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Cadernos de Estudos Leirienses – 9 * Setembro 2016

Título: CADERNOS DE ESTUDOS LEIRIENSES – 9

Editor: Carlos Fernandes

Coordenador Científico: Saul António Gomes(Professor Associado com Agregação do Departamento de História, Arqueologiae Artes da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra)

Conselho Consultivo: Isabel Xavier, J. Pedro Tavares, Luciano CoelhoCristino, Mário Rui Simões Rodrigues, Miguel Portela, Pedro Redol e RicardoCharters d’Azevedo

Concepção e arranjo da capa: Gonçalo Fernandes

Colecção: CADERNOS – 9

©TextiversoRua António Augusto da Costa, 4Leiria Gare2415-398 LEIRIA - PORTUGALE-mail: [email protected]: www.textiverso.com

Revisão e coordenação editorial: TextiversoMontagem e concepção gráfica: TextiversoImpressão: Artipol1.ª edição: Setembro 2016Edição 1182/16Depósito Legal: 384489/14ISSN 2183-4350Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor.

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LEIRIASETEMBRO DE 2016

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IN PERPETVAM REI MEMORIAM:A epígrafe latina em honra

de D. Luís de Menezes, Senhor de Ansião

José d'Encarnação*Mário Rui Simões Rodrigues**

* Professor catedrático da Universidade de Coimbra, jubilado.** Professor de História e investigadorOs autores não seguem as regras do Acordo Ortográfico.

1. ANSIÃO NO SÉCULO XVII

Até 1674, Ansião pertenceu, para efeitos administrativos e judiciais, aotermo da cidade de Coimbra, que a sul se estendia, inclusive, até Almoster.Tendo mais de vinte vizinhos (fogos) e situando-se a mais de uma légua dedistância da cidade mondeguina, formava uma vintena, circunscrição que nestaregião se chamava, também, juradia ou concelho. Além da vintena ansianense,na área do actual concelho de Ansião, Coimbra possuia, ainda, as vintenasde Aljazede, Alvorge, Façalamim, Freixo, Matos de Façalamim, Mouta Santa,Sarzedela1 e Vale do Boi, bem como o couto de Vale de Todos.

Antes da autonomização relativamente a Coimbra, Ansião tinha um úni-co oficial público, com funções administrativas e judiciais: um juiz pedâneo ouvintaneiro. Ao constituir-se como município independente, após 1674, Ansiãopassou a ser governada por um corpo de oficiais: «hum Juiz ordinário», queera simultaneamente juiz dos órfãos, «hum Procurador do Concelho, Verea-

1 Dos livros de registo da receita e despesa da Câmara de Coimbra, de 1637, 1639, 1645, 1647 e1672, não consta a vintena da Sarzedela. A vintena ou concelho da Sarzedela surge pela primeiravez nos livros da receita e despesa no ano de 1626, mas desaparece logo no ano seguinte, e pormuito tempo. Sobre esta e as outras vintenas, veja-se: RODRIGUES (Mário Rui Simões) e GOMES(Saul António), Notícias e Memórias Paroquiais Setecentistas. Ansião, Coimbra, Palimage – Centrode História da Sociedade e da Cultura, 2012, maxime pp. 60-89.

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dores, Escrivão da Câmera, hum Tabelião, hum Alcayde», aos quais acres-cia um «Capitão mór com huma Companhia da Ordenança»2.

Localizando-se à beira da Estrada Coimbrã, a mais frequentada do Rei-no até meados do século XVIII, as terras do actual concelho de Ansião virampassar junto de si inúmeras gentes que continuadamente percorriam estavia, com os mais variegados estatutos: almocreves e mercadores, clérigos emilitares, viajantes e peregrinos. Para os acolher, pelo menos desde o séculoXIII, aqui se edificaram instalações de apoio, como albergarias, estalagens,hospitais e vendas.

Dentre os diversos viandantes que, na centúria de Seiscentos, deixaramnotícia da sua passagem por Ansião, lembramos Manuel Severim de Fariaem 1609 e em 1625, Baltazar de Monconys em 1645, Cosme de Médicis em1669 e William Bromley em 1694.

