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    PRODUO JORNALSTICA DO CURSO DE COMUNICAO SOCIAL DO INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAO SOCIAL DA UFF

    publicado em 25 de novembro de 2012

    Sylvia Debossan Moretzsohn

    O jornalista vive mergulhado em sua rotina, ou-vindo as fontes autorizadas de sempre, treina-das para falar o que se encaixa nas concepesprvias das pautas cotidianas. Est to acos-tumado que passa a agir automaticamente,como se no fosse capaz de pensar.

    De repente, se d conta: no, as coisasno so to simples assim.

    E agora?O depoimento da reprter LauraCapriglione, da Folha de S.Paulo(transcrito ao final deste artigo),num debate sobre a repressoaos usurios de crack, mereceateno especial pela rara co-ragem da autocrtica, muitoreveladora sobre a forma-

    o e as deformaes do jornalista e sobre aspossibilidades de rup-tura do crculo viciosoque se forma entre re-prteres e fontes.

    Antes de chegar-mos a ele, tente-

    mos apresentaras bases ques u s t e n t a messe questio-namento.

    a demonizao das drogasA enxurrada de reportagens sobre o

    uso do crack, que nos ltimos anos voltae meia ganham capa e sutes nos princi-

    pais jornais do pas, converge para o sen-

    tido comum de aceitao e reverberao

    do discurso das autoridades: trata-se de

    uma epidemia que se espalha pelo pas,

    que extremamente letal e por isso exi-

    ge interveno imediata e articulada da

    polcia e da medicina, com a combinao

    de dois tipos de violncia: a represso a

    quem consome a droga nas ruas e a in-

    ternao compulsria dos usurios.

    O discurso terrorista contra o uso de

    drogas certas drogas, que se alternam

    conforme a conjuntura recorrente ao

    longo da histria e obedece a interesses

    polticos muito especficos, como a soci-

    loga Rosa del Olmo apontou num pre-

    cioso livrinho lanado no Brasil em 1990

    (A face oculta da droga, Editora Revan).

    No se trata de negar que as drogas fa-

    zem mal evidentemente que sim, em-

    bora nunca devamos esquecer que as

    guerras do pio, no sculo 19, foram tra-

    vadas justamente em defesa do comr-

    cio dessas substncias, considerando os

    interesses em jogo.

    Drogas fazem mal, drogas ilcitas

    mais ainda, tendo em vista seus danos

    colaterais de corrupo e violncia, tan-

    tas vezes fatal. O trabalho alienado fazum mal enorme, e disso pouca gente se

    lembra, embora estejamos todos volta-

    dos para a busca da felicidade e estimula-

    Oc

    ultiv

    oc

    ientf

    co

    da

    ign

    orncia

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    dos, permanentemente atravs da mdia,

    aos apelos para uma mudana de estilo

    de vida que, estranhamente, ignora osconstrangimentos estruturais que nos

    levam a viver como vivemos, e s tentati-

    vas tantas vezes frustradas de escapar da

    infelicidade pelos mais diversos meios.

    Demonizar as drogas o melhor

    caminho para sedimentar a ignorncia

    confortavelmente instalada na sala de

    estar. No ofenda, no contorne, no

    surpreenda o senso comum: enquanto

    as pessoas acreditarem que as drogas

    so um mal em si, mantm-se a zona de

    segurana, escreveu neste Observat-

    rio o professor Luis Fernando Tfoli (ver

    A imprensa entorpecida)1, ao criticar

    uma edio do Jornal Nacional em que

    o ncora-smbolo da emissora arremata-

    va uma reportagem sobre o crack e a in-

    ternao compulsria dos usurios com

    o comentrio de que todo mundo diz

    que crack basta experimentar uma vez

    s e a pessoa fica viciada:

    Mesmo com as fantasias apocalptico-

    epidmicas associadas ao crack, ainda

    assim necessrio corrigir a informao

    do jornalista e alertar ao leitor que todo

    mundo, nesse caso especfico, est erra-

    do. No existe uso de droga sem usurio

    e sem contexto. Por mais que uma subs-

    tncia possa ter, por sua farmacologia,

    um maior ou menor potencial para indu-

    zir dependncia, no existem drogas com

    propriedades mgicas. a combinao

    entre a substncia, o momento de vida da

    pessoa e o contexto de consumo que cau-sam ou impedem a adio. Nenhuma dro-

    ga vicia por si e nem instantemente, e isso

    vale tanto para o crack e a herona quanto

    para uma das drogas de maior potencial

    de dependncia, o tabaco.

