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7/30/2019 Cadernos de Reportagem - Sylvia Moretzsohn - PDF
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PRODUO JORNALSTICA DO CURSO DE COMUNICAO SOCIAL DO INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAO SOCIAL DA UFF
publicado em 25 de novembro de 2012
Sylvia Debossan Moretzsohn
O jornalista vive mergulhado em sua rotina, ou-vindo as fontes autorizadas de sempre, treina-das para falar o que se encaixa nas concepesprvias das pautas cotidianas. Est to acos-tumado que passa a agir automaticamente,como se no fosse capaz de pensar.
De repente, se d conta: no, as coisasno so to simples assim.
E agora?O depoimento da reprter LauraCapriglione, da Folha de S.Paulo(transcrito ao final deste artigo),num debate sobre a repressoaos usurios de crack, mereceateno especial pela rara co-ragem da autocrtica, muitoreveladora sobre a forma-
o e as deformaes do jornalista e sobre aspossibilidades de rup-tura do crculo viciosoque se forma entre re-prteres e fontes.
Antes de chegar-mos a ele, tente-
mos apresentaras bases ques u s t e n t a messe questio-namento.
a demonizao das drogasA enxurrada de reportagens sobre o
uso do crack, que nos ltimos anos voltae meia ganham capa e sutes nos princi-
pais jornais do pas, converge para o sen-
tido comum de aceitao e reverberao
do discurso das autoridades: trata-se de
uma epidemia que se espalha pelo pas,
que extremamente letal e por isso exi-
ge interveno imediata e articulada da
polcia e da medicina, com a combinao
de dois tipos de violncia: a represso a
quem consome a droga nas ruas e a in-
ternao compulsria dos usurios.
O discurso terrorista contra o uso de
drogas certas drogas, que se alternam
conforme a conjuntura recorrente ao
longo da histria e obedece a interesses
polticos muito especficos, como a soci-
loga Rosa del Olmo apontou num pre-
cioso livrinho lanado no Brasil em 1990
(A face oculta da droga, Editora Revan).
No se trata de negar que as drogas fa-
zem mal evidentemente que sim, em-
bora nunca devamos esquecer que as
guerras do pio, no sculo 19, foram tra-
vadas justamente em defesa do comr-
cio dessas substncias, considerando os
interesses em jogo.
Drogas fazem mal, drogas ilcitas
mais ainda, tendo em vista seus danos
colaterais de corrupo e violncia, tan-
tas vezes fatal. O trabalho alienado fazum mal enorme, e disso pouca gente se
lembra, embora estejamos todos volta-
dos para a busca da felicidade e estimula-
Oc
ultiv
oc
ientf
co
da
ign
orncia
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dos, permanentemente atravs da mdia,
aos apelos para uma mudana de estilo
de vida que, estranhamente, ignora osconstrangimentos estruturais que nos
levam a viver como vivemos, e s tentati-
vas tantas vezes frustradas de escapar da
infelicidade pelos mais diversos meios.
Demonizar as drogas o melhor
caminho para sedimentar a ignorncia
confortavelmente instalada na sala de
estar. No ofenda, no contorne, no
surpreenda o senso comum: enquanto
as pessoas acreditarem que as drogas
so um mal em si, mantm-se a zona de
segurana, escreveu neste Observat-
rio o professor Luis Fernando Tfoli (ver
A imprensa entorpecida)1, ao criticar
uma edio do Jornal Nacional em que
o ncora-smbolo da emissora arremata-
va uma reportagem sobre o crack e a in-
ternao compulsria dos usurios com
o comentrio de que todo mundo diz
que crack basta experimentar uma vez
s e a pessoa fica viciada:
Mesmo com as fantasias apocalptico-
epidmicas associadas ao crack, ainda
assim necessrio corrigir a informao
do jornalista e alertar ao leitor que todo
mundo, nesse caso especfico, est erra-
do. No existe uso de droga sem usurio
e sem contexto. Por mais que uma subs-
tncia possa ter, por sua farmacologia,
um maior ou menor potencial para indu-
zir dependncia, no existem drogas com
propriedades mgicas. a combinao
entre a substncia, o momento de vida da
pessoa e o contexto de consumo que cau-sam ou impedem a adio. Nenhuma dro-
ga vicia por si e nem instantemente, e isso
vale tanto para o crack e a herona quanto
para uma das drogas de maior potencial
de dependncia, o tabaco.