Apesar de muito frequentada, não lhe gabavam as qualidades todosquantos por esta estrada serrana passavam, mormente pelo troço situadoentre Ansião e Alvaiázere que, segundo Manuel Severim de Faria, se compu-nha de «duas légoas de trabalhosíssimo caminho por ser tudo rochedo, epedra viva que nem a pé, nem a cavallo se pode andar senão com grandedificuldade»3.

Fig. 1 – Vista de Ansião em 1669. Pormenor da aguarela de Pier Maria Baldi

2 COSTA (P.e António Carvalho da), Corografia Portugueza, e Descripçam Topografica do famosoReyno de Portugal, t. II, Lisboa, Na Officina de Valentim da Costa Deslandes, 1708, p. 63. Parafacilitar a leitura, em algumas das transcrições documentais deste artigo, procedemos a ligeiras alte-rações de pontuação e de ortografia.3 RODRIGUES (Mário Rui Simões), Viagens pela História de Alvaiázere, Alvaiázere, Câmara Munici-pal, 2006, pp. 205-220: 213.

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Ainda que separada de Coimbra em matéria autárquica, a esta cidadecontinuou Ansião estreitamente ligada4, não só relativamente à sede episco-pal, mas principalmente em relação ao Mosteiro de Santa Cruz que, ao mes-mo tempo, era detentor do direito de padroado sobre a igreja paroquial e dodireito senhorial sobre os trinta casais em que se dividia a velha Herdade deAnsion que constitui o berço histórico desta localidade. Neste século, fez-seuma reorganização destes antigos casais, na sequência do novo tombo ela-borado por aquele cenóbio conimbricense em 16275.

Dos quantitativos populacionais de Ansião, dispomos de algumas infor-mações, embora escassas, como sucede em todo o País. Segundo o Nu-meramento Geral do Reino, de 1527, a aldea de Ansião tinha 67 vizinhos(fogos) «com Casal, Fonte Galega, Constantina, Ribeira do Açor e Cervedela6,Lousal, Escampado, os Empojados e o casal d’Afonso de Pêra». Nesta data,no lugar de Ansião havia 24 vizinhos «e os mais nestas póvoas»7. Em 1609,a localidade de Ansião tinha, conforme nos diz Manuel Severim de Faria queaqui passou a 14 de Novembro, «oitenta e três vizinhos»8, valor excessivoque talvez corresponda a toda a vintena. Em 1669, quando aqui esteve ojovem florentino Cosimo de Medici, futuro Cosme III, Ansião, «infelice borgo»nas palavras de Lorenzo Magalotti, comportava 60 ou 70 casas, a maior partearruinadas, tanto quanto nos diz Filippo Corsini9. Na aguarela que, então,Pier Maria Baldi pintou do lugar de Ansiam, é bem visível a pequena dimen-são populacional desta localidade, com o seu casario humilde, pouco con-centrado, composto de casas maioritariamente térreas. Em 1721, tinha a dita«villa e termo noventa e três moradores» (fogos)10.

4 A concessão do senhorio de Ansião a D. Luís de Menezes não operou o trespasse dos direitossenhoriais que aqui possuíam os duques de Aveiro, herdados do 2.º duque de Coimbra, D. Jorge deLencastre.5 NETO (M. Margarida Sobral), «Regime Senhorial em Ansião. O Foral Manuelino e seus Problemasnos Séculos XVII e XVIII», in Revista Portuguesa de História, t. XXVIII, Coimbra, 1993, pp. 59-94: 71.6 Possivelmente Sarzedela.7 «Povoação da Estremadura no XVI. século», in Archivo Historico Portuguez, vol. VI, n.º 7 (Julho de1908), pp. 241-284: 243-244.8 RODRIGUES (Mário Rui Simões), Ob. Cit., pp. 205-220: 213.9 Ibidem, pp. 221-238: 232-233.10 BNP — Manuscritos (COD.): Códice 212: “Noticia das Villas e Lugares da Comarca de Coimbra”,fls. 48-49 v.º.

