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NÚMERO 30 * AGOSTO DE 2008 ARTIGOS * A RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES E OS DEVERES DE CUIDADO ENQUANTO ESTRATÉGIAS DE CORPORATE GOVERNANCE * OPA CONCORRENTE * SOBRE A PERDA DA QUALIDADE DE SOCIEDADE ABERTA * OS DERIVADOS * ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS PARA A INDÚSTRIA E SUPERVISÃO PORTUGUESAS DO NOVO PASSAPORTE EUROPEU DAS SOCIEDADES GESTORAS DE ORGANISMOS DE INVESTIMENTO COLECTIVOS EM VALORES MOBILIÁRIOS (UCITS) CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS€¦ · 3 : cadernos do mercado de valores mobiliÁrios editorial 05 artigos: a responsabilidade dos administradores e os deveres de cuidado

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1 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

NÚMERO 30 * AGOSTO DE 2008

ARTIGOS

* A RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES E OS DEVERES DE CUIDADO ENQUANTO ESTRATÉGIAS

DE CORPORATE GOVERNANCE

* OPA CONCORRENTE

* SOBRE A PERDA DA QUALIDADE DE SOCIEDADE ABERTA

* OS DERIVADOS

* ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS PARA A INDÚSTRIA E SUPERVISÃO PORTUGUESAS DO NOVO PASSAPORTE EUROPEU

DAS SOCIEDADES GESTORAS DE ORGANISMOS DE INVESTIMENTO COLECTIVOS EM VALORES MOBILIÁRIOS (UCITS)

CADERNOS

DO MERCADO

DE VALORES

MOBILIÁRIOS

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2 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

N.º 30

AGOSTO DE 2008

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3 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

EDITORIAL 05 ARTIGOS:

A RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES E OS DEVERES DE CUIDADO ENQUANTO ESTRATÉGIAS DE CORPORATE GOVERNANCE 07 Bruno Ferreira OPA CONCORRENTE 19 Manuel Requicha Ferreira SOBRE A PERDA DA QUALIDADE DE SOCIEDADE ABERTA 79 Conceição Aguiar OS DERIVADOS 91 José A. Engrácia Antunes ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS PARA A INDÚSTRIA E SUPERVISÃO PORTUGUESAS DO NOVO PASSAPORTE EUROPEU DAS SOCIEDADES GESTORAS DE ORGANISMOS DE INVESTIMENTO COLECTIVOS EM VALORES MOBILIÁRIOS (UCITS) 137 Fernando Silva ANOTAÇÃO A ACORDÃO:

GESTÃO DE CARTEIRAS - DEVERES DE INFORMAÇÃO ANOTAÇÃO À SENTENÇA DA 5ª VARA CÍVEL DA COMARCA DO PORTO, 3ª SECÇÃO, PROCESSO N.º 2261/05.0TVPRT 147 Pedro Boullosa Gonzalez

ÍNDICE

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4 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

EDITORIAL

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5 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

EDITORIAL As preocupações mundiais sobre o estado da economia e em particular dos mercados finan-ceiros constituem a “senha de acesso” aos temas que a partir de agora se publicam.

Decorrido o tempo das fusões e aquisições (mergermania), as diferentes estratégias de corporate governance implicaram a criação de novos deveres, éticos e jurídicos, dos órgãos de direcção das empresas perante os stakeholders. A malha jurídica tecida neste domínio através das alterações ao Código das Sociedades Comerciais, e a densificação dos deveres de cuidado vg por via da intervenção da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, justificam um estudo sobre a responsabilidade individual e social decorrente da sua omissão.

Estes deveres inserem-se num âmbito de princí-pios e “standards” mais vasto, que compõem o que poderemos designar por “ordem pública bolsista”. Eles completam o princípio funda-mental da Transparência e da Protecção dos investidores. Num mercado que tem como epi-centro o preço, a disponibilização de informa-ção pelos agentes profissionais que aí actuam é essencial aos investidores, aos concorrentes, e às autoridades de supervisão. E a essencialidade da informação respeita não só aos agentes que recorrem ao mercado para se financiar (aceitando os emitentes a criação de um estatuto de sociedade aberta cujo regime jurídico enfor-mou durante muito tempo de uma lacuna legal – a possibilidade da perda da qualidade de sociedade aberta), mas igualmente a empresas de investimento que gerem patrimónios, indivi-duais ou colectivos.

A harmonização e o “level playing field” não pode esquecer actores como as sociedades

gestoras de organismos de investimento colecti-vo, cuja real importância se revelou no presen-te “turbilhão financeiro”. Aceitando a nossa jurisprudência a fundamentalidade dos deveres de informação que sobre ela impendem, damos notícia do regime e das consequências que resultarão para a supervisão nacional e respecti-va indústria da aprovação de um novo passapor-te comunitário – das sociedades gestoras de organismos de investimento colectivo em valo-res mobiliários (UCITS).

Finalmente, a uniformização do campo regula-tório não pode esquecer que a atipicidade de instrumentos financeiros decorrente da reforma de 1999, acarretou a criação de instrumentos e produtos financeiros sucessivamente mais com-plexos. O excelente artigo sobre Derivados que o presente Cadernos publica pretende ser a por-ta de entrada para o futuro número, dedicado aos instrumentos financeiros complexos. Eles estão no centro dos actuais mercados, cumprin-do por isso analisar a sua estrutura, proceder a categorizações, revelar as possíveis debilidades que acarretam para os mercados e investidores, por forma a avaliar a necessidade de nova regu-lação e do seu impacto.

O presente número publica ainda o mais recente Prémio CMVM para Dissertação Académica ou Trabalho de Investigação no Âmbito dos Mercados de Valores Mobiliários Portugueses. Tendo como objecto o actual regime jurídico das “Ofertas Públicas de Aquisição Concorren-tes”, o artigo descreve com casos reais o que tem constituído nos últimos anos a “praxis” de interpretação e da sua aplicação pelos agentes de mercado e da CMVM, de forma completa e saudavelmente problematizadora. Constituirá decerto um precioso elemento de interpretação para casos futuros.

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6 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

ARTIGOS

* A RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES E OS DEVERES DE CUIDADO ENQUANTO ESTRATÉGIAS

DE CORPORATE GOVERNANCE

* OPA CONCORRENTE

* SOBRE A PERDA DA QUALIDADE DE SOCIEDADE ABERTA

* OS DERIVADOS

* ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS PARA A INDÚSTRIA

E SUPERVISÃO PORTUGUESAS DO NOVO PASSAPORTE EUROPEU DAS SOCIEDADES GESTORAS

DE ORGANISMOS DE INVESTIMENTO COLECTIVOS EM VALORES MOBILIÁRIOS (UCITS)

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7 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

1. INTRODUÇÃO A reforma do Código das Sociedades Comerciais1 aprovada pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março2

, teve como um dos seus propósitos actualizar a legislação societária nacional3, em particular no que diz respeito aos desenvolvimentos ocorridos na temática da corporate governance ou governo das sociedades4. De entre as diversas alterações ao Código das Sociedades Comerciais, a Reforma de 2006 veio modificar o artigo 64.º, sendo que para além de ter introduzido um novo número dois, relativo aos deveres dos membros de órgãos sociais com funções de fiscalização, passou a enumerar em duas alíneas do número um aqueles que considera serem os deveres fundamentais dos gerentes e administradores: - na alínea a) deveres de cuidado, em que exemplifica que estes deveres incluem a disponibilidade, competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade, todos eles adequados às suas funções, mantendo,

A RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES E OS DEVERES DE CUIDADO ENQUANTO ESTRATÉGIAS DE CORPORTAE GOVERNANCE IMPLICAÇÕES DA REFORMA DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS BRUNO FERREIRA*

* - Advogado, associado da Garrigues Portugal.

1- Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro. As referências a artigos sem menção expressa do respectivo diploma dizem respeito ao Código das Sociedades Comerciais.

2- As referências às alterações efectuadas pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março serão doravante referidas apenas por Reforma de 2006.

3- Vide preâmbulo do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março.

4- Para utilizar a expressão em língua portuguesa difundida pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários nas suas Recomendações da CMVM sobre o Governo das Sociedades Cotadas.

5- COUTINHO DE ABREU, Governação das Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, 2006, p. 5.

contudo, nesta alínea parte da redacção anterior do preceito, relativa à necessidade do comporta-mento diligente ao nível do gestor criterioso e ordenado; - na alínea b) deveres de lealdade, onde se mantêm as referências constantes da redacção anterior do preceito relativas à actuação no interesse da sociedade.

Ainda que não inserido no capítulo dedicado à responsabilidade civil dos administradores, o artigo 64.º desempenha um papel bastante rele-vante neste âmbito, para além da sua relevância no que diz respeito à destituição dos mesmos.

Em termos de enquadramento, esta reforma insere-se num amplo movimento que tem dedi-cado especial atenção ao complexo das regras (legais, estatutárias, jurisprudenciais, deontoló-gicas), instrumentos e questões respeitantes à administração e ao controlo (ou fiscalização das sociedades)5, ou seja, ao governo das socieda-des, iniciado na década de 70 do século passado nos Estados Unidos da América, exportado para

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a Europa na década de 90 e reavivado mais recentemente com alguns escândalos financei-ros tais como a Enron, Worldcom e Parmalat.6

A Reforma de 2006 obriga pois a discutir a efi-cácia do estabelecimento de padrões de com-portamento (tais como os deveres de cuidado) e de mecanismos de responsabilização dos admi-nistradores enquanto uma das estratégias utili-zadas para a mitigação dos problemas relacio-nados com o governo das sociedades.7

Propomo-nos, por isso, efectuar um enquadra-mento e análise crítica da utilização dos deveres de cuidado dos administradores, e da sua conse-quente responsabilização pela inobservância de tais deveres, enquanto estratégia de melhoria da qualidade do governo das sociedades. A par deste enquadramento, propomo-nos ainda tentar adiantar algumas considerações preliminares acerca do impacto na responsabilidade civil dos administradores da explicitação dos deveres de

cuidado pela Reforma de 2006. 2 – OS CUSTOS OU PROBLEMAS DE AGÊNCIA Não é recente o reconhecimento de que a actua-ção do administrador na gestão da sociedade, i.e. em regra na gestão do património alheio, se pode desviar da actuação que o mesmo teria na gestão dos seus próprios negócios ou patrimó-nio. Como referido por ADAM SMITH, na sua obra A Riqueza das Nações, referindo-se aos administradores das companhias coloniais: “Dos directores destas companhias, contudo, sendo administradores, mais do dinheiro de terceiros do que do seu próprio dinheiro, não se pode esperar que cuidem dele com a mesma vigilância aturada com que frequentemente os membros de uma sociedade privada cuidam do seu. Como os servidores de um homem rico, eles têm tendência a não prestar atenção a pequenas questões como não respeitantes à honra de seu amo, e muito facilmente se abstêm de a prestar”8.

6 - Ult. ob. cit., pp. 7-8. Para evitar que as referências aos escândalos financeiros internacionais se tornem um mero exercício de estilo, há que verificar a dimensão dos problemas que rodeavam, por exemplo, o escândalo Enron e o seu significado social e económico nos Estados Unidos da América. No seu auge, a Enron era a sétima maior sociedade dos Estados Unidos da América, tinha receitas brutas de 100 mil milhões de dólares e 20.000 trabalhadores (grande parte dos quais eram accionistas, tendo uma parte relevante dos respectivos salários vindo a ser paga mediante atribuição de opções de compra de acções representa-tivas do capital social da própria Enron, facto que torna ainda mais dramáticos os efeitos do colapso da sociedade para os trabalhadores). Tendo solicitado o pedido de falência em 2 de Novembro de 2001, as acções representativas do respectivo capital social haviam desvalorizado de 80 dólares para praticamente nada em 10 meses. As repercussões foram significativas, não só em Wall Street, mas também no resto dos Estados Unidos da América, onde metade das famílias (households) investe no mercado de capitais. Uma das principais perguntas que percorreu a investigação sobre a Enron foi: onde estava o conselho de administração? Refira-se, contudo, que não terá sido apenas o conselho de administração da Enron a não prestar atenção aos actos dos seus officers, pois para além da falha por parte dos auditores, também o mercado em geral não terá prestado atenção suficiente às contas da Enron, uma vez que muitas das irregulari-dades não foram escondidas, ou pelo menos, não o foram de forma eficaz em termos contabilísticos, sendo que as respectivas notas deixavam antever ou sugeriam algumas dessas irregularidades; vide JOHN ARMOUR / JOSEPH A. MCCAHERY, “Introduction - After Enron – Improving Corporate Law and Modernising Securities Regulation in Europe and the US”, in JOHN ARMOUR / JOSEPH A. MCCAHERY (Eds.), After Enron – Improving Corporate Law and Modernising Securities Regulation in Europe and the US, Hart Publishing, Oxford / Portland, 2006 [=After Enron…], cit., p. 5. Não poderá deixar de se reconhecer que, para além de inúmeros outros factores, o desejo de ganhar dinheiro ou a ganância terá tido alguma influência, criando uma espécie de cegueira ou embriaguez, como salienta IRA MILLSTEIN: “everyone was having fun and profiting in the bubble” (IRA M. MILLSTEIN, “A self-correcting course for governance”, in Directors & Boards, 2003). Para uma análise não apenas histórica, mas também de direito comparado dos escândalos financeiros vide DAVID A. SKEEL, JR., “Icarus and American Regulation”, in JOHN ARMOUR / JOSEPH A. MCCAHERY (Eds.), After Enron…, cit., pp. 129 e ss.; SIMON DE-AKIN / SUZANNE J. KONZELMANN, “Corporate Governance after Enron: An Age of Enlightenment?”, in JOHN ARMOUR / JOSEPH A. MCCAHERY (Eds.), After Enron…, cit., pp. 155 e ss.; GUIDO FERRARINI / PAOLO GIUDICI, “Financial Scandals and the Role of Private Enforcement: the Parmalat case”, in JOHN ARMOUR / JOSEPH A. MCCAHERY (Eds.), After Enron…, cit., pp. 159 e ss., JOHN C. COFFEE JR., “A Theory of Corporate Scandals: Why the US and Europe Differ”, in JOHN ARMOUR / JOSEPH A. MCCAHERY (Eds.), After Enron…, cit., pp. 215 e ss. 7 - HENRY HANSMANN/REINIER KRAAKMAN, “The Basic Governance Structure”, in AAVV., The Anatomy of Corporate Law – A Comparative and Functional Approach, Oxford University Press, Oxford, 2004, p. 52. 8 - ADAM SMITH, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, 6.ª Edição, Methuen and Co., Londres, 1950, tradução de LUIS CRISTÓVÃO AGUIAR, A Riqueza das Nações, Volume II, 4.ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2006, p. 362.

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Este desvio constitui um dos chamados proble-mas de agência identificados pelos Autores que participaram numa das obras fundamentais para o estudo actual do direito das sociedades: The Anatomy of Corporate Law – A Comparative and Functional Approach9. Neste estudo, são identificados alguns proble-mas ou custos de agência. Na esteira da utiliza-ção que deles fazem os investigadores no âmbi-to das ciências económicas, são considerados problemas ou custos de agência aqueles proble-mas ou custos que surgem quando o bem-estar de uma entidade (o principal) depende da actua-ção de outra entidade (o agente), sendo que o problema reside essencialmente em motivar o agente para, na sua actuação, privilegiar os inte-resses do principal e não os seus10. São três os problemas de agência identifica-dos11: os problemas de agência na relação entre os accionistas ou proprietários da sociedade (principais) e os administradores (agentes); os problemas de agência na relação entre os accionistas maioritários ou de controlo da sociedade (agentes) e os accionistas minoritá-rios (principais); os problemas de agência na relação entre a sociedade (agente) e os terceiros com quem ela se relaciona, tais como clientes, trabalhadores e credores (principais).

3- ESTRATÉGIAS DE MITIGAÇÃO DOS CUSTOS DE AGÊNCIA: OS PADRÕES DE CONDUTA

De acordo com a investigação efectuada em Anatomy of Corporate Law, existem bastantes semelhanças nas estratégias seguidas no con-junto de ordenamentos estudados para diminuir os custos de agência12, sendo possível agrupá-las em: estratégias regulatórias (regulatory stra-tegies), de natureza prescritiva e que determi-nam o conteúdo da relação de agência propria-mente dita; e estratégias de governo (governance strategies), através das quais se visa proteger os principais, quer aumentando os seus poderes, quer aumentando os incentivos para os agentes.13

Como estratégias regulatórias, a par dos meca-nismos relativos à entrada e saída dos agentes e principais14, salientam-se as estratégias relacio-nadas com a regulação da conduta dos agentes, através da utilização de regras que obrigam ou proíbem determinados comportamentos e de cláusulas gerais de conduta15, em que se inclui o dever de cuidado. As primeiras são frequente-mente utilizadas no âmbito das relações de agência extra-societárias, sendo que as segun-das são mais frequentes nas situações intra-societárias.16

9 - The Anatomy of Corporate Law – A Comparative and Functional Approach, cit. Trata-se de um estudo que agrupou um notável conjunto de investigadores: REINIER R. KRAAKMAN, PAUL DAVIES, HENRY HANSMANN, GERARD HERTIG, KLAUS J. HOPT, HIDEKI KANDA e EDWARD B. ROCK. 10 - HENRY HANSMANN/REINIER KRAAKMAN, “Agency Problems and Legal Strategies”, in AAVV., The Anatomy of Corporate Law – A Comparative and Functional Approach, cit., p. 21. 11 - Ob. cit., p. 22. 12 - A obra analisa principalmente 5 jurisdições – França, Alemanha, Japão, Reino Unido e Estados Unidos da América – sendo que não deixa, contudo de fazer referências a outras jurisdições sempre que tal se demonstre relevante. 13 - HENRY HANSMANN/REINIER KRAAKMAN, “Agency Problems and Legal Strategies”, in AAVV., The Anatomy of Corporate Law – A Comparative and Functional Approach, cit., p. 23. 14 - Tais como a atribuição ao credor do direito a exigir o vencimento antecipado do seu crédito em determinadas situações, vide ob. cit., p. 24. 15 - Ibidem. 16 - Ibidem.

A RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES... : 09

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O estabelecimento de padrões de conduta gené-ricos, tal como o dever de actuação cuidadosa, tem sido reconhecido como uma das estratégias de melhoria do governo das sociedades17, sendo que o incumprimento destes deveres de cuidado se encontra necessariamente ligado à responsa-bilidade civil dos administradores, também ela ligada à melhoria do corporate governance, ainda que, como veremos, o seu papel nem sempre seja unânime.18

Em maior ou menor escala, as conclusões da investigação efectuada no The Anatomy of Cor-porate Law são transponíveis para a jurisdição portuguesa onde hoje pontificam actualmente os deveres de cuidado dos administradores.19

Ainda que seja evidente que a relação de agên-cia fundamental a que se dirigem os deveres de cuidado é a relação accionistas-administradores, visando minorar os custos e problemas resultan-tes de uma actuação desatenta ou pouco esfor-çada dos administradores, terá de se admitir que a mitigação será, em regra, efectuada em termos indirectos, através da sociedade. Em regra, é perante a sociedade que os administradores são responsáveis pelo incumprimento dos respecti-vos deveres de cuidado.

A utilização de padrões gerais de conduta (como os deveres de cuidado e outros deveres fiduciários) torna-se necessária em situações em

que não é possível estabelecer à partida regras detalhadas sobre todas e quaisquer situações com que se deparará a actuação dos administra-dores. Na medida em que é impossível determi-nar o que é uma gestão com qualidade, estabe-lece-se esse padrão geral de actuação qualitati-va, de esforço20.

Ainda que não sirva como alternativa global, alguns dos conteúdos normativos que integram actualmente os deveres de cuidado dos adminis-tradores21 podem integrar regras. Por exemplo, o dever de supervisão poderia consubstanciar-se numa obrigação detalhada de estabelecimento de um sistema de controlo interno, pelo menos para as sociedades cotadas ou para as socieda-des anónimas de maior dimensão. Foi o que aconteceu, em parte, com o Sarbanes-Oxley Act nos Estados Unidos da América, em que a fede-ralização de alguns deveres de cuidado se con-substanciou na obrigação de estabelecimento de um sistema de controlo interno, dando-se, por-tanto, uma materialização em termos de regras de conteúdo normativo anteriormente apenas expresso em termos de padrão ou standard.22

No confronto entre o recurso a regras ou a cláu-sulas gerais de conduta, facilmente se atribui como principal vantagem das primeiras a certe-za e como principal inconveniência a rigidez. Pelo contrário, no que diz respeito às cláusulas gerais, como principal vantagem temos a maior

17 - HENRY HANSMANN/REINIER KRAAKMAN, “The Basic Governance Structure”, cit., p. 52. 18 - CÁNDIDO PAZ-ARES, “La responsabilidad de los administradores como instrumento de gobierno corporativo”, in InDret, WP 162, Barcelona, 2003, pp. 5 e ss., disponível em www.indret.com. 19 - Vide BRUNO FERREIRA, “Os deveres de cuidado dos administradores e gerentes - Análise dos deveres de cuidado em Portugal e nos Estados Unidos da América fora das situações de disputa sobre o controlo societário”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, [n.º 30, Dezembro de 2008]. 20 - Como salientam Frank Easterbrook e Daniel Fischel, não sendo possível estabelecer todas as condições da actuação dos administradores na sociedade (que os autores reconduzem a diversos feixes de relações contratuais) apenas resta fazer uma exigência de actuação honesta e esforçada por parte dos administrado-res enquanto fiduciários, vide FRANK H. EASTERBROOK / DANIEL R. FISCHEL, The Economic Structure of Corporate Law, Harvard University Press, Cambridge/London, 1991, pp. 90-93. 21 - Vide BRUNO FERREIRA, “Os deveres de cuidado dos administradores e gerentes - Análise dos deveres de cuidado em Portugal e nos Estados Unidos da América fora das situações de disputa sobre o controlo societário”, cit.. 22 - LYMAN P.Q. JOHNSON / MARK A. SIDES, “The Sarbanes-Oxley Act and Fiduciary Duties”, in William and Mitchell Law Review, Vol. 30, n.º 4, 2004, disponível na SSRN em http://ssrn.com/abstract=528523, p. 1195.

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adaptabilidade ao caso concreto (o que não dei-xa de poder ser feito pelo julgador, aquando da aplicação das regras) e à evolução da consciên-cia colectiva, e como desvantagem o facto de não transmitir comandos tão claros quanto à conduta a adoptar em concreto.

Tendo em conta a variedade de comandos nor-mativos concretos que consideramos ser possí-vel retirar do dever de cuidado actualmente estabelecido no artigo 64.º/1/a)23, não considera-mos ser possível fazer um juízo genérico sobre a opção do legislador da Reforma de 2006 na escolha entre regras gerais e padrões de condu-ta. Esta análise apenas poderá ser efectuada caso a caso. Não podemos, contudo, deixar de reconhecer que nem para todas as cláusulas gerais de actuação é possível estabelecer regras concretas, sendo que nem todo o conteúdo nor-mativo ínsito numa cláusula geral é possível transpor para uma regra – temos, como exem-plo, o dever de disponibilidade, relativamente ao qual se torna bastante difícil estabelecer limiares quantitativos. Porém, à medida que o conteúdo dos deveres de cuidado se vai sedimentando quer pela prática, quer pela interpretação judicativa que dos mes-mos vá sendo feita pelos tribunais, podem e devem os respectivos conteúdos normativos ser transpostos para regras claras que permitam aos administradores compreender o que deles se espera. Como se tem concluído a respeito dos fundamentos da business judgement rule24, a actuação dos administradores e a respectiva

necessidade de tomar decisões arriscadas não deve ser coarctada por incertezas relativamente à legalidade do seu comportamento. 4– OS DEVERES DE CUIDADO NA REFORMA DE 2006 E O IMPACTO NA RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES

Apesar de terem sido divulgados pela CMVM alguns estudos preparatórios de parte da Refor-ma de 2006, aquando da realização da respecti-va consulta pública, de que tenhamos conheci-mento não foram divulgados ou mesmo efec-tuados quaisquer estudos exaustivos relativos ao seu impacto. Aplaudindo-se a inovação no que diz respeito à realização da consulta públi-ca, não poderá deixar de se salientar que a eventual ausência de estudos de impacto das alterações empreendidas deixa-nos afastados das melhores práticas internacionais.25

Esta ausência ou falta de divulgação de even-tuais estudos de impacto, combinada com a ausência de divulgação de estudos empíricos ou mesmo teóricos, lança bastantes dúvidas sobre o impacto que a Reforma de 2006 terá no tecido societário nacional, não só na actuação dos administradores, mas também na responsabili-dade que para os mesmos poderá advir em resultado do incumprimento dos deveres de cui-dado.

Ainda que se considere que o conteúdo norma-tivo do artigo 64.º/1/a) não é completamente novo, a simples ocasião da sua natureza mais

23 - BRUNO FERREIRA, “Os deveres de cuidado dos administradores e gerentes - Análise dos deveres de cuidado em Portugal e nos Estados Unidos da América fora das situações de disputa sobre o controlo societário”, cit. 24 - BRUNO FERREIRA, “Os deveres de cuidado dos administradores e gerentes - Análise dos deveres de cuidado em Portugal e nos Estados Unidos da América fora das situações de disputa sobre o controlo societário”, cit. 25 - Veja-se, por exemplo, a completíssima análise realizada pelo então Department of Trade and Industry do Reino Unido (actualmente denominado de Department for Business Entreprise & Regulatory Reform) a propósito do Companies Act 2006.

A RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES... : 11

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explícita na sequência da Reforma de 2006, poderia, certamente, expor os gerentes e admi-nistradores a uma maior responsabilidade. Aliás, a falta de ocorrências judiciais relaciona-das com a responsabilidade dos administradores por danos por si causados parece ser um dos pressupostos da Reforma de 200626, ainda que não seja totalmente claro se a alteração efectua-da ao artigo 64.º/1/a) teve como um dos seus objectivos alterar este estado de coisas. Na verdade, mesmo que porventura a alteração do artigo 64.º/1/a) tenha tido como principal propósito a revitalização da responsabilidade civil dos administradores e gerentes, através da análise das conclusões dos estudos de direito comparado efectuados sobre o tema, poder-se-á concluir que será bastante difícil que tal se venha a verificar. Sendo uma situação de facto comummente referida pela doutrina e que pode ser verificada em termos jurisprudenciais27, faltam, contudo, estudos empíricos e teóricos que analisem não apenas os motivos, mas prin-cipalmente as consequências que daí advenham

para o governo das sociedades nacionais.

4.1 A baixa incidência da responsabilidade civil dos administradores

Ainda que efectuados maioritariamente no âmbito da responsabilidade dos administradores não executivos de sociedades cotadas (public company outside directors), existem actualmen-te alguns estudos que permitem concluir que não é tanto pela falta da previsão legal de um dever de cuidado (ou mesmo de outros deveres) que existe uma menor incidência da responsabi-lidade dos administradores por danos causados à sociedade.

Conforme veremos em seguida, ainda que alguns destes estudos tenham natureza limitada, abrangendo apenas a análise da responsabilida-de dos referidos administradores por condutas livres de conflitos de interesses28, muitas das conclusões destes e de outros estudos29, são transponíveis não só para as sociedades cotadas da jurisdição nacional, mas também para outras sociedades, que não apenas sociedades cotadas.

26 - De acordo com o documento de consulta pública relativo à Reforma de 2006 divulgado pela CMVM, pronunciando-se acerca do excesso de litigância noutras jurisdições: “Aliás, não existe tal excesso e, antes pelo contrário, existirá um défice de ocorrências jurisprudenciais nesta área, significando um suba-proveitamento dos dispositivos nacionais sobre reparação de danos causados por administradores”, Governo das Sociedades Anónimas: Proposta de Alteração ao Código das Sociedades Comerciais – Processo de Consulta Pública n.º 1/2006, cit., p. 18. 27 - Após uma análise da casuística da jurisprudência dos tribunais superiores portugueses, verifica-se que nos últimos 20 anos surgem 46 acórdãos dos tribu-nais superiores, sendo que a pesquisa foi efectuada em termos que pretendiam assegurar a exaustividade, pelo que acreditamos que estas decisões correspon-dem ao total de jurisprudência publicada sobre a responsabilidade civil dos gerentes e administradores nos últimos 20 anos. Dos 46 acórdãos analisados apenas 10 dizem respeito à responsabilidade dos administradores de sociedades anónimas, sendo que as restantes 36 decisões (aproximadamente 78%) dizem respeito à responsabilidade civil dos gerentes das sociedades por quotas, o que não deixa de ser natural, tendo em conta que as sociedades por quotas são o tipo societá-rio predominante no universo nacional das sociedades comerciais. Por outro lado, como nota a salientar, refira-se que dos 46 acórdãos analisados apenas oito fazem referência expressa à possibilidade de violação do artigo 64.º do CSC, sendo que a maioria dos restantes acórdãos diz respeito sobretudo aos aspectos processuais da responsabilidade dos administradores e gerentes, nomeadamente quanto à legitimidade para o recurso à acção individual dos sócios, tendo versado também sobre a definição do conceito de danos directos dos sócios e sobre a verificação dos requisitos para a responsabilização dos gerentes perante os credores (mais precisamente sobre a identificação das normas que se destinam à protecção dos credores sociais). Tal como acontece noutras jurisdições (Vide MENEZES CORDEIRO, Da responsabilidade civil dos administradores das Sociedades Comerciais, Lex, Lisboa, 1997, quanto à análise da casuística francesa p. 146, alemã p. 158 e italiana p. 165), em que existe um maior enfoque jurisprudencial sobre as questões relacionadas com a natureza do vínculo do administrador e a respectiva cessação, também na jurisprudência nacional se contrapõe à escassez da casuística relativa à responsabilidade dos administradores uma profusão de decisões relativas à destituição de administradores e gerentes. 28 - BRIAN R. CHEFFINS / BERNARD S. BLACK, “Outside Director Liability Across Countries”, in Texas Law Review, Vol. 84, pp. 1385-1480, 2006, disponível na SSRN em http://ssrn.com/abstract=438321, pp. 1390-1391; BERNARD BLACK / BRIAN CHEFFINS / MICHAEL KLAUSNER, “The Liabil-ity Risk for Outside Directors: A Cross-Border Analysis”, in JOHN ARMOUR / JOSEPH A. MCCAHERY (Eds.), After Enron – Improving Corporate Law and Modernising Securities Regulation in Europe and the US, Hart Publishing, Oxford / Portland, 2006, p. 345. 29 - GUIDO FERRARINI / PAOLO GIUDICI, “Financial Scandals and the Role of Private Enforcement: The Parmalat Case”, in JOHN ARMOUR / JOSEPH A. MCCAHERY (Eds.), After Enron – Improving Corporate Law and Modernising Securities Regulation in Europe and the US, cit., p. 158.

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da jurisdição nacional, mas também para outras sociedades, que não apenas sociedades cotadas.

Por outro lado, muitas das conclusões são tam-bém aplicáveis à responsabilidade em resultado da violação dos deveres de cuidado por parte de administradores executivos e mesmo por parte de gerentes, na medida em que a responsabili-dade por violação dos deveres de cuidado é aquela a que estão mais expostos os administra-dores não executivos, especialmente em resulta-do da inobservância do deveres de vigilância e investigação, e que são igualmente aplicáveis a todos eles30. Os estudos elaborados por BERNARD BLACK, BRIAN CHEFFINS e MICHAEL KLAUSNER concluíram pela existência de uma convergência funcional, não apenas entre as jurisdições estudadas da common law mas também de direito civil31, nos termos da qual os administradores não executivos das sociedades cotadas muito raramente são obrigados a desembolsar montantes no âmbito da obrigação de indemnizar (out of pocket liability)32, no que diz respeito à responsabilidade por violação de normas de direito das sociedades, onde se incluem os deveres de cuidado, mas também normas no domínio dos valores mobiliários e

insolvência33. Com excepção dos Estados Unidos da América, onde se verifica uma maior litigiosidade34, a referida falta de desembolso corresponde também a uma menor incidência de processos (judiciais ou administrativos, estes últimos impulsionados por supervisores públi-cos) relacionados com a responsabilização de administradores não executivos.35

Apesar do número elevado de lawsuits (em que se incluem as chamadas class actions) contra os outside directors nos Estados Unidos, os referi-dos administradores acabam por raramente ter de desembolsar dinheiro36, situação para que contribuem diversos factores de que se destaca a aplicação da business judgement rule e a pro-liferação de cláusulas estatutárias37 que isentam os administradores de responsabilidade em determinadas situações38; a existência de cláu-sulas de indemnification nos estatutos das sociedades, de acordo com as quais a sociedade se obriga a compensar os administradores pelas despesas, custos e outros montantes que tenham desembolsado em resultado da sua responsabili-zação no exercício das respectivas funções39; a contratação de seguros de responsabilidade civil (D&O insurance)40; e outros factores que pres-sionam as partes a transigir (sem que os outside directors desembolsem qualquer montante)

30 - BRUNO FERREIRA, “Os deveres de cuidado dos administradores e gerentes - Análise dos deveres de cuidado em Portugal e nos Estados Unidos da América fora das situações de disputa sobre o controlo societário”, cit. 31 - Alemanha, França e Japão. 32 - BRIAN R. CHEFFINS / BERNARD S. BLACK, “Outside Director Liability Across Countries”, cit., pp. 1389 e 1462. 33 - Trata-se de responsabilidade entendida em termos abrangentes, como “liable for something, under some law”, vide ob. cit., p. 1390. 34 - BERNARD BLACK / BRIAN CHEFFINS / MICHAEL KLAUSNER, “Outside Director Liability”, in Stanford Law Review, Vol. 58, pp. 1055-1159, 2006, disponível na SSRN em http://ssrn.com/abstract=894921, p. 40. 35 - BRIAN R. CHEFFINS / BERNARD S. BLACK, “Outside Director Liability Across Countries”, cit., p. 1462. 36 - Tendo lugar aquilo a que os autores chamam de responsabilidade nominal (nominal liability). 37 - Cuja inserção é expressamente permitida por lei, tal como a Section 102(b)(7) da Delaware General Corporation Law. 38 - BERNARD BLACK / BRIAN CHEFFINS / MICHAEL KLAUSNER, “Outside Director Liability”, cit., p. 9. 39 - Ob. cit., p. 12. 40 - Ob. cit., p. 14.

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antes de realizado qualquer julgamento41. Isto para além do facto de, em regra, as violações negligentes dos deveres de cuidado apenas gerarem responsabilidade perante situações de gross negligence42.

Como excepções mais notórias, identificam-se dois casos recentes envolvendo os administra-dores não executivos da Enron e da Worldcom43 (considerados situações excepcionais44) e que se poderão incluir naquilo a que os Autores cha-mam de situações “send a message cases”, em que os investidores, muitas vezes institucionais, pretendem enviar uma mensagem aos restantes administradores para que cumpram as suas obrigações legais, não tomando decisões que maximizem os respectivos custos do litígio com os benefícios que do mesmo são retirados45. Esta situação não se terá alterado com o Sarbanes-Oxley Act, sendo que uma das mais veementes críticas dirigidas a esta legislação diz exactamente respeito à manutenção do sta-tus quo quanto à (rara) responsabilização dos administradores46.

No que diz respeito às jurisdições de direito civil, existem um conjunto de factores proces-suais e práticos que impedem ou desencorajam a existência de acções que visem a responsabili-zação de administradores, em especial de admi-nistradores não executivos.

Para além da inexistência das chamadas class actions47, factor com especial incidência no âmbito das sociedades cotadas tendo em conta a dispersão dos investidores, destacam-se como outros entraves que podem ser aplicáveis aquando da análise da jurisdição nacional: (i) a configuração das regras relativas aos custos do processo, especialmente no que diz respeito aos honorários dos advogados48, em que a parte vencida se pode ver obrigada a pagar parte ou a totalidade dos custos da parte vencedora, o que poderá implicar uma alteração na ponderação custos/benefícios49; (ii) o facto de na acção social ut singuli ser difícil o acesso pelos sócios à informação detida pela sociedade relativa aos factos em causa, especialmente porque estes não sabem quais os documentos que existem50 (iii) o facto de na acção social ut singuli a

41 - Tais como os custos com advogados, vide ob. cit., pp. 18 e ss. 42 - Vide BRUNO FERREIRA, “Os deveres de cuidado dos administradores e gerentes - Análise dos deveres de cuidado em Portugal e nos Estados Unidos da América fora das situações de disputa sobre o controlo societário”, cit.. 43 - IRA M. MILLSTEIN / E. NORMAN VEASEY, “Some Thoughts on Director Protection In Light of the Worldcom and Enron Settlements; Suggestions for Directors”, in Metropolitan Corporate Counsel, Junho 2005. 44 - BERNARD BLACK / BRIAN CHEFFINS / MICHAEL KLAUSNER, “The Liability Risk for Outside Directors: A Cross-Border Analysis”, in JOHN ARMOUR / JOSEPH A. MCCAHERY (Eds.), After Enron – Improving Corporate Law and Modernising Securities Regulation in Europe and the US, cit., p. 354. 45 - BRIAN R. CHEFFINS / BERNARD S. BLACK, “Outside Director Liability Across Countries”, cit., p. 1476. 46 - LISA M. FAIRFAX, “Spare the Rod, Spoil the Director? Revitalizing Directors' Fiduciary Duty Through Legal Liability”, in Houston Law Review, Vol. 42, pp. 393-456, 2005, pp. 407 e ss.. 47 - GUIDO FERRARINI / PAOLO GIUDICI, “Financial Scandals and the Role of Private Enforcement: the Parmalat case”, cit., pp. 193 e ss. 48 - BRIAN R. CHEFFINS / BERNARD S. BLACK, “Outside Director Liability Across Countries”, cit., p. 1463. 49 - Em Portugal, ainda que actualmente se destaque apenas a eventual obrigação do litigante de má-fé ter de reembolsar a parte contrária dos honorários dos mandatários, nos termos dos artigos 456.º e 457.º do Código de Processo Civil, deverá salientar-se que, no âmbito da revisão do Código das Custas Judiciais, o Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, introduziu o novo artigo 447.º - D, em que se estabelece que as custas da parte vencedora (em que se inclui nomeadamente os honorários dos advogados) são suportadas pela parte vencida, na proporção do seu decaimento e nos termos previstos no Regulamento das Custas Processuais. Esta alteração poderá, portanto, agravar os factores que desencorajam a responsabilização dos administradores. 50 - GUIDO FERRARINI / PAOLO GIUDICI, “Financial Scandals and the Role of Private Enforcement: the Parmalat case”, cit., p. 201.

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credora da obrigação de indemnização ser a própria sociedade, tornando os benefícios indi-rectos relativamente aos custos suportados com a acção social51, 52.

A estes factores, que têm especial incidência na acção social ut singuli, juntam-se outros de ordem prática e com maior incidência geral, relacionados com a necessidade da acção social ut universi dever ser objecto de deliberação pelos sócios, facto que na Europa continental tem especial preponderância, tendo em conta a relação de maior proximidade entre accionistas e administradores resultante da menor dispersão do capital social53. Este facto leva a que exista alguma relutância por parte dos accionistas de controlo em responsabilizar administradores relativamente aos quais existia uma relação de proximidade. Outro dos factores que também pode contribuir para esta relutância poderá ter que ver com a dimensão do mercado nacional e o consequente menor número de posições de administração disponíveis, o que poderá desen-corajar a alienação de pessoas que poderão, em termos futuros, estar numa posição que influen-cie a contratação.

Como resulta desta análise preliminar, torna-se necessário aprofundar qual o papel desempe-nhado por estes factores na jurisdição nacional, sendo que deverão ser ponderados factores adicionais, nomeadamente no que diz respeito à eventual influência dos investidores institucionais. 4.2 A responsabilidade civil como instrumento de corporate governance Encontra-se também por fazer em Portugal uma investigação aprofundada das vantagens e inconvenientes do maior ou menor risco de res-ponsabilidade dos administradores, especial-mente no que diz respeito à inobservância dos deveres de cuidado, e também uma investigação às estratégias que, em alternativa à responsabili-zação dos administradores, se dirigem ou con-tribuem para assegurar a qualidade da conduta dos administradores.

Como inconvenientes da excessiva responsabi-lização dos administradores têm sido apontados não apenas o perigo de uma actuação excessivamente cautelosa por parte dos administradores54, com a proliferação de

51 - BRIAN R. CHEFFINS / BERNARD S. BLACK, “Outside Director Liability Across Countries”, cit., p. 1463. 52 - Para uma análise da relevância comparativa destes e outros factores vide, para além dos Autores citados nas notas anteriores, GEOFFREY C. HAZARD, “Azioni di responsabilità verso gli amministratori di società commerciali nel diritto statunitense”, in Rivista delle Società, Ano 39, n.º 1, pp. 441-456, 1994. 53 - Nos EUA e no Reino Unido predomina o sistema de governo das sociedades apelidado de “outsider”, em que o capital se encontra disperso, não havendo, em regra, accionistas que detenham controlo significativo sobre os destinos da sociedade (Vide JOHN ARMOUR / JOSEPH A. MCCAHERY (Eds.), After Enron…, cit., p. 8 e bibliografia aí indicada. Vide ainda RAFAEL LA PORTA / FLORENCIO LOPEZ-DE-SILANES / ANDREI SHLEIFER, “Corporate Ownership Around the World”, Harvard Institute of Economic Research Paper No. 1840, 1998, disponível na SSRN em http://ssrn.com/abstract=103130, pp. 19 e 20.). Por contraposição, a este sistema anglo-americano, predomina na Europa continental (e, em certa medida, nas restantes jurisdições que não as de common law) o sistema de governo de sociedades dito “insider”, que se pauta por uma menor dispersão do capital das sociedades, existindo, em regra, accio-nistas de controlo (blockholders) (JOHN ARMOUR / JOSEPH A. MCCAHERY (Eds.), After Enron…, cit., p. 9; RAFAEL LA PORTA / FLORENCIO LOPEZ-DE-SILANES / ANDREI SHLEIFER, “Corporate Ownership Around the World”, cit., pp. 19 e 20. São estes accionistas de controlo que geram o problema de agência mais preocupante na Europa continental, nomeadamente perante os accionistas minoritários vide LUCA ENRIQUES / PAOLO F. VOL-PIN, “Corporate Governance Reforms in Continental Europe”, in Journal of Economic Perspectives, Vol. 21 No. 1, pp. 117-140, 2007, disponível na SSRN em http://ssrn.com/abstract=970796.). Depois de uma primeira explicação avançada por RAFAEL LA PORTA / FLORENCIO LOPEZ-DE-SILANES / ANDREI SHLEIFER / ROBERT W. VISHNY, “Law and Finance”, NBER Working Paper No. W5661, 1996, disponível na SSRN em http://ssrn.com/abstract=7788, no sentido de que a dispersão se tenderia a verificar nas jurisdições que conferem uma maior protecção aos accionistas (ob. cit., pp. 28 e ss. e RAFAEL LA POR-TA / FLORENCIO LOPEZ-DE-SILANES / ANDREI SHLEIFER, “Corporate Ownership Around the World”, cit., p. 3), surgiram posições divergentes, pondo não só em causa o método seguido por estes autores mas também as respectivas conclusões - vide SOFIE COOLS, “The Real Difference in Corporate Law between the United States and Continental Europe: Distribution of Powers”, in Delaware Journal of Corporate Law, Vol. 30, No. 3, pp. 697-766, 2005, disponível na SSRN em http://ssrn.com/abstract=893941, pp. 704 e ss. e diversa bibliografia aí citada. 54 - BRIAN R. CHEFFINS / BERNARD S. BLACK, “Outside Director Liability Across Countries”, cit., p. 1478.

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cuidados desnecessários, tais como a obtenção de pareceres e fairness opinions mesmo para as decisões mais básicas e a formalização (paper trail) e debates excessivos sobre cada decisão, mas também a diminuição do universo de pes-soas disponíveis para ocupar os cargos e o aumento da sua remuneração, tendo em conta o aumento dos riscos a que estão sujeitos55. No âmbito particular dos deveres de cuidado, deve salientar-se que a sua natureza genérica pode potenciar comportamentos excessivamente cau-telosos normalmente associados ao excesso de responsabilidade.56

Existem outros factores que, a par ou em substi-tuição da responsabilidade dos administradores também se dirigem ou contribuem para a quali-dade da conduta dos administradores, entre os quais se salientam: a necessidade de acautelar danos de reputação57; a existência de incentivos através da associação do património do admi-nistrador ao sucesso da sociedade58, incluindo a detenção de acções da sociedade; a monitoriza-ção por parte dos fornecedores de seguros (D&O Insurance)59; o profissionalismo dos administradores60 e o medo de responsabilidade, ainda que a mesma não tenha correspondência na realidade61. Estas estratégias ou factores alternativos podem ser combinados com a limi-tação da obrigação de indemnizar em caso de

violação negligente dos deveres de cuidado a um determinado montante, normalmente rela-cionado com a remuneração auferida pelo administrador.62

Tal como seria de esperar, existem profundas divergências quer quanto ao papel da responsa-bilização dos administradores, quer quanto ao papel das estratégias alternativas.63 A ponderação entre todos estes factores e a deter-minação do nível óptimo de risco a que devem estar sujeitos os administradores e gerentes não obtém uma resposta única, não podendo utilizar-se uma aproximação genérica (one size fits all) para todos os tipos societários e para as sociedades de todas as dimensões, sendo que mesmo no âmbito dos estudos internacio-nais existem, actualmente, poucas certezas quanto ao nível em que se deve encontrar o equilíbrio no que respeita à responsabilidade dos administradores64. 4.3 O impacto da Reforma de 2006 na responsabilidade civil dos administradores Apesar de ter alterado a redacção do artigo 64.º, a Reforma de 2006 não terá modificado a situa-ção de (reduzido) risco de responsabilização dos administradores, na medida em que a ampliação do seu conteúdo normativo através

55 - BERNARD BLACK / BRIAN CHEFFINS / MICHAEL KLAUSNER, “Outside Director Liability: A Policy Analysis”, in Journal of Institutional and Theoretical Economics, Vol. 162, 2006, disponível na SSRN em http://ssrn.com/abstract=878135, p. 12.

56 - CANDIDO PAZ-ARES, “Directors’ duties and directors’ liabilities”, in ELLA GEPKEN-JAGER / GERARD VON SOLINGE / LEVINUS TIMMERMAN (Edits.), VOC 1602/2002 – 400 years of company law, Kluwer Legal Publishers, The Netherlands, 2005, p. 329; CÁNDIDO PAZ-ARES, “La responsabilidad de los administradores como instrumento de gobierno corporativo”, cit., p. 8.

57 - BERNARD BLACK / BRIAN CHEFFINS / MICHAEL KLAUSNER, “Outside Director Liability”, cit., p. 44.

58 - Ob. cit., p. 41.

59 - Ob. cit., p. 43.

60 - Ob. cit., p. 48.

61 - Ob. cit., p. 50.

62 - CANDIDO PAZ-ARES, “Directors’ duties and directors’ liabilities”, cit., pp. 368 e 369.

63 - Para uma descrição, vide, LISA M. FAIRFAX, “Spare the Rod, Spoil the Director? Revitalizing Directors' Fiduciary Duty Through Legal Liability”, cit., pp. 427 e ss.

64 - BRIAN R. CHEFFINS / BERNARD S. BLACK, “Outside Director Liability Across Countries”, cit., p. 1480.

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da explicitação de deveres de cuidado foi em parte contrabalançada com a introdução da business judgement rule. Porém, mesmo que esta regra não tivesse sido introduzida pela Reforma de 2006 e, em qual-quer caso, nas situações em que a mesma não é aplicável, tendemos a considerar que a alteração do artigo 64.º não corresponderá a um aumento da ocorrência de situações de responsabilidade civil dos administradores por violação dos deveres de cuidado, na medida em que a Refor-ma de 2006 acaba por não alterar muitos dos factores que, à primeira vista, levam a que exis-ta uma baixa incidência de situações de respon-sabilização dos administradores.

Num estudo recente de diversas jurisdições pre-parado para o Russian Center for Capital Mar-ket Development sobre a responsabilidade dos membros dos órgãos de gestão e administração das sociedades dirigido por BERNARD BLACK é salientada a importância dos factores procedimentais ou processuais para fomentar o recurso às normas relativas à responsabilidade civil: “Even well-drafted substantive rules, con-tained in the company law, will often be rarely used if procedural rules discourage sharehol-der suits”65.

Por outro lado, no estudo empírico realizado pelo ESCR Centre for Business Research sobre o impacto da codificação dos deveres dos admi-nistradores no Companies Act 2006 do Reino

Unido, em que se incluía o dever de cuidado, concluiu-se que a mesma não deveria aumentar os níveis de litigância para os níveis dos Estados Unidos da América, tendo em conta as diferenças em termos processuais e procedi-mentais entre o Reino Unido e os Estados Uni-dos da América: “It seems unlikely that the volume of such litigation would increase to US levels even if the law relating to the duty of care were to made more stringent, since rules of procedure (…) would be much less amenable to this type of action than is the case in most US jurisdictions”.66

Também na Alemanha67 e em Itália68 é salienta-da a importância das questões de natureza pro-cessual/procedimental como factores que con-tribuem para desencorajar a responsabilização dos membros administradores.

Contudo, não existem estudos sobre a jurisdi-ção nacional que permitam retirar conclusões com toda a certeza acerca desta matéria.

Aliás, mesmo que tivesse sido aumentado o risco de responsabilização dos administradores pelo desempenho das suas funções fora de situações de conflito de interesses, existem evi-dências dos estudos realizados nas restantes jurisdições de que os movimentos dirigidos ao aumento do risco de responsabilidade dos admi-nistradores tendem a ter rápidas respostas em sentido contrário, tal como aconteceu na sequência do caso Van Gorkom, em que o

65 - BERNARD S. BLACK / BRIAN R. CHEFFINS / MARTIN GELTER / HWA-JIN KIM / RICHARD NOLAN / MATHIAS SIEMS / LINIA PRAVA, “Report to Russian Center for Capital Market Development: Comparative Analysis on Legal Regulation of the Liability of Members of the Board of Directors and Executive Organs of Companies (English Language Version)”, U. of Texas Law, Law and Econ Research Paper No. 110, 1997, disponível na SSRN em http://ssrn.com/abstract=1001990, p. 255. 66 - SIMON DEAKIN / ALAN HUGHES, Directors Duties: Empirical Findings – Report to the Law Commissions, Cambridge, 1999, ponto 7. 67 - Vide FRANK WOOLDRIDGE, “Duty of Care and Liabilities of Members of the Two Boards of German Public Companies”, in EBLR Vol. 17, No. 1, pp. 109-120, 2006, p. 119; THEODOR BAUMS / KENNETH E. SCOTT, “Taking Shareholder Protection Seriously? Corporate Governance in the United States and Germany”, in American Journal of Comparative Law, Vol. 53, 2005, disponível na SSRN em http://ssrn.com/abstract=473185, p. 12; ULRICH NOACK / DIRK ZETSCHE, “Corporate Governance Reform in Germany: The Second Decade”, in EBLR Vol. 16, No. 5, pp. 1033-1064, 2005, p. 1041-1042. 68 - Vide EUGENIO RUGGIERO, “Italy”, in ARTHUR R. PINTO / GUSTAVO VISENTINI (Edits.), The Legal Basis of Corporate Governance in Publicly Held Corporations – A Comparative Approach, Kluwer Law International, The Hague, 1998, p. 104

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Estado de Delaware aprovou uma alteração ao Delaware General Corporation Law que permitiu, através da criação da Section 102(b)(7), a inserção nos estatutos de uma cláusula que eliminasse a responsabilidade dos adminis-tradores pela violação dos respectivos deveres fiduciários quando os mesmos tenham actuado de boa-fé e sem conflitos de interesses69, e, tam-bém, com a introdução da business judgement rule na Alemanha70, entre outros exemplos71.

Ainda que possa não ter influência directa na

responsabilidade civil dos administradores e gerentes, a explicitação dos deveres de cuidado poderá, apesar de tudo, influenciar directamente a actuação dos mesmos, quer quando estes não tenham em conta os baixos índices de responsa-bilização, quer especialmente em resultado da intervenção supervisora dos investidores, espe-cialmente institucionais, que, por exemplo, indaguem acerca do estabelecimento de siste-mas de controlo interno, e da CMVM através nomeadamente do estabelecimento de regras que obrigam as sociedades cotadas a divulgar a implementação de sistemas de controlo interno.

69 - BERNARD BLACK / BRIAN CHEFFINS / MICHAEL KLAUSNER, “Outside Director Liability”, cit., p. 9. 70 - BRIAN R. CHEFFINS / BERNARD S. BLACK, “Outside Director Liability Across Countries”, cit., p. 1464. 71 - Vide ob. cit., pp. 1464 e ss.

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INTRODUÇÃO O actual regime da oferta pública de aquisição concorrente apresenta incoerências jurídicas e suscita dúvidas interpretativas para as quais urge encontrar as soluções mais adequadas. A presente análise do regime jurídico das ofertas concorrentes não se esgotará na perspectiva de iure constituto, antes se estenderá para uma perspectiva de iure constituendo. O objectivo manifesto é o de alargar em Portugal o “horizonte” pouco amplo das OPAs concorren-tes, onde até à presente data apenas foram lan-çadas três ofertas concorrentes em nítido con-traste com a importância exponencial que as mesmas assumem nos mercados de capitais mundiais (e.g. oferta concorrente do Royal Bank of Scotland, Santander e Fortis sobre o banco holandês ABN – AMRO cujo valor ascendeu a 72 mil milhões de euros). Onde pára afinal a concorrência nas OPAs em Portugal? Neste breve excurso pelo regime jurídico da OPA concorrente, procurar-se-ão as causas da sua quase “inexistência” e os mecanismos ade-quados para a fazer “ressurgir”!

I. REGIME JURÍDICO DA OPA CONCORRENTE A) REQUISITOS DO LANÇAMENTO 1. PRAZO A oferta concorrente tem que “ser lançada até ao 5.º dia1 anterior àquele em que termine o prazo da oferta inicial” (artigo 185.º-A do Cód.VM). A actual redacção deste preceito foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 219/2006, de 2 de Novembro e veio reduzir o prazo de lança-mento de oferta concorrente em 4 dias2. A CMVM não apresentou, na consulta pública do ante-projecto de Decreto-Lei de transposição da Directiva n.º 2004/25/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril relativa a ofertas públicas de aquisição (“Directiva das OPAs”)3 , qualquer justificação para a redução do prazo legal de lançamento da oferta concorrente4. A redução do prazo de lançamen-to é excessiva sobretudo se conjugada com as

OPA CONCORRENTE MANUEL REQUICHA FERREIRA*

* - Advogado, associado da Gonçalves Pereira, Castelo Branco & Associados, Sociedade de Advogados RL 1- Em relação à contagem de prazos, a CMVM tem entendido que os prazos previstos no Cód.VM se contam seguidos, caso não se refira expressamente que na contagem do prazo deve atender-se apenas aos dias úteis. Esta interpretação baseia-se num argumento de natureza sistemática baseada no facto de o código fazer menção expressa a dias úteis quando pretende que o prazo não seja contado seguido. De referir que a CMVM tem também entendido que, quando o último dia de um prazo seguido termine a um Sábado, Domingo ou Feriado, esse dia transfere-se para o primeiro dia útil seguinte. 2- A redacção inicial do Cód.VM não continha qualquer disposição relativa ao prazo de lançamento de oferta concorrente. O prazo era fixado pelo n.º 1 do artigo 45.º do Regulamento da CMVM n.º 10/2000 sobre Ofertas e Emitentes (com as alterações introduzidas pelos Regulamentos da CMVM n.º 30/2000, n.º 33/2000, n.º 34/2000, n.º 37/2000, n.º 5/2001, n.º 6/2001, n.º 9/2002, n.º 12/2002, n.º 15/2002, n.º 16/2002, n.º 5/2003, n.º 14/2003 e n.º 5/2004). De acordo com este preceito regulamentar, a oferta concorrente tinha que ser lançada até ao dia anterior àquele em que terminasse o prazo da oferta inicial. A redacção inicial do código manteve, portanto, a solução consagrada no predecessor Código do Mercado dos Valores Mobiliários, fixando o prazo legal de lançamento da oferta por referência ao termo da oferta inicial e estendendo-o até ao último dia antes do termo da oferta inicial. 3- A Consulta Pública n.º 11/2005 da CMVM sobre o Ante-Projecto de Diploma de Transposição da Directiva das OPAS limitava-se a considerar ser “merecedor de intervenção legislativa”, face à previsão do artigo 13.º alínea c) da Directiva, o regime sobre ofertas concorrentes, afirmando que os artigos 45.º a 47.º do Regulamento n.º 10/2000 da CMVM deveriam “passar a integrar o Código enquanto regime geral das OPA em complemento do actual artigo 185.º”. 4- O legislador seguiu, em parte, a solução adoptada no direito italiano. O Regolamento di attuazione del decreto legislativo 24 febbraio 1998, n. 58, concer-nente la disciplina degli emittenti dispõe no seu n.º 2 do artigo 44.º que as ofertas concorrentes têm que ser publicadas 5 dias antes do último dia do período de aceitação da oferta precedente.

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demais normas que regulam as OPAs concor-rentes. Poderia argumentar-se que a existência de um prazo entre o fim do lançamento das ofertas concorrentes e o fim do período da ofer-ta permite aos destinatários da oferta, em parti-cular aos pequenos investidores, disporem de um período de reflexão para analisar económica e financeiramente as propostas apresentadas. Esta justificação estaria correcta caso não exis-tissem outros requisitos de lançamento de OPA concorrente que asseguram uma melhoria pro-gressiva das sucessivas ofertas no intuito de proteger os destinatários. Por outro lado, há que atender quer ao disposto no n.º 2 do artigo 185.º-A do Cód.VM, que proíbe o lançamento de ofertas concorrentes num momento que não permita o cumprimento do prazo previsto no n.º 1 do mesmo preceito legal, quer ao disposto no n.º 3 do artigo 185.º do Cód.VM, que confere à CMVM o poder de indeferir o pedido de registo da oferta se concluir, em função da data de apresentação do pedido de registo da oferta e do exame deste último, pela impossibilidade de decisão em tempo que permita o lançamento tempestivo da oferta de acordo com o n.º 1 do artigo 185.º do Cód.VM. Como em seguida se analisará, a articulação destes preceitos conju-gada com o n.º 3 do mesmo artigo conduz, na prática, à quase impossibilidade de lançamento de ofertas concorrentes sobretudo quando estão em causa grandes operações de concentração. Acresce que a redução do prazo poderá ser pre-judicial aos interesses dos próprios destinatários da oferta se acarretar a exclusão de ofertas con-correntes que ofereçam uma melhor contraparti-da para aqueles. Para lá da apreciação crítica geral do prazo definido para o lançamento de oferta concorren-te, o artigo 185.º-A do Cód.VM coloca um

conjunto de questões interpretativas que urge analisar. A primeira questão interpretativa é relativa ao conceito da expressão “lançamento” de oferta concorrente: é necessário determinar se a expressão “lançamento” se refere ao anúncio preliminar de lançamento previsto no artigo 175.º ou antes ao anúncio de lançamento pre-visto do artigo 183.º-A? A questão assume extrema relevância prática, uma vez que, se o “lançamento de oferta con-corrente” do artigo 185.º-A, n.º 1 corresponder ao anúncio preliminar de lançamento, o oferen-te concorrente tem, de facto, a possibilidade de entrar até ao último momento (5 dias antes do termo do prazo da oferta inicial) na disputa pela aquisição da sociedade visada, efectuando a divulgação pública da sua oferta, isto é, o anún-cio preliminar do lançamento da sua oferta nes-se momento. Diferentemente, se o “lançamento de oferta concorrente” corresponder ao anúncio de lançamento, então o oferente concorrente não tem a possibilidade de entrar até ao último momento na disputa pela aquisição da socieda-de visada, pois, para poder publicar aquele anúncio, terá que já ter publicado o seu anúncio preliminar e efectuado o respectivo registo de OPA. A CMVM considerou, num esclarecimento efectuado no âmbito da OPA da Sonaecom sobre a Portugal Telecom, que a referência a “lançamento” de OPA concorrente do antigo artigo 45.º, n.º 1 do Regulamento n.º 10/2000 da CMVM, que estabelecia como prazo de lan-çamento de OPA concorrente o último dia antes do termo do prazo da oferta inicial, se reportava à divulgação do anúncio de lançamento.

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A CMVM não justificou de forma muito clara o seu entendimento5. O regulador limitou-se a referir que, nos termos do Código dos Valores Mobiliários, a CMVM só pode proceder ao registo de OPAs “se e quando forem instruídas com todos os documentos e autorizações admi-nistrativas legalmente exigidos”, nomeadamen-te a decisão “da(s) autoridade(s) da concorrên-cia competente(s)” de acordo com a Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho e os Regulamentos (CE) n.º 139/2004 e n.º 802/2004, e que tal registo tem que ser recusado caso não seja pos-sível, em função da data de apresentação do pedido de registo e do seu exame, efectuar o lançamento tempestivo da oferta nos termos do artigo 45.º, n.º 1 do Regulamento da CMVM n.º 10/2000 (artigo 46.º, n.º 4 do mesmo Regula-mento). O mesmo esclarecimento concluía que a CMVM está impedida de registar qualquer oferta concorrente que, no prazo referido, não seja instruída com todos os documentos legal-mente exigidos. O antigo artigo 45.º, n.º 1 do Regulamento da CMVM n.º 10/2000 correspon-de ao actual artigo 185.º-A, n.º 1 do Cód.VM com a diferença que o prazo de lançamento de OPA concorrente foi reduzido para 5 dias antes do termo da oferta inicial. Assim, a expressão “lançamento” contida neste preceito entender-se-ia, seguindo o entendimento do esclareci-mento da CMVM, como a divulgação do anún-cio de lançamento6. Julgo que o entendimento da CMVM é o mais correcto face à letra da lei e à articulação dos vários preceitos do Código dos Valores Mobiliários.

O actual artigo 185.º-A, n.º 1 emprega a expres-são “deve ser lançada” que parece exigir um verdadeiro “lançamento” e não uma mera inten-ção de lançamento. O anúncio preliminar decor-re da obrigação de divulgação imediata da tomada de decisão de lançamento da oferta pública de aquisição pelo oferente, sendo que esta decisão não é em si um verdadeiro lança-mento, como aliás o comprova o artigo 175.º, n.º 2 alínea a) que obriga o oferente a “lançar”, após a publicação do anúncio preliminar, oferta em termos não menos favoráveis para os desti-natários que as constantes deste anúncio. Esse outro lançamento consubstancia o verdadeiro lançamento da OPA porque contém os termos da oferta cujo prazo de aceitação se inicia de imediato, enquanto que o anúncio preliminar encerra uma intenção de lançamento que gera unicamente a obrigação de lançamento de uma oferta cujo prazo de aceitação se iniciará num futuro não imediato. Isso justifica que o manan-cial informativo do anúncio de lançamento seja muito superior ao do anúncio preliminar e que o mesmo seja completado pelo prospecto da ofer-ta cuja divulgação é simultânea à do anúncio de lançamento (artigo 183.º-A, n.º 2). Acresce que o n.º 2 do artigo 185.º-A do Cód.VM, introduzido também pelo Decreto-Lei n.º 219/2006, de 2 de Novembro, dispõe que é proibida a publicação do anúncio preliminar em momento que não permita o cumprimento do prazo de lançamento da oferta acima referido. Este preceito legal é novo e veio consagrar, em termos legislativos, o referido entendimento da CMVM à luz do anterior regime jurídico.

5- Vide ESCLARECIMENTO DA CMVM sobre o regime processual das OPAS concorrentes disponível em www.cmvm.pt.

6- JOÃO CALVÃO DA SILVA postula, neste particular, o entendimento da CMVM. O autor refere que o anúncio de lançamento de oferta concorrente está hoje previsto no artigo 183.º-A do Cód.VM, que veio substituir o antigo artigo 123.º do Cód.VM que regulava o chamado sumário das OPAs (um dos documentos da oferta) e que deixou de fazer sentido pois o sumário é um documento que já não faz parte dos documentos das OPAs mas apenas das ofertas públicas de venda (as chamadas OPV’s), consubstanciando o anúncio preliminar um momento prévio do lançamento da oferta previsto naquela norma. O artigo 175.º do Cód.VM vai também neste sentido ao referir que a publicação do anúncio preliminar obriga o oferente a “lançar” oferta em termos não menos favoráveis para os destinatários do que as constantes desse anúncio. Assim, a divulgação do anúncio preliminar de lançamento tem que ser efectuada num momento que permi-ta o registo da oferta pela CMVM e, subsequentemente, a divulgação do respectivo anúncio de lançamento. O entendimento do autor foi expresso em 12 de Junho de 2007 no âmbito da conferência intitulada “Ofertas Concorrentes” do XI Curso de Valores Mobiliários do Instituto de Valores Mobiliários da Faculda-de de Direito da Universidade de Lisboa. Neste sentido, vide também HUGO MOREDO DOS SANTOS, Ofertas Concorrentes, Coimbra Editora, 2008, p. 77.

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O legislador esclareceu que o “lançamento” de OPA concorrente, previsto no artigo 185.º-A, n.º 1, não corresponde ao anúncio preliminar, pois esse anúncio deve ser divulgado num momento que permita efectuar o lançamento da OPA concorrente até 5 dias antes do termo da oferta inicial. O n.º 3 do artigo 185.º-A, n.º 1 reforça este entendimento ao estabelecer que o pedido de registo da oferta concorrente é inde-ferido pela CMVM se esta entidade concluir, em função da data da apresentação do pedido de registo da oferta e do exame deste último, pela impossibilidade de decisão em tempo que permita o lançamento tempestivo da oferta nos termos do artigo 185.º-A, n.º 17. A CMVM indefere assim o pedido de registo da oferta caso o anúncio de lançamento não possa, face à data de apresentação do pedido de registo e da sua análise, ser efectuado até ao 5 dia anterior ao termo da oferta inicial. O “lançamento” cor-responde novamente ao anúncio de lançamento previsto no artigo 183.º-A. Se a solução ora defendida é a mais correcta à luz do direito vigente, já de um ponto de vista substancial e numa perspectiva de iure condendo ela não se afigura como a mais adequada. O anúncio preliminar de lançamento, apesar de não ser um verdadeiro “lançamento” consubs-tanciando antes uma tomada de decisão (expressão última de uma intenção), tem uma importância fundamental no processo de OPA, importância essa que é reconhecida pelo pró-prio mercado. Com efeito, o anúncio preliminar obriga o oferente ao lançamento de OPA, não

se esgotando, por conseguinte, na mera divulga-ção de uma decisão ou expressão de uma inten-ção. A partir desse momento, o mercado sabe que o oferente irá lançar uma oferta que ou mantém as mesmas condições do anúncio preli-minar ou introduz uma melhoria em relação às condições do mesmo. O anúncio de lançamento tem como efeito imediato o aumento das inten-ções de compra (com a consequente subida do preço) das acções da sociedade visada. Os investidores não esperam pelo anúncio de lan-çamento, porque sabem de antemão quais as obrigações a que o oferente está sujeito por for-ça da divulgação do anúncio preliminar. O mer-cado, e de certa forma também o legislador, concebem o anúncio de lançamento como o concretizar dos termos da oferta preliminarmen-te anunciada, perspectivando o anúncio prelimi-nar como o ponto de partida de um processo de OPA que quase “obrigatoriamente” terminará na liquidação da oferta, salvo se circunstâncias especiais (e.g. oposição das autoridades da con-corrência à operação de concentração)8. Ora, este entendimento do mercado, dos investidores e dos destinatários da oferta devia ter respaldo na solução consagrada pelo legislador. A lei devia ter feito corresponder o “lançamento” de oferta concorrente ao anúncio preliminar, por-que é esse o momento que o mercado, investi-dores e destinatários consideram como o momento de “lançamento de OPA concorren-te”. Por outro lado, a solução ora defendida é a que mais incentiva a concorrência pela aquisi-ção da sociedade visada pois alarga o prazo de lançamento de oferta concorrente e não impede os oferentes concorrentes de lançarem a sua OPA por força da demora do processo de registo.

7- Antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 219/2006, de 2 de Novembro, esta possibilidade de indeferimento da CMVM estava consagrada no artigo 46.º, n.º 4 do Regulamento da CMVM n.º 10/2000 sobre Ofertas e Emitentes. 8- Claro que o registo de OPA e subsequente divulgação do anúncio de lançamento também têm impacto no mercado, pois as acções tendem a subir com a ultrapassagem de mais uma fase do processo de OPA. Contudo, o impacto da divulgação do anúncio preliminar no mercado, e em particular na cotação dos valores mobiliários da sociedade visada, é substancialmente maior que o impacto do registo da oferta.