As prprias reportagens de-
veriam sugerir alguma dvida
quanto a essa mistificao. Pois
no raro lermos sobre pesso-
as que venceram o vcio ou que foram
resgatadas das ruas aps anos usando
essa droga (ver2
e3
). Alm do mais, se ocrack vicia ao primeiro contato e conde-
na o indivduo morte em pouco tempo
quanto tempo, nunca se diz , devera-
mos estar assistindo a uma sucesso de
cadveres sendo carregados diariamen-
te em carroas mais ou menos como
no tempo da gripe espanhola , dada a
quantidade de maltrapilhos aglomerados
em determinadas regies das grandes ci-
dades que passam os dias se drogando.
Pelo contrrio, o recente episdio
de represso no Parque Unio, uma das
favelas da Mar, beira da Av. Brasil, em
9/11 (ver 4), mostrou gente muito gil e
lcida, capaz de serpentear entre o trfe-
go intenso da via expressa para fugir da
acolhida das autoridades. A corrida alu-
cinada deveria sugerir alguma indagao
sobre o motivo por que essas pessoas re-
jeitam to desesperadamente a hiptese
de ir para algum abrigo.
a construo do inimigoEm uma passagem de A sociedade
excludente, Jock Young sintetiza a funcio-
nalidade do processo de demonizao
do outro, que recorrentemente se asso-
cia ao tema-tabu dos entorpecentes:
A demonizao importante porque per-
mite que os problemas da sociedade sejam
colocados nos ombros dos outros, em ge-
ral percebidos como situados na margem
da sociedade. Ocorre aqui uma inverso
costumeira da realidade causal: em vez
de reconhecer que temos problemas nasociedade por causa do ncleo bsico de
contradies na ordem social, afirma-se
que todos os problemas da sociedade
so devidos aos prprios problemas. Bas-
ta livrar-se dos problemas e a sociedade
estar,ipso facto, livre deles! Assim, em vez
de sugerir, por exemplo, que grande parte
do uso deletrio de alto risco de drogas
causado por problemas de desigualdade
e excluso, sugere-se que, se nos livramos
deste uso de drogas (diga
no, trancafiem os trafican-
tes), no teremos mais ne-nhum problema.
A demonizao das drogas, e desta
droga em particular que mais simples
porque seus viciados esto mais expos-
tos, visveis e identificveis pela sua de-
gradao fsica , facilita a articulao do
discurso clssico da represso violenta a
um discurso supostamente cientfico que
legitima essa violncia ao dizer que no
h sada seno a internao compulsria.
No domingo (18/11), O Globo repete a
ideia ao reproduzir declarao do secret-
rio de Segurana do Rio sobre essa gente
que perdeu a condio cidad. Sem dis-
cernimento, vive miseravelmente entre
ratos e baratas, abandonado e em situa-
o deplorvel. Basta olhar para perceber
que ele precisa de acolhimento.
Se no soubssemos do que se tra-
tava, poderamos at imaginar que o
secretrio descrevia algum mendigo,
esse personagem to antigo quanto a
prpria histria das cidades, desde aIdade Mdia.
O risco da adoo do discurso da
internao compulsria e nem vamos
aqui discutir a ausncia de estrutura
para abrigar e tratar tanta gente
precisamente este: sugere que o foco
um universo restrito de indivduos e
no demora a alcanar todos os que,
por qualquer motivo, so incmodos
ao convvio social. o processo tpico
de construo do inimigo, que o juristaargentino Ral Zaffaroni analisou em
O inimigo no direito penal, apontando
sua mais remota origem no conceito
de hostis (o inimigo ou o estranho)
do direito romano, que nunca desapa-
receu da realidade operativa do poder
punitivo nem da teoria jurdico-penal:
atravessa as pocas, de cara limpa ou
com mil mscaras, e abrange desde o
prisioneiro escravizado da Antiguidade
at o imigrante ilegal e potencialmen-1http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed701_a_imprensa_entorpecida2http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/19644-natalia-se-livrou-da-droga-pela-pequena-ingrid.shtml3http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2707200806.htm4 http://globotv.globo.com/rede-globo/bom-dia-rio/v/imagens-mostram-operacao-de-recolhimento-de-usuarios-de-crack-na-regiao-do-parque-uniao/2228951/
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te terrorista dos dias de
hoje, o traficante ou o dro-
gado que vive em bandos.O processo sempre o mesmo: retirar-
lhes a condio de pessoas e classific-
los como entes perigosos ou daninhos
para apresent-los como inimigos da
sociedade, de modo que a eles no se
apliquem as garantias comuns aos de-
mais cidados.
