 31-32 E 33

ldquoestava dona baleia - foge foge meu amor a regar o seu jardim ateacute agraves aacuteguas do frio com seu repuxo de prata soacute aiacute te sei segura e sorriso de alfenim a regar o teu jardim quando o foguete estalou com teu repuxo de prata laacute no alto da vigia e sorriso de alfenim anunciando a caccedila mas a canoa da morte (que susto santa maria) corre depressa demais dona baleia - coitada daqui lhe aceno a vida logo parou de aguar feito pedrinha do cais as algas que floriam e grito seu nome drsquoaacutegua

21

bem agrave tona do mar (seu matador quem seraacute) eacute entatildeo que a tristeza procura quantos te amam o medo a afliccedilatildeo Jonas deus iemanjaacute saltam do cais dos olhos de nada lhe serve o grito aos ombros do coraccedilatildeo Nada mais posso fazer um grito aberto se ouve o arpatildeo laacute vai direito em eco de mar perfeito no seu peito embater - baleia agrave vista baleia patildeo-nosso de qualquer jeito ai pobre dona baleia e laacute vai dona baleia como te custa viver fugindo pra natildeo morrer - deus a salve do arpatildeo morreu dona baleia deus a queira proteger arpada de oacutedio velho todo o silecircncio do mar ai pobre dona baleia ficou tinto de vermelho como te custa viver os peixes choram tambeacutem envolta em lenccedilol de sangue mar manso todo rasgado dona baleia laacute vem baba de espuma agrave quilha arrastada ateacute ao cais dona baleia procura seu corpo esquartejado escapar da armadilha nas caldeiras derretido que eacute o arpatildeo voador daacute o patildeo amargurado anjo de ferro esguio e algueacutem haacute de gravar nos seus dentes de marfim eram cinco sois a arder o barco que a perseguiu cinco talhadas de lua o arpatildeo que lhe deu fim que deus lhe quis oferecer no ceacuteu as aves e as nuvens correm do sul para o norte agora dona baleia sobre o mar e sobre a ilha jaacute natildeo lhe custa viverrdquo paira o silecircncio da morte e haacute um poeta branco agrave minha porta a bater natildeo vou abri-la natildeo vou jaacute sei o que vem dizer ai pobre dona baleia como te custa viver agrave costa como um poema

a desfazer-se na areia vieram cinco mareacutes chorar a dona baleia duas choravam espuma - branca nuvem de veratildeo traziam como homenagem um buacutezio em cada matildeo as outras duas chegaram fracas de tanto chorar tanto sal nas suas laacutegrimas tanto sal e tanto mar a quinta mareacute natildeo chora traz apenas no regaccedilo um grande ramo de algas amarrado com um laccedilo deixa-o deposto na costa de seguida reza e canta satildeo cantigas de saudade versos presos na garganta desfeitas satildeo as mareacutes

CARTA DE JOAtildeO VALENTE (RAMINHENSE DA TERCEIRA) A SEU IRMAtildeO EMBARCADO NA CALIFOacuteRNIA (GASTINHAS) OU ENTAtildeO CANTIGAS DE COMO SE PICAM OS OLHOS DA MISEacuteRIA EM PICOS DE ABUNDAcircNCIA

ldquoEscrevo-te esta carta Gostei de saber que tens Pra saber como vais passando Friza e um novo mexim A saudade eacute que nos farta Socircfas clausetas sertatildes Mas por caacute vamos andando E alvaroses dingrim Muito bem graccedilas a Deus Jaacute sei que tens um fogatildeo Nestas linhas que alinhavo Uma trela e talaveija Muito mal desejo aos teus E que jaacute vives no Tatildeo Tameacutem sauacutede Por mim cavo - Mas que sorte salvo seija Desta hora a matildeo na pena E cuma pisca de doacutelas Poucas letras e saberes Te vestiste numa estocirca