    As prprias reportagens de-

    veriam sugerir alguma dvida

    quanto a essa mistificao. Pois

    no raro lermos sobre pesso-

    as que venceram o vcio ou que foram

    resgatadas das ruas aps anos usando

    essa droga (ver2

    e3

    ). Alm do mais, se ocrack vicia ao primeiro contato e conde-

    na o indivduo morte em pouco tempo

    quanto tempo, nunca se diz , devera-

    mos estar assistindo a uma sucesso de

    cadveres sendo carregados diariamen-

    te em carroas mais ou menos como

    no tempo da gripe espanhola , dada a

    quantidade de maltrapilhos aglomerados

    em determinadas regies das grandes ci-

    dades que passam os dias se drogando.

    Pelo contrrio, o recente episdio

    de represso no Parque Unio, uma das

    favelas da Mar, beira da Av. Brasil, em

    9/11 (ver 4), mostrou gente muito gil e

    lcida, capaz de serpentear entre o trfe-

    go intenso da via expressa para fugir da

    acolhida das autoridades. A corrida alu-

    cinada deveria sugerir alguma indagao

    sobre o motivo por que essas pessoas re-

    jeitam to desesperadamente a hiptese

    de ir para algum abrigo.

    a construo do inimigoEm uma passagem de A sociedade

    excludente, Jock Young sintetiza a funcio-

    nalidade do processo de demonizao

    do outro, que recorrentemente se asso-

    cia ao tema-tabu dos entorpecentes:

    A demonizao importante porque per-

    mite que os problemas da sociedade sejam

    colocados nos ombros dos outros, em ge-

    ral percebidos como situados na margem

    da sociedade. Ocorre aqui uma inverso

    costumeira da realidade causal: em vez

    de reconhecer que temos problemas nasociedade por causa do ncleo bsico de

    contradies na ordem social, afirma-se

    que todos os problemas da sociedade

    so devidos aos prprios problemas. Bas-

    ta livrar-se dos problemas e a sociedade

    estar,ipso facto, livre deles! Assim, em vez

    de sugerir, por exemplo, que grande parte

    do uso deletrio de alto risco de drogas

    causado por problemas de desigualdade

    e excluso, sugere-se que, se nos livramos

    deste uso de drogas (diga

    no, trancafiem os trafican-

    tes), no teremos mais ne-nhum problema.

    A demonizao das drogas, e desta

    droga em particular que mais simples

    porque seus viciados esto mais expos-

    tos, visveis e identificveis pela sua de-

    gradao fsica , facilita a articulao do

    discurso clssico da represso violenta a

    um discurso supostamente cientfico que

    legitima essa violncia ao dizer que no

    h sada seno a internao compulsria.

    No domingo (18/11), O Globo repete a

    ideia ao reproduzir declarao do secret-

    rio de Segurana do Rio sobre essa gente

    que perdeu a condio cidad. Sem dis-

    cernimento, vive miseravelmente entre

    ratos e baratas, abandonado e em situa-

    o deplorvel. Basta olhar para perceber

    que ele precisa de acolhimento.

    Se no soubssemos do que se tra-

    tava, poderamos at imaginar que o

    secretrio descrevia algum mendigo,

    esse personagem to antigo quanto a

    prpria histria das cidades, desde aIdade Mdia.

    O risco da adoo do discurso da

    internao compulsria e nem vamos

    aqui discutir a ausncia de estrutura

    para abrigar e tratar tanta gente

    precisamente este: sugere que o foco

    um universo restrito de indivduos e

    no demora a alcanar todos os que,

    por qualquer motivo, so incmodos

    ao convvio social. o processo tpico

    de construo do inimigo, que o juristaargentino Ral Zaffaroni analisou em

    O inimigo no direito penal, apontando

    sua mais remota origem no conceito

    de hostis (o inimigo ou o estranho)

    do direito romano, que nunca desapa-

    receu da realidade operativa do poder

    punitivo nem da teoria jurdico-penal:

    atravessa as pocas, de cara limpa ou

    com mil mscaras, e abrange desde o

    prisioneiro escravizado da Antiguidade

    at o imigrante ilegal e potencialmen-1http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed701_a_imprensa_entorpecida2http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/19644-natalia-se-livrou-da-droga-pela-pequena-ingrid.shtml3http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2707200806.htm4 http://globotv.globo.com/rede-globo/bom-dia-rio/v/imagens-mostram-operacao-de-recolhimento-de-usuarios-de-crack-na-regiao-do-parque-uniao/2228951/

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    te terrorista dos dias de

    hoje, o traficante ou o dro-

    gado que vive em bandos.O processo sempre o mesmo: retirar-

    lhes a condio de pessoas e classific-

    los como entes perigosos ou daninhos

    para apresent-los como inimigos da

    sociedade, de modo que a eles no se

    apliquem as garantias comuns aos de-

    mais cidados.