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O concelho de Ansião, tal como se configurava territorialmente ao tempode D. Luís de Menezes, tinha uma área bastante mais diminuta do que a daParóquia de Nossa Senhora da Conceição. Esta realidade foi perfeitamentedescrita pelo Padre Luís Cardoso, em texto impresso em 1747 mas baseadonas desaparecidas “Informações Paroquiais de 1732”:

«O Termo da Villa tem cento setenta e cinco fógos, e se compoem des-tes Lugares: Escampados, Moinhos, e Casal das Pêras. Os Lugares que seseguem pertencem à Freguesia desta Villa; mas são Termo da Cidade deCoimbra: o Lugar dos Casaes, Fonte-Gallega, Machial, Ribeira, Carrasqueiras,Loureiros, Netos, Constantina, Areosa, Lagoas, Sarzedella, Lousaes, Matos,e Empiados; que juntos todos com os do Termo da Villa, fazem o numero dequatrocentos e cincoenta fógos»11.

À Igreja de Nossa Senhora da Conceição, de Ansião, estavam sujeitas em1627 as seguintes capelas ou ermidas: Nossa Senhora da Paz, sita naConstantina; Nossa Senhora dos Anjos, na Quinta dos Sequeiras; Espírito San-to, na Sarzedela; São Silvestre, «pegado ao dito lugar»; São Lourenço, «noadro velho»; Santa Marta, no Escampado; São Brás, no casal com o mesmonome; e São Luís, na Fonte Galega; todas elas «fabricadas pellos freguezessem para isso o mosteiro contrebuir com cousa alguma»12. Este «adro velho»,situado a poente de Ansião, onde actualmente está o cemitério, correlaciona-secom o topónimo Igreja Velha. Ambos evocam a primitiva igreja medieval deAnsião. O hodierno templo construiu-se no final do século XVI, assinalando es-sas obras a data de 1593, inscrita na verga da porta principal.

Como ocorria com a generalidade das terras portuguesas do século XVII,similares a Ansião, eram a agricultura e a pecuária as actividades dominan-tes, o mesmo é dizer, as que ocupavam a maioria dos homens e mulheres, edonde lhes advinha a parcela mais substanciosa do seu quotidiano sustento.Desde o século XIII, foram as suas produções mais usuais as de cereais (tri-go, centeio e milho miúdo), legumes, vinho e linho, principalmente nas terrasbaixas. Mas, nos seus ásperos e fragosos outeiros, multiplicaram os carva-lhos, os olivais e os pinhais, que se tornaram as mais relevantes produções.

11 CARDOSO (P.e Luiz), Diccionario Geografico, ou Noticia Historica de todas as Cidades, Villas,Lugares, e Aldeas, Rios, Ribeiras, e Serras dos Reynos de Portugal, e Algarve, com todas as cousasraras, que nelles se encontrão, assim antigas, como modernas, t. I, Lisboa, Na Regia Officina Sylviana,e da Academia Real, 1747, pp. 472A-473A.12 AUC — Cartório de Santa Cruz de Coimbra: Tombo de Ançião, Livro 56, fls. 62-63.

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Isto mesmo nos confirma o Padre Luís Cardoso, partindo das “InformaçõesParoquiais de 1732”:

«Os frutos, que recolhem os moradores em mayor abundância, são: azei-te, e bolota de carvalho; e há algumas destas árvores de tão avultada grande-za, que alguns annos dão mais de hum moyo de bolota, e de lenha sessentacarros»13.

Paralelamente à produção agrícola, desenvolveram-se actividadestransformadoras. Em 1630 ou pouco antes, um contratador de sabão, deCoimbra, instalou uma saboaria em Ansião. Por sentença deste ano, o Mos-teiro de Santa Cruz embargou-lhe o intento, para evitar que, no fabrico desteproduto, queimassem os carvalhos com cuja lande se criavam muitos porcoscom os quais os caseiros da sua grande herdade lhe pagavam os foros dasmarrãs. Em 1732, na ribeira de Ansião, laboravam oito moinhos, quatro laga-res de azeite e um pisão14.

2. D. LUÍS DE MENEZES E A CRIAÇÃO DO CONCELHO DE ANSIÃO

13 CARDOSO (P.e Luiz), Ob. Cit., pp. 472A-473A.14 Ibidem.

Fig. 2 – Gravura de D. Luís de Menezes Fig. 3 – Frontispício da História de PortugalRestaurado

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D. Luís de Menezes nasceu em Lisboa a 22 de Julho de 1632. Foramseus progenitores D. Henrique de Menezes, 2.º conde da Ericeira, e D.ª Mar-garida de Lima, filha dos condes de Atouguia.