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A segunda questão interpretativa colocada pelo artigo 185.º-A, n.º 1 prende-se com a sua conju-gação com os n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo. Assim, é necessário determinar se a análise da proibição de publicação de anúncio preliminar ou o indeferimento do pedido de registo de OPA, em função da impossibilidade de lança-mento tempestivo de OPA nos termos do artigo 185.º-A, n.º 1, deve atender ao prazo de emis-são dos pareceres exigíveis para a concretização da operação de concentração, em particular ao parecer da autoridade da concorrência. No esclarecimento supra mencionado, a CMVM considerou que só era possível proce-der ao registo de OPAs “se e quando forem ins-truídas com todos os documentos e autorizações administrativas legalmente exigidos”, encon-trando-se entre tais documentos a decisão “da(s) autoridade(s) da concorrência competente(s)” de acordo com a Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho e os Regulamentos (CE) n.º 139/2004 e n.º 802/2004. O regulador concluía que “resulta linearmente do exposto que a CMVM está impedida de registar qualquer oferta concorren-te, que no prazo referido (leia-se, naquela altu-ra, até 1 dia antes do termo da oferta inicial), não seja instruída com todos os documentos legalmente exigidos”9. Tal conclusão era, segundo o supervisor, corroborada pelo artigo 46.º, n.º 4 do Regulamento da CMVM n.º 10/2000 que determinava o indeferimento do registo caso não fosse possível, em função da data de apresentação do pedido de registo e do seu exame, efectuar o lançamento tempestivo

da oferta até um dia antes do termo da oferta inicial. O regulador parece, portanto, considerar que o prazo de emissão dos pareceres de autori-dades administrativas não deve ser tido em con-sideração para efeitos dos artigos 185.º-A, n.ºs 1, 2 e 3. O entendimento da CMVM não é o mais justo e correcto à luz do direito vigente e prejudica sobremaneira a concorrência pela aquisição da sociedade visada, bem como os interesses do mercado e dos destinatários da oferta. Em primeiro lugar, esta questão não é resolvida pelo artigo 11.º, n.º 3 da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho (“Lei da Concorrência”) que deter-mina que a proibição da realização da operação de concentração antes da decisão de não oposi-ção da autoridade da concorrência não prejudi-ca a realização de oferta pública de compra ou de troca que tenha sido notificada àquela enti-dade, “desde que o adquirente não exerça os direitos de voto inerentes às participações em causa ou apenas os exerça apenas tendo em vis-ta proteger o pleno valor do seu investimento com base numa derrogação” concedida do n.º 4 do referido artigo10. Com efeito, estando em falta um dos elementos que instrui o pedido de registo da oferta concorrente junto da CMVM (artigo 115.º, n.º 1 alínea a)), o regulador não pode decidir sobre o registo da oferta ou a recu-sa do mesmo. Aliás, é este também o entendi-mento da CMVM que defende só ser possível proceder ao registo das OPAs “se e quando forem instruídas com todos os documentos e

9- Vide ESCLARECIMENTO DA CMVM sobre o regime processual das OPAS concorrentes disponível em www.cmvm.pt 10- Esta norma foi decalcada (de forma irreflectida) do artigo 9.º, n.º 3 da lei da concorrência espanhola (Ley 15/2007, 3 julio, de defensa de la competencia), ainda que, no caso espanhol, a excepção apenas se aplique a ofertas públicas de aquisição de acções de sociedades admitidas à negociação em “bolsa de valores autorizada pela CNMV”. A solução é similar ao artigo 17.º, n.º 2 da Legge n.º 287 de 10 Ottobre, 1990 que estabelece que as operações de concentração em Itália que envolvam uma OPA não serão suspensas desde que o oferente não exerça os direitos de voto relativos aos valores mobiliários em questão. Diferente-mente, nos ordenamentos jurídicos francês e alemão, não se prevêem excepções específicas para as OPAs, permitindo-se, contudo, uma redução dos prazos ou mesmo autorização para a realização total ou parcial da operação de concentração a pedido do interessado com motivos fundados (artigos L430-4 e L430-7 II do Code de Commerce) ou inclusive uma autorização para a concretização da operação para prevenir danos sérios para a empresa ou para terceiros (§ 41 (2) da Gesetzgegen Wettbewerbsbeschränkungen, de 12 Julho 2005).

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autorizações administrativas legalmente exigi-dos”, encontrando-se entre tais documentos a decisão “da(s) autoridade(s) da concorrência competente(s)”11. Bem se compreende que assim seja devido aos profundos inconvenientes (diria mesmo prejuízos) que a liquidação de uma OPA não aprovada pelas autoridades da concorrência teria. Pense-se desde logo nos des-tinatários da oferta que, para poderem decidir se querem continuar na sociedade visada (rejeitando a OPA) ou sair desta (aceitando a OPA), precisam de saber quais os remédios que o oferente irá aceitar, porque isso pode implicar uma desvalorização substancial da sociedade (e.g. venda de unidades de negócio) e conse-quentemente da cotação das suas acções. O des-tinatário teria que decidir sem ter conhecimento de informação fundamental para o seu racional decisório, o que é algo absolutamente contrário ao regime das ofertas públicas em geral e das OPAs em particular (e até ao próprio funciona-mento do mercado). Por outro lado, a sociedade visada seria prejudicada com esta solução por-que, caso o oferente não aceitasse os “remédios” propostos pela autoridade da con-corrência, este teria que alienar as acções da sociedade entretanto adquiridas com a liquida-ção da oferta e isso geraria uma profunda insta-bilidade accionista com reflexos necessaria-mente negativos sobre a gestão da sociedade.

A solução poderá inclusive ser desvantajosa para o oferente, porque, se este não quiser acei-tar os “remédios” impostos pela autoridade da concorrência (e.g. porque estes anulam as siner-gias e vantagens financeiras resultantes da con-centração), ficará com a titularidade das acções mas impossibilitado de exercer os direitos de voto, tendo que encontrar rapidamente, de for-ma a evitar mais prejuízos financeiros, um inte-ressado para a sua aquisição (o que poderá não se revelar fácil)12. Em segundo lugar, se o processo de emissão dos pareceres das autoridades reguladoras (e.g. Autoridade da Concorrência, Banco de Portu-gal, entre outros) despoleta a suspensão do pro-cesso de OPA, estranho seria que o mesmo não se sucedesse em relação às ofertas concorrentes. De facto, estando em falta um dos elementos que instrui o pedido de registo junto da CMVM (artigo 115.º, n.º 1 alínea a) do Cód.VM) e não podendo, consequentemente, ser emitida pela CMVM a decisão sobre o registo ou a recusa de registo da oferta, o processo de OPA e respectivos prazos de decisão não poderão correr os seus termos até que os pareceres necessários sejam emitidos. Os pareceres, sendo vinculativos13, têm por efeito a suspensão do procedimento administrativo (que, no caso das OPAs, é o próprio processo de oferta pública de

11- Vide ESCLARECIMENTO DA CMVM sobre o regime processual das OPAS concorrentes disponível em www.cmvm.pt. Os processos de OPA sobre a PT e sobre o BPI estiveram suspensos até à decisão de não oposição à operação de concentração pela Autoridade da Concorrência e a Lei da Concorrência já estava em vigor nessa altura. Na sequência da experiência quanto à decisão de não oposição da autoridade da concorrência relativa a estas ofertas públicas de aquisi-ção, procedeu-se a uma “alteração do regime jurídico da concorrência no sentido da redução dos prazos de análise” pela autoridade da concorrência por forma a “minimizar o período durante o qual a administração da sociedade vê os seus poderes limitados e contribuir para uma rápida resolução da oferta pública de aquisição” (preâmbulo do Decreto-Lei n.º 219/2006, de 2 de Novembro que transpôs a Directiva das OPAs).

12- Entretanto o oferente poderá estar a suportar os juros elevados do eventual financiamento que tenha contraído para a realização da operação. 13- Os pareceres são “estudos fundamentados, com as respectivas conclusões, sobre questões científicas, técnicas ou jurídicas, determinantes para a decisão, elaborados por serviços, colégios ou instâncias administrativas, funcionalmente vocacionados (apenas ou também) para o exercício de tarefas consultivas, a solicitação dos órgãos com competência para a instrução ou decisão do procedimento (…)”. Só os pareceres oficiais, estão sujeitos “à disposição fundamental do artigo 124.º, n.º 1 alínea c)” do Código de Procedimento Administrativo. Os pareceres podem, por um lado, ser obrigatórios ou facultativos, consoante sejam ou não exigidos por lei, e, por outro, ser vinculativos ou não vinculativos, conforme as respectivas conclusões tenham, ou não, de ser seguidas pelo órgão competente para a decisão, sendo que, salvo disposição expressa em contrário, os pareceres referidos na lei consideram-se obrigatórios e não vinculati-vos (artigo 98.º do Código do Procedimento Administrativo) (cfr. MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES E J. PACHECHO DE AMORIM, Código do Procedimento Administrativo Comentado, Vol. I, Almedina, 2.ª edição, 2007, p. 144).

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aquisição) até que os mesmos sejam emitidos. O artigo 99.º, n.º 3 do Código de Procedimento Administrativo dispõe que “quando um parecer obrigatório e não vinculativo não for emitido dentro dos prazos previstos no número anterior, pode o procedimento prosseguir e vir a ser deci-dido sem o parecer, salvo disposição legal em contrário”14. Assim, e por força de uma inter-pretação a contrario da referida norma, os pare-ceres obrigatórios e vinculativos suspendem o procedimento em que o incidente da sua emis-são foi suscitado. Ora, a não oposição da Auto-ridade da Concorrência é qualificável como um parecer obrigatório e vinculativo, uma vez que, nos termos do artigo 11.º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, a operação de concen-tração sujeita a notificação prévia à Autoridade da Concorrência não pode realizar-se antes de ser notificada e objecto de uma decisão, expres-sa ou tácita, de não oposição do referido regula-dor, sendo que a validade de qualquer negócio jurídico realizado em desrespeito do disposto depende de autorização expressa ou tácita da operação de concentração. A suspensão do pro-cesso de OPA, resultante da pendência do pro-cesso de emissão de parecer obrigatório e vin-culativo, não pode ser exclusivamente aplicável às ofertas iniciais, não há qualquer base legal que fundamente a sua não aplicação às concor-rentes. Com efeito, estas estão sujeitas às regras gerais aplicáveis às ofertas públicas de aquisição com as alterações constantes do artigo 185.º, 185.º-A e 185.º-B (artigo 185.º, n.º 2 do Cód.VM) e essas normas não afastam a

suspensão do processo de OPA em virtude da falta de um dos elementos que instrui o pedido de registo de OPA. Assim, estando em falta um dos elementos que instrui o pedido de registo da oferta concorrente junto da CMVM (artigo 115.º, n.º 1 alínea a)) e não podendo, conse-quentemente, o regulador decidir sobre o regis-to da oferta ou a recusa do mesmo, o processo da oferta concorrente e respectivos prazos, nomeadamente o de registo, não poderão correr os seus termos até que os devidos pareceres sejam emitidos. Em terceiro lugar, o entendimento da CMVM prejudica a concorrência e o mercado e não tutela de forma adequada os interesses dos des-tinatários da oferta. Os mercados financeiros, e em particular o mercado de capitais, não podem estar condicionados pelos prazos de decisão das autoridades reguladoras, nomeadamente pela demora das decisões da Autoridade da Concor-rência. Claro que a decisão dessas entidades tem que ser ponderada e devidamente funda-mentada, o que exige tempo! No entanto, tal exigência não cria um conflito insanável entre, por um lado, a justiça e correcção das decisões dos reguladores e, por outro, a eficiência e rapi-dez exigidas pelo mercado. Se o processo de OPA for suspenso (tal como o seria para o ofe-rente inicial) e houver mecanismos de acelera-ção do processo decisório da Autoridade da Concorrência15, ampliam-se os casos de admis-sibilidade de lançamento desse tipo de oferta ao mesmo tempo que se estimula a concorrência.

14- MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES E J. PACHECHO DE AMORIM salientam que enquanto que nos pareceres facultativos, o “procedimento segue normalmente, salvo se for decidido instar novamente pela sua emissão”, já nos pareceres vinculativos o processo “suspende-se (em relação à tramitação subsequente que estivesse conexionada com o conteúdo ou sentido desse parecer, como será o caso da decisão) e abre-se um incidente tendente a provocar a sua emissão” (cfr. MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES E J. PACHECHO DE AMORIM, ob. cit., p. 144). Os mesmos autores referem que, no caso de pareceres oficiais, os “órgãos administrativos estão constituídos no dever de funcionar, como, aliás, lhes é compulsivamente exigível (se mais não for, por demissão ou dissolução)” (cfr. MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES E J. PACHECHO DE AMORIM, ob. cit., p. 145). 15- Hoje esse mecanismo poderá residir no artigo 9.º, n.º 3 da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 219/2006, de 2 de Novembro, que concede ao adquirente a possibilidade de requerer a apreciação prévia da Autoridade da Concorrência de operações de concentração projectadas.

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Por último, a solução ora defendida é a única que permite alcançar o chamado level playing field, princípio fundamental da Directiva das OPAs e expresso no Relatório do Grupo de Alto Nível de peritos no domínio do direito das sociedades sobre OPAS, de 10 de Janeiro de 2002, e potenciar o lançamento de ofertas con-correntes. O entendimento da CMVM faria com que, na prática, o anúncio de lançamento de uma OPA concorrente, que exigisse uma deci-são de não oposição da Autoridade da Concor-rência, tivesse que ser efectuado num momento primeiro do processo de OPA (ou não pudesse mesmo ser efectuado), retirando conteúdo práti-co ao artigo 185.º-A, n.º 1 e reduzindo o poten-cial número de ofertas pela sociedade visada e as consequentes virtualidades ligadas ao meca-nismo concorrencial. No entanto, pode afirmar-se que com a solução preconizada se prolonga ad eternum o período de aceitação da oferta com as consequências nefastas que daí advém para o mercado, para a

sociedade visada (cujos poderes de gestão se encontram limitados pelo artigo 182.º) e para os próprios oferentes. Não creio que tal objecção seja procedente. Por um lado, a decisão da Autoridade da Concorrência de não oposição à oferta inicial não se deve limitar à apreciação daquela operação de concentração, deve antes, quando está em causa uma OPA, aprofundar o impacto, ao nível da concorrência, do lança-mento de uma oferta concorrente por outros players do mercado. A definição, em linhas gerais, dos problemas concorrenciais de outras potenciais ofertas permitirá facilitar a sua análi-se mais aprofundada no momento em que as mesmas sejam anunciadas. O risco de prolonga-mento excessivo do período de aceitação da oferta ficaria assim mitigado. Por outro lado, esse risco não existiria caso fosse estabelecido um prazo máximo de lançamento de ofertas concorrentes por referência ao termo do prazo de aceitação das ofertas precedentes16, ou de um leilão final em que todos os oferentes apresen-tem os termos finais das suas ofertas (solução que me parece preferível)17.

16- Esta foi a solução adoptada pelo legislador italiano e espanhol. O Regolamento d’attuazione del decreto legislativo 24 febbraio 1998, n. 58, concernente la disciplina degli emittenti (adottato dalla Consob com delibera n. 11971 del 14 maggio 1999 e sucessivamente n. 13130 del 22 maggio 2001, n. 13605 del giuno 2002, n. 13616 del 12 giugno 2002, n. 13924 del 4 febbraio 2003, n. 14002 del 27 marzo 2003, n. 14372 del 23 dicembre 2003, n. 14692 dell’11 agosto 2004, n. 14743 del 13 ottobre 2004, n. 14990 del 14 aprile 2005, n. 15232 del 29 novembre 2005, n. 15510 del 20 luglio 2006, n. 15520 del 27 luglio 2006 e n. 15586 del 12 ottobre 2006) dispõe no seu n.º 2 do artigo 44.º que as ofertas concorrentes têm que ser publicadas 5 dias antes do último dia do período de acei-tação da oferta precedente. Mas, a parte final daquele preceito estabelece que, em caso de prorrogação da oferta, o lançamento da oferta concorrente pode ocorrer até 50 dias após o início do período de aceitação da oferta. Em Espanha, a OPA concorrente tem de ser lançada até 10 dias após o início do prazo de aceitação da última oferta desde que não tenham decorrido mais de 30 dias sobre o início do prazo de aceitação da oferta inicial (artigo 33.º a) do Real Decreto 1197/1991, de 26 de julio, sobre régimen de las ofertas públicas de adquisición de valores, modificado pelos Reales Decretos 437/1994, de 11 de marzo, 2590/1998, de 7 de diciembre, 1676/1999, de 29 de octubre, 1443/2001, de 21 de diciembre, 432/2003, de 11 de abril e pela Ley 6/2007, de 12 de abril). Uma vez que o prazo de aceitação da oferta é, nos termos do artigo 183.º, no mínimo de 1 mês e no máximo de 2 meses, o prazo de lançamento da oferta em Espanha e em Itália pode ser inferior ou superior ao da lei portuguesa, consoante o número de ofertas concorrentes (e.g. se houver várias ofertas concorrentes e o prazo de aceitação for de 30 dias, será possível lançar uma oferta concorrente no último dia do prazo de aceitação). De referir, em relação ao regime espanhol, que a Ley 6/2007, de 12 de abril, de reforma de la Ley 24/1988, de 28 julio, del Mercado de Valores, para la modificación del régimen de las ofertas públicas de adquisición y de la transparencia de los emisores, que transpõe a Directiva das OPAs e a da Transparência, e que entrou em vigor em 13 de Agosto de 2007, não alterou o regime das ofertas concorrentes. 17- A Rule 32.5 do Takeover Code dispõe que “if a competitive situation continues to exist in the later stages of the offer period, the Panel will normally require revised offers to be published in accordance with an auction procedure, the terms of which will be determined by the Panel; that procedure will normally require final revisions to competing offers to be announced by the 46th day following the posting of the offer document but enable an offeror to revise its offer within a set period in response to any revision announced by a competing offeror on or after the 46th day (…) the Panel will consider applying any alternative procedure which is agreed between competing offerors and the board of the offeree company”. Por outro lado, a note no. 2 da Rule 32.5, sob a epígrafe Guillotine, dispõe que “the Panel may impose a final time limit for announcing revisions to competing offers for the purpose of any procedure estab-lished in accordance with this Rule taking into account representations by the board of the offeree company, the revisions previously announced and the duration of the procedure”. O Panel tem assim o poder de “guilhotinar” (terminar) a oferta caso esta se prolongue excessivamente ou aplicar qualquer outro procedimento alternativo que seja convencionado entre os diferentes oferentes e administradores da sociedade visada. O legislador inglês decidiu consagrar o sistema de leilão como sistema de OPA com base em três argumentos fundamentais. Em primeiro lugar, ele concede a cada oferente a possibilidade de responder a qualquer revisão da oferta feita por um concorrente. Em segundo lugar, o processo de leilão é aberto e transparente e, como tal, menos propício à controvérsia do que as ofertas fechadas. Por último, o processo de leilão evita os inconvenientes das chamadas formula offers. Sobre as razões da consagração deste sistema, vide Consultation Paper of THE PANEL ON TAKEOVERS AND MERGERS on Resolution of Competitive Situations, Londres, 2001, p. 21). O orde-namento jurídico suíço consagrou uma solução similar. A Übernahmekommission tem a faculdade de determinar a duração máxima das diferentes ofertas e encurtar o período em que estas possam ser modificadas ou retiradas (§ 4 do artigo 47.º do Verordnung der Übernahmekommission über öffentliche Kaufangebot). Diferentemente, o legislador alemão não estabeleceu qualquer prazo para o lançamento de OPA concorrente, abrindo espaço para um sistema de leilão em que os diferentes concorrentes disputam entre si, de forma paritária e em igualdade de “armas”, a tomada e controlo da sociedade visada.

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2. OBJECTO DA OFERTA Outro dos requisitos legais para o lançamento de uma oferta concorrente é relativo ao objecto da oferta. Nos termos do artigo 185.º, n.º 4 do Cód.VM, “as ofertas concorrentes não podem incidir sobre quantidade de valores mobiliários inferior àquela que é objecto da oferta inicial”. O legislador exige que a oferta concorrente abranja todos os valores mobiliários da oferta inicial, admitindo, contudo, o alargamento daquela a outros valores mobiliários emitidos pela sociedade visada. A ratio deste requisito radica, por um lado, na necessidade de evitar o lançamento de OPAs concorrentes que tenham por objectivo exclusi-vo a frustração da oferta inicial18, e, por outro, no intuito de assegurar que a oferta concorrente apresente, em termos objectivos, condições mais favoráveis (em particular ao nível contra-partida) do que a oferta inicial. Com efeito, o oferente concorrente teria enorme facilidade em oferecer uma contrapartida mais elevada se a sua oferta incidisse sobre um número menor de valores mobiliários19. Além disso, pretende-se não defraudar a expectativa de alienação das acções por parte dos destinatários da oferta que

adquiriram acções da sociedade visada após o anúncio preliminar da oferta inicial20 pois, caso o objecto das OPAs concorrentes fosse inferior, aqueles poderiam não conseguir alienar as suas acções a este oferente que potencialmente teria melhores condições de sucesso (uma vez que a sua oferta, por ser a última, seria a que suposta-mente melhores condições económicas ofere-ce). A protecção destes específicos destinatários prevalece sobre o interesse em potenciar a con-corrência pela aquisição da sociedade visada. No entanto, será que a ratio do preceito exige que o objecto tenha que ser sempre, pelo menos, igual ao da oferta inicial? A questão não é exclusiva do objecto da oferta concorrente mas entronca na problemática geral dos requisitos de admissibilidade desta espécie oferta (e.g. condições, contrapartida e identida-de do oferente). As soluções oferecidas para esta problemática no direito comparado oscilam entre a admissibilidade simples das ofertas con-correntes sem a sua sujeição a qualquer requisi-to objectivo, quer ao nível do objecto quer ao nível da contrapartida, como é o caso dos ordenamentos jurídicos inglês21, suíço22 e germânico23, e a admissibilidade condicionada

18- Vide JUAN SÁNCHEZ-CALERO GUILARTE, Ofertas Competidoras, Régimen Jurídico de las Ofertas Públicas de Adquisición (OPAs) – Comentario sistemático del Real Decreto 1.187/1991, vol. I, Centro de Documentación Bancária y Bursátil, Madrid, 1993, p. 628. 19- Caso esta regra não existisse, um oferente concorrente, no âmbito por exemplo da OPA da Portugal Telecom, poderia apresentar uma oferta cuja contrapar-tida seria de €15, mas que incidisse apenas sobre metade das acções e valores mobiliários da empresa e realizar assim o mesmo esforço financeiro que o oferente inicial, mas com maior probabilidade de obter o controlo accionista da sociedade visada. 20- Os outros destinatários não saem prejudicados na medida em que já eram titulares das acções da sociedade visada, não as tendo adquirido na expectativa de as alienar na oferta entretanto preliminarmente anunciada. Contudo, poderia afirmar-se que os mesmos não alienaram as suas acções na expectativa de o faze-rem depois no período de aceitação da oferta. Não parece que este “prejuízo” ou “interesse” deva sobrelevar sobre a concorrência pela aquisição da sociedade visada. 21- Em Inglaterra, o regime jurídico das ofertas concorrentes regula apenas aspectos processuais e procedimentais e o problema da igualdade de informação entre os oferentes. A opção legislativa foi expressamente tomada pelo Code Committe of the Panel no âmbito do processo de consulta da reforma do City Code on Takeovers and Mergers, onde defendeu ser desnecessário que a oferta concorrente representasse uma melhoria substancial do valor actual ou dos termos da oferta existente. O legislador inglês optou por não estabelecer requisitos legais ao objecto e contrapartida oferecida pela oferta concorrente por forma a potenciar a concorrência e disputa pela aquisição das sociedades, confiando na capacidade dos investidores para aferir sobre os termos e condições das ofertas apresentadas (vide PANEL ON TAKEOVERS AND MERGERS, Consultation Paper. Resolution of Competitive Situations, Londres, 2001). 22- Na Suíça, a Verordnung der Übernahmekommission über öffentliche Kaufangebote (Übernahmeverordnung – UEK, UEV-UEK) (ou seja o Regulamento de 1997 sobre OPAs da Comissão de OPAs Suíça) estabelece no seu capítulo 10, sob a epígrafe Konkurrierende Angebote, um conjunto de regras sobre as OPAs concorrentes. O § 2 do artigo 47.º do Verordnung über öffentliche Kaufangebot limita-se a sujeitar as ofertas concorrentes ao regime geral das OPAs caso o contrário não resulte do regulamento sobre OPAs. O legislador suíço não fixou quaisquer requisitos de lançamento de OPA concorrente, nomeadamente ao nível do objecto, pelo que o oferente concorrente é livre de fixar o objecto da sua oferta. 23- Na Alemanha, a Wertpapiererwerbs – und Übernahmegesetz – WpÜG, isto é, a lei relativa à regulação das ofertas públicas de aquisição de valores e toma-das de controlo, não estabeleceu qualquer requisito quanto ao lançamento de ofertas concorrentes, em particular em relação ao objecto da oferta. A lei alemã abre campo para a liberdade de mercado e de lançamento de diferentes ofertas pelos respectivos interessados na tomada de controlo da sociedade visada, pro-curando estimular o lançamento de ofertas concorrentes e fazer face à ainda fraca relevância prática das OPAs em geral na Alemanha. Sobre este particular, vide HORST BRÜCHER/KLAUS-DIETER STEPHAN, A Practitioner’s Guide to Takeovers and Mergers in the European Union, Germany, City & Financial Publishing, 1997, p. 149-150.

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ao preenchimento de determinados requisitos objectivos relativos ao objecto e/ou à contrapar-tida, como é o caso direito espanhol24, italiano25, francês26 e belga27. O legislador português optou por esta última solução, exigindo como requisitos objectivos cumulativos: (i) objecto igual ou superior ao da oferta inicial; e (ii) aumento da contrapartida em 2% relativamente ao da oferta anterior (como adiante se analisará). Procurou-se, deste modo, proteger os accionistas da sociedade visada e afastar qualquer tipo de subjectivismos relacionados com a análise global da oferta para efeitos da determinação do seu carácter mais favorável. Julgo que a opção do legislador por-tuguês, sendo, de um ponto de vista da seguran-ça e previsibilidade do mercado, a que melhor serve os seus interesses, acaba por restringir em demasia a disputa pela aquisição da sociedade visada.

De iure consituendo, creio que se justifica a alteração do regime vigente nesta matéria atra-vés da flexibilização dos requisitos objectivos das ofertas concorrentes como forma de poten-ciar o seu lançamento28 e de dinamizar o merca-do bolsista português sem receio de prolonga-das disputas “fratricidas” pelo controlo accio-nista da sociedade visada. Claro que a razão de ser da actual regulação radica também no favo-recimento tendencial do oferente inicial que, no fundo, acaba por definir não só as regras base da sua oferta, mas também as das ofertas con-correntes. Tal favorecimento baseia-se na ale-gada necessidade de protecção da decisão de risco de lançamento inicial da oferta e nos cus-tos, informativos e económicos, associados a tal decisão. Todavia, esse tratamento de favor não tem hoje fundamento, afirmando-se cada vez com mais intensidade o princípio da igualdade de tratamento entre os oferentes, inicial e con-correntes, e dos concorrentes entre si. Tem sido

24- Em Espanha, o artigo 33.º, alínea b) do Real Decreto 1197/1991, de 26 de julio, sobre régimen de las ofertas públicas de adquisición de valores, modifica-do pelos Reales Decretos 437/1994, de 11 de marzo, 2590/1998, de 7 de diciembre, 1676/1999, de 29 de octubre e 1443/2001, de 21 de diciembre, 432/2003, de 11 de abril e pela Ley 6/2007, de 12 de abril estabelece, entre outros requisitos, a obrigação da oferta competidora que “teniendo por objeto, al menos, el mismo número de valores que la última oferta precedente y siendo la contraprestación ofrecida, al menos, igual a la de la última oferta precedente, mejore esta, bien elevando el precio o el valor de la contraprestación ofrecida, bien extendiendo la oferta a un número de valores superior al de aquélla”. O legislador espan-hol, apesar de analisar a oferta concorrente de um ponto de vista global para efeitos da determinação da melhoria do valor total oferecido (atendendo, como adiante veremos com detalhe, ao preço oferecido ou à quantidade objecto da oferta), exige que os valores mobiliários abrangidos pela oferta concorrente sejam, pelo menos, os mesmos que os da última oferta. 25- Em Itália, não existe uma disposição expressa sobre o objecto das ofertas concorrentes. Contudo, resulta, indirecta e implicitamente, do artigo 44.º, n.º 1 do Regolamento di attuazione del decreto legislativo 24 febbraio 1998, n. 58, concernente la disciplina degli emittenti que o objecto da oferta concorrente tem de incidir, pelo menos, sobre os mesmos valores mobiliários da oferta inicial. De acordo com o referido preceito, “le offerte concorrenti e i rilanci sono ammessi se il corrispecttivo globale per ciascuna categoria di strumenti finanziari interessata è superiore a quello dell’ultima offerta o rilancio o se comportano l’elimi-nazione di una condizione di efficacia. Per i rilanci non è ammessa la riduzione del quantitativo richiesto”. A admissibilidade de OPA concorrente está portanto sujeita a um dos seguintes requisitos: (i) contrapartida oferecida por cada um dos valores mobiliários superior ao da última oferta, ou (ii) eliminação de uma das condições de eficácia da oferta inicial. O aumento do valor da contrapartida tem que ser relativo a todos os valores mobiliários e, mesmo que não haja aumento da contrapartida por ter sido eliminada uma das condições da oferta, o valor da oferta concorrente não pode ser inferior ao da última oferta, pelo que os valores mobiliários abrangidos serão os mesmos. 26- Em França, o legislador atribuiu à Auctorité dês Marchés Financiers – abreviadamente “AMF” (anteriormente designada de Conseil dês Marchés Financiers) – o poder de autorizar as ofertas concorrentes conquanto estas introduzam uma melhoria significativa das condições propostas aos titulares de valores mobiliários (artigo 232, 7, parágrafo 2.º do referido Règlement Général de l’AMF), sendo que a oferta concorrente será sempre aceite se o oferente reduzir a cláusula de sucesso prevista na oferta inicial e não modificar as demais condições da oferta inicial (parágrafo 3 da mesma norma). A lei francesa conferiu à AMF o poder de aquilatar, caso a caso, a melhoria efectiva da oferta concorrente. A solução é fruto da evolução do legislador no sentido da amplia-ção dos casos de admissibilidade das ofertas concorrentes e na consagração de um sistema de leilão. Antes o Règlement Général de la CMF exigia como requi-sito do lançamento de oferta concorrente a subida de 5% da contrapartida ou o aumento da quantidade de valores mobiliários abrangidos pela oferta (cfr. RAYMONDE VATINET, Les defenses Anti-OPA., in Revue dês Sociétés, 105.e année, n.º IV-Octobre-Décembre 1987, p. 526). Não há actualmente no direito francês, à semelhança do direito italiano, uma norma específica sobre o objecto da oferta, mas implicitamente, por força da melhoria das condições da nova oferta, esta deve ter por objecto os mesmos valores mobiliários. 27- Na Bélgica, o artigo 33 do Arrêté Royal du 8 de Novembre 1989 sobre OPAs, alterado pelo Arrête Royal du 21 Avril 1999 que introduziu o actual regime de ofertas concorrentes, determina que o lançamento de qualquer oferta concorrente ou revisão da contrapartida tem que ser superior em 5% ao da última oferta (vide RAYMONDE VATINET, L’arrête royal du 21 Avril 1999: un simple toilettage de la réglementation sur les OPA?, in Revue Pratique des Sociétés, 1999, p. 215 e ss.). 28- Foram lançadas até à presente data apenas três ofertas concorrentes em Portugal.

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essa a evolução da legislação comunitária, do direito comparado e do próprio direito portu-guês que têm vindo a suavizar, ainda que lenta-mente, os requisitos objectivos de lançamento de ofertas concorrentes e o processo de disputa do controlo da sociedade visada, como aliás o demonstram a recente consagração mitigada do sistema de leilão.

A criação de um regime transitório intermédio entre a absoluta falta de regulamentação e o “quadrado” normativo fechado das ofertas con-correntes seria a solução mais adequada. Mais regulação não é sinónimo de melhor regulação. O carácter mais favorável da oferta concorrente deveria ser analisado de um ponto de vista glo-bal sem impor requisitos objectivos específicos, como a subida da contrapartida ou o aumento ou manutenção da quantidade de valores mobi-liários objecto da oferta. No que concerne em particular ao objecto da oferta, o oferente con-corrente deveria ter a possibilidade de lançar a oferta por uma quantidade inferior de valores mobiliários, desde que a mesma fosse melhora-da, na sua globalidade, em relação à oferta ini-cial quer por força da subida da contrapartida quer por força do tipo de contrapartida ofereci-da. Claro que a melhor solução seria permitir o lançamento de qualquer tipo de oferta, mesmo que menos favorável, e assim potenciar a con-corrência pelo controlo da sociedade visada, solução consagrada pelo direito inglês e germâ-nico. Mas, atendendo à falta de profundidade e maturidade do mercado português, dos seus operadores e, particularmente, dos investidores, esta solução poderia provocar situações de deci-são imponderada ou de erro face à panóplia de ofertas e à disparidade de argumentos financei-ros, económicos, jurídicos, e até sociais, que cada oferta apresenta.

Ainda no âmbito da análise do artigo 185.º, n.º 4, suscita-se a questão de saber se as ofertas concorrentes têm que ter o mesmo objecto da última oferta lançada ou apenas o da oferta inicial. De acordo com o elemento literal da lei – “objecto da oferta inicial”–, parecem não rema-nescer dúvidas de que o objecto a ter em conta, para efeitos do lançamento de OPA concorren-te, é o da oferta inicial e não o das concorrentes com objecto mais amplo. Esta opção do legisla-dor é de aplaudir (por facilitar o lançamento de OPA concorrente) e vem, no fundo, expressar o já referido (errado) tratamento de favor legal do oferente inicial que ainda é quem estabelece grande parte das regras de jogo nas OPAs. No entanto, tal opção vai contra o princípio quadro que norteou o legislador na definição dos requi-sitos de admissibilidade das ofertas concorren-tes: o princípio da oferta mais favorável. Senão vejamos. Nos termos do artigo 185.º, n.º 5 do Cód.VM, “a contrapartida da oferta concorrente deve ser superior à antecedente em pelo menos 2% do seu valor e não pode conter condições que a tornem menos favorável”. Ou seja, o legislador exige que a contrapartida de qualquer oferta concorrente seja superior em 2% face à antece-dente e as suas condições não podem ser menos favoráveis que as da antecedente. Contudo, ao arrepio do referido princípio geral, permite o lançamento de ofertas concorrentes subsequen-tes desde que a quantidade de valores mobiliá-rios seja inferior àquela que é objecto da oferta inicial. Assim, é possível que uma oferta con-corrente seja menos favorável do que a oferta antecedente. Pense-se no seguinte exemplo: A lança uma OPA sobre 40% do capital social de

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B, dividido em 50.000 acções, oferecendo €30 por acção; posteriormente, C lança uma OPA concorrente sobre 50% do capital de B, ofere-cendo €35 por acção; em seguida, D lança uma oferta concorrente sobre 40% do capital de B, oferecendo €40 por acção. Nesta situação, a oferta de D representa um esforço financeiro total inferior à oferta de C (€800.000 contra €875.000), sendo que o primeiro lançou a sua oferta num momento anterior. A oferta só será melhor para os accionistas que conseguirem vender a D, pois, uma vez alcançado o número máximo de valores mobiliários objecto da ofer-ta, os demais accionistas ficariam sem benefi-ciar de tal melhoria, o que nos levará então a perguntar se a oferta de D foi efectivamente melhorada? Ou será que a lei portuguesa apenas atende à contrapartida e condições da oferta e já não ao seu objecto para determinar o carácter mais favorável? A letra da lei (“objecto da oferta inicial”) e tam-bém a ratio específica do preceito (tratamento de favor do oferente inicial – que define as regras base da oferta) parecem admitir o lança-mento de ofertas concorrentes com objecto inferior ao da OPA concorrente antecedente29, podendo tal não consubstanciar, conforme se demonstrou, um tratamento global mais favorá-vel dos accionistas da sociedade visada. Esta solução parece ser contrária ao princípio geral fundador do instituto das ofertas concorrentes: o tratamento mais favorável dos accionistas da sociedade visada30.

De lege lata, esta situação é, de facto, contrária ao espírito do regime das OPAs concorrentes, mas já incorpora a evolução que se tem verifi-cado na legislação portuguesa ao nível desta temática operada pelo Decreto-Lei n.º 219/2006, de 2 Novembro que veio flexibilizar os requisitos objectivos de lançamento da oferta e potenciar a disputa pela aquisição da socieda-de visada. De lege ferenda, julgo que o legislador deverá alargar a flexibilidade, consagrada para o objec-to das OPAs concorrentes, a outros elementos da oferta, em particular à contrapartida e às condições31. Por último, urge fazer uma breve referência ao disposto no n.º 3, do artigo 173.º, do Cód.VM, que determina que “à oferta pública de aquisi-ção lançada apenas sobre valores mobiliários que não sejam acções ou valores mobiliários que conferem direito à sua subscrição ou aquisi-ção não se aplicam as regras relativas ao anún-cio preliminar, aos deveres de informação sobre transacções efectuadas, aos deveres do emiten-te, à oferta concorrente e à oferta pública de aquisição obrigatória”32. A ratio desta norma radica no facto daquele tipo de ofertas não implicarem a tomada de controlo da sociedade visada. A OPA é um instrumento de concentração empresarial, um mecanismo dirigido fundamentalmente à aquisição do domínio de uma determinada

29- Em sentido contrário, vide HUGO MOREDO DOS SANTOS, ob. cit., p. 94. 30- E não se diga que o artigo 185.º, n.º 5 in fine resolve a questão ao exigir que a oferta concorrente não pode conter “condições que a tornem menos favorá-vel”. Esta interpretação desconsideraria a distinção entre objecto (quantidade e espécie de valores mobiliários abrangidos pela oferta) e condições (maxime cláusulas de sucesso) da oferta. Seguindo o exemplo acima apresentado, D poderia lançar a sua oferta com a mesma cláusula de sucesso de C (suponhamos 30%) mas com objecto menor (10%), respeitando assim o disposto no artigo 185, n.ºs 5 e 6. 31- Vide Título I. Regime Jurídico da OPA Concorrente, Capítulo A) Requisitos do Lançamento, Secção 4. e 5. Contrapartida e Condições respectivamente infra. 32- Antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 219/2006, de 2 Novembro, o mesmo artigo consagrava uma excepção à regra geral nela contida. A CMVM podia através de regulamento dispor diversamente em relação aos valores mobiliários elencados no número 2 do artigo 1.º do Cód.VM com vista à defesa do mercado ou à adequada protecção dos investidores. Contudo, a CMVM nunca estabeleceu em regulamento qualquer excepção à não aplicação das regras referidas no artigo 173.º caso a oferta pública de aquisição fosse lançada apenas sobre valores mobiliários que não sejam acções ou valores mobiliários que conferem direito à sua subscrição ou aquisição. Assim, foi com naturalidade que a recente alteração do regime das OPAs veio suprimir a parte final do n.º 3 do artigo 173.º, cuja aplicabilidade prática era nula.

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sociedade e grande parte das suas normas tem como pano de fundo esse objectivo principal, pilar fundador deste instituto jurídico. Quando a OPA não se destina à aquisição do controlo da sociedade visada, parte substancial daquelas normas perde a razão de ser da sua aplicação, em particular as regras sobre ofertas concorren-tes. Estas foram pensadas para a disputa do con-trolo accionista que deve ter por base/limites mínimos os fixados pelo oferente inicial, nomeadamente no que diz respeito ao objecto, condições e contrapartida, e que deve ocorrer segundo uma ordem, regras e prazos específicos por forma a permitir aos destinatários aferir da oferta que melhor serve os seus interesses, acei-tando a mudança de controlo accionista daí decorrente e optando pela “saída” da sociedade visada (ou pela permanência ainda que com uma posição inferior)33. 3. OFERENTE O artigo 185.º, n.º 3 do Cód.VM dispõe que “não podem lançar uma oferta concorrente as pessoas que estejam com o oferente inicial ou com oferente concorrente anterior em algumas das situações previstas no n.º 1 do artigo 20.º (…)”, limitando, por conseguinte, o leque de entidades que estão legitimadas a lançar uma OPA concorrente.

O telos do actual artigo 185.º, n.º 3 funda-se não só na necessidade de evitar uma revisão encapotada da oferta, tal como postulavam AUGUSTO TEIXEIRA GARCIA e RAÚL VENTURA GARCIA à luz do Código do Mercado de Valores Mobiliários34, mas também no intuito de assegurar a transparência e bom funciona-mento do processo de OPA, uma vez que, para os accionistas, em particular para os pequenos investidores da sociedade visada, seria confuso, pouco claro e destituído de sentido que a mes-ma pessoa, singular ou colectiva, estivesse, de forma directa e indirecta, a avaliar a empresa por valores absolutamente díspares. Solução diversa poderia conduzir os accionistas à toma-da de decisões pouco esclarecidas e informadas, pois o grau de ligação entre as pessoas (singulares ou colectivas) é de tal ordem que a oferta é vista como sendo lançada pela mesma pessoa (ainda que de facto não o seja). Além disso, a possibilidade de lançamento de oferta concorrente por parte desses oferentes nada acrescenta ao nível da concorrência no processo de OPA. Apesar destes argumentos serem muito ponde-rosos, a verdade é que, conforme se constatará, há casos de imputação de direitos de voto pre-vistos no artigo 20.º do Cód.VM que não justi-ficam uma proibição de lançamento de oferta

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33- Fazendo um breve excurso histórico pela evolução do objecto das OPAs, é possível constatar que o nosso legislador admitiu desde sempre o lançamento de ofertas públicas de aquisição, mesmo quando estas não se destinavam à aquisição do controlo da sociedade visada. Antes da entrada em vigor do Código de Mercado de Valores Mobiliários, o Código das Sociedades Comerciais permitia a existência de OPAs sobre acções preferenciais sem voto e não fixava um limite mínimo de aquisição de capital social. Posteriormente, o Código do Mercado de Valores Mobiliários estabeleceu um requisito relativo ao objecto da oferta – 5% do capital social com direito de voto –, o que, contudo, não era suficiente, em circunstâncias normais, para a tomada de controlo pelo que a OPA poderia ser lançada sem ter tal finalidade. O artigo 42.º, n.º 1 do Regulamento da CMVM n.º 19/2000 sobre Ofertas e Emitentes, manteve aquele limite de 5% do capital social (já depois da entrada em vigor do Cód.VM). O novo Regulamento da CMVM n.º 3/2006 sobre Ofertas e Emitentes, que revogou o anterior Regulamento n.º 19/2000, não estabeleceu um limite mínimo. É, portanto, hoje possível o lançamento de uma OPA sobre qualquer tipo de valores mobiliários, mesmo sobre valores que não atribuam direitos de voto aos seus titulares, podendo, por isso, a oferta não se destinar à aquisição do controlo da sociedade e que não estão abrangidos pelo artigo 173.º, n.º 3. Assim sendo, talvez se justificasse a extensão da regra prevista no número 3 do artigo 173.º aos demais casos em que não está em causa a aquisição do controlo da sociedade visada, apesar de não se incluírem no tipo de ofertas previsto nesse preceito. Contudo, essa solução levanta alguns problemas resultantes da dificuldade de delimitação dos casos em que está em causa a aquisição do controlo accionista, até porque tal controlo pode ser obtido a posteriori (e.g. acordo parassocial). A questão é complexa e creio que a postura mais conservadora do legislador se justifica plenamente, mesmo que acabe por dar lugar à aplicação de normas restritivas sobre ofertas concorrentes a casos em que não há concorrência pela aquisição da sociedade visada. 34- O Código do Mercado dos Valores Mobiliários consagrava uma idêntica proibição no seu artigo 561.º, n.º 3. De acordo com este preceito, “as pessoas que actuem em concertação, ou como mandatários de qualquer dos oferentes anteriores, não podem lançar uma oferta concorrente”, salvo autorização devidamente fundamentada a conceder pela CMVM em casos excepcionais. AUGUSTO TEIXEIRA GARCIA defendia que o fundamento da proibição do anterior código radica-va, por um lado, no facto deste tipo de ofertas “só aparentemente serem ofertas concorrentes” e, por outro lado, na possibilidade de tais ofertas consubstancia-rem uma revisão “encapotada” da oferta sobretudo quando a utilização desse mecanismo legal já não é admissível (cfr. AUGUSTO TEIXEIRA GARCIA, ob. cit, p. 274). Neste sentido, vide também RAUL VENTURA GARCIA, ob. cit., p. 292. JOSÉ MIGUEL JÚDICE, MARIA LUÍSA ANTAS, ANTÓNIO ARTUR FERREIRA E JORGE BRITO PEREIRA afirmavam que, caso esta proibição não existisse, estariam abertas “as portas para a manipulação de condições concorrenciais, visto que, pelo menos, dois dos oferentes não estariam a obedecer às regras básicas de actuação no mercado, com eventuais prejuízos para outros eventuais oferentes” (cfr. JOSÉ MIGUEL JÚDICE, MARIA LUÍSA ANTAS, ANTÓNIO ARTUR FERREIRA, JORGE BRITO PEREIRA, Ofertas Públicas de Aquisição, Legislação Comentada, Semanário Económico, 1992, p. 172).

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32 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

concorrente por parte de uma pessoa que esteja em relação de imputação com o oferente inicial. Por outro lado, a CMVM só pode autorizar o lançamento da OPA concorrente nos casos em que “a situação que determina a imputação de direitos de voto cesse antes do registo da ofer-ta” (artigo 185.º, n.º 3 in fine), o que não permi-te ao regulador corrigir as injustiças da aplica-ção “cega” do preceito em causa35. Imagine-se o seguinte exemplo: os direitos de voto de A na sociedade B estão imputados a C por força de uma opção de compra a favor desta última; A decide lançar uma OPA sobre D que é concorrente de C e cuja quota de mercado interessa a C; será que C pode lançar uma OPA concorrente sobre D? E se a OPA de A fosse sobre B, poderia C lançar também uma OPA concorrente?36 O elemento literal da lei não resolve esta ques-tão, pois contém uma referência geral às situa-ções de imputação do artigo 20.º. No entanto, julgo que o artigo 185.º, n.º 3 não se pode apli-car desde logo aos casos em que a imputação entre os oferentes (inicial e potencial concor-rente) é relativa a direitos de voto de outra sociedade que não a sociedade visada (no exemplo acima referido, C poderia então lançar OPA concorrente sobre D), excepto se a imputação disser respeito à existência de uma

relação de domínio ou de grupo. Por outro lado, e atendendo a teleologia do artigo 185.º n.º 3, a imputação de direitos de voto só pode conduzir à proibição de lançamento de OPA concorrente quando haja lugar a uma concertação de actua-ção entre os oferentes relativa às respectivas ofertas sobre a sociedade visada. Não se justifi-ca, por isso, exigir o fim da imputação de direi-tos de voto (no caso em apreço, a opção de compra) quando tal imputação não configura uma coordenação de actuação para aquisição da sociedade visada37, devendo a CMVM ter o poder de autorizar o lançamento de oferta con-corrente nessas situações. O telos do preceito assim o exige, uma vez que, não sendo possí-vel, nestes casos, haver uma revisão encapotada do preço ou uma falta de transparência no pro-cesso de OPA que conduza a decisões pouco esclarecidas dos accionistas, não se verifica o telos da proibição em causa (no exemplo em análise, C poderia lançar OPA concorrente sobre B, pois não existe concertação entre os oferentes, visando cada qual alcançar objectivos muito distintos e de sentido contrário). Em conclusão, o artigo 185.º, n.º 3 deve ser objecto de uma interpretação restritiva de forma a excluir os casos de imputação de direitos de voto que não consubstanciem uma actuação concertada entre os oferentes38. O legislador

35 - O anterior Código do Mercado de Valores Mobiliários consagrava uma excepção mais flexível e ampla ao habilitar a CMVM a autorizar o lançamento de ofertas concorrentes por pessoas que actuassem em concertação com o oferente desde que a autorização fosse devidamente fundamentada e concedida apenas em casos excepcionais. Antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 219/2006, de 2 de Novembro e do Regulamento da CMVM 3/2006 sobre Ofertas e Emitentes, o artigo 45.º, n.º 2 do Regulamento da CMVM 10/2000, sobre Ofertas e Emitentes consagrava uma regra semelhante, ao conferir à CMVM o poder de autorizar o lançamento de ofertas concorrentes por oferente em situação de imputação de direitos de voto em casos excepcionais devidamente justificados. Estas excepções à proibição geral eram, como se referiu, mais flexíveis, apesar de serem mais subjectivas estando o oferente sujeito à discricionariedade da CMVM que não pré-fixava o quadro das situações em que lhe era possível autorizar, naqueles casos, o lançamento da oferta concorrente. Diferentemente, HUGO MOREDO DOS SANTOS considera que a “permissão com contornos tão indefinidos como os antes contemplados no art. 45.º, n.º 3 do R 10/2000 parecia gerador de incerteza, uma vez que se deslocava para a CMVM a responsabilidade de, em pleno processo de anúncio, registo e lançamento da oferta, aplicar a excepção às regras (gerais) do jogo regulamentarmente consagradas” (cfr. HUGO MOREDO DOS SANTOS, ob. cit., p. 121 e 122). 36- A questão é pertinentemente levantada por JOÃO SOARES DA SILVA a propósito dos problemas suscitados pela “zona de funcionalidade de terceiro grau da técnica de imputação de direitos de voto”. O autor defende, como “orientação geral”, que aquela “zona de terceiro grau”, na qual se insere o artigo 185.º, n.º 3 do Cód.VM, abrange, pelo menos, “as pessoas a respeito das quais a causa de imputação ao participante/oferente seja predominantemente subjectiva, devendo entender-se não serem esses efeitos jurídicos aplicáveis, por regra, nos casos em que a imputação é predominantemente objectiva”, considerando estar incluí-das no primeiro caso “seguramente” as pessoas abrangidas pelas “alíneas c) e h) do n.º 1 do artigo 20.º” e “provavelmente” as referidas nas “alíneas b) e d)” do mesmo artigo (cfr. JOÃO SOARES DA SILVA, Algumas Observações em Torno da Tripla Funcionalidade da Técnica de Imputação de Votos no Código dos Valores Mobiliários, in Cadernos do Mercado dos Valores Mobiliários, n.º 26, Abril, 2007, pág. 56 a 58). 37- O “ónus” da prova da inexistência de concertação estará naturalmente do lado do potencial oferente concorrente. 38- Não concordamos, portanto, com a “orientação geral” defendida por JOÃO SOARES DA SILVA, mas, verdade seja feita, o autor apenas se pronuncia de uma forma geral sobre a “zona de terceiro grau” da técnica de imputação de direitos de voto na sua globalidade (na qual se incluí o artigo 185.º, n.º 3 do Cód.VM) e não sobre este artigo em específico.

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procurou alargar e objectivar mais as situações de proibição de lançamento de ofertas concor-rentes por determinados oferentes (recorrendo ao instituto da imputação de direitos de voto), mas acabou por, deste modo, estender o âmbito de aplicação da proibição a casos não abrangi-dos pela sua teleologia39. Ainda em relação ao requisito subjectivo do lançamento de OPA concorrente, há uma pro-blemática que, apesar de não ser exclusiva do tema das ofertas concorrentes (pois também se coloca a propósito das ofertas iniciais), ganha particular importância neste domínio que é a substituição do oferente ou o alargamento do número de oferentes. A lei não regula o tema e não existe, até ao momento, um entendimento da CMVM sobre o mesmo. Julgo que, em primeiro lugar, é necessário dis-tinguir entre dois momentos determinantes do processo de OPA: a publicação do anúncio pre-liminar e o registo da OPA. Com efeito, após o registo da OPA, as possibilidades de alteração dos termos da oferta, nomeadamente a substi-tuição ou alargamento do número de oferentes, limitam-se aos casos muito estritos do artigo

128.º do Cód.VM. Já no período que medeia entre a publicação do anúncio preliminar e o registo da OPA, será possível alterar os termos da oferta conquanto a oferta não apresente con-dições menos favoráveis para os destinatários do que as constantes desse anúncio (artigo 175.º, n.º 2 alína a)). Neste âmbito, e quanto à substituição do oferente, PAULO CÂMARA pare-ce recusá-la ao referir que ela está expressa-mente prevista apenas no contexto próprio das ofertas obrigatórias40. Já quanto ao alargamento do número de oferentes, o autor considera ser “comparativamente hipótese menos problemáti-ca, na medida em que se reforça a garantia patrimonial ligada ao pagamento da contraparti-da”, embora admitindo que a questão possa ser mais complexa, “caso os objectivos dos novos oferentes sejam diversos dos do oferente inicial”41. Creio que a orientação perfilhada por PAULO CÂMARA é correcta mas carece de ser densifica-da. Quanto à substituição do oferente concorrente, esta deve ser unicamente admitida quando o oferente substituto seja uma sociedade em rela-ção de domínio ou de grupo e desde que os objectivos da oferta se mantenham e a garantia

OPA CONCORRENTE : 33

39- Neste sentido, o direito espanhol proíbe o lançamento de ofertas concorrentes por pessoas que actuem de forma concertada com o oferente ou pertençam ao mesmo grupo, e ainda aquelas que de forma directa ou indirecta actuem por conta dele (artigo 32.º, n.º 2 do Real Decreto 1197/1991, de 26 de julio, sobre régimen de las ofertas públicas de adquisición de valores, modificado pelos Reales Decretos 437/1994, de 11 de marzo, 2590/1998, de 7 de diciembre, 1676/1999, de 29 de octubre e 1443/2001, de 21 de diciembre, 432/2003, de 11 de abril e pela Ley 6/2007, de 12 de abril). CARLOS DE CARDENAS SMITH defende que com este preceito “se quieren evitar (…) prácticas utilizadas en el pasado consistentes en utilizar una sociedad filial o del grupo de la sociedad afectada para que formule una OPA competidora además sobre su matriz. Una práctica semejante contravendría, además, la LSA, en lo que se refiere a nego-cios sobre las propias acciones (adquisición de autocartera)” (vide CARLOS DE CARDENAS SMITH, Regimen Juridico de las Ofertas Publicas de Adquisición, Editorial Civitas, S.A., p. 141). O direito italiano, francês, anglo-saxónico e suíço não estabelecem requisitos subjectivos ao lançamento de ofertas concorrentes podendo estas ser lançadas por qualquer oferente independentemente da existência de uma relação de concertação ou de imputação de direitos de voto com o oferente inicial. Já na Alemanha é muito discutida a admissibilidade das chamadas ofertas alternativas. As ofertas alternativas são ofertas em que um oferente, que tem já pendente uma oferta sobre determinados valores mobiliários da sociedade visada, decide lançar, por si ou em concertação com um terceiro, outra oferta públicas de aquisição sobre os mesmos valores mobiliários. Uma parte da doutrina alemã defende que estas são admissíveis pois não existe qualquer proibição relativa ao lançamento deste tipo de ofertas (neste sentido, vide DIEKMAN, in Baums/Thoma, Loseblatt, § 21 WpÜG, p. 9; HASSELBACH, in Kölnkomm/WpÜG, 2002, § 21 WpÜG p. 14), enquanto que outra parte da doutrina alemã nega tal admissibilidade, uma vez que esta possibilitaria o contornar as regras sobre alteração da oferta e respectivas limitações (neste sentido, vide WACKERBARTH, in MünchKomm/AktG, 2.ª edição, 2004, § 22 WpÜG, p. 5). Diferentemente, CHRISTOPH ROTHENFUSSER, ULRIKE FRIESE-DORMANN e NORBERT RIEGER defendem que aquela admissibilidade tem que ser negada caso não seja possível efectuar qualquer alteração da oferta por força da proibição de aquisições paralelas nos termos do § 31 (4) da WpÜG (cfr. CHRISTOPH ROT-HENFUSSER/ULRIKE FRIESE-DORMANN/NORBERT RIEGER, Rechtsprobleme konkurrierender Übernahmeangebote nach dem WpÜG, in Die Aktiengesellschaft, Heft 5/2007, 52, p. 156). 40- Apesar de não excluir em absoluto a admissibilidade da substituição do oferente, o autor refere que “é menos claro” quando comparado com a supressão de condições ou alargamento do objecto da oferta que possa haver “uma substituição do oferente” à luz do artigo 175.º, n.º 2 alínea a) do Cód.VM (vide PAULO CÂMARA, Direito dos Valores Mobiliários – Versão Provisória Exclusiva para Alunos do 5.º Ano da Faculdade de Direto da Universidade de Lisboa, (Ano 200 – 2001), p. 201). 41- Cfr. PAULO CÂMARA, ob. cit. p. 201.

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da oferta esteja devidamente assegurada. Nestes casos, a substituição pode justificar-se por razões de ordem fiscal, de estruturação societá-ria ou de financiamento da operação que o ofe-rente não pôde analisar com detença antes da publicação do anúncio preliminar da sua oferta, sobretudo face aos “apertados” prazos legais. Fora estas situações, a possibilidade de substi-tuição deve ser negada sob pena de a oferta lan-çada ser uma “nova” oferta face à preliminar-mente anunciada, havendo uma desconsidera-ção total pelo princípio da estabilidade da oferta. Por sua vez, o alargamento do número de ofe-rentes deve ser, por norma, admitido não tanto por a garantia patrimonial sair reforçada42

(embora este seja um argumento válido), mas porque a oferta não contém condições menos favoráveis (artigo 175.º, n.º 2 alínea a)) e a dinâmica do processo de OPA exige esta flexi-bilidade regulatória. A existência de objectivos diferentes dos novos oferentes será, na maioria dos casos, uma falsa questão. Na verdade, ape-sar de o artigo 176.º, n.º 1, alínea g), exigir uma enunciação sumária dos objectivos do oferente, designadamente quanto à continuidade ou modificação da actividade empresarial da socie-dade visada e de sociedades que com esta este-jam em relação de domínio ou de grupo, a ver-dade é cada um dos oferentes não pode ter um plano próprio para a sociedade visada, só se deve, portanto, falar nos objectivos da oferta.

Assim é preciso determinar se a alteração dos objectivos da oferta, fruto da entrada de novos oferentes, torna a oferta menos favorável para os respectivos destinatários. A questão assume um carácter quase meramente subjectivo, por-que, para os destinatários que pretendem vender as suas acções, não há, objectivamente, um pre-juízo real uma vez que eles não queriam ficar na sociedade e, consequentemente, o seu desti-no é-lhes indiferente43. O carácter menos favo-rável de teor eminentemente subjectivo está, na maioria dos casos, relacionado com a nacionali-dade do oferente ou com o facto de ser um con-corrente de mercado. Ora, essas considerações só podem sobrelevar na análise do carácter menos favorável da oferta se houver uma mudança concreta substancial dos objectivos da oferta que envolva uma perda de valor da socie-dade visada. Enquadram-se nestas situações os casos de squeeze-out (artigo 194.º e ss.) ou pro-cessos de perda da qualidade de sociedade aber-ta daquela sociedade visada ou de outra em relação de domínio ou de grupo com esta, cujo valor seja substancial no balanço consolidado daquela ou mesmo a separação ou desmantela-mento dos respectivos sectores de actividade através de spin-offs ou da venda de activos importantes. Caso a mudança substancial dos objectivos não implique aquela perda de valor (isto é, se os novos oferentes não querem, ao contrário do inicial, realizar algum dos actos acima referidos), será difícil sustentar que a oferta é menos favorável que a anterior para efeitos do artigo 175.º, n.º 2, a)).

42- Se os novos oferentes estiverem em relação de domínio ou de grupo com o oferente inicial não haverá, na prática, um reforço da garantia patrimonial, mas o alargamento pode justificar-se por razões de natureza fiscal, societária ou mesmo contabilística. 43- Contudo, pode argumentar-se que os novos objectivos tornam mais difícil o sucesso da oferta pois os destinatários dificilmente aceitarão uma oferta que apresente aquelas intenções, pelo que objectivamente haveria um prejuízo para os destinatários que queriam vender.

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4. CONTRAPARTIDA A contrapartida da oferta concorrente deve ser superior à antecedente em pelo menos 2% do seu valor (artigo 185.º, n.º 5 primeira parte do Cód.VM). O Código de Mercado de Valores Mobiliários apresentava maior flexibilidade em relação à melhoria das condições da oferta (face ao Cód.VM), ao não pré-fixar a contrapartida como condição mais favorável e não pré-determinar o valor mínimo do seu aumento44. No entanto, tal flexibilidade provocava, segun-do AUGUSTO TEIXEIRA GARCIA, uma situação de “difícil resolução”45. Os alegados subjectivis-mo e dificuldades provocados pelo preceito não justificavam a solução objectiva pré-concebida do artigo 185.º, n.º 5, que estabelecia inicial-mente uma subida obrigatória da contrapartida no valor de 5% e que agora, após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 219/2006, de 2 de Novembro, diminuiu aquele valor para os 2%. Com efeito, esta diminuição não resolveu os referidos problemas que as ofertas de troca colocam em relação ao aumento da contraparti-da pelas ofertas concorrentes, porque, caso a

oferta inicial seja uma OPA de troca, não será possível recorrer ao critério do artigo 185.º, n.º 5 para determinar o carácter mais favorável da contrapartida. Acresce que a eliminação do aumento da quantidade de valores mobiliários objecto da oferta, como critério objectivo de subida da contrapartida pelas ofertas concorren-tes, também não acudiu a quaisquer dificulda-des práticas que a solução do Código do Merca-do de Valores Mobiliários suscitava. Por últi-mo, apesar da contrapartida ser, sem dúvida, um dos elementos mais importantes da oferta, as condições mais favoráveis desta não se reconduzem exclusivamente a ela. As recentes OPAs lançadas no mercado de capitais portu-guês demonstram que a remuneração alternativa dos accionistas, quer através dos mecanismos normais (e. g. distribuição de dividendos) quer através de formas mais sofisticadas (e. g. spin-off de alguns dos activos ou sociedades do gru-po da sociedade visada, programas de share and buy back), é um elemento ponderoso da decisão dos destinatários. Na análise de direito comparado, é possível encontrar duas formas diferentes de regular a questão da contrapartida das ofertas concorren-tes. Nos países anglo-saxónicos46, na Suíça47 e

OPA CONCORRENTE : 35

44- O antigo n.º 3 do artigo 185.º do Cód.VM exigia que a contrapartida da oferta concorrente fosse superior em, pelo menos, 5% do seu valor. O Código de Mercado de Valores Mobiliários e o Regulamento n.º 91/4 da CMVM distinguiam entre dois tipos de situações: (a) “se a concorrência entre a nova oferta e as anteriores respeitar apenas à contrapartida, o valor desta terá de ser superior em, pelo menos, 5% ao da contrapartida proposta em qualquer da ofertas preceden-tes que se encontrem em vigor” (artigo 562.º, n.º 2 do Código de Mercado de Valores Mobiliários); (b) “se a concorrência entre a nova oferta e as anteriores respeitar apenas à quantidade de valores mobiliários que o oferente se propõe adquirir, a quantidade de valores a adquirir terá de ser pelo menos superior em 20% à quantidade mais elevada cuja aquisição é proposta em qualquer das ofertas precedentes que se encontrem em vigor”. Cumpre referir que não eram consideradas mais favoráveis as ofertas concorrentes que se propusessem adquirir uma quantidade superior de valores mobiliários mas oferecessem contrapar-tida inferior às ofertas anteriores ainda em vigor (n.º 7, alínea b) do referido regulamento), bem como as que, apesar de oferecerem uma contrapartida superior, incidissem sobre uma quantidade de valores mobiliários menor que as anteriores ainda em vigor (n.º 8 do mesmo regulamento). 45- Cfr. AUGUSTO TEIXEIRA GARCIA, ob. cit., p. 276. 46- Em Inglaterra, o legislador apenas regula aspectos processuais e procedimentais das ofertas concorrentes, como já se supra se referiu. O Code Committe of the Panel considerou, no âmbito do processo de consulta da reforma do City Code on Takeovers and Mergers, que a oferta concorrente não tinha de representar uma melhoria substancial do valor actual ou dos termos da oferta existente. O legislador inglês não estabeleceu quaisquer condições para o lançamento de oferta concorrente ao nível da contrapartida. A possibilidade de nenhuma das ofertas ter sucesso por apresentarem as mesmas condições e contrapartida não foi vista como um risco. Confiou-se ao mercado, e em particular aos investidores, a decisão sobre a melhoria da oferta, sendo estes que, em total liberdade, melhor saberá defender os seus próprios interesses sem necessidade de qualquer tutela paternalista (vide Panel on Takeovers and Mergers, Consultation Paper. Resolution of Competitive Situations, Londres, 2001). 47- O § 2 do artigo 47.º do Verordnung über öffentliche Kaufangebot determina que “sofern in diesem Kapitel nicht Ausnahmen vorgesehen werden, unterliegt das konkurrierende Angebote allen Bestimmungen über die öffentlichen Kaufangebote”. Ou seja, as ofertas concorrentes estão sujeitas ao regime geral das OPAs caso o contrário não resulte do regulamento sobre OPAs. O legislador suíço não fixou, portanto, quaisquer requisitos ao nível da contrapartida para o lançamento de OPA concorrente pelo que o oferente concorrente é livre de fixar a contrapartida que repute justa. Neste sentido, o § 3 do artigo 47.º do Verord-nung über öffentliche Kaufangebot determina que “die Empfänger der Angebote müssen, ungeachtet der Reihenfolge der Veröffentlichung, zwischen den verschiedenen Angeboten frei wählen können”. Isto é, os destinatários da oferta têm total liberdade de escolha da oferta independentemente da ordem temporal de publicação destas. Pretende-se deste modo assegurar a liberdade dos accionistas, confiando-lhes a decisão ponderada sobre qual das ofertas melhor satisfaz os seus interesses independentemente destes serem de índole económica, social, pessoal, política, nacional, ética ou até desportiva.

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na Alemanha48, não se estabelece qualquer requisito de lançamento de oferta concorrente relativo à contrapartida, confiando-se ao merca-do e em particular aos investidores, a liberdade de discernimento sobre qual das ofertas melhor satisfaz os seus interesses. Diferentemente, na Espanha49, em França50 e em Itália51, a subida da contrapartida não é um requisito obrigatório do lançamento de oferta concorrente, mas é um

dos critérios pré-fixados pela lei (que, por vezes, também fixa o aumento mínimo da mes-ma) para aferir da melhoria da oferta, sendo esta analisada em termos globais. O ordenamento português apresenta assim em termos comparativos com os ordenamentos jurídicos analisados, o regime mais restritivo de lançamento de oferta concorrente. A alegada

48- O artigo 22.º da WpÜG, sob a epígrafe Konkurrierende Angebote (ofertas concorrrentes) não estabelece qualquer requisito quanto ao lançamento de ofertas concorrentes, em particular no que concerne à contrapartida da oferta, limita-se a definir o conceito de OPA concorrente, a fixar o seu prazo e conferir o direito de revogação das aceitações já dadas pelos destinatários à oferta anterior. A lei alemã abre campo para a liberdade de mercado e de lançamento de diferentes ofertas pelos respectivos interessados na tomada de controlo da sociedade visada, procurando estimular o instituto das ofertas concorrentes e fazer face à ainda fraca relevância prática das OPAs na Alemanha. Sobre este particular, vide HORST BRÜCHER/KLAUS-DIETER STEPHAN, ob. cit., p. 149-150. 49- O legislador espanhol consagrou uma solução flexível que, de um ponto de vista material, se limita a exigir uma melhoria da oferta anterior em termos globais (cfr. JAVIER GARCÍA DE ENTERRÍA, ob. cit, p. 177). O direito espanhol apresenta três cenários possíveis no lançamento de oferta concorrente: (i) subida do preço ou valor da contrapartida; (ii) aumento da quantidade de valores mobiliários objecto da oferta; ou (iii) melhoria de quaisquer condições ou elementos da oferta conquanto seja apresentado um relatório de um perito independente que comprove que a nova oferta melhora a antecedente. Desde 2003 que o legis-lador espanhol abriu as portas (ainda que não de forma total e absoluta como nos países anglo-saxónicos e germânico) ao sistema de leilão, simplificando os requisitos para o lançamento de oferta concorrente. É, por isso, natural que, aquando da transposição da directiva europeia sobre OPAs, não tenha havido uma alteração das regras vigentes. O legislador espanhol nem sempre consagrou uma solução tão flexível quanto a actual. Antes da reforma de 2003 da lei das OPAs, o artigo 33.º alínea c) pré-fixava o montante mínimo de aumento da contrapartida e da quantidade de valores mobiliários abrangidos pela oferta em 5% em relação à oferta antecedente. Por outro lado, antes da entrada em vigor do Real Decreto 1676/1999, de 29 de Octubre, a alínea c) do mesmo preceito deter-minava que a contraprestação tinha de ser sempre efectuada em dinheiro. É notória a evolução do direito espanhol no sentido de ampliar e flexibilizar os requi-sitos de melhoria da oferta concorrente de forma a potenciar a concorrência pela tomada de controlo da sociedade visada e criar as condições para um verdadei-ro sistema de leilão. Neste sentido, o preâmbulo do Real Decreto 1676/1999, de 29 de Octubre referia que “la rigidez que fundamentó el régimen de de las ofertas competidoras, y, en especial, la limitación a que la contrapartida fuera únicamente en efectivo, frena sin lugar a dudas, y sin mucha justificación, las posibilidades de reacción ante una oferta pública de adquisición”. Por sua vez, o n.º 5 do preâmbulo do Real Decreto de 423/2003, de 11 de Abril apresentava como um dos seus objectivos principais “extender las posibilidades de mejorar la oferta en las OPA competidoras, favoreciendo que los accionistas minorita-rios se beneficien siempre de los mejores precios” e afirmava ainda que “se abre un período de subasta (…) todos los oferentes pueden presentar en sobre cerrado una mejora del precio o bien extender la oferta a un número mayor de valores”. A própria doutrina espanhola era muito crítica das soluções iniciais da legislação sobre OPAs concorrentes. (cfr. JAVIER GARCÍA DE ENTERRÍA, ob. cit, p. 183; JAVIER GARCÍA DE ENTERRÍA, Novedades en el régimen legal de las OPAs, Expansión, 5-II-1999, p. 62-63; CARLOS DE CARDENAS SMITH, ob. cit, p. 140; FERNÁNDEZ-ARMESTO, J. Y DE CARLOS, El Derecho del Mercado Fi-nanciero, Ed. Civitas, Madrid, 1992). 50- Em França, o legislador fixou como requisito de lançamento de oferta concorrente o aumento mínimo de 2% da oferta concorrente em relação à última oferta ou aumento de contrapartida (artigo 232, 7, parágrafo 1.º do Règlement Général de l’AMF). Todavia, a lei atribuiu à AMF o poder de autorizar as ofertas concorrentes conquanto estas introduzam uma melhoria significativa das condições propostas aos titulares de valores mobiliários (artigo 232, 7, parágrafo 2.º do referido regulamento) ou, em alternativa, reduzam a cláusula de sucesso prevista na oferta inicial e não modifiquem as demais condições da oferta inicial (parágrafo 3 da mesma norma). A lei francesa conferiu à AMF o poder de aquilatar, caso a caso, a melhoria efectiva da oferta concorrente. Esta solução é fruto da evolução do legislador no sentido da ampliação dos casos de admissibilidade das ofertas concorrentes e na consagração de um sistema de leilão. Com efeito, o antigo Regulamento da CMF exigia como requisito do lançamento de oferta concorrente um aumento de 5% da contrapartida ou da quantidade de valores mobiliários abrangidos pela oferta (cfr. RAYMONDE VATINET, Les defenses Anti-OPA., in Revue dês Sociétés, 105.e année, n.º IV-Octobre-Décembre 1987, p. 526). 51- Em Itália, a admissibilidade de OPA concorrente está, portanto, sujeita a um dos seguintes requisitos alternativos: (i) a contrapartida oferecida por cada um dos valores mobiliários tem que ser superior ao da última oferta, ou (ii) a eliminação de uma das condições de eficácia da oferta inicial. Convém referir que o aumento do valor da contrapartida tem que ser relativo a todos os valores mobiliários e, mesmo que não haja aumento da contrapartida por ter sido eliminada uma das condições da oferta, o valor da oferta concorrente não pode ser inferior ao da última oferta, pelo que os valores mobiliários abrangidos serão os mes-mos. O legislador italiano consagrou, à semelhança do seu congénere espanhol, uma solução maleável ao não pré-determinar a subida da contrapartida ou o tipo de condição de eficácia a eliminar para viabilizar o lançamento de OPA concorrente. Tal como a legislação espanhola, a italiana evoluiu no sentido de alargar a admissibilidade do lançamento de ofertas concorrentes, eliminando alguns requisitos e facilitando outros, e de consagrar (ainda que não de forma total e absoluta como noutros ordenamentos jurídicos) o sistema de leilão. Durante muito tempo, o silêncio da legislação italiana sobre a admissibilidade revisão da contrapartida das ofertas concorrentes levou a que a doutrina aventasse soluções diferentes fundadas nos mais diversos argumentos. WEIGMANN era a favor da admissibilidade da revisão, afirmando que “l’ha senz’altro risolto in senso positivo, rilevando in particolare che, in presenza di un c.d. rilancio della proposta da parte del promotore della prima offerta, il secondo offerente puo… rispondere a sua volta com un aumento, non avendone ancora promesso nessuno” (vide WEIGMANN, Le offerte pubbliche di acquisto, in Trattatto delle societá per azioni, diretto da Colombo e Portale, Torino, 1992 p. 546; neste sentido também cfr. GIUSEPPE PORTALE e ALDO DOLMETTA, Il cavaliere bianco é dimezzato? Due questioni cruciali per l’OPA concurrente, in Banca borsa e titoli di credito, Milano, Nuova Série, Marzo-Aprile 1995, Parte Prima, p. 235–246; e PAOLO MONTALENTI, Il probleme del rilancio del prezzo nell’OPA concurrente, in Banca borsa e titoli di credito, Milano, Nuova Série, Marzo-Aprile 1995, Parte Prima, p. 247–252). Diferentemente, GOLDA PERINI sustentava uma posição negativa defendendo que “(…) nessuna indicazione precisa si trova nella legge in oggetto circa la possibilitá per l’offerente concorrente di ripresentare una nuova proposta, (…) mi sembra che tale facoltá sai da escludere” (cfr. GOLDA PERINI, La legislazione italiana sulle offerte pubbliche di valori mobiliari, in Banche e banchieri, 1992, p. 729). A solução afirmativa era claramente dominante na doutrina italiana e respaldava-se nos seguintes argumentos: (i) silêncio do legislador que não impunha uma regra proibitiva (cfr. PAOLO MONTALENTI, ob. cit., p. 249); (ii) trabalhos preparatórios da lei sobre OPAs, uma vez que quer o artigo 32, 4.º, da proposta de lei de 1987 da iniciativa de alguns senadores, entre eles Berlanda, quer o artigo 28.º, 4.º da proposta de lei de 1988 apresentado na Commissione Permanente Finanze e Tesoro, quer ainda o artigo 27, 4.º do projecto de lei de 1988 da mesma comissão aprovado apenas em sede de redacção, proibiam expressamente a revisão da contrapartida da oferta concorrente (cfr. GIUSEPPE PORTALE e ALDO DOLMETTA, ob. cit., p. 237); (iii) artigo 22, 1.º da lei das OPAs que admitia a revisão da contrapartida e não a restringia às ofertas iniciais (cfr. GIUSEPPE PORTALE e ALDO DOLMETTA, ob. cit., p. 238); (iv) posição contrária violaria o disposto nos artigos 3.º, 1 e 41.º, 1 da Constituição italiana, pois atribuiria uma vantagem injustificada, criando posições assimétricas (cfr. GIUSEPPE PORTALE e ALDO DOLMETTA, ob. cit., p. 238), (v) artigo 23.º da lei das OPAs que permitia o lançamento de mais do que uma oferta concorrente (cfr. GIUSEPPE PORTALE e ALDO DOLMETTA, ob. cit., p. 239); (vi) tutela dos interesses dos accionistas da sociedade visada, objectivo imanente à lei das OPAs (cfr. GIUSEPPE PORTALE e ALDO DOLMETTA, ob. cit., p. 239). Só em 1998, o legislador clarificou esta questão ao dispor, no artigo 103, 4.º alínea c) introduzido pelo Testo unico delle disposizioni in materia di intermediazione finanziaria de 1998 veio conferir à CONSOB o poder de, através de regulamento, regular e disciplinar “le offerte di aumento e quelle concorrenti, senza limitare il numero dei rilanci, effettuabili fino alla scadenza di un termine massimo” (artigo 103.º, n.º 4, alínea c) do Decreto Legislativo n.º 58 de 24 Febbraio 1998).