    Zaffaroni contesta o argumento de

    que esse hostis contemporneo possa

    ser submetido conteno apenas na

    estrita medida da necessidade porque a

    estrita medida da necessidade a estri-

    ta medida de algo que no tem limites,

    uma vez que esses limites so estabeleci-

    dos por quem exerce o poder:

    Como ningum pode prever exatamen-

    te o que algum de ns nem sequer ns

    mesmos far no futuro, a incerteza do

    futuro mantm aberto o juzo de pericu-

    losidade at o momento em que quem

    decide quem o inimigo deixa de consi-

    der-lo como tal. Com isso, o grau de pe-

    riculosidade do inimigo e, portanto, da

    necessidade de conteno depender

    sempre do juzo subjetivo do individuali-

    zador, que no outro seno o de quem

    exerce o poder.

    Pensemos, s por hiptese, nos

    interesses de quem detm o poder e

    precisa limpar uma determinada regio

    para revitaliz-la atravs de milion-

    rios projets imobilirios.

    de repente, a luzNo incio do ano, o governo de So

    Paulo deflagrou uma espetacular opera-

    o de represso cracolndia instalada

    na regio da Luz. Orientava-se pelo prin-

    cpio de dor e sofrimento quem sabe

    inspirado no choque e pavor da ltima

    guerra de George W. Bush , que impe-

    diria os usurios de se fixarem em algum

    ponto da cidade, cortaria o fornecimento

    da droga e, ao provocar a sndrome da

    abstinncia, os levaria logicamente a

    buscar o servio de sade.

    No debate sobre Mdia, Drogas e

    HIV - http://www.youtube.com/watch?v=5iFH

    dtcWPw4&feature=related - promovidopelo Centro de Convivncia de Lei

    na quarta-feira (14/9), a jornalista Lau-

    ra Capriglione relatou que foi durante

    a cobertura dessa operao que ela e

    outros colegas, antes acostumados ao

    conforto da apurao por telefone e ao

    discurso mdico aparentemente coe-

    rente, se viram confrontados com uma

    realidade que desconheciam. Presen-

    ciaram a violncia, comearam a andar

    junto com as pessoas obrigadas a circu-

    lar, conversaram com elas e aos poucos

    foram desconstruindo a imagem precon-

    cebida do usurio de crack como algum

    desprovido de inteligncia e capacidade

    de discernimento e vontade prpria.

    A rigor, no fizeram nada diferente

    do que deveriam fazer como reprte-

    res: estar no local dos acontecimentos.

    Em outros tempos, era comum reprte-

    res sarem s ruas sem pauta definida,

    para descobrirem coisas sobre o coti-

    diano da cidade. No caso da cracoln-dia, to flagrantemente exposta h tan-

    to tempo, o que os teria impedido de se

    aproximar daquela gente?

    Talvez o preconceito, que Laura

    citou recorrentemente em seu depoi-

    mento. A facilidade de aceitao acr-

    tica do discurso da autoridade mais

    impositivo porque aparentemente

    cientfico e a naturalizao do viciado

    como uma no-pessoa, um nia, um

    zumbi, que eventualmente poderia setornar perigoso, como nas ocasies em

    que ameaavam os jornalistas e ape-

    drejavam os carros de imprensa.

    Quantas vezes a gente viu aquela

    cena do carro da imprensa, do carro da

    televiso, sendo apedrejado pelos cra-

    queiros violentssimos? A gente viu essa

    cena um milho de vezes, um zilho de

    vezes... mas ningum parou pra se per-

    guntar por que que aquelas pessoas

    apedrejavam os carros da imprensa. Amaior parte apedrejava os carros da im-

    prensa pelo nico e acho que legtimo

    motivo que essas pessoas tm direito

    prpria imagem, coisa que no passava

    pela cabea de algum que julgava oscaras desumanos demais.