Zaffaroni contesta o argumento de
que esse hostis contemporneo possa
ser submetido conteno apenas na
estrita medida da necessidade porque a
estrita medida da necessidade a estri-
ta medida de algo que no tem limites,
uma vez que esses limites so estabeleci-
dos por quem exerce o poder:
Como ningum pode prever exatamen-
te o que algum de ns nem sequer ns
mesmos far no futuro, a incerteza do
futuro mantm aberto o juzo de pericu-
losidade at o momento em que quem
decide quem o inimigo deixa de consi-
der-lo como tal. Com isso, o grau de pe-
riculosidade do inimigo e, portanto, da
necessidade de conteno depender
sempre do juzo subjetivo do individuali-
zador, que no outro seno o de quem
exerce o poder.
Pensemos, s por hiptese, nos
interesses de quem detm o poder e
precisa limpar uma determinada regio
para revitaliz-la atravs de milion-
rios projets imobilirios.
de repente, a luzNo incio do ano, o governo de So
Paulo deflagrou uma espetacular opera-
o de represso cracolndia instalada
na regio da Luz. Orientava-se pelo prin-
cpio de dor e sofrimento quem sabe
inspirado no choque e pavor da ltima
guerra de George W. Bush , que impe-
diria os usurios de se fixarem em algum
ponto da cidade, cortaria o fornecimento
da droga e, ao provocar a sndrome da
abstinncia, os levaria logicamente a
buscar o servio de sade.
No debate sobre Mdia, Drogas e
HIV - http://www.youtube.com/watch?v=5iFH
dtcWPw4&feature=related - promovidopelo Centro de Convivncia de Lei
na quarta-feira (14/9), a jornalista Lau-
ra Capriglione relatou que foi durante
a cobertura dessa operao que ela e
outros colegas, antes acostumados ao
conforto da apurao por telefone e ao
discurso mdico aparentemente coe-
rente, se viram confrontados com uma
realidade que desconheciam. Presen-
ciaram a violncia, comearam a andar
junto com as pessoas obrigadas a circu-
lar, conversaram com elas e aos poucos
foram desconstruindo a imagem precon-
cebida do usurio de crack como algum
desprovido de inteligncia e capacidade
de discernimento e vontade prpria.
A rigor, no fizeram nada diferente
do que deveriam fazer como reprte-
res: estar no local dos acontecimentos.
Em outros tempos, era comum reprte-
res sarem s ruas sem pauta definida,
para descobrirem coisas sobre o coti-
diano da cidade. No caso da cracoln-dia, to flagrantemente exposta h tan-
to tempo, o que os teria impedido de se
aproximar daquela gente?
Talvez o preconceito, que Laura
citou recorrentemente em seu depoi-
mento. A facilidade de aceitao acr-
tica do discurso da autoridade mais
impositivo porque aparentemente
cientfico e a naturalizao do viciado
como uma no-pessoa, um nia, um
zumbi, que eventualmente poderia setornar perigoso, como nas ocasies em
que ameaavam os jornalistas e ape-
drejavam os carros de imprensa.
Quantas vezes a gente viu aquela
cena do carro da imprensa, do carro da
televiso, sendo apedrejado pelos cra-
queiros violentssimos? A gente viu essa
cena um milho de vezes, um zilho de
vezes... mas ningum parou pra se per-
guntar por que que aquelas pessoas
apedrejavam os carros da imprensa. Amaior parte apedrejava os carros da im-
prensa pelo nico e acho que legtimo
motivo que essas pessoas tm direito
prpria imagem, coisa que no passava
pela cabea de algum que julgava oscaras desumanos demais.