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tutela dos accionistas da sociedade visada, e a suposta tentativa de evitar que qualquer das ofertas não tenha sucesso, levaram o legislador português a quantificar um montante mínimo obrigatório de aumento da contrapartida. A subida da contrapartida não é um dos critérios que permitem aferir da melhoria da oferta, é antes o requisito obrigatório do lançamento de qualquer oferta concorrente, tendo o legislador português quase esgotado a melhoria da oferta na subida da contrapartida52. Todavia, estes argumentos não justificavam uma solução tão restritiva do legislador53. Em primeiro lugar, os accionistas da sociedade visada, mesmo os accionistas minoritários e investidores não qualificados, têm hoje um manancial de informação (que advém do pros-pecto e da própria análise que os jornais apre-sentam sobre as ofertas) que lhes permite dispor dos elementos necessários para tomar uma deci-são informada e ponderada quanto à oferta que melhor satisfaz os seus interesses. Não é neces-sário que a última oferta tenha pré-definidos os pontos em que deve ser melhorada. Refira-se aliás que a legislação espanhola, a coberto da defesa dos interesses dos accionistas, ampliou a possibilidade de lançamento de ofertas concor-rentes, eliminando o requisito de subida obriga-tória mínima de 5% da contrapartida. Não é,

portanto, a defesa desses interesses que pode justificar a solução do ordenamento jurídico português. Em segundo lugar, a fixação de uma contrapar-tida mínima não afasta, per si, o insucesso das ofertas54, até porque oferta pode ser melhorada pela eliminação de condições a que está sujeita, assegurando o seu sucesso. Acresce que na decisão dos accionistas não relevam apenas razões económicas, mas também estratégicas55, sociais56, políticas57, éticas58 e até desportivas59. É redutor esgotar a melhoria da oferta na subida da contrapartida, limitando a possibilidade de melhoria de outros termos da oferta. Em terceiro lugar, o insucesso das ofertas ini-cial e concorrentes não é um facto negativo quer para a sociedade visada, quer para o mer-cado. Senão vejamos. Os accionistas que compraram acções antes da OPA investiram na sociedade porque, na maio-ria dos casos, acreditaram no seu potencial de valorização e implicitamente na respectiva ges-tão, pelo que, em caso de insucesso da OPA, não ficarão numa situação pior que a que se encontravam antes do lançamento da mesma. Já os accionistas que entraram na sociedade visada num momento posterior ao lançamento da

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52- Se o oferente concorrente tem de lançar oferta com uma contrapartida superior em 2% à da oferta antecedente, já lhe resta pouca, ou nenhuma, margem para poder melhorar outras condições da oferta (e.g. condições de eficácia, ampliação do objecto, entre outras). 53- Neste sentido, vide HUGO MOREDO DOS SANTOS, ob. cit., p. 111 e ss.. 54- Veja-se por ex. o caso da OPA lançada pela Suzlon e pela Martifer sobre a RE-Power e da OPA concorrente lançada pela Areva, em que a oferta inicial melhorou em cerca de 7% a contrapartida, mas, perante a possibilidade de nenhuma das ofertas lograr obter o controlo accionista da RE-Power, foi necessário alcançar um entendimento entre as duas sociedades. 55- Pelas relações comerciais existente entre a sociedade visada que poderão ser postas em causa pela mudança de controlo accionista. 56- Recorde-se por exemplo a discussão em torno do financiamento do fundo de pensões da PT no caso da recente OPA da Sonae sobre a PT ou ainda os problemas de dispensa de trabalhadores levantados pela OPA do BCP sobre o BPI. 57- A manutenção do centro de decisão da sociedade visada em “mãos” portuguesas ou a manutenção de poder decisório do Estado em empresas estratégicas. Recorde-se o caso da OPA da PT em que a Sonae apresentou como argumento aos accionistas, e em particular ao Estado, a manutenção de um participação accionista de controlo da PT durante um determinado período de tempo, negando a intenção de permitir a entrada da France Telecom no capital da PT. 58- Na OPA do BCP sobre o BPI, este último apresentou como argumento o tipo de gestão do oferente e os valores que lhe são inerentes, tecendo duras críticas às ligações do oferente com os seus accionistas relevantes, nomeadamente ao nível do financiamento que lhes era concedido pelo oferente. 59- Veja-se o caso da OPA lançada pela Metalgest, SGPS, S.A. sobre a Benfica SAD, em particular, a posição assumida pelo órgão de gestão da sociedade visada que, no seu relatório sobre a oportunidade e condições da oferta, considerou que a detenção de acções da Benfica SAD não se funda em razões meramente económicas mas também de motivação clubística.

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oferta, na perspectiva da realização de uma mais-valia resultante da diferença actual das acções e a contrapartida oferecida pela mesma, efectuaram uma aquisição claramente especula-tiva que, como tal, deve sujeitar-se aos riscos acrescidos do mercado decorrentes do lança-mento de diferentes ofertas sobre a sociedade visada. Não é legítimo restringir a liberdade do mercado e a concorrência para tentar de alguma forma proteger tais accionistas, assegurando o sucesso a todo o custo da oferta e a consequente realização da mais-valia. O interesse de tais accionistas não pode sobrelevar ao da liberdade do mercado, da iniciativa económica e da livre concorrência, que gozam aliás de consagração ao nível constitucional e/ou, consoante o caso, comunitário. Por último, o mercado também não sai prejudi-cado pois o insucesso das ofertas faz parte do normal funcionamento do mercado e está pre-visto e assumido nas suas regras de funciona-mento. Questão interessante que se coloca a propósito da contrapartida das OPAs concorrentes, é a de saber se, sendo a oferta inicial em dinheiro, poderá a contrapartida oferta concorrente ser em valores mobiliários. E será o contrário tam-bém admissível? Creio que a resposta deve ser afirmativa. Apesar de o Cód.VM demonstrar uma preferên-cia pela contrapartida em dinheiro (artigo 188.º, n.º 5) e de a contrapartida em valores mobiliá-rios levantar diversas dificuldades em matéria

de elevação mínima da contrapartida da oferta concorrente, entendo que o princípio da igual-dade entre os oferentes (level playing field – pilar estruturante da Directiva das OPAs e do Decreto-Lei n.º 219/2006, de 2 de Novembro que a transpôs), a concorrência pela aquisição da sociedade visada (sobretudo pelo efeito dissuasor do lançamento de OPAs concorren-tes), os interesses dos destinatários da oferta e o mercado exigem esta solução. A análise de direito comparado revela que essa é também a solução aceite nos demais ordenamentos jurídicos60. O presente entendimento levanta, contudo, dois problemas complexos: – Qual o momento relevante para aferir da ele-vação mínima de 2% da contrapartida pela ofer-ta concorrente? – Qual o método de avaliação da contrapartida dos valores mobiliários? Julgo que o momento relevante para aferir do cumprimento do artigo 185.º, n.º 5, nestes casos, é o do anúncio preliminar. Solução diver-sa (como, por exemplo, exigir que a elevação mínima se mantenha durante todo o processo de OPA) geraria uma enorme insegurança jurídica e instabilidade no mercado ao mesmo tempo que colocaria a validade da oferta dependente de circunstâncias aleatórias e alheias à capaci-dade de influência do próprio oferente61. A pró-pria necessidade de objectivar a verificação dos requisitos de lançamento de OPA, permitindo ao oferente concorrente aferir facilmente da sua verificação sem gerar qualquer turbulência no

60- Caso interessante é o da evolução da legislação espanhola que até 1999 impunha que a contrapartida das ofertas concorrentes fosse em dinheiro, indepen-dentemente da espécie de contrapartida oferecida pelo oferente inicial. A solução foi objecto de críticas severas da doutrina espanhola que a acusava de gerar uma “flagrante” desigualdade de tratamento entre os oferentes e de ter um efeito dissuasor em relação ao surgimento de outros oferentes interessados na aquisi-ção da sociedade visada (cfr. FERNÁNDEZ ARMESTO/DE CARLOS BERTRÁN, El Derecho del Mercado Financiero, Madrid, 1992, p. 573 e CARLOS CÁRDENAS SMITH, Régimen Jurídico de las Ofertas Públicas de Adquisición, Civitas, Madrid, 1993, p. 40). Assim, o Real Decreto 1676/1999 eliminou aquela imposição e destacou no seu preâmbulo que “la rigidez que fundamentó el régimen de las ofertas competidoras, y, en especial, la limitación a que la contrapartida fuera únicamente en efectivo, frena sin lugar a dudas, y sin mucha justificación, las posibilidades de reacción ante una oferta pública de adquisición”. A questão também se colocou em França. Antes da reforma de 18 de Dezembro de 2000, a exigência de melhoria da oferta em 2% aplicava-se a todas as ofertas públicas de aquisição, independentemente do tipo de contrapartida que oferecessem. Contudo, a complexidade da avaliação económica dos valores mobiliários levou a Commission de Operatións de Bourse a propor o fim das regras sobre a avaliação a priori dos títulos oferecidos nas ofertas públicas de troca (Rapport Annuel, 1986, p. 30). 61- Neste sentido, vide CARLOS CÁRDENAS SMITH, Limitación del Voto, Actuación Concertada y Ofertas Condicionales. Estudios sobre OPAs (II), Civitas, Madrid, 2002, p. 186.

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mercado (resultante por exemplo de uma autorização prévia do regulador), bem como a exigência do preenchimento dos requisitos de lançamento das ofertas concorrentes no momento do seu anúncio preliminar, assim o exige. Esta foi aliás a solução adoptada pelo regulador belga quando confrontado com esta problemática62. Claro que o oferente concorren-te é, por norma, o mais interessado em melhorar a sua contrapartida caso o preço dos valores mobiliários oferecidos em troca se reduza signi-ficativamente durante o processo de OPA, por isso, prevêem muitas vezes mecanismos de ajuste automático da relação de troca em função da evolução do preço de mercado das acções do oferente63. Quanto ao método de avaliação, julgo que a solução apresentada pelo regulador belga não se revela a mais adequada. Atender exclusivamen-te ao último preço de fecho da cotação do valor mobiliário oferecido como contrapartida, pode levar quer à sua sobreavaliação pois o oferente pode aproveitar um dia de subida da cotação daquele para logo anunciar a sua OPA

concorrente, quer à sua subavaliação se a sema-na (ou mesmo o mês) do anúncio da OPA con-corrente foi negativo em termo de performance dos mercados financeiros. Julgo que o método de avaliação deve ser o preço médio ponderado do valor mobiliário nos últimos 3 meses. É um lapso temporal nem muito longo nem muito curto e que permite avaliar de forma mais ade-quada aquele activo financeiro, não se dando às deturpações de uma alta ou baixa de cotação momentânea ou circunstancial. 5. CONDIÇÕES A oferta concorrente não pode conter condições que a tornem menos favorável que a anteceden-te (artigo 185.º, n.º 5 in fine do Cód.VM)64. O telos deste preceito é a tutela dos interesses do mercado e dos próprios destinatários da ofer-ta e é a expressão clara de um princípio imanen-te ao lançamento das ofertas concorrentes: o princípio da melhoria progressiva das ofertas sucessivas65. A lei exige, com o intuito evitar decisões pouco ponderadas e informadas dos

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62- A questão levantou-se na OPA sobre a sociedade Générale de Banque em 1998 e a Commission Bancaire et Financière considerou que a contrapartida das ofertas públicas que consista em valores mobiliários deve fixar-se no momento de depósito destes, atendendo ao último valor de cotação conhecido dos mes-mos. O regulador admitiu que existiriam outros métodos mais elaborados que poderiam ter sido utilizados, nomeadamente ter em conta o valor médio dos títulos oferecidos como contrapartida durante um determinado período de tempo ou que a elevação mínima da contrapartida fosse efectuada por referência ao preço dos valores no momento do seu depósito ou ao seu último preço de mercado conhecido (consoante o que fosse mais alto) ou ainda considerar a variação de valor das acções oferecidas e das acções da sociedade visada, mas optou por escolher um critério que permitisse à Comissão verificar, no curto espaço de tempo que a lei lhe atribui, a admissibilidade da oferta concorrente (cfr. Rapport Annuel 1997-1998, p. 115). LAMBRECHT critica o facto de não se ter aprovei-tado a reforma de 1999 para resolver expressamente esta problemática (cfr. LAMBRECHT, L’arrête royal du 21 avril 1999: un simple toilettage de la réglemen-tation sur les OPA?, in Revue Practice Societaires, 1999, 218-219). 63- Foi este o caso da OPA da Koninklijke Ahold, N.V. sobre a Superdiplo no ano de 2000 em Espanha. A contrapartida era de 0,74 novas acções do oferente (cotado na Euronext de Amesterdão) por cada acção da sociedade visada, mas haveria lugar a um ajuste automático nos seguintes termos: “sempre e quando o preço médio seja igual ou superior a 29 euros, a equação de troca ajustar-se-á automaticamente e aumentar-se-á o número de novas acções do oferente a entre-gar como contrapartida passando a equação de troca a ser a maior das seguintes: (i) 0,74 novas acções do oferente ou (ii) a equação de troca implícita calculada através da divisão do preço acordado por acção da sociedade visada de 24 euros entre o preço médio. Em Portugal, a CMVM considerou, em duas respostas de 18 de Outubro de 2006 e 28 de Fevereiro de 2007, a requerimentos da Sonaecom no âmbito da OPA sobre a PT, que o recurso a ajustamentos automáticos da contrapartida em baixa encontra-se vedado por lei. O regulador defendeu que a revisão em baixa dos termos da oferta só pode ocorrer nos termos restritos do artigo 128.º o qual exige, para sua aplicação, uma “cuidada verificação de entidade independente” (leia-se CMVM) – “o que é alheio a qualquer automaticida-de”. Creio que a interpretação da CMVM é a mais correcta, contudo, a admissibilidade dos mecanismos de ajustamento automático, nos casos em que a contra-partida consiste em valores mobiliários, parece-me plenamente justificada e não lesa, pelo contrário beneficia, os destinatários da oferta desde que funcione apenas no sentido da melhoria da contrapartida, hipótese sobre a qual o regulador não se pronunciou. 64- Antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 219/2006, de 2 de Novembro, o Regulamento 10/2000 sobre Ofertas e Emitentes consagrava uma disposição similar ao actual artigo 185.º, n.º 5, estabelecendo no seu artigo 45.º, n.º 3 que “os termos da oferta concorrente devem ser mais favoráveis aos destinatários do que os da oferta inicial ou da concorrente anterior”. Apesar da letra da lei (“mais favorável”), o entendimento era o de que a oferta concorrente apenas tinha que melhorar obrigatoriamente a contrapartida em, pelo menos, 5% em relação à oferta antecedente, pois a contrapartida considerava-se a contrapartida incluí-da nos “termos da oferta” (vide HUGO MOREDO DOS SANTOS, ob. cit., p. 99). A mesma solução constava do artigo 562.º, n.º 1 do antigo Código do Mercado de Valores Mobiliários, nos termos do qual a oferta concorrente devia “conter condições mais favoráveis para os seus destinatários do que as que, no momento do seu lançamento, resultem da oferta e bem assim, se for o caso, da oferta ou ofertas concorrentes anteriores”. A CMVM tinha a responsabilidade de apreciar, perante o caso concreto, se a oferta concorrente oferecia condições mais favoráveis. 65- Neste sentido, JOSÉ MIGUEL JÚDICE, MARIA LUÍSA ANTAS, ANTÓNIO ARTUR FERREIRA E JORGE BRITO PEREIRA referiam, à luz do Código do Mercado dos Valores Mobiliários, que a melhoria das condições da oferta é “o princípio básico a partir do qual se deverá construir a admissibilidade de cumulação sucessiva de ofertas concorrentes, visto que os interessados do mercado e dos próprios destinatários da oferta apenas poderão ser devidamente satisfeitos com a melhoria progressiva, oferta após oferta, das respectivas condições oferecidas” (vide JOSÉ MIGUEL JÚDICE E OUTROS, ob. cit., p. 173).

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destinatários da oferta, que as OPAs concorren-tes apresentem melhores condições que a ante-rior, procurando assegurar que os destinatários saibam de antemão que uma oferta concorrente apresentará, de um ponto de vista objectivo, melhores condições que a anterior sendo, por isso, a que melhor satisfaz, pelo menos em ter-mos económicos imediatos, os interesses dos respectivos destinatários. Aquele princípio apli-ca-se também ao oferente inicial66 e densifica outras normas do regime das OPAs67. Contudo, e numa perspectiva de iure constituendo, é necessário esclarecer se aquele princípio deve enformar o regime das ofertas concorrentes? Ou, dito de outra forma, deverá tal princípio ser o critério da admissibilidade do lançamento das OPAS concorrentes? Julgo que não. Em primeiro lugar, e conforme já referido supra em diversas ocasiões, a decisão de aceita-ção da oferta baseia-se em vários critérios que não são exclusivamente económicos pelo que a melhoria da oferta pode fundar-se em aspectos subjectivos insusceptíveis de quantificação objectiva, tais como razões de carácter ético, nacional, político, estratégico, ético ou desporti-vo. Em sentido contrário, pode argumentar-se que tal solução poderia conduzir a que nenhuma das ofertas tivesse sucesso, sendo esta aliás, segundo alguns autores, a ratio da exigência de uma subida mínima de 2% da contrapartida. Todavia, tal como demonstrado supra, a melho-ria obrigatória da oferta não é sinónimo de sucesso de uma das ofertas e o insucesso das

ofertas inicial e concorrentes não é, em si mes-mo, um facto negativo quer para a sociedade visada, quer para os seus accionistas, quer para o mercado. Em segundo lugar, a imposição da melhoria das ofertas sucessivas restringe a concorrência e espartilha o mercado. A coarctação da liberdade de iniciativa económica e de mercado só se jus-tifica se houver um interesse ponderável dos destinatários da oferta, da sociedade visada ou do mercado que sobreleve sobre os primeiros. A decisão informada e ponderada dos accionis-tas não deve ser assegurada por via de uma melhoria forçada das sucessivas ofertas, que permitiria aos destinatários saber de antemão que a última oferta apresenta (supostamente) sempre as melhores condições. Essa decisão tem que ser tomada com base em informação muito clara sobre os termos e condições da oferta e não com base na certeza (incerta) de que a última oferta é objectivamente a melhor. É neste ponto que se exige a intervenção “enérgica” do regulador para assegurar a clare-za e transparência da informação relativa à ofer-ta e assim tutelar de forma adequada os interes-ses dos seus destinatários. Tais interesses exi-gem inclusive que não haja limitação ao lança-mento de ofertas concorrentes de forma a ampliar o campo de opção daqueles em relação à alienação das suas participações sociais. A própria sociedade visada e, em particular a sua gestão, só beneficiam com o lançamento de diversas ofertas concorrentes. Com efeito, a ampliação do leque de oferentes alarga as políticas de gestão da sociedade, abrindo novas

66- O artigo 184.º do Cód.VM relativo à revisão da oferta pelo oferente inicial dispõe que este só pode rever a oferta desde que não introduza condições que a tornem menos favorável e desde que a contrapartida seja superior à antecedente em, pelos menos, 2% do seu valor. 67- O artigo 128.º do Cód.VM permite que o oferente inicial (e também o concorrente) modifiquem ou revoguem a oferta conquanto se tenha verificado uma “alteração imprevisível e substancial das circunstâncias que, de modo cognoscível pelos destinatários, hajam fundado a decisão de lançamento da oferta exce-dendo os riscos a esta inerentes” e desde que a CMVM autorize tal modificação ou revogação e ela se concretize em prazo razoável. O legislador restringiu fortemente a possibilidade de retirada da oferta pública, relevando de forma mais intensa os interesses dos destinatários da oferta que criaram uma expectativa jurídica em torno do lançamento da oferta e pretendem agora alienar as suas participações sociais, pelo menos, nas condições que foram inicialmente ofereci-das (sobre este particular e o regime menos restritivo do anterior código, vide PAULA COSTA SILVA, Ofertas Públicas e Alteração das Circunstâncias in Direito dos Valores Mobiliários, Vol. IV, p. 175). Por sua vez, o artigo 175.º, n.º 2 alínea a) do Cód.VM dispõe que a “publicação do anúncio preliminar obriga o oferente a lançar a oferta em termos não menos favoráveis para os destinatários do que as constantes desse anúncio”.

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perspectivas de racionalidade económica e expansão da sociedade que de outra forma nun-ca teriam surgido. O mercado, por sua vez, não exige que as sucessivas ofertas melhorem os seus termos, em particular as condições que lhe estão apostas. Por último, a consagração do sistema de leilão para as ofertas concorrentes, quer em Portugal quer nos demais países da União Europeia, revela uma clara tendência no sentido da elimi-nação dos requisitos das ofertas concorrentes e é um incentivo à concorrência pela tomada de controlo da sociedade visada. Aliás, numa pers-pectiva de iure constituendo, a melhor solução passaria pela eliminação de requisitos de melhoria obrigatória das sucessivas ofertas e do princípio geral de melhoria progressiva das ofertas sucessivas de forma a potenciar a con-corrência pela tomada de controlo da sociedade visada, assegurar a liberdade de iniciativa eco-nómica e de mercado e consagrar de forma efectiva o sistema de leilão. Ultrapassada esta questão prévia da bondade da ratio do artigo 185.º, n.º 5 in fine, é agora necessário densificar as condições que podem tornar uma oferta menos favorável. Esta tarefa de densificação não pode ser efec-tuada de forma isolada, ou seja, não é possível analisar, de forma isolada, as condições apostas à oferta. O carácter menos favorável da oferta concorrente deve ser analisado de uma forma global face aos demais termos da mesma. O

lançamento da oferta concorrente não deve ser recusado, ainda que uma condição perspectiva-da de forma isolada possa tornar a oferta menos favorável, desde que a oferta seja globalmente mais favorável por força, nomeadamente, da ampliação do seu objecto ou da subida da sua contrapartida acima do limite legalmente exigido. MENEZES CORDEIRO, ao abordar esta problemá-tica, recorre às soluções consagradas no âmbito do direito do trabalho. Neste ramo do direito, a teoria acolhida para um problema de natureza similar (a questão do tratamento mais favorável do trabalhador) foi a chamada teoria da conexão68. De acordo com esta teoria, a concre-tização da ideia de tratamento mais favorável do trabalhador deve ser efectuada através da comparação “entre si dos conjuntos de normas que se mostrem incindíveis”69 e não norma a norma ou conjunto a conjunto. Transpondo estas soluções para a problemática da relação entre anúncio preliminar e anúncio de lança-mento, MENEZES CORDEIRO defende que “a comparação (…) não deve ser feita cláusula a cláusula: uma cláusula pode obedecer a meras articulações formais e não a valores substanti-vos, dependendo mesmo do estilo adoptado pelo seu autor material”. Mas, continua o mes-mo autor, “a comparação dos anúncios também levanta problemas. Quando estes tenham con-teúdos muito diferentes, com vantagens nuns pontos e desvantagens noutros, como operar o juízo de favorabilidade? Aliás, o que surja mais favorável para uns accionistas pode não ser para

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68- A propósito da determinação do instrumento mais favorável para os trabalhadores, surgem três teorias distintas, a saber: a teoria do cúmulo, a teoria da conglobação e a teoria da conexão. Segundo a teoria do cúmulo, a comparação deveria ser efectuada norma a norma e o seu regime juntaria todas as normas mais favoráveis (cúmulo). Diferentemente, a teoria da conglobação defendia que a comparação devia ser efectuada em conjunto, sendo aplicável o conjunto mais favorável resultante do referido cotejo. Por último, a teoria da conexão postula que a comparação não é feita norma a norma ou conjunto a conjunto, há que comparar “entre si os conjuntos de normas que se mostrem incindíveis” (vide MENEZES CORDEIRO, Ofertas Públicas de Aquisição, in Direito dos Valores Mobiliários, Lex, 1997, p. 289-290). Para mais desenvolvimentos sobre as teorias em confronto, vide MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito do Trabalho, 1994, p. 208 e ss. e RAÚL VENTURA, O cúmulo e a conglobação na disciplina das relações de trabalho, in O Direito, 94, 1962, p. 201-222. 69- Vide MENEZES CORDEIRO, ob. cit., 1999, p. 290.

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outros”. Conclui então o autor que “será prefe-rível comparar grupos de cláusulas material-mente ligadas. O grupo – qualquer grupo – de cláusulas do anúncio de lançamento não pode ser menos favorável do que o equivalente no anúncio preliminar”70. Apesar de concordar em grande medida com esta posição, creio que, em sede de oferta públi-ca de aquisição e para tutela dos destinatários e incentivo de lançamento de OPA concorrente, o grupo de normas a analisar deverá ser o mais amplo possível. Isto é, o critério de ligação material entre as condições deverá ser relativa-mente alargado de forma a permitir uma análise mais global e correcta dos termos da oferta, em particular das suas condições. A interpretação ora defendida é também a mais conforme à experiência de direito comparado71. Ainda no que concerne às condições da oferta, cumpre fazer referência ao disposto no artigo 185.º, n.º 6 do Cód.VM, que não permite que a

oferta concorrente faça “depender a sua eficácia de uma percentagem de aceitações por titulares de valores mobiliários ou de direitos de voto em quantidade superior ao constante da oferta ini-cial ou de oferta concorrente anterior”. Este preceito não encontra um paralelo na maioria dos ordenamentos jurídicos estrangeiros72 e no predecessor Código do Mercado dos Valores Mobiliários73 e é gerador de situações materialmente injustas74. A importância das cláusulas de sucesso da ofer-ta e o facto de, aparentemente e de uma forma objectiva, o aumento da percentagem de aceita-ções ser um dos maiores obstáculos ao sucesso da oferta, levaram o legislador tivesse proibido expressamente a subida do limiar mínimo de eficácia da oferta. Julgo que a opção legislativa tomada não foi novamente a mais correcta, pois restringe de forma excessiva a liberdade de mercado, de iniciativa económica e a concorrência.

70- Vide MENEZES CORDEIRO, ob. cit., p. 290. Neste sentido, vide também PAULO CÂMARA, ob. cit., p. 201. Este autor acrescenta ainda que a “essencialidade do preço no plano da apreciação típica de uma oferta por parte dos destinatários” torna muito difícil a redução do preço mesmo que “tal venha acompanhada de um favorecimento da oferta em outros pontos da mesma” (cfr. PAULO CÂMARA, ob. cit., p. 201). 71- Em Espanha, o legislador não estabeleceu qualquer restrição específica à aposição de condições à oferta concorrente. O artigo 33 alínea b) do Real Decreto 1197/1991, de 26 de julio, sobre régimen de las ofertas públicas de adquisición de valores, modificado pelos Reales Decretos 437/1994, de 11 de marzo, 2590/1998, de 7 de diciembre, 1676/1999, de 29 de octubre e 1443/2001, de 21 de diciembre, 432/2003, de 11 de abril e pela Ley 6/2007, de 12 de abril esta-belece como requisito do lançamento de OPA a melhoria da oferta ou ao nível do seu objecto, ou da contrapartida, ou a outro nível, nomeadamente das suas condições, desde que, em termos globais e objectivos, haja lugar a uma melhoria da oferta anterior. O importante é que a oferta concorrente seja mais favorá-vel, podendo ser apostas condições desde que aquela melhoria não seja prejudicada. A supressão de condições da oferta é uma das formas de tornar a oferta mais favorável, mas não se exclui a aposição de novas condições pela oferta concorrente, desde que o carácter mais favorável da oferta resultante da subida da contrapartida não seja afectado (cfr. JAVIER GARCÍA DE ENTERRÍA, ob. cit., p. 177). Em Itália, o artigo 44.º, n.º 1 do Regolamento di attuazione del decreto legislativo 24 febbraio 1998, n. 58, concernente la disciplina degli emittenti sujeita a admissibilidade de OPA concorrente à verificação de um dos seguintes requisitos alternativos: (i) a contrapartida oferecida por cada um dos valores mobiliários tem que ser superior ao da última oferta, ou (ii) a eliminação de uma das condições de eficácia da oferta inicial. O legislador italiano consagrou uma solução que materialmente analisa a oferta de uma forma global, procurando determinar se esta é mais favorável que a anterior. Em França, a lei atribuiu à AMF o poder de autorizar as ofertas concorrentes conquanto estas introduzam uma melhoria significativa das condições propostas aos titulares de valores mobiliários (artigo 232, 7, parágrafo 2.º do referido regulamento), sendo que a oferta concorrente será sempre aceite se o oferente reduzir a cláusula de sucesso prevista na oferta inicial e não modificar as demais condições da oferta inicial (parágrafo 3 da mesma norma). A lei francesa conferiu à AMF o poder de aquilatar, caso a caso, a melhoria efectiva da oferta concorrente. 72- Tal como referido supra, ordenamentos jurídicos como o francês e italiano apenas consideram a eliminação de condições de eficácia da oferta para efeitos da análise, em termos globais, de melhoria da oferta em relação à antecedente, não impondo a manutenção de qualquer condição de eficácia, em particular da percentagem de aceitações de titulares de valores mobiliários ou de direitos de voto. Diferentemente, no ordenamento jurídico espanhol, a lei considera que a oferta concorrente não melhora os termos da oferta anterior “cuando la efectividad de la oferta quede condicionada a su aceptación por un número mayor de valores que la última precedente”, não podendo, portanto, ser lançada. 73- O artigo 562.º, n.º 1 do referido código apenas referia que a oferta devia conter condições mais favoráveis para os destinatários do que as que resultem da oferta inicial. Era então necessário verificar se o aumento da percentagem de aceitações dos titulares de valores mobiliários era uma condição menos favorável e se a oferta era globalmente menos favorável. O artigo 562.º, n.º 3 do código atribui competência à CMVM para analisar a melhoria da oferta e fixar condi-ções específicas caso a concorrência entre a nova oferta e as anteriores respeite apenas à contrapartida. 74- Uma dessas situações verifica-se quando o oferente inicial já é detentor de uma participação qualificada relevante na sociedade visada que lhe permite apresentar, como condição de sucesso, uma percentagem inferior de aceitações face aos oferentes concorrentes.

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B) EFEITOS DO LANÇAMENTO DE OFERTA CONCORRENTE O lançamento de oferta concorrente é uma das vicissitudes mais importantes do dinâmico pro-cesso de aquisição de controlo de uma socieda-de através de oferta pública de aquisição. Enquanto vicissitude do processo de OPA, o lançamento de oferta concorrente produz efeitos jurídicos relevantes quer na esfera dos destina-tários da oferta quer na esfera do oferente ini-cial. 1. DESTINATÁRIOS DA OFERTA Em relação aos destinatários da oferta, o lança-mento de OPA concorrente confere-lhes o direi-to de revogarem as aceitações da oferta inicial até ao último dia do período de aceitações”75 de forma a permitir-lhes a aceitação da oferta con-corrente que, de acordo com os requisitos legais objectivos fixados para o seu lançamento, deverá apresentar melhores condições que a oferta anterior. Esta faculdade mantém-se mesmo que já tenha decorrido o prazo de livre revogabilidade das aceitações que termina no quinto dia anterior ao fim do prazo da oferta, a não ser que o oferente tenha fixado um prazo inferior nos documentos da oferta (artigo 126.º, n.º 2). Para o presente efeito, o prazo a ter em conta é o prazo prorrogado76 e não o prazo inicial. Cumpre referir que a faculdade de revogação, apesar de conferir aos destinatários a possibili-dade de aceitarem a oferta concorrente (que em princípio será mais vantajosa em termos objec-tivos), não os obriga a aceitar tal oferta ou mes-mo a voltar a aceitar a oferta inicial, caso rejei-tem a concorrente. O direito de revogação das

aceitações é um direito potestativo exercido de forma livre e não sujeito a qualquer condição. Questão diversa e complexa é a de saber se os destinatários podem renunciar à faculdade de revogação das suas aceitações em caso de lan-çamento de oferta concorrente. A questão pode parecer, numa primeira análise, destituída de sentido, uma vez que o destinatário nunca terá interesse em renunciar a tal direito pois o ofe-rente inicial, por força do princípio da igualda-de de tratamento previsto no artigo 112.º do Cód.VM, não pode oferecer melhores condi-ções a determinado(s) destinatário(s) da(s) ofer-ta(s) e não aos demais. Porém, a questão não é tão linear quanto possa fazer crer a articulação apriorística dos artigos do Cód.VM. No processo dinâmico de OPA, o oferente lida por norma com um universo de milhares de accionistas que compreendem desde investido-res institucionais (e.g. fundos de investimento, fundos de pensões, hedge funds) a pequenos investidores individuais. A abordagem do ofe-rente aos diferentes accionistas da sociedade visada é forçosamente diversa pois os interesses de cada destinatário são díspares. Para convencer os pequenos investidores da bondade da sua oferta, o oferente serve-se fun-damentalmente dos meios de comunicação, publicitando nos órgãos de comunicação social os elementos mais atractivos da sua oferta e, ainda que em menor medida, dos próprios documentos da oferta. Diferentemente, a abor-dagem aos investidores institucionais é feita através dos chamados road shows, em que o oferente agenda apresentações da sua oferta nos vários centros financeiros mundiais, convidan-do os principais accionistas da sociedade visada

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75- Claro que, antes de decorrido este período, as declarações podem caducar por força da revogação da oferta pelo oferente inicial. 76- Neste sentido, vide AUGUSTO TEIXEIRA GARCIA, ob. cit., p. 278.

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e agentes financeiros. Nesses road shows, o oferente procura, por um lado, convencer aque-les accionistas da bondade económica, estraté-gica, social, política ou nacional da sua oferta e, por outro, aperceber-se de quais os factores decisórios que os levarão a aceitarem a oferta. Após estes contactos, o oferente pode deparar-se com os seguintes cenários: (i) necessidade de melhoria das condições da ofer-ta para lograr o seu sucesso; (ii) fracasso inevi-tável da oferta (iii) necessidade de proporcionar aos accionistas principais outras condições que não estão directamente relacionadas com os termos da oferta, mas que satisfazem os interes-ses daqueles. Neste último cenário, o oferente acaba por ter que negociar directamente com os principais accionistas, comprometendo-se, em caso de sucesso da oferta e ainda que sob mero compromisso de honra por força do princípio da igualdade de tratamento, a alienar determinados activos do oferente ou da sociedade visada, ou a manter certos activos desta, ou a assegurar uma concreta estrutura accionista da sociedade visada, ou a manter determinado accionista como interlocutor privilegiado da sociedade visada após a oferta77. Nesses casos, é muito frequente o destinatário renunciar à faculdade de revogação da aceitação da oferta para asse-gurar o carácter vinculativo dos compromissos assumidos. Ora, creio que tal renúncia não pode deixar de ser considerada válida à luz do princí-pio da liberdade contratual previsto no artigo 405.º do Código Civil. Com efeito, o artigo 185.º-A, n.º 6 não é uma norma imperativa e o direito nele consagrado é um direito disponível, sendo, por isso, admissí-vel a renúncia ao mesmo. O preceito concede a

faculdade de revogação da aceitação aos desti-natários por perspectivar a oferta como um iter em que determinadas vicissitudes têm implica-ções naturais sobre factos passados. O facto de o destinatário ter, num momento primeiro, ana-lisado a oferta inicial e decidido aceitar a mes-ma, não torna a aceitação imutável porque ele não sabe, nesse momento, o que pode ocorrer num momento posterior do decurso da oferta. Todavia, o destinatário tem a possibilidade de aquilatar do lançamento de novas ofertas e de, face às potenciais vantagens que lhe podem advir da oferta inicial e das ofertas concorrentes futuras, efectuar como que um juízo de prognose económica, estratégica, social e política e, com base nesse juízo, aceitar, de forma irrevogável, a oferta inicial ou mesmo de uma determinada oferta concorrente. É, portan-to, justificável o direito e interesse do destinatá-rio de afastar a revogabilidade da aceitação da oferta em caso de lançamento de OPA concor-rente. O presente entendimento parece, no entanto, pôr em causa a ratio do artigo 185.º-A, n.º 6 que se baseia na ideia de protecção dos destina-tários, ao procurar assegurar-lhes, sempre e a cada momento78, a possibilidade de escolha da melhor oferta. Este argumento contrário ganha particular acuidade em relação aos pequenos investidores que poderão ser mais facilmente enganados com a profusão de informação e o acenar de dados financeiros e económicos, sen-do levados a tomar uma decisão errada em ter-mos económicos. Por outro lado, o âmbito de aplicação prática justificada daquelas renúncias são os contactos, gentlement agreements e contratos celebrados entre o oferente e os

77- Foi este o caso da alegada concertação informal entre a Sonaecom e a Telefónica para a alienação dos 50% que a Portugal Telecom detinha na operadora de telecomunicações brasileira Vivo caso a oferta lançada sobre a aquela tivesse sucesso; mas foi também o caso da OPA lançada pelo BCP sobre o BPI em que aquele, para adquirir fora de bolsa a participação qualificada do Santander no capital social do BPI, teve de conceder um direito de atribuição preferen-cial (105% do valor mais alto oferecido para a aquisição) no âmbito da alienação dos balcões e da carteira de clientes do BCP por força dos compromissos assumidos coma Autoridade da Concorrência, obrigando-se o Santander, em contrapartida, a apresentar uma oferta concreta sempre que houvesse lugar à alienação daqueles activos pelo BCP. 78- À semelhança aliás dos requisitos de lançamento de oferta concorrente, mas aí em relação os elementos necessários para aferir qual a melhor oferta, pois supostamente a última oferta lançada ou revista será sempre a melhor em termos objectivos imediatos.

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accionistas principais da sociedade visada. Ora, estes accionistas são, por norma, investidores qualificados ou grandes investidores que têm um profundo conhecimento do mercado e capa-cidade de análise dos vários dados económicos e estratégicos das ofertas79, possuindo todas as condições materiais para tomar a decisão que melhor satisfaça os seus interesses. Assim, jul-go que a norma que consagra o direito de revo-gação da aceitação da oferta em caso de lança-mento de OPA concorrente deve ser qualificada como uma norma imperativa quando esteja em causa um investidor não qualificado ou um accionista que não detenha participação qualifi-cada na sociedade visada. Seria, por conseguin-te, nula, por violação do artigo 185.º-A, n.º 6 enquanto norma imperativa cuja ratio é a defesa dos interesses dos pequenos investidores, a renúncia feita por estes ao direito de revogação da aceitação em caso de lançamento de oferta concorrente, independentemente de tal renúncia ser efectuada por via da aceitação de uma cláusula insíta no prospecto de OPA ou por força de ordem dada ao seu intermediário finan-ceiro e acordada expressamente com o próprio oferente. 2. OFERENTES ANTERIORES Quanto aos efeitos do lançamento de oferta concorrente sobre a posição jurídica dos oferen-tes anteriores, é possível identificar três cená-rios distintos:

a. Manutenção da oferta; b. Modificação da oferta (artigo 185.º-B,

n.º 1 do Cód.VM); ou c. Revogação da oferta (artigo 185.º-B, n.º 4

do Cód.VM).

a) Manutenção da Oferta Em relação à manutenção da oferta, não há nada de relevante a acrescentar se não dizer que o oferente anterior não se encontra obrigado a modificar ou retirar a sua oferta por força do lançamento de oferta concorrente80.

b) Modificação da Oferta A modificação dos termos da oferta encontra-se regulada no artigo 185.º-B, n.ºs 1 e 3 e tem que consistir na elevação em pelo menos 2% da contrapartida (artigo 185.º, n.º 5 por remissão do artigo 185.º-B, n.º 3), não podendo, porém, conter condições que a tornem menos favorável81. Caso opte pela modificação da ofer-ta, o oferente anterior terá de comunicar a sua decisão à CMVM e publicar, no prazo de 4 dias úteis a contar do lançamento da oferta concor-rente, um anúncio relativo à modificação dos termos da oferta (artigo 185.º-B, n.º 2). Se o não fizer, a oferta manterá os seus termos e condições anteriores, ficando sem efeito as alterações pretendidas (artigo 185.º-B, n.º 2 in fine). A redacção inicial do Código dos Valores Mobiliários suscitava várias dúvidas interpretativas82 relativas à revisão da contrapar-tida pelos oferentes anteriores (inicial ou con-correntes) no caso de haver várias ofertas em concorrência, que foram eliminadas com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 219/2006, de 2 de Novembro. Assim, o novo artigo 185.º-B, n.º 1 veio estabelecer que “o lançamento de oferta concorrente e a revisão de qualquer oferta em concorrência conferem a qualquer

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79- Quando não têm tais conhecimentos, possuem capacidade económica para requerer assessoria legal e financeira para tomarem a melhor decisão. 80- Vide PAULO CÂMARA, ob. cit., p. 208 e AUGUSTO TEIXEIRA GARCIA, ob. cit., p. 277. 81- Repetem-se aqui as considerações já expendidas supra no Título I. Regime Jurídico da OPA Concorrente, Capítulo A) Requisitos do Lançamento, Secção 5. Condições. 82- Neste sentido, vide despacho da CMVM de 16 de Fevereiro de 2007 em resposta ao requerimento apresentado pela Sonaecom sobre a possibilidade de revisão da contrapartida de oferta pública após declaração de renúncia unilateral ao exercício desse direito disponível em www.cmvm.pt.

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oferente o direito de proceder à revisão dos ter-mos da oferta independentemente de o ter ou não feito ao abrigo do artigo 184.º”. Face ao disposto no novo artigo 185.º -B, n.º 1, pode-se concluir que, por um lado, os oferentes – inicial ou concorrente(s) – podem rever a sua oferta (i) de forma facultativa e ilimitada ao abrigo do artigo 184.º, ou (ii) em resposta ao lançamento83 de oferta concorrente ou (iii) em resposta à revisão de qualquer oferta em con-corrência nos termos do artigo 185.º-B, n.º 184, e que, por outro lado, o direito de revisão previsto neste último preceito não é precludido (i) pelo exercício anterior ou (ii) pelo não exercício anterior do direito de revisão consagrado no artigo 184.º. No entanto, algumas das presentes conclusões não são inteiramente isentas de dúvidas Quanto à admissibilidade da revisão facultativa pelo oferente concorrente ao abrigo do artigo 184.º, a mesma resulta da expressão do artigo 185.º-B, n.º 1 “revisão de qualquer oferta em concorrência”.

Em primeiro lugar, esta interpretação do proémio do artigo 185.º-B, n.º 1 do Cód.VM evita que a mesma fique sem conteúdo prático, porque as outras modalidades de revisão da contrapartida, em resposta ao lançamento de oferta concorrente ou à revisão de oferta em concorrência, já decorrem da restante letra daquele preceito. Em segundo lugar, a parte final do referido preceito – “independentemente de o ter ou não feito ao abrigo do artigo 184.º” – reporta-se a “qualquer oferente”, pelo que o direito de revisão de ambos oferentes do artigo 185.º-B, n.º 1 tem que ser independente do direito de revisão do artigo 184.º (também atri-buído a ambos oferentes)85. Em terceiro lugar, o artigo 185.º, n.º 286 dispõe que “as ofertas con-correntes estão sujeitas às regras gerais aplicá-veis às ofertas públicas de aquisição, com as alterações constantes deste artigo e dos artigos 185.º-A e 185.º-B”. Como as alterações cons-tantes desses artigos não excluem o direito de revisão previsto no artigo 184.º aplicável às ofertas públicas de aquisição em geral, esse direito acresce ao direito de revisão estabeleci-do no artigo 185.º-B, n.º 1. Por último, a solução contrária lesa o conteúdo fundamental

83- O “lançamento” referido neste preceito corresponde ao anúncio de lançamento previsto no artigo 183.º-A do Cód.VM à semelhança do que se sucede com a expressão “lançada” referido no artigo 185.º-A, n.º do mesmo código. 84- Diferentemente, HUGO MOREDO DOS SANTOS nega esta possibilidade com base no argumento literal e no facto de o oferente concorrente ter elaborado “as condições” e calculado “a contrapartida da sua oferta tendo por referência as condições indicadas pelo oferente inicial, enquanto que este não dispunha de qualquer referência” (cfr. HUGO MOREDO DOS SANTOS, ob. cit., p. 129 e nota 168). Esta interpretação é contrária ao princípio do level playing field, aos princí-pios constitucionais do direito de iniciativa privada e da liberdade de iniciativa económica e às densificações do princípio da igualdade no âmbito dos valores mobiliários e ignora o facto de o oferente inicial propor, na maioria dos casos, uma contrapartida mais baixa para poder ter margem financeira suficiente que lhe permita, no decurso do processo de OPA, elevar aquela e o oferente concorrente não pode “adivinhar” qual será essa disponibilidade financeira do oferente inicial para a elevação da contrapartida. As situações são materialmente as mesmas, não se justificando qualquer restrição da concorrência. Não se encontra aliás no direito comparado semelhante proibição à que o autor propõe. 85- Em sentido contrário, HUGO MOREDO DOS SANTOS defende que a referência deve ser “entendida como reportando-se apenas ao oferente inicial, precisa-mente porque a sua oferta ainda é a única oferta; para os oferentes funciona, em sede de revisão, apenas o direito que decorre do disposto no art. 185.º-B, n.º 1”, excepto “quando a revisão se processar antes do lançamento da oferta concorrente e se destinar a apresentar uma contrapartida cujo valor esteja em confor-midade com a regra de revisão mínima obrigatória prevista na lei”, sendo que, neste caso, o autor considera que não há uma verdadeira revisão (cfr. HUGO MOREDO DOS SANTOS, ob. cit., p. 129 e nota 168). Não posso concordar com esta interpretação não só pelos motivos acima aduzidos mas também porque, quando uma oferta concorrente é lançada, podem já ter sido lançadas entretanto outras ofertas concorrentes, não sendo, nesse caso, a oferta inicial a única oferta. O artigo 185.º-B, n.º 1 não abrange apenas a primeira oferta concorrente! Cumpre referir que os demais ordenamentos jurídicos europeus e anglo-saxónicos atribuem este direito de revisão facultativa aos oferentes concorrentes e que foi, aliás, esse direito que permitiu o sucesso da oferta concorrente do Royal Bank of Scotland, Santander e Fortis sobre o ABN-AMRO. Fica a questão: será que a elevação desta oferta, se tivesse lugar no ordenamento jurídico português, tinha que ser rejeitada? Acresce que a excepção que o autor refere resulta da alegada obrigação do oferente concorrente melhorar a sua oferta preliminarmente anunciada se, em resultado da melhoria da contrapartida da OPA inicial, o requisito da contrapartida mínima não se encontrar respeitado. No entanto, creio que o oferente concorrente não está sujeito a semelhante obrigação (vide Título I. Regime Jurídico da OPA Concorrente, Capítulo A) Requisitos do Lançamento, Secção 4. Contrapartida supra). 86- O conteúdo deste preceito constava anteriormente do artigo 46.º, n.º 1 do Regulamento 10/2000 da CMVM sobre Ofertas e Emitentes.

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do direito de iniciativa privada87 o princípio da liberdade de iniciativa económica88 e as reper-cussões do princípio da igualdade no âmbito do direito dos valores mobiliários89. E não se diga que com tal interpretação se abriria campo para a violação fácil do artigo 185.º-B, n.º 2! Esta norma estabelece que, caso o oferente inicial pretenda exercer o direito referido no n.º 1 do mesmo preceito, tem que comunicar a sua deci-são à CMVM e publicar um anúncio no prazo de quatro dias úteis a contar do lançamento da oferta concorrente ou da revisão da oferta, “considerando-se para todos os efeitos, na falta dessa publicação, que mantém os termos da sua oferta”. Ora, pode suceder que, após aquele pra-zo de quatro dias úteis para rever a oferta na sequência de lançamento de OPA concorrente ou de revisão de oferta em concorrência, ainda falte muito tempo para o fim do período da oferta, tendo ambos os oferentes interesse em

manter o direito de revisão facultativa, direito esse que também interessa, ainda que reflexa-mente, aos destinatários da oferta. Já relativamente ao carácter ilimitado da revi-são facultativa da oferta, ou seja, à admissibili-dade de elevação da contrapartida pelos oferen-tes – inicial e concorrente(s) – o número de vezes que tenham por conveniente (desde que respeitem os requisitos legais de subida da con-trapartida), ele decorre quer da Directiva das OPAs quer da ratio da alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 219/2006, de 2 de Novem-bro que a transpôs. Na verdade, a Directiva das OPAs procurou, na sequência do Relatório de 10 de Janeiro de 2002 do Grupo de Alto Nível de Peritos no domínio do direito das sociedades sobre OPAS, alcançar um level playing field nas ofertas públicas de aquisição, sendo que tal level playing field deveria ser orientado por dois princípios fundamentais:

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87- Apesar de não contender directamente com o direito à iniciativa privada, o seu conteúdo essencial acaba por ser lesado, uma vez que há uma limitação excessiva do direito de revisão sem que haja, correspectivamente, a necessidade de preservar algum direito de base constitucional, ou mesmo legal, do oferente inicial ou ainda razões de interesse geral, que lhe confiram o privilégio da “última palavra” na definição da contrapartida em sede de OPA 88- Em relação ao princípio da liberdade de iniciativa económica, as restrições ou limitações deste princípio terão que ser “justificadas à luz do princípio da proporcionalidade e sempre com respeito de um «núcleo essencial» que a lei não pode aniquilar (artigo 18.º), de acordo, aliás, com a garantia institucional de um «sector económico privado»” (cfr. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada (artigos 1.º a 107.º), Vol. I, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, p. 790). GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA salientam ainda que a liberdade de iniciativa económica privada “exige uma leitura em conformidade com a constituição económica da UE, designadamente com as normas comunitárias referentes às liberdades fundamentais – em especial, a liberdade de circulação de capitais e a liberdade de estabelecimento em todo o território comunitário – bem como ao direito da concorrência” – artigos 43.º, 56.º, 81 e ss. do Tratado da Comunidade Europeia (vide GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., p. 792). Impedir o oferente concorrente de rever, de forma voluntária nos termos da redacção inicial do artigo 184.º do Cód.VM, a sua contrapartida pela sociedade visada, embora não contenda directa-mente com a liberdade de iniciativa económica, acaba por lesar o seu conteúdo essencial devido à limitação de forma excessiva daquele direito de revisão sem que, correspectivamente da parte do oferente inicial, haja que preservar algum direito de base constitucional, ou mesmo legal, ou ainda razões de interesse geral, que lhe confiram o privilégio da “última palavra” na definição da contrapartida. 89- O respeito pelas concretas densificações normativas do princípio da igualdade no âmbito do mercado de capitais e a conjugação deste princípio com a liberdade de circulação de capitais (pilar da constituição económica da UE) e com o princípio da liberdade de iniciativa económica exige um tratamento paritá-rio dos diferentes oferentes como forma de potenciar a concorrência do mercado (outro dos objectivos basilares da UE). Assim, a liberdade de circulação de capitais e a liberdade de iniciativa económica acabam por chamar à colação o princípio da igualdade enquanto meio de alcançar os objectivos visados por aqueles preceitos. Este princípio, transversal a todo o ordenamento jurídico português, ganha particular acuidade no âmbito do mercado de capitais de tal forma que o actual Código dos Valores Mobiliários sentiu necessidade de lhe consagrar uma referência expressa. O artigo 15.º do Cód.VM dispõe que “a sociedade aberta deve assegurar tratamento igual aos titulares de valores mobiliários por ela emitidos que pertençam à mesma categoria”. As sociedades abertas estão desta forma obrigadas a tratar de forma paritária os titulares de valores mobiliários, concedendo-lhes os mesmos benefícios e privilégios para que todos os investidores estejam na mesma situação objectiva e possam agir exclusivamente segundo critérios objectivos de índole económica ou financeira. Se a socieda-de aberta está obrigada a assegurar este tratamento paritário, estranho seria que o legislador não estabelecesse a mesma exigência para os demais operadores de mercado, em particular os oferentes, sujeitando-os a critérios de natureza extra-económica. Acresce que, na maioria dos casos, o oferente inicial ou já é titular de valores mobiliários da sociedade visada ou acaba por adquiri-los, normalmente através de aquisições fora de bolsa após o anúncio de lançamento da oferta. Se a lei assegurar a última palavra ao oferente, acaba por entrar em contradição com o disposto no artigo 15.º do Cód.VM, violando o tratamento paritário dos titulares de valores mobiliários previsto nesse preceito e criando uma situação de incongruência jurídica. Mesmo que os oferentes não sejam titulares de valores mobiliários, o tratamento mais favorável de um investidor exterior à sociedade (oferente inicial) face aos demais investidores e operadores de mercado conti-nua a carecer de justificação à luz do artigo 185.º, n.º 7 do Cód.VM, que consagra uma vertente específica do princípio da igualdade em sede de OPA. E não se diga que o princípio da igualdade não sairia violado na sua vertente de igualdade horizontal que exige um tratamento diferente para situações diferentes. Esse era o argumento da CONSOB que, à luz da redacção inicial da Legge 149/1992, defendia que a exclusão da possibilidade de rever em alta a contrapartida da oferta por parte do oferente concorrente não provoca uma disparidade de tratamento, uma vez que a situação de quem assume o encargo e o risco do anúncio de lançamento da oferta inicial é substancialmente diferente daquele que, ao invés, pode preparar a sua própria intervenção tendo por base a oferta inicial e a resposta dada a este último pelo mercado e, eventualmente, pela sociedade visada (vide Banca, Borsa e Titoli di Credito, Gennaio-Febbraio, 1995, I, p. 349 e ss.). Diferentemente, GIUSEPPE PORTALE e ALDO DOLMETTA defendiam que a interpretação da lei italiana, antes da reforma de 1999, no sentido de atribuir ao oferente inicial a “última palavra” na definição da contrapartida da OPA violaria o disposto nos artigos 3.º, 1 e 41.º, 1 da Constituição italiana, pois atribuiria uma vantagem injustificada, criando posições assimétricas (cfr. GIUSEPPE PORTALE e ALDO DOLMETTA, ob. cit., p. 238).

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shareholders decision-making (“poder decisório dos accionistas”) e proportionality between risk bearing and control90 (“proporcionalidade entre risco efectivo e controlo”). Apesar da directiva das OPAs apenas obrigar os Estados-membros a regular as questões relacionadas com as ofertas concorrentes, não impondo a adopção de determinadas soluções91 (e.g. sistema de leilão), julgo que a concretização daquele level playing field92 só poderá ser obtida mediante a adopção desse sistema. Neste sentido, e para que haja lugar um verdadeiro leilão pela aquisição da sociedade visada, será necessário que o direito português não restrinja a possibili-dade de revisão da contrapartida, uma vez que direito de revisão previsto no artigo 185.º-B, n.º 1 pode não assegurar, por si só, um leilão pleno com ofertas paralelas. A possibilidade de revisão ilimitada da contrapartida, conjugada com a não preclusão do direito de revisão do artigo 184.º por força de revisão anterior ao abrigo do artigo 185.º-B, n.º 1, são dois meca-nismos necessários para a efectivação real do sistema de leilão no ordenamento jurídico por-tuguês. E não se diga que com tal interpretação se correria o risco de eternizar ou, pelo menos,

estender excessivamente o período de duração da oferta! O termo do processo de OPA é deter-minado pelo termo do prazo da oferta, sendo que os prazos das ofertas inicial e concorrente(s) são, regra geral, coincidentes (artigo 185.º-A, n.º 3). De facto, mesmo que o exercício do direito de revisão facultativa fosse limitado ou excluído por via do exercício do direito de revi-são do artigo 185.º-B, n.º 1, a questão da eterni-zação da oferta não deixaria de colocar-se por força deste último preceito. Senão vejamos. Se uma determinada sociedade lançar uma OPA concorrente, o oferente, inicial ou concorrente (se já houver outros), podem rever a sua oferta nos termos do artigo 185.º-B, n.º 1 desde que o façam até 4 dias úteis após aquele lançamento. Uma vez efectuada esta revisão, os oferentes, que não reviram a sua oferta ao abrigo daquele preceito, poderiam em resposta a esta revisão e com base na mesma norma, rever a sua oferta93. Porém, se aquela revisão tiver lugar no limite do prazo da oferta, será que os demais oferentes ainda poderiam rever a sua oferta nos termos do artigo 185.º-B, n.º 1, prorrogando-se o prazo da oferta, ou se tal direito ficaria irremediavelmente prejudicado pelo termo do

90- O relatório define este princípio com base na ideia de que os accionistas, que têm o direito de receber de forma ilimitada os lucros e de partilhar os activos em caso de liquidação, devem também deter o direito de controlar a vida da sociedade. “In open markets major (institutional) investors would normally prefer to invest where bearing the ultimate economic risk of the company confers proportionate control rights. The cost of capital of such companies is normally lower and they will be better able to raise capital on the securities markets. In the Group’s view, proportionality between the ultimate economic risk and control means that the share capital which as an unlimited right to participate in the profits of the company or in the residue on liquidation, and only such share capital, should normally carry control rights. All such capital should carry control rights in the proportion to the risk carried. The holders of these rights to the residual profits and assets of the company are best equipped to decide on the affairs of the company as the ultimate effects of their decisions will be borne by them” (cfr. REPORT OF THE HIGH LEVEL GROUP OF COMPANY LAW EXPERTS on issues related to takeovers bids, Bruxelas, 2002, p. 21). 91- O considerando n.º 22 da Directiva n.º 2004/25/CE do Parlamento e do Conselho, de 21 de Abril, relativa às ofertas públicas de aquisição dispõe que “os Estados-Membros devem estabelecer regras que (…) definam as condições em que o oferente concorrente tem o direito de rever a sua oferta, prevejam a possi-bilidade de ofertas concorrentes para os valores mobiliários de uma sociedade, estabeleçam a forma de divulgação dos resultados da oferta e o carácter irrevo-gável da oferta, bem como as condições admissíveis”. Neste sentido, o artigo 13.º alínea c) da referida directiva determina que “os Estados-Membros devem igualmente estabelecer regras relativas às ofertas, pelo menos nos seguintes domínios (…) ofertas concorrentes”. 92- Neste sentido, a proposta de Directiva 2002/0240 (COD) do Parlamento e Conselho de 2 de Outubro, relativa às ofertas públicas de aquisição referia, em relação ao artigo 12.º (actual artigo 13.º da Directiva das OPAs), que os Estados-Membros dispõem de um “poder discricionário no que respeita ao conteúdo destas regras (…)”, mas “devem (…) velar para que as regras nacionais que adoptadas por força deste artigo não comprometam a aplicação dos princípios gerais consignados na directiva. 93- Julgo não ser defensável uma interpretação restritiva da expressão “(…) revisão de qualquer oferta (…)” no sentido de abranger exclusivamente as revisões facultativas e não as revisões efectuadas ao abrigo do artigo 185.º-B, n.º 1 sob pena da concorrência pela aquisição da sociedade visada ficar irremediavelmente prejudicada. Se essa fosse a solução adoptada, o oferente concorrente não poderia responder à revisão da contrapartida pelos demais oferentes resultante do lançamento da sua oferta, só o poderia fazer por via da revisão facultativa e desde que se adoptasse a interpretação preconizada sobre a revisão ilimitada e a articulação entre o artigo 184.º e 185.º-B, n.º 1.

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prazo da oferta? Esta última solução, sendo a única que evita a eventual94 eternização da ofer-ta ao limitar a revisão “ilimitada” da oferta, é substancialmente menos adequada95 e demons-tra que o problema da eternização da oferta não resulta exclusivamente da admissibilidade da revisão ilimitada da contrapartida. A solução preconizada era aliás a mais correcta antes das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 219/2006, de 2 de Novembro, apesar da CMVM96 e parte da doutrina97 entenderem que o oferente inicial e concorrente só podiam rever a contrapartida uma única vez98. O artigo 185.º-B, n.º 1 in fine do Cód.VM colo-ca ainda outra questão interpretativa pois, ao referir que o direito de revisão nele previsto não é precludido pelo exercício anterior, ou mesmo pelo não exercício anterior, do direito de revi-são ao abrigo do artigo 184.º, deixa em aberto a solução para a situação contrária. Isto é, será

que o exercício (ou não exercício) do direito de revisão nos termos do artigo 185.º-B, n.º 1 tam-bém não exclui a possibilidade de qualquer ofe-rente rever a sua contrapartida à luz do artigo 184.º? Imagine-se o seguinte exemplo: A lança uma OPA sobre B e C lança, em seguida, uma oferta concorrente sobre B; A, contudo, decide não rever a contrapartida nos termos do artigo 185.º-B, n.º 1 e deixa passar o prazo de 4 dias úteis previsto no n.º 2 do mesmo preceito; imagine-se agora que faltam várias semanas para o fim da oferta ou que ambos oferentes não tinham sequer registado as suas ofertas, deverão estes ficar impossibilitados de rever a sua contrapar-tida nos termos do artigo 184.º? E a solução será a mesma caso ambos oferentes já tivessem efectuado o anúncio de lançamento e registado a sua oferta, não tendo revisto a oferta ao abrigo do artigo 173.º, n.º 2 alínea a)?

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94- Será sempre eventual e académica, porque a aquisição da sociedade visada acima de determinado valor será económica e financeiramente desvantajosa para o oferente, que naturalmente não estará disposto a adquirir a sociedade a qualquer custo, e porque os próprios oferentes têm limitações financeiras que os impediram de adquirir por qualquer valor a sociedade visada. 95- Seria preferível consagrar a solução prevista no ordenamento jurídico italiano, francês, inglês e suíço em que se confere ao regulador o poder de fixar um dia final para a fixação dos termos da oferta por cada oferente como forma de terminar o processo de concorrência pela aquisição da sociedade visada. A atribuição desse poder ao regulador evitaria a eternização da oferta bem como as situações de desarmonia entre prazos de revisão da oferta e prazo da oferta em si, e afigura-se como uma solução mais desejável, justa, transparente, clara e adequada ao mercado, aos oferentes e aos destinatários da oferta. Acresce que a solução actual acaba por transformar o sistema português de processo de OPA concorrente num sistema de leilão mas com ofertas parcialmente fechadas e não paralelas, uma vez que um dos oferentes poderá, em determinadas situações, e no último dia do prazo da oferta, rever os termos da sua oferta, ficando os demais oferentes impossibilitados de, em tempo útil, responder àquela revisão da contrapartida. 96- No despacho de 16 de Fevereiro de 2007, em resposta a um requerimento apresentado pela Sonaecom sobre a possibilidade de revisão da contrapartida de oferta pública após declaração de renúncia unilateral ao exercício desse direito, a CMVM veio esclarecer que “o artigo 184.º, n.º 1 do Còd.VM não estabelece qualquer limite ao número de vezes que pode ser revista a oferta, ao contrário do que acontecia no âmbito do Código do Mercado de Valores Mobiliários vigente até 2000, que não permitia que a contrapartida fosse revista mais de uma vez”. Contudo, o regulador salientava que “o artigo 185.º, n.º 4 do Cód.VM (…) estabelece que, no caso de surgir uma oferta concorrente, o oferente que já tivesse revisto a sua oferta teria o direito de o voltar a fazer em reacção a essa nova oferta – o que costuma ser interpretado como a assunção, por este preceito, de que, em circunstâncias comuns, o oferente não teria oportunidade de rever a oferta mais do que uma vez”. A CMVM considerava que não era claro, face ao teor do artigo 185.º, n.º 4 que o oferente inicial tenha o direito de rever mais do que uma vez a contrapartida, parecendo defender a exclusão dessa faculdade. 97- Cfr. PAULO CÂMARA, ob. cit., p. 207. 98- Em primeiro lugar, esta interpretação era muito duvidosa, uma vez que a redacção do artigo 184.º, n.º 4 do Cód.VM, ao invés do artigo 558.º, n.º 1 do Código de Mercado dos Valores Mobiliários, não cerceava o número de revisões da oferta pelo que o argumento histórico admitia a revisão da contrapartida por mais do que uma vez. Em segundo lugar, o argumento literal também favorecia claramente a possibilidade de revisão ilimitada da contrapartida, pois o artigo 184.º, n.º 1 habilitava o oferente a rever a contrapartida quanto à sua natureza ou montante até 10 dias antes do fim do prazo da oferta e não estabelecia qualquer restrição a essa revisão. Em terceiro lugar, esta interpretação era reforçada pelo disposto no artigo 175.º, n.º 2 alínea a) que, se, por um lado, obrigava o oferente a lançar oferta em termos não menos favoráveis, por outro, permitia-lhe alterar livremente os termos do anúncio preliminar sem limite do número de alterações conquanto cumprisse com aquela obrigação. Em quarto lugar, cumpre referir que o artigo 185.º, n.º 4 do Cód.VM se reportava ao direito de resposta do oferente em caso de lançamento de OPA concorrente e não à revisão facultativa. Ora, estes direitos, à semelhança do que se sucede noutros ordenamentos jurídicos, não se excluem, antes se cumulam de forma articulada. Em França, o article 232-6 do Règlement Générale de l’AMF dispõe que “l’initiateur a la faculté de surenchérir sur les termes de son offre ou de la dernière offre concurrente au plus tard cinq jours de négociation avant la clôture de l’offre”. Já, na Suíça, § 3 do artigo 50.º do Verordnung über öffentliche Kaufangebot confere ao oferente inicial o direito de revogar ou modificar, em termos menos favorá-veis ou mais favoráveis, a sua oferta e tal direito não exclui o direito previsto no § 1 do artigo 15.º do Verordnung über öffentliche Kaufangebot de modificar a sua oferta desde que, globalmente, apresente condições mais favoráveis aos seus destinatários. Por último, não procedia o argumento baseado na ideia de que a revisão por mais do que uma vez da contrapartida pode criar condições ou mesmo preencher o tipo de ilícito do crime de manipulação de mercado. Com efeito, esta revisão era feita de forma clara, transparente e pública, não se vislumbrando como poderia potenciar ou consubstanciar um crime de abuso de mercado. As cotações não são fictícias, são fruto de um processo de OPA dinâmico em que os termos da oferta, em particular a contrapartida, vão sendo alterados. Acresce que, se o oferente subir a contrapartida, terá que pagar o novo valor oferecido aos destinatários da oferta caso a OPA venha a ter sucesso, e esse pagamento não é fictício ou artificial, antes corresponde a uma concreta valoração da sociedade visada efectuada pelo oferente (neste sentido, JOÃO CALVÃO DA SILVA cuja douta opinião foi expressa no âmbito da conferência de 12 de Junho de 2007 intitulada “Ofertas Concorrentes” do XI Curso de Direito dos Valores Mobiliários do Instituto de Valores Mobiliários da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa).