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

20

AFONSO - Talvez por causa desta solidatildeo mal quebrada MARIA - Ou por termos as portas mal abertas BELISA - Natildeo termos asas INFANTE - Sois na verdade bem pequenos Natildeo sois capazes de desenterrar os vossos heroacuteis os vossos santos os vossos poetas ANTOacuteNIO - Dos nossos heroacuteis e santos pouco sabemos Permanecem quase todos sob o manto diaacutefano das lendas E os poetas satildeo malditos INFANTE - Todos os poetas satildeo malditos Eacute por isso que satildeo poetas Todos os heroacuteis e santos satildeo lendaacuterios Eacute por isso que permanecem Que conheceis de mim ROMUALDO - Pois Talvez o bastante Ou talvez coisa nenhuma JOSEacute - A vossa imagem de negro no poliacuteptico de Satildeo Vicente eacute uma referecircncia obrigatoacuteria INFANTE - Apenas tecircm referecircncias E no entanto eacute o suficiente para que o sonho aconteccedila Para que preparem todas as viagens e as realizem por seus rumos certos e cheguem agraves terras previstas E aiacute aconteccedilam os outros sonhos os do patildeo e os da cultura FRADE - Isso nos disseram aqui haacute poucos anos E nada aconteceu ANTOacuteNIO - Eis como ficaacutemos pobres e mudos

INFANTE - Mas natildeo presos As vossas amarras satildeo mais inventadas que reais Peguem nos vossos poetas e bebam o sangue da sua Poesia Sem amor natildeo haacute sonho possiacutevel (Saiacuteda falsa) ANTOacuteNIO - Jaacute vos ides INFANTE - Jaacute O tempo de estar na vossa memoacuteria chegou ao fim Volto para as paacuteginas da histoacuteria de um livro que vai ficar intocaacutevel na prateleira da vossa estante Eacute o meu tuacutemulo preferido Natildeo quero que me abandonem nas ruas a desbotar em cartazes Natildeo quero ficar em textos de circunstacircncia em programas tidos de prestiacutegio em espetaacuteculos de teatro sem teatralidade capaz O que eu tinha de ser jaacute fui Se me comeram a carne podem roer-me os ossos A um morto tanto se lhe faz ANTOacuteNIO - Afinal tambeacutem perdeste os sonhos e a vontade de sonhar INFANTE - Soacute sonha quem estaacute vivo Vocecircs estatildeo vivos Podem sonhar (Sai)rdquo

RIMANCE DE DONA BALEIA IMPRESSOtildeES DE BOCA EDICcedilOtildeES DRAC 1992 PP 31-32 E 33

ldquoestava dona baleia - foge foge meu amor a regar o seu jardim ateacute agraves aacuteguas do frio com seu repuxo de prata soacute aiacute te sei segura e sorriso de alfenim a regar o teu jardim quando o foguete estalou com teu repuxo de prata laacute no alto da vigia e sorriso de alfenim anunciando a caccedila mas a canoa da morte (que susto santa maria) corre depressa demais dona baleia - coitada daqui lhe aceno a vida logo parou de aguar feito pedrinha do cais as algas que floriam e grito seu nome drsquoaacutegua

21

bem agrave tona do mar (seu matador quem seraacute) eacute entatildeo que a tristeza procura quantos te amam o medo a afliccedilatildeo Jonas deus iemanjaacute saltam do cais dos olhos de nada lhe serve o grito aos ombros do coraccedilatildeo Nada mais posso fazer um grito aberto se ouve o arpatildeo laacute vai direito em eco de mar perfeito no seu peito embater - baleia agrave vista baleia patildeo-nosso de qualquer jeito ai pobre dona baleia e laacute vai dona baleia como te custa viver fugindo pra natildeo morrer - deus a salve do arpatildeo morreu dona baleia deus a queira proteger arpada de oacutedio velho todo o silecircncio do mar ai pobre dona baleia ficou tinto de vermelho como te custa viver os peixes choram tambeacutem envolta em lenccedilol de sangue mar manso todo rasgado dona baleia laacute vem baba de espuma agrave quilha arrastada ateacute ao cais dona baleia procura seu corpo esquartejado escapar da armadilha nas caldeiras derretido que eacute o arpatildeo voador daacute o patildeo amargurado anjo de ferro esguio e algueacutem haacute de gravar nos seus dentes de marfim eram cinco sois a arder o barco que a perseguiu cinco talhadas de lua o arpatildeo que lhe deu fim que deus lhe quis oferecer no ceacuteu as aves e as nuvens correm do sul para o norte agora dona baleia sobre o mar e sobre a ilha jaacute natildeo lhe custa viverrdquo paira o silecircncio da morte e haacute um poeta branco agrave minha porta a bater natildeo vou abri-la natildeo vou jaacute sei o que vem dizer ai pobre dona baleia como te custa viver agrave costa como um poema