Cedo se iniciou nos ofícios de Marte, principiando a servir o Príncipe D.Teodósio com apenas 8 anos de idade, e começando a participar na Guerrada Restauração com 18 anos por influência do 1.º conde de Soure, D. Joãoda Costa, então Governador das Armas do Alentejo.

Nesta província se notabilizou, servindo a Pátria contra Espanha, aoparticipar com inteligência e bravura nos mais notáveis empreendimentosmilitares que por esse tempo se realizaram em defesa da independência: oataque ao Forte de São Miguel (1658), em Badajoz; a Batalha das Linhas deElvas (1659); a Batalha do Ameixial (1663); a tomada de Évora e de Valênciade Alcântara (1663 e 1664); e a Batalha de Montes Claros (1665).

Após várias décadas de vida dedicada à actividade militar, casou-se, a 1de Maio de 1666, com a sua sobrinha, D.ª Joana Josefa de Menezes, dequem recebeu a titularidade da Casa da Ericeira, da qual foi 3.º conde.

Em 1673, foi nomeado Governador das Armas da Província de Trás-os--Montes. E ao regressar à capital do Reino, em 1675 foi nomeado deputadoda Junta dos Três Estados, passando, quase ao mesmo tempo, a desempe-nhar as funções de Vedor da Fazenda, no exercício das quais implementouuma vasta e arrojada estratégia de desenvolvimento das manufacturas naci-onais que lhe valeu o elogioso epíteto de “Colbert Português”.

A afeição que pelas artes nutria está bem patenteada no seu palácio,tanto através da fonte de Neptuno esculpida por Bernini, como por meio daspinturas de Lebrum representando as batalhas em que pelejou.

Tão hábil se revelou a esgrimir a espada como a exercitar a pena, legandoà posteridade numerosas obras, umas impressas, outras manuscritas, quemereceram o vivo aplauso dos poetas e o rasgado elogio dos escritores. Dentreelas, merece destaque bem apartado a História de Portugal Restaurado, naqual se descrevem as acções políticas e se narram os feitos militares obradosno dificultoso período da gesta pátria que decorreu entre 1640 e 1668, que D.Luís de Menezes relatou com elegância e grandiosidade, empregando tanto oconhecimento pessoal dos factos em que participou, como os muitos elementosdocumentais que coligiu em detalhadas e morosas indagações.

Acometido de profunda melancolia – dir-se-ia hoje depressão – pôs ter-mo à sua existência terrena, a 26 de Maio de 1690, lançando-se do alto deuma das janelas do seu palácio para o chão do jardim.

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Em reconhecimento dos muitos serviços prestados por D. Luís deMenezes na Guerra da Restauração, na qual, como general de artilharia,praticou actos de assinalável heroísmo, ao mesmo tempo que revelou enor-me sagacidade estratégica, mormente na Batalha do Ameixial, D. Afonso VIpretendeu conceder-lhe o senhorio do lugar de Ansião.

Para concretizar este intuito, El-Rei consultou a Câmara Municipal deCoimbra que, na vereação de 30 de Setembro de 1665, emitiu parecer favo-rável à doação régia, sob protesto do seu procurador-geral que declarou quedesta decisão receberia Sua Majestade «grande perda»15.

Entretanto, tendo ocorrido a destituição do Monarca, interrompeu-se esteprocesso, que só foi retomado já durante a regência do Infante D. Pedro,jurado herdeiro a 27 de Janeiro de 1668.

Após a consulta de 23 de Outubro de 1673, a resolução de 4 de Novem-bro do mesmo ano e o decreto de 5 de Maio de 1674, o Regente D. Pedro fezemitir a 12 de Julho de 1674 um alvará onde manifestou a vontade de fazermercê a D. Luís de Menezes pelos seus serviços na campanha militar de1663, através da doação de um lugar de, até, 100 vizinhos, que elevaria aoestatuto de vila com jurisdição ordinária, e que o donatário poderia testar emfavor de seu filho mais velho, ou de sua filha na falta de herdeiro varão. TendoD. Luís de Menezes escolhido o lugar de Ansião para se efectuar esta mercê,determinou o Príncipe que as freguesias confinantes ao dito lugar não inte-grariam Ansião, que não teria termo algum16.