    (Bem a propsito, em junho de 2011

    o tema do direito imagem chegou a

    ser discutido porque a Folha publicou

    na capa uma sequncia de fotos de um

    homem grisalho e bem vestido, usando

    a droga e depois se afastando do local. A

    gravata na cracolndia no correspon-

    dia ao esteretipo do viciado em crack.

    Na crtica em sua coluna semanal, -http://

    www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/

    suzana_singer_ed647 - a ombudsman Suza-

    na Singer rejeitou o argumento de que

    sempre fizemos assim com pessoas

    que se drogavam publicamente, o que

    apenas reiterava a falta de sensibilida-

    de da redao no trato desse tema. Po-

    rm, como comentei aqui poca (ver

    Algum como ns na Cracolndia)5, a

    cena s chamou a ateno porque ali es-

    tava exposto algum como ns. O direi-

    to imagem dos marginalizados nunca

    foi motivo de preocupao).

    o monoplio da falaQuem, durante muito tempo, teve

    o monoplio da fala sobre os craqueiros

    foi exatamente a turma dos mdicos, a

    turma dos psiquiatras, a turma das clni-

    cas, disse Laura Capriglione, apontando

    a articulao de interesses: a maior par-

    te dessas pessoas so tambm donas de

    clnicas, donas de entidades e so con-

    tratadas pelo poder pblico, so entida-

    des que tm clnicas, convnios com aSecretaria da Sade. E este, segundo ela,

    era um pequeno detalhe que passava

    totalmente despercebido da imprensa,

    que entrevistava mdicos que o tempo

    inteiro estavam disponveis para

    falar sobre os efeitos devastado-

    res do crack na experincia de

    um dependente qumico.

    Essa disponibilidade per-

    manente parte da estratgia

    de construo de um consen-so no qual o reprter entra

    como um autmato, algum

    a simplesmente reproduzir5 http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/alguem-como-nos-na-cracolandia

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    o discurso da fonte: Se voc ligar para

    eles meia-noite e meia eles atendem

    o telefone e falam, olha, os efeitos sodevastadores, e fazem aquela cara: de-

    vas-ta-dores, e tudo bem, e a gente es-

    creve, devastadores....

    Por que o reprter no capaz de

    questionar? Talvez porque seus precon-

    ceitos estejam to arraigados que blo-

    queiem a perspectiva da dvida. Mas

    nada justifica a falta de percepo da

    solidariedade de interesses entre certas

    fontes e as autoridades do Estado.

    o recurso a fontes alternativasLaura reconhece que estava, como amaioria dos colegas, contaminada por

    esse discurso mdico, mas ao mesmo

    tempo argumenta que a contrapartida

    custa a aparecer. O que uma formade atribuir s fontes a responsabilida-

    de pelo sentido do noticirio, como se

    tudo se resumisse a um problema de

    falta de comunicao ou de preparo

    adequado para lidar com a imprensa.

    Fontes alternativas, entretanto, no

    faltam. No caso, a Escola Nacional de

    Sade Pblica, da Fiocruz, uma delas,

    muito bem qualificada e estruturada,

    responsvel, alis, pela revista que trou-

    xe a sntese do debate de que Laura

    participou (ver 6).

    O problema talvez esteja na prpria

    formao dos jornalistas, acostumados

    ao reino das aparncias e a reproduzir

    o senso comum que fantasia solues

    simples para questes complexas.Mas a boa formao apenas o co-

    meo. Porque a melhor formao do

    mundo impotente diante de determi-

    nada orientao editorial. E, mesmo que

    a orientao editorial seja crtica, ser

    sempre preciso levar em conta os pre-

    conceitos do pblico, especialmente no

    caso de estigmas como o do consumo

    de drogas. Quebr-los to necessrio

    quanto difcil, porque a ignorncia

    sempre mais confortvel: a simplificao

    maniquesta apaziguadora, enquanto

    a dvida nos perturba e nos obriga a

    um esforo incmodo de reflexo.

    Transcrio: Eu queria agradecer o convite e a oportunidade de estar aqui com vocs. Cabe

    a mim falar sobre um lado delicado dessa histria toda que o lado da cobertura da impren-

    sa. Eu digo que um lado delicado porque a imprensa, se por um lado ela joga luzes, ela

    tambm pode muito bem, e com a melhor das intenes, reforar o maior dos preconceitos.