a desfazer-se na areia vieram cinco mareacutes chorar a dona baleia duas choravam espuma - branca nuvem de veratildeo traziam como homenagem um buacutezio em cada matildeo as outras duas chegaram fracas de tanto chorar tanto sal nas suas laacutegrimas tanto sal e tanto mar a quinta mareacute natildeo chora traz apenas no regaccedilo um grande ramo de algas amarrado com um laccedilo deixa-o deposto na costa de seguida reza e canta satildeo cantigas de saudade versos presos na garganta desfeitas satildeo as mareacutes

CARTA DE JOAtildeO VALENTE (RAMINHENSE DA TERCEIRA) A SEU IRMAtildeO EMBARCADO NA CALIFOacuteRNIA (GASTINHAS) OU ENTAtildeO CANTIGAS DE COMO SE PICAM OS OLHOS DA MISEacuteRIA EM PICOS DE ABUNDAcircNCIA

ldquoEscrevo-te esta carta Gostei de saber que tens Pra saber como vais passando Friza e um novo mexim A saudade eacute que nos farta Socircfas clausetas sertatildes Mas por caacute vamos andando E alvaroses dingrim Muito bem graccedilas a Deus Jaacute sei que tens um fogatildeo Nestas linhas que alinhavo Uma trela e talaveija Muito mal desejo aos teus E que jaacute vives no Tatildeo Tameacutem sauacutede Por mim cavo - Mas que sorte salvo seija Desta hora a matildeo na pena E cuma pisca de doacutelas Poucas letras e saberes Te vestiste numa estocirca

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

21

bem agrave tona do mar (seu matador quem seraacute) eacute entatildeo que a tristeza procura quantos te amam o medo a afliccedilatildeo Jonas deus iemanjaacute saltam do cais dos olhos de nada lhe serve o grito aos ombros do coraccedilatildeo Nada mais posso fazer um grito aberto se ouve o arpatildeo laacute vai direito em eco de mar perfeito no seu peito embater - baleia agrave vista baleia patildeo-nosso de qualquer jeito ai pobre dona baleia e laacute vai dona baleia como te custa viver fugindo pra natildeo morrer - deus a salve do arpatildeo morreu dona baleia deus a queira proteger arpada de oacutedio velho todo o silecircncio do mar ai pobre dona baleia ficou tinto de vermelho como te custa viver os peixes choram tambeacutem envolta em lenccedilol de sangue mar manso todo rasgado dona baleia laacute vem baba de espuma agrave quilha arrastada ateacute ao cais dona baleia procura seu corpo esquartejado escapar da armadilha nas caldeiras derretido que eacute o arpatildeo voador daacute o patildeo amargurado anjo de ferro esguio e algueacutem haacute de gravar nos seus dentes de marfim eram cinco sois a arder o barco que a perseguiu cinco talhadas de lua o arpatildeo que lhe deu fim que deus lhe quis oferecer no ceacuteu as aves e as nuvens correm do sul para o norte agora dona baleia sobre o mar e sobre a ilha jaacute natildeo lhe custa viverrdquo paira o silecircncio da morte e haacute um poeta branco agrave minha porta a bater natildeo vou abri-la natildeo vou jaacute sei o que vem dizer ai pobre dona baleia como te custa viver agrave costa como um poema

a desfazer-se na areia vieram cinco mareacutes chorar a dona baleia duas choravam espuma - branca nuvem de veratildeo traziam como homenagem um buacutezio em cada matildeo as outras duas chegaram fracas de tanto chorar tanto sal nas suas laacutegrimas tanto sal e tanto mar a quinta mareacute natildeo chora traz apenas no regaccedilo um grande ramo de algas amarrado com um laccedilo deixa-o deposto na costa de seguida reza e canta satildeo cantigas de saudade versos presos na garganta desfeitas satildeo as mareacutes