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A CMVM considerou, à luz da versão inicial do Cód.VM e num PARECER GENÉRICO RELATIVO A OFERTAS PÚBLICAS DE AQUISIÇÃO CONCOR-

RENTES de 8 de Agosto de 2000, que “após o lançamento da oferta concorrente, a modifica-ção da oferta inicial seguirá necessariamente os termos previstos no artigo 185.º, n.º 4 (…) por outras palavras, o oferente inicial deixa de ter direito a rever nos termos do artigo 184.º do Código”99. Mas será que esta interpretação ain-da faz sentido face ao actual artigo 185.º-B, n.º 1? Julgo que não. A não exclusão dos direitos de revisão da con-trapartida previstos nos artigos 184.º e 185.º-B, n.º 1 é bi-unívoca e resulta da necessária articu-lação entre esses diferentes direitos que têm inclusive uma hipótese normativa distinta. Com efeito, há quatro motivos fundamentais que levam o oferente (inicial ou concorrente) a rever a sua contrapartida: (i) o reconhecimento do aumento do valor dos activos da sociedade visada durante a pendência da OPA; (ii) o reco-nhecimento da insuficiência do valor da contra-partida para a aquisição do controlo da socieda-de visada; (iii) a resposta ao lançamento de OPA concorrente; ou (iv) a resposta à revisão de oferta em concorrência. Se os dois primeiros motivos conduzem à revisão da contrapartida nos termos do artigo 184.º100, os dois últimos preenchem, por sua vez, a hipótese normativa do artigo 185.º- B, n.º 1. Tal distinção é tanto mais importante quanto o próprio prazo para o exercício dos res-pectivos direitos é radicalmente diferente. Enquanto que, na revisão facultativa, o prazo é fixado em função do fim do prazo da oferta

(5 dias antes desta data), na revisão ao abrigo do artigo 185.º-B, n.º 1, o prazo é fixado em função da data de lançamento da oferta concor-rente ou da revisão de oferta em concorrência (4 dias úteis). A distinção assume também rele-vância para o oferente que revê a sua contrapar-tida, uma vez que, através dessa revisão, ele transmitirá ao mercado qual o motivo que este-ve na base da decisão de rever em alta a contra-partida. A transparência e clareza do processo de OPA e o co-relacionado interesse do merca-do e dos destinatários assim o exigem, pois estes, para poderem aferir das intenções e valo-rações efectuadas pelos oferentes, precisam de conhecer a base informativa imanente ao racio-nal económico decisório dos oferentes em con-corrência. A eventual realização do anúncio de lançamen-to ou registo da oferta não afecta o entendimen-to exposto, uma vez que a modificação da ofer-ta no âmbito do anúncio de lançamento é um direito distinto dos direitos de revisão da oferta e baseia-se na relação entre anúncio preliminar e anúncio de lançamento. Além disso, a solução contrária daria azo a situações injustas. Retome-mos o último exemplo e imagine-se agora que um outro oferente, D, lança uma OPA concor-rente sobre B. Nesta situação, D estará numa situação privilegiada injustificada face aos demais oferentes concorrentes, porque ainda dispõe da possibilidade de revisão facultativa da oferta enquanto que os demais já viram tal faculdade excluída por força do artigo 185.º-B, n.º 1. E não se diga que os demais oferentes sempre terão a possibilidade de responder a uma revisão facultativa da contrapartida por via do artigo 185.º-B, n.º 1! É que tal revisão,

99- Vide PARECER GENÉRICO DA CMVM RELATIVO A OFERTAS PÚBLICAS DE AQUISIÇÃO CONCORRENTES disponível em www.cmvm.pt. 100- Ainda que de forma implícita, pois o exercício do direito aí previsto não necessita de fundamento.

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devido aos seus prazos apertados, ou será efec-tuada em condições muito diferente do que se fosse tomada com maior ponderação analítica como o seria ao abrigo do artigo 184.º, ou será mesmo inviável nos casos em que a revisão facultativa do novo oferente concorrente ocorra, por exemplo, no quinto dia antes do termo da oferta101. O artigo 185.º-B, n.º 1 deve, por conseguinte, ser objecto de uma interpretação extensiva por forma a que o exercício, ou não exercício, do direito de revisão aí previsto não exclua a possi-bilidade de revisão da oferta por qualquer dos oferentes nos termos do artigo 184.º102.

c) Revogação da Oferta A lei atribui ao(s) oferente(s) em concorrência, em caso de lançamento de OPA concorrente, o direito de revogação da sua oferta, consubstan-ciando aquele lançamento um fundamento de revogação da oferta nos termos do artigo 128.º (artigo 185.º-B, n.º 4)103. Sendo o lançamento de oferta concorrente uma das vicissitudes mais importantes no iter de uma OPA, justifica-se a

atribuição ao(s) oferente(s) da faculdade mais gravosa para os destinatários: a revogação da oferta. O artigo 185.º-B, n.º 4 in fine do Cód.VM remete para o artigo 128.º do mesmo código, o qual confere ao oferente, “em caso de alteração imprevisível e substancial das circunstâncias que, de modo cognoscível pelos destinatários, hajam fundado a decisão de lançamento da oferta, excedendo os riscos a esta inerentes”, o direito de, em prazo razoável e mediante autori-zação da CMVM, modificar a sua oferta ou revogá-la. Esta remissão suscita as seguintes interrogações: será que o legislador, apesar de considerar o lançamento de oferta concorrente um fundamento de revogação da oferta, quis sujeitar o exercício dessa faculdade aos requisi-tos cumulativos previstos no artigo 128.º104? Ou será que aquela remissão se reporta exclusi-vamente à autorização necessária da CMVM para o exercício daquela faculdade, não poden-do esta entidade negar o exercício do direito de revogação? Ou será ainda que o artigo 185.º-B, n.º 4 in fine deve ser objecto de interpretação ab-rogatória?

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101- Imaginemos que o prazo da oferta termina a uma terça-feira e o novo oferente concorrente (sociedade D) revê a oferta na sexta-feira anterior. Neste caso, verifica-se uma desarmonia entre os prazos, pois o prazo da oferta terminaria terça-feira antes, portanto, do prazo de revisão da oferta nos termos do artigo 185.º-B, n.º 1 que terminaria, em princípio (senão houvesse feriados), quinta-feira. A solução para esta desarmonia entre estes prazos legais passará por reduzir o prazo de revisão da contrapartida do artigo 185.º-B, n.º 1 em função e por força do prazo da oferta ou prorrogar o prazo da oferta inicial. Creio que a primeira solução é a que se afigura mais correcta, uma vez que o prazo fixado para a oferta é, à luz do ordenamento jurídico português vigente, a única forma de pôr termo ao processo de OPA. 102- Tal interpretação não incorre no risco, supra identificado no âmbito da análise da questão da revisão facultativa ilimitada, de eternizar ou, pelo menos estender excessivamente, o período de duração da oferta. O termo do processo de OPA é, à luz do direito das OPAs vigente em Portugal, assegurado pelo termo do prazo da oferta, sendo os prazos das ofertas inicial e concorrente(s), regra geral, coincidentes (artigo 185.º-A, n.º 3). Com efeito, mesmo que o exercí-cio do direito de revisão facultativa fosse excluído pelo exercício do direito previsto no artigo 185.º-B, n.º 1, a questão da eternização da oferta por força exclu-sivamente deste último preceito não deixaria de colocar-se, tal como supra se demonstrou. Retomando o exemplo apresentado, A e C podiam rever a sua oferta, nos termos do artigo 185.º-B, n.º 1 e até 4 dias úteis após aquele lançamento, se D lançasse uma oferta concorrente. Imagine-se agora que A revê a sua contrapartida mas C não; C poderia, em resposta a essa revisão e com base na mesma norma, rever a sua oferta. Imagine-se ainda que aquela revisão foi efec-tuada no limite do prazo da oferta (no exemplo apresentado seria terça-feira). Será que os demais oferentes ainda poderiam rever a sua oferta nos termos do artigo 185.º-B, n.º 1, prorrogando-se o prazo da oferta? Ou ficará tal direito irremediavelmente prejudicado pelo termo do prazo da oferta? Julgo que, tal como supra analisado em relação à revisão facultativa da oferta, que esta última solução, apesar de ser a única que evita a eventual eternização da oferta, é substan-cialmente a menos adequada. 103- Segundo AUGUSTO TEIXEIRA GARCIA, o lançamento de oferta concorrente funciona como uma verdadeira “condição resolutiva” (vide AUGUSTO TEIXEIRA GARCIA, ob. cit., p. 277). No entanto, creio que aquele lançamento não é tanto uma condição resolutiva, é antes um facto que atribui um direito potestativo aos demais oferentes. 104- Em sentido contrário, a CMVM defendeu no Parecer Genérico sobre OPAs concorrentes que “após a divulgação de anúncio preliminar, só em caso de alteração substancial das circunstâncias que fundaram a decisão de lançamento da oferta, pode o oferente, inicial ou concorrente, revogar a oferta. Neste senti-do, vide também HUGO MOREDO DOS SANTOS, ob. cit., p. 138. Julgo que esta interpretação não é a mais correcta não só pelos argumentos acima aduzidos mas também porque esvaziaria de conteúdo prático o artigo 185.º-B, n.º 4, sendo este apenas aplicável em casos quase absurdos como reconhecem alguns defenso-res dessa solução (cfr. HUGO MOREDO DOS SANTOS, ob. cit., p. 134).

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PAULA COSTA E SILVA defendia, antes da entra-da em vigor do Decreto-Lei 219/2006, de 2 de Novembro105, que o lançamento de OPA con-corrente não era uma alteração imprevisível das circunstâncias daí que o legislador tenha senti-do a necessidade de conferir expressamente o direito de revogação da oferta em caso de lan-çamento de OPA concorrente, tendo “através de regulamento, (aberto) uma porta que o CVM fechou”106. A autora, apesar de não abordar directamente a questão, parece considerar que o exercício da faculdade de revogação da oferta em caso de lançamento de OPA concorrente não exige o preenchimento dos requisitos cumulativos do artigo 128.º, porque, nesse caso, aquela faculdade seria negada por não consubs-tanciar uma alteração imprevisível das circuns-tâncias. Mesmo que o lançamento de OPA concorrente não seja considerado uma alteração das circuns-tâncias, a verdade é que ele coloca para trás na corrida pela aquisição da sociedade visada o oferente inicial (e os concorrentes já existentes), pois o (novo) oferente concorrente apresentará melhores condições para os destinatários. O legislador entendeu que o(s) oferente(s) – ini-cial ou concorrente(s) – terão a possibilidade de abandonar aquela disputa de forma antecipada, uma vez que as suas possibilidades de sucesso ficaram substancialmente reduzidas, sobretudo se não estivessem em condições de melhorar a sua oferta. Não faz sentido forçar os oferentes a continuar a suportar os custos de uma oferta que dificilmente logrará o seu objectivo. Além disso, os destinatários da oferta estão protegidos pois sempre poderão alienar os seus valores mobiliários ao novo oferente concorrente que

lhes proporciona, pelo menos, uma contraparti-da mais elevada (artigo 185.º, n.º 5 por remis-são do artigo 185.º-B, n.º 3). É esta a ratio da qualificação da oferta concorrente como funda-mento da faculdade de revogação da oferta. A ratio do artigo 185.º-B, n.º 4 exclui, por conse-guinte, a interpretação de que a remissão, conti-da na sua parte final para o artigo 128.º, é uma remissão global, isto é, para os requisitos cumu-lativos nele previstos relativos ao exercício da faculdade de revogação da oferta. Assim, pare-ce ser plausível a interpretação que considera a remissão para a parte final do artigo 128.º, con-tida no artigo 185.º-B in fine, uma remissão específica restrita à parte final do artigo 128.º, ou seja, à necessidade de autorização prévia da CMVM para o oferente poder revogar a sua oferta. O oferente requereria à CMVM, após o anúncio de lançamento de oferta concorrente, autorização para a revogação da oferta, não podendo tal autorização ser negada pelo regula-dor uma vez que a mesma seria fundada num preceito legal (artigo 185.º-B, n.º 4). A autori-zação da CMVM seria como que um pró-forma da faculdade de revogação, o “carimbo oficial” de validade da revogação da oferta. Julgo que esta interpretação, apesar de plausí-vel, não é admissível face ao teor do artigo 185.º-B, n.º 5. Nos termos desta disposição, “a decisão de revogação é publicada logo que seja tomada, devendo sê-lo até quatro dias a contar do lançamento da oferta concorrente”107. Se o oferente está obrigado a publicar a sua decisão logo que a toma, não faz sentido que a tenha que submeter previamente ao regulador (que se limita a ratificar a decisão) para, em seguida, já com a autorização da CMVM, divulgá-la. Este

105- Desconhece-se a posição actual da autora sobre esta questão. 106- Cfr. PAULA COSTA E SILVA, ob. cit., p. 183. O Código do Mercado dos Valores Mobiliários não apresentava uma solução tão restritiva. De acordo com o artigo 576, n.º 3 alínea b), o oferente podia retirar a oferta quando se verificasse uma alteração anormal e imprevisível das circunstâncias em que houvesse sido fundada a decisão de lançamento da oferta, tornando-se o cumprimento da obrigação manifestamente iníquo. 107- A ratio deste prazo legal radica no facto de os destinatários da oferta, os eventuais investidores e o próprio mercado não poderem ficar na incerteza sobre a manutenção da oferta, impendendo durante todo o processo de OPA um verdadeira espada de damócles sobre tal oferta.

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entendimento é reforçado pelo prazo que o arti-go 185.º-B, n.º 5 confere ao oferente para revo-gar a sua oferta: 4 dias a contar do lançamento da oferta e não de qualquer autorização da CMVM108. Se o regulador tivesse que dar a sua autorização a tal revogação, poderia dar-se o caso de, por motivos burocráticos109, não ser possível a revogação da oferta. Aquele preceito, aliado a este tipo de situações, acabam por pôr a descoberto a fragilidade da interpretação que propõe a remissão específica para a parte final do artigo 128.º. Tal interpretação acaba inclusi-ve por desprestigiar o papel do regulador, redu-zindo-o ao de uma entidade de ratificação de decisões. Em conclusão, o artigo 185.º-B, n.º 4 in fine deve ser objecto de uma interpretação ab-rogatória no sentido de afastar a remissão para “os termos do artigo 128.º”. C) IGUALDADE DE TRATAMENTO DOS OFERENTES O princípio da igualdade de tratamento não tinha consagração expressa no antigo Código do Mercado dos Valores Mobiliários110 e na ver-são inicial do Código dos Valores Mobiliários. Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 219/2006, de 2 de Novembro, o Cód.VM passou a consagrar expressamente o princípio da igualdade de tratamento ao estabelecer, no seu artigo 185.º, n.º 7, que “a sociedade visada

deve assegurar a igualdade de tratamento entre oferentes quanto à informação que lhes seja prestada”. O princípio da igualdade de tratamento não é mais do que uma decorrência de um dos princí-pios base de todo o processo de OPA e da Directiva das OPAs111: o level playing field. Tal princípio baseia-se na ideia de que, se um dos oferentes dispuser de mais e/ou melhor infor-mação fornecida pela sociedade visada, ele fica-rá numa posição de vantagem injustificada face aos demais oferentes, podendo determinar, em melhores condições, quais os riscos que corre com a oferta e qual o real valor da sociedade visada. Seria assim mais fácil para esse oferente alcançar o sucesso da oferta sem que nada tivesse feito para justificar a sua posição privi-legiada. Na verdade, se a informação tivesse sido obtida, não por uma dádiva da sociedade visada mas através da pesquisa informativa do oferente, o valor acrescentado dessa informação estaria justificado e enquadrado nas regras de mercado que norteiam a disputa pela aquisição da sociedade visada. Porém, a informação é, na maioria dos casos, disponibilizada pela socieda-de visada com o intuito de frustrar a oferta ini-cial ou mesmo alguma das ofertas concorrentes. Este princípio da igualdade de tratamento ganha particular importância pela sua inserção siste-mática e pela introdução da nova alínea c) do artigo 182.º, n.º 3 do mesmo código. De facto, o

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108- Esta é a solução do ordenamento jurídico francês (artigo 232-11 do Règlement Général de l’AMF) e espanhol (artigo 36, parágrafo 1 do Real Decreto 1197/1991, de 26 julio, sobre régimen de las ofertas públicas de adquisición de valores). 109- E.g. a decisão de revogação ter sido tomada no último dia do prazo e, dado o adiantado da hora do último dia de prazo, e o facto de a pessoa responsável já não se encontrar na entidade reguladora, não ser possível obter a autorização do supervisor. 110- AUGUSTO TEIXEIRA GARCIA apenas considerava existir, à luz do Código do Mercado dos Valores Mobiliários, um princípio fundamental em matéria de informação em sede OPA: princípio da informação adequada. Afirmava aquele autor que “em ordem a permitir aos destinatários uma escolha esclarecida, o legislador exige que o oferente e órgão de administração da sociedade visada forneçam um verdadeiro manancial de informações nos documentos da oferta, e sujeita essas informações a um prévio controlo por parte da CMVM” (vide AUGUSTO TEIXEIRA GARCIA, ob. cit., p. 238). 111- O Relatório de 10 de Janeiro de 2002 do Grupo de Alto Nível de peritos no domínio do direito das sociedades sobre OPAS considerava fundamental estabelecer, a nível comunitário, um level playing field no âmbito das ofertas públicas de aquisição, sendo que tal level playing field teria na sua base outros dois princípios fundamentais: o shareholders decision-making (“poder decisório dos accionistas”) e o proportionality between risk bearing and control (“proporcionalidade entre risco efectivo e controlo”) (cfr. REPORT OF THE HIGH LEVEL GROUP OF COMPANY LAW EXPERTS on issues related to takeovers bids, Bruxelas, 2002, p. 21).

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artigo 185.º que consagra aquele princípio tem por epígrafe “oferta concorrente”. Isto significa que a sociedade visada tem que tratar da mesma forma, sobretudo em relação à informação que presta, todos os oferentes, inicial ou concorren-tes. Tal inserção sistemática demonstra a impor-tância que a igualdade de tratamento assume no âmbito das ofertas concorrentes, sobretudo na vertente da igualdade de informação. Por sua vez, o artigo 182, n.º 3 alínea c) veio estabele-cer que a procura de oferentes concorrentes (designados de white knights) pela sociedade visada112 é um acto incluído nos poderes de ges-tão do órgão de administração desta na pendên-cia da oferta, não sendo necessária a autoriza-ção concedida pela assembleia geral convocada exclusivamente para esse efeito. A inclusão expressa da procura de oferente concorrente dentro daqueles poderes de gestão reflecte o disposto no artigo 9.º, n.º 2 da já referida Directiva das OPAs. O legislador nacional113 decidiu não concretizar, a meu ver bem, outras decorrências do princípio da igualdade de tratamento dos oferentes em sede de oferta pública de aquisição, deixando essa tarefa de densificação para o intérprete e julgador.

Contudo, o Código dos Valores Mobiliários não estabeleceu qualquer sanção específica para a violação do dever de tratamento igualitário na informação prestada aos oferentes, sendo esta, quando muito, qualificada como contra-ordenação leve (artigo 400.º alínea a) do Cód.VM). Com efeito, o artigo 393.º, n.º 2, alí-nea a), do Cód.VM considera “contra-ordenação muito grave a violação de qualquer um dos seguintes deveres (…) de igualdade de tratamento (…)”. No entanto, esta igualdade de tratamento reporta-se ao dever do oferente tra-tar de forma igual os destinatários da oferta e não ao dever da sociedade visada de assegurar o tratamento igualitário dos oferentes quanto à informação prestada. A disposição legal já exis-tia antes da consagração da obrigação da socie-dade visada assegurar aquele tratamento iguali-tário pelo que não se poderá reportar ao novo dever consagrado na lei. A parte final do referi-do preceito reforça este entendimento, pois faz referência à “observância das regras de rateio”, regras essas que apenas se aplicam ao oferente caso este lance uma OPA parcial. Assim, caso a sociedade visada viole este dever e os oferentes prejudicados provem tal incumprimento (o que não será fácil), haverá apenas lugar à aplicação de uma contra-ordenação leve à sociedade

112- A posição da CMVM, à luz da redacção inicial do Código dos Valores Mobiliários, era a de que estava proibida a procura de oferentes concorrentes pelo órgão de administração da sociedade visada (vide Parecer da CMVM sobre DEVERES DE COMPORTAMENTO DO ÓRGÃO DE ADMINISTRAÇÃO DA SOCIEDADE VISADA NA PENDÊNCIA DE OPA disponível em www.cmvm.pt. Não creio que esta orientação fosse a mais correcta face à legislação então vigente. Com efeito, entendia-se, à luz do direito vigente antes da reforma de Novembro de 2006, que a procura de um oferente concorrente não precisava de ser autorizada pela assembleia geral da sociedade visada. O artigo 182.º, n.º 1 do Cód.VM estabelecia, e ainda estabelece, que o órgão de administração não pode praticar, na pendência da oferta, actos susceptíveis de alterar de modo relevante a situação patrimonial da sociedade visada que não se reconduzam à gestão normal da sociedade e que possam afectar de modo significativo os objectivos anunciados pelo oferente. A procura pelo órgão de administração de um oferente concor-rente (white knight), apesar de poder naturalmente prejudicar os objectivos anunciados pelo oferente (aliás o intuito da procura de um white knight é a frustra-ção da oferta), não prejudica a situação patrimonial da sociedade visada, não estando, por conseguinte, preenchido um dos requisitos legais cumulativos para considerar o acto excluído do âmbito dos poderes limitados do órgão de administração na pendência de OPA (neste sentido, vide JOÃO CALVÃO DA SILVA, Estudos de Direito Comercial, Almedina, 1999, p. 242; ORLANDO VOGLER GUINÉ, A transposição da Directiva de 2004/25/CE e a limitação dos poderes do órgão de administração da sociedade visada, in Cadernos do Mercado dos Valores Mobiliários, n.º 22, Dezembro, 2005, p. 27; e JORGE BRITO PEREIRA, A limitação dos poderes da sociedade visada durante o processo de OPA, in Direito dos Valores Mobiliários, Vol. II, Coimbra Editora, 2000, p. 175 e ss.). Acresce que a procura de oferente concorrentes é vantajosa para os interesses dos destinatários da oferta na medida em que, sendo a nova oferta melhor que a antecedente, estes poderão obter maior rentabilidade da alienação dos seus valores mobiliários objecto da oferta. A solução era (e é) aliás adoptada na maioria dos ordenamentos jurídicos. O direito alemão estabelece no artigo 33a § 2, ponto 2 da WpÜG que a proibição do órgão de administração e do órgão de fiscali-zação da sociedade visada de não praticar quaisquer actos que possam impedir o sucesso da oferta não se aplica à procura de oferentes concorrentes. 113- Os ordenamentos jurídicos alemão, francês, italiano e espanhol não consagram, de forma expressa, o princípio da igualdade de tratamento, em particular na vertente da informação disponibilizada ao oferente pela sociedade. A excepção de salutar é o legislador suíço consagrou de forma expressa, no artigo 48.º, n.º1 da Verordnung der Übernahmekommission über öffentliche Kaufangebote (Übernahmeverordnung – UEK, UEV-UEK), o princípio da igualdade de trata-mento. Essa consagração expressa tem uma inspiração notória no Takeover Code inglês.

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visada, podendo, quando muito, a CMVM requerer, oficialmente e face à comprovação da violação do dever de tratamento igualitário, que a sociedade visada disponibilize, de imediato, a informação aos demais oferentes em concorrên-cia. De referir ainda que o direito português não conferiu ao(s) oferente(s) prejudicado(s), ao contrário do direito inglês, a possibilidade de requer(em) a disponibilização da mesma infor-mação que tenha sido prestada pela sociedade a um determinado oferente. Em conclusão, entendo que, numa perspectiva de iure condendo, o princípio de tratamento igualitário pela sociedade visada dos oferentes em concorrência, sobretudo ao nível da informação disponibilizada, deve continuar a ser um princípio de carácter geral, cabendo ao intérprete e julgador a sua densificação no caso concreto114. Todavia, justifica-se, por um lado, atribuir ao potencial oferente prejudicado o direito de requerer a disponibilização da infor-mação prestada ao outro oferente, e, por outro lado, sancionar através da consagração de uma contra-ordenação grave ou muito grave, a socie-dade visada pela violação do princípio da igual-dade de tratamento bem como o oferente bene-ficiado pelo aproveitamento de uma informação ilicitamente fornecida. II. ARTICULAÇÃO DO REGIME DA OPA CONCORRENTE COM O DA OPA OBRIGATÓRIA A OPA concorrente é a oferta lançada na pen-dência de outra oferta sobre os mesmos valores mobiliários e que se encontra sujeita ao regime

consagrado nos artigos 185.º e ss. do Cód.VM, enquanto que a OPA obrigatória é a oferta lan-çada por força de uma imposição legal e que está regulada nos artigos 187.º e ss. do Cód.VM. A diferença substancial entre os regimes jurídi-cos da OPA concorrente e da OPA obrigatória e a sobreposição, nalguns casos, da aplicação dos mesmos geram situações de conflito entre as respectivas normas para as quais urge encontrar uma solução adequada. Os casos de potenciais conflitos de normas que se irão analisar são os seguintes:

a) OPA obrigatória na pendência de OPA voluntária;

b) OPA voluntária concorrente na pendência de OPA obrigatória; e

c) OPA obrigatória concorrente na pendência de OPA obrigatória inicial.

a) OPA OBRIGATÓRIA NA PENDÊNCIA DE OPA VOLUNTÁRIA Considere-se o seguinte exemplo: A lança uma OPA sobre a sociedade B; C adquire, na pen-dência da OPA, mais de um terço dos direitos de voto correspondentes ao capital social de B. Neste caso, estará C sujeito ao lançamento de OPA obrigatória aplicando-se, consequente-mente, as regras previstas nos artigos 187.º e ss.? Ou será que a OPA voluntária de A suspen-de a aplicação daquelas regras, podendo C lan-çar OPA concorrente sujeita às regras previstas nos artigos 185.º e ss.? Ou passará a resolução deste conflito de normas pela articulação do

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114- Exclui-se assim a especificação, feita pelo Takeover Code, de um conjunto de situações em aquele princípio de tratamento igualitário dos oferentes em concorrência assume características especiais.

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regime da OPA obrigatória com a OPA concor-rente tendo como critério base a tutela dos inte-resses dos destinatários da oferta?115, 116 Esta situação de conflito de normas será mais complexa se a ultrapassagem dos limiares legais resultasse da imputação de direitos de voto (e.g. um acordo parassocial relativo à sociedade B). Nesta situação, para além das questões supra suscitadas, colocar-se-ia o pro-blema de saber se o cumprimento do dever de lançamento de OPA por um dos accionistas obrigados impediria os demais de lançar uma OPA obrigatória face ao disposto no artigo 185.º, n.º 3? 1. OPA CONCORRENTE COMO OPA OBRIGATÓRIA – APLICAÇÃO EXCLUSIVA DO REGIME DA OPA OBRIGATÓRIA Uma das soluções defensáveis para a temática em análise seria aplicar sem mais o regime da OPA obrigatória. Assim, se, na pendência de oferta pública de aquisição, algum accionista, ou mesmo um terceiro, detivesse, directa ou indirectamente por força do artigo 20.º do Cód.VM, uma participação superior a um terço dos direitos de voto correspondentes ao capital social da sociedade visada, estaria obrigado, nos termos dos artigos 187.º e ss., ao lançamen-to de OPA obrigatória.

A OPA teria de ser geral (mesmo que a oferta do oferente inicial e eventuais oferentes concor-rentes fossem OPAs parciais), a contrapartida mínima seria fixada nos termos do artigo 188.º, o oferente inicial só poderia rever as condições da sua oferta (em particular a contrapartida) ao abrigo do artigo 184.º, e os prazos das ofertas não seriam coincidentes, correriam de forma independente117 à semelhança da própria liqui-dação das ofertas. A primazia e exclusividade seriam dadas ao regime das OPAs obrigatórias, pondo de lado o eventual carácter concorrente desta OPA e perspectivando-a exclusivamente como OPA obrigatória com a consequente exclusão da aplicação do regime das ofertas concorrentes. Julgo que esta solução não tutela de forma adequada os interesses dos destinatários da oferta, gera situações injustas para os oferentes – inicial e concorrentes –, e prejudica a gestão da sociedade visada e o funcionamento regular do próprio mercado. Os destinatários da oferta serão os mais prejudi-cados pela aplicação pura e simples das regras da OPA obrigatória, porque, apesar da OPA ser geral e incondicionada118, o valor da contrapartida poderá ser inferior ao que resultaria da aplicação das normas sobre ofertas concorrentes.

115- No ordenamento jurídico português, esta problemática suscitou-se na OPA sobre a Sociedade Comercial Orey Antunes, em que a sociedade Triângulo Mor – Consultoria Económica e Financeira, S.A. teve que lançar uma OPA obrigatória concorrente à da S.I.N. – Sociedade de Investimentos e Navegação, S.G.P.S., Lda. por força da ultrapassagem do limiar de direitos de voto relevantes para efeitos de dever de lançamento de OPA. A CMVM considerou a OPA como concorrente, mas desconhece-se se tal implicou a aplicação pura e simples do regime das ofertas concorrentes ou uma articulação desse regime com as regras relativas às OPAs obrigatórias.

116- A problemática em análise ganha maior relevo quando o prazo da oferta já está próximo do seu termo e se possa impedir, por força da aplicação das regras do artigo 185.º-A, o lançamento de OPA concorrente. Por outro lado, é necessário determinar se, nestas situações e admitindo o lançamento de OPA obrigatória, o prazo das ofertas deve ser coincidente ou se, ao invés, devem correr de forma separada, sendo que, caso a primeira solução seja adoptada, terá também que se aferir se a revisão da contrapartida da oferta inicial deve ser efectuado por referência à da OPA obrigatória ou se ao invés serão de aplicar as regras do artigo 184.º. A análise desta questão revela a debilidade da argumentação dos que defendem que tal artigo apenas admite uma revisão facultativa da contrapartida, pois o oferente inicial ficaria sem possibilidade de responder às condições fixadas pela OPA obrigatória. 117- O mesmo se aplicaria aos prazos de decisão das autoridades administrativas cujo parecer seria necessário para viabilizar a oferta, em particular a autoriza-ção da Autoridade da Concorrência à eventual operação de concentração e, nalguns casos, a não oposição do Banco de Portugal. 118- Neste particular, a sujeição às regras da OPA obrigatória poderia beneficiar os destinatários da oferta se as demais ofertas forem parciais ou estivessem sujeitas a condições, nomeadamente cláusulas de sucesso.

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Com efeito, o maior preço pago pelo oferente, ou por qualquer das pessoas que, em relação a ele estejam nalguma das situações previstas no n.º 1 do artigo 20.º, para aquisição de valores mobiliários da mesma categoria, nos seis meses imediatamente anteriores à data da publicação do anúncio preliminar da oferta, poderá não ser superior ao preço que resultaria da subida obri-gatória de 2% da contrapartida caso fossem aplicáveis as regras da OPA concorrente. É dado empírico que a cotação das acções é, por norma, inferior à contrapartida oferecida em sede de OPA pelo que é perfeitamente admissí-vel que o preço pago por qualquer acção da sociedade visada até atingir o patamar de um terço dos direitos de voto seja inferior à contra-partida oferecia por cada acção pelo(s) oferente(s) – inicial ou concorrentes. Tal situação é tan-to mais plausível quanto a ultrapassagem do limiar de um terço ou metade dos direitos de voto pode resultar da celebração de acordo parassocial entre accionistas relevantes da sociedade119. Acresce que o cálculo da contra-partida de acordo com o critério da alínea b) do n.º 1 do artigo 188.º também poderá não resol-ver esta situação injusta. É dado empírico, con-forme supra se referiu, que a cotação das acções tende a fixar-se abaixo da contrapartida oferecida pelo oferente inicial pelo que, se a OPA obrigatória for preliminarmente anunciada

antes de terem decorrido seis meses desde o anúncio preliminar da OPA voluntária inicial, o preço médio ponderado dos valores mobiliários objecto da oferta abrangerá o período anterior ao lançamento da OPA voluntária, fazendo com que esse preço médio seja inferior à contraparti-da oferecida por esta última oferta e ao preço resultante da subida de 2% da contrapartida nos termos do artigo 185.º. Por outro lado, não procede o argumento con-trário baseado na ideia de que os destinatários poderiam sempre alienar as suas acções aos demais oferentes voluntários, uma vez que a aquisição de uma participação tão relevante no capital social da sociedade visada torna difícil o preenchimento das eventuais cláusulas de sucesso daquelas ofertas. Mesmo que assim não se suceda, o oferente inicial poderá, com base no mecanismo de alteração das circunstâncias previsto no artigo 128.º, retirar a sua oferta ou modificá-la, tornando as suas condições menos favoráveis120. Os destinatários teriam então que se contentar com o preço mais reduzido ofereci-do pela OPA obrigatória, podendo ter que suportar um prejuízo financeiro por terem adquirido as suas acções, na perspectiva de sucesso das ofertas voluntárias, por um valor acima da contrapartida daquela oferta mas abaixo da oferecida pelas ofertas voluntárias.

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119- Nesta situação, nenhum dos accionistas relevantes teria adquirido acções da sociedade visada nos últimos seis meses. 120- Na verdade, é defensável que o lançamento de OPA obrigatória possa consubstanciar uma alteração imprevisível e substancial das circunstâncias que, de modo cognoscível pelos destinatários, hajam fundado a decisão de lançamento da oferta, excedendo os riscos a esta inerentes. Neste sentido, há que considerar, por um lado, o artigo 185.º-B, n.º 1 que confere a qualquer oferente o direito de proceder à revisão dos termos da sua oferta em caso de lançamento de OPA concorrente ou revisão de oferta em concorrência, e, por outro lado, o n.º 4 do mesmo preceito que qualifica o lançamento de OPA concorrente como funda-mento de revogação de ofertas voluntárias nos termos do artigo 128.º. Ora, se o lançamento de OPA concorrente é fundamento de revisão ou revogação da oferta e se a revisão de oferta em concorrência confere aos outros oferentes o direito de rever os termos das suas ofertas, por maioria de razão terá que ser atribuído aos demais oferentes, em caso de lançamento de OPA obrigatória, o direito de revisão ou revogação da oferta, uma vez que, apesar da contrapartida poder ser menos favorável que a das ofertas em concorrência, a OPA obrigatória pressupõe a aquisição de uma participação que traduza o domínio da socieda-de visada, e que, por esse facto, dificulta de forma substancial o sucesso das demais ofertas. Porém, julgo que a presente interpretação não se pode estribar na aplicação analógica do artigo 185.º-B, n.ºs 1 e 4 aos casos de lançamento de OPA obrigatória. Essa interpretação é afastada por força da proibição de aplicação analógica de normas excepcionais contida no artigo 10.º do Código Civil (apesar de esta norma ser objecto de diversas críticas, a meu ver bem fundadas, da doutrina). O direito de revisão ou revogação deverá ser atribuído aos demais oferentes por via do artigo 128.º, atento o disposto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 185.º-B. Concluindo, se o legislador considerou como alteração substancial e imprevisível das circunstâncias os casos de lançamento de OPA concorrente ou revisão de ofertas em concorrência (artigo 185.º-B, n.ºs 1 e 4), então o lançamento de OPA obrigatória também deve ser qualificado como uma alteração substancial e imprevisível das circunstâncias, conferindo o mesmo direito aos demais oferentes. Podendo não ser, em essência, uma alteração imprevisível, o lançamento de OPA obrigatória é, sem dúvida, uma mudança clara no “jogo” da oferta que deveria conferir aos demais “jogadores” (oferentes) a possibilidade de mobilizarem os mecanismos mais gravosos de que dispõem.

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Esta situação injusta não é evitada pela declara-ção da CMVM que viesse a considerar a contra-partida não devidamente justificada ou não equitativa (artigo 188.º, n.º 2) por ser inferior à contrapartida oferecida pelas ofertas voluntárias pendentes121. Além disso, mesmo que a contrapartida ofereci-da pela OPA obrigatória fosse mais favorável, os destinatários podem ainda sair prejudicados, pois, ao contrário da OPA concorrente (artigo 185.º-A, n.º 6), a OPA obrigatória não concede a faculdade de revogação das declarações de aceitação, retirando àqueles o direito de alienar os seus valores mobiliários à oferta que lhes proporciona o melhor retorno financeiro caso já tenha decorrido o prazo do artigo 126.º. n.º 2 do Cód.VM. Quanto ao oferente inicial e eventualmente o(s) concorrente(s), os seus interesses também não estão salvaguardados pela presente solução por-que ficam impossibilitados de responder ao lan-çamento de OPA obrigatória, melhorando os termos da sua oferta. Com efeito, a possibilida-de de resposta prevista no artigo 185.º-B, n.º 1 restringe-se ao lançamento de OPA concorrente ou revisão das ofertas em concorrência122. Acresce que a não coincidência dos prazos das ofertas impede os oferentes de concorrerem verdadeiramente entre si, em condições de igualdade e sujeitos exclusivamente às regras de natureza económica. O racional económico-financeira é posto de parte para dar lugar à estratégia, à oportunidade (quase oportunismo)

de lançar no momento certo a sua oferta, espe-rando ser bafejado pela sorte quanto ao não lan-çamento de OPA obrigatória. A própria gestão da sociedade visada é prejudi-cada com a solução em análise pois os seus poderes de gestão são limitados quase ad nutum por força da sucessão de ofertas voluntárias e obrigatórias (artigo 182.º)123, tornando inviável a adopção de uma política de gestão de médio/longo prazo face à indefinição da sua estrutura accionista. Por fim, a tutela dos interesses do mercado não está igualmente assegurada na medida em que se permite a existência de sucessivas ofertas públicas de aquisição, voluntárias e obrigató-rias, sem prazos coincidentes, sem verdadeira concorrência pela aquisição da sociedade visada e com recurso a mecanismos de oportunidade pouco transparentes. O mercado exige transpa-rência, clareza, celeridade e concorrência. A sujeição exclusiva às regras da OPA obrigatória põe em causa essas primícias fundamentais do mercado. 2. OPA OBRIGATÓRIA COMO OPA CONCORRENTE – APLICAÇÃO EXCLUSIVA DO REGIME DA OPA CONCORRENTE Outra alternativa para a presente problemática passaria pela aplicação, sem mais, do regime da OPA concorrente. Assim, se, na pendência de oferta pública de aquisição, algum accionista, ou mesmo um terceiro, detivesse, directa ou

121- A fixação da contrapartida de uma OPA depende primacialmente da eficiência que o oferente é capaz de aportar à gestão da sociedade visada e das siner-gias resultantes da concentração empresarial entre aquela e o oferente. Assim, não é possível sustentar que o facto da contrapartida oferecida pela OPA obriga-tória ser inferior à oferecida pela(s) OPA(s) voluntária(s) – inicial ou concorrente(s) – a convola, imediata e automaticamente, numa contrapartida não justifica-da e não equitativa. Tudo dependerá do grau de partilha do prémio de controlo que aquela contrapartida represente, sendo, por conseguinte, possível, e até natural, que a contrapartida de OPA obrigatória seja justificada e equitativa apesar de inferior à oferecida pela(s) OPA(s) voluntária(s) pendentes. 122- Contudo, aqueles sempre teriam a possibilidade de rever facultativamente a oferta se se entender que o exercício desta faculdade é “ilimitado”, indepen-dente do exercício anterior da faculdade de revisão prevista no artigo 185.º-B, n.º 1, e conferido a todos os oferentes, inclusive os concorrentes. Mas, mesmo neste caso, os oferentes podem ficar impedidos de rever a sua oferta porque aquela faculdade de revisão termina cinco dias antes do prazo da oferta pelo que, se a OPA obrigatória for lançada após o decurso daquele prazo ou no seu termo, é impossível aos oferentes voluntários rever os termos das suas ofertas. 123- Relembre-se que os prazos não são coincidentes.

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indirectamente por força do artigo 20.º do Cód.VM, uma participação superior a um terço dos direitos de voto correspondentes ao capital social da sociedade visada, estaria obrigado, nos termos dos artigos 187.º e ss., ao lançamen-to de OPA obrigatória mas sujeita exclusiva-mente ao regime das ofertas concorrentes. Essa OPA teria de incidir sobre quantidade de valo-res mobiliários igual àquela que é objecto da oferta inicial, a contrapartida mínima seria fixa-da nos termos do artigo 185.º, n.º 5, os oferen-tes, – inicial ou concorrentes –, poderiam rever, ao abrigo do artigo 185.º-B, n.º 1, as condições da oferta, e os prazos e liquidação das ofertas seriam coincidentes, não correndo de forma independente. Nesta solução, a primazia e exclusividade seriam portanto dadas ao regime das OPAs con-correntes, pondo de lado o eventual carácter obrigatório124 dessa OPA, e, consequentemente, a aplicação do seu regime. A OPA obrigatória seria apenas perspectivada como OPA concor-rente. Julgo que a solução apresentada, apesar de ser mais justa e equilibrada, afastando grande parte dos inconvenientes levantados pela solução anterior, deve ser rejeitada pelos seguintes motivos: (i) falta de tutela adequada dos interes-ses dos destinatários da oferta, (ii) prejuízo para os interesses dos oferentes voluntários (inicial ou concorrentes), (iii) tratamento de favor desta espécie “particular” de OPA obrigatória em detrimento das demais situações que geram o

dever de lançamento de OPA obrigatória, e (iv) pelo facto de ser contrária ao funcionamento regular do mercado. Os interesses dos destinatários não são protegi-dos adequadamente, porque, apesar do valor da contrapartida da OPA obrigatória concorrente ter que ser superior em 2% à da oferta antece-dente sendo, por isso, melhor que a anterior, a oferta poderá não ser geral (se a oferta inicial também não o for) e ficar sujeita às mesmas condições daquela, nomeadamente às cláusulas de sucesso da oferta. Por outro lado, esta solu-ção provocaria uma pressão vendedora inadmis-sível sobre os destinatários da oferta. Na verda-de, face à aquisição de participação tão relevan-te pelo oferente obrigado ao lançamento, as res-tantes ofertas teriam uma probabilidade muito reduzida de serem bem sucedidas, sobretudo por força das habituais cláusulas de sucesso que são apostas às ofertas voluntárias. Assim, os destinatários, com receio de não conseguirem alienar as suas acções a um dos oferentes voluntários, ver-se-iam forçados a aceitar a oferta obrigatória concorrente. A situação seria ainda mais injusta se as demais ofertas oferece-rem uma contrapartida final superior à daquela oferta125. Os próprios oferentes (inicial e concorrentes) são igualmente prejudicados por aquela pressão vendedora pois, mesmo que tenham apresenta-do ofertas com melhores condições, não logra-rão alcançar o sucesso da sua oferta devido a factores externos ao normal funcionamento do mercado.

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124- Seria apenas obrigatória por ser um dever resultante do artigo 187.º, n.º 1 do Cód.VM. 125- Assim, mesmo que os oferentes – inicial ou concorrente(s) - revissem a sua contrapartida na sequência do lançamento da OPA obrigatória concorrente, ou até de forma facultativa, e o oferente obrigado não o fizesse, a oferta lançada por aquele poderia ter sucesso por força da referida pressão vendedora.

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A solução em análise cria também um problema sistemático e de coerência do ordenamento jurí-dico na medida em que diferencia, de forma injustificada, a OPA obrigatória lançada na pen-dência de OPA voluntária da OPA obrigatória lançada na não pendência de OPA voluntária, privilegiando a primeira face à segunda. Enquanto que, numa situação “normal” (em que não está pendente OPA voluntária sobre a sociedade visada), o participante que adquira mais de um terço ou metade dos direitos de voto nessa sociedade tem de lançar OPA geral e incondicionada, na situação em apreço (isto é, estando pendente OPA voluntária) o participan-te podia lançar OPA parcial (se a oferta inicial também o fosse) e sujeitá-las às mesmas condi-ções da oferta antecedente. Esse privilégio será tanto maior quanto a contrapartida, calculada nos termos do artigo 185.º, n.º 5, for inferior à que resultaria da aplicação do artigo 188.º126. Por último, a aplicação exclusiva do regime das OPAs concorrentes, apesar de não dar lugar à existência de sucessivas ofertas públicas de aquisição – voluntárias e obrigatórias – sem prazos coincidentes, sem verdadeira concorrên-cia pela aquisição da sociedade visada e com recurso a mecanismos de oportunidade pouco transparentes como a primeira solução acima apresentada, continua a não defender de forma adequada os interesses do mercado, pois não tutela de forma razoável a clareza e a igualdade exigidas por este.

3. OPA CONCORRENTE E OBRIGATÓRIA – ARTICULAÇÃO ENTRE O REGIME DA OPA OBRIGATÓRIA E O DA OPA CONCORRENTE EM FUNÇÃO DA TUTELA DOS DESTINATÁRIOS DA OFERTA A terceira solução possível para a presente pro-blemática consiste na articulação entre o regime das OPAs obrigatórias e OPAs concorrentes. Ou seja, se, na pendência de oferta pública de aquisição, algum accionista, ou mesmo um ter-ceiro, detivesse, directa ou indirectamente por força do artigo 20.º do Cód.VM, uma participa-ção superior a um terço dos direitos de voto correspondentes ao capital social da sociedade visada, estaria obrigado, nos termos dos artigos 187.º e ss., ao lançamento de OPA obrigatória sujeita não só ao regime das ofertas concorren-tes, mas também ao das ofertas obrigatórias. A OPA seria assim obrigatória e concorrente127. A solução proposta exige que se determine qual a forma de articulação entre aqueles diferentes regimes, fixando um critério para a resolução dos possíveis conflitos entre as normas dos mesmos. Julgo que o melhor critério de articulação entre as normas da OPA concorrente e as da OPA obrigatória é a tutela dos destinatários da oferta. A tutela dos destinatários é um dos pilares da Directiva das OPAs que, na sequência do Relatório de 10 de Janeiro de 2002 do Grupo de

126- Tal privilégio prejudica aliás os destinatários da oferta pois, conforme supra se referiu, estes ficariam privados da normal “retribuição” decorrente da aquisição de controlo por um participante que lhes proporciona uma OPA geral, sem condições e com partilha do prémio de controlo. 127- Esta é a solução defendida pela doutrina alemã que considera não haver qualquer diferença particular pelo facto de a oferta pública concorrente ser obri-gatória e não voluntária, a não ser o facto de ter que ser geral e incondicionada (cfr. CHRISTOPH ROTHENFUSSER/ULRIKE FRIESE-DORMANN/NORBERT RIEGER, ob. cit., p. 2). Esta solução não coloca problemas práticos de maior no ordenamento jurídico alemão, uma vez que a lei alemã não estabelece quaisquer requisi-tos para o lançamento de OPA concorrente, com excepção do prazo.

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Alto Nível de Peritos no domínio do direito das sociedades sobre OPAS128, procurou estabele-cer, a nível comunitário, um level playing field no âmbito das ofertas públicas de aquisição, sendo que tal level playing field tem na sua base dois princípios fundamentais: shareholders decision-making (“poder decisório dos accio-nistas”) e proportionality between risk bearing and control (“proporcionalidade entre risco suportado e controlo”). É com base na defesa deste poder decisório dos accionistas que deve-rão ser resolvidos, caso a caso, os conflitos entre o regime das OPAs obrigatórias e o das OPAs concorrentes sem descurar, em absoluto, os demais interesses em causa, nomeadamente os dos oferentes em concorrência, da sociedade visada e do mercado. Analisar-se-á em seguida, caso a caso, quais os preceitos que regulam o lançamento e processo da OPA obrigatória concorrente.

a) Objecto Quanto ao objecto da OPA obrigatória concor-rente, a norma aplicável será não o artigo 185.º, n.º 5, mas o artigo 187.º, n.º 1, devendo, portan-to, a oferta ser universal. Em primeiro lugar, os destinatários da oferta não podem ficar numa situação pior do que a estariam caso fosse aplicável o regime normal das OPAs obrigatórias. A pendência de OPA voluntária não justifica o afastamento do princí-

pio geral de universalidade da OPA obrigatória, prejudicando a partilha do prémio de controlo a que, em circunstâncias normais, os accionistas teriam direito. Os destinatários não podem ser forçados a aceitar uma mudança de controlo sem lhes ser dada a possibilidade de sair (exit) da sociedade e esse direito só será efectivo se a oferta se dirigir a todos os titulares de acções da sociedade visada ou de valores mobiliários que confiram direito à sua subscrição ou aquisição. Em segundo lugar, os interesses dos oferentes voluntários (inicial e concorrentes) não saem prejudicados, uma vez que, sendo a OPA obri-gatória concorrente uma oferta universal, o seu objecto nunca abrangerá um número inferior de valores mobiliários ao das demais ofertas em concorrência129. Em terceiro lugar, a sociedade visada também não sairia lesada, pois uma OPA universal aumenta a probabilidade de sucesso da oferta e evita as situações de impasse ao nível do domí-nio societário que podem resultar do lançamen-to de OPAs parciais. Por último, a transparência, clareza, igualdade e concorrência do mercado ficariam salvaguarda-das visto que a aquisição de controlo do obriga-do ao lançamento forçá-lo-ia a conceder aos accionistas da sociedade visada a possibilidade de alienarem as suas acções em circunstâncias de igualdade. Não se criariam deste modo situações de excepção injustificadas e geradoras de privilégios injustos130.

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128- Cfr. REPORT OF THE HIGH LEVEL GROUP OF COMPANY LAW EXPERTS on issues related to takeovers bids, Bruxelas, 2002, p. 21. É também um dos princípios subjacentes ao Decreto-Lei n.º 219/2006, de 2 de Novembro que transpôs aquela directiva. 129- Além disso, entendo que esta solução não lesaria o oferente obrigado ao lançamento face aos demais oferentes concorrentes, pois estes poderiam de todo o modo lançar OPA parcial caso a OPA inicial também fosse parcial. A aquisição de controlo (pressuposto de OPA obrigatória) implica sempre o lançamento de OPA universal. Essa seria a consequência normal da ultrapassagem da fasquia de direitos de voto relevantes, solução contrária seria excepcional e privile-giaria, de forma clara e injustificada, o oferente obrigado. Acresce que a aquisição de controlo da sociedade visada permite-lhe, conforme supra se referiu, ficar numa posição de vantagem face aos demais oferentes o que contrabalança o seu dever de lançamento de OPA universal. 130- E não se diga que a concorrência do mercado não é assegurada de forma adequada, uma vez que, em condições normais, o oferente teria de lançar uma OPA obrigatória e, além disso, o controlo que agora detém da sociedade concede-lhe, em termos práticos, uma posição de vantagem face aos demais oferentes voluntários, nomeadamente ao nível informativo e a da gestão, permitindo-lhe, nalguns casos, tomar inclusive decisões legais que prejudicam as ofertas voluntárias.

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b) Contrapartida Relativamente à contrapartida, ela terá que cor-responder ao mais elevado dos montantes cal-culados nos termos do artigo 185.º, n.º 5 ou arti-go 188.º, n.º 1. Ou seja, será necessário calcu-lar, separadamente, o valor da contrapartida de acordo com a alínea a), do n.º 1, do artigo 188.º, com a alínea b) do mesmo preceito e de acordo com o artigo 185.º, n.º 5, para, em seguida, efectuar uma análise comparativa e fixar como contrapartida a que apresentar o valor mais ele-vado. Esta é a única solução que tutela de forma ade-quada os interesses dos destinatários uma vez que, como supra se demonstrou, o maior preço pago pelo oferente, directa ou indirectamente pela aquisição de valores mobiliários da mesma categoria, nos seis meses imediatamente ante-riores à data da publicação do anúncio prelimi-nar da oferta poderá não ser superior ao preço que resultaria da subida obrigatória de 2% da contrapartida caso fossem aplicáveis as regras da OPA concorrente. Por outro lado, e como também supra se referiu, os mecanismos pre-vistos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 188.º poderão não permitir a fixação de uma contrapartida supe-rior e a aquisição de uma participação tão rele-vante no capital social da sociedade visada difi-culta o preenchimento das eventuais cláusulas de sucesso daquelas ofertas. Acresce que o ofe-rente inicial poderá, com base no mecanismo das alteração das circunstâncias previsto no artigo 128.º, retirar a sua oferta ou modificá-la, tornando as suas condições menos favoráveis. Nestes casos, os destinatários saem claramente prejudicados na medida em que, tendo sido fixado um determinado patamar de contraparti-da pelas ofertas voluntárias, o lançamento de OPA obrigatória frustraria a alienação dos seus

valores mobiliários por aquele valor e geraria prejuízos reais para os accionistas que adquiri-ram acções acima da contrapartida da OPA obrigatória, mas abaixo da das OPAs voluntá-rias na expectativa de realização da mais-valia resultante da alienação das acções a uma das ofertas voluntárias. A solução proposta permite ainda, caso a con-trapartida não fosse devidamente justificada nos termos do artigo 188.º, n.º 2 ou se se presumisse não equitativa de acordo com alguma das alí-neas do n.º 3 do mesmo preceito e tal presunção não fosse elidida, fixar uma contrapartida supe-rior à resultante da aplicação do artigo 185.º, n.º 5. Os destinatários teriam deste modo assegura-do uma contrapartida que corresponde, por um lado, à partilha do prémio de controlo pois ela não será inferior à que resultaria da aplicação do artigo 188.º, e, por outro lado, não frustra, ou melhor não prejudica, as expectativas gera-das em relação à alienação das acções da socie-dade visada a um determinado preço, na medida em que a contrapartida da OPA obrigatória con-corrente será sempre superior à das ofertas pen-dentes. Quanto aos interesses dos oferentes voluntários – inicial ou concorrentes –, os seus interesses são também tutelados de forma adequada visto que a contrapartida da OPA obrigatória concor-rente nunca poderá ser inferior à que resultaria da aplicação do artigo 185.º, n.º 5. Assim, o oferente obrigado não sai beneficiado face aos demais oferentes em concorrência, ele tem que se submeter às regras de disputa pela aquisição da sociedade. Por sua vez, a pressão vendedora que a OPA obrigatória provoca sobre os desti-natários já não se afiguraria injusta pois a partilha do prémio pela tomada de controlo da sociedade visada encontra-se agora reflectido na contrapartida fixada.

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Por fim, o mercado não sairia afectado com a adopção desta solução. A igualdade de mercado encontra-se assegurada, porque, por um lado, o oferente obrigado tem de lançar OPA, pelo menos, nos mesmos termos em que teria de lan-çar um outro oferente concorrente voluntário e, por outro lado, não beneficia de uma posição privilegiada face a um normal sujeito obrigado ao lançamento de OPA na não pendência de OPA voluntária. A transparência e clareza do mercado estão igualmente salvaguardadas por-quanto a fixação da contrapartida beneficiará os destinatários e a pendência de OPA voluntária não permitirá falsear ou contornar as regras de funcionamento do mercado aplicáveis às OPAs concorrente ou obrigatória. Quanto à concor-rência, ela não sai afectada porque a nova oferta será sempre melhor que a antecedente e, apesar da pressão vendedora ser real, na medida em que o oferente “adquiriu” o controlo da socieda-de visada (por ultrapassagem dos patamares relevantes de direitos de voto) tornando mais difícil o sucesso das demais ofertas, os destina-tários têm garantido o prémio de controlo e direito de saída por preço equitativo.

c) Condições A norma aplicável à OPA obrigatória concor-rente no que toca às suas condições será o arti-go 187.º, n.º 5, ou seja, a OPA deve ser incondi-cionada. A justificação desta solução é similar à argumentação já expendida em relação ao objecto da oferta. Os destinatários não podem ficar numa situação pior que a estariam caso fosse aplicável o regime normal das OPAs obrigatórias, pois a

pendência de OPA voluntária não justifica o afastamento do princípio geral da incondiciona-lidade da OPA obrigatória, fazendo perigar o sucesso da oferta e a consequente partilha do prémio de controlo131. Já os interesses dos ofe-rentes voluntários – inicial e concorrentes – são tutelados de forma adequada, uma vez que, sen-do a OPA incondicionada, ela será, pelo menos, idêntica às demais ofertas em concorrência caso estas sejam também incondicionadas. Não há, por conseguinte, qualquer tratamento de favor para o adquirente de controlo por força da pen-dência de OPA voluntária sobre a sociedade visada. Por último, como a OPA incondiciona-da tem maior probabilidade de sucesso, evitam-se deste modo as situações de impasse ao nível do domínio societário e os interesses da socie-dade visada não saem lesados.

d) Direitos dos Oferentes Anteriores Relativamente à possibilidade de revisão das ofertas voluntárias, julgo que os n.ºs 1 e 4 do artigo 185.º-B serão aplicáveis ao lançamento ou revisão de OPAs obrigatórias concorrentes, isto é, deverá ser concedido aos oferentes voluntários em concorrência o direito de, respectivamente, revogar ou rever a sua oferta em caso de lançamento ou revisão132 de OPA obrigatória concorrente. A faculdade de revisão prevista no artigo 185.º-B, n.º 1, na letra da lei parece, numa primeira análise, afastar tal entendimento, uma vez que faz unicamente referência ao “lançamento de OPAs concorrentes” e à “revisão das ofertas em concorrência”, transmitindo a ideia de que o legislador apenas teve em mente a oferta inicial

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131- A aposição de condições, em particular cláusulas de sucesso mesmo que similares às da oferta anterior, além de pôr em causa o sucesso da oferta e o direito de saída (exit) da sociedade visada, aumenta de forma inaceitável a pressão vendedora sobre os destinatários da oferta. Os destinatários da oferta não podem ser forçados a aceitar uma mudança de controlo sem lhes ser dada a possibilidade de sair (exit) da sociedade, sendo que tal possibilidade, enquanto pilar estruturante das OPAs obrigatórias, só será real se a oferta, além de se dirigir a todos os titulares de valores mobiliários da sociedade visada, for também incondicionada. 132- Sobre a admissibilidade da faculdade de revisão das OPAs obrigatórias concorrentes em caso de lançamento de OPA concorrente ou revisão de ofertas em concorrência, vide Título II. Articulação do Regime Jurídico da OPA Concorrente com o da OPA Obrigatória, Capítulo A) OPA Obrigatória na pendência de OPA Voluntária, Secção 3. OPA Concorrente e Obrigatória – Articulação entre o regime da OPA Obrigatória e o da OPA Concorrente em função da Tutela dos Destinatários da Oferta, Subsecção f) Revisão da Oferta infra. Por ora presumir-se-á a existência de tal faculdade.

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e as subsequentes ofertas concorrentes. Contu-do, é necessário proceder a uma decomposição analítica deste preceito normativo. Começando pelo fim, isto é, pela expressão “revisão das ofertas em concorrência”, a letra da lei acaba por não excluir de forma liminar a aplicação do preceito às OPAs obrigatórias, pois a OPA obrigatória é, quando lançada na pendência de OPA voluntária, uma OPA em concorrência com esta última. Ambas visam o controlo da sociedade visada ainda que através de mecanismos distintos. Enquanto o oferente voluntário procura adquirir o controlo da socie-dade que presentemente não detém, transfor-mando o controlo do oferente obrigado em mera minoria de bloqueio de certas matérias societárias (e.g. alterações estatutárias, aumen-tos de capital), o oferente obrigado procura reforçar o seu actual controlo, impedindo os oferentes voluntários de adquirir uma maioria de domínio da sociedade. A OPA obrigatória é perspectivada como verdadeira OPA concorren-te, ainda que sem negligenciar o seu carácter obrigatório133. Julgo, por conseguinte, que a expressão “ofertas em concorrência” deve ser objecto de uma interpretação extensiva no sen-tido de abranger também as ofertas obrigatórias lançadas na pendência de oferta voluntária, con-cedendo-se aos oferentes voluntários a faculda-de de reverem as suas ofertas em resposta à revisão das ofertas concorrentes. O mesmo raciocínio é válido para a expressão “lançamento de oferta concorrente”. Sendo a oferta obrigatória qualificada como OPA

concorrente quando lançada na pendência de OPA voluntária, a expressão “lançamento de oferta concorrente” tem que ser objecto de interpretação extensiva por forma a abranger tais ofertas obrigatórias. De referir que o direito de revisão terá, em ambos os caso (lançamento ou revisão de OPA obrigatória concorrente), que ser exercido nos termos do artigo 185.º-B, n.ºs 2 e 3. No que concerne à faculdade de revogação das ofertas voluntárias nos termos do artigo 185.º-B, n.º 4, julgo que esse direito também assiste aos oferentes anteriores no caso de lançamento de OPAs obrigatórias concorrentes, não afec-tando dessa forma os interesses dos destinatá-rios da oferta. De facto, não podendo a contra-partida da OPA obrigatória concorrente ser inferior à que resultaria do artigo 185.º, n.º 5, o retorno proporcionado pela alienação das acções ao oferente obrigado será sempre supe-rior ao retorno resultante da aceitação das ofer-tas antecedentes pelo que não haverá qualquer prejuízo para os destinatários decorrente da revogação das ofertas voluntárias de acordo com o disposto no artigo 185.º-B, n.º 4134. O mesmo entendimento aplica-se à faculdade de revisão das ofertas voluntárias em termos menos favoráveis nos termos do artigo 185.º-B, n.º 1135. Se não existe qualquer prejuízo para os destinatários decorrente da “qualificação” da OPA obrigatória como OPA concorrente quan-do lançada na pendência de OPA voluntária e aceitando a interpretação extensiva do artigo

133- Relembre-se que a oferta é geral e incondicionada. 134- De salientar que a decisão de revogação da oferta tem que ser publicada logo que seja tomada, devendo sê-lo até quatro dias a contar do lançamento da OPA obrigatória concorrente (artigo 185.º-B, n.º 5). 135- Sobre a admissibilidade da revisão das ofertas em termos menos favoráveis em virtude do lançamento de OPA concorrente ou revisão das ofertas em concorrência, vide Título I. Regime Jurídico da OPA Concorrente, Capítulo B) Efeitos do Lançamento de Oferta Concorrente, Secção 2. Direitos dos Oferentes Anteriores, Subsecção b) Modificação da Oferta supra.

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185.º-B, n.º 1, aos oferentes em concorrência têm que ser atribuído o direito de rever a sua oferta, mesmo em termos menos favoráveis, face ao lançamento de OPA obrigatória concor-rente ou à sua revisão136. A interpretação ora defendida quanto à aplicação dos n.ºs 1 e 4 do artigo 185.º-B do Cód.VM é a única defensável de um ponto de vista da tutela dos interesses dos oferentes voluntários137 e do mercado138 e a que assegura o level playing field na concorrência pela aquisi-ção de controlo da sociedade.

e) Revogação das Aceitações Anteriores Quanto à faculdade de revogação das aceitações entretanto dadas por titulares de valores mobi-liários, ela não deve ser excluída no lançamento de OPA obrigatória quando esteja pendente OPA voluntária sobre a sociedade visada. Apli-car-se-á, portanto, o artigo 185.º-A, n.º 6, tendo os titulares de valores mobiliários da sociedade visada que aceitaram uma oferta antecedente a faculdade de revogarem as suas aceitações até ao último do período das aceitações. Com efei-to, não se justifica a exclusão de tal faculdade atenta a mudança de controlo da sociedade, o potencial fracasso das ofertas voluntárias e as melhores condições económico-financeiras proporcionadas pela oferta obrigatória. A tutela

dos destinatários não se coadunaria com o afastamento daquele direito de revogação139.

f) Revisão da Oferta No que toca à faculdade de revisão da oferta obrigatória, é necessário clarificar se o oferente obrigado ao lançamento tem o direito de rever a sua oferta nos termos do artigo 184.º e do artigo 185.º-B, n.º 1 ou se, uma vez fixada a contra-partida da oferta no anúncio preliminar e tendo a CMVM declarado tal contrapartida devida-mente justificada e equitativa (artigo 188.º, n.º 2), o oferente obrigado ao lançamento fica impossibilitado de proceder à sua revisão. Julgo que a primeira solução é a que se revela mais adequada de um ponto de vista da tutela dos destinatários, limitando-se, contudo, aquela revisão ao valor da contrapartida pois a OPA obrigatória concorrente tem que ser geral e incondicionada. Em relação à faculdade de revisão prevista no artigo 185.º-B, n.º 1, poderia defender-se, numa primeira análise, que a letra da lei afasta tal entendimento, porque a expressão a “qualquer oferente” parece apenas abranger os oferentes voluntários tanto mais que o proémio do precei-to se reporta ao lançamento de oferta concor-rente e à revisão de ofertas em concorrência.

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136- Por outro lado, este entendimento justifica-se com base num argumento a maior ad minus. Isto é, se se admite o mais (revogação da oferta em resposta ao lançamento de OPA obrigatória concorrente – artigo 185.º-B, n.º 4), tem que se admitir o menos (revisão das ofertas em concorrência em termos menos favoráveis – artigo 185.º-B, n.º 1). 137- Aos oferentes concorrentes tem que ser atribuído o direito de resposta em caso de lançamento de oferta concorrente, ainda que obrigatória, pois tal oferta entra em concorrência directa com as suas. E não se diga que os oferentes voluntários sempre teriam a faculdade de rever facultativamente a oferta desde que se entenda que o exercício desta faculdade é “ilimitado” (isto é, independente do exercício anterior da faculdade de revisão prevista no artigo 185.º-B, n.º 1) e conferido a todos os oferentes, mesmos os concorrentes. É que tal direito de revisão termina cinco dias antes do prazo da oferta pelo que se a OPA obrigatória for lançada, ou mesmo revista, após o decurso daquele prazo ou no seu termo, é impossível que os oferentes voluntários revejam os termos das suas ofertas. 138- O entendimento ora defendido garante a igualdade e concorrência no mercado, pois seria de todo injustificado que uma oferta, por ser obrigatória, não concedesse aos demais oferentes voluntários anteriores a possibilidade de responderem e de concorrerem pela aquisição da sociedade visada. Só assim se alcança o level playing field – pressuposto do bom funcionamento do mercado e como tal objectivo fundamental da recente Directiva das OPAs (cfr. REPORT OF THE HIGH LEVEL GROUP OF COMPANY LAW EXPERTS on issues related to takeovers bids, Bruxelas, 2002, p. 21). 139- A igualdade e a concorrência, enquanto pilares do mercado de capitais e princípios estruturantes da disputa pela aquisição da sociedade, justificam igualmente a presente solução na medida em que aos destinatários tem de ser conferida a possibilidade de escolher a melhor oferta em concorrência, não podendo ser aprisionados a qualquer uma delas evitando-se assim benefícios legais infundados.

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Todavia, a letra da lei não exclui de forma liminar a aplicação do preceito às OPAs obriga-tórias. Em primeiro lugar, conforme supra referido140, as expressões “lançamento de ofer-ta concorrente” e “revisão de ofertas em con-corrência” abrangem o lançamento e revisão de OPAs obrigatórias quando lançadas ou revistas na pendência de ofertas voluntárias pelo que, consequentemente, a expressão “qualquer ofe-rente” não pode ser limitada aos oferentes voluntários. Em segundo lugar, o pronome indefinido “qualquer” não restringe o oferente em função do tipo de oferta, nomeadamente voluntária ou obrigatória. Em terceiro lugar, a OPA obrigatória é, quando lançada na pendência de OPA voluntária, uma OPA em concorrência com esta última. Ambas visam o controlo da sociedade visada ainda que através de mecanismos distintos141. Concluindo, a expressão “qualquer oferente” deve ser objecto de uma interpretação extensiva no sentido de abranger também as ofertas obrigatórias lança-das na pendência de oferta voluntária, conce-dendo-se ao oferente obrigado a faculdade de rever a sua oferta em resposta ao lançamento ou à revisão das ofertas voluntárias. O entendimen-to preconizado garante a igualdade e a concor-rência de mercado. O oferente não pode, pelo facto de a sua oferta ser obrigatória, ficar impe-dido de responder ao lançamento de oferta con-corrente ou à revisão das ofertas em concorrên-cia, vendo-lhe ser negada a possibilidade de

concorrer pela aquisição da sociedade visada. Só assim se assegura a “igualdade de armas”, ou seja, o proclamado level playing field – pres-suposto do bom funcionamento do mercado e objectivo fundamental da Directiva das OPAs. O mesmo raciocínio é válido em relação ao arti-go 184.º ainda que porventura de forma menos intensa. A letra da lei parece, novamente e numa primeira análise, excluir a faculdade de revisão da oferta pelo oferente obrigado, na medida em que o preceito se dirige primacial-mente às ofertas voluntárias142. No entanto, a aplicação deste artigo, embora tenha de ser objecto de algumas adaptações143, justifica-se plenamente. A expressão “oferente”, apesar de se dirigir aos oferentes voluntários, não restringe o seu cam-po de aplicação a tais oferentes, podendo ser objecto de interpretação extensiva no sentido de abranger os oferentes obrigados ao lançamento de OPA. Além disso, e tal como supra referido, a OPA obrigatória é, quando lançada na pen-dência de OPA voluntária, uma OPA em con-corrência com esta última. É verdade que a faculdade de revisão facultativa da oferta não é fundamental para assegurar a concorrência entre todas as OPAs em disputa. Ainda assim, os termos distintos de revisão da oferta previs-tos no artigo 185.º-B, n.ºs 1 a 3 e no artigo 184.º do Cód.VM resultam da dualidade de funda-mentos dos direitos aí consagrados, sendo o primeiro a expressão do exercício de um direito

140- Cfr. Título II. Articulação do Regime Jurídico da OPA Concorrente com o da OPA Obrigatória, Capítulo A) OPA Obrigatória na pendência de OPA Voluntária, Secção 3. OPA Concorrente e Obrigatória – Articulação entre o regime da OPA Obrigatória e o da OPA Concorrente em função da Tutela dos Destinatários da Oferta, Subsecção d) Direitos dos Oferentes Anteriores supra. 141- Enquanto o oferente voluntário procura adquirir o controlo da sociedade que por ora não detém, o oferente obrigado procura reforçar o seu controlo, impedindo os oferentes voluntários de adquirir uma maioria de domínio da sociedade e transformando o controlo do oferente obrigado em mera minoria de bloqueio de certas matérias societárias (e.g. alterações estatutárias, aumentos de capital). 142- Tal facto resulta claro do n.º 2 do artigo 184.º que estabelece que as condições da oferta revista não podem ser menos favoráveis e, conforme supra se constatou, a OPA obrigatória concorrente tem que ser incondicionada. 143- Isto é, apesar de se reconhecer que o artigo foi pensado para as ofertas voluntárias, será necessário, ao aplicá-lo às ofertas obrigatórias, adaptá-lo de forma a apreender as especificidades desta espécie de oferta.