    (...) Essa cobertura desse evento [a operao na cracolndia] foi pra ns (...) uma experincia

    extremamente reveladora do que o universo do crack. Digo isso porque no sei se vocs se

    lembram quando o crack apareceu, h 20 anos, uma das primeiras matrias que se veiculou

    foi na Veja, do Elio Gaspari, muito bem escrita como sempre, e a matria dele comeavacom um tuiiiimmm, e com esse tuiiiimmm a pessoa tava morta, tava frita, tuiiiimmm era o

    suposto tuiiiimmm que a droga deflagrava nos sistemas neuronais e a vinha um linguajar

    supostamente cientfico pra dizer exatamente aquilo que o meu colega da mesa mencio-

    nou, pra construir a ideia de uma droga que tinha alguns efeitos devastadores, alis a palavra

    devastador nunca foi to utilizada quanto na cobertura do crack, pra dizer o mnimo se diz

    que o crack uma experincia devastadora. Mas ele faz muito mais que isso, ele queima os

    neurnios t citando coisas que apareceram na imprensa ele queima os neurnios, uma

    tragada vicia inevitavelmente, ele destri a famlia, destri os laos, ele enfim desumaniza

    a pessoa que deixa de ser um cidado como ns e passa a ser uma pessoa que precisa de

    uma interveno total, e essa interveno pode ser policial, por que no?, mas pode ser uma

    internao forada, compulsria, como a gente ouviu de novo ser mencionado agora na

    cobertura da cracolndia, essa foi uma das vias que mais acolhimento tiveram... qual a sada?

    Internao compulsria, isso foi defendido por autoridades, governo do estado...

    Pra ns, eu que trabalho na Folha, que aqui no Centro, quase mergulhada na cracolndia,

    a gente tem cracolndia de um lado, de outro, na frente e atrs, e pra ns, felizmente ou

    6http://www.ensp.fiocruz.br/radis/sites/default/files/radis-122_web.pdf

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    infelizmente, essa proximidade, quando a gente ouvia as balas, ouvia os tiros, a redao saa,

    foi muito bom porque a gente tava ali do lado, e a Folha conseguiu flagrar os tiros de bala de

    borracha, as bombas de efeito moral, isso virou matria, virou TV Folha, virou um monte de

    coisa. (...) Isso foi uma experincia muito rica pros profissionais que estavam ali envolvidos.

    (...) os craqueiros so pessoas sem o menor discernimento, esto com o crebro queimado,

    a droga destruiu qualquer trao de humanidade, generosidade, inteligncia, quem duran-

    te muito tempo teve o monoplio da fala sobre os craqueiros foi exatamente a turma dos

    mdicos, a turma dos psiquiatras, a turma das clnicas, essa turma que acabou tendo o mo-

    noplio e hoje a gente pode, as pessoas comeam a perceber cada vez mais, esse discurso

    longe de ser cientfico um discurso interessado, porque a maior parte dessas pessoas so

    tambm donas de clnicas, donas de entidades e so contratadas pelo poder pblico,

    so entidades que tm clnicas, convnios com a secretaria da sade, enfim... s que

    isso era um pequeno detalhe que passava totalmente despercebido da imprensa, que

    entrevistava mdicos que o tempo inteiro estavam disponveis pra falar sobre os efeitos

    devastadores do crack na experincia de um dependente qumico.O que essa experincia da invaso, da disputa do territrio da cracolndia, fez foi obrigar

    os jornalistas, que ficaram muito tempo, quase vinte anos, no conforto dessa conver-

    sa por telefone na maior parte das vezes, longe da cracolndia, e eu queria s lembrar

    quantas vezes a gente viu notcias nos jornais, particularmente na televiso, de repr-

    teres muito bem intencionados, por isso eu digo que o problema no foi falta de boas

    intenes, o problema um pouquinho maior, tem a ver com preconceito e uma srie

    de coisas, quantas vezes a gente viu aquela cena do carro da imprensa, do carro da te-

    leviso, sendo apedrejado pelos craqueiros violentssimos? A gente viu essa cena um

    milho de vezes, um zilho de vezes, com a melhor das boas intenes. Mas ningum

    parou pra se perguntar, s que hoje a gente para pra se perguntar, por isso eu digo que