A 28 de Maio de 1677, o regente D. Pedro ordenou ao Desembargo doPaço que fosse passada carta de doação do lugar de Ansião, que seria feitavila, e nela D. Luís de Menezes apresentaria os ofícios de escrivão da câma-ra, tabelião do público, judicial e notas, almotaçaria e órfãos, e ouvidor17. Aelevação de Ansião à categoria de vila foi concretizada pelo alvará de 20 deJunho de 167818.

Quando D. Pedro, ainda regente, fundou o concelho de Ansião, tinhaesta localidade apenas 64 moradores (fogos). Assim, não havendo gentebastante que servisse nos cargos municipais, requereram os oficiais da novavila que se lhe anexassem as povoações de Sarzedela, Escampados, FonteGalega e os casais de São Brás e Silvestre Pires. O novo Rei, por alvará de15 AHMC — Vereações, Livro 53 (1663-1671), fls. 74-74 v.º.16 TT — Chancelaria de D. Afonso VI, Livro 31, fl. 112 v.º.17 TT — Chancelaria de D. Afonso VI, Doações, Livro 32, fl. 66.18 TT — Chancelaria de D. Afonso VI, Livro 12, fls. 203-204.

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15 de Julho de 1689, anuiu a que se anexassem a Ansião os lugares maispróximos, de modo a conformar uma população de, até, 100 moradores, con-forme havia prometido a D. Luís de Menezes; e, para o efeito, incumbiu ocorregedor da Comarca de Coimbra de assistir às demarcações19. Em resul-tado desta determinação régia, em 1721 a «Villa de Ancião» tinha «47 mora-dores», mais «hum cazal chamado Cazal de Pêras situado em hum outeirocom 2 moradores». Do seu termo fazia parte «o lugar do Escampado situadoem hum outeiro alto, e fragoso de pedras todo cuberto de carvalhos, e olivais,com 44 moradores». No total, no ano de 1721, Ansião e seu termo possuíam93 moradores20 (fogos), a que corresponderiam entre 325 e 372 indivíduos.

Da vida de D. Luís de Menezes, como dos seus gloriosos feitos, guardaAnsião perpétua memória num padrão pétreo que em 1686 a Câmara Munici-pal lhe erigiu.

3. O padrão em honra do Conde

O que atrás se escreveu pretende enquadrar a referência um pouco maispormenorizada ao «padrão» (chamemos-lhe assim – Fig. 4) que se ergue,em lugar de destaque, logo à entrada da vila, na zona chamada “fundo darua”’, e a rua tem o nome do Dr. Adriano Rego.

Já foi assinalado em diversas publicações21 e, sob o n.º IPA.00001779,consta do inventário do SIPA (Sistema de Informação para o PatrimónioArquitectónico), ficha elaborada por Isabel Mendonça em 1991. Aí se diz queesse «padrão seiscentista de Ansião», como «padrão comemorativo de acon-tecimento histórico», se classifica como «arquitectura comemorativa,seiscentista». Tem um enquadramento «urbano» e «está isolado no meio dezona ajardinada envolvente, criada para sua protecção». Vem descrito destaforma:

19 TT — Chancelaria de D. Pedro II, Doações, Livro 48, fls. 320 v.º-321.20 BNP — Manuscritos (COD.): Códice 108: “Extracto das Noticias (...)”, fls. 27 v.º-28 v.º: 27 v.º.21 SEQUEIRA (Gustavo de Matos), Inventário Artístico de Portugal, V, Lisboa, 1955; e na publicaçãoque Selecções do Reader’s Digest dedicou aos Tesouros Artísticos de Portugal, Lisboa, 1976. Eainda: COUTINHO (José Eduardo Reis), Ansião. Perspectiva Global da Arqueologia, História e Arteda Vila e do Concelho, Coimbra, 1986; IDEM, «Documentos Senhoriais de Ansião», Munda, n.º 26(Novembro de 1993), pp. 72-78; DIAS (Manuel Augusto), 500 Anos dos Forais Manuelinos a Terrasde Ansião, Ansião, Câmara Municipal, 2014.