(Bem a propsito, em junho de 2011
o tema do direito imagem chegou a
ser discutido porque a Folha publicou
na capa uma sequncia de fotos de um
homem grisalho e bem vestido, usando
a droga e depois se afastando do local. A
gravata na cracolndia no correspon-
dia ao esteretipo do viciado em crack.
Na crtica em sua coluna semanal, -http://
www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/
suzana_singer_ed647 - a ombudsman Suza-
na Singer rejeitou o argumento de que
sempre fizemos assim com pessoas
que se drogavam publicamente, o que
apenas reiterava a falta de sensibilida-
de da redao no trato desse tema. Po-
rm, como comentei aqui poca (ver
Algum como ns na Cracolndia)5, a
cena s chamou a ateno porque ali es-
tava exposto algum como ns. O direi-
to imagem dos marginalizados nunca
foi motivo de preocupao).
o monoplio da falaQuem, durante muito tempo, teve
o monoplio da fala sobre os craqueiros
foi exatamente a turma dos mdicos, a
turma dos psiquiatras, a turma das clni-
cas, disse Laura Capriglione, apontando
a articulao de interesses: a maior par-
te dessas pessoas so tambm donas de
clnicas, donas de entidades e so con-
tratadas pelo poder pblico, so entida-
des que tm clnicas, convnios com aSecretaria da Sade. E este, segundo ela,
era um pequeno detalhe que passava
totalmente despercebido da imprensa,
que entrevistava mdicos que o tempo
inteiro estavam disponveis para
falar sobre os efeitos devastado-
res do crack na experincia de
um dependente qumico.
Essa disponibilidade per-
manente parte da estratgia
de construo de um consen-so no qual o reprter entra
como um autmato, algum
a simplesmente reproduzir5 http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/alguem-como-nos-na-cracolandia
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o discurso da fonte: Se voc ligar para
eles meia-noite e meia eles atendem
o telefone e falam, olha, os efeitos sodevastadores, e fazem aquela cara: de-
vas-ta-dores, e tudo bem, e a gente es-
creve, devastadores....
Por que o reprter no capaz de
questionar? Talvez porque seus precon-
ceitos estejam to arraigados que blo-
queiem a perspectiva da dvida. Mas
nada justifica a falta de percepo da
solidariedade de interesses entre certas
fontes e as autoridades do Estado.
o recurso a fontes alternativasLaura reconhece que estava, como amaioria dos colegas, contaminada por
esse discurso mdico, mas ao mesmo
tempo argumenta que a contrapartida
custa a aparecer. O que uma formade atribuir s fontes a responsabilida-
de pelo sentido do noticirio, como se
tudo se resumisse a um problema de
falta de comunicao ou de preparo
adequado para lidar com a imprensa.
Fontes alternativas, entretanto, no
faltam. No caso, a Escola Nacional de
Sade Pblica, da Fiocruz, uma delas,
muito bem qualificada e estruturada,
responsvel, alis, pela revista que trou-
xe a sntese do debate de que Laura
participou (ver 6).
O problema talvez esteja na prpria
formao dos jornalistas, acostumados
ao reino das aparncias e a reproduzir
o senso comum que fantasia solues
simples para questes complexas.Mas a boa formao apenas o co-
meo. Porque a melhor formao do
mundo impotente diante de determi-
nada orientao editorial. E, mesmo que
a orientao editorial seja crtica, ser
sempre preciso levar em conta os pre-
conceitos do pblico, especialmente no
caso de estigmas como o do consumo
de drogas. Quebr-los to necessrio
quanto difcil, porque a ignorncia
sempre mais confortvel: a simplificao
maniquesta apaziguadora, enquanto
a dvida nos perturba e nos obriga a
um esforo incmodo de reflexo.
Transcrio: Eu queria agradecer o convite e a oportunidade de estar aqui com vocs. Cabe
a mim falar sobre um lado delicado dessa histria toda que o lado da cobertura da impren-
sa. Eu digo que um lado delicado porque a imprensa, se por um lado ela joga luzes, ela
tambm pode muito bem, e com a melhor das intenes, reforar o maior dos preconceitos.