    foi um momento que a gente teve de chegar perto do problema, ningum parou pra se

    perguntar por que que aquelas pessoas apedrejavam os carros da imprensa. A maior

    parte apedrejava os carros da imprensa pelo nico e acho que legtimo motivo que essas

    pessoas tm direito prpria imagem, tem direito a preservar a prpria imagem, coisa

    que no passava pela cabea de algum que julgava os caras desumanos demais pra de-

    fender a prpria imagem, que essas pessoas tinham esse direito. Por que eles tinham de

    ser expostos, e isso no uma prerrogativa, diga-se de passagem, de usurios de crack,

    qualquer populao que vive nessas situaes limites so pessoas que ficam extrema-

    mente constrangidas com essa exposio na mdia. (...) mas essa imagem dos carros de

    imprensa sendo apedrejados pelos craqueiros era a mo na luva, era perfeito pra provar

    a tese que os craqueiros eram no-pessoas, eram animais, pior que animais, que a droga

    tinha desumanizado esses caras e que eles no mereciam nenhuma considerao a no

    ser uma interveno total.Os jornalistas foram pra cracolndia (...), e tomaram um choque com o que viram l e

    com as situaes que acabaram presenciando. Eu queria dizer que, entre outras coisas,

    como a gente tava naquela ideia de que alguma coisa precisa ser feita pra salvar essas

    pessoas de si mesmas, dessa droga que aliena as pessoas de si mesmas, logo no comeo

    parecia que tudo podia, a secretria [dizia que] com gentileza no d pra tratar, e ela no

    tava falando sozinha, ela tava dialogando com uma ideia que a sociedade tinha dessa

    populao. E vocs podem ter certeza que teve um apoio enorme a essa interveno da

    secretria, e dentro da Folha.com tem um espao de comentrios (...) e era esse mesmo,

    tira todo mundo, limpa a rua.

    Foi muito importante a presena da Defensoria Pblica com aquele panfletinho simpls-

    simo, que falava de direitos, o cara no tem direito de andar na rua, no tem o direito deficar parado, de sentar na calada?, parecia uma coisa normal que ele no tivesse... pra

    se ver o grau de preconceito que tinha, as premissas com que a gente foi pra rua eram

    as mais nefastas possveis. Bom, a teve jornalista da Folha que saiu andando com os

    meninos pra medir quanto que esses caras tinham que andar por dia por conta dessas

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    abordagens da polcia e desse impedimento da polcia de que essas pessoas ao menos

    sentassem. Ento se comeou a andar junto com as pessoas, comeou a conversar com

    as pessoas, e o que a gente pode ver foi exatamente a desconstruo desses mitos que

    cercavam os usurios de crack.

    Eu tenho certeza que a gente melhor hoje do que era antes, por incrvel que parea,

    se essa cobertura, se essa guerra insana que a polcia, que o governo do estado, que a

    prefeitura moveram, insana mesmo porque a gente v que os efeitos disso foram sim-

    plesmente uma espcie de castigo a essa populao que j to castigada pela vida,

    mas um segundo efeito foi aproximar a gente de uma realidade que a gente ignorava

    solenemente. Porque a gente tava contaminada por esse discurso mdico.

    Vou dar alguns exemplos, so coisas bestas, bobas, agora recentemente a TV Folha fez

    uma matria, a Folha foi atrs de uma velhinha que tava procurando a Desire, que tava

    grvida, ela virou personagem porque estava grvida e tava na cracolndia e a sogra dela

    queria que ela voltasse pra casa porque a Desire tava ali naquela vida louca. A Desire

    uma das que t presa, acusada de trfico, e teve o filho na cadeia. Muito tempo depois,agora, ela teve o filho, ela t na cadeia, no t usando crack, t linda, t maravilhosa.

    Fizeram um TV Folha com a Desire (http://www.youtube.com/watch?v=oG9fIPJCkrI)

    (...), ela t com o filho e quer continuar com o filho. Quando o pessoal da TV Folha tava

    editando o material, veio uma menina muito legal e perguntou, Laura, por que vai sair

    uma matria dessas agora, pra pegar e mostrar o qu, isso parece novela do SBT, pra que

    serve essa matria?