CARTA DE JOAtildeO VALENTE (RAMINHENSE DA TERCEIRA) A SEU IRMAtildeO EMBARCADO NA CALIFOacuteRNIA (GASTINHAS) OU ENTAtildeO CANTIGAS DE COMO SE PICAM OS OLHOS DA MISEacuteRIA EM PICOS DE ABUNDAcircNCIA

ldquoEscrevo-te esta carta Gostei de saber que tens Pra saber como vais passando Friza e um novo mexim A saudade eacute que nos farta Socircfas clausetas sertatildes Mas por caacute vamos andando E alvaroses dingrim Muito bem graccedilas a Deus Jaacute sei que tens um fogatildeo Nestas linhas que alinhavo Uma trela e talaveija Muito mal desejo aos teus E que jaacute vives no Tatildeo Tameacutem sauacutede Por mim cavo - Mas que sorte salvo seija Desta hora a matildeo na pena E cuma pisca de doacutelas Poucas letras e saberes Te vestiste numa estocirca

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

22

Tua carta tatildeo pequena - Isseacutequeacute brunir violas Que nos fala em teus haveres Nem fidalgo de Lisboa Caacute ficou o teu vazio Tudo parece um ingano Em manhatilde de cravos goivos Quase choro de contente (Lembro que o ar tava frio Que terra eacute essa mano Rosa e Manel tavam noivos) Que daacute tanto de repente E a saudade se quedou Quando estiveres da banda Como caldo na tigela (E se isto puder ser) No coraccedilatildeo que estralou Tira retratos e manda Como vidro na janela Que a gente gosta de ver Mas juntaste peacute-de-meia Vocecircs e essas grandes vistas Jaacute tens um bum bocado Coloridas ndash um consocirclo Isso eacute terra de matildeo cheia Mesmo co mexim das fitas Taleigo bem aviado Anda laacute Natildeo seijas tolo E antes que me esqueccedila A roipa poliestra Tu diz-me se vens croar Fica mesmo um assento Pro veratildeo Natildeo aconteccedila domingo da nossa festa Depois natildeo teres lugar Farei grande luzimento Nos bocircdos do Esprito Santo E as sueacuteras proacutes pequenos Os pilhoiros estatildeo dados Tameacutem lsquostatildeo agrave desbancar E eu preciso saber quanto lsquoStatildeo gordinhos e morenos Daacutes pelos bezerros mercados Cabritinhos a saltar Praacute funccedilatildeo Que com certeza Mas quem vai ficar caipora Queres de tudo abundanccedila Eacute Maria a minha dona Socircpas e carne na mesa Cum vestido de sinhora E muacutesica na brianccedila Nem burrinha de atafona Soacute o gosto da salvaccedilatildeo Seija pela vossa sauacutede Vocecircs virem este ano (Tanta abundanccedila nos dais) E termos (oh coraccedilatildeo) Que Deus sempre vos ajude Em casa um amercano E depare cada vez mais A saca drsquoincomendas Nessa terra de grandeza

Coas roipas que natildeo usas Agora as novidades Jaacute chegou Natildeo haacute imendas Satildeo as mesmas da tristeza Nem nas calccedilas nem nas blusas Do levantar agraves trindades E dizias que as mandavas O que primeiro entristeceu Natildeo por ser de coisas raras E que jaacute dorme no chatildeo Que eram roipas muito usadas Foi ti Jaquim que morreu Afinal buas e caras Cum malzim do coraccedilatildeo Fica tudo como um prego A Galanta jaacute pariu E caacute datildeo-nos muito jeito uma bezerra amarela Precisa apenas um reprego O trevo por mor do frio Nos alvaroses de peito Queimou-se que nem morcela Domingo eacute a matanccedila Vem barulho da cozinha Tenho inhames no quintal O mais moccedilo bate prato O Raminho tem uma danccedila (Taacute malinho nem doninha Proacutes dias do Carnaval Inteacute luvou um sopapo) A Rosa jaacute se casou e agora se me oives Mora na casa da grota Termino Vamos cear E do mais que se passou O mesmo caldo de coives Nosso Antoacutenio taacute na tropa Do almoccedilo e do jantar E logo que o tempo faccedila Tira os erros destas linhas Sua sorte vai tentar Minha iscola foi a enxada Diz que a ilha nem de graccedila Natildeo daacute grandes ladainhas Pensa jaacute em embarcar Bem bum Eacute melhor que nada E jaacute se secou tameacutem Eacute jaacute me chama a Maria A figueira das coirelas (Eu estou no meio da casa) Nossa casa agora tem Enfim Inteacute calquer dia Tinta verde nas janelas Tenho um sono que me arrasa De resto por cada dia Vatildeo saudades para os teus Trabalho vergado ao chatildeo Dos vizinhos E da gente Mesmo raiva na barria Um abraccedilo e um adeus