(...) Essa cobertura desse evento [a operao na cracolndia] foi pra ns (...) uma experincia
extremamente reveladora do que o universo do crack. Digo isso porque no sei se vocs se
lembram quando o crack apareceu, h 20 anos, uma das primeiras matrias que se veiculou
foi na Veja, do Elio Gaspari, muito bem escrita como sempre, e a matria dele comeavacom um tuiiiimmm, e com esse tuiiiimmm a pessoa tava morta, tava frita, tuiiiimmm era o
suposto tuiiiimmm que a droga deflagrava nos sistemas neuronais e a vinha um linguajar
supostamente cientfico pra dizer exatamente aquilo que o meu colega da mesa mencio-
nou, pra construir a ideia de uma droga que tinha alguns efeitos devastadores, alis a palavra
devastador nunca foi to utilizada quanto na cobertura do crack, pra dizer o mnimo se diz
que o crack uma experincia devastadora. Mas ele faz muito mais que isso, ele queima os
neurnios t citando coisas que apareceram na imprensa ele queima os neurnios, uma
tragada vicia inevitavelmente, ele destri a famlia, destri os laos, ele enfim desumaniza
a pessoa que deixa de ser um cidado como ns e passa a ser uma pessoa que precisa de
uma interveno total, e essa interveno pode ser policial, por que no?, mas pode ser uma
internao forada, compulsria, como a gente ouviu de novo ser mencionado agora na
cobertura da cracolndia, essa foi uma das vias que mais acolhimento tiveram... qual a sada?
Internao compulsria, isso foi defendido por autoridades, governo do estado...
Pra ns, eu que trabalho na Folha, que aqui no Centro, quase mergulhada na cracolndia,
a gente tem cracolndia de um lado, de outro, na frente e atrs, e pra ns, felizmente ou
6http://www.ensp.fiocruz.br/radis/sites/default/files/radis-122_web.pdf
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infelizmente, essa proximidade, quando a gente ouvia as balas, ouvia os tiros, a redao saa,
foi muito bom porque a gente tava ali do lado, e a Folha conseguiu flagrar os tiros de bala de
borracha, as bombas de efeito moral, isso virou matria, virou TV Folha, virou um monte de
coisa. (...) Isso foi uma experincia muito rica pros profissionais que estavam ali envolvidos.
(...) os craqueiros so pessoas sem o menor discernimento, esto com o crebro queimado,
a droga destruiu qualquer trao de humanidade, generosidade, inteligncia, quem duran-
te muito tempo teve o monoplio da fala sobre os craqueiros foi exatamente a turma dos
mdicos, a turma dos psiquiatras, a turma das clnicas, essa turma que acabou tendo o mo-
noplio e hoje a gente pode, as pessoas comeam a perceber cada vez mais, esse discurso
longe de ser cientfico um discurso interessado, porque a maior parte dessas pessoas so
tambm donas de clnicas, donas de entidades e so contratadas pelo poder pblico,
so entidades que tm clnicas, convnios com a secretaria da sade, enfim... s que
isso era um pequeno detalhe que passava totalmente despercebido da imprensa, que
entrevistava mdicos que o tempo inteiro estavam disponveis pra falar sobre os efeitos
devastadores do crack na experincia de um dependente qumico.O que essa experincia da invaso, da disputa do territrio da cracolndia, fez foi obrigar
os jornalistas, que ficaram muito tempo, quase vinte anos, no conforto dessa conver-
sa por telefone na maior parte das vezes, longe da cracolndia, e eu queria s lembrar
quantas vezes a gente viu notcias nos jornais, particularmente na televiso, de repr-
teres muito bem intencionados, por isso eu digo que o problema no foi falta de boas
intenes, o problema um pouquinho maior, tem a ver com preconceito e uma srie
de coisas, quantas vezes a gente viu aquela cena do carro da imprensa, do carro da te-
leviso, sendo apedrejado pelos craqueiros violentssimos? A gente viu essa cena um
milho de vezes, um zilho de vezes, com a melhor das boas intenes. Mas ningum
parou pra se perguntar, s que hoje a gente para pra se perguntar, por isso eu digo que