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Fig. 4 – Padrão em honra de D. Luís de Menezes

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«Volume prismático de base rectangular, dividido em três registos. Aci-ma do pedestal dos corpos, o inferior de blocos sobrepostos e o superiorrematado superiormente por pilastras molduradas com capitéis toscanos esuperiormente por entablamento, sobrepujado por frontão contracurvado compirâmide no topo» (cfr. Fig. 4). Acrescenta-se que a inscrição «é alusiva àvitória do Conde da Ericeira na Batalha do Ameixial, em 8 de Junho de 1663».

Anota-se, ainda, que partiu do Senado do Município de Ansião a iniciati-va de mandar erguer o monumento, em 1686. Acrescenta-se que terá havido,a 28 de Outubro de 1980, um despacho de homologação da classificação doimóvel como «de interesse público», despacho que terá levado descaminho,pelo que outro despacho, de 11 de Outubro de 2011, do director do IGESPAR,determinou que o procedimento fosse considerado «em estudo», «por nãohaver comprovativo do Despacho de homologação de 1980».

Classificado ou não, ou melhor, enquanto se espera que, um dia, se consi-dere desnecessário encontrar comprovativo e o detentor da autoridade compe-tente, a use, perante os dados reais que detém, e se decida por deixar de ladoa burocracia e confirme a classificação, da nossa parte cumpre-nos realçar,mais uma vez, o interesse histórico-cultural que o monumento detém. Pode serque, assim, a burocracia… desemperre de uma vez por todas!...

É gracioso o monumento que enquadra a inscrição exarada numa placade mármore, que se nos afigura róseo, possivelmente da Arrábida. Afigura--se-nos quase frontaria de templo,como convém a homenagem feita aquem se distinguiu acima dos outrosmortais e merece honras condignasda sua excepcional personalidade.

Não obedece estritamente aoscânones arquitectónicos clássicos, di-ríamos. A um sólido plinto segue-se aplaca epigrafada, ladeada de colunas– aí, sim, à maneira antiga, com digni-dade; e sobre um entablamento bemtrabalhado, dois pináculos de fino e muisóbrio recorte, quais ampulhetasestilizadas. Entre elas, lançada para ocimo, uma pirâmide esguia, majesto-sa na sua simplicidade.

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Mede o campo epi-gráfico 1,27 m × 1,43 m;as letras, 4,5 cm; o espa-ço entre as linhas é regu-lar, de 1,5 cm, e está aúltima linha a 4,5 cm dorebordo final.

O texto (Fig. 5) vemredigido em língua latina,como era de norma nes-ta 2.ª metade do séculoXVII, eco dos hábitos re-nascentistas e prenúnciojá do que virá a ser, dé-cadas depois, o neo-classicismo. Considera-va-se o Latim a língua nobre, univer-sal no espaço e no tempo e, por isso,era a escolhida sempre numa home-nagem que se queria perpétua, imor-redoira. Até porque ainda se não te-riam estipulado a preceito os câ-nones literários em língua vernáculapara ocasiões similares e, por outrolado, o fascínio das descobertas dasinscrições deixadas pelos Romanos– incrivelmente conservadas atravésdos séculos!... – sobrelevava qual-quer veleidade de adoptar outros pa-drões. Era a vetusta dignidade roma-na a perlar de maior brilhantismo osdizeres que, em português, seriam,decerto, desprovidos do almejadofulgor.

Reza, então, a lápide o seguinte:22

Fig. 5 – Inscrição latina

Fig. 6 – Excerto da História de PortugalRestaurado

22 Perdoar-se-nos-á se não aludimos às anteriores leituras e traduções que, salvo num ou noutropormenor de somenos, acabam por ser, no essencial, coincidentes com as que ora se apresentam.