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de resposta em sede de concorrência pela aqui-sição daquela sociedade e o segundo um reco-nhecimento do aumento do valor dos activos da sociedade visada ou da insuficiência do valor da contrapartida como prémio para a aquisição do controlo da mesma144. Em suma, pode afirmar-se que a atribuição do direito de revisão faculta-tiva da oferta ao oferente obrigado não é uma decorrência forçosa da igualdade e concorrência do mercado ou um mecanismo fundamental para assegurar o level playing field, mas uma imposição de coerência sistemática, de clareza e de transparência do processo de OPA baseado na igualdade de armas entre os oferentes e no racional económico-financeiro do mercado enquanto critério decisório da aquisição de con-trolo da sociedade visada. g) Direito de Revogação da Oferta Obrigatória O oferente obrigado ao lançamento de OPA na pendência de OPA voluntária deverá estar impedido de revogar a sua oferta nos termos do artigo 185.º-B, n.º 4 caso seja lançada uma OPA concorrente. O lançamento de OPA concorrente (voluntária ou mesmo obrigatória) não confere ao oferente obrigado concorrente o direito de revogar a sua oferta. Este entendimento resulta claramente da letra da lei que, ao referir que o lançamento de oferta concorrente constitui fundamento de “ofertas voluntárias” limita a estas últimas o direito de revogação da oferta. Por outro lado, e atenden-do a um argumento de natureza substancial, a natureza da OPA obrigatória resulta de um

dever legal de lançamento da oferta por força da ultrapassagem de determinadas fasquias rele-vantes de direitos de voto. Atribuir ao oferente obrigado a possibilidade de revogar a oferta em caso de lançamento de OPA concorrente, seria contrariar a natureza da OPA obrigatória e a sua fonte que é a lei145. A solução contrária seria aliás injusta para os normais obrigados ao lan-çamento de OPA que têm que pagar o prémio de controlo da sociedade visada, enquanto que o oferente obrigado ao lançamento de OPA, na pendência de OPA voluntária, teria a possibili-dade de revogar a sua oferta, não partilhando aquele prémio de controlo.

h) Prazo de Lançamento e da Oferta O prazo de lançamento da oferta obrigatória concorrente não poderá ser o do artigo 185.º-A, n.º 1, será o do artigo 187.º, isto é, terá que ser divulgado de imediato o anúncio preliminar da OPA. A solução contrária abriria a porta à frus-tração fácil das ofertas iniciais, uma vez que o oferente obrigado podia frustrar a oferta inicial (normalmente sujeita a cláusulas de sucesso) através do controlo que a lei presume que adquiriu e abandonar a sociedade visada sem lançar a OPA obrigatória através do mecanismo de suspensão do dever previsto no artigo 190.º. Além disso, solução diversa traria prejuízos sérios para os destinatários (que poderiam ficar sem a contrapartida da oferta voluntária e sem a distribuição do prémio de controlo da OPA obrigatória como se demonstrou), para a sociedade visada (que arrastaria a indefinição da sua estrutura de controlo accionista) e para o

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144- A diferente fundamentação desses direitos é também da maior relevância para o oferente que revê a sua contrapartida, pois ele pretende desta forma transmitir ao mercado qual o motivo que esteve na base da sua decisão de rever em alta a contrapartida. A transparência e clareza do processo de OPA assim o exige, bem como o próprio mercado e os destinatários da oferta que carecem da base informativa subjacente ao racional económico decisório dos oferentes em concorrência para melhor aferirem das intenções e valorações de cada oferente. Para mais desenvolvimentos sobre os fundamentos de cada uma destas faculdades legais, vide Título I. Regime Jurídico da OPA Concorrente, Capítulo B) Efeitos do Lançamento de Oferta Concorrente, Secção 2. Direitos dos Oferentes Anteriores, Subsecção b) Modificação da Oferta supra. 145- E não se diga que assim se prejudica a igualdade e concorrência pela aquisição da sociedade visada, em particular o level playing field! A linha divisória entre a igualdade/concorrência e a obrigatoriedade da oferta traça-se neste ponto, isto é, a igualdade de armas como pressuposto de uma sã concorrência pela aquisição da sociedade visada termina onde começa a obrigatoriedade do lançamento de OPA. Assim, sempre que algum mecanismo legal atribuindo aos oferentes voluntários possa, caso seja posto também à disposição dos oferentes obrigados, pôr em causa aquele carácter obrigatório da oferta, deve ser excluído, sendo o oferente obrigado ao lançamento impedido de lançar mão de tal mecanismo.

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mercado (que ficaria numa situação de incerte-za, falta de clareza e consequente instabilidade). O oferente obrigado, na pendência de OPA obrigatória, tem que divulgar de imediato o seu anúncio preliminar, estando-lhe vedado o recurso à faculdade de suspensão do dever de lançamento. Quanto ao prazo da oferta obrigatória em si, este deverá ser o do artigo 185.º-A, n.º 3, ou seja, o prazo desta OPA será coincidente com o das ofertas voluntárias. A não coincidência de prazos impede os oferentes de concorrerem ver-dadeiramente entre si, em condições iguais e sujeitos apenas às regras normais de funciona-mento de mercado. O racional económico é posto de parte, abrindo campo à estratégia, à oportunidade (quase oportunismo) de lançar no momento certo a sua oferta, esperando ser bafe-jado pela sorte quanto ao não lançamento de OPAs obrigatórias no entretanto. A clareza e transparência do mercado não se coadunam com tais critérios de oportunidade, antes exigin-do decisões económico-financeiramente ponde-radas. Acresce que a gestão da sociedade visada ver-se-ia extremamente limitada porque ficaria sujeita, quase ad nutum e por força da sucessão de ofertas voluntárias e obrigatórias, à limitação dos seus poderes de gestão (artigo 182.º), o que impediria a adopção de uma política de gestão

de médio/longo prazo face à indefinição da sua estrutura accionista146.

i) Conclusões Em conclusão, podemos afirmar que a solução ora defendida, quanto ao regime aplicável às OPAs obrigatórias lançadas na pendência de OPA voluntária, salvaguarda a natureza obriga-tória deste tipo de ofertas ao mesmo tempo que procura assegurar a igualdade e concorrência na disputa pela aquisição da sociedade de forma a alcançar um level playing field entre oferentes, tendo em ambos os casos, como pano de fundo, a tutela dos destinatários (ratio estruturante de quase todas as normas do regime das OPAs, em particular o das ofertas concorrentes), ou seja, uma aplicação, caso a caso, da norma que con-ceda maior protecção possível aos destinatários. O presente entendimento evita ainda situações injustas e salvaguarda a clareza e transparência do mercado, procurando reverter a decisão sobre a aquisição de controlo da sociedade para o racional económico-financeiro inerente ao funcionamento do mercado. A OPA obrigatória lançada na pendência de OPA voluntária é, por isso, simultaneamen-te, obrigatória e concorrente, isto é, uma oferta pública de aquisição obrigatória concorrente147.

146- Em sentido contrário, poderia afirmar-se que a presente solução geraria igual resultado caso haja ultrapassagem da fasquia de 1/3 dos direitos de voto por outros participantes. Mas tal só poderia acontecer mais uma vez pois não é possível que três accionistas ultrapassem a fasquia de um terço dos direitos de voto a não ser que haja lugar a imputação bi-unívoca de direitos de voto por virtude de acordo parassocial celebrado entre participantes. Porém, neste último caso, um dos accionistas a quem foram imputados os votos teria que lançar imediatamente uma OPA geral e os outros, caso quisessem lançar também uma OPA obrigatória, teriam que responder de imediato pelo que a sucessão de ofertas não se arrastaria ad eternum. Assim, só é possível, no máximo, haver lugar ao lançamento de três OPAs obrigatórias, sendo que mesmo este último cenário é de difícil verificação prática, porque não haveria acções em free float. 147- O raciocínio ora exposto é também válido para o lançamento de uma eventual segunda OPA obrigatória na pendência de OPA voluntária. As razões e fundamentação por detrás da aplicação de cada um dos preceitos supra referidos não é afectado e não tem que ser objecto de uma aplicação mais adaptada por força do lançamento de nova OPA obrigatória concorrente.

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b) OPA VOLUNTÁRIA CONCORRENTE NA PENDÊNCIA DE OPA OBRIGATÓRIA 1. APRESENTAÇÃO DA PROBLEMÁTICA Analisada a problemática do regime jurídico aplicável em caso de ultrapassagem dos limia-res de direitos de voto relevantes para efeitos de lançamento de OPA obrigatória na pendência de OPA voluntária, cumpre agora versar sobre a hipótese oposta, ou seja, determinar qual acervo normativo relevante no caso de lançamento de OPA voluntária na pendência de OPA obrigató-ria. Imagine-se o seguinte exemplo: A adquire mais de um terço dos direitos de voto da sociedade B, tendo, por esse motivo, lançado uma OPA obrigatória sobre B; em seguida, C decide lan-çar uma OPA voluntária sobre B para adquirir o seu controlo, retirando-o a A. Qual será o regi-me jurídico desta última oferta? O regime das OPAs obrigatórias? O das ofertas concorrentes? Ou será também necessário proceder a uma arti-culação entre aqueles regimes em função da tutela dos destinatários? 2. SOLUÇÃO PROPOSTA – APLICAÇÃO QUASE EXCLUSIVA DO REGIME DAS OFERTAS CONCORRENTES A resolução desta problemática parece residir na aplicação quase exclusiva do regime das ofertas concorrentes. O artigo 185.º, n.º 1 dispõe que “a partir da publicação de anúncio preliminar de oferta pública de aquisição de valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regula-

mentado, qualquer outra oferta pública de aqui-sição de valores mobiliários da mesma catego-ria só pode ser realizada através de oferta con-corrente lançada nos termos do presente artigo”. Sendo a OPA voluntária lançada após a publi-cação do anúncio preliminar da OPA obrigató-ria e na pendência desta oferta, a mesma terá que se sujeitar ao regime das ofertas concorren-tes. A letra da lei148 não restringe a aplicação do regime das OPAs concorrentes ao facto da ofer-ta pendente ser uma OPA voluntária. Pelo con-trário, a expressão – “só pode ser realizada atra-vés de oferta concorrente” – parece exigir a aplicação de tal regime. Além do argumento literal, a solução defendida é a mais adequada de um ponto de vista da tutela dos destinatários e, em certa medida, dos oferentes em concor-rência, da sociedade visada e do mercado. Mas vejamos em concreto a aplicação de cada uma das regras em causa.

a) Objecto O objecto da OPA concorrente tem que ser uni-versal, isto porque a oferta tem que incidir sobre quantidade de valores mobiliários igual àquela que é objecto da oferta inicial e esta é, obrigatoriamente, uma oferta universal (artigo 185.º, n.º 4). A solução não é prejudicial nem para os interesses dos destinatários, uma vez que o seu objecto não poderia ser mais extenso, nem para o novo oferente pois o artigo 185.º, n.º 4 sempre seria aplicável mesmo que fosse uma OPA voluntária, nem para a igualdade, concorrência, transparência e clareza do merca-do porque, caso a oferta inicial fosse voluntária e geral, a oferta estaria sujeita ao mesmo regime.

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148- O proémio do artigo 185.º, n.º 1, ao referir-se à publicação do anúncio preliminar, não se restringe ao anúncio de OPAs voluntárias e, por sua vez, a estatuição normativa do mesmo preceito submete obrigatoriamente, através do advérbio “só”, qualquer oferta pública lançada após aquele anúncio ao regime das ofertas concorrentes.

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b) Contrapartida A contrapartida é fixada nos termos do artigo 185.º, n.º 5, ou seja, a oferta voluntária tem que fixar uma contrapartida superior em 2% à oferta antecedente. Este valor corresponde, por um lado, ao retorno financeiro esperado pelos desti-natários da oferta em caso de lançamento de nova OPA e, por outro, ao valor que a igualda-de e concorrência de mercado exigem na medi-da em que esse seria o valor mínimo da contra-partida de uma OPA concorrente caso a oferta inicial fosse voluntária.

c) Condições A oferta concorrente, na pendência de OPA obrigatória, tem que ser incondicionada. Na verdade, sendo a OPA obrigatória inicial incon-dicionada e não podendo a oferta concorrente, nos termos do artigo 185.º, n.º 5 in fine, conter condições que a tornem menos favorável, a oferta voluntária concorrente lançada na pendência de OPA obrigatória não pode ser condicionada. Contudo, julgo ser admissível a aposição de condições à oferta (e.g. fim de blindagens estatutárias) desde que, em termos globais149, a oferta apresente condições mais favoráveis (e.g. o valor da contrapartida ser substancialmente superior à subida mínima exigida pelo artigo 185.º, n.º 5).

d) Direitos do Oferente Obrigado Anterior Quanto à possibilidade de revisão da oferta obrigatória anterior, será aplicável, ao lança-mento ou revisão de OPAs voluntária concor-rente na pendência de OPA obrigatória, apenas o n.º 1 do artigo 185.º-B, concedendo-se ao ofe-rente obrigado inicial, face ao lançamento ou revisão150 de OPA voluntária concorrente, o direito de rever a sua oferta, mas não o de a revogar (n.º 4 do mesmo preceito). Em relação à faculdade de revisão prevista no artigo 185.º-B, n.º 1, a letra da lei não afasta o presente entendimento, pois aquele preceito determina que, em caso de lançamento de OPA concorrente, “qualquer oferente” terá direito à revisão da oferta. Conforme referido supra, o pronome indefinido “qualquer” não restringe a faculdade de revisão ao oferente voluntário na pendência de OPA obrigatória151. O mesmo raciocínio é válido para a revisão da OPA con-corrente pelo que, se o oferente voluntário con-corrente revir, num momento posterior, os ter-mos da sua oferta, o oferente obrigado inicial tem o direito de rever os termos da sua oferta ao abrigo do artigo 185.º-B, n.º 1. Estes direitos de revisão não poderão, contudo, implicar uma revisão em baixa da oferta por força da impera-tividade das regras da incondicionalidade, gene-ralidade e contrapartida mínima das OPAS obrigatórias.

149- Sobre as diferentes teorias relativas à análise das condições mais favoráveis da oferta, vide Título I. Regime Jurídico da OPA Concorrente, Capítulo A) Requisitos do Lançamento, Secção 5. Condições supra. 150- Sobre a admissibilidade da faculdade de revisão das OPAs obrigatórias concorrentes em caso de lançamento de OPA concorrente ou revisão de ofertas em concorrência, vide Título II. Articulação do Regime Jurídico da OPA Concorrente com o da OPA Obrigatória, Capítulo A) OPA Obrigatória na pendência de OPA Voluntária, Secção 3. OPA Concorrente e Obrigatória – Articulação entre o regime da OPA Obrigatória e o da OPA Concorrente em função da Tutela dos Destinatários da Oferta, Subsecção f) Revisão da Oferta supra. 151- E não se diga que, uma vez fixada a contrapartida e considerada equitativa e devidamente justificada nos termos do artigo 188.º, n.º 2, fica excluída a possibilidade de revisão! Com efeito, o lançamento de OPA concorrente altera por completo o cenário inicial em que existe uma única oferta obrigatória, que surge como mecanismo de partilha de prémio de controlo e de saída dos accionista que não pretendem continuar na sociedade com o accionista que adquiriu alegadamente o controlo desta, para abrir a corrida pela aquisição da sociedade visada, tornando-se a oferta obrigatória numa das diversas ofertas em concorrência. Este novo cenário concorrencial requer, naturalmente, uma mudança das normas jurídicas aplicáveis, permitindo ao oferente obrigado disputar de forma igual a aquisição da sociedade visada, ainda que sem retirar o carácter obrigatório à sua oferta. Neste contexto, é fundamental conferir ao oferente obrigado inicial a faculdade de revisão da oferta prevista no artigo 185.º-B, n.º 1 de forma a assegurar-lhe o direito de resposta ao lançamento.

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Diferentemente, e em relação à faculdade de revogação prevista no artigo 185.º-B, n.º 4, julgo que a mesma deve ser excluída. Em primeiro lugar, este entendimento resulta claramente da letra da lei que, ao referir que o lançamento de oferta concorrente constitui fun-damento de revogação de “ofertas voluntárias” limita a estas últimas esse direito de revogação. Em segundo lugar, e atendendo a um argumen-to de natureza substancial, a natureza da OPA obrigatória resulta precisamente de um dever legal de lançamento da oferta por força da ultra-passagem de determinadas fasquias relevantes de direitos de voto. Atribuir ao oferente obrigar a possibilidade de revogar a oferta em caso de lançamento de OPA concorrente, seria contra-riar a natureza da OPA obrigatória e a sua fonte que é a lei152. A solução contrária seria aliás injusta para os sujeitos que, em condições nor-mais, estão obrigados ao lançamento de OPA pois têm que pagar o prémio de controlo da sociedade visada, enquanto que o oferente obri-gado ao lançamento, na pendência de OPA voluntária, teria a possibilidade de revogar a sua oferta, não partilhando aquele prémio de controlo. Este é um dos pontos da presente problemática em que não se aplica o regime das ofertas con-correntes, dando-se prevalência ao da OPA obrigatória.

e) Revogação das Aceitações Anteriores Os titulares de valores mobiliários, que aceita-ram a OPA obrigatória, têm que ter o direito de revogar as suas aceitações até ao último dia do

período de aceitações, não podendo ser excluí-do tal direito só porque a oferta inicial aceite era obrigatória. A adequada tutela dos destina-tários da oferta exige que lhes seja dada a possi-bilidade de aceitar, entre as ofertas em concor-rência, a que melhores condições financeiras lhes oferece pelo que, caso seja lançada OPA concorrente ou revista uma oferta em concor-rência, aqueles têm que poder revogar as decla-rações de aceitação anteriormente emitidas de forma a poderem aceitar a nova oferta ou a oferta revista. Esta solução é também imposta pela igualdade e concorrência, enquanto pilares do mercado de capitais e princípios estruturan-tes da disputa pela aquisição da sociedade, pois os destinatários não podem ficar aprisionados a qualquer das ofertas em concorrência, benefi-ciando injustificadamente OPA inicial e preju-dicando a concorrência pela aquisição da socie-dade.

f) Revisão da Oferta O oferente sujeito ao dever de lançamento tem o direito de rever, de forma facultativa (artigo 184.º) ou em resposta ao lançamento de OPA concorrente ou à revisão de ofertas em concor-rência (artigo 185.º-B, n.º 1), os termos da sua oferta, limitando-se, todavia, tal revisão à con-trapartida pois a oferta obrigatória é geral e incondicionada. Em relação à faculdade de revisão prevista no artigo 185.º-B, n.º 1 (e conforme já referido na subsecção d) da presente Secção), apesar de a letra da lei parecer, numa primeira análise, afastar tal entendimento153, ela não exclui de forma liminar a aplicação do preceito às OPAs

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152- Conforme se referiu, a igualdade e concorrência pela aquisição da sociedade visada, em particular o level playing field, saem prejudicados (vide Título II Articulação do Regime Jurídico da OPA Concorrente com o da OPA Obrigatória, Capítulo A) OPA Obrigatória na pendência de OPA Voluntária, Secção 3. OPA Concorrente e Obrigatória – Articulação entre o regime da OPA Obrigatória e o da OPA Concorrente em função da Tutela dos Destinatários da Oferta, Subsecção d) Direitos dos Oferentes Anteriores supra). 153- Cfr. Título II. Articulação do Regime Jurídico da OPA Concorrente com o da OPA Obrigatória, Capítulo A) OPA Obrigatória na pendência de OPA Voluntária, Secção 3. OPA Concorrente e Obrigatória – Articulação entre o regime da OPA Obrigatória e o da OPA Concorrente em função da Tutela dos Destinatários da Oferta, Subsecção f) Revisão da Oferta supra.

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obrigatórias. Além dos argumentos aduzidos supra154, cumpre referir a OPA obrigatória ini-cial, uma vez lançada OPA voluntária concor-rente, adquire igualmente a natureza de oferta em concorrência. O lançamento de OPA con-corrente altera por completo o cenário inicial de simples oferta obrigatória para abrir a corrida pela aquisição da sociedade visada, tornando-se a oferta obrigatória numa das diversas ofertas em concorrência155. Julgo, por conseguinte, que a expressão “qualquer oferente” deve ser objec-to de uma interpretação extensiva no sentido de abranger também as ofertas obrigatórias iniciais quando, na sua pendência, seja lançada OPA voluntária concorrente, atribuindo-se ao oferen-te obrigado a faculdade de rever a sua oferta em resposta ao lançamento ou à revisão das ofertas voluntárias. O mesmo raciocínio é válido em relação ao artigo 184.º do Cód.VM, ainda que porventura de forma menos intensa. Conforme referido anteriormente, a letra da lei parece, numa pri-meira análise, excluir a faculdade de revisão da oferta pelo oferente obrigado na medida em que o preceito se dirige primacialmente às ofertas voluntárias156. Contudo, este preceito deve ser aplicado com as devidas adaptações, isto é, reconhecendo que o seu campo de aplicação natural são as ofertas voluntárias mas adaptan-do-o de forma a apreender as especificidades

das ofertas obrigatórias. Por outro lado, a expressão “oferente”, ainda que dirigida prima-cialmente aos oferentes voluntários, não restrin-ge o seu campo de aplicação a tais oferentes, podendo ser objecto de interpretação extensiva no sentido de abranger igualmente os oferentes obrigados. Por último e tal como se demons-trou, a OPA obrigatória inicial torna-se, uma vez lançada a OPA voluntária concorrente, mais uma das ofertas em concorrência e os mecanis-mos de revisão do artigo 184 e 185.º-B, n.º 1 são muito distintos157.

g) Revogação da Oferta Voluntária Concorrente

O lançamento posterior de uma outra oferta concorrente, quer seja voluntária ou obrigatória, confere ao primeiro oferente voluntário concor-rente o direito de retirar a sua oferta nos termos do artigo 185.º-B, n.º 4. Não há nenhum interes-se relevante que seja posto em causa com esta solução.

h) Prazo de Lançamento e da Oferta

O prazo de lançamento da oferta concorrente será o do artigo 185.º-A.º, n.º 1, uma vez que, neste caso, não se verificam os riscos supra mencionados na hipótese de OPA obrigatória concorrente na pendência de oferta voluntária158.

154- Cfr. Título II. Articulação do Regime Jurídico da OPA Concorrente com o da OPA Obrigatória, Capítulo A) OPA Obrigatória na pendência de OPA Voluntária, Secção 3. OPA Concorrente e Obrigatória – Articulação entre o regime da OPA Obrigatória e o da OPA Concorrente em função da Tutela dos Destinatários da Oferta, Subsecção f) Revisão da Oferta supra. 155- O novo cenário concorrencial requer, naturalmente, uma mudança das normas jurídicas aplicáveis, permitindo ao oferente obrigado disputar de forma igual a aquisição da sociedade visada ainda que sem retirar o carácter obrigatório da sua oferta. A OPA obrigatória passa a ser perspectivada como OPA em concorrência sem que se negligencie o seu carácter obrigatório. 156- Cfr. Capítulo II. Articulação do Regime Jurídico da OPA Concorrente com o da OPA Obrigatória, Secção A) OPA Obrigatória na pendência de OPA Voluntária, ponto 3. OPA Concorrente e Obrigatória – Articulação entre o regime da OPA Obrigatória e o da OPA Concorrente em função da Tutela dos Destinatários da Oferta, alínea f) Revisão da Oferta supra. 157- Para mais desenvolvimentos sobre os fundamentos de cada uma destas faculdades legais, vide Capítulo II. Articulação do Regime Jurídico da OPA Concorrente com o da OPA Obrigatória, Secção A) OPA Obrigatória na pendência de OPA Voluntária, ponto 3. OPA Concorrente e Obrigatória – Articulação entre o regime da OPA Obrigatória e o da OPA Concorrente em função da Tutela dos Destinatários da Oferta, alínea f) Revisão da Oferta supra. 158- Cfr. Capítulo II. Articulação do Regime da OPA Concorrente com o da OPA Obrigatória, Secção A) OPA Obrigatória na pendência de OPA Voluntária, ponto 3. OPA Concorrente e Obrigatória – Articulação do Regime Jurídico da OPA Concorrente com o da OPA obrigatória em função da Tutela dos Destinatários da Oferta, alínea h) Prazo de Lançamento e da Oferta supra.

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Já quanto ao prazo da oferta, a norma aplicável será o artigo 185.º-A, n.º 3, sendo o prazo da oferta voluntária concorrente coincidente com o da OPA obrigatória pelos motivos expostos supra159.

i) Conclusões

Em conclusão, a aplicação quase exclusiva do regime jurídico das OPAS concorrentes à OPA voluntária concorrente lançada na pendência de OPA obrigatória permite, por um lado, salva-guardar a natureza obrigatória daquela oferta e, por outro lado, garantir a igualdade e concor-rência na disputa pela aquisição da sociedade estabelecendo um level playing field e assumin-do, em ambos os casos como pano de fundo, a tutela dos destinatários da oferta. Acresce que o entendimento ora defendido evita situações injustas e salvaguarda a clareza e transparência do mercado ao devolver ao racional económico-financeiro inerente a este último a decisão sobre a aquisição de controlo da sociedade. A OPA obrigatória inicial, uma vez lançada OPA voluntária concorrente, convola-se desta forma numa oferta obrigatória em concorrência. C) OPA OBRIGATÓRIA CONCORRENTE NA PENDÊNCIA DE OPA OBRIGATÓRIA INICIAL 1. APRESENTAÇÃO DA PROBLEMÁTICA A última situação de potencial conflito entre as normas do regime jurídico da OPA concorrente e os da OPA obrigatória verifica-se quando há

uma ultrapassagem dos limiares de direitos de voto relevantes para efeitos do dever de lança-mento de OPA na pendência de uma OPA obri-gatória. Imagine-se o seguinte exemplo: A adquire mais de um terço dos direitos de voto da sociedade B e, por força do artigo 187.º, n.º 1, lança uma OPA obrigatória sobre B; em seguida, C adqui-re também um terço dos direitos de voto daque-la sociedade. Será que C está obrigado a lançar uma OPA? E qual será o regime aplicável a tal oferta? 2. SOLUÇÃO PROPOSTA Julgo que C estará obrigado a lançar OPA e que a norma a aplicar a cada caso concreto resultará da articulação entre o regime da OPA obrigató-ria e OPA concorrente nos termos supra expos-tos em relação ao lançamento de OPA obrigató-ria na pendência de OPA voluntária. Assim, esta oferta sujeita não só ao regime da OPA concorrente, mas também ao da OPA obrigató-ria, sendo simultaneamente uma oferta obriga-tória e concorrente. Quanto à forma de articulação e aos fundamen-tos subjacentes à resolução de cada conflito concreto entre as normas dos diferentes regimes jurídicos, remete-se para as soluções e funda-mentação expostas no Título II. Articulação do Regime da OPA Concorrente com o da OPA Obrigatória, Capítulo A) OPA Obrigatória na pendência de OPA Voluntária, Secção 3. OPA Concorrente e Obrigatória – Articulação entre OPA Obrigatória e OPA Concorrente em fun-ção da Tutela dos Destinatários da Oferta.

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159- Cfr. Título II. Articulação do Regime Jurídico da OPA Concorrente com o da OPA Obrigatória, Capítulo A) OPA Obrigatória na pendência de OPA Voluntária, Secção 3. OPA Concorrente e Obrigatória – Articulação entre o regime da OPA Obrigatória e o da OPA Concorrente em função da Tutela dos Destinatários da Oferta, Subsecção h) Prazo supra.

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III. AQUISIÇÕES PARALELAS O problema das aquisições paralelas colocou-se pela primeira vez no ordenamento jurídico ale-mão, no âmbito da oferta pública de aquisição lançada pela Bayer AG sobre a Schering AG. A Bayer AG adquiriu, através de uma sociedade por si dominada – a Dritte BV GmbH – e no contexto da referida OPA, acções da Schering AG por um preço superior ao da contrapartida da oferta. O ordenamento jurídico alemão deter-mina que, caso o oferente (directa ou indirecta-mente) adquira acções da sociedade visada por um preço superior à contrapartida da oferta pen-dente, haverá lugar a uma subida automática da contrapartida (§ 4 da Secção 31 da WpÜG) não estando regulada a forma como tem lugar esse aumento automático da contrapartida (e.g. se deve ou não implicar uma alteração dos docu-mentos da oferta). Contudo, aquela aquisição foi efectuada no período da oferta em que já não era admissível a alteração da oferta (§ 21 (6) da WpÜG) em virtude da extensão do prazo da mesma por renúncia das condições da oferta efectuada pela Bayer AG (§ 21 (1) nr. 4 e § 5 da WpÜG). As aquisições paralelas acima da con-trapartida da oferta pela Bayer AG obrigaram a uma correspondente subida desta contrapartida e a uma alteração dos termos da oferta, que foi, todavia, implícita uma vez que não foi efectua-do qualquer anúncio de alteração dos termos da oferta e extensão da garantia do financiamento relativamente ao montante aumentado do valor da oferta nos termos conjugados do § 21 (2) e (3), do § 13 e do § 14 (3) da WpÜG. A solução

adoptada não foi todavia pacífica. A opinião actualmente dominante na doutrina alemã defende, à semelhança do regulador, a subida automática da contrapartida nos termos do § 31 (4) da WpÜG em prejuízo da aplicação do § 21 da WpÜG. De acordo com a opinião dominante, não haverá sequer lugar a um anún-cio em separado da subida da contrapartida ou uma forma diferente de anúncio (através de alteração do documento da oferta)160. Posição diferente assumem OESCHLER e BERRAR que sustentam que o oferente tem que, por analogia com o § 21 (3) e o § 13 (1) da WpÜG, submeter uma nova garantia financeira que cubra o montante da contrapartida que foi aumentado conquanto a contrapartida da oferta em questão seja em dinheiro161. Já CHRISTOPH ROTHENFUSSER, ULRIKE FRIESE-DORMANN e NORBERT RIEGER defendem que o aumento da contrapartida por força de aquisições paralelas do oferente deve ser considerado uma alteração aos termos da oferta para efeitos do § 21 da WpÜG e, nessa medida, sujeito às mesmas limitações e requisi-tos da subida da contrapartida daí resultantes. Assim, as restrições temporais às alterações da oferta aplicar-se-ão também às aquisições para-lelas, aí se incluindo o aumento da contraparti-da da oferta. Caso esta proibição não seja observada, aqueles autores defendem que o BaFin (autoridade reguladora alemã) deverá interditar, de imediato, a oferta162. A argumenta-ção expendida por estes autores é impressiva.

160- Cfr. DIEKMAN, in Baums/Thoma, Loseblatt, § 21 WpÜG, p. 14; NOACK, in Schwark KapitalmarktrechtsKommentar, 3.ª edição, 2004, § WpÜG, p. 16; HAARMANN, in Haarmann/Schüppen, 2.ª edição, 2005, § 31 WpÜG, p. 155; e SHRÖDER, in Haarmann/Schüppen, 2.ª edição, 2005, § 21 WpÜG, p. 13. 161- Cfr. OESCHLER, in Ehricke/Ekkenga/Oechsler, 2003, § 31 WpÜG, p. 38; BERRAR, ZBB, 2002, p. 174 e 179. 162- Cfr. CHRISTOPH ROTHENFUSSER/ULRIKE FRIESE-DORMANN/NORBERT RIEGER, ob. cit., p. 157.

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Em primeiro lugar, criticam a redução significa-tiva da protecção dos destinatários da oferta que decorre da solução prevalente na doutrina alemã. Com efeito, apesar das correcções espe-cíficas efectuadas por alguns autores163 (e.g. extensão da garantia de financiamento e forma de anúncio do aumento da contrapartida) permi-tirem minorar em parte os prejuízos para os destinatários, a verdade é que estes ficam (i) sem a possibilidade de exercer o seu direito de revogação das aceitações entretanto dadas a outra oferta (§ 21 (4) da WpÜG), (ii) sem o período mínimo de reflexão de duas semanas dos termos das ofertas em concorrências que a lei alemã lhes atribui (§ 21 (5) e (6) da WpÜG) e (iii) sem a posição do órgão de administração da sociedade visada sobre a nova contrapartida oferecida (§ 27 (1) da WpÜG) 164. Embora a falta de protecção dos destinatários seja mais notória no âmbito das ofertas concorrentes, ela também se faz sentir no caso de oferta única, porque, se o período de aceitação da oferta já decorreu e os destinatários só não aceitaram a oferta porque não sabiam que a contrapartida oferecida seria elevada nos termos em que o foi, os destinatários já não têm a possibilidade de aceitar a oferta revista165. É assim claro o tratamento desigualitário dos destinatários. Além disso, os mesmos autores defendem que o mero anúncio da subida contrapartida não satis-faz a necessidade de clareza, verdade e precisão dos documentos da oferta que, ao não poderem ser alterados por força do § 21 (6) da WpÜG, se

tornam incorrectos e não verdadeiros166. Curioso é que essa falta de veracidade acaba por resultar da própria lei ao impor a subida da contraparti-da da oferta! Em segundo lugar, os referidos autores susten-tam que a ratio das normas sobre aquisições paralelas (em particular o § 31 (4) da WpÜG), que reside na protecção dos destinatários contra o tratamento desigualitário, não é conciliável uma interpretação que concedesse ao oferente o poder discricionário de escolher o nível de pro-tecção a atribuir àqueles, dependendo da forma de aumento da contrapartida escolhida pelo oferente167. Aliás, a comparação com o § 31 (3) da WpÜG (que também prevê uma extensão da contrapartida apesar de em moldes diferentes do (4) do mesmo preceito168 e que conduz à aplicação do § 21 da WpÜG) demonstra clara-mente que o legislador alemão não quis privile-giar as alterações decorrentes das aquisições paralelas. A protecção dos destinatários da ofer-ta, ratio do § 31 (4) da WpÜG, exige a aplica-ção do § 21 da WpÜG e consequente proibição da alteração dos termos da oferta (inclusive subida da contrapartida), caso contrário haverá lugar a uma redução substancial da protecção dos destinatários169. Em terceiro lugar, os mesmos autores defendem que o argumento literal não prejudica, ao invés do que afirma a opinião dominante na doutrina alemã, a interpretação por eles defendida. Na verdade, o § 21 da WpÜG não explicita a forma

OPA CONCORRENTE : 75

163- Cfr. OESCHLER, ob. cit., § 31 WpÜG, p. 37; BERRAR, ZBB, 2002, p. 174 e 179. 164- Cfr. CHRISTOPH ROTHENFUSSER/ULRIKE FRIESE-DORMANN/NORBERT RIEGER, ob. cit., p. 155. 165- Cfr. CHRISTOPH ROTHENFUSSER/ULRIKE FRIESE-DORMANN/NORBERT RIEGER, ob. cit., p. 155. 166- Vide Rege, BT-Drucks. 14/7034, 41. 167- Conforme se verificou supra esse nível de protecção é inferior. 168- Nos termos deste preceito, o oferente tem que oferecer contrapartida alternativa em dinheiro caso este, ou pessoas que com ele actuem concertadamente, adquiram, durante a pendência da oferta ou nos seis meses anteriores, pelo menos 5% das acções da sociedade visada contra pagamento em dinheiro. Contudo, esta é uma mera obrigação do oferente e não uma imposição legal como é o caso da subida obrigatória da contrapartida do § 31 (4) da WpÜG. 169- Cfr. CHRISTOPH ROTHENFUSSER/ULRIKE FRIESE-DORMANN/NORBERT RIEGER, ob. cit., p. 155.

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como a alteração dos termos da oferta é efec-tuado, ela está redigido de uma forma aberta como se constata pelas palavras iniciais do § 21 (1) da WpÜG (“o oferente pode”). Assim, a aplicação daquele § da WpÜG não se pode limitar aos casos de alteração voluntária da oferta, ela abrange também os casos em que essa modificação resulta da lei, nomeadamente do § 31 (4) da WpÜG. CHRISTOPH ROTHENFUSSER, ULRIKE FRIESE-DORMANN e NORBERT RIEGER defendem assim uma interpretação extensiva do § 21 da WpÜG que será directamente aplicável às aquisições paralelas ou, caso tal não seja pos-sível por se considerar que há uma lacuna legal170, terá que ser efectuada uma aplicação analógica do mesmo preceito. Apesar de não existir no ordenamento jurídico português um preceito imperativo idêntico ao § 31 (4) da WpÜG, o problema das “aquisições paralelas” também se poderá colocar. Nos ter-mos do artigo 180.º, n.º 3, alínea a) do Cód.VM, a CMVM pode, no âmbito de oferta pública de aquisição voluntária, determinar a revisão da contrapartida se, por efeito de aquisições de valores mobiliários objecto da oferta efectua-das, após a publicação do anúncio preliminar (e dentro ou fora de mercado regulamentado), pelo oferente ou por pessoas que com ele estejam em alguma das situações do artigo 20.º, a contra-partida não se mostrar equitativa. Diferente-mente, caso a oferta fosse obrigatória, o oferen-te estaria obrigado a aumentar a contrapartida para o valor mais alto pago pelos valores mobiliários assim adquiridos (artigo 180.º, n.º 3 alínea b)).

Imagine-se agora o seguinte exemplo: A lança uma OPA sobre B, oferecendo 20 euros por cada acção; entretanto C lança uma OPA con-corrente sobre B; por sua vez, A, ao constatar que a sua oferta não terá sucesso, decide adqui-rir, 4 dias antes do fim do prazo da oferta (ou seja, depois do prazo para a revisão da oferta – artigo 184.º), acções de B a 30 euros. Será que a CMVM deve determinar a subida da contrapar-tida da OPA de A para 30 euros por acção? Ou deve a CMVM ignorar este tratamento desigua-litário dos accionistas e não permitir uma revi-são em alta da contrapartida quando a modifica-ção dos termos da oferta já não era admissível? Julgo que esta última solução será a mais correcta caso haja vários oferentes em concor-rência171. Em primeiro lugar, e tal como apontam CHRIS-

TOPH ROTHENFUSSER, ULRIKE FRIESE-DORMANN e NORBERT RIEGER no direito ale-mão, a elevação da contrapartida poderia dar lugar a uma redução substancial da protecção dos destinatários, pois estes poderiam ficar sem um período mínimo de reflexão dos termos das ofertas em concorrência172 e sem a posição do órgão de administração da sociedade visada sobre a nova contrapartida oferecida caso a oferta já estivesse perto do seu termo. Este pre-juízo poderia ser minorado se o outro oferente requeresse a prorrogação do prazo da oferta nos termos do artigo 129.º, mas a protecção dos destinatários ficaria dependente da decisão de um dos oferentes em concorrência e não da lei! Com efeito, nem o artigo 180.º, n.º 3 alínea a) nem o artigo 129.º conferem à CMVM o poder de prorrogar o prazo da oferta, pelo que a

170- Neste sentido, vide OESCHLER, ob. cit., p. 37; BERRAR, ZBB, 2002, p. 179. 171- Segue-se, portanto, a posição de CHRISTOPH ROTHENFUSSER, ULRIKE FRIESE-DORMANN e NORBERT RIEGER ainda que com argumentos diferentes (cfr. CHRISTOPH ROTHENFUSSER/ULRIKE FRIESE-DORMANN/NORBERT RIEGER, ob. cit., p. 157). 172- Não perdem, contudo e ao contrário do direito alemão, o direito de revogarem as suas aceitações pois este estende-se até ao último dia do período de aceitações (artigo 185.º-A, n.º 6).

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protecção dos destinatários pode reduzir-se substancialmente caso algum dos demais ofe-rentes em concorrência não requeresse a prorro-gação do prazo. Em segundo lugar, o princípio da igualdade de tratamento dos destinatários da oferta – princí-pio estruturante do regime das ofertas públicas (artigo 112.º, n.º 1) – tem que ceder lugar à igualdade entre oferentes, à transparência e cla-reza do mercado, à concorrência legal pela aquisição da sociedade visada e à própria pro-tecção dos destinatários. Aliás, julgo que se poderá defender que não há uma violação do artigo 112.º do Cód.VM porque o artigo 180.º, n.º 3 alínea a) atribui um poder discricionário à CMVM que, ponderadas as circunstâncias do caso, pode, apesar de considerar que a contra-partida não é equitativa, não elevar a mesma por essa elevação implicar uma redução da pro-tecção dos destinatários da oferta. O tratamento igualitário dos destinatários insere-se (e decor-re) na temática mais geral que é a protecção destes, pelo que não deve a densificação con-creta ou ramificação (princípio do tratamento igualitário) de um princípio geral (protecção dos destinatários da oferta) redundar no prejuí-zo deste último. É esse, implicitamente, o entendimento de CHRISTOPH ROTHENFUSSER, ULRIKE FRIESE-DORMANN e NORBERT RIEGER que, a propósito do § 31 (4) da WpÜG, confe-rem um sentido mais amplo à ratio da elevação da contrapartida identificando-a com a protec-ção dos destinatários, pelo que, sendo esta subs-tancialmente reduzida pela elevação da contra-partida, deverá a mesma ser recusada173. Ainda que assim não se entenda, o tratamento desigua-litário dos destinatários poderia ser mitigado se o Cód.VM previsse a possibilidade de sanciona-

mento dos destinatários da oferta que alienaram as suas acções ao oferente a preço superior ao da contrapartida da oferta e desde que estes o tivessem efectuado fora de mercado regulamen-tado ou no mercado de transacção de grandes lotes de acções. Nestes casos, é fácil a identifi-cação do alienante das acções (beneficiário ile-gítimo da violação de uma norma legal pelo oferente), pelo que o mesmo deveria ser ade-quadamente sancionado perdendo, pelo menos, a diferença do valor recebido pelas acções face à contrapartida oferecida na oferta pelo respec-tivo oferente. Além disso, este nunca poderá alegar o desconhecimento do valor da contra-partida oferecida pois ela é pública. Por fim, a situação em análise configura, a meu ver, um abuso do direito nos termos do artigo 334.º do Código Civil. Uma das modalidades de abuso do direito é o chamado tu quoque que consiste na seguinte “ideia básica”: “aquele que viole uma norma jurídica não pode tirar partido da violação exigindo, a outrem, o acatamento de consequências daí resultantes: turpitudinem suam allegans non auditus”174. Com efeito, existindo diferentes oferentes, não pode um deles beneficiar da violação de uma norma legal (proibição da revisão da sua oferta) para daí retirar proveitos próprios (elevação da contra-partida e possibilidade acrescida de sucesso da sua oferta) em detrimento dos demais. Claro que a consequência jurídica da norma violada (elevação da contrapartida) não é automática, ela depende do exercício de um poder discricio-nário da CMVM. Contudo, o regulador tem que ponderar, na sua apreciação do carácter equita-tivo da contrapartida, a possibilidade de a ele-vação desta se traduzir num abuso de um direito na modalidade de tu quoque, caso em que a mesma deverá ser negada.

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173- Cfr. CHRISTOPH ROTHENFUSSER/ULRIKE FRIESE-DORMANN/NORBERT RIEGER, ob. cit., p. 156. 174- Cfr. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de direito Civil Português, Tomo I, Parte Geral, 2.ª Edição, 2000, p. 262.

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Diferentemente, caso não haja oferentes em concorrência, a CMVM deve elevar o valor da contrapartida apesar de legalmente já não ser admitida a revisão da oferta175. Esta “ilegalidade” não gera qualquer prejuízo para o mercado, a concorrência, ou para a sociedade visada. Já os destinatários da oferta veriam novamente a sua protecção substancialmente reduzida pois estes poderiam ficar sem um período mínimo de reflexão dos termos das ofertas em concorrências, sem a posição do órgão de administração da sociedade visada sobre a nova contrapartida oferecida caso a oferta estivesse perto do seu termo. Contudo, neste caso, o princípio da igualdade de trata-mento dos destinatários da oferta – princípio estruturante do regime das ofertas públicas (artigo 112.º, n.º 1) – deve prevalecer apesar de, lateralmente, gerar uma redução da protecção

dos destinatários. A reforçar este entendimento estão os demais interesses envolvidos, nomea-damente os do mercado, da sociedade visada e dos destinatários que aceitaram a oferta e que seriam tratados de forma desigualitária caso a oferta não fosse revista em alta. Aliás, CHRISTOPH ROTHENFUSSER, ULRIKE FRIESE-DORMANN e NORBERT RIEGER reconhe-cem que a redução da protecção dos destinatá-rios é mais intensa se houver ofertas em concor-rência176. Por último, convém apenas referir que o oferen-te que adquira acções, na pendência da sua ofer-ta, acima do valor da contrapartida oferecida será, em qualquer caso, punido pela prática de contra-ordenação muito grave nos termos do artigo 393.º, n.º 2, alínea j), e artigo 388.º, n.º 1, alínea a), do Cód.VM).

175- Segue-se, assim, a solução proposta por DIEKMAN, NOACK, HAARMANN e SHRÖDER (cfr. DIEKMAN, ob. cit., p. 14; NOACK, ob. cit., p. 16; HAARMANN, ob. cit., p. 155; e SHRÖDER, ob. cit., p. 13). 176- Cfr. CHRISTOPH ROTHENFUSSER/ULRIKE FRIESE-DORMANN/NORBERT RIEGER, ob. cit., p. 155.

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1. DIREITO APLICÁVEL O regime jurídico regulador do processo de perda da qualidade de sociedade aberta consta dos artigos 27.º a 29.º do Código dos Valores Mobiliários1. De acordo com o artigo 27.º, n.º 1, uma socie-dade pode perder a qualidade de sociedade aberta quando:

a. Um accionista passe a deter, em conse-quência de oferta pública de aquisição, mais de 90% dos direitos de voto calcu-lados nos termos do artigo 20.º;

b. A perda da referida qualidade seja deli-berada em assembleia geral da socieda-de por uma maioria não inferior a 90% do capital social e em assembleias dos titulares de acções especiais e de outros valores mobiliários que confiram direito à subscrição ou aquisição de acções por maioria não inferior a 90% dos valores mobiliários em causa;

c. Tenha decorrido um ano sobre a exclu-são da negociação das acções em merca-do regulamentado, fundada na falta de dispersão pelo público.

Para que seja declarada a perda da qualidade de sociedade aberta ao investimento do público de uma sociedade é pressuposto necessário que a sociedade seja sociedade com o capital aberto ao investimento do público ou “sociedade aber-ta” segundo um dos critérios estabelecidos no artigo 13.2. Depois de analisados cada um des-ses critérios, Paula Costa e Silva considera que é aberta a sociedade cujo capital pode ser subscrito ou adquirido pelo público, directa ou indirectamente, e desde que esse público seja constituído por pessoas residentes ou com esta-belecimento em Portugal3 . O artigo 28.º do Código regula a forma, o con-teúdo e o momento em que devem efectuar-se

SOBRE A PERDA DA QUALIDADE DE SOCIEDADE ABERTA CONCEIÇÃO AGUIAR*

* - Técnica do Gabinete de Estudos da CMVM. As opiniões expressas no presente texto são da exclusiva responsabilidade da autora, não podendo ser entendidas como exprimindo qualquer entendimento da CMVM. 1- Doravante as referências a preceitos legais sem identificação do diploma correspondem ao Código dos Valores Mobiliários. 2- Sobre cada um destes critérios, vide António Pereira de Almeida, Sociedades abertas, in Direito dos Valores Mobiliários, Vol VI, págs. 11-14. Quanto à referência feita por este autor à situação de aquisição da qualidade de sociedade aberta aditada pelo artigo 204.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2007, de 18 de Março, parece-nos que a mesma deverá ser balizada pelos critérios de definição de oferta pública, em particular quanto ao número de destinatários consagrado no artigo 109.º n.º 3 alínea c), de acordo com o qual considera-se também pública a oferta dirigida a, pelo menos, 100 pessoas que sejam investidores não qualificados com residência ou estabelecimento em Portugal. 3- In Direito dos Valores Mobiliários, Vol. V, pág. 332. A autora discorre sobre o conceito de sociedade aberta no contexto de um estudo sobre o Domínio de sociedade aberta e respectivos efeitos (pág.325-342). A Autora analise, de forma muito crítica, cada um dos critérios estabelecidos no artigo 13.º/1 para a aquisição da qualidade de sociedade aberta.

O presente texto pretende levar a cabo um levantamento histórico do instituto da perda da qualidade de sociedade aberta, contraface da regulação da sua aquisição desde há dois séculos, com especial atenção à perda baseada no decurso de um ano sobre a exclusão da negociação das acções em mercado regulamentado, fundada na falta de dispersão pelo público.

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80 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

as publicações necessárias à publicidade da decisão da CMVM sobre a perda da qualidade de sociedade aberta. A publicação é feita por iniciativa e a expensas da sociedade, no boletim do mercado regulamentado onde os valores mobiliários estavam admitidos à negociação e por um dos meios referidos no artigo 5.º4. A perda da qualidade de sociedade aberta fun-dada em deliberação de assembleia-geral de accionistas deve ser acompanhada de indicação do accionista que se compromete a adquirir os valores mobiliários detidos pelas pessoas que não tenham votado favoravelmente alguma das deliberações em assembleia (27.º, nº 3). A con-trapartida da aquisição calcula-se nos termos do artigo 188.º (ex vi art. 27.º, º 4). Quando a declaração de perda da qualidade de sociedade aberta se baseie no artigo 27.º, n.º 1 alínea b), i.e., decorra da supra referida delibe-ração em assembleia geral, a publicação deve mencionar os termos da aquisição dos valores mobiliários pelo accionista que for indicado pela sociedade e deve ser repetida no fim do 1.º e do 2.º meses do prazo para o exercício do direito de alienação. O artigo 29.º estabelece os efeitos que para a sociedade decorrem da declaração de perda da qualidade de sociedade aberta. De acordo com este preceito, a declaração é eficaz a partir da publicação da decisão favorável da CMVM e implica a imediata exclusão da negociação em mercado regulamentado das acções da socieda-de e dos valores mobiliários que dão direito à sua subscrição ou aquisição, ficando vedada a sua readmissão no prazo de um ano.

2. O CONCEITO DE SOCIEDADE COM SUBSCRIÇÃO PÚBLICA, DE SOCIEDADE DE SUBSCRIÇÃO PÚBLICA E DE SOCIEDADE ABERTA – RETROSPECTIVA LEGISLATIVA DA SUA AQUISIÇÃO Percorrendo em retrospectiva o conceito de sociedade aberta, destacamos a seguinte evolução:

2.1. O artigo 164.º do Código Comercial, apro-vado por Carta de Lei de 28 de Junho de 1988, (constituição da sociedade com apelo a subscri-ção pública5) estatuía o seguinte:

Quando para a constituição definitiva das sociedades anónimas se houver de recorrer a subscrição pública devem os fundadores cons-tituir provisoriamente a sociedade, outorgando a respectiva escritura. (…)

§ 2º Satisfeitos os requisitos exigidos no pará-grafo anterior, poderá formular-se o programa para a subscrição que deve indicar: (…)

3º As entradas e as condições em que devem realizar-se; (…)

6º Convocação dos subscritores para uma assembleia, que se verificará dentro de três meses, para a constituição definitiva da socie-dade; (…)

§ 4º Recolhido o produto da subscrição, os fun-dadores apresentarão no dia fixado à assem-bleia os documentos justificativos de haverem satisfeito às condições exigidas no artigo 162º (Requisitos da constituição definitiva); (…)6 Em 1972, o Decreto-lei n.º 55/72, de 16 de Fevereiro,

4- O artigo 5.º estabelece que, na falta de disposição legal em sentido diferente, as publicações obrigatórias são feitas através de meio de comunicação de grande difusão em Portugal que seja acessível aos destinatários da informação (n.º 1). O n.º 2 remete para regulamento da CMVM a fixação dos meios de comunicação adequados a cada tipo de publicação. O regulamento da CMVM n.º 4/2004 sobre Deveres de Informação, publicado no DR II Série, de 11.06.04, estabelece no artigo 1.º os meios gerais de divulgação dos deveres de informação consagrados no Código dos Valores Mobiliários. Entre 10 de Abril e 12 de Maio de 2008, decorreu a consulta pública sobre a proposta de revisão deste Regulamento, pelo que não nos deteremos, por ora, nem sobre as soluções vigentes nem sobre as futuras. 5- As epígrafes dos artigos não constavam do texto oficial. 6- Esta disposição foi revogada pelo DL 282/86, de 2 de Setembro, que aprovou o CSC, artigo 3º (Revogação do direito anterior), nº 1 alínea a) (104.º a 206.º do Código Comercial).

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Fevereiro, ultrapassou a mera previsão das for-mas de aquisição prévia (ou originária) de tal qualidade, e fixou as normas a observar na emissão de acções das sociedades comerciais e adopta medidas que visam a protecção dos investimentos particulares em valores mobiliá-rios. Nos termos do artigo 7.º, e para efeitos deste diploma, considerava-se que existia oferta ao público de títulos ou valores mobiliários sempre que se verificasse um dos seguintes requisitos:

a. Ser efectuada com recurso a quaisquer meios publicitários a promoção da venda dos títulos ou valores mobiliários ou a identificação dos eventuais subscritores ou compradores;

b. Não estar previamente identificada a totalidade dos subscritores ou comprado-res;

c. Ser superior a cem o número de possíveis subscritores ou compradores.

O diploma inseriu-se no efémero renascimento das bolsas de valores entre 1972 e 1974, data que determinou a revogação das respectivas disposições do Código Comercial de 1888 des-conformes ao giro bolsista, e do Decreto de 10 de Outubro de 1910. 2.2. Em 1978, o Decreto-Lei n.º 371/78, de 30 de Novembro desenvolveria as formas de aqui-sição prévia e a posteriori. O decreto-lei nº 371/787 fixou as regras sobre a emissão de acções e obrigações e sobre ofertas públicas de compra, venda ou troca de valores

mobiliários, estabelecendo para o efeito no arti-go 2.º e 3.º os conceitos de subscrição pública e particular: 1. Considera-se que a subscrição é particular

quando os valores se destinam exclusiva-mente a ser subscritos por um número predeterminado de pessoas singulares ou colectivas.

2. Nos casos não previstos no número anterior a subscrição será considerada pública.

Artigo 3.º (oferta pública de títulos) 1. Considera-se, para efeitos do presente diploma, que existe oferta pública de títulos ou valores mobiliários sempre que se verifique um dos seguintes requisitos:

a. Ser efectuada com recurso a quaisquer meios publicitários a promoção da tran-sacção dos referidos títulos ou valores ou a prévia identificação dos eventuais subscritores, adquirentes ou alienantes;

b. Não estar previamente identificada a totalidade dos subscritores, adquirentes ou alienantes.

2.3. Na década de oitenta seria aprovado o Código das Sociedades Comerciais, pelo Decreto-lei nº 262/86, de 2 de Setembro8. O artigo 284.º deste Código dispunha o seguinte: 1. Salvo quando da lei resulte o contrário, a expressão “sociedade com subscrição pública” compreende as sociedades constituídas com apelo a subscrição pública, as que num aumen-to de capital, tenham recorrido a subscrição pública e as sociedades cujas acções sejam cotadas na Bolsa.

7- Revogado pelo DL 23/87, de 13 de Janeiro. 8- Revogou os artigos 104º a 206º do Código Comercial (artigo 3º DL 282/86, de 2 de Setembro).

SOBRE A PERDA DE QUALIDADE DE SOCIEDADE ABERTA : 81

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2. A subscrição é pública, embora seja indirec-tamente efectuada por meio de instituição de crédito ou outra equiparada por lei para este efeito9. Com o relançamento do mercado de capitais nos finais dos anos oitenta, e o relançar da eco-nomia com a reabertura ao sector privado da generalidade dos sectores da economia, com o movimento reprivatizador e liberalizador, assis-tir-se-ia ao renascer do clima de confiança nas bolsas nacionais, sendo tomadas pelo então Ministro das Finanças, Miguel Cadilhe, uma série de medidas legislativas no domínio bancá-rio e dos valores mobiliários. Entre muitos outros, salientamos o Decreto-lei n.º 23/87, de 13 de Janeiro10, que estabeleceu normas sobre a oferta de valores mobiliários. De acordo com o seu artigo 3.º (oferta à subs-crição pública e oferta pública de transacção), 1. Considera-se, para efeitos do presente diplo-ma, que existe oferta à subscrição pública ou oferta pública de transacção de valores mobi-liários, sempre que uma ou outra não sejam reservadas a um número restrito de pessoas singulares ou colectivas. 3. A oferta de acções por sociedades cotadas em bolsa, ainda que não se verifique o requisito estabelecido no nº 1, é sempre havida como pública, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 2.º. 4. A oferta de valores mobiliários destinada simultaneamente à subscrição pública e parti-cular é sempre havida como pública.

5. Mediante portaria do MF podem ser estabe-lecidos montantes abaixo dos quais não pode-rão ser oferecidos valores mobiliários à subs-crição pública11, 12. 2.4. Em 1991 foi publicado o Código do Mer-cado de Valores Mobiliários13, aprovado pelo Decreto-lei nº 142-A/91, de 10 de Abril14. Este Código, também designado por Lei Sapateiro (do nome do seu autor, José Luís Sapateiro), traduziu uma autêntica revolução legislativa, em grande parte fruto do fenómeno de integra-ção financeira a nível comunitário, vg da liber-dade de circulação de capitais e liberalização dos respectivos mercados organizados (fenómeno a que não era alheio o despontar do movimento reprivatizador e desestatizador das bolsas). O intenso movimento regulatório a que se assistirá na década de noventa em Portugal não é alheio ao movimento de globalização finan-ceira, com um acentuado mimetismo do siste-ma de regulação norte-americano e anglo-saxónico, nem aos seus recentes escândalos decorrentes da verdadeira indústria de crimes de abuso de mercado (insider trading). O artigo 3.º, nº 1, alínea j), do Código, dispunha o seguinte15: 1. Para os efeitos deste diploma consideram-se:

j) Sociedades de subscrição pública – as sociedades que tenham parte ou a totali-dade do seu capital disperso pelo público

9- Este preceito foi revogado pelo DL 486/99, de 13 de Novembro, artigo 15.º n.º 1 alínea d). 10 - Revogou o DL nº 371/78, de 30 de Novembro, sobre emissão de acções e obrigações, e ofertas públicas de valores mobiliários. 11- Estes montantes foram estabelecidos pela Portaria n.º 282/87, de 7 de Abril, que, conjuntamente com o DL 23/87, de 13 de Janeiro, foi revogada pelo artigo 24.º do DL 142-A/91, de 10 de Abril, que aprovou o Código do Mercado dos Valores Mobiliários. 12- Também o CVM define oferta pública no seu artigo 109.º. A sociedade é aberta porque, entre outras situações, recorreu a uma oferta pública das suas acções, seja no momento da sua constituição seja posteriormente. São dois conceitos que estão interligados: o de sociedade aberta e o de oferta pública. 13- Revogado pelo DL 486/99, de 13 de Novembro (artigo 15.º Revogação). 14- Revogou o DL 23/87, de 13 de Janeiro (artigo 24.º Legislação revogada). 15- Com a redacção dada pelo DL 261/95, de 3 de Outubro.

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em virtude de se haverem constituído com apelo a subscrição pública, de, num aumento de capital, terem recorrido a subscrição pública, ou de as suas acções estarem ou haverem estado cotadas em bolsa ou terem sido objecto de oferta pública de venda ou de troca, ou de ven-da em bolsa, nos termos do artigo 366º do presente Código.

Presentemente, o disposto no artigo 13.º do Código dos Valores Mobiliários (CVM), apro-vado pelo Decreto-lei nº 486/99, de 13 de Novembro, estatui que: 1 - Considera-se sociedade com o capital aber-to ao investimento público, abreviadamente designada neste Código “sociedade aberta”:

a. A sociedade que se tenha constituído através de oferta pública de subscrição dirigida especificamente a pessoas com residência ou estabelecimento em Portu-gal;

b. A sociedade emitente de acções ou de outros valores mobiliários que confiram direito à subscrição ou à aquisição de acções que tenham sido objecto de oferta pública de subscrição dirigida especifi-camente a pessoas com residência ou estabelecimento em Portugal;

c. A sociedade emitente de acções ou de outros valores mobiliários que confiram direito à sua subscrição ou aquisição, que estejam ou tenham estado admitidas à negociação em mercado regulamenta-do situado ou a funcionar em Portugal;

d. A sociedade emitente de acções que tenham sido alienadas em oferta pública de venda ou de troca em quantidade superior a 10% do capital social,

dirigida especificamente a pessoas com residência ou estabelecimento em Portugal;

e. A sociedade resultante de cisão de uma sociedade aberta ou que incorpore, por fusão, a totalidade ou parte do seu património.

O artigo 7.º do Decreto-lei nº 486/99, de 13 de Novembro, esclarecia que As expressões “sociedade de subscrição pública” e “sociedade com subscrição pública”, utiliza-das em qualquer lei ou regulamento, conside-ram-se substituídas pela expressão “sociedade com capital aberto ao investimento do público” com o sentido que lhe atribui o artigo 13º do Código dos Valores Mobiliários. Actualmente e nos termos do artigo 14.º do Código dos Valores Mobiliários, a qualidade de sociedade aberta deve ser mencionada nos actos qualificados como externos pelo artigo 171.º do Código das Sociedades Comerciais. Ainda com relevância neste breve excurso his-tórico sobre o tema, o Decreto-lei n.º 53/2004, de 18 de Março16, que aprovou o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), dispõe no seu artigo 204.º, sob a epígrafe Qualidade de sociedade aberta, que é considerada sociedade com o capital aberto ao investimento do público a sociedade emitente de acções em que sejam convertidos créditos sobre a insolvência independentemente do con-sentimento dos respectivos titulares17. Pelo exposto, podemos verificar que o conceito variou entre o de sociedade com subscrição pública até 1995 (alteração ao Código do

16 - Alterado pelo Decreto-Lei n.º 282/2007, de 7 de Agosto. 17- Em nosso entender, esta consideração legal não deve ser entendida desligada de outros conceitos como o de oferta pública, consagrado no artigo 109.º do CVM, designadamente para efeitos do número mínimo de pessoas (100) que sejam investidores não qualificados com residência ou estabelecimento em Portugal (n.º 3/c)).

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Mercado de Valores Mobiliários), sociedade de subscrição pública após aquela data e até 1999 e, desde então, sociedade aberta. A constância da nomenclatura é correspondida pelo conteúdo e que só o Código dos Valores Mobiliários lhe dá uma maior densificação. 3. A PERDA DA QUALIDADE DE SOCIEDADE DE SUBSCRIÇÃO PÚBLICA, OU DE SOCIEDADE ABERTA. Apesar de se prever a aquisição de um estatuto legal especial por uma sociedade comercial, a sua perda surge consagrada pela primeira vez no ordenamento jurídico português através de uma alteração legal ao Código do Mercado de Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142-A/91, de 13 de Novembro. Esta alteração traduziu-se no aditamento de um artigo, o 531.º-A, epigrafado de Perda da quali-dade de sociedade de subscrição pública pelo Decreto-lei n.º 261/95, de 3 de Outubro. Conforme o legislador confessa no preâmbulo daquele Decreto-Lei, “De relevância assinalá-vel é a possibilidade que se consagra de perda da qualidade de “sociedade de subscrição pública”, permitindo-se, assim, a sociedades que tenham estado cotadas em bolsa ou tenham dispersado o seu capital pelo público a passa-gem para um regime menos exigente e oneroso, através de um procedimento que proporcione adequadas garantias a todos os seus accionis-tas e titulares de outros valores mobiliários cujos interesses são potencialmente afectados pela modificação18. Neste diploma (rectius, artigo), o legislador consagraria o regime da perda da qualidade de sociedade de subscrição pública num único

artigo, que inclui as condições em que a perda pode ocorrer, a publicidade da decisão necessá-ria pela CMVM e os respectivos efeitos. Da comparação entre o regime da perda da qualidade de sociedade aberta consagrado no artigo 531.º-A do Código do Mercado de Valo-res Mobiliários e o que resulta do actual artigo 27.º, ressalta desde logo a ausência de previsão da possibilidade de se recorrer àquele mecanis-mo com fundamento no decurso de um ano sobre a exclusão da negociação das acções em mercado regulamentado fundada na falta de dispersão pelo público (alínea c) do n.º 1). De acordo com as alíneas a) e b) daquele artigo 531.º-A, Uma sociedade de subscrição pública deixará, para todos os efeitos, de ser conside-rada como tal mediante declaração da CMVM, que só será emitida desde que se verifiquem as seguintes condições:

a) A assembleia-geral da sociedade assim tenha deliberado por maioria superior a 90 % dos votos correspondentes ao capital social; ou

b) Seja lançada uma oferta pública geral de aquisição com observância do disposto no artigo 528.º, abrangendo todos os valores mobiliários emitidos da natureza dos referidos no n.º 1 do artigo 523.º e em resultado da qual o oferente passe a deter valores que, adicionados aos deti-dos pelas pessoas mencionadas nas alí-neas a), c), d) e e) do n.º 2 do artigo 525.º, representem mais de 90 % de cada uma das espécies e categorias de valores mobiliários objecto da oferta.

Entre a introdução do artigo 531.º-A no Código do Mercado de Valores Mobiliários, operada pelo Decreto-Lei n.º 261/95, de 3 de Outubro, e

18- O conceito de sociedade de subscrição pública resultava então da alínea j) do n.º 1 do artigo 3.º (Definições) do citado Código do Mercado de Valores Mobiliários, conforme referido anteriormente.

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a publicação do Código dos Valores Mobiliá-rios não era possível perder a qualidade de sociedade aberta fundada no decurso de um ano sobre a exclusão da negociação das acções em mercado regulamentado por falta de dispersão pelo público. Por isso, só com a publicação do Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro, foi consagrada a possibilidade de perda da qualida-de de sociedade aberta com o fundamento na exclusão da negociação em mercado regula-mentado por falta de dispersão pelo público, desde que decorrido um ano sobre a exclusão. 4. A PERDA E O INSTITUTO DA AQUISIÇÃO POTESTATIVA A respeito da perda da qualidade de sociedade de subscrição pública ou de sociedade aberta, cabe chamar à colação um outro instituto jurídi-co que, enquanto durou a falta de expressa dis-posição legal, a CMVM viria a entender funda-mentar a perda da qualidade de sociedade aberta: a aquisição potestativa decorrente da aquisição do domínio total de uma sociedade aberta. O mecanismo de perda operado pela aquisição protestativa seria legalmente consagrado pelas alterações ao Código introduzidas pelo Decreto-lei n.º 219/2006, de 2 de Novembro, na trans-posição da Directiva n.º 2004/25/CE, do Parla-mento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril, relativa às ofertas públicas de aquisição.

Com efeito, o recurso a este instituto está hoje previsto no artigo 194.º e encontra-se condicio-nado à aquisição, directamente ou nos termos do n.º 1 do artigo 20.º, de 90 % dos direitos de voto correspondentes ao capital social até ao apuramento dos resultados da oferta e 90 % dos direitos de voto abrangidos pela oferta podendo, nos três meses subsequentes, adquirir as acções remanescentes mediante contraparti-da justa, em dinheiro, calculada nos termos do artigo 188.º. Alcançados estes objectivos atra-vés da oferta, se o interessado obtiver o registo prévio pela CMVM da aquisição potestativa sobre as acções remanescentes, obterá, entre outros efeitos, a imediata perda da qualidade de sociedade aberta (art. 195.º, n.º 4). Podemos verificar que também aqui o legisla-dor fixou uma fasquia para a perda da qualida-de de sociedade aberta fundada na aquisição potestativa: um escrutínio accionista superior a 90%. Este instituto justifica uma referência ao dis-posto no artigo 490.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) de 1986 relativo às aquisi-ções tendentes ao domínio total, pois traduz um seu paralelo ou “importação”19. A aquisição tendente ao domínio total assente no artigo 490.º do CSC concretiza-se quando uma sociedade passa a dispor, pelo menos, 90% do capital social de outra sociedade, desde que lhe comunique esse facto nos 30 dias seguintes àquele em que for atingida a referida participação. Nos seis meses seguintes,

19 - Este preceito foi objecto do Acordão n.º 491/2002/ do Tribunal Constitucional em que decidiu não declarar a inconstitucionalidade do da norma prevista no artigo 490.º, n.º 3, publicado no Diário da República II Série, n.º 18, de 22 de Janeiro de 2003. Este Acordão foi emitido em resposta ao pedido de declaração de inconstitucionalidade apresentado pela Provedor de Justiça, disponível em www.provedor-jus.pt/pedidos/php

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segue-se uma proposta de aquisição pela socie-dade dominante aos restantes sócios, mediante a oferta de uma contrapartida justificada por relatório de revisor oficial de contas indepen-dente das sociedades interessadas20. Também aqui, a fasquia foi colocada numa participação superior a 90% do capital social. Hoje, este normativo aplica-se apenas às socie-dades que não sejam sociedades abertas (art. 490º, nº7), porque a aquisição tendente ao domínio total de sociedade com o capital aber-to ao investimento do público rege-se pelo dis-posto no Código dos Valores Mobiliários. Aliás, a norma constante do número 7 do citado artigo foi aditada precisamente pelo artigo 13.º do Decreto-lei n.º 486/99, de 13 de Novembro, que aprovou o Código dos Valores Mobiliários. Resulta do seu Preâmbulo que: (…)13. Em relação à aquisição do domínio total nas sociedades abertas adaptou-se o dis-posto no artigo 490.º do Código das Socieda-des Comerciais. Acentuou-se todavia a protec-ção das expectativas geradas pela abertura da sociedade ao investimento do público, presente também nos requisitos para a perda da quali-dade de sociedade aberta (art. 27.º). O direito de aquisição potestativa (art. 194.º), a que corresponde um direito simétrico de alie-nação potestativa dos accionistas minoritários (art. 196.º), tem como ónus o lançamento pré-vio de oferta pública de aquisição. A mesma ideia justifica a extensão a este instituto do princípio de igualdade de tratamento e a inter-venção da autoridade de supervisão do merca-do, quer quanto ao conteúdo da informação

divulgada, quer quanto ao montante da contra-partida, que passa a reger-se pelas regras apli-cáveis às ofertas públicas de aquisição obriga-tórias. Neste contexto, em Março de 2000, a CMVM publicou um Parecer Genérico, com o seguinte conteúdo: Atendendo a que:

a. Foi entendimento da CMVM, na vigência do Código do Mercado de Valores Mobi-liários, que uma sociedade de subscrição pública relativamente à qual tivesse sido desencadeado um processo de aquisição tendente ao domínio total regulado no artigo 490º do Código das Sociedades Comerciais perdia, por força da concen-tração de capital num único accionista, a qualidade de sociedade de subscrição pública; (…)

d. O novo Código dos Valores Mobiliários procedeu a uma clara aproximação do regime da aquisição tendente ao domínio total ao da perda de qualidade de socie-dade aberta, nomeadamente, no que res-peita à maior transparência do processo e à salvaguarda dos interesses dos accionistas minoritários.