foi um momento que a gente teve de chegar perto do problema, ningum parou pra se
perguntar por que que aquelas pessoas apedrejavam os carros da imprensa. A maior
parte apedrejava os carros da imprensa pelo nico e acho que legtimo motivo que essas
pessoas tm direito prpria imagem, tem direito a preservar a prpria imagem, coisa
que no passava pela cabea de algum que julgava os caras desumanos demais pra de-
fender a prpria imagem, que essas pessoas tinham esse direito. Por que eles tinham de
ser expostos, e isso no uma prerrogativa, diga-se de passagem, de usurios de crack,
qualquer populao que vive nessas situaes limites so pessoas que ficam extrema-
mente constrangidas com essa exposio na mdia. (...) mas essa imagem dos carros de
imprensa sendo apedrejados pelos craqueiros era a mo na luva, era perfeito pra provar
a tese que os craqueiros eram no-pessoas, eram animais, pior que animais, que a droga
tinha desumanizado esses caras e que eles no mereciam nenhuma considerao a no
ser uma interveno total.Os jornalistas foram pra cracolndia (...), e tomaram um choque com o que viram l e
com as situaes que acabaram presenciando. Eu queria dizer que, entre outras coisas,
como a gente tava naquela ideia de que alguma coisa precisa ser feita pra salvar essas
pessoas de si mesmas, dessa droga que aliena as pessoas de si mesmas, logo no comeo
parecia que tudo podia, a secretria [dizia que] com gentileza no d pra tratar, e ela no
tava falando sozinha, ela tava dialogando com uma ideia que a sociedade tinha dessa
populao. E vocs podem ter certeza que teve um apoio enorme a essa interveno da
secretria, e dentro da Folha.com tem um espao de comentrios (...) e era esse mesmo,
tira todo mundo, limpa a rua.
Foi muito importante a presena da Defensoria Pblica com aquele panfletinho simpls-
simo, que falava de direitos, o cara no tem direito de andar na rua, no tem o direito deficar parado, de sentar na calada?, parecia uma coisa normal que ele no tivesse... pra
se ver o grau de preconceito que tinha, as premissas com que a gente foi pra rua eram
as mais nefastas possveis. Bom, a teve jornalista da Folha que saiu andando com os
meninos pra medir quanto que esses caras tinham que andar por dia por conta dessas
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abordagens da polcia e desse impedimento da polcia de que essas pessoas ao menos
sentassem. Ento se comeou a andar junto com as pessoas, comeou a conversar com
as pessoas, e o que a gente pode ver foi exatamente a desconstruo desses mitos que
cercavam os usurios de crack.
Eu tenho certeza que a gente melhor hoje do que era antes, por incrvel que parea,
se essa cobertura, se essa guerra insana que a polcia, que o governo do estado, que a
prefeitura moveram, insana mesmo porque a gente v que os efeitos disso foram sim-
plesmente uma espcie de castigo a essa populao que j to castigada pela vida,
mas um segundo efeito foi aproximar a gente de uma realidade que a gente ignorava
solenemente. Porque a gente tava contaminada por esse discurso mdico.
Vou dar alguns exemplos, so coisas bestas, bobas, agora recentemente a TV Folha fez
uma matria, a Folha foi atrs de uma velhinha que tava procurando a Desire, que tava
grvida, ela virou personagem porque estava grvida e tava na cracolndia e a sogra dela
queria que ela voltasse pra casa porque a Desire tava ali naquela vida louca. A Desire
uma das que t presa, acusada de trfico, e teve o filho na cadeia. Muito tempo depois,agora, ela teve o filho, ela t na cadeia, no t usando crack, t linda, t maravilhosa.
Fizeram um TV Folha com a Desire (http://www.youtube.com/watch?v=oG9fIPJCkrI)
(...), ela t com o filho e quer continuar com o filho. Quando o pessoal da TV Folha tava
editando o material, veio uma menina muito legal e perguntou, Laura, por que vai sair
uma matria dessas agora, pra pegar e mostrar o qu, isso parece novela do SBT, pra que
serve essa matria?