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IN PERPETVAM • REI MEMORIAM • / D(omino) • LVDOVICO • MENESIO• COMITI ERICEIRÆ • RE/GIS • PETRI • II (secundi) • A CONSILIO • STATVS• ET FISCO / PRÆPOSITO • IN TRASTAGANA PROVINCIA / MAXIMO •TORMENTORVM • PRÆFECTO • IN TRANSMONTANA • PRÆTORI •PROVICTO • CANALENSI • PRÆLIO • IOANNE • AVSTRIACO • EBORAQ(ue)• RECCVPERATA HOC ILLI OPPIDVM CVM IV/RISDITIONE CONCESSV •AVCTVSQ(ue) FVIT TALIIS / PRÆMIJS • ET HONORIBVS QVOD XVIII(duodeviginti) ANNOS / BELLO IMPENDIT QVINQVE PRÆLIJS ET PLVRI/MIS VRBIVM OBSEDIONIBVS INTERFVIT AD/EPTVSQ(ue) EST GLORI-AM MILITAREM ET POSTQVAM FVIT PACEM VTATVM MAXIMA EJVSMVNIA CVM LAVDE EXERCVIT • IDEO ANSIANENSIS SENATVS HOCERIGI MVNVMENTVM CVRAVIT / ANNO DOMINI • M • DC • LXXXVI •(millesimo sexcentesimo octogesimo sexto)

Para que perpetuamente conste.A D. Luís Meneses, Conde da Ericeira, do Conselho de Estado de el-rei

Pedro II, e encarregado-mor do fisco das penas na Província Transtagana,prefeito na Transmontana, enviado como pretor para a batalha do Cano con-tra João de Áustria e tendo reconquistado Évora, fortaleza cuja jurisdição lhefoi concedida e que ele aumentou com tais prémios e honras durante os 18anos que a guerra durou, participou em cinco batalhas e muitos cercos decidades, alcançou a glória militar e, após ter conseguido a paz, exerceu como maior lustre as suas funções, de modo que o Senado de Ansião tratou deerigir este monumento, no ano do Senhor de 1686.

Gravação muito cuidada, com buril, denotando graciosidade no dese-nho de boa parte das letras: vejam-se as hastes interiores do M e do N leve-mente curvas assim como a perna do R também não rectilínea. Pontuaçãotriangular entre as palavras no meio da linha (à maneira romana). Recurso aohabitual nexo AE, para dar a entender que se deve ler com o som E; e, parapoupar espaço, sempre que há dois LL um deles como que se insere nooutro, e, no caso de dois NN, ficam enlaçados (veja-se: IOANNE, ANNOS).De salientar, ainda, que a letra Q vem grafada em minúscula e, quando signi-fica QUE, é seguida de um «arabesco» (perdoe-se-nos a imprecisão do ter-mo) para assinalar que se trata de abreviatura. O J não existia em Latim; aquié, porém, utilizado sempre que precedido de E ou I para evitar qualquer con-fusão de leitura: EJVS, PRAEMIJS, PRAELIJS (uma excepção em ALIIS).

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Também pode chamar a atenção o facto de a barra intermédia do E e do Fser, praticamente, um ponto triangular, de forma que até resulta estranha, àprimeira vista, a grafia do F com a barra superior comprida e apenas umponto a meio. O uso de u na palavra munumentum – em teoria, um erro orto-gráfico (em vez de monumentum) – deve, porém, entender-se mais comoreflexo da pronúncia do que como erro em si.

O texto denota bons conhecimentos do Latim, como o demonstra a utili-zação e respectiva construção de frases, de recorte erudito, como auctusquefuit aliis praemiis et honoribus ou utatum maxima eius munia cum laudeexercuit.

Para os historiadores, o documento permitirá o cotejo com o que se sabeda vida militar deste conselheiro de Estado de el-rei D. Pedro II, no complexocontexto da Guerra da Restauração. Por exemplo, a batalha do Ameixial édesignada «canalense proelium», isto é, literalmente, «a batalha Canalense»,nome por que também ficou conhecida, por se ter travado nos campos deCano, actualmente freguesia do concelho de Sousel. No local onde o comba-te se desenrolou, na base da Serra Murada, o «outeiro dos ataques», comotambém se designa, precisamente na estrada para a vila do Cano, ergueu-sepadrão comemorativo da vitória, padrão que hoje pode observar-se junto àEstrada Nacional 245, dado que para ali foi trasladado, entre finais do séculoXIX e inícios do século XX, aquando do arranjo da referida estrada, a fim de termaior visibilidade (Fig. 7).