1 - Reafirma-se o entendimento da CMVM quanto ao enunciado na alínea a).; 2 - Esclarece-se que a CMVM entende que a utilização do procedimento previsto nos artigos 194.º e 195.º do Código dos Valores Mobiliá-rios, na estrita medida do aí previsto e com respeito dos pressupostos nesses preceitos esta-belecidos, determina a perda de qualidade de sociedade aberta da sociedade emitente das

20- Antes do Tribunal Constitucional se ter pronunciado pela constitucionalidade do artigo 490.º, n.º 3, já a doutrina se tinha debruçado sobre o tema, pronunciando-se, quase unanimemente, pela constitucionalidade da norma recorrendo ao direito comparado e à finte normativa inspiradora do mesmo. Destaca-se o artigo “Da constitucionalidade das aquisições tendentes ao domínio total (artigo 490.º/3 do CSC), publicado no BMJ 480 (1998), pág 5-30.

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acções que foram objecto do direito de aquisi-ção potestativa21. O entendimento da CMVM surgiu, pela primeira vez em 1997 (cfr. Relatório Anual de 1997), na vigência do Código do Mercado de Valores Mobiliários, a propósito da necessi-dade de reconhecimento e declaração de perdas de qualidade de sociedade aberta em casos concretos22. 5. A PERDA POR FALTA DE DISPERSÃO DE ACÇÕES QUE LEVOU À SUA EXCLUSÃO DA NEGOCIAÇÃO Referimos já os casos de perda da qualidade de sociedade aberta pode perder essa qualidade quando: i) um accionista passe a deter, em con-sequência de oferta pública de aquisição, mais de 90 % dos direitos de voto calculados nos termos do n.º 1 do artigo 20.º; quando ii) a per-da seja deliberada em assembleia geral da sociedade por uma maioria não inferior a 90 % do capital social e em assembleias dos titulares de acções especiais e de outros valores mobi-liários que confiram direito à subscrição ou aquisição de acções por maioria não inferior a 90 % dos valores mobiliários em causa; falta uma palavra para os casos em que, iii) a perda dependa do decurso de um ano sobre a exclu-são da negociação das acções em mercado regulamentado, fundada na falta de dispersão pelo público (art. 27º, nº1, al. c). Perante este último normativo, o que se deve entender por “falta de dispersão pelo público?

Para a densificação do conceito importam, em especial, duas disposições:

a. o artigo 229.º/2, de acordo com o qual se presume que existe um grau adequado de dispersão quando as acções objecto do pedido de admissão à negociação se encontrem dispersas pelo público numa proporção de, pelo menos, 25% do capi-tal social subscrito representado por essa categoria de acções, ou, quando, devido ao elevado número de acções da mesma categoria e devido à amplitude da sua dispersão entre o público, esteja assegurado um funcionamento regular do mercado com uma percentagem mais baixa23; e

b. o artigo 13.º, nº1, al. d) que fixa como limite para que a sociedade seja conside-rada sociedade aberta” que as suas acções tenham sido alienadas em oferta pública de venda ou de troca em quanti-dade superior a 10% do capital social dirigida especialmente a pessoas com residência ou estabelecimento em Portugal.

Em face do que é o regime geral da perda da qualidade de sociedade aberta e dos objectivos por ele visados, parece-nos que o limite rele-vante deve ser o da dispersão superior a 10% do capital, entendimento que resulta do enqua-dramento global deste instituto. De facto, em sede das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 27.º, o legislador colocou como fasquia para a socieda-de perder essa qualidade que a manifestação de vontade, expressa pela sociedade, assente numa

21- Disponível em: http://www.cmvm.pt/NR/exeres/FAD5A9E2-A41D-4B0E-A968-9D3C792A7C75.htm . 22- Vide a propósito as Principais Interpretações enunciadas durante o ano de 1997, in Situação Geral dos Mercados de Valores Mobiliários, pág175 a 178, em concreto: (…) tendo indeferido o pedido apresentado pela sociedade Proholding, SGPS, SA, entidade que previamente tinha accionado o mecanismo previsto no artigo 490.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC). Esta situação, na perspectiva da CMVM, implica a perda da qualidade de subscrição pública tornando desnecessário o recurso ao artigo 531.º-A do Cód. MVM, por já não existirem interesses accionistas minoritários a proteger. 23- Esta percentagem corresponde à já prevista no Código do Mercado de Valores Mobiliários (artigo 304.º/1/h) e 6). Também Regulamento I – Regras de Mercado Harmonizadas - da Euronext Lisbon refere a mesma percentagem (regra 6702).

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maioria superior a 90%. Essa expressão pode ter como causa aquisição em OPA, em que os accionistas dão essa maioria dos direitos de voto a um accionista alienando-lhe as acções, ou por deliberação dos accionistas reunidos em assembleia-geral. 5.1. Sobre a exclusão da negociação de acções em mercado regulamentado A perda da qualidade de sociedade aberta fun-dada no decurso de um ano sobre a exclusão da negociação das acções, em mercado regulamen-tado, por falta de dispersão, sofreu alterações ao longo do tempo. Era referida expressamente no artigo 352.º, n.º 2 alínea f), do Código do Mer-cado de Valores Mobiliários: devem ser excluí-dos da cotação quaisquer valores mobiliários que deixem de satisfazer a percentagem mínima legalmente exigível de dispersão pelo público. Esta norma não existe no actual Código, estan-do incluída na verificação dos requisitos de admissão (cfr. artigo 213.º, n.º 3, alínea a), a exclusão da negociação justifica-se quando deixem de se verificar os requisitos de admissão ou o incumprimento relevante de outras regras do mercado, se a falta não for sanável24). A exclusão da negociação com fundamento na falta de dispersão foi mantida como regra ine-rente ao normal funcionamento do mercado. Os requisitos de admissão ao mercado devem veri-ficar-se e manter-se durante todo o tempo de negociação, como regra. Esta solução de aproximação dos requisitos de admissão à negociação, e aos fundamentos de

exclusão, leva a que se exija um grau de disper-são das acções pelo público correspondente aos 25%. Isto, sem prejuízo de se tratar de uma presun-ção, pois se admite um segundo critério basea-do no elevado número de acções que, devido à amplitude da sua difusão, assegure um funcio-namento regular do mercado com uma percen-tagem mais baixa. Este limite qualitativo significa uma divergên-cia com os 10% necessários à aquisição da qualidade de sociedade aberta através de oferta pública de venda ou de troca, previstos no artigo 13.º, nº 1, al. d) descrito anteriormente25. A discrepância é ainda mais acentuada quando comparada com as demais situações de aquisi-ção da qualidade de sociedade aberta previstas nas restantes alíneas do n.º 1, do artigo 13.º. Estas não dependem de qualquer quantidade mínima de capital social a alienar. Parece-nos, todavia, que em todas as situações se deve atender aos conceitos de oferta pública e ofertas particulares consagrados nos artigos 109.º e 110.º, respectivamente, e para os quais já remetemos anteriormente (vide nota 3, quan-to ao número mínimo de investidores). Percebe-se, assim, a correlação entre os requisi-tos de admissão e os de exclusão. Todavia, em face do efeito operado pela exclu-são fundada na falta de dispersão pelo público, ou seja, na perda da qualidade de sociedade aberta (27.º, n.º 1 alínea c)), parece-nos que o limite deveria ser mais exigente, e situar-se numa concentração de capital acima dos 90%,

24- Este preceito correspondia ao artigo 206.º antes da republicação do Código dos Valores Mobiliários feita pelo Decreto-lei n.º 357-A/2007, de 31 de Outubro. 25- O n.º 2 deste artigo consagra a possibilidade dos estatutos da sociedade fazerem depender de deliberação da assembleia geral o lançamento de oferta públi-ca de venda ou de troca de acções nominativas de que resulte a abertura do capital social nos termos da alínea d) do n.º 1. A este respeito, o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 486/99, de 8 de Novembro, que aprovou o CVM, no ponto 8. refere que em ordem a limitar as situações de aquisição involuntária da qualidade de sociedade aberta, admite-se a possibilidade de as sociedades fechadas ao investimento do público estabelecerem uma cláusula estatutária fazendo depender a realização de oferta pública de venda ou de troca de autorização da assembleia geral.

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ou seja, numa dispersão inferior a 10. Só assim estaríamos perante uma verdadeira concentra-ção em mercado, com reflexos em particular no que diz respeito à contrapartida praticada, equi-parando-as às duas outras situações: (i) à decor-rente de OPA, em que os accionistas são cha-mados a pronunciar-se sobre a proposta do ofe-rente, ou (ii) à vigente em assembleia geral na qual os accionistas exprimem a sua vontade deliberando expressamente sobre quem adquire e a que preço. Em ambos os casos temos um escrutínio accio-nista superior a 90% dos direitos de voto ou do capital social26. Um último requisito de perda que importa ana-lisar prende-se com a exigência do decurso de um ano sobre a exclusão da negociação das acções no mercado regulamentado. Não é fácil entender o pretendido pelo legislador com a fixação deste período que deverá decorrer entre a decisão de exclusão das acções do mercado regulamentado e o momento em que a socieda-de poderá recorrer ao pedido de perda da quali-dade de sociedade aberta. Na verdade, a exclu-são das acções da negociação em mercado regulamento fundada na falta de dispersão pelo público constitui uma decisão da respectiva entidade gestora dependente da mera verifica-ção dos requisitos legais (213.º). Acresce à perplexidade o facto de, nas demais situações em que é possível lançar mão da per-da da qualidade de sociedade aberta, não ser exigível o decurso de qualquer prazo para que a sociedade ou algum accionista desencadeie o

procedimento. Mais; a perda da qualidade de sociedade aberta resultante do recurso ao insti-tuto da aquisição potestativa (194.º), só aconte-cerá se o procedimento for accionado nos três meses subsequentes ao facto que a legitima: a ultrapassagem de 90% dos direitos de voto cor-respondentes ao capital social até ao apuramen-to dos resultados da oferta e 90% dos direitos de voto abrangidos pela oferta. O fundamento deste prazo decorre da sua ligação ao valor da contrapartida a oferecer pela aquisição das acções remanescentes. Este valor presume-se justo também para efeitos de aquisição potesta-tiva se com ele o oferente, em resultado de OPA geral e voluntária, conseguiu adquirir pelo menos 90% das acções representativas de capi-tal social com direitos de voto abrangidos pela oferta (art. 194.º, nº 2). Mesmo assim, este valor só poderá relevar se o mecanismo da aquisição potestativa for accionado no prazo de três meses após a OPA. O prazo funciona ape-nas como uma espécie de prazo de validade para a aquisição potestativa. 6. EM CONCLUSÃO O instituto da perda da qualidade de sociedade aberta insere-se no quadro mais amplo das ope-rações de saída de mercado, a par da exclusão da negociação em mercado regulamento e da transmissão potestativa, por aquisição ou alienação27. Em consequência da protecção dos interesses em questão e da regulação dos potenciais con-flitos desses interesses a que a lei dá especial atenção, a decisão de perda da qualidade de

SOBRE A PERDA DE QUALIDADE DE SOCIEDADE ABERTA : 89

26 - Em conclusão: para a aquisição da qualidade de sociedade aberta basta a dispersão em oferta pública de venda ou de troca de uma quantidade de acções da sociedade superior a 10% do capital social, tal como previsto no artigo 13.º/1/d), ou até em quantidade inferior nas situações previstas nas demais alíneas deste preceito. Já para a perda da qualidade de sociedade aberta, fundada na falta de dispersão pelo público os limiares exigidos são os integrantes dos requisitos para a admissão de acções à negociação em mercado regulamentado, presumindo-se um adequado grau de dispersão quando as acções objecto do pedido de admissão se encontrem dispersas pelo público numa proporção de, pelo menos, 25% do capital social subscrito representado pela categoria de acções em causa, ou, quando, devido ao elevado número de acções da mesma categoria e devido à amplitude da sua dispersão entre o público, esteja assegurado um funcionamento regular do mercado com uma percentagem mais baixa (229.º/2). 27- Sobre estes três tipos de operações de saída de mercado, vide Paulo Câmara, As operações de saída de mercado, in Direito dos Valores Mobiliários, Vol V, pág. 127-184.

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sociedade aberta e a declaração da CMVM devem rodear-se de especiais cautelas na salvaguarda dos interesses dos accionistas minoritário. A concentração do capital social de uma socie-dade constitui o vector comum a todas as situa-ções perda da qualidade de sociedade aberta, seja através de uma participação superior a 90% dos direitos de voto, seja por deliberação expressa de uma maioria accionista não inferior a 90% do capital social, ou pela verificação da

falta de dispersão pelo público, quando as acções estejam admitidas à negociação em mer-cado regulamentado. O mesmo é dizer que em todas as situações se tem de verificar a falta de dispersão das acções representativas do capital social pelo público. Não se encontra, por isso, razão para que no caso da exclusão do mercado fundada na falta de dispersão pelo público se deva aguardar o decurso de um ano para despo-letar a perda da qualidade de sociedade aberta e nas demais situações não. É uma matéria que poderá merecer a atenção de futuras interven-ções legislativas.

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I. ASPECTOS GERAIS 1. Noção Preliminar I. Designam-se por instrumentos derivados, ou simplesmente derivados (“derivative”, “Finanzderivate”, “instruments dérivés”, “derivati”), os instrumentos financeiros resultantes de contratos a prazo celebrados e valorados por referência a um determinado activo subjacente.1 2. Origem Histórica e Relevo Actual I. A origem histórica dos derivados perde-se na noite dos tempos. Na antiga Mesopotâmia, exis-tem relatos segundo os quais os reis da Babiló-nia terão emitido instrumentos que atribuíam ao respectivo portador a faculdade de, contra o pagamento do preço nele previsto, exigir a entrega de um mercenário e dois escravos em data futura.2 Do mesmo modo, é sabido que os mercadores gregos negociavam futuros sobre azeite (através dos quais fixavam no presente o

preço do litro de azeite a ser comprado em determinada quantidade e data futura) e os mer-cadores holandeses ajustavam opções sobre tulipas (através das quais concediam ao benefi-ciário a faculdade de adquirir, por preço previa-mente fixado e durante um certo período de tempo, uma determinada quantidade dessas flores)3. Ora, todos esses instrumentos e contra-tos eram destinados, em si mesmos, a circular e a ser negociados entre os próprios mercadores, possuindo assim um valor próprio e indepen-dente que, por seu turno, estava associado à evolução do valor dos bens que lhe subjaziam (escravos, azeite, tulipas). II. Apesar desta origem histórica remota, pode afirmar-se que os derivados são, enquanto instrumento financeiro, um fenómeno jurídico intimamente ligado ao movimento de “inovação financeira” que anima e caracteriza os mercados de capitais das últimas décadas.4

OS DERIVADOS JOSÉ A. ENGRÁCIA ANTUNES

1- Sobre os instrumentos financeiros em geral, vide ANTUNES, J. Engrácia, Os Instrumentos Financeiros, Almedina, Coimbra, 2009. Sobre os derivados, vide, entre nós, ASCENSÃO, J. Oliveira, Derivados, in: AAVV, “Direito dos Valores Mobiliários”, vol. IV, 41-68, Coimbra Editora, 2003; MONTEIRO, M. Alves, O Mercado Português dos Derivados, in: 12 “O Economista” (1999), 119-127; PEIXOTO, J. Paulo, Funcionamento da Bolsa de Derivados, McGraw-Hill, Lisboa, 2000. Noutros quadrantes, vide CABALLERO, J. Sanz, Derivados Financieros, Marcial Pons, Madrid, 2000; HUDSON, Alastair, The Law on Financial Derivatives, 3rd edition, Sweet & Maxwell, London, 2002; NASSETTI, F. Caputo, I Contratti Derivati Finanziari, Giuffrè, Milano, 2007; REINER, Günter, Derivative Finanzinstrumente im Recht, Nomos, Baden-Baden, 2002; RUTTIENS, Alain, Manuel des Produits Dérivés, Eska, Paris, 1997.

2- SWAN, Edward, Bulding the Global Market – A 4000 Year History of Derivatives, 30 e segs., Kluwer, The Hague, 2000.

3- JAMES, Simon, The Law of Derivatives, 1, LLP, London, 1999.

4- Sobre a chamada inovação financeira, vide, entre nós, QUELHAS, J. Santos, Sobre a Evolução Recente do Sistema Financeiro (“Novos Produtos Financeiros”), Separata do BCE, Coimbra, 1996; noutros quadrantes, vide CAVANNA, Henri (ed.), Financial Innovation, I. Thomson Business, Routledge, 1992; COURET, Alain, Innovation Financière et Règle de Droit, IAE, Paris, 1990; WIELAND, Aglaia, Finanzinnovationen – Analyse von Erfolgsfaktoren für die Etablierung neuer Finanzinstrumente, Diplomica, Hamburg, 2001.

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O progressivo relevo que a gestão do risco foi assumindo nas empresas e nas economias mun-diais modernas, bem assim como a globalização dos mercados financeiros, a concorrência entre os intermediários financeiros, e o progresso extraordinário das tecnologias de comunicação, conduziram as instituições financeiras, mor-mente bancárias, a uma dinâmica incessante de criação e aperfeiçoamento de novos “produtos” ou “instrumentos” destinados a satisfazer as necessidades das empresas suas clientes, cada vez mais diversificadas e complexas, ligadas à cobertura do risco das respectivas actividades económicas, bem como ao aproveitamento de oportunidades especulativas e arbitragistas5. Expoente máximo da chamada “engenharia financeira”, dotados de uma crescente comple-xidade e sofisticação, é indiscutível o relevo económico dos derivados no contexto das eco-nomias modernas6: como salienta Joseph RIZELLO, “poucos desenvolvimentos da histó-ria financeira foram responsáveis por investi-mentos mais inovadores e eficientes do que a classe de instrumentos denominados

derivados”7. De acordo com um estudo recente, o mercado organizado de derivados movimen-tou em 2007 mais de 6 biliões de futuros (de valor superior a 1,6 triliões de dólares) e 4 milhões de opções (de valor superior a 700 biliões de dólares), sendo ainda que o volume de derivados negociados fora do mercado orga-nizado ascendeu a mais de 500 biliões de dólares.8 3. Função Económica. Vantagens e Riscos

I. Os derivados são essencialmente instrumen-tos financeiros de cobertura dos riscos ineren-tes à actividade económica (“hedging”), de especulação (“trading”) e de arbitragem (“arbitrage”).9,10

II. Ao contrário dos valores mobiliários e ins-trumentos monetários, que constituem mecanis-mos de financiamento directo das empresas emitentes, os derivados são essencialmente um meio de salvaguarda das empresas face ao risco de mercado (v.g., oscilações das taxas de câmbio, taxas de juro, cotações bolsistas,

5- Na história recente, a ascensão e o desenvolvimento dos derivados deveu-se sobretudo à instabilidade monetária e cambial dos anos 70, com a crise do sistema de “Bretton Woods”: cf. AAVV, L’Utilizzo dei Prodotti Derivati nell’Impresa, Egea, Milano, 2002.

6- Sobre a “engenharia financeira” – enquanto aplicação de conhecimentos científicos (mormente, económicos e matemáticos) à criação e desenvolvimento de novos produtos financeiros –, vide BIRGE, John, Financial Engineering, Elsevier, Amsterdam, 2008; CASTRO, L. Díez/ MASCAREÑAS, Juan, Ingeneria Financiera, McGraw-Hill, Madrid, 1991; WIEDEMANN, Arnd, Financial Engineering: Bewertung von Finanzinstrumenten, Bankakad.-Verlag, Frankfurt, 2004.

7- The Development and Evolution of Derivative Products, 1, in: AAVV, “The Handbook of Derivatives & Synthetics”, 1-19, Probus Publishing, Chicago/ Cambridge, 1994.

8- Bank of International Settlements, Semiannual OTC Derivatives Statistics at the End-June 2007, Basel, 2007. Assinale-se a primazia dos derivados sobre taxas de juro (347 biliões, representativos de mais de ¾ do total dos derivados OTC), seguidos dos derivados sobre taxas de câmbio (48 biliões), derivados de crédito (42 biliões), “forwards”, “swaps” e opções ligados a capital (9 biliões), e derivados sobre mercadorias (7 biliões) (optamos aqui pela escala curta ameri-cana, e não pela escala longa europeia: cf. ALMEIDA, Guilherme, Sistema Internacional de Unidades, 3ª edição, Plátano, 2002).

9- Sobre as funções económicas dos derivados, vide em geral GIRINO, Emilio, I Contratti Derivati, 16 e segs., Giuffrè, Milano, 2001; HUDSON, Alastair, The Law on Financial Derivatives, 15 e segs., 3rd edition, Sweet & Maxwell, London, 2002; REINER, Günter, Derivative Finanzinstrumente im Recht, 4 e segs., Nomos, Baden-Baden, 2002. Saliente-se que tais funções económicas não são necessariamente inócuas de um ponto de vista jurídico: as motivações subjacen-tes à sua utilização poderão ser relevantes, por exemplo, para efeitos da apreciação da responsabilidade dos membros dos órgãos de administração de empresas que tenham investido ou não investido em derivados (SERNETZ, Julia, Derivate und Corporate Governance – Kompetenzen und Pflichten des Vorstands von Aktiengesellschaften beim Einsatz von Derivaten, Peter Lang, Frankfurt am Main, 2006).

10- Num sentido muito amplo, poderá dizer-se que os derivados são também instrumentos de financiamento empresarial, o qual tanto pode ser obtido directa-mente – mediante a angariação pela empresa emitente de fundos financeiros destinados a investimentos empresariais (como é o caso típico dos valores mobiliá-rios) – como indirectamente – através das economias decorrentes da cobertura do risco de perdas nesses mesmos investimentos (ou da estabilização ou incre-mento dos ganhos, se a finalidade for arbitragista ou especulativa), como sucede justamente com os derivados.

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inflação), ao risco de crédito (v.g., incumpri-mento, insolvência, iliquidez do devedor), ao risco regulatório (“maxime”, limites pruden-ciais à aquisição de acções), e de outros riscos económicos análogos11. Assim, por exemplo, um industrial que necessite regularmente de uma determinada matéria-prima sujeita a uma enorme volatilidade de preço no mercado (v.g., combustível) pode prevenir-se contra subidas inopinadas dos custos produtivos através da celebração de futuros que fixem hoje o preço a pagar amanhã; um comerciante europeu que seja titular de créditos denominados em dólares, temendo uma futura evolução desfavorável da taxa de câmbio euro/dólar, pode prevenir-se contra tal risco celebrando um “swap” de divi-sas; um banqueiro que projecte adquirir a prazo uma carteira de acções ou outros valores mobi-liários pode acautelar-se face os riscos inerentes às subidas ou descidas das respectivas cotações através da conclusão de uma opção de compra ou venda sobre esses valores.12

Além dessa função económica protectiva, os derivados servem ainda concomitantemente finalidades de especulação – permitindo ao investidor realizar aplicações lucrativas que visam jogar na antecipação do sentido da evolu-ção do valor dos activos subjacentes –13 e de arbitragem – permitindo ao investidor realizar aplicações lucrativas que visam tirar partido das imperfeições dos mercados ou preços dos acti-vos subjacentes14. Embora com carácter não necessário ou exclu-sivo deste tipo de instrumento financeiro, os derivados possuem frequentemente um efeito de alavancagem financeira (“financial leverage”, “Hebelwirkung”): tal significa dizer que, atra-vés da mobilização de meios financeiros pró-prios reduzidos (minimização de investimento inicial), permitem participar mais do que pro-porcionalmente nas variações de valor do activo subjacente (maximização do ganho ou perda).15

11- O conceito de risco é, pois, absolutamente nodal para a noção de instrumento derivado, sendo este frequentemente descrito como um mecanismo de trans-ferência de risco: “the main economic function of derivatives is to allow individual parties to transform risks” (BOARD, John, The Economic Consequences of Derivatives, 156, in: AAVV, “Modern Financial Techniques – Derivatives and the Law”, 156-166, Kluwer, London, 2000); “Derivate machen Risiken isoliert handelbar” (KRUMNOW, Jürgen, Risikosteuerung von Derivaten, 1, Gabler, Wien, 1996). Sobre o conceito e os tipos de riscos nos derivados, vide NASSET-TI, F. Caputo, I Contratti Derivati Finanziari, 4 e segs., Giuffrè, Milano, 2007; REINER, Günter, Derivative Finanzinstrumente im Recht, 37 e segs., Nomos, Baden-Baden, 2002; sobre o seu relevo como objecto contratual, vide HENSSLER, Martin, Risiko als Vertragsgegenstand, Mohr, Tübingen, 1994.

12- Esta função de cobertura pode revestir duas modalidades fundamentais, consoante seja realizada por parte de quem, não sendo titular do activo, deseja precaver-se contra uma subida do seu valor no futuro (“long hedge”), ou de quem, sendo titular do activo no mercado a pronto, prevê uma diminuição futura do seu valor (“short hedge”). Sobre a função de “hedging” dos derivados, vide BRAUN, Wilfried, Finanzderivate im Spannungsfeld betriebswirtschaftlicher Notwendigkeit und rechtlicher Risikobegrenzung, in: “Festschrift für Hugo Hahn”, 319-340, Nomos, Baden-Baden, 1997; EIZIRIK, Nelson, Negócio Jurídico de “Hedging”, in: 90 “Revista de Direito Mercantil” (1993), 13-22; KANGIS, Peter, The Use of Financial Instruments for Hedging Purposes: Reconciling Theory and Evidence, in: 3 “Journal of Financial Services Marketing” (1998), 81-97.

13- A dimensão especulativa é, hoje como ontem, fundamental no mercado de derivados. Por um lado, cobertura do risco e especulação são duas faces da mesma moeda, só abstractamente sendo cindíveis: com efeito, um empresário só pode cobrir um determinado risco da sua actividade económica se encontrar no mercado um investidor ou especulador disposto a assumi-lo, sendo os derivados justamente um mecanismo de contratualização massificada dessa transfe-rência de risco. Por outro lado, a especulação em derivados é vantajosa no confronto com a especulação directa no próprio activo subjacente: assim, por exem-plo, se um investidor pretender apostar na valorização futura de determinadas acções cotadas no PSI-20, pode obter o mesmo resultado sem ter de suportar os respectivos custos financeiros (graças ao chamado efeito de alavancagem financeira, adiante descrito) e organizativos (v.g., deveres de publicidade das partici-pações, etc.) recorrendo a um futuro ou opção sobre tais acções. Por isso mesmo, faz sentido afirmar que os derivados “can be used either to reduce risks or to take risks” (HULL, John, Options, Futures and Other Derivatives, 15, 6th edition, Prentice Hall, Englewood Cliffs, 2005). Sobre o crescente relevo ou protago-nismo da função especulativa, vide CAPRIGLIONE, Francesco, I Prodotti Derivati: Strumenti per la Copertura dei Rischi o Nuove Forme di Speculazione Finanziaria?, in: LVIII “Banca, Borsa, Titoli di Credito” (1995), 359-371; KLÖHN, Lars, Kapitalmarkt, Spekulation und “Behavioral Finance”, 24 e segs., Duncker & Humblot, Berlin, 2006; POITRAS, Geoffrey, Risk Management, Speculation and Derivatives Securities, Academic Press, New York, 2002.

14- Por definição, a arbitragem explora as ineficiências ou discrepâncias (“mispricing”) entre dois preços ou mercados (mercado nacional e estrangeiro, merca-do a prazo e a contado, etc.), constituindo os derivados um dos mecanismos por excelência da sua realização: assim, por exemplo, uma opção de compra de “tipo americano” permite a um investidor tirar partido de eventuais cursos dissonantes de uma determinada acção ou obrigação registados durante a vida da opção (DUBIL, Robert, An Arbitrage Guide to Financial Markets, J. Wiley & Sons, New York, 2004).

15- CHIEW, Lilian, Managing Derivative Risks: The Use and Abuse of Leverage, J. Wiley & Sons, New York, 1996; SOMMER, Gottfried, Derivative Finanzinstrumente: Chancen und Risiken der Hebelwirkung, V. Müller, Saarbrücken, 2008. O efeito de alavancagem (e, assim, o risco de ganho ou perda) será tanto mais elevado quanto maior for o diferencial entre o valor do capital aplicado e do activo subjacente: por essa razão também, há quem considere o risco de perda total do capital investido como um dos traços distintivos destes instrumentos (SCHWARK, Eberhard, Börsenrecht, 467, in: “Festgabe zum 50-jährigen Bestehen des BGH”, Band II, 455-495, Beck, München, 2000).

OS DERIVADOS: 93

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III. À semelhança de outros instrumentos finan-ceiros, os derivados apresentam vantagens mas também alguns riscos – oscilando as opiniões entre o deslumbramento angelical e a crítica satânica.16 Decerto que os derivados desempenham hoje uma importante função no plano da gestão do risco das empresas, permitindo, além disso, uma alavancagem financeira dos seus investi-mentos, uma exploração mais dinâmica das oportunidades especulativas e arbitragistas, uma mais transparente e correcta formação dos pre-ços dos activos subjacentes, e até uma maior eficiência e liquidez do mercado de capitais no seu conjunto17. Em contrapartida, não se podem ignorar os riscos associados a tais instrumentos – a ponto de haver quem os tenha já reputado de “besta selvagem da finança”18: entre outros,

tais instrumentos são susceptíveis de provocar uma dissociação entre propriedade jurídica e económica – já que, relativamente aos bens e activos em geral (v.g., acções, obrigações, mercadorias), permite operar uma separação entre titularidade formal ou directa (“de primeiro grau”) e material ou indirecta (“de segundo grau”) –19, de originar problemas de “cash-flow” empresarial – tornando muito mais complexas e contingentes as projecções relati-vas aos fluxos e disponibilidades de caixa (pagamentos e recebimentos) –20, de incremen-tar a magnitude das perdas dos investidores – que, em virtude da estrutura de derivação e do efeito de alavancagem financeira, podem ser virtualmente ilimitadas –21, senão mesmo aumentar o próprio risco sistémico de colapso do sistema financeiro no seu conjunto (“efeito de dominó”).22

16- McCALLUM, John, Derivatives: The Devil Incarnate or the Promised Land?, in: 59 “Business Quarterly” (1995), 1-5. Sobre o ponto, AAVV, Derivative Finanzinstrumente: Nutzen und Risiken, Deutscher Sparkassenverlag, Stuttgart, 1995; DAMM, Ulrich, Derivate zwischen Nutzen und Risiken, in: XXIX “Die Bank – Zeitschrift für Bankpolitik und Bankpraxis” (1990), 506-511.

17- Sobre estas vantagens, em particular a gestão do risco empresarial, vide CHANCE, Don/ BROOKS, Roberts, An Introduction to Derivatives and Risk Management, 7th edition, South-Western College Pub., 2006; SCHMITT, Jean, Les Instruments Dérivés: Au Service de l’Efficience du Marché de Capitaux … Mais en Toute Securité, in: 9/10 “Revue de la Banque” (1994), 553-557; WESTPHALEN, Stephanie, Derivatgeschäfte, Risikomanagement und Aufsichtsrat-shaftung, Nomos, Baden-Baden, 2000.

18- STEINHERR, Alfred, Derivatives: The Wild Beast of Finance (A Path to Effective Globalisation?), J. Wiley & Sons, London, 1998.

19- A esta dissociação entre propriedade jurídica e económica corresponde, na linguagem económica, a distinção entre posições “naturais” e “sintéticas”, e, na linguagem cibernética, entre “original” e “cópia”. Como é evidente, assentando a maior parte das normas legais na titularidade jurídica ou formal, os derivados podem funcionar como um factor ou mesmo expediente de manipulação das mesmas (MONGA, Anish, Using Derivatives to Manipulate the Market for Corporate Control, in: XII “Stanford Journal of Law, Business and Finance” (2006), 186-219).

20- MUNTER, Paul, Cash-Flow Hedges, in: 9 “Journal of Corporate Accounting and Finance” (1998), 27-32.

21- Com efeito, a “sedução do jogo” (“Spielverlockung”) – para empregar a expressão de Walther HADDING e Joachim HENNRICHS, Devisentermin-geschäfte, 455, in: “Festschrift für Carsten Peter Claussen”, 447-467, C. Heymanns, Köln, 1997 – é, nos derivados, maior do que a verificada nos demais instrumentos jurídicos de investimento e mobilização de riqueza, mormente se comparada com a aquisição directa do activo subjacente, já que, graças ao efeito de alavancagem financeira, permite ao investidor a obtenção de lucros fabulosos e rápidos, mas também de perdas colossais, com um investimento de capital bastante reduzido: por isso, não falta quem defina jocosamente os derivados como “aqueles investimentos feitos no ano transacto que resultaram em per-da” (GOTTSFIELD, Robert/ LOPEZ, Michael/ HICKS, William, Derivatives: What They Are, What They Cause, What’s The Law, 33, in: 32 “Arizona Attor-ney” (1996), 33-47). Esta realidade é bem ilustrada em casos conhecidos como os relativos à americana “Procter & Gamble” em 1994 (que incorreu em perdas no valor de 157 milhões de dólares em “swaps”), ao britânico “Barings Bank” em 1995 (com perdas no valor de 900 milhões de euros resultantes de derivados sobre divisas), ou à francesa “Société Générale” nos inícios de 2008 (com perdas estimadas no valor de 3,6 biliões de euros resultantes de operações de futu-ros). Cf. SAMUELSON, Charles, The Fall of Barings. Lessons for the Legal Oversight of Derivatives Transactions in the United States, in: XXIX “Cornell International Law Journal” (1996), 767-806.

22- Daí que Warren BUFFET os tenha definido como “financial weapons of mass destruction” (STOKES, David, Comment on «Practical Derivatives»: A Transactional Approach, 500, in: 23 “Journal of International Banking Law and Regulation” (2008), 500-501). Sobre o tópico, vide BLACK, Fischer, Hedging, Speculation, and Systemic Risk, in: 3 “Journal of Derivatives” (1995), 6-8; GROUP OF THIRTY, Derivatives: Practices and Principles, 61, Washington, 1993; WALDMAN, Adam, OTC Derivatives and Systemic Risk: Innovative Finance or Dance into the Abyss?, in: 43 “American University Law Review” (1994), 1023-1091.

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4. Consagração Legal I. Os derivados constituem uma categoria dos instrumentos financeiros, que se encontram expressamente consagrados no Código dos Valores Mobiliários (abreviadamente CVM). Nos termos do art. 2.º, nº 1, c) a f) deste diplo-ma legal, em conjugação com o seu nº 2, são considerados instrumentos financeiros “(...) c) os instrumentos derivados para a transferência do risco de crédito; d) os contratos diferenciais; e) as opções, os futuros, os swaps, os contratos a prazo e quaisquer outros contratos derivados relativos a: i) valores mobiliários, divisas, taxas de juro ou de rendibilidades ou relativos a outros instrumentos derivados, índices financei-ros ou indicadores financeiros, com liquidação física ou financeira; ii) mercadorias, variáveis climáticas, tarifas de fretes, licenças de emis-são, taxas de inflação ou quaisquer outras esta-tísticas económicas oficiais, com liquidação financeira ainda que por opção de uma das par-tes; iii) mercadorias, com liquidação física, des-de que sejam transaccionados em mercado regulamentado ou em sistema de negociação multilateral ou, não se destinando a finalidade comercial, tenham características análogas às de outros instrumentos financeiros derivados nos termos do artigo 38.º do Regulamento (CE) n.º 1287/2006, da Comissão, de 10 de Agosto; f) quaisquer outros contratos derivados, nomeadamente os relativos a qualquer dos elementos indicados no artigo 39.º do

Regulamento (CE) n.º 1287/2006, da Comissão, de 10 de Agosto, desde que tenham característi-cas análogas às de outros instrumentos financei-ros derivados nos termos do artigo 38.º do mes-mo diploma”.23 II. A fonte próxima do preceito português é a Directiva 2004/39/CE, de 21 de Abril, vulgar-mente conhecida por “Directiva dos Mercados de Instrumentos Financeiros” ou DMIF (cf. pontos 4) a 10) da Secção C do Anexo I)24, sen-do ainda relevante o Regulamento CE/1287/2006, de 10 de Agosto (cf. arts. 37.º a 39.º).25 Além disso, apesar da figura do “derivado” encontrar entre nós a sua “sedes materiae” no CVM, é mister lembrar que ela é hoje também utilizada e consagrada em vários outros diplo-mas legais – e nem sempre com um alcance idêntico. Embora limitada ao regime dos fundos de titularização de créditos, merece destaque a definição prevista no art. 2.º, nº 2 do Regula-mento CMVM nº 2/2002, de 17 de Janeiro: “Para efeitos do presente regulamento, são con-siderados instrumentos financeiros derivados os que, contratados isoladamente ou incorporados noutros valores, com ou sem liquidação finan-ceira, tenham como activo subjacente, real ou teórico, valores representativos de dívida ou direitos de crédito, bem como taxas de juro e divisas, nomeadamente: a) futuros padroniza-dos, forwards e FRA’S; b) opções padroniza-das, caps, floors e collars; c) swaps e swaptions; e d) warrants, warrants autónomos”.26

23- Itálicos nossos. O conceito de derivado representa ainda um elemento interpretativo e integrativo auxiliar de um conjunto vasto de normas do CVM, cuja hipótese legal para ele remete expressamente: assim, e já sem falar nas demais normas legais que são aplicáveis aos instrumentos financeiros em geral (e, portanto, em princípio, também aos derivados), vejam-se, a título exemplificativo, os arts. 111.º, nº 1, h), ii), j), ii), 204.º, no 1, b), 213.º, nº 5, 248.º, nº 1, a), 289.º, nº 1, a), 290.º, nº 3, f), g) e h), 311.º, nº 3, a) e b), 314.º-D, nº 1, a), e 378.º, nº 4, todos do citado Código.

24- Jornal Oficial nº L 145, de 30 de Abril de 2004, 1-44. Sobre esta directiva, posteriormente alterada pelas Directiva 2006/31/CE, de 5 de Abril, e Directiva 2008/10/CE, de 11 de Março, vide em geral GONÇALVES, Renato, Nótulas Comparatísticas sobre os Conceitos de Valor Mobiliário, Instrumento do Mercado Monetário e Instrumento Financeiro na DMIF e no Código dos Valores Mobiliários, in: 19 “Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários” (2004), 94-103.

25- Jornal Oficial nº L 241, de 2 de Setembro de 2006, 1-25.

26- Publicado no “Diário da República”, IIª Série, de 1 de Fevereiro de 2002. Mesmo fora do domínio jusfinanceiro e até juscomercial, se verifica uma consa-gração legal crescente da figura: apenas a título de exemplo, vejam-se as leis tributárias (arts. 4.º, nº 3, c), 5.º, nº 8 do Código do IRS, arts. 78.º e 79.º do Códi-go do IRC, art. 33.º, nº 1, c) do Estatuto dos Benefícios Fiscais) e as leis contabilísticas (v.g., a projectada “NCRF – Norma Contabilística e de Relato Financei-ro” 27 em Portugal, os “IAS – International Accounting Standard” 7, 32 e 39 no plano internacional).

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II. CARACTERIZAÇÃO I. O termo “derivado” é um termo juridicamen-te polissémico: não existindo uma definição legal e geral da figura, ele vem sendo utilizado pelo legislador, jurisprudência e doutrina em sentidos diversos, designando, ora uma catego-ria especial de instrumentos financeiros, ora os contratos negociáveis em que assentam, ora ainda as posições jurídicas em que investem os respectivos titulares.27 À laia de mera noção preambular, abrimos este estudo definindo os derivados como sendo aqueles instrumentos financeiros que se consubstanciam em contratos a prazo celebra-dos e valorados por referência a um determina-do activo subjacente28. Ora, a compreensão des-ta noção apenas se torna verdadeiramente possí-vel através de uma análise circunstanciada das características fundamentais que contradistin-guem os derivados no universo geral dos instru-mentos financeiros (contrato, activo subjacente, prazo, risco, abstracção), bem ainda como dos traços essenciais do respectivo regime jurídico (criação, negociação, circulação, e extinção).29 1. Instrumento Financeiro

I. Os instrumentos financeiros (“financial ins-truments”, “Finanzinstrumente”, “instruments

financiers”, “strumenti finanziari”) são um con-junto de instrumentos juscomerciais susceptí-veis de criação e/ou negociação no mercado de capitais, que têm por finalidade primordial o financiamento e/ou a cobertura do risco da acti-vidade económica das empresas. Tais instru-mentos encontram-se hoje expressamente con-sagrados no art. 2.º, nos 1 e 2 do CVM, podendo ser ordenados em três categorias fundamentais: os instrumentos mobiliários (ou valores mobiliários), os instrumentos monetários (ou do mercado monetário), e os instrumentos derivados.30

II. Os derivados são assim um dos tipos ou categorias dos instrumentos financeiros. Ao nível macrojurídico, os derivados contradistin-guem-se dos demais por serem instrumentos típicos do mercado de capitais a prazo (“Terminmarkt”, “future markets”, “marché à terme”): ao passo que os instrumentos mobiliá-rios são instrumentos típicos do mercado de capitais em sentido estrito (“Kapitalmarkt”, “securities market”, “marché des valeurs mobi-lières”), e os instrumentos monetários são ins-trumentos típicos do mercado monetário (“Geldmarkt”, “money market”, “marché monétaire”), o mercado dos derivados caracteriza-se por ser um segmento do mercado financeiro cujas operações, no lugar de serem objecto de execução imediata (operações a

27- Sobre esta polissemia, vide entre nós ASCENSÃO, J. Oliveira, Derivados, 49, in: AAVV, “Direito dos Valores Mobiliários”, vol. IV, 41-68, Coimbra Editora, 2000. Noutros quadrantes, GIRINO, Emilio, I Contratti Derivati, 7 e segs., Giuffrè, Milano, 2001; HUDSON, Alastair, The Law on Financial Derivatives, 12, 3rd edition, Sweet & Maxwell, London, 2002; SERNETZ, Julia, Derivate und Corporate Governance, 48, Peter Lang, Frankfurt am Main, 2006; ZUNZUNEGUI, Fernando, Ley de Mercado de Valores, 178, Colex, Madrid, 2006.

28- Cf. supra I.

29- Trata-se de características tendenciais, e não absolutas ou exclusivas. Como veremos, os derivados não constituem uma categoria inteiramente homogénea – abarcando instrumentos financeiros que não revestem a totalidade daquelas características gerais (“maxime”, certos derivados exóticos ou híbridos) – e inteiramente estanque face às demais categorias de instrumentos financeiros – pense-se em certos valores mobiliários e instrumentos monetários assentes em técnicas de derivação, como é o caso, por exemplo, dos “warrants” autónomos ou de certas modalidades especiais de obrigações de caixa (v.g., differential notes”).

30- Sobre a noção e os tipos de instrumentos financeiros, vide desenvolvidamente ANTUNES, J. Engrácia, Os Instrumentos Financeiros, Almedina, Coimbra, 2009.

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A contado ou “spot”), envolvem a existência de um período de tempo mais ou menos longo entre a data da sua realização e a de execução dos seus efeitos (operações a prazo ou “forward”)31. Ao nível microjurídico, os derivados são instrumentos financeiros que se contradistinguem dos demais por uma série de características que serão justamente analisadas em seguida: assim, por exemplo, ao contrário dos valores mobiliários, os derivados têm por regra a sua fonte num contrato (e não num documento), são fruto de um acordo negocial (e não de uma emissão em sentido técnico), são destituídos de representação cartular ou regis-tral própria (ou até, regra geral, de forma legal obrigatória), e, no que tange aos derivados de mercado organizado, são em número tenden-cialmente ilimitado (podendo ser abertas tantas posições contratuais quantos os interessados) e insusceptíveis de transmissão (dado ser sempre possível aos terceiros abrir novas posições con-tratuais, bem como aos titulares actuais fecha-rem as suas posições mediante operações de sinal contrário). Entre as principais espécies de

instrumentos derivados, devem mencionar-se os futuros, as opções, os “swaps”, os derivados de crédito, os contratos diferenciais, os “forwards”, os “caps”, “floors”, e “collars”, bem assim como uma extensa panóplia de outros derivados nominados, inominados, híbri-dos e sintéticos (“commodities derivatives”, “weather derivatives”, “economic derivatives”, “freight derivatives”, “real estate derivatives”, “structured notes”, etc.). 2. Contrato

I. Os derivados são instrumentos financeiros que têm a sua génese usual num contrato: como sublinha a doutrina, os derivados “nascem de contratos” (Gilles NEJMAN)32, os derivados “são contratos” (Günter REINER)33, os deriva-dos são “contratos que geram um instrumento financeiro” (Emilio GIRINO)34, ou “o denomi-nador comum dos instrumentos derivados negociados no mercado organizado ou fora dele é, indiscutivelmente, um contrato” (Frédéric PELTIER).35

31- Em sentido amplo ou lato, o mercado de capitais abrange o mercado de valores mobiliários (capitais de médio e longo prazo), o mercado monetário (capitais de curto prazo) e o mercado de derivados (capitais com funções de cobertura de risco, especulação e arbitragem). Sobre o conceito, sentido e evolução do mercado de capitais, vide, entre nós, FERREIRA, A. José, Direito dos Valores Mobiliários, 17 e segs., AAFDL, Lisboa, 1997; noutros países, vide BON-NEAU, Thierry/ DRUMMOND, France, Droit des Marchés Financiers, 13, Economica, Paris, 2005; COSTI, Renzo/ ENRIQUES, Luca, Il Mercato Mobiliare, 1 e segs., Cedam, Padova, 2004; KÜMPEL, Siegfried, Bank- und Kapitalmarktrecht, 1279, 3. Aufl., Otto Schmidt, Köln, 2004.

32- Les Contrats de Produits Dérivés: Aspects Juridiques, 15, Larcier, Bruxelles, 1999.

33- Derivative Finanzinstrumente im Recht, 13, Nomos, Baden-Baden, 2002.

34- I Contratti Derivati, 169, Giuffrè, Milano, 2001.

35- Marchés Financiers et Droit Commun, 156, Banque Éditeur, Paris, 1997. No mesmo sentido, Heribert HIRTE e Thomas MÖLLERS, para quem “o conceito de contrato a prazo tem um significado central para o conceito de derivado” (Kölner Kommentar zum WpHG, 94, Carl Heymanns, Köln, 2007), havendo mesmo autores que consideram que os dois conceitos são praticamente sobreponíveis (MELZER, Philipp, Zum Begriff des Finanztermingeschäfts, 370, in: 3 “Zeitschrift für Bank- und Kapitalmarktrecht” (2003), 366-372).

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II. Sem prejuízo da sua enorme diversidade, estes contratos revestem usualmente, além da sua característica fundamental de contratos a prazo36, uma natureza consensual – não estando sujeitos a forma legal obrigatória (excepto nos casos em que se insiram em serviços de inter-mediação financeira com o público investidor: cf. art. 321.º, nº 1 do CVM)37 –, não real – cuja formação requer a mera declaração de vontade das partes contratantes –38, sinalagmática – sendo fonte para ambas as par-tes de obrigações ligadas entre si por um nexo de reciprocidade –39, patrimonial – onde está em regra afastado qualquer “intuitus personae”, sendo irrelevante a pessoa ou qualidades dos contratantes –40, onerosa – envolvendo atribui-ções patrimoniais para ambas as partes –, e aleatória – no sentido em que é o risco e incerteza que fornece a própria causa e objecto contratuais.

III. Sublinhe-se que a expressão “contrato”, utilizada nas leis portuguesa (art. 2.º, nº 1, e) do CVM) e estrangeiras (“contrats financiers”, “Termingeschäfte”, “contratti a termine”), é aqui empregue, não no seu sentido tradicional ou técnico, mas no sentido amplíssimo de modelo negocial abstracto apto a gerar vincula-ções jurídicas: se existem derivados que corres-pondem efectivamente a verdadeiros negócios jurídicos bilaterais (v.g., “swaps”, “caps”, “floors”), existem outros que, como melhor veremos adiante, têm a sua origem remota em “contratos-tipo” ou “produtos contratuais”, construídos na base de condições negociais padronizadas adequadas à constituição futura e massificada de direitos e deveres em mercado pelos investidores interessados (como é o caso típico dos futuros e opções negociados em mercado organizado).41

36- Cf. infra II, 4.

37- Apesar desta natureza consensual, trata-se de contratos que revestem usualmente uma forma escrita voluntária (art. 222.º do Código Civil), atenta a sua habitual padronização pela via de cláusulas contratuais gerais ou da remissão para modelos contratuais (“master agreements”) formulados por organizações nacionais e internacionais especializadas, com destaque para a “ISDA – International Swaps and Derivatives Association”. Sobre este fenómeno de estandardi-zação, bem como para modelos contratuais vários de derivados, vide GOOCH, Anthony/ KLEIN, Linda, Documentation for Derivatives, 157 e segs., Euromoney, London, 1993; HARDING, Paul, Mastering the ISDA Master Agreements (1992 and 2002): A Practical Guide for Negotiation, 2nd edition, FT Prentice Hall, London, 2003.

38- Excepto no caso das opções, que constituem contratos reais “quoad constitutionem”, uma vez que o pagamento do prémio pelo beneficiário ou optante constitui um requisito constitutivo da formação do próprio contrato. Sobre a distinção entre contratos obrigacionais e reais, vide TELLES, I. Galvão, Manual dos Contratos em Geral, 463 e segs., 4ª edição, Coimbra Editora, 2002.

39- Tal sinalagma funcional entre as prestações das partes é, todavia, compatível com múltiplas variantes: por exemplo, pode tratar-se de uma prestação única (v.g., no caso dos “forwards”) ou prestações sucessivas (v.g., no caso dos “swaps”), assim como podem ser prestações simétricas (v.g., futuros) ou assimétricas (v.g., é o caso das opções, em que uma das partes, o beneficiário, sabe de antemão qual o valor máximo da sua prestação, o prémio). Sobre tal sinalagma, vide REINER, Günter, Derivative Finanzinstrumente im Recht, 13 e segs., Nomos, Baden-Baden, 2002.

40- Ao menos, nos derivados de mercado organizado: cf. NASSETTI, F. Caputo, Profili Civilistiche dei Contratti Derivati Finanziari, 197, Giuffrè, Milano, 1997. Por outro lado, os sujeitos dos derivados podem dividir-se em três grandes categorias: entidades gestoras de mercado, intermediários financeiros ou “dealers” (entre os quais se destacam as instituições de crédito, as empresas de investimento, e as empresas seguradoras), e investidores ou “end-users” (entre os quais se destacam as empresas, os Estados, e os investidores institucionais) (KRAWIECK, Kimberly, More Than Just “New Financial Bingo”: A Risk-Based Approach to Understanding Derivatives, 14 e segs., in: 23 “Journal of Corporation Law” (1997), 1-62). Salientando a progressiva emergência dos derivados do mercado de retalho e do pequeno investidor individual, JACKSON, Carolyn, Have you Hedge Today? The Inevitable Advent of Consumer Derivatives, in: 67 “Fordham Law Review” (1999), 3205-3260.

41- DRUMMOND, France, Le Contrat comme Instrument Financier, in: “Mélanges en Hommage à François Terré”, 661-675, Puf, Paris, 1999; sintomático é também que, na “praxis” financeira germânica, os negócios sobre derivados sejam designados “Kontrakte”, e não “Verträge” (REINER, Günter, Derivative Finanzinstrumente im Recht, 3, Nomos, Baden-Baden, 2002). Com os “contratos derivados” não se podem confundir outros contratos financeiros a prazo, susceptíveis de veicular finalidades ou resultados parcialmente similares, tais como o contrato de reporte (arts. 477.º a 479.º do Código Comercial) – consisten-te na compra a contado de títulos de crédito ou valores mobiliários, e na revenda simultânea a termo desses títulos ou valores, por preço determinado – e o contrato de empréstimo financeiro (art. 350.º do CVM) – especialmente quando associado às chamadas vendas curtas ou “short selling” (sobre a figura, vide REIS, Célia/ SOUSA, Rita/ VIDAL, Isabel, Operações de Short-Selling, in: 12 “Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários” (2001), 160-185).

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3. Activo Subjacente I. Os derivados são instrumentos financeiros assentes em técnicas de derivação42: como o seu próprio nome inculca, estamos perante instru-mentos “de segundo grau”, que são construídos e valorados por referência a uma outra realidade primária, ou “de primeiro grau”, que a lei desig-na por “activo subjacente” (“underlying asset”, “Basiswert”).43 II. Os activos subjacentes (ou derivantes) são hoje praticamente ilimitados, podendo revestir natureza corpórea ou incorpórea, real ou virtual, industrial ou financeira, jurídica ou económica – ponto é que se trate de realidades tipicamente sujeitas a risco de variação do respectivo valor.44 Entre os mais conhecidos nos dias de hoje, incluem-se os valores mobiliários – de natureza real ou meramente nocional (por exemplo, uma acção ou obrigação hipotética de determinada empresa, que nunca foi realmente emitida) –, os instrumentos monetários – v.g., certificados de

aforro, papel comercial, obrigações de caixa –, as taxas de juros – v.g., “Euribor”, “Libor”, “Mid”, “Ribor”, “overnight”, etc. –, as divisas – v.g., o câmbio euro/dólar, dólar/iene, etc. –, os índices financeiros – sobre valores mobiliários, taxas de juros, divisas, e outros (v.g., “PSI20”, “S&P500”, “Eurostoxx 50”, “MSCI World”, “Dow Jones”, “CAC”, “Nikkey 255”, “Dax30”) –, os índices económicos – sobre taxas de infla-ção, de desemprego, de crescimento, de produto nacional interno, e outros (v.g., “U.S. gross domestic product”, “Eurozone HICP inflation index”, etc.) –, as mercadorias – desde produtos agrícolas (v.g., café, cacau, açúcar) até recursos naturais (v.g., ouro, prata, aço, platina) ou fon-tes energéticas (v.g., electricidade, gás natural) –, as variáveis climáticas (v.g., “degree day”, “weather index”), as tarifas de transporte (v.g., “Worldscale Tanker Nominal Freight”), e ... os próprios derivados – ou seja, derivados de segundo grau, cujo activo subjacente é consti-tuído por um outro derivado (v.g., “swaptions” de divisas). Em suma, a gama dos activos sub-jacentes é tal que não falta quem defina os deri-vados como “instruments that are based on the price of something else”.45

42- Este traço fundamental corresponde, de resto, à própria raiz etimológica da expressão: do latim, “derivatio”, que significa o processo pelo qual se obtém um produto a partir da transformação de outro ou outros (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, vol. I, 1116, Verbo, Lisboa, 2001).

43- Trata-se de um aspecto comummente referido na literatura internacional: “A financial derivative is a financial instrument based on another basic instru-ment, which value depends on it” (KOLB, Robert/ OVERDAHL, James, Financial Derivatives, 1, 3rd edition, J. Wiley & Sons, 2002); “Si definiscono «contratti derivati» quei contratti il cui valore deriva dal prezzo di una «attività finanziaria sottostante»” (NASSETTI, F. Caputo, Profili Civilistiche dei Contratti Derivati Finanziari, 2, Giuffrè, Milano, 1997); “Derivative Finanzinstrumente sind gegenseitige Verträge deren Wert vom Betrag einer zugrunde liegenden marktabhängigen Basiswert abgeleitet ist” (REINER, Günter, Derivative Finanzinstrumente im Recht, 1, Nomos, Baden-Baden, 2002). Mas também pelo próprio legislador: vide assim, por exemplo, a Norma Regulamentar do ISP nº 9/2007-R, de 28 de Junho, que define os «produtos derivados» como “os instrumentos financeiros cujo valor depende de um activo subjacente de natureza real ou teórica” (art. 2.º, c)).

44- É correcto observar que esta característica de derivação está também presente, de um modo genérico, noutros instrumentos financeiros: com efeito, também o valor de uma acção ou de uma obrigação está de algum modo dependente das oscilações do valor de um activo subjacente, que é o património da entidade emitente. Todavia, ao passo que, nesses e noutros casos, a derivação corresponde a uma característica meramente acessória ou incidental do instrumento finan-ceiro, nos derivados ela emerge em pleno âmago ou “coração” da própria figura, fornecendo o seu paradigma construtivo ou identidade genética, em torno do qual gravita toda a sua própria concepção, estrutura e funcionamento.

45- EASTERBROOK, Frank, Derivative Securities and Corporate Governance, 734, in: 69 “University of Chicago Law Review” (2002), 733-747. A natureza dos activos, podendo ser extremamente heterogénea, não é, todavia, indiferente para efeitos do regime jurídico dos instrumentos financeiros derivados: assim, por exemplo, os derivados cujo activo subjacente seja de natureza meramente teórica ou virtual (v.g., valores mobiliários nocionais, índices financeiros, índices económicos, etc.) apenas admitem liquidação financeira, estando obviamente excluída a liquidação física.

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III. Na esteira do legislador comunitário, o legislador português consagrou um extensíssi-mo elenco de activos relevantes (art. 2.º, nº 1, e) e f) do CVM). Tal elenco deve considerar-se fechado ou exaustivo46: assim sendo, não serão de admitir entre nós alguns tipos de derivados, conhecidos na “praxis” financeira internacional, que são construídos sobre outros tipos de acti-vos, v.g., derivados sobre resultados de futebol, votações eleitorais, ou até catástrofes (excepto se associadas a variáveis climatéricas)47. Muito embora a lei não faça tal exigência, afigura-se que os activos subjacentes deverão ser susceptí-veis de reprodução ou replicação (“Reproduzierbarkeit”) permanente: tal signifi-ca que tal activo, enquanto variável da qual depende o cômputo do valor do derivado48, deve ser uma grandeza continuamente mensurável durante o prazo da sua vigência até à data da sua execução.49

4. Prazo

I. Os derivados são caracteristicamente instru-mentos financeiros a prazo50. Tal significa dizer

que os negócios em que se consubstanciam, no lugar de serem objecto de execução imediata (operações a contado ou “spot”), se caracteri-zam pela existência de um período de tempo mais ou menos longo, que pode ir de alguns meses a algumas semanas ou dias apenas, entre a data da sua celebração e a data da execução dos direitos e obrigações deles emergentes (operações a prazo ou “forward”)51. Esse prazo, porém, poderá ter uma natureza firme ou condicional, “rectius”, o prazo ou lapso de tempo intercorrente poderá configurar juridicamente um “termo” ou uma “condição”. Se existem derivados cuja execução tem lugar necessariamente numa data de vencimento pré-determinada – funcionando o prazo como uma espécie de termo inicial certo (“dies certus an certus quando”): é o caso dos futuros –, outros existem em que aquela execução poderá ter ou não lugar nessa (ou até essa) data consoante a vontade do respectivo titular ou beneficiário – pelo que ao prazo vai acoplada uma verdadeira condição incerta (“dies incertus an incertus quando”): é o caso das opções, respectivamente, de estilo europeu e americano.

46- Nesse sentido, aponta a enumeração fechada dos vários activos referidos nas subalíneas i) a iii) da alínea e) do art. 2.º, nº 1 do CVM, bem como a lista adicional de activos previstos nas alíneas a) a g) do art. 39.º do Regulamento CE/1287/2006, de 10 de Agosto, aplicável por força do art. 2.º, nº 1, f) do mesmo Código. No sentido da taxatividade dos elencos legais dos activos, vide, em ordens jurídicas congéneres, REINER, Günter, Derivative Finanzinstrumente im Recht, 10 e segs., 25 e seg., Nomos, Baden-Baden, 2002; MELZER, Philipp, Zum Begriff des Finanztermingeschäfts, 370, in: 3 “Zeitschrift für Bank- und Kapitalmarktrecht” (2003), 366-372.

47- Por exemplo, as chamadas “CAT calls” ou “CE puts” (“catastrophe equity put options”) negociadas na “Chicago Board of Trade” (sobre os derivados de seguro em geral, vide BRIYS, Eric/ VARENNE, François, Insurance: From Underwriting to Derivatives, J. Wiley & Sons, New York, 2001).

48- Sendo fundamental que o valor do derivado fique dependente do valor do activo subjacente, já é indiferente a natureza, directa ou indirecta, dessa depen-dência: assim, por exemplo, um futuro tanto pode derivar o seu valor de uma concreta acção ou mercadoria como de um índice de acções ou de um cabaz de mercadorias.

49- Numa boa parte dos casos, tal significará que o activo seja transaccionável num mercado a pronto líquido, embora nem sempre seja necessariamente assim: pense-se em activos meramente nominais ou construídos, como, por exemplo, os “derivados de cestas” (“basket-derivatives”, “Korb-Derivate”) que, ao contrário dos derivados sobre índices (v.g., “Dow Jones”), funcionam por referência a um cabaz ou cesta de activos (v.g., as acções de algumas empresas) seleccionados “ad hoc” pelos próprios contratantes.

50- Sobre os derivados como operações a prazo – e sobre a essencialidade do elemento temporal –, vide ASCENSÃO, J. Oliveira, Derivados, 47, in: AAVV, “Direito dos Valores Mobiliários”, vol. IV, 41-68, Coimbra Editora, 2000; noutros quadrantes, CAPRIGLIONE, Francesco, Essenzialità del Termine nelle “European Call Options”, 501, in: LVII “Banca, Borsa, Titoli di Credito” (1994), 598-504; CORDIER, Jean, Les Marchés à Terme, Puf, Paris, 1992; ELLER, Roland (Hrgs.), Handbuch Derivativer Instrumente, 9, Schäffer-Poeschel, Stuttgart, 1996.

51- A distinção entre operações a prazo (“forward transactions”, “Termingeschäfte”) e a contado (“spot transactions”, “Kassageschäfte”) nem sempre será fácil (cf. ainda os arts. 15.º e segs. do Regulamento CMVM nº 3/2007, de 9 de Novembro). Muito embora as operações a prazo impliquem usualmente um prazo de execução superior a dois dias (cf. art. 38.º, nº 2 do Regulamento CE/1287/2006, de 10 de Agosto), é necessário advertir para a possibilidade de existência de operações financeiras híbridas a meio caminho entre o mercado a prazo e a contado (MELZER, Philipp, Zum Begriff des Finanztermingeschäfts, 370 e segs., in: 3 “Zeitschrift für Bank- und Kapitalmarktrecht” (2003), 366-372), além de não repugnar reconhecer a natureza de derivado, a título excepcional, a produtos negociados em prazo inferior, mormente a certos contratos executados no dia seguinte (v.g., os contratos “day-ahead” negociados no “Powernext”) ou até no próprio dia (“intraday trading”: cf. BINDER, Jens-Heinrich, Daytrading als Finanztermingeschäft i.S.d. §2, Abs. 2A WpHG, in: 34 “Zeitschrift für Unternehmens- und Gesellschaftsrecht” (2005), 329-369; REINER, Günter, Daytrading in Niemandsland zwischen Kassa- und Termingeschäft, in: 14 “Zeitschrift für Bankrecht und Bankwirtschaft” (2002), 211-217).

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II. Esta essencialidade do factor “tempo” é, não apenas inteiramente consistente com a função primacial de cobertura de risco dos derivados – já que, consistindo o risco na oscilação das variáveis económicas no futuro, apenas uma operação a prazo, executável em data futura, lhe poderá fazer face –, como também determinante de vários aspectos do respectivo regime jurídico – mormente, conformando o conteúdo das pres-tações contratuais. Assim, por exemplo, num contrato de futuros é sempre aposto um termo certo inicial ou suspensivo – que assume natu-reza de termo essencial –, o qual confere justa-mente a este derivado a sua fisionomia típica de instrumento financeiro cujos efeitos jurídicos principais (entrega de activo subjacente, paga-mento do preço acordado, pagamento do saldo diferencial) se produzem apenas em data futura pré-determinada.

5. Risco

I. Os derivados são instrumentos financeiros tipicamente estocásticos e aleatórios. Tal signi-fica dizer, desde logo, que os negócios em que se consubstanciam envolvem prestações nego-ciais cujo “an” e “quantum” não é possível determinar no momento da respectiva celebra-ção para uma ou ambas as partes – dependendo de um evento futuro de natureza estocástica, apenas determinável em definitivo no momento da respectiva execução. Mas significa mais: trata-se de negócios em que o “risco” fornece o próprio objecto contratual, no sentido em que as partes contratantes, mais do que simplesmente

celebrá-los num estado de défice informativo, visam justamente negociar sobre tal incerteza, fazendo desta a verdadeira causa e objecto negociais.52 II. Sublinhe-se, porém, que pode ser diferencia-da a distribuição do risco contratual: ao passo que uma boa parte dos derivados possuem uma estrutura simétrica de risco – já que, implicando deveres recíprocos de liquidação física ou pecu-niária para ambas as partes, envolvem uma con-comitante distribuição mútua de ganhos e per-das (v.g., futuros, “swaps”) –, outros existem que se caracterizam por um perfil de risco assi-métrico, em que uma das partes sabe de ante-mão qual o seu risco ou perda máximos (v.g., é o caso das opções, cujo comprador ou benefi-ciário sabe à partida que incorre numa perda máxima correspondente ao respectivo prémio).53

6. Abstracção

I. Por último, os derivados são ainda instrumen-tos financeiros abstractos no sentido em que, uma vez criados, se tornam autónomos ou inde-pendentes em face dos respectivos activos sub-jacentes: muito embora economicamente o deri-vado constitua uma duplicação do activo subja-cente (pelo que o valor do primeiro deriva do valor do segundo), de um ponto de vista jurídi-co encontramo-nos perante instrumentos jusco-merciais “a se” cuja existência e validade é totalmente independente das vicissitudes jurídicas desse activo.

52- Com efeito, pode dizer-se que a condicionalidade estocástica é, de certo modo, própria de qualquer contrato, já que nestes sempre as partes trocam um presente certo por um futuro incerto: assim, por exemplo, num simples contrato de compra e venda, o perecimento das coisas sem culpa do devedor pode acarretar a extinção da obrigação, por impossibilidade objectiva (art. 790.º do Código Civil). Todavia, ao contrário dos contratos comuns, nos contratos aleatórios – de que os derivados são um exemplo – o risco e a incerteza (“Unsicherheitfaktor”) funcionam, não como vicissitude colateral e não desejada, mas, verdadeiramente, como a própria causa e objecto do acordo entre as partes. Sobre o ponto, vide também HENSSLER, Martin, Risiko als Vertragsgegenstand, 14, Mohr, Tübingen, 1994.

53- GROUP OF THIRTY, Derivatives: Practices and Principles, 30 e segs., Washington, 1993. Por isso também, na teoria económica, os derivados são por vezes descritos como “operações de soma zero” (“zero-sum”), já que os ganhos (ou perdas) de uma das partes correspondem exactamente às perdas (ou ganhos) da contraparte: ou seja, são instrumentos que não criam ou produzem valor, mas simplesmente operam transferências de valor entre os agentes económicos (cf. HAZEN, Tom, Rational Investment, Speculation, or Gambling? – Derivative Securities and Financial Futures and Their Effects on the Underlying Capital Markets, 1006 e segs., in: 86 “Northwestern University Law Review” (1992), 987-1037).

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II. Esta característica de abstracção é conhecida de outros instrumentos juscomerciais de circu-lação e mobilização de riqueza. Com efeito, é bem sabido que determinados títulos de crédito (letras, livranças, cheques) são caracterizados pela sua abstracção, no sentido em que os direi-tos cartulares abstraem das relações jurídicas fundamentais que lhe estiveram na origem: assim, por exemplo, o sacador de uma letra de câmbio não se pode recusar a efectuar o paga-mento a um portador mediato e de boa-fé com fundamento na nulidade do negócio subjacente à respectiva emissão (art. 17.º da Lei Uniforme das Letras e Livranças)54. Ora, no caso dos deri-vados, a abstracção é absoluta e pura, já que os direitos e obrigações deles emergentes se tor-nam totalmente imunes às vicissitudes jurídicas (mormente, invalidade ou inexistência) do acti-vo subjacente: que se trate de acções, obriga-ções, mercadorias, índices, ou taxas de juro, o contrato derivado, uma vez celebrado valida-mente, passa a constituir um negócio “a se stan-te”, dotado de total impermeabilidade jurídica, sendo assim irrelevante, por exemplo, se o pro-cesso de emissão de acções ou obrigações sub-jacentes a um contrato de futuros enferma de irregularidades, se os empréstimos subjacentes a um “swap” de taxa de juros são nulos, e assim por diante. III. ESPÉCIES I. O mercado de derivados é um mercado em contínuo crescimento desde os finais dos anos 80, sendo essa expansão caracterizada por uma

tal profusão de modalidades e variantes, em quantidade e qualidade, que inviabiliza a for-mulação de classificações estáveis na matéria: não surpreende assim que haja mesmo quem considere que “a instabilidade e a aversão à sis-tematização são características institucionais dos derivados”55. Aliás, isso mesmo acabou por ser reconhecido de alguma forma pelo próprio legislador português, que expressamente consa-grou o carácter aberto e não taxativo do elenco legal dos derivados, ao abranger genericamente “quaisquer outros contratos derivados” relativos aos activos subjacentes legalmente relevantes (art. 2.º, nº 1, f) do CVM).56 II. Sem prejuízo desta advertência, a literatura jurídica e económica especializada tem procura-do agrupar os instrumentos derivados em dife-rentes espécies ou tipologias, de acordo com uma diversidade de critérios ordenadores.57 1. Os Arquétipos: Futuros, Opções, “Swaps” I. O critério mais divulgado classifica os deriva-dos de acordo com o conteúdo da posição jurí-dico-contratual. Segundo este critério, podemos distinguir entre três espécies fundamentais de derivados: os futuros (que conferem a ambas as partes posições recíprocas de compra e venda sobre o activo subjacente em data e por preço previamente fixados), as opções (que conferem a uma das partes direitos potestativos de com-pra ou de venda do activo subjacente em ou até data futura, por preço previamente fixado), e os “swaps” (que conferem às partes posições

54- Tal abstracção, além de limitada sobretudo aos chamados títulos de crédito abstractos, é meramente relativa, pois não vale no plano das relações cartulares imediatas, está sujeita à “exceptio doli”, e não impede a invocabilidade das excepções no âmbito de acções judiciais não cambiárias. Sobre a distinção entre títulos de crédito abstractos e causais, bem como sobre o significado e alcance da autonomia cartular, vide ANTUNES, J. Engrácia, Os Títulos de Crédito, Coimbra Editora, 2009, em curso de publicação; MARTINS, A. Soveral, Títulos de Crédito e Valores Mobiliários, vol. I, 27 e segs., Almedina, Coimbra, 2008; VASCONCELOS, P. Pais, Direito Comercial – Títulos de Crédito, 26 e seg., AAFDL, Lisboa, 1997.

55- GIRINO, Emilio, I Contratti Derivati, 44, Giuffrè, Milano, 2001. Assim, por exemplo, é impossível afirmar com segurança se uma “swaption” deve ser classificada como um “swap” ou uma opção, tal como não é possível distinguir claramente entre um futuro sobre um índice de acções e um “domestic currency swap” construído sobre um tal índice.

56- Sublinhe-se que o aspecto agora referido – natureza aberta ou exemplificativa do elenco legal dos instrumentos financeiros derivados – é distinto da (embora conexo com a) questão da natureza aberta ou fechada dos activos subjacentes previstos na lei. Sobre tal questão, vide supra III, 3.