Bom, quando a gente tava fazendo matria sobre as mes do crack eu fui at os conse-
lhos tutelares, a pauta foi encaminhada com uma nica razo, coitadinhas das crianas
que so geradas e nascem numa situao como essa. O poder pblico tem que tirar
essas crianas das mes, o objetivo da pauta era esse. Tem que tirar essas crianas dessa
situao absurda e tal. Fui l no conselho tutelar, qual a posio do conselho tutelar?Tira, tira j, tira j! A posio do conselho tutelar daqui, da Praa da Repblica, tirar j as
crianas dessa situao de risco que as crianas no tem nada a ver com a vida da me,
no sei que. Eu vou falar francamente que achei que no era to louco isso, no era to
louca essa posio, que de repente podia at ser, e de repente apareceu na minha frente
uma mulher dependente de crack, que no era mais dependente de crack, que tava
livre, e que disse, olha, eu s sa do crack por causa do meu filho, a minha nica ponte
com a vida foi meu filho. Se eu perdesse naquela hora o meu filho eu provavelmente
no saa nunca mais. Bom, no sei se no saa mais ou no, mas tornou muito mais difcil
aquela equao, no podia ser mais simplesmente assim, a mulher t no crack, arranca
o filho dela. O caso da Desirre, por mais que parecesse uma novela do SBT, mostrava
uma outra coisa, que no era uma via de mo nica, que precisa ser visto a situao
particular de cada uma das mulheres, no pode ser uma norma geral, voc tinha queolhar praquele ser humano, no podia ser uma norma extra tudo, que se impusesse pra
supostamente salvar a criana. O qu que comeou a acontecer, e isso que eu queria
dizer pra encerrar, aquilo que antes tava tudo muito claro, pra todo jornalista: o craquei-
ro era um bicho, o filho do craqueiro ou da craqueira tinha que ser arrancado deles, a
internao compulsria a gente no gosta muito disso mas tambm pode mesmo ser a
nica sada ento vamo nessa pode ser, no: a nica sada , a gente teve de deixar
de lado isso pra comear olhar pra cada um daqueles seres humanos sofridos de uma
outra maneira.
Eu acho que a gente errou muito e ainda vai errar muito tambm. Mas eu acho que
aquela experincia da cracolndia, s vezes a gente era, junto com a Defensoria, os
nicos que estavam ali, pra falar com eles, pra ouvir as reclamaes deles, pra flagrar aviatura da polcia passando duas vezes em cima da cabea dum menino que foi atro-
pelado numa dessas abordagens (...), de fato a gente teve de comear a se relacionar
com uma gente que a gente desconhecia completamente. Eu acho que as coberturas
de crack tendem a melhorar, tendem a ser menos preconceituosas, mas eu queria dizer
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tambm que esse contradiscurso mdico em relao a essa posio que a favor da
internao, que s com drogas pesadas... isso a precisa melhorar muito, essa comuni-
cao precisa melhorar muito, desse outro lado, o outro jeito de lidar com a coisa, por-
que de novo: os adeptos dessas medidas totais eles esto sempre disponveis, se voc
ligar pra eles meia-noite e meia eles atendem o telefone e falam, olha, os efeitos so
devastadores, e fazem aquela cara: de-vas-ta-dores, e tudo bem, e a gente escreve, de-
vastadores... preciso que o outro discurso seja feito tambm, que outras experincias
sejam mostradas. Por exemplo, esse vdeo a [mostrado pela Defensoria], com esse cara
a falando, incrvel, se queimou os neurnios desse menino e ele falando desse jeito,
eu t querendo tambm esse negcio... (risos) eu fui numa clnica que era mantida em
So Bernardo que aplica esse princpio dos doze passos e que de um dos mdicos
mais disponveis pra dar entrevista, falando que a nica sada a internao, no sei
qu. Bom, a tinha nessa clnica tratava de dependncia de lcool e drogas ento tinha
lcool e o resto tudo era crack ali. E tava todo mundo sem nada, sem fumar, sem nada,
e teve uma mesa-redonda, todo mundo falando... A vivacidade daqueles caras acaboucom qualquer ideia que eu tivesse sobre esses efeitos arrasadores, o curto-circuito neu-
ronal, pega fogo no crebro e aquela coisa toda, acabou, eu vi que a gente precisava
aprender tudo de novo sobre crack.
PRODUO JORNALSTICA DO CURSO DE COMUNICAO SOCIAL DO INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAO SOCIAL DA UFF
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