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

23

Mesmo vazio na matildeo Teu irmatildeo Joatildeo Valenterdquo

Eu fui ao pico piquei-me Ediccedilatildeo de autor 1980 pp 24-25 e 26

Que aqui em cada ano Secircmos sempre menos gente - Que terra eacute esta mano Que nada daacute de repente (Tantas vezes jaacute picado Fui na alma e no corpo Que se me dano danado Cairei por terra morto)

Maggie amp etc in Jaacute natildeo gosto de Chocolates Lisboa Ediccedilotildees Salamandra 1999 pp 67 a 71

ldquoldquoQual eacute dos seus filhos que vem visitaacute-lo Mister Sylviardquo disse Rosemary enquanto ia arrumando o quarto ldquoHoje Deve ser a Maggierdquo ldquoMuito bem Parece boa rapariga E sobretudo parece inteligenterdquo ldquoSeraacute Laacute que eacute viva com um homem isso eacute Nunca deixou que lhe fizessem o ninho atraacutes da orelha Rosemary retocou ainda alguns objetos deu uma espreitadela ao quarto de banho e despediu-se Joe Sylvia rodou a cadeira na direccedilatildeo da janela parando diante do espelho Pareceu-me bem Gostava daquela camisa de riscar verdes a condizer com a cor dos olhos a barba cortada e a cheirar a aftershave os cabelos brancos mas bem alinhados e presos com um pequeno sopro de laca Depois olhou para a fotografia grande ainda a preto e branco com ele Mary e os seus quatro filhos ndash todos muito novos e muito vivos Esta paragem era quase intuitiva e tinha o natildeo pequeno condatildeo de o fortalecer reconfortando-o Costumava passar os dedos sobre a fotografia como se os acariciasse e seguia para a janela Ali esperava que um dos filhos chegasse Maggie estava na frente do pai sorrindo para ele como se fosse verdade Com a maquilhagem procurava disfarccedilar as rugas que iam abrindo junto dos olhos e do nariz

ao canto da boca No entanto apesar da cor irritante do cabelo ndash um vermelho envinagrado de roxo - ainda era uma mulher bonita E sobretudo vestia bem Entrou no quarto sentou-se cruzou as pernas e as saias subiram de forma inconveniente Descruzou as pernas mas natildeo foi ainda o bastante Nas matildeos uma caixa de chocolates Foi com ela que cobriu os joelhos ostensivamente agrave mostra sempre que vestia aquela saia curta e apertada Fez as perguntas da praxe ldquoComo estaacute Tratam-no bem O quarto cheira um pouco a mofordquo

Levantou-se colocou a caixa de chocolates sobre a coacutemoda e foi inspecionar a cama ldquoOs lenccediloacuteis parece que foram lavados com banha de porco O pai tem de exigir roupa lavada todos os dias E que espalhem pelo quarto um desodorizante qualquer Quem paga bem tem direito a estas coisasrdquo Quando chegava a esta exigecircncia abria a mala e retirava um frasco de perfume francecircs com tampa de spray Dava trecircs pequenas pressotildees e exclamava ldquoJaacute estaacute melhorrdquo

Joe Sylvia que de haacute muito se habituara a este ritual teimava para que natildeo gastasse o perfume e prometia que Rosemary espalharia no quarto uma lata de desodorizante por dia E normalmente as conversas ficavam por aqui Maggie ia inspecionar o quarto de banho e aproveitava para retocar a maquilhagem Depois chegava agrave janela e comentava o calor ou o frio laacute de fora inventando de seguida um compromisso qualquer para se ir embora Poreacutem nesse dia Joe Sylvia tinha umas perguntas a fazer-lhe ldquoOnde eacute que moras ldquoEm Tularerdquo respondeu Maggie pensando que o pai comeccedilava a sofrer de falhas de memoacuteria ldquoAinda vives com esse