57- Sobre as diferentes tipologias dos derivados, vide NASSETTI, F. Caputo, I Contratti Derivati Finanziari, 21 e segs., Giuffrè, Milano, 2007.

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jurídicas permutáveis relativas a determinadas quantias pecuniárias em data ou datas futuras previamente fixadas). II. Os futuros, opções e “swaps” são assim comummente qualificados na doutrina como os “arquétipos”58, “grupos”59, “formas”60, ou “categorias”61 essenciais dos derivados. Estas espécies de derivados – também por vezes designados “core derivatives” (Henry HU)62 – são relevantes na medida em que fornecem a base estrutural fundamental de todos os produ-tos derivados, sendo as demais espécies e subespécies resultantes da respectiva combina-ção ou articulação. Os derivados são, como o sabemos, contratos a prazo, mediando um inter-valo de tempo entre os momentos da respectiva celebração e execução: ora, também já o vimos, os derivados, ou bem que são a “prazo firme” ou negócios a termo (futuros), ou bem que são a “prazo condicional” ou negócios condicionais (opções), ou bem que são variantes ou combinações entre tais elementos firmes e condicionais63. Muito embora os “swaps” não escapem verdadeiramente a esta regra, o seu enorme relevo prático e complexidade opera-cional têm justificado, que na literatura especia-lizada, eles venham sendo autonomizados como um terceiro tipo fundamental.64

2. Derivados de Primeira, Segunda e Terceira Geração I. Outro critério interessante é aquele que clas-sifica os derivados de acordo o conteúdo da sua concepção ou gestação financeira. Segundo este critério, os derivados podem ser ordenados em três grandes famílias ou gerações: os deriva-dos de “primeira geração” – que abrangem os arquétipos de derivados (futuros, opções sim-ples, “swaps”), relativos a activos subjacentes tradicionais (acções, juros, divisas, mercado-rias) e primacialmente objecto de liquidação física (entrega do activo contra pagamento do preço) –, os derivados de “segunda geração” – que compreendem variantes ou modalidades especiais daqueles tipos primogénitos (v.g., “forwards”, “caps”, “floors”, derivados de cré-dito) relativos a outros tipos de activos, sobretu-do de natureza financeira e nocional (v.g., índi-ces financeiros, índices económicos, variáveis climatéricas, tarifas de transporte, risco de cré-dito, etc.), e que são quase exclusivamente objecto de liquidação financeira (pagamento do diferencial de valor) –, e os derivados de “terceira geração” – que designam uma classe de novos produtos financeiros de estrutura híbrida e complexa, resultante da combinação de derivados de primeira e/ou segunda geração

58- GIRINO, Emilio, I Contratti Derivati, 47, Giuffrè, Milano, 2001.

59- HUDSON, Alastair, The Law on Financial Derivatives, 15, 3rd edition, Sweet & Maxwell, London, 2002.

60- GOTTSFIELD, Robert/ LOPEZ, Michael/ HICKS, William, Derivatives: What They Are, What They Cause, What’s The Law, 34, in: 32 “Arizona Attorney” (1996), 33-47.

61- ASCENSÃO, J. Oliveira, Derivados, 52, in: AAVV, “Direito dos Valores Mobiliários”, vol. IV, 41-68, Coimbra Editora, 2000.

62- Hedging Expectations: “Derivative Reality” and the Law and Finance of the Corporate Objective, 13, in: 21 “The Journal of Corporation Law”, (1995), 3-51.

63- Neste sentido, em diferentes ordenamentos jurídicos, vide GROUP OF THIRTY, Derivatives: Practices and Principles, 29 e seg., Washington, 1993; HIRTE, Heribert/ MÖLLERS, Thomas (Hrsg.), Kölner Kommentar zum WpHG, 94 e segs., Carl Heymanns, Köln, 2007; NEJMAN, Gilles, Les Contrats de Produits Dérivés: Aspects Juridiques, 17, Larcier, Bruxelles, 1999.

64- REINER, Günter, Derivative Finanzinstrumente im Recht, 1, Nomos, Baden-Baden, 2002.

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(v.g., opções sobre “forwards”, “swaptions”, “two strike interest rate caps”, “foreign exchange contigent forwards”, “swaps” exóticos, derivados sobre derivados) ou até de derivados com outros instrumentos financeiros (v.g., “credit-linked notes”, “synthetic convertible notes”, “interest differential notes”).65

II. Este critério, de matriz fundamentalmente económica e não jurídica, é relevante, não ape-nas por colocar em perspectiva a enorme e apa-rentemente imparável dinâmica de desenvolvi-mento do mercado dos derivados no universo dos instrumentos financeiros, como também por permitir uma melhor compreensão sistemática das similitudes e diferenças operacionais dos novos produtos germinados na “praxis” finan-ceira e bancária.66 3. Outras Classificações I. Ao lado destes critérios fundamentais, muitos outros existem, que se revestem de enorme uti-lidade para nos dar a conhecer o carácter multi-facetado deste instrumento financeiro. II. Assim, de acordo com o critério da sua previsão legal, podemos distinguir entre derivados nominados ou inominados, consoante

se encontram expressamente previstos na lei (“maxime”, futuros, opções, “swaps”) ou são fruto da pura inventiva da autonomia privada (v.g., “caps”, “floors”, “swaptions”, derivados exóticos e híbridos, etc.); de acordo com o critério da sua criação e negociação, podemos distinguir entre derivados uniformes ou de balcão, consoante a respectiva constituição e transacção ocorre de forma estandardizada em mercados organizados (“maxime”, futuros e opções padronizadas) ou de forma individuali-zada ao balcão dos intermediários financeiros (v.g., “swaps”, “collars”, “forwards”); de acor-do com o critério do activo subjacente, pode-mos distinguir entre derivados financeiros e mercadológicos, consoante lhes subjazem enti-dades de natureza puramente financeira (“financial derivatives”: v.g., uma acção, uma divisa, uma taxa de juro, um índice financeiro) ou de natureza agrícola, comercial ou industrial (“commodities derivatives”: v.g., um metal pre-cioso, um tipo de cereal, cabeças de gado); de acordo com o critério da sua liquidação, pode-mos distinguir entre derivados com liquidação física ou financeira, consoante esta consiste na entrega do activo subjacente e pagamento do preço respectivo (“physical settlement”) ou simplesmente no pagamento do saldo diferen-cial entre o valor contratado e o valor de referência do activo no vencimento (“cash settlement”); e assim por diante.

65- De acordo com Kimberly KRAWIECK, estima-se que, nos inícios dos anos 90, fossem já negociados no mercado mais de 1200 diferentes modalidades de derivados (More Than Just “New Financial Bingo”: A Risk-Based Approach to Understanding Derivatives, 9, in: 23 “Journal of Corporation Law” (1997), 1-62). A dinâmica é de tal ordem que não deixa de surpreender os próprios profissionais do sector: segundo Warren BUFFET, o leque dos instrumentos finan-ceiros “está apenas limitado pela imaginação dos homens («men») e, por vezes, ao que parece, dos loucos («madmen»)” (cf. STOKES, David, Comment on «Practical Derivatives»: A Transactional Approach, 500, in: 23 “Journal of International Banking Law and Regulation” (2008), 500-501).

66- Sobre este critério, vide BRAUN, Wilfried, Finanzderivate im Spannungsfeld betriebswirtschaftlicher Notwendigkeit und rechtlicher Risikobegrenzung, 321 e seg., in: “Festschrift für Hugo Hahn”, 319-340, Nomos, Baden-Baden, 1997; CLOUTH, Peter, Rechtsfragen der ausserbörslichen Finanz-Derivate, 10 e segs., Beck, München, 2001; WINTER, Stefan, Derivative Finanzinstrumente der dritten Generation, 214, in: AAVV, “Derivative Finanzinstrumente”, 211-237, Schäffer-Poeschel, Stuttgart, 1995.

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IV. REGIME JURÍDICO

I. Em via geral, os derivados estão sujeitos ao mesmo regime jurídico aplicável aos demais instrumentos financeiros, por força da remissão genérica do art. 2.º, nº 2 do CVM. Tal não sig-nifica, todavia, que não existam importantes especialidades no que concerne à respectiva criação, negociação, circulação, e extinção, que importa brevemente assinalar.67

II. Cuidamos nesta oportunidade, naturalmente, apenas do regime jusfinanceiro dos derivados. Mas é mister salientar que este instrumento financeiro vai ganhando hoje outras importan-tes incidências jurídicas, que têm merecido uma crescente atenção por parte do legislador e da doutrina: como sublinha Steven EDWARDS, “derivatives encapsulate a plethora of legal issues”.68

Apenas a título de exemplo, recorde-se o relevo que os derivados possuem hoje no direito socie-tário – especialmente no plano da governação das sociedades69 e da responsabilidade dos órgãos de administração e de fiscalização70 –, no direito da contabilidade – sobretudo, após o acolhimento dos IAS 32 e 39 e do IFRS 7, na sequência do Regulamento CE/1606/2002, de 19 de Julho, que veio determinar a obrigatorie-dade da adopção das normas internacionais de contabilidade (IAS/ IFRS)71 –, no direito da insolvência – mormente, tendo em conta o regi-me jusinsolvencial especial dos contratos a pra-zo (art. 107.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas)72 –, no direito fiscal – mormente, atento o tratamento fiscal autóno-mo dos proveitos ou ganhos e custos ou perdas dos derivados, hoje expressamente previsto em sede de IRC (arts. 78.º e 79.º do Código do

67- Essas especialidades são especialmente nítidas no caso dos chamados derivados de mercado organizado – razão pela qual a estes nos referiremos prevalentemente em seguida.

68- Legal Principles of Derivatives, 1, in: “Journal of Business Law” (2002), 1-32.

69- Especialmente por força do efeito de dissociação entre a propriedade económica e jurídica do capital social, que os derivados são susceptíveis de criar: um exemplo disto mesmo pode ser encontrado no chamado fenómeno do esvaziamento do voto (“emptying vote”), consistente na dissociação entre propriedade de capital e titularidade do voto emergente do recurso a derivados (sobre o fenómeno, vide ANTUNES, J. Engrácia, Os “Hedge Funds” e o Governo das Socieda-des, in: AAVV, “Direito dos Valores Mobiliários”, vol. IX, Coimbra Editora, em curso de publicação; sobre o risco sistémico resultante do investimento em derivados pelos “hedge funds”, vide WYNKOOP, Noah, The Unregulables? The Perilous Confluence of Hedge Funds and Credit Derivatives, in: 76 “Fordham Law Review” (2008), 3095-3126).

70- Episódios como o colapso do britânico “Barings Bank” em 1995 (na sequência de perdas no valor de 900 milhões de euros resultantes de derivados sobre divisas) ou o rombo sofrido pela francesa “Société Générale” em 2008 (estimado em 3,6 biliões de euros, resultante de operações de futuros) ilustram bem esta importância. Sobre o tema, vide EASTERBROOK, Frank, Derivative Securities and Corporate Governance, in: 69 “The University of Chicago Law Review” (2002), 733-747; KRAWIEC, Kimberly, Derivatives, Corporate Hedging, And Shareholder Wealth: Modigliani-Miller Forty Years Later, in: “University of Illinois Law Review” (1998), 1039-1102; PARTNOY, Frank, Adding Derivatives to the Corporate Law Mix, in: 34 “Georgia Law Review” (2000), 599-629; RANDOW, Philipp von, Derivate und Corporate Governance, in: 25 “Zeitschrift für Unternehmens- und Gesellschaftsrecht” (1996), 594-641; SERNETZ, Julia, Derivate und Corporate Governance – Kompetenzen und Pflichten des Vorstands von Aktiengesellschaften beim Einsatz von Derivaten, Peter Lang, Frankfurt am Main, 2006.

71- Os “International Accounting Standards” (IAS) e os agora denominados “International Financial Reporting Standards” (IFRS) constituem um conjunto de regras universais de construção e apresentação da informação financeira, tendo por objectivo, num mundo marcado pela globalização dos mercados internacio-nais, assegurar um alto grau de transparência, genuinidade e comparabilidade das informações financeiras prestadas pelas empresas (EPSTEIN, Barry/ JER-MAKOWICZ, Eva, IFRS 2008 – Interpretation and Application of International Accounting and Financial Reporting Standards, J. Wiley & Sons, New York, 2008). Sobre as incidências juscontabilísticas dos derivados, vide entre nós CORREIA, M. Anacoreta, Instrumentos Financeiros Derivados – Enquadramento Contabilístico e Fiscal, 17 e segs., UCP Editora, Lisboa, 2000; noutros quadrantes, para maiores desenvolvimentos vide ALSHEIMER, Constantin, Die Rechtsnatur derivativer Finanzinstrumente und ihre Darstellung im Jahresabschluß, Peter Lang, Frankfurt am Main, 2000; em especial para a situação norte-americana, vide MAULSHAGEN, Almut/ MAULSHAGEN, Olaf, Die Neuregelung der Bilanzierung derivativer Finanzinstrumente nach US-GAAP, in: 53 “Betriebs-Berater” (1998), 2141-2145.

72- Sobre as incidências jusinsolvenciais dos derivados, vide, entre nós, FERNANDES, L. Carvalho/ LABAREDA, João, Código da Insolvência e da Recupe-ração de Empresas Anotado, 403, Quid Juris, Lisboa, 2008. Para maiores desenvolvimentos, cf. BOSCH, Ulrich, Differenz- und Finanztermingeschäfte nach der Insolvenzordnung, in: Karlhans, Fuchs (Hrsg.), “Kölner Schrift zur Insolvenzordnung: das neue Insolvenzrecht in der Praxis”, 2. Aufl., 1009-1042, ZAP Verlag, Berlin, 2000; EDWARDS, Franklin/ MORRINSON, Edward, Derivatives and the Bankruptcy Code: Why the Special Treatment?, Columbia Law School, Research Paper nº 258, New York, 2002; RANDHANIE, Karen, Derivatives Contracts of Insolvent Companies, in: 18 “New York Law Journal of International & Comparative Law” (1999), 269-302.

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IRC)73 –, no direito internacional privado – mormente, atenta a frequente dimensão transna-cional das operações sobre instrumentos finan-ceiros derivados (arts. 3.º e segs. da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais)74 –, além de outros ramos.75

1. Criação

I. Em primeiro lugar – no plano da respectiva criação –, os derivados são o resultado de um contrato: ao contrário dos demais instrumentos financeiros (valores mobiliários e instrumentos monetários), que são instrumentos financeiros consubstanciados em documentos físicos ou electrónicos e objecto de uma emissão em senti-do técnico, os derivados são instrumentos finan-ceiros que emergem de acordos negociais.76 II. Os derivados de mercado organizado corres-pondem a contratos totalmente estandardizados. Usualmente, apresentam-se sob a forma de um documento dotado de uma ficha técnica, que define a natureza do produto, o activo subjacen-te, o valor nominal de contrato, os limites míni-mos e máximos de variação de preço, as moda-lidades de liquidação, o primeiro e último dia de negociação, e demais condições negociais padronizadas previamente definidas pela enti-dade gestora (arts. 17.º e 18.º do Regulamento

CMVM nº 3/2007, de 5 de Novembro). Uma vez colocados à negociação, os investidores interessados procedem a ofertas de “compra” e “venda” que darão origem a operações de aber-tura de posições de compra ou de posições de venda, as quais são objecto de liquidações diá-rias (ajuste diário de ganhos e perdas) e de liquidação final no termo do prazo contratual.

III. Este traço permite distinguir os derivados dos demais instrumentos financeiros. Com efei-to, os valores mobiliários e os instrumentos monetários são instrumentos financeiros objec-to de representação autónoma (em forma docu-mental ou escritural), sujeitos em regra a um registo de emissão próprio, e colocados no mer-cado em número tendencialmente limitado (excepto no caso das unidades de participação em fundos de investimento abertos) por uma entidade emitente que se responsabiliza pelo respectivo cumprimento (arts. 43.º e segs. do CVM)77. Ao invés, os derivados são meros pro-dutos contratuais construídos por profissionais especializados (mormente, entidades gestoras do mercado e intermediários financeiros) e con-tendo um conjunto de condições contratuais estandardizadas aptas a fundar vinculações jurí-dicas por parte dos investidores interessados com um mínimo de custos de transacção (art. 207.º do CVM, art. 4.º, nº 1, e) do Decreto-Lei

73- Sobre as incidências juscontabilísticas dos derivados, vide entre nós CORREIA, M. Anacoreta, Instrumentos Financeiros Derivados – Enquadramento Contabilístico e Fiscal, 143 e segs., UCP Editora, Lisboa, 2000; noutros quadrantes, MAY, Gregory, Taxing Derivative Contracts, in: 12 “The Journal of Taxation of Investments” (1995), 115-129; KRAUSE, Haiko, Die Besteuerung hybrider Finanzinstrumente, Peter Lang, Frankfurt am Main, 2006; SIX, Martin, Hybride Finanzierung im internationalen Steuerrecht, Lide, Wien, 2008.

74- PINHEIRO, L. Lima, Direito Aplicável às Operações Bancárias Internacionais, 607 e segs., in: 67 “Revista da Ordem dos Advogados” (2007), 573-627.

75- Pense-se assim no direito dos seguros: cf. BURGHARD, Peter, Einsatz und Risiken derivativer Finanzinstrumente in Versicherungsunternehmen, Verlag Versicherungswirtschaft, Karlsruhe, 1995.

76- Num sentido semelhante, entre nós, FERREIRA, A. José, Operações de Futuros e Opções, 176 e segs., in: AAVV, “Direito dos Valores Mobiliários”, 121-188, Lex, Lisboa, 1997. Noutros quadrantes, a mesma ideia surge sublinhada amiúde: “Ao contrário dos valores mobiliários, que existem graças à respec-tiva emissão por parte de uma pessoa colectiva, os derivados apenas existem graças a uma negociação” (PELTIER, Frédéric, Marchés Financiers et Droit Commun, 156, Banque Éditeur, Paris, 1997).

77- Sobre a emissão de valores mobiliários, vide CÂMARA, Paulo, Emissão e Susbcrição de Valores Mobiliários, in: AAVV, “Direito dos Valores Mobiliários”, 201-241, Lex, Lisboa, 1997; PIRES, F. Almeida, Emissão de Valores Mobiliários, Lex, Lisboa, 1999.

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nº 357-C/2007, de 31 de Outubro, art. 17.º do Regulamento CMVM nº 3/2007, de 5 de Novembro)78: estamos agora perante instrumen-tos destituídos de qualquer suporte representati-vo (seja consubstanciado em títulos ou em registos em conta) e em número tendencialmen-te ilimitado (podendo ser abertas tantas posi-ções contratuais quantos os investidores interes-sados), que não responsabilizam senão as enti-dades gestoras do mercado, os intermediários financeiros e investidores envolvidos.79

2. Negociação

I. Em segundo lugar – no plano da respectiva negociação –, os derivados podem ser transaccionados em mercado organizado (“exchange-listed derivatives”, “börslich Derivate”) ou em mercado de balcão (“over-the-counter”, “ausserbörslichen Markt”, “marché gré à gré”).80 II. Os derivados de mercado organizado corres-pondem a contratos padronizados (assentes em condições contratuais gerais elaboradas pela

entidade gestora do mercado e aprovadas pelas autoridades de supervisão), de estrutura plurila-teral complexa (que contam necessariamente com a intervenção da entidade gestora do mer-cado como contraparte central, além dos inter-mediários financeiros e clientes ou investido-res), e negociados de forma massificada (dispondo de oferta permanente no mercado, além de sistema informático de negociação e câmara de compensação próprios): tal é o caso típico dos futuros e das opções padronizadas81. Entre os mercados organizados, são exemplos históricos conhecidos a “Chicago Mercantile Exchange” (CME) constituída em 1972, a “Chicago Board of Options Exchange” (CBOE) em 1973, a “International Financial Future Exchange” (LIFFE) em 1982, o “Marché à Terme d’Instruments Financiers” (MATIF) em 1990 ou a “Swiss Options and Futures Exchange” (SOFFEX) em 199882, destacando-se actualmente na Europa os mercados de derivados da Euronext (“Euronext.Liffe”), que dispõem de uma plataforma de negociação (“Liffe Connect”) e uma câmara de compensação (“LCH. Clearnet”) próprias.83

78- Sobre a “estandardização” como característica dos derivados, vide também RUDOLPH, Bernd, Derivative Finanzinstrumente: Entwicklung, Risokomanagement und bankaufsichtrechtliche Regelung, 6 e seg., in: AAVV, “Derivative Finanzinstrumente”, 3-41, Schäffer-Poeschel, Stuttgart, 1995.

79- Visto ainda de outro modo: ao passo que os valores mobiliários e os instrumentos monetários são criados em execução de um determinado contrato autónomo prévio celebrado entre a entidade emitente e os investidores (v.g., contrato de sociedade, contrato de empréstimo, contrato de subscrição, etc.), os derivados (sobretudo de mercado organizado) são puros padrões ou modelos contratuais estandardizados, usualmente elaborados pela entidade gestora de mercado, que são pré-existentes ao próprio acordo de vontade dos investidores.

80- Sobre o ponto, vide BAIR, Sheila, Regulatory Issues Presented by the Growth of OTC Derivatives, in: AAVV, “The Handbook of Derivatives & Synthetics”, 699-713, Probus Publishing, Chicago/ Cambridge, 1994; CLOUTH, Peter, Rechtsfragen der ausserbörslichen Finanz-Derivate, Beck, München, 2001; MEDJAOUI, Khadija, Les Marchés à Terme Derivés et Organisés d’Instruments Financiers – Étude Juridique, LGDJ, Paris, 1996; RUIZ, E. Díaz/ ABADIN, E. Abril/ LARRAGA, Pablo, Productos Financieros Derivados y Mercados Organizados, Civitas, Madrid, 1997.

81- Tais derivados encontram-se subordinados às regras gerais aplicáveis à negociação nos mercados regulamentados e nos sistemas de negociação multilateral (arts. 202.º e segs. do CVM), devendo ainda ter-se presente as regras especiais previstas nos arts. 17.º e segs. do Regulamento CMVM nº 3/2007, de 5 de Novembro, e no art. 37.º do Regulamento CE/1287/2006, de 10 de Agosto.

82- Em Portugal, a “Bolsa de Derivados do Porto”, constituída em 1996, foi a primeira bolsa oficial de futuros e opções, tendo chegado a movimentar cerca de cinco milhões de contratos no ano da sua inauguração, vindo mais tarde a ser alvo da fusão no quadro da Bolsa de Valores de Lisboa e do Porto (1999), a qual, ela própria, aderiria posteriormente ao mercado de bolsa pan-europeu “Euronext” (2002).

83- NYSE/ EURONEXT, Regulamento I – “Regras de Mercado Harmonizadas”, de 29 de Fevereiro de 2008. Retenha-se ainda que as entidades gestoras que tenham outros instrumentos financeiros (que não apenas valores mobiliários) admitidos à negociação devem ter por capital mínimo obrigatório 2 500 000 euros (Portaria nº 1619/2007, de 26 de Dezembro).

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III. Por seu turno, os derivados de mercado de balcão consistem em contratos individualizados (adaptados às necessidades específicas do investidor concreto, o que não exclui a normali-zação mínima das suas condições)84, de estrutu-ra tipicamente bilateral (de que são apenas partes os investidores, o que não exclui a intervenção de intermediários financeiros especializados)85, e negociados caso a caso (o que não exclui a existência de modelos de com-pensação uniformes, v.g., “netting by novation”, “close-out netting”)86 – tal é o caso, designadamente, dos “forwards”, “caps”, “floors”, “collars”, e tantos outros derivados87. O mercado de balcão ou “over-the- -counter” (OTC), genericamente relativo ao segmento das operações dos intermediários financeiros realizadas fora das formas

organizadas de negociação, vai hoje adquirindo um relevo crescente, sendo as suas forças simultaneamente as suas fraquezas: à acrescida flexibilidade negocial e moldabilidade substan-tiva contrapõem-se a sua mais reduzida fungibi-lidade e liquidez, além do risco de incumpri-mento das contrapartes.88

IV. Assinale-se, enfim, que a distinção referida é substancialmente indiferente do ponto de vista da qualificação geral deste instrumento financeiro89, além de não excluir a existência de derivados mistos ou de charneira, situados a meio caminho entre os mercados organizado e de balcão: assim sucede, por exemplo, com as chamadas “flexible exchange options”, opções transaccionadas em mercados regulamentados de conteúdo parcialmente negociável.90

84- Os derivados de balcão não excluem o recurso a cláusulas contratuais gerais, sendo até frequente a sua negociação assentar em modelos contratuais formu-lados por organizações internacionais, como a “ISDA – International Swaps and Derivatives Association” (cf. FRANZEN, Dietmar, Design of Master Agreements for OTC Derivatives, Springer, Berlin, 2000). Sobre os derivados de balcão em geral, vide KLINGNER-SCHMIDT, Ulrike, Ausserbörsliche Finanztermingeschäfte (OTC-Derivative), in: AAVV, “Handbuch zum deutschen und europäischen Bankrecht”, 1213-1233, Springer, Berlin, 2004; McLAUGHLIN, Robert, Over-The-Counter Derivatives, McGraw-Hill, New York, 1998.

85- Tais contratos são geralmente precedidos da celebração de um contrato estandardizado (“Master Agreement”), que vai funcionar como uma espécie de “contrato-quadro” no seio do qual as partes irão concluir futuramente sucessivas e periódicas transacções contratuais, geralmente por telefone ou por via electrónica, sendo posteriormente reduzidas a escrito mediante a “confirmation” (BEIKE, Rolf/ BARCKOW, Andreas, Risk-Management mit Finanzderivaten, 8, 3. Aufl., Oldenburg, München, 2002; EDWARDS, Steven, Legal Principles of Derivatives, 2, in: “Journal of Business Law” 2002, 1-32).

86- Entre nós, vide MACHADO, S. Santos, Close-Out Netting e Set-Off – Da Validade e Eficácia das Cláusulas de Close-Out Netting e Set-Off nos Contratos sobre Instrumentos Financeiros, in: 17 “Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários” (2003), 9-17; noutros quadrantes, BENZLER, Marc, Nettingvereinbarungen im ausserbörsliche Derivatehandel, 59 e segs., Nomos, Baden-Baden, 1999; BOSCH, Ulrich/ HODGSON, Stephen, German Legisla-tion on Netting of Financial Derivatives, in: “Butterworths Journal of International Banking and Financial Law” (1995), 304-323; DE BIASI, Pierluigi, Il Netting nei Contrati Derivati, in: XIII “Diritto della Banca e del Mercato Finanziario” (1999), 232-256.

87- Os produtos negociados no mercado OTC são hoje insistematizáveis, renovando-se diariamente. Para além dos contratos adiante estudados (v.g., “forwards”, “caps”, “floors”, “collars”, derivados de crédito, etc.), existe um sem número de operações e produtos cuja inclusão no universo dos derivados é controversa: é o caso, por exemplo, dos chamados “turbo”, “discount”, “index”, e “basket certificates” (FISCHER, Ernst/ GREISTORFER, Peter/ REICHMANN, Sommersguter, Turbo-Zertifikate: Darstellung, Bewertung und Analyse, in: 50 “Österreichisches Bankarchiv” (2002), 995-1005).

88- CLOUTH, Peter, Rechtsfragen der ausserbörslichen Finanz-Derivate, 9, Beck, München, 2001.

89- Sublinhando também que o actual conceito de derivado abrange indistintamente os derivados de mercado organizado e de balcão, vide ASSMANN, Heinz-Dieter/ SCHNEIDER, Uwe (Hrsg.), Wertpapierhandelsgesetz – Kommentar, 118, 4. Aufl., O. Schmidt, Köln, 2006; HIRTE, Heribert/ MÖLLERS, Thomas (Hrsg.), Kölner Kommentar zum WpHG, 92, Carl Heymanns, Köln, 2007.

90- BARCLAY, William, Flex Options: A New Generation of Derivatives, in: AAVV, “The Handbook of Derivatives & Synthetics”, 43-53, Probus Publishing, Chicago/ Cambridge, 1994.

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3. Circulação

I. Depois também – no plano da sua circulação –, os derivados de mercado organizado são objecto de compensação, e não de transmissão em sentido técnico.91 Com efeito, os valores mobiliários (e uma boa parte dos instrumentos monetários) são instru-mentos financeiros que conferem aos seus titu-lares posições jurídicas (obrigacionais, reais, societárias, complexas) susceptíveis de negocia-ção e transmissão autónomas para terceiros: são tipicamente instrumentos circulantes, concebi-dos para ser transaccionados em mercado secundário, o que também explica a necessida-de de adopção de uma forma de representação cartular ou escritural. Ao invés, os derivados de mercado organizado são instrumentos que investem os seus titulares em posições juscon-tratuais que não são “tale quale” passíveis de transmissão para terceiros: os titulares actuais podem desfazer-se das suas posições mediante a realização de operações de sinal contrário às posições detidas (extinguindo-se as posições através de compensação: cf. art. 259.º, nº 3 do CVM), sendo que aos terceiros interessados sempre será possível abrir novas posições

contratuais no mercado (tornando assim desnecessária a transmissão das posições já existentes).92 II. Os próprios derivados de mercado de balcão, encontrando-se em teoria sujeitos às regras gerais em matéria da cessão da posição contra-tual (arts. 424.º e segs. do Código Civil) e da transmissão singular de créditos e dívidas (arts. 577.º e segs., 595.º e seg. do Código Civil), estão usualmente sujeitos a regras transmissi-vas próprias, decorrentes da sua já assinalada estandardização. Assim, nos termos do art. 7.º do contrato-quadro da “ISDA – International Swaps and Derivative Association”, nenhum direito ou obrigação contratual poderá ser trans-ferido por qualquer das partes sem acordo pré-vio e escrito da contraparte, excepto em caso de transmissão universal do património ou de insolvência da contraparte.93

4. Extinção

I. Por fim – no plano da sua extinção –, os deri-vados podem ser fundamentalmente objecto de uma liquidação física ou financeira. Tal signifi-ca dizer que a execução das prestações contra-tuais na data do seu vencimento pode ser

91- Em sentido semelhante, vide ASCENSÃO, J. Oliveira, Derivados, 64, in: AAVV, “Direito dos Valores Mobiliários”, vol. IV, 41-68, Coimbra Editora, 2000; noutros quadrantes, COTRET, Laurent, La Négociabilité des Instruments Financiers, 185 e segs., Diss., Reims, 2004; GIRINO, Emilio, I Contratti Derivati, 280, Giuffrè, Milano, 2001; SERNETZ, Julia, Derivate und Corporate Governance, 58, Peter Lang, Frankfurt am Main, 2006.

92- Por outras palavras: ao passo que a entrada e saída dos investidores no mercado (secundário) de valores mobiliários se efectua, em regra, mediante sucessi-vos negócios jurídicos bilaterais de transmissão realizados sobre os instrumentos existentes, a entrada e saída no mercado de derivados realiza-se, também em regra, mediante sucessivos negócios unilaterais de criação de novos instrumentos (em sentido semelhante, vide MEDJAOUI, Khadija, Les Marchés à Terme Derivés et Organisés d’Instruments Financiers – Étude Juridique, 334 e segs., LGDJ, Paris, 1996; MELZER, Philipp, Zum Begriff des Finanztermingeschäfts, 366, in: 3 “Zeitschrift für Bank- und Kapitalmarktrecht” (2003), 366-372). Excepcionalmente, as posições juscontratuais inerentes a estes instrumentos podem ser objecto de transmissão, “maxime”, no caso de sucessão “mortis causa” (arts. 2024.º e 2025.º do Código Civil).

93- “Subject to Section 6(b)(ii), neither this Agreement nor any interest or obligation in or under this Agreement may be transferred (whether by way of secu-rity or otherwise) by either party without the prior written consent of the other party, except that: (a) a party may make such a transfer of this Agreement pursu-ant to a consolidation or amalgamation with, or merger with or into, or transfer of all or substantially all its assets to, another entity (but without prejudice to any other right or remedy under this Agreement); and (b) a party may make such a transfer of all or any part of its interest in any amount payable to it from a Defaulting Party under Section 6(e). Any purported transfer that is not in compliance with this Section will be void”. Sobre a transmissão dos derivados OTC, vide NEJMAN, Gilles, Les Contrats de Produits Dérivés: Aspects Juridiques, 105 e segs., Larcier, Bruxelles, 1999.

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realizada segundo duas modalidades: uma modalidade física (“physical settlement”), consistente na entrega do activo subjacente contra o pagamento do preço respectivo, ou uma modalidade puramente financeira (“cash settlement”), consistente no mero desembolso do saldo ou diferencial pecuniário entre o preço do activo fixado na celebração do contrato (“strike price” ou preço de exercício) e apurado no vencimento do mesmo (“spot price” ou preço de referência).94 II. Ao passo que este traço é conjuntural no domínio dos valores mobiliários e instrumentos monetários (por exemplo, no caso dos “warrants” autónomos95), ele assume foros estruturais no plano do regime jurídico dos ins-trumentos derivados – havendo mesmo quem o repute, porventura de forma excessiva, como “a sua característica essencial”.96 Sublinhe-se, todavia, que estas modalidades alternativas não são, nem absolutas, nem equivalentes. Elas não são absolutas no sentido em que não se verificam necessariamente em

relação à totalidade dos derivados: como é óbvio, os instrumentos financeiros derivados construídos sobre activos teóricos, nocionais ou virtuais não admitem liquidação física (v.g., futuros sobre índices de acções, opções sobre taxas de inflação, “swaps” sobre taxas de juro), podendo mesmo existir outros instrumentos construídos sobre activos físicos ou reais que não admitam liquidação financeira (v.g., deter-minados derivados sobre electricidade negocia-dos no mercado “Powernext”, que são liquidá-veis exclusivamente mediante o fornecimento físico de energia eléctrica). Mas também não são equivalentes na prática negocial: se bem que ocasionalmente os investidores utilizem o mercado de derivados como meio de aceder à propriedade de um determinado activo – “maxime”, para satisfazer uma necessidade pró-pria ou de um cliente (v.g., futuros sobre merca-dorias) –, a liquidação é, na maioria dos casos, de natureza puramente financeira, preenchendo plenamente as suas funções de mecanismo de gestão de risco, especulação e arbitragem mediante o desembolso de meros fluxos ou saldos pecuniários diferenciais.97

94- Outra particularidade dos derivados de mercado organizado é a sua liquidação diária, através do mecanismo dos ajustes diários de ganhos e perdas (arts. 207.º, nº 2, 259.º, nº 1, c) do CVM, art. 14.º do Regulamento CMVM nº 5/2007, de 5 de Novembro): trata-se de um mecanismo de salvaguarda do sistema que visa assegurar o pagamento diário do saldo dos ganhos e prejuízos dos investidores verificados por referência à cotação diária do derivado (“margins calls”), não constituindo assim senão a repetição, dia a dia, da operação de liquidação a realizar no termo do contrato (sobre este sistema, conhecido comummente por MTM ou “mark-to-market”, vide BOWEN, John, Mark to Market, Probus Publishing, Chicago, 1994). Desta perspectiva, pode assim dizer-se que os derivados – ao invés dos valores mobiliários e instrumentos monetários – são ainda objecto de duas modalidades obrigatórias de liquidação: a liquidação final – realizada no vencimento, com efeito extintivo do contrato e que pode ser, em princípio, executada em espécie ou dinheiro – e a liquidação diária – realizada antes do vencimento, desprovida de efeitos extintivos e executada necessariamente através de transferências escriturais.

95- Como é sabido, os “warrants” autónomos admitem liquidação física ou financeira (art. 2.º, nº 1, b) e nº 2 do Decreto-Lei nº 172/99, de 20 de Maio): cf. SILVA, H. Marques, O Warrant no Âmbito do Mercado de Valores Mobiliários, 358, in: AAVV, “Direito dos Valores Mobiliários”, vol. II, 351-400, Coimbra Editora, 2000.

96- BONNEAU, Thierry/ DRUMMOND, France, Droit des Marchés Financiers, 171, Economica, Paris, 2005. No mesmo sentido, sublinhando o relevo do mecanismo compensatório acima referido, Julia SERNETZ: “Die Glattstellen eines Terminkontrakt bedeutet, dass der Terminkontrakt nicht durch physische Leistung erfüllt wird, sondern durch den Abschluss von Gegengeschäften, d.h. entweder durch den Verkauf eines erworbenen Kontrakts oder durch den Rückkauf eines verkauften Kontrakts” (Derivate und Corporate Governance, 58, Peter Lang, Frankfurt am Main, 2006). É discutida, todavia, a natureza jurídica desse mecanismo, havendo quem fale de confusão (DANNHOFF, Martin, Das Recht der Warentermingeschäfte – Eine Untersuchung zum deutschen, internationalen und U.S.-amerikanischen Recht, 42, Nomos, Baden-Baden, 1993) e de compensação (HENSSLER, Martin, Risiko als Vertragsgegenstand, 545, Mohr, Tübingen, 1994).

97- Neste sentido, considerando mesmo o “diferencial de valor” como um traço característico dos derivados, GIRINO, Emilio, I Contratti Derivati, 12 e segs., Giuffrè, Milano, 2001; HUDSON, Alastair, The Law on Financial Derivatives, 13, 3rd edition, Sweet & Maxwell, London, 2002; SERNETZ, Julia, Derivate und Corporate Governance, 56, Peter Lang, Frankfurt am Main, 2006.

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V. FUTUROS I. Designam-se por futuros (“futures”, “Festgeschäfte”, “contrats à terme ferme”) os contratos a prazo padronizados, negociados em mercado organizado, que conferem posições de compra e de venda sobre determinado activo subjacente por preço e em data futura previa-mente fixados, a executar mediante liquidação física ou financeira.98 II. Os futuros constituem fundamentalmente um mecanismo jurídico-financeiro de cobertura ou redução da exposição ao risco, ao conferir às empresas o direito de comprar ou vender no mercado a prazo um determinado activo (acções, divisas, mercadorias, etc.) por preço antecipadamente conhecido99. Suponha-se que o investidor A projecta adquirir um milhão de acções da sociedade aberta X no prazo de três meses, prevendo que a sua actual cotação bol-sista (€ 10) poderá entretanto subir (por exem-plo, para € 12), sendo que existe no mercado um accionista B com perspectiva exactamente oposta, que pretende especular na descida desse título (por exemplo, para € 9). Mediante a cele-bração de um futuro, A vincula-se a comprar a B e este a vender àquele a quantidade desejada de acções em data (prazo de 3 meses) e por pre-ço (por exemplo, € 10,5) predeterminados: se

na data de vencimento contratual a cotação do título for superior (por exemplo, € 13), o inves-tidor A ter-se-á protegido eficazmente contra o risco de subida, já que terá adquirido o preten-dido lote de acções ao preço unitário de € 10,5, suportando o accionista B a perda correspon-dente (€ 2,5 por acção); se inversamente a cota-ção for inferior nessa data (por exemplo, € 9), A terá acabado por realizar a compra em perda, a que corresponderá agora um ganho para B (€ 1,5 por acção).

III. Os futuros – segundo alguns, o “arquétipo primogénito” dos derivados100 – são um tipo de instrumento financeiro derivado nominado, expressamente previsto no art. 2.º, nº 1, e) do CVM101. Entre os seus traços distintivos, salien-te-se serem contratos a prazo – no sentido em que existe um intervalo de tempo entre o momento da sua celebração e a data da respecti-va execução ou vencimento –, padronizados – cujo conteúdo contratual se encontra total e pre-viamente determinado mediante um conjunto de cláusulas contratuais gerais próprias elaboradas pela entidade gestora do mercado onde são tran-saccionados (cf. ainda art. 207.º, nº 2 do CVM)102 – e negociados em mercado organizado – cujas operações têm lugar num mercado próprio que obedece a sistemas organizados de negocia-ção, ficando assim também sujeitos às suas

98- Sobre a figura, vide CUNHA, Miguel, Os Futuros de Bolsa: Características Contratuais e de Mercado, in: AAVV, “Direito dos Valores Mobiliários”, vol. I, 63-132, Coimbra Editora, 1999; FERREIRA, A. José, Operações de Futuros e Opções, in: AAVV, “Direito dos Valores Mobiliários”, 121-188, Lex, Lisboa, 1997; MONTEIRO, A. Mafalda, O Contrato de Futuros no Direito Português, Diss., UCP, Lisboa, 1997. Noutros quadrantes, vide HULL, John, Fundamentals on Futures and Options Markets, 6th edition, Prentice Hall, London, 2007; VALLE, Laura, Il Contratto «Future», Cedam, Padova, 1996; VILCHES, A. Contreras, El Contrato de Futuros Financieros, Marcial Pons, Madrid, 2006.

99- Sobre os futuros como instrumento de gestão do risco empresarial, vide WILLIAMS, Jeffrey, The Economic Function of Futures Markets, CUP, Cambridge, 1986.

100- GIRINO, Emilio, I Contratti Derivati, 49, Giuffrè, Milano, 2001.

101- Tenha-se ainda presente a Directiva da CNC (Comissão de Normalização Contabilística) nº 17, de 29 de Maio de 1996, relativa ao tratamento contabilístico dos contratos de futuros (in: “Diário da República”, IIª série, nº 179, de 5 de Agosto de 1997). Sobre as suas projecções tributárias e contabilísticas, vide ABREU, M. Teixeira, Futuros e Opções: Que Tratamento Fiscal?, in: 70/71 “Revista «O Fisco»” (1995), 55-72; BANDEIRA, Luís/ FERREIRA, J. Manuel, Contabilidade e Fiscalidade de Futuros e Opções, Instituto do Mercado de Capitais, Porto, 1997; CORREIA, Anacoreta, A Contabilização de Ganhos e Perdas Gerados com Contratos de Futuros – Implicações Fiscais, in: XIX “Jornal de Contabilidade” (1995), 129-145.

102- Tais cláusulas gerais constam da respectiva ficha técnica, que incluem o activo subjacente, o método de cotação, as variações mínima e máxima da cota-ção, o preço de referência, o ajuste diário de perdas e ganhos, e os vencimentos, entre vários outros elementos. Sobre a padronização ou estandardização típica dos contratos de futuros, que funciona como um pressuposto fundamental da fungibilidade, liquidez e negociabilidade massificada destes instrumentos, vide FERREIRA, A. José, Operações de Futuros e Opções, 178 e segs., in: AAVV, “Direito dos Valores Mobiliários”, 121-188, Lex, Lisboa, 1997; MONTI, Ernesto, Manuale di Finanza per l’Impresa, 302 e segs., Utet, Torino, 2000.

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regras próprias (v.g., intervenção de intermediá-rios financeiros, registo obrigatório de todas as operações).103

IV. Os contratos de futuros apresentam diversas particularidades.104 Desde logo, no que concerne aos seus sujeitos, os futuros apresentam uma estrutura plurilateral típica, que envolve simultaneamente a interven-ção dos investidores, dos intermediários finan-ceiros, e da entidade gestora do mercado. Ini-ciada a negociação de cada contrato, de acordo com as condições gerais formuladas pela enti-dade gestora, os investidores interessados reali-zam as respectivas ofertas de compra e venda, que são necessariamente lançadas em sistema informático de negociação (v.g., o “Liffe Con-nect” no mercado de derivados da “Euronext”) através de intermediários financeiros105; do encontro ou casamento dessas ofertas resultam para os investidores envolvidos a aquisição ou “abertura” de posições contratuais de compra e de venda por determinado preço; enfim, esse encontro é mediado pela entidade gestora do

mercado, contraparte central e obrigatória de todas as operações neste realizadas (“central counterparty”, “Gegenpartei”), que assumirá a qualidade de “compradora” perante o investidor que adquiriu a posição vendedora e de “vendedora” perante o investidor com a posição compradora.106 Depois ainda, no que concerne ao seu objecto, é fundamental distinguir entre o objecto imediato (activo subjacente) e o objecto mediato do con-trato (prestações contratuais propriamente ditas). Ao passo que o primeiro constitui um mero referencial ancilar do cálculo das presta-ções contratuais, o último exprime o verdadeiro cerne substancial deste derivado enquanto ins-trumento gerador de direitos e obrigações: entre estes, destacam-se os direitos e deveres funda-mentais recíprocos de compra do activo e de pagamento do preço (no caso de liquidação físi-ca) e de desembolso do saldo pecuniário dife-rencial (no caso de liquidação financeira)107, além de várias outras obrigações perante a enti-dade gestora do mercado, seja por parte dos investidores (pagamento de margens iniciais,

103- Entre os mercados internacionalmente mais conhecidos, contam-se a “Chicago Mercantile Exchange” nos Estados Unidos da América e a “Euronext.Liffe” na Europa. Esta característica permite justamente distinguir os futuros de outros derivados estruturalmente similares que são negociados fora de mercado organizado: tal é o caso dos “forwards”, contratos a prazo construídos sobre activos subjacentes que são negociáveis em mercado de balcão (sobre esta figura, cf. infra X).

104- Como já sabemos, a expressão “contrato” corresponde ao jargão negocial em sede de instrumentos derivados, dentro e fora de portas, sendo aqui utilizada num sentido não técnico (cf. supra II, 2): neste sentido também, MONTEIRO, A. Mafalda, O Contrato de Futuros no Direito Português, Diss, UCP, Lisboa, 1997; VALLE, Laura, Il Contratto «Future», Cedam, Padova, 1996. Sobre a complexa e plurifacetada questão da natureza jurídica (compra e venda, jogo e aposta, contrato atípico, etc.) dos futuros, vide CUNHA, Miguel, Os Futuros de Bolsa: Características Contratuais e de Mercado, 103 e segs., in: AAVV, “Direito dos Valores Mobiliários”, vol. I, 63-132, Coimbra Editora, 1999; MENNINGER, Jutta, Börsen- und Zivilrechtlicher Charakter von Financial Futures, in: 46 “Wertpapier-Mitteilungen – Zeitschrift für Wirtschafts- und Bankrecht” (1994), 970-974.

105- Vide os arts. 14.º e segs. do Regulamento CMVM nº 2/2007, de 5 de Novembro, relativo à informação a prestar pelos intermediários financeiros aos investidores não qualificados em operações sobre instrumentos financeiros derivados, bem como a Instrução CMVM nº 2/2007, de 5 de Novembro, relativa à actuação dos intermediários financeiros em operações sobre instrumentos financeiros derivados admitidos à negociação em mercado regulamentado.

106- Pode assim dizer-se que cada contrato de futuros, constituindo uma operação unitária de um ponto de vista económico, implica juridicamente a existência de uma pluralidade de negócios autónomos e sucessivos (entre investidores e intermediários, intermediários e entidade gestora, entidade gestora e investido-res). Especial relevo colhe naturalmente a intervenção da entidade gestora do mercado, a qual figura necessariamente como contraparte comum de dois contra-tos finais com o mesmo objecto mas de sinal antagónico com cada um dos investidores ofertantes: tal implica, entre outras consequências, que no contrato de futuros inexiste uma relação jurídica directa entre os próprios investidores comprador e vendedor (CUNHA, Miguel, Os Futuros de Bolsa: Características Contratuais e de Mercado, 92, in: AAVV, “Direito dos Valores Mobiliários”, vol. I, 63-132, Coimbra Editora, 1999; sobre as funções gerais da contraparte central, vide ALFES, André, Central Counterparty – Zentraler Kontrahent – Zentrale Gegenpartei, 59 e segs., Duncker & Humblot, Berlin, 2005).

107- Como sublinha Carlos Ferreira de ALMEIDA, os futuros podem assim revestir uma diferente natureza da perspectiva do seu objecto mediato: o de contra-tos de compra e venda a prazo (no caso de liquidação física) ou de contratos diferenciais (no caso de liquidação financeira, “rectius”, de ter por objecto uma prestação pecuniária diferencial): cf. Contratos, vol. II, 154, Almedina, Coimbra, 2007. Sobre os contratos diferenciais, vide infra IX.

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comissões, ajuste diário de ganhos e perdas) ou dos intermediários financeiros (prestação de garantias permanentes e adicionais de compen-sação).108 Depois também, no que concerne ao seu con-teúdo, os termos dos contratos de futuros encontram-se prévia e integralmente determina-dos pela entidade gestora do mercado, através de cláusulas gerais adrede elaboradas (relativas à natureza do produto, ao activo subjacente, aos prazos, aos métodos de cotação e suas variações máximas e mínimas ou “ticks”, às margens ini-ciais, ao preço de referência, ao vencimento, às formas de liquidação e demais condições nego-ciais): a negociação real dos investidores é assim mínima, limitando-se praticamente ao preço (e, por vezes, nem neste particular, por força dos “ticks” pré-estabelecidos). Semelhan-te estandardização total assegura uma maior eficiência e liquidez do mercado, eliminando os custos de transacção e acelerando drasticamente a velocidade de negociação.109 Finalmente, no que respeita à respectiva extin-ção, o modo normal de cessação contratual con-siste no seu cumprimento na data do respectivo vencimento, seja mediante a entrega pelo “vendedor” do activo subjacente contra o paga-mento pelo “comprador” do respectivo preço,

seja mediante o desembolso pelo “vendedor” ou “comprador” (consoante o caso) do montante pecuniário correspondente ao diferencial entre os valores do activo na celebração (preço de exercício) e no vencimento (preço de referência)110. Esta modalidade extintiva não constitui, todavia, a modalidade mais frequente de cessação: para além de outros eventos extin-tivos (“maxime”, resolução por incumprimento dos deveres perante a entidade gestora, v.g., falta de pagamento das garantias ou dos ajustes diários), verifica-se que, na maior parte dos casos, os futuros se extinguem antes do respec-tivo vencimento graças à abertura de novas posições contratuais de sentido inverso por par-te dos investidores contratantes, que assim anu-lam ou “fecham” por compensação a sua ante-rior posição no mercado (“closing-out”)111. V. Por último, assinale-se a existência de uma pluralidade de modalidades de futuros. Entre as mais importantes, podem referir-se os futuros sobre valores mobiliários (tais como acções ou obrigações) – para um exemplo, vejam-se, entre nós, os “Single Stock Futures BCP” ou “Single Stock Futures Portugal Telecom” –, os futuros sobre mercadorias – v.g., “Corn Futures”, “Robusta Coffee Futures”, “Raw Sugar Futures”, “Feed Wheat Futures” –112, os futuros sobre taxas de juro – v.g., “Three Month

108- Os contratos de futuros envolvem, durante a vida do contrato, um mecanismo de ajustes diários de ganhos e perdas que visa salvaguardar o equilíbrio do mercado e garantir a solvência dos seus intervenientes (cf. também art. 259.º, nº 1, c) do CVM): enquanto as posições permanecem “abertas”, os titulares das posições contratuais de compra e venda ficam sujeitos a uma liquidação diária das oscilações do respectivo valor, calculados mediante a comparação entre o preço contratado e o preço de referência (“mark-to-market”). Cf. ainda supra IV, 4 (nota 94).

109- ENNA, Giovanni, Attività Finanziaria e Copertura dei Rischi sui Tassi di Interesse. Contratti a Termine Futures, Profili Civili, Contabili e Fiscali, 1520, in: “Impresa Commerciale Industriale” (1999), 1520-1527. Para um exemplo recente, vide as cláusulas contratuais gerais do “single stock future”, aprovadas pela Euronext Lisbon em 19 de Dezembro de 2007, relativas a contratos de futuros sobre acções representativas de sociedades abertas admitidas à negociação em mercado regulamentado português.

110- Na prática, a liquidação financeira é de longe a mais frequente: como sublinha Laura VALLE, “o «cash-settlement» caracteriza os contratos de futuros na medida em que a função de tal mercado não é tanto uma função de aprovisionamento, mas antes de cobertura de risco, especulação e arbitragem” (Contratti Futures, 307, in: XII “Contratto e Impresa” (1996), 307-357).

111- Como é típico dos instrumentos financeiros derivados, os contratos de futuros nascem e morrem no mercado respectivo, não sendo susceptíveis de circu-lação em vida: uma vez adquirida ou “aberta” uma posição contratual (de compra ou venda) relativamente a dado futuro, essa posição não é passível de trans-missão ou cessão para terceiros, obtendo-se resultado económico equivalente mediante a abertura de nova posição de sentido contrário (FERREIRA, A. José, Operações de Futuros e Opções, 182, in: AAVV, “Direito dos Valores Mobiliários”, 121-188, Lex, Lisboa, 1997; noutros quadrantes, vide PARRA, A. Madrid, Contratos y Mercados de Futuros y Opciones, 91, Tecnos, Madrid, 1994).

112- Sobre os futuros de mercadorias, vide LAMANDINI, Marco/ MOTTI, Cinzia, Scambi di Merci e Derivati su Commodities, espec. 581 e segs., Giuffrè, Milano, 2006. Sobre os derivados de mercadorias em geral, vide infra XII.

OS DERIVADOS: 113

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Euribor Futures” –113, os futuros sobre divisas – v.g., “US Dollar-Euro Futures” –114, e os futuros sobre índices – incluindo índices nacionais (v.g., “PSI 20 Futures”, “CAC 40 Index Futu-res”, “AEX Index Futures”) ou internacionais (v.g., “MSCI Pan-European Index Futures”), globais (v.g., “Euronext 100”, “FTSEurofirst 100”) ou sectoriais (v.g., “Energy Commodities Index”).115

VI. OPÇÕES I. Designam-se por opções (“options”, “Optionsgeschäfte”, “contrats d’option”, “opzioni”) os contratos a prazo que atribuem a uma das partes um direito potestativo de com-pra ou de venda de certo activo subjacente por preço e em (ou até) data predeterminados, a executar mediante liquidação física ou financei-ra, contra a obrigação de pagamento de um prémio.116 II. Tal como sucede com os demais derivados, as opções têm geralmente a si subjacentes fina-lidades protectivas (cobertura de risco), especu-lativas (assunção de risco com objectivo de lucro) e arbitragistas (exploração das ineficiên-cias dos mercados). Retomando o exemplo atrás

referido a propósito dos futuros, suponhamos que o investidor A não está inteiramente con-victo da subida da cotação das acções da socie-dade X, preferindo conservar alguma margem de decisão que lhe permita acompanhar a evolu-ção do título durante os referidos três meses, sendo que o accionista B está disposto a conce-der-lhe esse “spatium decidendi” a troco de uma determinada contrapartida pecuniária: no lugar de celebrar um futuro, as partes podem acordar alternativamente uma opção através da qual B (“writer”) concede a A (“holder”) o direito, mas não a obrigação, de adquirir a três meses a quantidade acordada das acções X ao preço unitário de € 10,5 mediante o pagamento de um prémio (por exemplo, € 0,5). Na data do vencimento trimestral, uma de três: se o valor da cotação do título ou “spot price” for superior (por exemplo, € 13) ao preço de exercício acor-dado ou “strike price”, a opção diz-se “dentro do valor” (“in the money”), pelo que A terá vantagem em exercê-la, obtendo assim um ganho de € 2 por acção (correspondente ao dife-rencial entre aquele preço de exercício e a soma do preço acordado e prémio); se, inversamente, o preço de exercício for inferior (por exemplo, € 9), a opção diz-se “fora do valor” (“out of the money”), pelo que A não terá qualquer

113- ANDERLE, Stefan/ KAUFMANN, Karl-Wilhelm, Grundlagen derivatives Zinsprodukte, 3. Aufl., Deutscher Sparkassen Verlag, Stuttgart, 2000; KOLB, Robert, Interest Rate Futures: Concepts and Issues, Richmond, Virginia, 1982. A não confundir com contratos a prazo idênticos celebrados no mercado de balcão, tais como os FRA (“forward rate agreements”): sobre estes últimos, vide infra X.

114- LOOSIGIAN, Alan, Foreign Exchange Futures, Homewood, Illinois, 1980. A não confundir com contratos a prazo semelhantes e típicos no mercado de balcão, tais como os FRA (“forward exchange agreements”): sobre estes últimos, vide infra X.

115- GAUDIO, Vicenzo, I Future su Indice Azionari, in: 5 “Amministrazione & Finanza” (1991), 365-371; GIRINO, Emilio, Stock Index Financial Future, in: 7 “Amministrazione & Finanza” (1989), 1413-1417; LAMM, R. MacFall, A Pan-European Stock Index Futures Contract, in: AAVV, “The Handbook of Derivatives & Synthetics”, 589-601, Probus Publishing, Chicago/ Cambridge, 1994.

116- Sobre a figura, entre nós, vide FERREIRA, A. José, Operações de Futuros e Opções, in: AAVV, “Direito dos Valores Mobiliários”, 121-188, Lex, Lisboa, 1997; PEIXOTO, J. Paulo, Futuros e Opções, McGraw-Hill, Lisboa, 1995. Noutros quadrantes, CLARIZIA, Renato, Le Opzioni tra Disciplina Codicistica e Regolamentazione Pattizia, in: AAVV, “I Derivati Finanziari”, 119-144, Edibank, Milano, 1993; FIGLEWSKY, Stephen/ SILBER, William/ SUBRAHMANYAM, Marti, Financial Options: From Theory to Practice, McGraw-Hill, New York, 1992; HARTUNG, Klaus-Joachim, Das Wertpapieroptionsgeschäft in der Bundesrepublik Deutschland, Duncker & Humblot, Berlin, 1989; VALETTE, Didier, Les Marchés d’Options Négociables – Aspects Juridiques, Diss., Clermont-Ferrant, 1991.

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benefício em exercitá-la, incorrendo numa per-da correspondente ao prémio (€ 0,5); se o preço de exercício for idêntico à soma do preço acor-dado e prémio (€ 11), a opção diz-se ao par (“at the money”), sendo em princípio indiferente para A o respectivo exercício.117

III. As opções são, tal como os futuros, um ins-trumento financeiro derivado nominado, previs-to expressamente no art. 2.º, nº 1, e) do CVM. Apesar dos seus traços comuns (contratos a pra-zo, assentes em técnicas de derivação, e liquidá-veis em forma física ou financeira), as opções distinguem-se dos futuros em vários aspectos.

Desde logo, no que concerne à sua criação: ao passo que os futuros são necessariamente con-tratos padronizados de mercado organizado, as opções podem corresponder ainda a contratos individualizados negociados em mercado de balcão118. Depois ainda, no que concerne à posi-ção das partes contratantes: ao passo que os futuros correspondem a operações firmes (cujos direitos e obrigações devem ser cumpridos em

data de vencimento predeterminada), as opções são operações condicionais no sentido em que, estando a sua execução dependente de manifes-tação de vontade do optante, os efeitos corres-pectivos podem nem sequer chegar a ocorrer119. Depois também, no que concerne ao conteúdo das prestações contratuais: enquanto os futuros atribuem a ambas as partes meros direitos de crédito, as opções investem apenas um dos contraentes num direito potestativo (que coloca a outra parte na correspondente situação de sujeição), além de pressuporem o pagamento de um determinado montante a título de prémio120. Finalmente, no que concerne aos efei-tos das operações: ao passo que os futuros são sempre contratos principais e definitivos, as opções podem funcionar, no caso de liquidação física, como meros contratos preliminares ou preparatórios da celebração de novos contratos (v.g., de compra e venda, de futuros, etc.).121

IV. Procurando agora caracterizar brevemente os contratos de opção, há que referir os sujeitos, conteúdo e extinção dos mesmos.122

117- É importante sublinhar que, outrossim que finalidades protectivas, as opções constituem um dos mais eficientes instrumentos de especulação em valores mobiliários, graças ao efeito de alavancagem financeira, à limitação da proporção entre ganho e perda, e à poupança dos custos (organizativos, registrais, etc.) de um investimento directo nesses valores: num exemplo extremo, um investidor que, apostando na valorização das acções X, adquira uma opção de compra sobre um lote dessas acções por 100 mil euros pelo prazo de um ano, vindo estas a valer 1 milhão de euros ao fim desse ano, terá incorrido num risco dez vezes menor do que se tivesse adquirido tais acções directamente. Tendencialmente, as opções de compra são apetecíveis para investidores optimistas, que apostam na alta das cotações (“bullish”), e as de venda para investidores pessimistas (“bearish”), que temem a sua descida (cf. CORTI, C. Lorenzo, Esperienze in Tema di Opzioni, 127, in: AAVV, “I Derivati Finanziari”, 125-132, Edibank, Milano, 1993).

118- As opções OTC ou de balcão apresentam vantagens e inconvenientes no confronto com as opções de mercado organizado. Entre as primeiras, avulta a de permitir uma negociação individualizada adaptada às necessidades dos investidores em concreto: isto mesmo está bem patente na recente proliferação de opções híbridas e exóticas, resultantes da combinação com outros derivados ou mesmo outros instrumentos financeiros, v.g., as “swaptions”, resultado do cruzamento entre opções e “swaps” (sobre esta modalidade híbrida, vide infra § 7, V). Em contrapartida, as opções de balcão são geralmente destituídas da liquidez, segurança e anonimato próprias das transaccionadas em mercado organizado, com particular destaque para o facto de cada uma das partes contratan-tes assumir em pleno o risco de incumprimento ou insolvência da respectiva contraparte. Cf. BECKER, Brandon, Regulation of Exchange-Traded Options, in: AAVV, “The Handbook of Derivatives & Synthetics”, 679-697, Probus Publishing, Chicago/ Cambridge, 1994; HÄUSER, Franz, Ausserbörslicher Options-geschäfte (OTC-Optionen) aus der Sicht des novellierten Börsengesetzes, in: 4 “Zeitschrift für Bankrecht und Bankwirtschaft” (1992), 249-263.

119- No essencial, as opções asseguram ao beneficiário a possibilidade de um ganho ilimitado e a certeza de uma perda limitada, implicando para o concedente a certeza de um ganho limitado e o risco de uma perda ilimitada. Sobre a distinção entre negócios a termo e sob condição, em geral, vide VASCONCELOS, P. Pais, Teoria Geral do Direito Civil, 606 e segs., 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2008; sobre a distinção entre negócios financeiros firmes e condicionais, em particular, vide ASSMANN, Heinz-Dieter/ SCHÜTZE, Rolf, Handbuch des Kapitalanlagerechts, 553, Beck, München, 1997.

120- Também por esta perspectiva, resulta uma ulterior diferença: ao passo que os futuros são meros contratos obrigacionais, as opções são contratos reais “quoad constitutionem”, uma vez que o pagamento do prémio constitui um requisito da formação do próprio contrato. Sobre a distinção entre contratos obrigacionais e reais, vide TELLES, I. Galvão, Manual dos Contratos em Geral, 463 e segs., 4ª edição, Coimbra Editora, 2002.

121- Já no caso das opções com liquidação financeira, “rectius”, que conferem ao beneficiário ou optante um mero direito potestativo ao recebimento de uma prestação pecuniária diferencial (entre os valores de partida e de chegada do activo subjacente), estaremos perante verdadeiros contratos diferenciais. Sobre os contratos diferenciais, vide infra IX.

122- Tal como a respeito dos futuros, é extremamente controvertida a questão da natureza jurídica dos contratos de opção (v.g., pacto de opção, compra e venda, jogo e aposta, contrato diferencial, etc.), não faltando mesmo quem lhes negue natureza contratual ou quem, inversamente, sustente a existência de dois contratos autónomos acoplados (“Trennungstheorie”). Sobre tal questão, vide FERREIRA, A. José, Operações de Futuros e Opções, 165 e segs., in: AAVV,

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Relativamente aos seus sujeitos, os contratos de opção podem apresentar uma estrutura plurila-teral no caso das opções de mercado organizado – envolvendo a intervenção simultânea das par-tes contratantes (beneficiário e concedente), de intermediários financeiros, e da entidade gesto-ra do mercado – ou uma estrutura bilateral no caso das opções OTC – envolvendo exclusiva-mente o beneficiário e o concedente da opção, sem prejuízo da mediação negocial de interme-diários financeiros.123

Relativamente ao seu conteúdo, destacam-se o direito de opção e a obrigação do prémio. O direito de opção representa o elemento central do conteúdo contratual. Este direito – que se constitui na esfera jurídica de uma das partes (optante ou beneficiário), e cujo exercício depende da sua exclusiva vontade, colocando a outra parte (concedente) numa situação de absoluta sujeição – pode revestir diferentes modalidades: no comum dos casos, ele consisti-rá num direito de compra (“call option”) ou de venda (“put option”) sobre o activo subjacente124 e será exercitável na data do venci-mento do contrato (“opções europeias”) ou até essa data (“opções americanas”). A obrigação de pagamento de um prémio (“option price”)

funciona, por seu turno, como a contrapartida da vantagem concedida ao beneficiário pelo concedente: sublinhe-se que o beneficiário é sempre obrigado a pagar o “preço” da opção ainda quando não venha, afinal, a exercer esta última.125

Enfim, relativamente à respectiva extinção, os contratos de opção podem cessar pelo exercício tempestivo do direito de compra ou venda ou pelo decurso do prazo contratual sem tal exercí-cio, além de, no caso das opções padronizadas, mediante o “encerramento” voluntário das posi-ções contratuais durante a vigência do contrato (por assunção de posições de sinal inverso) ou o incumprimento dos deveres perante a entidade gestora (v.g., falta de pagamento das garantias ou dos ajustes diários). Tal como nos futuros, o exercício do direito opcional pode dar lugar a uma liquidação contratual de natureza física ou financeira: no primeiro caso, o beneficiário, titular da opção, recebe (no caso de opção de compra) ou entrega (no caso de opção de ven-da) o activo subjacente pelo preço previamente acordado126; no último caso, o beneficiário rece-be apenas o saldo pecuniário eventualmente resultante da diferença entre o valor do activo previamente acordado (preço de exercício) e o

“Direito dos Valores Mobiliários”, 121-188, Lex, Lisboa, 1997; noutros países, HENSSLER, Martin, Risiko als Vertragsgegenstand, 545 e seg., Mohr, Tübingen, 1994; SZTAJN, Rachel, Sobre a Natureza Jurídica das Opções Negociadas em Bolsa, in: 105 “Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro” (1997), 53-69; WALTER, Karl, Die Rechtsnatur des Börsenoptionsgeschäfts, Peter Lang, Frankfurt am Main, 1990.

123- Desta diferente estrutura subjectiva decorrem importantes consequências práticas. Assim, ao passo que no primeiro tipo de opções o risco de incumpri-mento é assumido pela entidade gestora de mercado, contraparte obrigatória dos contratos optativos aí negociados, no último tal risco recai directamente sobre os próprios contraentes, justificando por isso a conclusão concomitante de mecanismos destinados a reforçar as garantias de cumprimento: exemplo relevante são os mecanismos de compensação instituídos negocialmente entre partes de derivados celebrados em massa, entre os quais se destaca o “netting by novation” e o “close-out netting” (BENZLER, Marc, Nettingvereinbarungen im ausserbörsliche Derivatehandel, 59 e segs., Nomos, Baden-Baden, 1999; PERRONE, Andrea, La Riduzione del Rischio di Credito degli Strumenti Finanziari Derivati, 85 e segs., Giuffrè, Milano, 1999).

124- Um direito, e não um dever – é importante salientá-lo (ou, nas palavras de Alastair HUDSON, trata-se de um “right-without-obligation”: cf. The Law on Financial Derivatives, 25, 3rd edition, Sweet & Maxwell, London, 2002). Como é próprio dos pactos de opção em geral, o beneficiário ou optante é inteiramen-te livre de exercer, rejeitar, ou deixar caducar o seu direito potestativo de compra ou venda (FONSECA, T. Soares, Do Contrato de Opção – Esboço de uma Teoria Geral, 21, Lex, Lisboa, 2001).

125- O prémio, também por vezes chamado “preço da opção”, é objecto de cotação no mercado onde as opções são negociadas, não se devendo confundir com o “preço de exercício” (“striking price”), que corresponde ao preço pelo qual o beneficiário poderá exercer o seu direito de compra ou venda do activo – se se quiser, em termos muito genéricos, ao passo que o primeiro representa o preço do contrato (preliminar) de opção, o último constitui o preço do contrato (principal) de compra e venda. Cf. KOLLER, Ingo, Die Klagbarkeit von Prämienforderungen aus Aktienoptionen, in: 39 “Wertpapier-Mitteilungen – Zeitschrift für Wirtschafts- und Bankrecht” (1985), 593-596.

126- Sublinhe-se que, salvo quando as partes nisso hajam expressamente acordado (“maxime”, convenção de retroactividade), as opções são destituídas de eficácia translativa da propriedade do activo subjacente, pelo que o beneficiário não se poderá considerar titular das acções, obrigações, divisas, ou qualquer outro activo subjacente até ao momento em que exerça o seu direito de compra. Neste sentido, HUDSON, Alastair, The Law on Financial Derivatives, 77, 3rd edition, Sweet & Maxwell, London, 2002.

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valor apurado no momento do exercício da opção (preço de referência).127

V. As opções são um tipo de derivado extrema-mente elástico, podendo revestir uma enorme variedade de modalidades128. De acordo com o critério ordenador, tornou-se assim frequente distinguir entre opções de compra (“call options”) e de venda (“put options”) – consoan-te conferem ao beneficiário um direito de com-prar ou vender o activo se e quando tal direito for exercido –, entre opções europeias (“european options”) e americanas (“american options”) – consoante conferem um direito de opção exercitável apenas na data do vencimento do contrato ou a qualquer momento até essa data –, entre opções de mercado organizado (“exchange-listed options”) e mercado de bal-cão (“over-the-counter options”) – consoante constituídas e transaccionadas em mercados regulamentados ou directamente entre os con-traentes (“front to front”) –, entre opções acima do par (“in the money”), abaixo do par (“out of the money”) e ao par (“at the money”) – con-soante o exercício da opção seja pecuniaria-mente favorável, desfavorável ou indiferente

para o beneficiário tomando por base o confron-to entre os preços de exercício e de referência do activo subjacente –, entre opções garantidas (“covered options”) e descobertas (“naked options”) – consoante o concedente é ou não titular da propriedade do activo subjacente –, entre opções sobre acções (“stock options”), obrigações (“bond options”), índices bolsistas (“index options”), divisas (“currency options”), ou taxas de juros (“interest rate options”) – con-soante o tipo de activo subjacente –, e assim por diante.129 Destaque especial merecem as chamadas “opções exóticas” (“exotic options”) ou “sintéticas” (“synthetic options”), também conhecidas por opções de “segunda geração”130. Por oposição às opções tradicionais ou de primeira geração (por vezes também denominadas “plain vanilla options”), trata-se de opções do mercado de balcão dotadas de direitos opcionais particulares ou miscigenadas com outros instrumentos financeiros, mormente outras espécies de derivados: entre as inúmeras variantes, mencionem-se as “barrier options” – que são activadas (“knock in”) ou desactivadas

127- Esta distinção tem ainda relevância para efeitos da natureza jurídica deste instrumento derivado, distinguindo-o dos tradicionais contratos de opção do direito civil e comercial comum enquanto contratos preliminares (sobre o ponto, vide ANTUNES, J. Engrácia, Contratos Comerciais – Noções Fundamentais, 69 e seg., Direito e Justiça, volume especial, Lisboa, 2008). É que, ao passo que os contratos de opção com liquidação física funcionam como contratos prepa-ratórios ou preliminares da celebração de um outro contrato (mormente, a compra e venda de determinado lote de valores mobiliários, instrumentos monetários ou outro activo real subjacente), os contratos com liquidação financeira são, em si mesmos, contratos definitivos: como refere E. Diáz RUIZ, “o contrato de opção financeira nem sempre é equiparável a um contrato de opção de compra e venda normal, já que, muito frequentemente, não se acaba comprando ou vendendo efectivamente algo ainda quando o titular exerce o direito de opção” (Los Mercados de Opciones y Futuros Financieros, 4541, in: AAVV, “Instituciones del Mercado Financiero”, vol. VII, 4521-4570, La Ley, Madrid, 1999).