A batalha, depois chamada «do Ameixial», foi, na verdade, uma das maisimportantes, até porque as tropas inimigas eram comandadas pelo aclamadoD. João de Áustria e, por isso, o Conde a ela se referirá nestes termos:

«[…] Foram muitas as circunstâncias maravilhosas da batalha do Canal,da recuperação de Évora, da batalha de Castelo Rodrigo […]».23

Para os que se interessam pela organização político-administrativa, nãoserá de menosprezar a alusão a duas províncias, a Transtagana e aTransmontana, designações que ainda continuarão a existir, após outras te-rem surgido: se, por exemplo, pesquisarmos as “Informações Paroquiais de1758”, encontraremos o seguinte dado:

23 Reproduz-se (Fig. 3) o frontispício do tomo II da sua História de Portugal Restaurado, oferecida,como se sabe, a el-rei D. Pedro II, impresso na oficina de Miguel Deslandes, em 1698, em que D. Luísde Menezes se intitula «Conde da Ericeira, do Conselho de Estado de Sua Majestade, seu Veador[sic] da Fazenda e Governador das Armas da Província de Trás-os-Montes, etc.». E reproduz-setambém (Fig. 6) a p. 709 (que integra a parte II do livro X), onde vem a citada passagem.

A epígrafe latina em honra de D. Luís de Menezes, Senhor de Ansião

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«Esta villa se denomina Aguiar, está na provincia de Alentejo ou Trans-tagana, cuja denominaçam se lhe deve por ficar a cá do rio Tejo, a respeito deLisboa».

De resto, como atrás se viu, o Conde intitula-se «Governador das Armasda Província de Trás-os-Montes».

Duas expressões podem ainda merecer a nossa atenção.A primeira é aquela com que a epígrafe se inicia: «in perpetuam rei

memoriam». Não se encontra na epigrafia romana clássica; será interessanteinvestigar a partir de quando terá começado a ser utilizada; sabe-se, todavia,que constituiu, a partir do século XIII, o tópico inicial das bulas papais, entrandodepois no domínio da linguagem jurídica, designadamente em casos de vistori-as, de tal modo que chegou a apresentar-se em siglas (I. P. R. M.), de tãocorrente que era. Pretende-se, como é bem de ver, sublinhar que se almeja quevenha a ser perpétua a recordação do que em seguida se relata.

A expressão final quase não mereceria comentário, dada a sua frequência.Talvez não seja, porém, despropositado explicitar-se que não se trata de frasedevocional ou de cariz re-ligioso; manifesta, sim,que se está a utilizar a eracristã e não a era deCésar. Certo é que, entrenós, a mudança oficial daera de César para a deCristo ocorrera séculosantes, por uma lei promul-gada por el-rei D. João I, a22 de Agosto de 1422;mas datar dessa forma emactos oficiais e, de modoespecial, em inscriçõestornou-se habitual, talcomo, num outro registo,mas de idêntico teor, omonarca começava sem-pre os seus documentos,declarando-se «rei pelagraça de Deus»… Fig. 7 – Padrão evocativo da Batalha do Ameixial (1663)

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Que voto, enfim, se poderá formular no final deste breve excurso históri-co evocativo de um monumento que é, em si mesmo, uma gloriosa evoca-ção? Sem dúvida, o mais evidente: que o Município de Ansião se mantenhaatento na sua mui cuidada preservação.

Passam, neste ano de 2016, 330 anos sobre a data aqui exarada. E seessa efeméride não fosse deixada no esquecimento e se aproveitasse o en-sejo para se celebrar um ritual que, além da habitual deposição de uma coroade flores, incluísse uma conferência ou uma sessão, em que se realçassenão apenas a memória de um Conde a quem o País tanto ficou a dever eAnsião de modo particular, mas também algum episódio de um período as-saz conturbado da história nacional? É realçando os valores de antanho quemais nos encorajamos a vencer as dificuldades presentes!

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A epígrafe latina em honra de D. Luís de Menezes, Senhor de Ansião

Agradecimentos: Exm.os Senhores Leonel Antunes e Manuel Augusto Dias.