    Bom, quando a gente tava fazendo matria sobre as mes do crack eu fui at os conse-

    lhos tutelares, a pauta foi encaminhada com uma nica razo, coitadinhas das crianas

    que so geradas e nascem numa situao como essa. O poder pblico tem que tirar

    essas crianas das mes, o objetivo da pauta era esse. Tem que tirar essas crianas dessa

    situao absurda e tal. Fui l no conselho tutelar, qual a posio do conselho tutelar?Tira, tira j, tira j! A posio do conselho tutelar daqui, da Praa da Repblica, tirar j as

    crianas dessa situao de risco que as crianas no tem nada a ver com a vida da me,

    no sei que. Eu vou falar francamente que achei que no era to louco isso, no era to

    louca essa posio, que de repente podia at ser, e de repente apareceu na minha frente

    uma mulher dependente de crack, que no era mais dependente de crack, que tava

    livre, e que disse, olha, eu s sa do crack por causa do meu filho, a minha nica ponte

    com a vida foi meu filho. Se eu perdesse naquela hora o meu filho eu provavelmente

    no saa nunca mais. Bom, no sei se no saa mais ou no, mas tornou muito mais difcil

    aquela equao, no podia ser mais simplesmente assim, a mulher t no crack, arranca

    o filho dela. O caso da Desirre, por mais que parecesse uma novela do SBT, mostrava

    uma outra coisa, que no era uma via de mo nica, que precisa ser visto a situao

    particular de cada uma das mulheres, no pode ser uma norma geral, voc tinha queolhar praquele ser humano, no podia ser uma norma extra tudo, que se impusesse pra

    supostamente salvar a criana. O qu que comeou a acontecer, e isso que eu queria

    dizer pra encerrar, aquilo que antes tava tudo muito claro, pra todo jornalista: o craquei-

    ro era um bicho, o filho do craqueiro ou da craqueira tinha que ser arrancado deles, a

    internao compulsria a gente no gosta muito disso mas tambm pode mesmo ser a

    nica sada ento vamo nessa pode ser, no: a nica sada , a gente teve de deixar

    de lado isso pra comear olhar pra cada um daqueles seres humanos sofridos de uma

    outra maneira.

    Eu acho que a gente errou muito e ainda vai errar muito tambm. Mas eu acho que

    aquela experincia da cracolndia, s vezes a gente era, junto com a Defensoria, os

    nicos que estavam ali, pra falar com eles, pra ouvir as reclamaes deles, pra flagrar aviatura da polcia passando duas vezes em cima da cabea dum menino que foi atro-

    pelado numa dessas abordagens (...), de fato a gente teve de comear a se relacionar

    com uma gente que a gente desconhecia completamente. Eu acho que as coberturas

    de crack tendem a melhorar, tendem a ser menos preconceituosas, mas eu queria dizer

  • 7/30/2019 Cadernos de Reportagem - Sylvia Moretzsohn - PDF

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    tambm que esse contradiscurso mdico em relao a essa posio que a favor da

    internao, que s com drogas pesadas... isso a precisa melhorar muito, essa comuni-

    cao precisa melhorar muito, desse outro lado, o outro jeito de lidar com a coisa, por-

    que de novo: os adeptos dessas medidas totais eles esto sempre disponveis, se voc

    ligar pra eles meia-noite e meia eles atendem o telefone e falam, olha, os efeitos so

    devastadores, e fazem aquela cara: de-vas-ta-dores, e tudo bem, e a gente escreve, de-

    vastadores... preciso que o outro discurso seja feito tambm, que outras experincias

    sejam mostradas. Por exemplo, esse vdeo a [mostrado pela Defensoria], com esse cara

    a falando, incrvel, se queimou os neurnios desse menino e ele falando desse jeito,

    eu t querendo tambm esse negcio... (risos) eu fui numa clnica que era mantida em

    So Bernardo que aplica esse princpio dos doze passos e que de um dos mdicos

    mais disponveis pra dar entrevista, falando que a nica sada a internao, no sei

    qu. Bom, a tinha nessa clnica tratava de dependncia de lcool e drogas ento tinha

    lcool e o resto tudo era crack ali. E tava todo mundo sem nada, sem fumar, sem nada,

    e teve uma mesa-redonda, todo mundo falando... A vivacidade daqueles caras acaboucom qualquer ideia que eu tivesse sobre esses efeitos arrasadores, o curto-circuito neu-

    ronal, pega fogo no crebro e aquela coisa toda, acabou, eu vi que a gente precisava

    aprender tudo de novo sobre crack.

    PRODUO JORNALSTICA DO CURSO DE COMUNICAO SOCIAL DO INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAO SOCIAL DA UFF

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