Como eacute que ele se chama Bobyrdquo Maggie melindrou-se e foi com zanga visiacutevel que informou ldquoHaacute quanto tempo foi isso Haacute dois anos que estou com o Steverdquo ldquoE o teu filho o Jamierdquo ldquoDaacute aulas na LA Universityrdquo ldquoJaacute casourdquo ldquoAinda natildeo tendo em conta o que o pai o entende por casarrdquo ldquoPercebordquo ldquoEntatildeo tambeacutem vai perceber que ele vive com uma colega da University e tem dois filhos Nas proacuteximas feacuterias vatildeo vir a Tulare Jamie jaacute disse que viratildeo visitaacute-lo Depois se veraacuterdquo E aproximando-se da porta olhou-o para perguntar ldquoEstaacute satisfeitordquo ldquoEstou Daacute saudades ao Jamierdquo E baixou a voz para dizer ldquoDeus vos abenccediloerdquo Maggie jaacute natildeo o ouviu Tinha saiacutedo e fechado a porta Deixara a caixa de chocolates sem lhe fazer qualquer referecircncia

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

24

Joe Sylvia ficou com a visita de fim de semana consumada Os filhos tinham combinado entre si um regime de alternacircncia Cada um vinha de trecircs em trecircs semanas e assim apaziguavam a consciecircncia de terem o pai num asilo mesmo que de ricos E dias de festa ndash aniversaacuterios Accedilatildeo de Graccedilas Natal e Paacutescoa - juntavam-se todos para imitar celebraccedilotildees antigas que antes eram alegres e consentidas mas que a pouco e pouco se foram tornando num pesadelo indesviaacutevel Cumpriam esses raros rituais arrastados pelas barbas da moral invejando John que escolhera viver longe fazendo representar a obrigaccedilatildeo da sua presenccedila com um postal apropriado enviado pelo correio e que nem sempre chegava atempadamente Nesses dias Joe Sylvia ficava de rastos Toda a superficialidade daqueles atos aliado agrave forma como lhe mentiam e se mentiam deixavam-no ainda mais velho e mais doente Custava-lhe aguentar tatildeo maus disfarcesrdquo

Itineraacuterio das gaivotas ed DRAC 1982 p 27

ldquogomo a gomo te sugam o tutano estaacutes a ficar mirrada rapariga Natildeo te deixes desaparecer por entre os dedos do doacutelar agarra-te ao mar com unhas e dentes se queres ainda o teu lugar no mapardquo ldquoandam a dar isto aos pedacinhos e ningueacutem diz nada meu amor isto quer dizer mar terra e (julgo) corpo alma telhas pinheiros andam a dar isto menos as gaivotas que firmes no caminho dos deuses natildeo se deixam apanhar nem pelo doacutelar natildeo eacute nada de grave e os jornais anunciam que mais um salto temos aacutegua no governo talvez betatildeo em flor talvez as mamas de vulcatildeo nuclear natildeo estaacutes a perceber andam a dar isto e qualquer dia onde poremos os peacutes de manhatilde se acordarmos

Erva-azeda Ediccedilatildeo de autor 1987 p 30

ldquoIsto de cantar a paacutegina onde pousa o sono branco da neacutevoa pressentir o advento pelo perfume das pombas pelo vidro do outono nas folhas mais o ofiacutecio de virar a paacutegina

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

25

(haacute um novelo de Poesia no cesto de setembro)

isto de gostar de acaacutecias quando a fome te bate na janela dos olhos e me pelas com a matildeo estendida pequeno isto de gostar de acaacutecias ndash digo ndash cansa lindo eacute um poema com cabelos de miosoacutetis e o novo espanto liacuterico que vem nos seus quadris e perguntas para que serve o poeta para ter miosoacutetis e gostar de acaacuteciasrdquo

sede regressada in Poemas de(s)amor Ediccedilatildeo de Autor 1973

ldquovou voltar agrave terra saber dos milhos deste sossego de sono sujar as unhas no chatildeo de noacutes vou voltar agrave terra saber de ti a casa laacute em baixo como um buacutezio na canada de hortecircnsias que tambeacutem daacute girassoacuteis ndash tatildeo miuacutedos por ti que de amarelo magoam e na terra voltado agrave tua casa com a porta ornamentada pelo canaacuterio que dizem ver-te da gaiola eu entro como bravo e choro como manso aquele teu lugar sempre sempre vazio e deixo o tic-tac do reloacutegio bater-me a tua voz

para tua matildee bordar tua irmatilde tecer renda e teu pai ndash sem regresso ndash ouvir os teus dedos incendiados no bandolim que a cassete (para nos doer) toca ao infinito sei laacute de mim nos teus quintais haacute trevo branco depois haveraacute batatas mais silecircncio o medo e a saudade fechada numa carta natildeo haacute ramo nem raminho porque tu natildeo estaacutes volto a ver o teu lugar vazio teu pai e tua matildee natildeo dizem nada e vejo dos seus olhos aquele fio de aacutegua que aguento em minhas matildeos e eacute cristal por isso vou voltar agrave terra de ti jaacute tenho sederdquo

a menina da bandeira in Antoacutenio porta-te como uma flor Ediccedilotildees Salamandra 1998 ldquoa menina da bandeira novinha puacutebere do mar vai de branco no cortejo - filha do macho da ilha - menina agrave tua beira jaacute eacute tempo de casar sinto aroma de poejo o alfenim com a rosquilha menina de porte leve ai menina menina graccedila de todas as graccedilas tentaccedilatildeo de arroz-doce o teu olhar doce e breve fogo redondo de bonina deixa-me logo que passas tua bandeira quem fosse deixa-me provar teus seios oacute senhor espiacuterito santo bolos de massa sovada alva pomba divina Em colo de renda achei-os natildeo retires o encanto natildeo preciso de mais nada agrave minha linda meninardquo

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

26

vou prender-te no meu peito com algemas de metal se peco eacute por defeito quero-te branca de sal

a maccedilatilde In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

ldquocomo o teu corpo esta maccedilatilde apetece-me pego-lhe com o suave cuidado do amor e nas minhas matildeos que o fruto se aquieta mansamente sabe que a vou meter nos dentes e natildeo diz nada - vestal sacrificada ao meu desejo tenho jaacute o seu perfume na boca como a tua maccedilatilde este corpo apetece-me

o anel In Nem mais Amor que Fogo Ediccedilatildeo de Autor 1983

comes o meu corpo e falas de frutos ouccedilo tangerina maracujaacute amora tamarindo entonteccedilo de nomes no deliacuterio da tua boca - estaacutes lindo ndash e nem o anel De prata trazes vestido

na casa do campo In Patildeo Verde Ediccedilatildeo de Autor 1971

na casa do campo naquela onde mais e menos vivo a minha matildee prevalece e reza como se me natildeo tivesse em maio de 45 casa do campo e da ilha minha febre aacutegua de bica correndo nos meus saacutebados de laacute ir escutar os milhos escutar o povo mais e menos poeta as noivas procuram-me de enxoval nos braccedilos e eu desenho-lhes os sonhos risco-lhes as toalhas e vejo-as ir agrave igreja casar na casa do campo sou asceta cresccedilo linho de bordar ouccedilo os sinos vou agrave missa e com o povo canto deus para me cansar eacute nisto que reside o meu correr de vivo o meu verbo ser-me

Faacutebula da ilha - Aacutelamo Oliveira faacutebulas 1974

um bando de gaivotas em liturgia de abandono orienta marinheiros de ignoracircncia e cachimbo (o barco da cruz gramada os peacutes da buacutessola ruindo

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

27

a mosca henriquina emigrada em sono) na baiacutea incendiada o grito do sossego partilha acircncoras de fundo e fumo com peixes e hortelatilde natildeo era indiacutecio de oiro nem esfinge de sereia nem vagabundo do sonho num deserto de cetim era ilha (nas suas entranhas com voacutemitos de lava sentia-se crescer a lasciacutevia do povoamento) ainda hoje se ouve a anguacutestia do vento percorrer as coordenadas do povo no mapa

lua de ganga quando te via na ganga azul do teu fato embandeirava-me de ternura e propunha despir-te como se lua fosses ou nada tocava com a ponta dos dedos o poema do teu corpo era azul mas eu morria de medo

AacuteLAMO OLIVEIRA E DANIEL DE MELO

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

28

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

29

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

30

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet

31

cadernos accedilorianos

CADERNO 5 AacuteLAMO OLIVEIRA Ediccedilatildeo maio 2010

Todas as ediccedilotildees estatildeo em linha wwwlusofoniasnet

Editor Coloacutequios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena ChrystelloRosaacuterio Giratildeo dos Santos

Editado por copy2010tradereg

wwwlusofoniasnet