128- Ao lado das modalidades, igualmente diversas e relevantes são as estratégias subjacentes. No essencial, tais estratégias podem ser a compra de opções de compra (“long call”), a compra de opções de venda (“long put”), a venda de opções de compra (“short call”) e a venda de opções de venda (“short put”), podendo ainda haver lugar a estratégias intermédias ou híbridas (“straddle”, “strangle”, “spread” e “risk reversal”). Cf. SCHÄFER, Klaus, Einsatz und Bewertung von Optionen und Futures, 61 e seg., in: AAVV, “Derivative Finanzinstrumente”, 45-130, Schäffer-Poeschel, Stuttgart, 1995.

129- Estas modalidades especiais, de resto, não são estanques, assistindo-se à sua frequente combinação: são assim comuns, por exemplo, as opções “call” sobre acções de tipo americano não garantidas negociadas directamente entre os investidores. Sobre estas e outras modalidades de opções, vide desenvolvida-mente GIRINO, Emilio, I Contratti Derivati, 51 e segs., 76 e segs., Giuffrè, Milano, 2001.

130- No essencial, as diversas e complexas estruturas das opções exóticas ou sintéticas constituem variações e combinações em torno de quatro estratégias de investimento fundamentais consoante a percepção do mercado por parte do investidor: as opções de compras longas (“long calls”) e de vendas curtas (“short puts”) – quando o investidor está optimista em relação à evolução do activo subjacente (“bull”) – ou as opções de compras curtas (“short calls”) e de vendas longas (“long puts”) – no caso inverso de estar pessimista (“bear”). Cf. ADAM-MÜLLER, Axel, Merkmale und Einsatz von exotischen Optionen, in: 38 “Zeitschrift für betriebswirtschaftliche Forschung” (1997), 89-125; ZHANG, Peter, Exotic Options: A Guide to Second Generation Options, 2nd edition, World Scientific, Singapore, 1998.

OS DERIVADOS: 117

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(“knock out”) logo que o valor ou cotação do activo subjacente atinge determinado estalão (“barrier”) –, as “binary options” – cujo exercí-cio pode dar lugar à compra ou venda do activo subjacente ou a nada, consoante o seu valor ou cotação durante a vigência contratual (“all-or- -nothing”) –, as “rainbow options” – caracteri-zadas por se estruturarem em torno de vários factores de risco para além do valor ou cotação do activo subjacente (“maxime”, quantidade) –, ou as “swaptions” – resultantes da combinação entre uma opção e um “swap”.131

VII. “SWAPS” I. Designa-se por “swap” (literalmente, troca ou permuta) o contrato pelo qual as partes se obrigam ao pagamento recíproco e futuro de duas quantias pecuniárias, na mesma moeda ou em moedas diferentes, numa ou várias datas predeterminadas, calculadas por referência a fluxos financeiros associados a um activo subjacente, geralmente uma determinada taxa de câmbio ou de juro.132

II. À semelhança dos demais derivados, os “swaps” são fundamentalmente um instrumento de cobertura de risco, que permite às empresas, em particular, salvaguardar-se das consequên-cias adversas das oscilações desfavoráveis das taxas de juro e de câmbio133, embora também sejam ocasionalmente utilizados para finalida-des arbitragistas, especulativas, e até puramente contabilísticas134. Suponhamos duas empresas que negoceiam financiamentos idênticos no mercado bancário a taxas diversas: a empresa A contrai uma dívida de 1 milhão de euros por cinco anos e à taxa de juros fixa de 5%, e a empresa B possui um débito de igual montante e prazo a taxa Euribor a 6 meses. A fim de anu-lar o risco que a evolução da respectiva taxa de juros representa para ambas, as empresas A e B podem celebrar um contrato de permuta de taxa de juros (“interest rate swap”) através do qual, mantendo as suas posições creditícias originá-rias, invertem as condições do respectivo endi-vidamento gerando assim fluxos financeiros compensatórios: no termo quinquenal, A vincu-la-se a pagar a B o montante pecuniário corres-pondente à aplicação da taxa de juros fixa e B pagará a A o montante correspondente à taxa de juros variável.135

131- A lista das opções exóticas é, todavia, interminável: v.g., “pay later options”, “cliquet options”, “bet options”, “lockback options”, “Asian options”, “path-dependent options”, “vertical spread options”, “straddles”, etc. Cf. HAUG, E. Gaarder, The Complete Guide to Option Pricing Formulas, McGraw-Hill, New York, 2007.

132- Sobre a figura, vide, entre nós, CALHEIROS, M. Clara, O Contrato de Swap, Coimbra Editora, 2000. Noutros países, vide BOULAT, Pierre-Antoine/ CHABERT, Pierre-Yves, Les Swaps – Technique Contractuelle et Régime Juridique, Masson, Paris, 1992; ERNE, Roland, Die Swapgeschäfte der Banken: eine rechtliche Betrachtung der Finanzswaps unter besonderer Berücksichtigung des deutschen Zivil-, Börsen-, Konkurs- und Aufsichtsrechts, Duncker & Humblot, Berlin, 1992; GORIS, Paul, The Legal Aspects of Swaps: An Analysis Based on Economic Substance, Graham & Trotman, London, 1994; RIVELLINI, Flavio, La Disciplina Giuridica dei Contratti Swap, Diss., Napoli, 2002; ROLDÁN, S. Zamorano, El Contrato de Swap como Instrumento Financiero Derivado, V. Tuells, Zaragoza, 2003.

133- Sobre esta função de “hedging” empresarial, vide AAVV, Las Operaciones Swap como Instrumento para Mejorar la Financiación de la Empresa, Ed. Instituto de Empresa, Madrid, 1985; MORI, Margherita, Swap – Una Tecnica Finanziaria per l’Impresa, Cedam, Padova, 1990.

134- Sobre a utilização dos “swaps” como mecanismo de cosmética das contas sociais, mormente para efeitos de maximização fiscal, vide NABBEN, Stefan, Financial Swaps. Instrument des Bilanzstruktur-managements in Banken, Gabler, Wiesbaden, 1991.

135- Usualmente, os “swaps” são assim instrumentos financeiros derivados emergentes de contratos celebrados entre sujeitos com posições simetricamente opostas, ou seja, portadores de necessidades ou de previsões exactamente inversas sobre a evolução de determinado activo ou parâmetro financeiro – embora nada impeça que também possam ser celebrados por sujeitos arbitragistas ou especuladores a fim de tirar partido das imperfeições temporárias dos mercados (“mispricing”). Neste sentido, BRANCADORO, Gianluca, Strumenti Finanziari e Mercato Mobiliari, 252, Giuffrè, Milano, 2005.

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III. Tal como os futuros e opções, os “swaps” são um tipo de instrumento financeiro derivado nominado, previsto no art. 2.º, nº 1, e) do CVM136. Todavia, ao contrário dos futuros e das opções padronizadas, os “swaps” são tipica-mente derivados de mercado de balcão: encon-tramo-nos perante o mais relevante contrato negociado ao balcão dos intermediários finan-ceiros (“over-the-counter”), que reveste uma estrutura tipicamente bilateral (envolvendo ape-nas as empresas contratantes) e individualizada (cujos termos são ajustados caso a caso, embora não excluam uma padronização mínima, aliás habitual).137 IV. Os contratos de “swap” ou permuta finan-ceira têm como sujeitos apenas os investidores ou partes contratantes (usualmente empresas, mas também indivíduos singulares, entidades públicas), embora, na esmagadora maioria dos casos, a sua celebração seja mediada pela

intervenção de um intermediário financeiro (“maxime”, bancos)138. Relativamente à sua for-ma, estamos diante de contratos consensuais que, todavia, revestem usualmente forma escrita voluntária (art. 222.º do Código Civil) uma vez que remetem frequentemente para modelos con-tratuais padronizados (“master agreements”) que contêm um conjunto de condições gerais que virão a enquadrar e regular os diferentes contratos individuais de permuta financeira celebrados entre as partes: tais contratos- -modelo são elaborados por organizações internacionais, com particular destaque para a “ISDA – International Swap Dealers Association”139. Relativamente os seus efeitos, os “swaps” constituem contratos sinalagmáticos (dos quais resultam obrigações para ambas as partes unidas por um nexo de reciprocidade) e de execução diferida (a cumprir no futuro), sen-do, porém, discutida por alguns a sua natureza comutativa ou aleatória.140

136- Apesar de hoje ultrapassada, chegou a ser sustentada a natureza de valor mobiliário deste instrumento financeiro: cf. CAPRIGLIONE, Francesco, Gli Swap come Valori Mobiliari, in: LIV “Banca, Borsa, Titoli di Credito” (1991), 792-796. Tenha-se ainda em conta a existência de um regime fiscal próprio para esta figura (art. 79.º do Código do IRC e art. 29.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais): sobre o regime justributário dos “swaps”, vide BORCHERS, Jens, Swapgeschäfte in Zivil- und Steuerrecht, Peter Lang, Frankfurt a.M., 1993.

137- Tal como a respeito dos futuros (cf. supra nota 104) e opções (cf. supra nota 122), é discutida a natureza jurídica dos “swaps” (v.g., contratos de troca, de compra e venda, atípicos), não faltando quem considere que os “swaps” são, estruturalmente, instrumentos derivados que se reconduzem aos próprios futuros e opções. Sobre tal questão, vide CLOUTH, Peter, Rechtsfragen der ausserbörslichen Finanz-Derivate, 22 e segs., 43 e segs., Beck, München, 2001; GROUP OF THIRTY, Derivatives: Practices and Principles, 31, Washington, 1993.

138- Sublinhe-se que, crescentemente, os intermediários financeiros, eles próprios, têm vindo a intervir como contraparte contratual. Com efeito, as operações de “swap” cedo confrontaram os intermediários financeiros com o problema de encontrar e aproximar no mercado duas empresas ou investidores com posições simétricas opostas – o que nem sempre se revela fácil e ágil: a forma de ultrapassar este escolho, e simultaneamente explorar um negócio rentável, consistiu então em o intermediário financeiro passar a funcionar como uma espécie de “swaper” profissional, contraindo empréstimos no mercado interbancário e actuando directamente como contraparte contratual dos seus próprios clientes. Cf. ANTL, Boris, The Role of a Bank in Structuring Currency Swap Transactions, in: AAVV, “Las Operaciones Swap como Instrumento para Mejorar la Financiación de la Empresa”, 103-115, Ed. Instituto de Empresa, Madrid, 1985.

139- Entre tais condições gerais, incluem-se regras relativas às notificações entre as partes, à cessão da posição contratual, às causas e efeitos da resolução do contrato, à lei aplicável, e ao foro competente. Cf. BROZOLO, L. Radicati, Il Contratto Modello di Swap dell’International Swap Dealers Association, in: “Diritto del Commercio Internazionale” (1988), 539-559; ZOBL, Dieter/ WERLEN, Thomas/ GIOVANOLI, Mario/ HARTIG, Gérard, 1992 ISDA-Master Agreement: Unter besonderer Berücksichtigung der Swapgeschäfte, Schulthess, Zürich, 1995.

OS DERIVADOS: 119

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Particularmente relevante é o objecto dos con-tratos de permuta financeira: tratando-se de um dos expoentes dos derivados de balcão, é com-preensivelmente difícil dizer o que seja uma “swap” no seu estado elementar ou puro, tal a diversidade das variantes originadas pela “praxis” financeira e bancária internacional. Todavia, é possível distinguir aqui entre duas modalidades fundamentais: os “swaps” de divi-sas e de juros141. Nos “swaps” de divisas (“currency swaps”, “Währungsswap”) – a for-ma historicamente primogénita deste tipo de derivado –142, as partes acordam permutar ou trocar entre si quantias pecuniárias expressas em duas moedas diferentes, calculadas median-te a aplicação de uma taxa de câmbio predeter-minada: estes contratos podem implicar mera-mente a troca do capital (“currency swaps” sim-ples) ou envolver simultaneamente a troca de juros periódicos (“cross-currency swaps”), a

qual pode ser realizada a taxa fixa para ambas as partes (“fix to fix swap”), a taxa fixa para uma das partes e taxa variável para a outra (“circus swap”), ou a taxas variáveis, embora indexadas a diferentes referenciais, para ambas as partes (“floating to floating swap”)143. Já nos “swaps” de juros (“interest rate swaps”, “Zinssatzswap”) – aliás, hoje bastante mais fre-quentes e relevantes –144, as partes contratantes acordam trocar entre si quantias pecuniárias expressas numa mesma moeda, representativas de juros vencidos sobre um determinado capital hipotético, calculados por referência a determi-nadas taxas de juro fixas e/ou variáveis: estes contratos podem também, por seu turno, reves-tir duas variantes fundamentais, consoante o cálculo dos juros de uma das partes se realiza a taxa fixa e o da outra a taxa variável (“coupon swap”) ou mediante a aplicação a ambas de taxas variáveis definidas em bases distintas (“basis rate swap”).145

141- Sobre estas modalidades fundamentais, vide desenvolvidamente BROWN, Keith/ SMITH, Donald, Interest Rate and Currency Swaps, J. Wiley & Sons, New York, 2005; IULIIS, Carmelo, Lo Swap d’Interessi o di Divise nell’Ordinamento Italiano, in: 57 “Banca, Borsa, Titoli di Credito” (2004), 391-410; LASSAK, Günter, Zins- und Währungsswaps, Knapp, Frankfurt, 1998; MATTOUT, Jean-Pierre, Opérations d’Échange de Taux d’Intérêt et de Devises: Qualification et Régime Juridique en Droit Français, in: 468 “Revue Banque” (1987), 24-29. Outras modalidades conhecidas são os “commodities swaps” (que tomam por parâmetro os preços de mercadorias) e os “equity swaps” (em que a obrigação de pagamento de uma ou ambas as partes toma por referência a cotação de acções ou índices de acções: cf. COOPERS & LYBRAND, Equity Swaps, McGraw-Hill, London, 1994).

142- Os “swaps” nasceram historicamente como um método para ultrapassar e iludir os controlos cambiais nacionais em voga nos anos 70, tendo o primeiro “swap” de divisas ocorrido em 1981 entre a IBM e o Banco Mundial (BOCK, David, Fixed-to-Fixed Currency Swap: The Origins of the World Bank Swap Programm, in: AAVV, “Swap Finance”, vol. II, 218-233, Euromoney, London, 1986).

143- Sobre a noção e variantes dos “swaps” de divisas, vide BEIDLEMAN, Carl, Cross Currency Swaps, Irwin Professional Publishers, Chicago, 1991; DECKER, Ernst, Zinssatz und Währungsswaps unter rechtliche Aspekten, in: 44 “Wertpapier-Mitteilungen – Zeitschrift für Wirtschafts- und Bankrecht” (1990), 1001-1015; KAZEMZADEH, Kamrad, Der Kapitalmarktswap, 29 e segs., V. Österreich, Wien, 1998. Advirta-se que os “swaps” de divisas não se confundem com os impropriamente designados “swaps” cambiais (“Divisenswap”), que consistem, não em trocas, mas antes em contratos de compra e venda realizados simultaneamente a contado e a prazo: sobre tal distinção, vide também FLECKNER, Andreas, Finanztermingeschäfte in Devisen, in: 16 “Zeitschrift für Bankrecht und Bankwirtschaft” (2005), 96-111; KAZEMZADEH, Kamran, Der Kapitalmarktswap, 36 e segs., V. Österreich, Wien, 1998.

144- Sobre a noção e variantes dos “swaps” de taxas de juros, vide NASSETTI, F. Caputo, Profili Legali degli “Interest Rate Swap” e “Interest Rate and Currency Swap”, in: “Diritto del Commercio Internazionale” (1992), 69-93; LUDWIG, Mary, Understanding Interest Rate Swaps, McGraw-Hill, New York, 1993; KOPP, Thomas, Der Zinsswap: ein deutsch-US-amerikanischer Rechtsvergleich, Nomos, Baden-Baden, 1995. Sublinhe-se que este tipo de “swap” corresponde a mais de 80% do volume total actual dos negócios de “swap” (cf. ERNE, Roland, Modernes Zinsmanagement durch Einsatz von Zinssatzswaps – viele Chancen kaum Risiken, in: 36 “Der Betrieb” (1994), 1809-1812), sendo dominante a doutrina que sustenta a sua natureza atípica (DECKER, Ernst, Zinssatz und Währungsswaps unter rechtliche Aspekten, 1004, in: 44 “Wertpapier-Mitteilungen – Zeitschrift für Wirtschafts- und Bankrecht” (1990), 1001-1015; ERNE, Roland, Die Swapgeschäfte der Banken, 50, Duncker & Humblot, Berlin, 1992; MAULSHAGEN, Almut/ MAULSHAGEN, Olaf, Rechtliche und bilanzielle Behandlung von Swapgeschäften, 245, in: 55 “Betriebs-Berater” (2000), 243-249).

145- Assim sendo, ao passo que nos “swaps” de divisas existe um fluxo financeiro de capital e juros, nos “swaps” de juros existe apenas um fluxo de juros, não sendo o capital de base objecto de qualquer permuta (ERNE, Roland, Die Swapgeschäfte der Banken, 20, Duncker & Humblot, Berlin, 1992). Ainda que possíveis, são extremamente raros os “swaps” baseados em duas taxas fixas (ROFFLER, Sylvie, Quelques Aspects de Nouveaux Instruments Financiers, 37, in: “Comptabilité et Fiscalité Pratiques” (1996), 31-48).

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Por fim, sublinhe-se que, em qualquer dos casos, as operações de “swap” podem dizer res-peito a fluxos pecuniários negativos ou positi-vos – consoante tais fluxos são gerados por pas-sivos financeiros (“liability swaps”) ou decor-rentes dos juros vencidos por activos das partes (“asset swaps”)146 –, e podem ser objecto de liquidação física ou meramente financeira – consoante envolvem obrigações recíprocas de pagamento por ambas as partes ou apenas uma única obrigação de pagamento do diferencial pecuniário por uma das partes.147

V. A flexibilidade estrutural e operacional dos “swaps”, bem ilustrada no enorme sucesso que granjeou no seio dos instrumentos derivados, conduziu a uma significativa proliferação de modalidades especiais, resultantes da criação de variantes negociais (“swaps” complexos) ou da combinação com outros instrumentos deriva-dos ou até financeiros (“swaps” híbridos).148 Entre as primeiras, podem referir-se os “swaps” com taxas alternativas (“roller-coaster swaps”) – que conferem às partes a faculdade de eleger uma de entre um conjunto de taxas fixas e

variáveis preestabelecidas –, os “swaps” com prazo condicional (“putable swap” e “callable swap”) – que conferem a um dos contraentes o direito unilateral de prolongar ou reduzir o pra-zo do contrato –, ou os “swaps” com interven-ção de terceiro (“double swaps”) – que permi-tem introduzir no contrato originário um tercei-ro, geralmente um banco, que passará a ser con-traparte de dois novos contratos com os con-traentes primitivos. Entre as últimas, merecem destaque especial as chamadas “swaptions” – híbrido resultante do cruzamento de um “swap” e uma opção, que confere a uma das partes (beneficiário) o direito potestativo de realizar uma operação de permuta financeira cujos ter-mos estão previamente definidos, durante um determinado período de tempo –149, embora sejam igualmente conhecidos outros exemplos de modalidades mistas, v.g., os “collar swaps” (que, mediante a combinação de um “collar” e um “swap”, visam prevenir uma excessiva volatilidade das taxas de juro median-te a fixação de tectos máximo e mínimo)150 e os “embedded swaps” (que designam aqueles “swaps” que estão como que associados ou “embutidos” no próprio activo subjacente).151

146- REINER, Günter, Derivative Finanzinstrumente im Recht, 3, Nomos, Baden-Baden, 2002.

147- Os “swaps”, como sucede com muitos outros derivados (futuros, opções, etc.), podem assim constituir contratos diferenciais: sobre a figura, vide infra IX.

148- Para uma panóplia geral destas e outras modalidades especiais, vide MORI, Margherita, Swap – Una Tecnica Finanziaria per l’Impresa, 37 e segs., Cedam, Padova, 1990.

149- O principal objectivo deste híbrido é permitir a um investidor lançar mão de um “swap” no caso de, durante o período de vigência da opção, a evolução das taxas de câmbio ou de juro tornarem aquele vantajoso. Cf. BUETOW, Gerald/ FABOZZI, Frank, Valuation of Interest Rate Swaps and Swaptions, J. Wiley & Sons, New York, 2000.

150- GIRINO, Emilio, Collar Swaps, in: 19 “Amministrazione & Finanza” (1993), 1210-1215.

151- É o caso, por exemplo, de um “swap” de juros sobre uma obrigação. Suponha-se, por exemplo, uma empresa que se financia no mercado através da emissão de obrigações mas que, em virtude do seu baixo “rating”, é forçada a oferecer um juro alto: a empresa emitente poderá mitigar este problema, contra-tando um “swap” de juros com um banco pelo qual este se compromete a pagar o juro fixo obrigacionista e aquela a pagar um juro variável (HUDSON, Alastair, The Law on Financial Derivatives, 52, 3rd edition, Sweet & Maxwell, London, 2002). Inversamente, existem outras modalidades especiais que ganha-ram uma tal relevância prática e autonomia operativa que é a própria lei a qualificá-las hoje como uma espécie autónoma de derivado: é o caso dos “credit default swaps”, que melhor se enquadram hoje na categoria dos derivados de crédito (cf. infra VIII).

OS DERIVADOS: 121

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VIII. DERIVADOS DE CRÉDITO I. Designam-se derivados de crédito (“credit derivative”, “Kreditderivate”, “dérivés de cré-dit”, “derivati di credito”) os contratos através dos quais uma das partes, compradora de pro-tecção (“protection buyer”), transfere para a outra, vendedora de protecção (“protection sel-ler”), um determinado risco de crédito, median-te o pagamento de uma contrapartida.152 II. Os derivados de crédito são um instrumento financeiro derivado nominado, directamente previsto na lei (art. 2.º, nº 1, c) do CVM)153. Apesar de muito recente (datando o seu apareci-mento de meados da década de 90), esta nova categoria de derivados assumiu hoje um tal relevo que foi já mesmo considerada como “a mais significativa inovação financeira dos últi-mos anos”.154 Como é sabido, de entre as diversas componen-tes de incerteza dos negócios e mercados (v.g., risco de país, operativo, legal, de liquidez, de oscilação de preços, taxas de juro ou câmbios, etc.), o risco de crédito representa porventura

um dos mais relevantes: tal risco consiste gene-ricamente no deterioramento da qualidade cre-ditícia do devedor, usualmente consubstanciado na falta de cumprimento pontual da respectiva obrigação155. Ao permitir isolar o risco de crédi-to da actividade ou instrumento subjacentes (v.g., um empréstimo, uma obrigação ou outro título de dívida, etc.), autonomizando-o para efeitos de negociação como se de um novo acti-vo se tratasse (à semelhança de qualquer outro, v.g., divisas, taxas de juro, mercadorias, índi-ces, valores mobiliários, etc.), compreende-se facilmente o sucesso alcançado junto das empresas por este tipo de derivados como ins-trumento de gestão, cobertura e transferência do risco creditício. Na sua ausência, as empresas interessadas em transferir ou mitigar o risco da exposição creditícia inerente às suas relações jurídico-económicas apenas dispunham dos ins-trumentos clássicos (tipicamente complexos e custosos: v.g., cessão de créditos, novação, sub-rogação) ou modernos (que implicam a transfe-rência dos próprios activos subjacentes: “maxime”, titularização de créditos): o derivado creditício, ao permitir separar o risco de crédito (“default” ou “downgrading”) do respectivo

152- Sobre a figura, vide BORGES, S. Leite/ MAGALHÃES, S. Torres, Derivados de Crédito – Algumas Notas Sobre o Regime dos Valores Mobiliários Condicionados por Eventos de Crédito, in: 15 “Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários” (2002), 115-146. Noutros quadrantes, vide AAVV, Kreditderivate – Handbuch für die Bank- und Anlagepraxis, 2. Aufl., Schäffer-Poeschel, Stuttgart, 2005; GAUVAIN, Alain, Droit des Dérivés de Crédit, Éd. Revue Banque, Paris, 2003; NASSETTI, F. Caputo/ FABBRI, Andrea, Trattato sui Contratti Derivati di Credito, Egea, Milano, 2000; PARKER, Edmund, Credit Derivatives – Documenting and Understanding Credit Derivative Products, Globe Business Publishing, London, 2007.

153- Apesar de nominados, os derivados creditícios são fundamentalmente contratos atípicos, insusceptíveis de se reconduzir a algum dos tipos negociais tradicionais com os quais guardam afinidades, tais como o contrato de seguro – o qual supõe necessariamente a existência de um risco puro determinado e de um interesse (sob pena de nulidade: cf. arts. 1.º e 43º, n.º 1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro e art. 294.º do Código Civil), ao contrário do derivado de crédito, que admite causas contratuais puramente especulativas e arbitragistas –, a fiança – a qual supõe a acessoriedade da obrigação do fiador à obrigação principal garantida (art. 627.º do Código Civil), ao invés do que sucede com a obrigação do vendedor de protecção, que permanece autónoma face à obrigação de referência –, o negócio condicionado – cuja eficácia fica subordinada à verificação de evento futuro (art. 270.º do Código Civil), ao passo que o derivado de crédito produz a plenitude dos seus efeitos desde o momento da conclusão contratual, com a particularidade da prestação de uma das partes ser referenciada a um “credit event” –, ou até a “emptio rei” – que sempre supõe a transferência da propriedade de bens futuros contra o pagamento de um preço (art. 880.º, nº 2 do Código Civil), que inexiste como tal no derivado creditício.

154- TRON, Flavio, Il Mercato dei Credit Derivatives, 1, Diss., Bergamo, 2000. No mesmo sentido, o antigo governador da Reserva Federal norte-americana, Alan GREENSPAN, que qualificou estes derivados como “o mais importante instrumento visto nas últimas décadas” (The Economist, de 1 de Julho de 2006).

155- Sobre o risco de crédito, vide em geral DE LAURENTIS, Giacomo, Il Rischio di Credito, Egea, Milano, 1994. Para uma tipologia dos riscos cobertos pelos derivados, vide em geral NASSETTI, F. Caputo, I Contratti Derivati Finanziari, 4 e segs., Giuffrè, Milano, 2007.

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activo subjacente (“reference obligation”) e negociar aquele a troco de uma contrapartida (“premium”), traz consigo um conjunto signifi-cativo de vantagens, seja para o comprador de protecção – designadamente, a gestão e a exter-nalização parcial do seu risco exploracional sem transferência dos activos subjacentes, a redução do nível dos riscos agregados e liberta-ção de capitais próprios (especialmente relevan-te no caso dos bancos, sujeitos a limites regula-mentares à concentração de riscos e ao rácio de solvabilidade), e a manutenção ou até aumento das relações de clientela (pela economia de garantias colaterais de outro modo necessárias) –, seja para o vendedor de protecção – para quem o risco de crédito se torna assim num bem fungível susceptível de “trading”, para objecti-vos de arbitragem e especulação, além da opti-mização decorrente de se tratar de transacções não contabilizadas no balanço (“off-balance- -sheet”).156

III. Os derivados de crédito são instrumentos financeiros para a transferência do risco de crédito, usualmente consistentes em contratos157. Através deles, uma das partes, compradora de protecção (“protection buyer”),

transfere para a outra, vendedora de protecção (“protection seller”), um determinado risco de crédito mediante o pagamento de uma contra-partida. O risco de crédito (“credit risk”) tem a sua fonte remota numa obrigação ou débito sub-jacente (“reference asset” ou “reference obliga-tion”) de que um terceiro (“reference entity”) é devedor perante o comprador de protecção (v.g., empréstimos, obrigações, títulos de dívi-da, garantias pessoais ou reais, posições debitó-rias emergentes de outros derivados): tal risco consubstancia-se na exposição genérica a even-tos futuros e incertos associados à deterioração da “qualidade creditícia” (“creditworthiness”) do devedor ou entidade de referência (“credit events”), v.g., insolvência, liquidação, falta de cumprimento tempestivo de obrigações, recusa de pagamento, moratórias, reestruturação do passivo, depreciação do “rating”, etc.158. Final-mente, em caso de ocorrência do evento de cré-dito, o cumprimento do contrato (“rectius”, da obrigação do vendedor de protecção) realiza-se usualmente mediante o pagamento de uma soma pecuniária calculada por referência a tal evento nos termos contratualmente acordados (“cash settlement”), podendo ocasionalmente dar lugar à entrega do activo subjacente (“physical settlement”).159

156- PARTNOY, Frank/ SKEEL, David, Promises and Perils of Credit Derivatives, in: 75 “University of Cincinnati Law Review” (2007), 1019-1051. Os derivados de crédito são instrumentos financeiros típicos dos principais bancos e sociedades financeiras (JP Morgan, Deutsche Bank, Chase Manhattan, Citybank, Merrill Lynch), sendo também utilizados pelas empresas seguradoras, fundos de investimento, “hedge funds”, e, por vezes, por empresas comerciais e industriais. Cf. ainda BURGHOF, Hans-Peter/ HENKE, Sabine/ RUDOLPH, Bernd, Kreditderivate als Instrumente eines aktiven Kreditrisikomanagements, in: 10 “Zeitschrift für Bankrecht und Bankwirtschaft” (1998), 277-286; CHAPLIN, Geoof, Credit Derivatives: Risk Management, Trading and Investing, J. Wiley & Sons, New York, 2005; MATHIEU, Pierre/ D’HÉROUVILLE, Patrick, Les Dérivés de Crédit – Une Nouvelle Gestion du Risque de Crédit, Economica, Paris, 1998; SIRONI, Andrea (dir.), I Derivati per la Gestione del Rischio di Credito, Giuffrè, Milano, 1999.

157- RUGGERI, Luca, I “Credit Derivatives” Quali Strumenti Finanziari Derivati, in: 11 “I Contratti – Rivista di Dottrina e Giurisprudenza” (2003), 839-834. Num sentido amplo ou impróprio, os derivados de crédito abrangem ainda instrumentos de natureza mobiliária – como é o caso dos valores mobiliários condi-cionados por eventos de crédito (Regulamento CMVM nº 16/2002, de 21 de Novembro). Sobre a figura, vide DIAS, C. Sofia, Certificados, Valores Mobiliá-rios Convertíveis e Valores Mobiliários Condicionados Por Eventos de Crédito: Algumas Notas Comparativas, 102 e segs., in: 15 “Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários” (2002), 97-113.

158- Como nota Alastair HUDSON, “a precisa delimitação do «evento de crédito» é assim central no funcionamento deste tipo de derivado” (The Law on Financial Derivatives, 77, 3rd edition, Sweet & Maxwell, London, 2002). Para uma lista dos eventos de crédito relevantes, elaborada pela “ISDA - International Swaps and Derivatives Association”, vide HARDING, Paul, A Practical Guide to the 2003 ISDA Credit Derivatives Definitions, Euromoney Pub., London, 2004.

159- NELKEN, Israel, Implementing Credit Derivatives, 73 e segs., McGraw-Hill, New York, 1999. Por seu turno, no caso de liquidação financeira, alguns derivados de crédito admitem ainda a alternativa entre o pagamento de uma quantia pecuniária variável (igual à diferença entre o valor da obrigação de referên-cia na data da celebração contratual e do seu “recovery value” na data do evento creditício) ou fixa (obtida segundo um percentual aplicado sobre o valor nocional, sobretudo nos casos em que inexiste um mercado secundário para a obrigação de referência) (cf. TAKAVOLI, Janet, Credit Derivatives. A Guide to Instruments and Applications, 96, John Wiley & Sons, Toronto, 1998).

OS DERIVADOS: 123

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124 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

Entre as principais características destes con-tratos, saliente-se serem tipicamente contratos de balcão ou OTC (dotados de uma reduzida liquidez e padronização, dominados por um escasso número de “dealers” nas praças finan-ceiras de Londres e Nova Iorque)160, de carácter consensual (embora por regra sujeitos a forma escrita voluntária: cf. art. 222.º do Código Civil)161, sinalagmático (fonte de obrigações recíprocas para ambas as partes, bem como no plano das respectivas excepções: cf. art. 428.º do Código Civil), e de execução diferida (a cumprir no futuro).162 IV. Os derivados de crédito revestem uma gran-de diversidade de modalidades, que podem ser agrupadas em duas categorias fundamentais: os derivados de crédito simples (“credit derivative products”) – que visam exclusivamente transfe-rir o risco de crédito relativo ao activo subja-cente, originando pagamentos cuja existência e montante são aferidos pelo evento de crédito – e os derivados de crédito sintéticos (“replication products”) – que permitem transferir simulta-neamente o risco de mercado, originando fluxos de pagamento que dependem, não apenas do evento de crédito, mas também da evolução do valor da obrigação subjacente.163

Entre os primeiros, destacam-se os “credit default swaps”, contratos através dos quais uma das partes (vendedor de protecção) se obriga perante a outra parte (comprador de protecção) a efectuar o pagamento de montante pecuniário predeterminado ou predeterminável em caso de ocorrência de um evento futuro e incerto asso-ciado à posição creditícia do devedor durante o prazo contratualmente definido (evento de cré-dito), contra o pagamento de uma contrapartida pecuniária única ou periódica (prémio)164; e as “credit default options”, contratos que atribuem ao comprador de protecção um direito potestati-vo à conclusão de um outro contrato sobre determinado activo subjacente (compra e venda de obrigação ou outro título de dívida, cessão de créditos, “subparticipation”, etc.) por preço e num prazo predeterminados, em caso de ocor-rência de um evento de crédito, mediante o pagamento de um prémio ao vendedor de protecção165. Já entre os últimos, devem men-cionar-se os “credit spread derivatives”, contra-tos através dos quais o comprador de protecção se previne genericamente contra o risco de degradação do valor da obrigação de referência aferido por variações do chamado “credit spread”, correspondente a diferenciais de valor entre tal obrigação e outros activos financeiros

160- Para uma ilustração, vide AAVV, J.P. Morgan Guide to Credit Derivatives, London, 1999. Advirta-se, todavia, que é previsível que a importância cres-cente dos derivados de crédito os leve em breve à negociação em mercados organizados (SCOTT-QUINN, Brian/ WALMSLEY, Julian, The Impact of Credit Derivatives on Securities Markets, ISMA, Zurich, 1998).

161- À semelhança de outros derivados de balcão, também os derivados de crédito são hoje contratos estandardizados, celebrados usualmente segundo o modelo ou contrato-tipo elaborado pela “ISDA – International Swaps and Derivatives Association” – o “2003 ISDA Credit Derivatives Definitions”. Cf. HARDING, Paul, A Practical Guide to the 2003 ISDA Credit Derivatives Definitions, Euromoney Pub., London, 2004.

162- Especialmente complexas são as projecções insolvenciais deste tipo de derivados: para uma perspectiva do direito norte-americano, vide LUBBEN, Stephen, Credit Derivatives and the Future of Chapter 11, in: 81 “American Journal of Bankruptcy Law” (2007), 405-430.

163- DAS, Satyajit, Credit Derivatives, 10 e seg., John Wiley & Sons, Singapore, 1998.

164- Ao lado desta modalidade simples, podem existir modalidades complexas, tais como os “basket default swaps” (que se contradistinguem essencialmente pela obrigação de referência ser relativa, não a uma única, mas a um lote de várias entidades de referência) e os “credit default exchange swaps” (em que ambas as partes actuam simultaneamente como compradores e vendedores de protecção, permutando os respectivos riscos de crédito). Cf. NASSETTI, F. Caputo, I Contratti Derivati di Credito – Il Credit Default Swap, in: “Diritto del Commercio Internazionale” (1997), 103-136.

165- Esta modalidade pode ainda subdividir-se em “credit default put options” (em que o comprador de protecção fica investido no direito de vender ou ceder o activo subjacente) e “credit default call options” (em que fica investido no direito de adquirir originária ou derivadamente o mesmo). Modalidade híbrida, extremamente frequente, são as chamadas “credit default swaptions” (HULL, John/ WHITE, Alan, The Valuation of Credit Default Swap Options, in: 10 “The Journal of Derivatives” (2003), 40-50).

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predeterminados (v.g., taxas de juros, índices, títulos do tesouro), os quais podem, por seu turno, assumir diversas submodalidades (“credit spread forwards”, “credit spread options”, “credit spread swaps”)166; e os “total rate of return swaps”, também conhecidos pelo acróni-mo “tror swaps”, contratos através dos quais o comprador de protecção (“total return payer”) se obriga a pagar um montante pecuniário equi-valente à soma dos pagamentos realizados pela entidade de referência em relação à obrigação de referência e dos diferenciais positivos entre o valor de mercado e o valor de partida dessa obrigação, ao passo que, por seu turno, o vende-dor de protecção (“total return receiver”) se obriga a pagar um montante pecuniário periódi-co correspondente ao produto do valor da obri-gação de referência por uma taxa de juros pre-determinada (fixa ou, mais frequentemente, variável), acrescido dos eventuais diferenciais negativos da correlação acima referida.167

IX. CONTRATOS DIFERENCIAIS I. Designam-se contratos diferenciais ( “ c o n t r a c t s f o r d i f f e r e n c e s ” , “Differenzverträge”, “contrats sur différences”, “contratti differenziali”, “contratos por diferen-cias”) aqueles contratos a prazo que têm por objecto o pagamento de soma pecuniária cor-respondente ao saldo diferencial entre o valor do activo subjacente no momento da celebração e da execução do contrato.168 II. Os contratos diferenciais são um instrumento financeiro derivado nominado, expressamente previsto no art. 2.º, nº 1, d) do CVM.169 A sua origem histórica é longínqua e o seu per-curso sinuoso e acidentado170. Com efeito, durante muito tempo, os contratos diferenciais foram assimilados aos contratos de jogo e apos-ta (“gaming”, “Spiel und Wette”, “paris”,

166- Particularmente relevantes são os “credit spread swaps”: nestes, o vendedor de protecção obriga-se a efectuar o pagamento de montante pecuniário ao comprador de protecção no caso de aumento do diferencial entre o valor do débito de referência e o índice que representa o perfil creditício da entidade de referência, assumindo o último perante o primeiro idêntica obrigação no caso inverso de diminuição do referido referencial. Para mais desenvolvimentos, vide LUMMEN, Arnaud, Contribution à l'Étude des Dérivés de Crédit, 15, in: 75 “Banque et Droit” (2001), 12-19; TRON, Flavio, Il Mercato dei Credit Derivatives, 33 e segs., Diss., Bergamo, 2000.

167- Deste modo, esta modalidade de derivado de crédito permite obter uma dupla protecção em face do risco da contraparte e do risco do mercado: como notam S. Leite BORGES e S. Torres MAGALHÃES, “na prática os «total return swap» são mais do que um derivado de crédito, no sentido de que asseguram, ao comprador de protecção, a protecção contra qualquer risco inerente ao activo subjacente e não apenas protecção relativamente a risco de crédito” (Derivados de Crédito – Algumas Notas Sobre o Regime dos Valores Mobiliários Condicionados por Eventos de Crédito, 123, in: 15 “Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários” (2002), 115-146; no mesmo sentido, vide NASSETTI, F. Caputo/ FABBRI, Andrea, Trattato sui Contratti Derivati di Credito, 83, Egea, Milano, 2000; GAUVAIN, Alain, Droit des Dérivés de Crédit, 99 e segs., Éd. Revue Banque, Paris, 2003; REINER, Günter, Derivative Finanzinstrumente im Recht, 25, Nomos, Baden-Baden, 2002). É já mais duvidoso que se devam considerar como derivados de crédito os chamados “convertibility risk products”, através dos quais o comprador de protecção se visa assegurar contra o risco de inconvertibilidade monetária (NELKEN, Israel, Implementing Credit Derivatives, 50, McGraw-Hill, New York, 1999).

168- Sobre a figura, vide entre nós ALMEIDA, C. Ferreira, Contratos Diferenciais, in: AAVV, “Estudos Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa”, vol. II, 81-116, Almedina, Coimbra, 2008. Noutros quadrantres, vide ALLMENDINGER, Stefan/ TILP, Andreas, Börsentermin- und Differenzgeschäfte: Unverbindlichkeit, Aufklärungspflichten, RWS, Köln, 1998; FERRARINI, Guido, I Derivati Finanziari tra Vendita a Termine e Contratto Differenziale, in: AAVV, “Derivati Finanziari”, 24-44, Edibank, Milano, 1993; FERRERO, Emma, Contratto Differenziale, in: VIII “Contratto e Impresa” (1992), 475-489; KÜMPEL, Siegfried, Zur Neugestaltung des Termin-, Differenz- und Spieleinwandes für den Bereich der Derivate, in: 51 “Wertpapier-Mitteilungen – Zeitschrift für Wirtschafts- und Bankrecht” (1997), 49-55; PREITE, Disiano, Recenti Sviluppi in Tema di Contratti Differenziali Semplici (in Particolare Caps, Floors, Swaps, Index Futures), in: VI “Diritto del Commercio Internazionale” (1992), 171-194; ROTONDI, Mario, Marchés Différentiels et Marchés à Terme dans les Bourses de Valeurs, in: 12 “Revue Trimestrielle de Droit Commercial et de Droit Économique” (1959), 19-39.

169- Este instrumento está igualmente previsto na Directiva 2004/39/CE, de 21 de Abril, embora sob a designação ligeiramente diversa de “contratos financeiros por diferenças (financial contracts for differences)” (cf. ponto 9) da Secção C do Anexo I).

170- Recorde-se que os contratos diferenciais podiam já ser encontrados em plenos sécs. XVI e XVII (SUPINO, D., La Questione Ultrasecolare dei Contratti Differenziali, in: XIX “Il Diritto Commerciale e la Parte Generale delle Obbligazioni” (1927), 212-215). Para uma perspectiva histórico-comparatística, vide ALMEIDA, C. Ferreira, Contratos Diferenciais, 81 e segs., in: AAVV, “Estudos Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa”, vol. II, 81-116, Almedina, Coimbra, 2008.

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“scomessa”), sendo relegados para o domínio das obrigações naturais, quando não mesmo considerados inválidos (cf. arts. 1245.º e segs. do Código Civil): assim, rotulando-os aberta-mente de “jogatinas”, L. Cunha GONÇALVES considerava tais operações de bolsa inadmissí-veis à face da ordem juscomercial portuguesa.171 Esta situação, todavia, viria a sofrer uma infle-xão significativa na maior parte das ordens jurí-dicas europeias, sobretudo a partir dos finais do séc. XX, ganhando terreno o entendimento segundo o qual os negócios diferenciais (“causa speculandi”) podem desempenhar uma função económico-financeira legítima que os distingue da pura aposta (“causa ludica”). Com efeito, talqualmente sucede com outros tipos de deri-vados, também os contratos diferenciais perse-guem finalidades protectivas (cobertura do ris-co) e especulativas (assunção de risco na pers-pectiva de lucro), com a particularidade funda-mental de a respectiva execução ser realizada, não fisicamente (através das prestações contra-tuais propriamente ditas) mas financeiramente (através da diferença expressa em termos pecu-niários dos respectivos valores). Além disso, a

especulação e a álea com intuito lucrativo sem-pre estiveram no epicentro do Direito Comercial – “mercatores consueverunt futura prognosticari”, asseverava já Sigismundo SCACCIA172: ora, não se pode ignorar a dife-rença entre o caso de dois jogadores que apos-tam um certa soma de dinheiro numa partida de dados e de dois investidores que, com vista a prevenir perdas ou incrementar lucros, acordam pagar a diferença entre o valor de partida e de chegada de uma taxa de juro, de uma divisa, de um índice de acções, ou qualquer outro activo subjacente, com base numa análise geral macro e microeconómica.173 Tudo isto levou a uma progressiva legitimação da figura dos contratos diferenciais no domínio do mercado de capitais: assim, entre nós, o “Código do Mercado de Valores Mobiliários” de 1991 previu expressamente a sua admissibi-lidade ao regular a celebração de “operações a prazo liquidáveis por compensação” (art. 418.º)174; lá fora, ressalta, por exemplo, a revo-gação do § 764 do “Bürgerliches Gesetzbuch” germânico (que equiparava ao jogo os contratos diferenciais sobre títulos e mercadorias) e a

171- Comentário ao Código Comercial Português, vol. II, 371, Editora José de Bastos, Lisboa, 1916. Em sentido idêntico, ULRICH, Ruy, Da Bolsa e suas Operações, 486, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1906; noutros quadrantes, vide BACHI, Aldo, Il Contratto Differenziale di Borsa nella Pratica e nella Legge, Torino, 1907; WIENER, Heinrich, Das Differenzgeschäft vom Standpunkt der jetzigen Rechtsprechung, C. Heymanns, Berlin, 1893.

172- Tractatus de Commerciis, et Cambio, Genova, 1618. O mais clássico dos negócios juscomerciais, o “contrato de compra e venda mercantil” (art. 463.º do Código Comercial), encontra consabidamente o seu traço distintivo no facto de o comprador a realizar com o fito de obter um lucro com a respectiva revenda futura: a generalização deste intuito especulativo, do mundo dos sujeitos juscomerciais para os próprios particulares, originou mesmo aquilo que alguns deno-minaram de “comercialização do direito civil” (PONTON-GRILLET, Dominique, La Spéculation en Droit Privé, in: “Recueil Dalloz” (1990), Chr., 157-162).

173- Como há quase um século atrás acentuava Giuseppe VALENZANO, “a especulação é a alma do comércio e nada tem que ver com o jogo: a especulação não transforma a bolsa numa bisca” (I Contratti Differenziali di Borsa su Divisa Estera, 23, Roma, 1929). Mas também não se pode ignorar que, por vezes, a linha de fronteira entre ambos não será propriamente nítida (assim, ASCENSÃO, J. Oliveira, Derivados, 46, in: AAVV, “Direito dos Valores Mobiliários”, vol. IV, 41-68, Coimbra Editora, 2000). Este carácter bifronte da especulação foi bem descrito por Frédéric PELTIER: “A especulação possui com o Direito uma relação antagonista. A especulação é agiotagem, sendo banida de há muito como um enriquecimento sem causa – dela desconfiando assim o Direito. Mas a especulação é a base do comércio, sendo justamente o critério especulativo que traça habitualmente as fronteiras entre o direito civil e o direito comercial – pelo que o Direito também a reconhece” (Marchés Financiers et Droit Commun, 197, Banque Éditeur, Paris, 1997).

174- Mais tarde, a revisão dos arts. 418.º e 419.º deste Código haveria de confirmar e aprofundar esta admissibilidade, consagrando-a directamente em relação aos contratos de futuros e de opções (cf. AZEVEDO, M. Luísa/ AZEVEDO, M. Rosário/ BANDEIRA, Luís/ CUNHA, Miguel, Código do Mercado de Valores Mobiliários e Legislação Complementar – Anotado e Comentado, 414 e segs., Bolsa de Derivados do Porto/ Instituto do Mercado de Capitais, 1996). Esta posição foi também adoptada já pelo actual CVM de 1999, cuja versão originária previa igualmente, para futuros (art. 253.º) e opções (art. 254.º), a possibilida-de de o respectivo objecto consistir num pagamento por diferenças (cf. CASTRO, C. Osório/ TORRES, N. Pinheiro, Leis dos Mercados de Valores Mobiliá-rios, 132, Publicações Universidade Católica, Porto, 2000).

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previsão expressa dos “contracts for differen-ces” em Inglaterra (sec. 19 da Schedule 2, Chap. 8 do “Financial Services and Markets Act” de 2000)175 ou dos “contratti differenziali” em Itália (art. 1.º, “comma” 2, i) do “Testo Uni-co della Finanza” de 1998)176. Hoje, a sua vali-dade deve ter-se por incontroversa face à sua expressa consagração no elenco dos instrumen-tos financeiros do art. 2.º, nº 1 do CVM.177 III. Os contratos diferenciais são contratos a prazo que conferem às partes um direito e/ou obrigação a uma mera prestação pecuniária diferencial: num certo sentido, tais contratos representam porventura o único tipo de deriva-dos que poderão ser designados, com inteira propriedade, “instrumentos financeiros deriva-dos”, na medida em que se consubstanciam em negócios cuja causa, objecto e efeitos consistem em puros fluxos financeiros decorrentes das oscilações do valor dos activos subjacentes durante a respectiva vigência.178 A grande maioria dos contratos diferenciais é assim constituída por aqueles derivados que

prevêem, exclusiva ou alternativamente, uma liquidação financeira (“cash settlement”) – sen-do assim uma espécie “transversal” no universo dos derivados. Ao contrário dos derivados com liquidação física – que implicam um cumpri-mento em espécie da operação financeira ou prestação contratual, mediante o pagamento do preço e a transmissão da propriedade dos acti-vos (“physical settlement”, “Termingeschäft mit Erfüllung in Natur”, “marché à livrer”) –, os derivados com liquidação financeira impõem ou permitem um cumprimento mediante o pagamento do mero saldo pecuniário de curso, consistente na diferença entre os preços do acti-vo no momento de celebração (preço de exercí-cio) e de execução contratuais (preço de refe-rência): assim, por exemplo, um futuro sobre acções reveste natureza diferencial caso as par-tes se vinculem unicamente a pagar ou receber a diferença entre o valor da cotação acordado (“strike price”) e corrente (“spot price”) dos títulos na data de vencimento179. Outro sector importante dos contratos diferenciais é o dos derivados sobre activos teóricos, nocionais ou virtuais (v.g., futuros sobre índices de acções,

175- Este preceito define tais contratos como “rights under: (a) a contract for differences; or (b) any other contract the purpose or pretended purpose of which is to secure a profit or avoid a loss by reference to fluctuations in: (i) the value or price of property of any description; or (ii) an index or other factor designated for that purpose in the contract”.

176- Sobre a revogação do preceito alemão, operada em 2002, vide PALANDT, Otto, Bürgerliches Gesetzbuch, 1127, 63. Aufl., Beck, München, 2004. O mesmo se diga daqueles países onde tal figura não foi acolhida expressamente: assim sucede em França, onde “a álea própria dos «jogos de bolsa» é aceite pelo direito dos mercados financeiros, que assim funcionam como uma excepção à proibição do jogo e aposta” (MAYER, Huguette, Jeux et Exception de Jeu, in: “Jurisclasseur Périodique” (1984), doc., 3141).

177- Ainda quando se reconduzam genericamente os contratos diferenciais aos contratos de jogo e aposta, a verdade é que o regime da nulidade cominado no art. 1245.º do Código Civil ressalva expressamente a legislação especial sobre a matéria (art. 1247.º do Código Civil) – de que o art. 2.º, nº 1, d) do CVM constitui justamente um exemplo. Considerando que a ressalva legal apenas abrange os contratos diferenciais celebrados no quadro de uma actividade de intermediação financeira, vide ALMEIDA, C. Ferreira, Contratos Diferenciais, 110 e segs., in: AAVV, “Estudos Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa”, vol. II, 81-116, Almedina, Coimbra, 2008.

178- Sobre a subtil distinção entre derivados e instrumentos financeiros derivados, vide REINER, Günter, Derivative Finanzinstrumente im Recht, 13 e segs., Nomos, Baden-Baden, 2002.

179- É mister salientar que a maioria dos derivados permite atingir as finalidades económicas subjacentes (cobertura de risco, especulação) por qualquer uma das vias. Suponha-se um empresário A que necessita de uma determinada mercadoria dentro de 6 meses, cujo preço actual é de 10 € por unidade. Temendo uma subida do preço até essa data (v.g., 15 €), ele poderá celebrar um contrato de futuros a 6 meses e ao preço unitário de 10 € com B, que tem uma expectati-va oposta de evolução dos preços (v.g., uma descida para 7 €), o qual funcionará assim como uma verdadeira compra e venda mercantil a prazo: na data do vencimento, o vendedor do futuro deverá entregar a mercadoria e o comprador pagar o preço unitário de 10 €, encaixando ainda as partes as eventuais perdas ou ganhos decorrentes da valorização ou desvalorização da mercadoria (v.g., se o preço de mercado for de € 13, B terá tido uma perda de 3 € por unidade). Mas o empresário poderá também atingir a mesma finalidade protectiva através de um “forward” de natureza puramente diferencial, sem qualquer entrega física de mercadoria ou pagamento do preço – acordando pura e simplesmente o pagamento do eventual diferencial existente entre o valor da mercadoria acordado contratualmente e o valor da mesma na data de vencimento contratual (“in casu”, A receberia de B o montante correspondente ao produto resultante do número de unidades de mercadoria por 3 €, obtendo o mesmo efeito de cobertura do risco de aumento do preço das mercadorias).

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opções sobre taxas de inflação, “swaps” e “forwards” sobre taxas de juro, “caps” e “floors”)180, bem como toda uma variada panó-plia de derivados ditos de terceira geração, tais como os “non deliverable forwards”181, as “non deliverable currency options”182, ou as “cash settled interest rate swaptions”.183 IV. Os contratos diferenciais podem revestir características diversas, que aqui não é possível analisar detidamente.184 Assim, quanto à natureza dos activos subjacen-tes, os contratos diferenciais têm primacialmen-te em vista acções (“CFD on equity”), devendo- -se o seu recente recrudescimento, além dos benefícios fiscais, às vantagens de alavancagem financeira e de dissociação entre titularidade jurídica e económica do capital social que lhe são inerentes185: todavia, nada impede que tais contratos possam ter por base qualquer outro activo relevante à luz do art. 2.º, nº 1, e) e f) do CVM, incluindo outros valores mobiliários (v.g., obrigações, “warrants”), divisas, taxas de juros, índices económicos ou financeiros, variá-veis climatéricas, ou mercadorias (com liquida-ção financeira).

Por outra banda, quanto à natureza da sua nego-ciação, os contratos diferenciais são tradicional-mente derivados de mercado de balcão, conce-bidos e celebrados por intermediários financei-ros especializados (v.g., “First Prudential Mar-kets”), conquanto tenham muito recentemente começado a ser também objecto de transacção em mercado organizado.186 Finalmente, quanto ao seu conteúdo, estes con-tratos podem revestir diferentes modalidades. A distinção mais comum respeita ao critério da sua pureza, distinguindo-se então entre contra-tos diferenciais próprios ou puros (“echete Dif-ferenzgeschäfte”, “contratti differenziali sem-plice”) e impróprios ou impuros (“unechete Differenzgeschäfte”, “contratti differenziali complessi”): ao passo que, nos primeiros, as partes acordam directamente que a execução e liquidação do contrato será realizada através de um puro pagamento diferencial, nos últimos o mesmo objectivo é perseguido pelas partes indi-rectamente ou por vias travessas, mormente através da conclusão de contratos a prazo suces-sivos com liquidação física sobre o mesmo acti-vo e de sinal oposto, entre si e com terceiros, destinados a produzir indirectamente um efeito

180- Em sentido semelhante, ALMEIDA, C. Ferreira, Contratos Diferenciais, 94, in: AAVV, “Estudos Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa”, vol. II, 81-116, Almedina, Coimbra, 2008. Sobre os “forwards rate agreements”, vide infra X; sobre os “caps” e “floors”, vide infra XI.

181- Sobre esta figura, vide infra X.

182- FRANKEN, Kai, Das Recht des Terminhandels – OTC-Optionen als Grenzfälle des Börsentermingeschäfts, 96, 187 e segs., Duncker & Humblot, Berlin, 1997.

183- Sobre a figura, vide HAUSER, Heinz, Pricing und Risk-Management von Caps, Floors, Swap-Optionen, 191, in: AAVV, “Handbuch Derivativer Instru-mente”, 187-222, Schäffer-Poeschel, Stuttgart, 1996. Questão duvidosa – atendendo à essencialidade do prazo nos derivados – é a questão de saber se e em que circunstâncias serão também de qualificar como diferenciais determinados contratos de liquidação puramente financeira realizados no mercado a contado: cf. MÜLLER-DEKU, Tobias, Day Trading zwischen Termin- und Differenzeiwand, in: 54 “Wertpapier-Mitteilungen – Zeitschrift für Wirtschafts- und Bankrecht” (2000), 1029-1039.

184- Bem assim como problemas de regime jurídico. Pense-se, por exemplo, nas incidências jusinsolvenciais dos contratos diferenciais: cf. DE BIASI, Pierluigi, Il Netting nei Contratti Derivati, in: XIII “Diritto della Banca e del Mercato Finanziario” (1999), 232-256; BOSCH, Ulrich, Differenz- und Termingeschäfte nach der Insolvenzodnung, in: AAVV, “Kölner Schrift für Insolvenzordnung”, 2. Aufl., 1009-1041, Herne, Berlin, 2000.

185- Os “CFD on equity” (“contracts for differences on equity”) representam actualmente cerca de 30% do volume total de transacções sobre acções, sendo a sua criação recente, como instrumento derivado transaccionável, atribuída a Brian KEELAN e Jon WOOD, no âmbito da operação de oferta pública de aquisi-ção da empresa “Trafalgar House” em 1991. Cf. WALMSLEY, Julian, New Financial Instruments, 491, 2nd edition, John Wiley & Sons, New York, 1998.

186- Em finais de 2007, os contratos diferenciais foram pela primeira vez admitidos à negociação no mercado de bolsa australiana (“Australian Securities Exchange”): é o caso dos “ASX Equity CDFs”, “ASX Index CDFs”, e “ASX Commodity CDFs” (cf. http://www.asx.com.au/products/cfds/index.htm).

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semelhante de liquidação diferencial187. Mas outros critérios têm sido também propostos: assim, de acordo com o critério da natureza da declaração negocial, é possível distinguir entre contratos diferenciais patentes (“offenes Diffe-renzgeschäfte”) e ocultos (“verdecktes Diffe-renzgeschäfte”) – consoante a finalidade de liquidação diferencial transparece expressamen-te do acordo negocial das partes ou não188 –, ou ainda, de acordo com o critério da própria fina-lidade negocial, entre contratos diferenciais líci-tos e ilícitos – consoante a finalidade de liqui-dação diferencial é tutelável ou não pela ordem jurídica. X. “FORWARDS” I. Designam-se por “forwards” os contratos a prazo negociados em mercado de balcão que conferem posições de compra e de venda sobre determinado activo subjacente por preço e em data futura previamente fixados.189 II. Os “forwards” são um instrumento financei-ro derivado inominado (reconduzível generica-mente à figura dos “contratos a prazo”, prevista no art. 2.º, nº 1, e) do CVM) que exibe profun-das similitudes com os futuros: em ambos os casos estamos diante de contratos que são fonte de direitos e obrigações de compra e de venda

de determinados activos subjacentes, financei-ros (v.g., valores mobiliários, divisas, taxas de juros, taxas de câmbio) ou não financeiros (v.g., mercadorias) a executar por um preço, em data futura e através de um modo de liquidação pre-viamente definidos. Todavia, os “forwards” e os “futures” distinguem-se em vários aspectos, em especial no plano da sua natureza (padronizada ou individual) e negociação (mercado organizado ou de balcão): ao passo que os futuros são contratos a prazo firme nego-ciados em mercado organizado, os “forwards” são contratos a prazo firme negociados no bal-cão dos intermediários financeiros; e ao passo que os futuros são contratos totalmente padroni-zados, os “forwards” são contratos cujo conteú-do é passível de livre negociação caso a caso, permitindo operações de cobertura de risco individualizadas e adaptadas às necessidades particulares dos contratantes (mormente, em termos do montante do activo subjacente, pra-zos, e taxas aplicáveis).190 III. Os “forwards” podem agrupar-se em duas categorias principais: os contratos a prazo sobre taxas de juro e taxas de câmbio. Os contratos a prazo sobre taxas de juro (FRA ou “forward rate agreements”) são aqueles em que as partes acordam o pagamento recíproco

187- A terminologia é variada: assim, preferindo falar de contratos diferenciais directos e indirectos, ALMEIDA, C. Ferreira, Contratos Diferenciais, 90, in: AAVV, “Estudos Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa”, vol. II, 81-116, Almedina, Coimbra, 2008. Sobre esta distinção, vide ainda BLANCO, J. Cáchon, Derecho del Mercado de Valores, vol. II, 277, Dyckinson, Madrid, 1993; FERRERO, Emma, Contratto Differenziale, 483, in: VIII “Contratto e Impresa” (1992), 475-489; REINER, Günter, Derivative Finanzinstrumente im Recht, 104 e segs., Nomos, Baden-Baden, 2002.

188- Um exemplo de contrato diferencial oculto é fornecido por aqueles contratos a prazo em que uma das partes, com o desconhecimento da outra, tenciona proceder futuramente a uma liquidação por diferenças (MEDICUS, Dieter, Schuldrecht, Band II, 247, 10. Aufl., Beck, München, 2000).

189- Sobre a figura, vide QUELHAS, J. Santos, Sobre a Evolução Recente do Sistema Financeiro (Novos “Produtos Financeiros), 83 e segs., Separata do BCE, Coimbra, 1996. Noutros quadrantes, vide MAZZALOVO, Giuseppe/ FRANCO, Papa, Forward Rate Agreement, in: 20 “Amministrazione & Finanza” (1988), 1153-1159; GASTAMINZA, E. Valpuesta, Las Operaciones “Forward Rate Agreement” (FRA), in: AAVV, “Contratos Internacionales”, 1079-1102, Tecnos, Madrid, 1997; MERCIER, Paul, Le Forward Rate Agreement, in: “Revue Banque” (1990), 35-38; RUIZ, E. Díaz, Contratos sobre Tipos de Interés a Plazo (FRAs) y Futuros Financieros sobre Intereses, Civitas, Madrid, 1993.

190- Além destas diferenças fundamentais, os “forwards” distinguem-se ainda pela gama mais limitada de activos subjacentes (circunscritos essencialmente a taxas de juro e de câmbio), pelo risco de incumprimento da contraparte (mercê da inexistência de câmara de compensação), e pela ausência de liquidações diárias (mercê da inexistência de um sistema “mark-to-market”). Cf. RUIZ, E. Díaz, Contratos sobre Tipos de Interés a Plazo (FRAs) y Futuros Financieros sobre Intereses, Civitas, Madrid, 1993.

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dos juros relativos a um depósito a prazo hipo-tético, calculados por referência a taxas de juros contratualmente previstas e a liquidar financei-ramente em data futura191. Tais contratos assen-tam num depósito a prazo de cariz meramente fictício ou hipotético (“nominal capital amount”), com início e vencimento no futuro, e de prazo, montante e taxa predeterminados: uma das partes (designada “compradora”) com-promete-se a pagar os juros resultantes da apli-cação de uma taxa fixa previamente estabeleci-da, e a outra (designada “vendedora”) a pagar os juros correspondentes à aplicação de uma taxa variável, indexada a determinada taxa de referência também previamente acordada (v.g., “Euribor”, “Libor”, “Mid”, “Ribor”, etc.), realizando-se a liquidação mediante o mero desembolso do respectivo saldo líquido diferencial192. Os contratos a prazo sobre taxas de câmbio (FXA ou “forward exchange agree-ments”, também por vezes denominados “outright forward currency transactions”) são aqueles em que as partes acordam o pagamento recíproco de um determinado montante pecu-niário expresso em diferentes moedas ou

divisas, calculado por referência a uma taxa de câmbio contratualmente prevista e a liquidar financeiramente em data futura193. Tais contra-tos, que visam assim a negociação de divisas em data futura a câmbio predeterminado, podem ter por objecto quaisquer divisas conver-tíveis (habitualmente, dólares) e qualquer prazo (usualmente, não ultrapassando os cinco anos).194 IV. Além destas modalidades fundamentais, os “forwards” podem ainda revestir outras varian-tes especiais. Pense-se nos contratos a prazo contra prazo (FFA ou “forward-forward agree-ment”), em que as partes acordam emprestar reciprocamente determinadas somas pecuniá-rias, a taxas de juros e prazos distintos, cujo desembolso e reembolso ocorrerá em datas futuras predeterminadas195; nos contratos a pra-zo suspensíveis (BFA ou “break forwards agreements”), que incluem uma cláusula aces-sória atribuindo a uma das partes o direito de resolução do contrato durante a pendência deste logo que a taxa de referência (de juro ou câm-bio) desça abaixo de um determinado valor

191- Apesar de negociados ao balcão, os “forwards” são frequentemente celebrados com base em modelos negociais estandardizados, designadamente os chamados “Frabba Terms” elaborados pela “British Banker’s Association” (para o texto deste modelo, vide NASSETTI, F. Caputo, Profili Civilistici dei Contratti “Derivati” Finanziari, apêndice 8, Giuffrè, Milano, 1997).

192- Os FRA são assim derivados muito similares aos “interest rate futures” (com a diferença de não serem negociados em mercado organizado) e aos “interest rate swaps” (com a subtilíssima diferença de o cômputo dos juros ter como termo inicial a data do depósito nocional e não da celebração do contrato). Cf. GIRINO, Emilio, Forward Rate Agreement, in: 5 “Amministrazione & Finanza” (1993), 317-323.

193- Os FXA são também similares aos “swaps” de divisas, com a diferença de estes últimos implicarem, além do pagamento terminal, vários pagamentos periódicos e intermédios antes da data de vencimento. Sobre os contratos a prazo sobre taxas de câmbio em geral, vide FLECKNER, Andreas, Finanztermin-geschäfte in Devisen, in: 16 “Zeitschrift für Bankrecht und Bankwirtschaft” (2005), 96-111; VOSSHENRICH, Burkhard, Devisentermingeschäft: Kurssiche-rungsinstrument und Spekulationsvehikel, in: 27 “Die Bank – Zeitschrift für Bankpolitik und Bankpraxis” (1987), 447-452.

194- EILENBERGER, Guido, Währungsrisiken, Währungsmanagement und Devisenkurssicherung, 35, 2. Aufl., F. Knapp, Frankfurt am Main, 1986.

195- Os FFA têm inegáveis similitudes com a prática dos empréstimos paralelos (“parallel loans”) e dos empréstimos cruzados (“back-to-back loans”), opera-ções através das quais as partes, geralmente sediadas em países diferentes, acordam emprestar entre si quantias idênticas, em divisas diferentes, resultantes de empréstimos domésticos. Cf. MERUZZI, Giovanni, Back to Back Loans, in: XI “Contratto e Impresa” (1995), 841-864.

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(“break rate”) ou, alternativamente, de cumprir imediatamente a sua obrigação a esse valor196; nos contratos a prazo flexíveis (BRF, MRF ou “bonus/ malus range forwards”), que permitem a uma ou ambas as partes aceder a uma taxa de juro ou câmbio mais favorável do que a contra-tualmente fixada caso a taxa de mercado se venha a situar, ou não, num dado intervalo; ou ainda nos contratos a prazo com liquidação financeira (NDF ou “non deliverable forwards”), que se contradistinguem por serem contratos “forwards” que não admitem a entre-ga física do activo subjacente, sendo exclusiva-mente liquidáveis mediante o pagamento do seu saldo pecuniário diferencial (v.g., assim sucede necessariamente com os FRA).197 XI. “CAPS”, “FLOORS”, “COLLARS” I. Os “caps”, “floors” e “collars” são contra-tos a prazo sobre taxas de juro que conferem a uma das partes o direito e/ou obrigação de rece-ber e/ou efectuar o pagamento do diferencial entre a taxa de referência e um determinado limite percentual máximo e/ou mínimo previa-mente fixado, contra o pagamento e/ou recebi-mento de um prémio.198

II. Os “caps”, “floors” e “collars” são instru-mentos financeiros derivados inominados, enquadráveis genericamente na figura dos “contratos a prazo” sobre taxas de juro (art. 2.º, nº 1, e), i) do CVM). Usualmente, trata-se de derivados associados a empréstimos e “swaps”, utilizados na limitação dos riscos decorrentes da variação das taxas de juro.199 Em termos gerais, um “cap” designa o contrato pelo qual uma das partes (“vendedora”), mediante o pagamento de um prémio e por determinado período, se compromete perante a outra parte (“compradora”) a cobrir ou suportar o eventual diferencial existente entre a taxa de juros variável aplicável ao empréstimo contraí-do por esta e uma taxa limite garantida que tenha sido ultrapassada no mercado (“cap” ou tecto): desta forma, os “caps” constituem deri-vados que asseguram aos mutuários uma taxa máxima de endividamento, externalizando por via contratual o risco de eventuais subidas da taxa de juro para além de determinada fasquia. O “floor” designa o contrato pelo qual uma das partes (“vendedora”), mediante contrapartida pecuniária (prémio), se compromete perante a outra parte (“compradora”) a pagar a esta

196- Sobre a figura, também conhecida como “cancellable forward” ou “forward with optional exit”, vide GIRINO, Emilio, Break Forward Contract, in: 1 “Amministrazione & Finanza” (1994), 53-55. Tal como os demais derivados, também os “forwards” podem combinar-se com outras espécies de derivados: é o caso dos “contingent forwards” (CF), que integram uma opção de celebração para uma das partes, ou das “interest rate guarantees” (IRG), que constituem basicamente opções sobre FRA.

197- Os NDF são assim uma modalidade de contrato diferencial (cf. supra XI). Neste sentido também, embora com incidências autóctones especiais, vide BOSCH, Ulrich, Finanztermingeschäfte in der Insolvenz, 370, in: 49 “Wertpapier-Mitteilungen – Zeitschrift für Wirtschafts- und Bankrecht” (1995), 365-375 e 413-428.

198- Sobre as figuras, vide ABGAYISSAH, Sena/ LEPAGE, M.-A., Les “Caps”, “Floors” et “Collars” à l’Épreuve d’une Qualification en Opération d’Assur-ance, in: 58 “Revue de Droit Bancaire et Financier” (1996), 224-239; KLEIN, Linda, Interest Rate Caps, Floors, and Collars, in: “Journal of Bank Taxa-tion” (1988), 57-63; CHIOMENTI, Filippo, I Contratti Cap, Floor e Collar: Contratti di Somministrazione di Denaro, in: LXXXVII “Rivista del Diritto Com-merciale e del Diritto Generale delle Obbligazioni” (1987), 37-58; GÓMEZ-JORDANA, Iñigo, Contratos Mercantiles Atípicos. Floors, Caps, Collars, in: XLV “Revista de Derecho Bancario y Bursátil” (1992), 187-240; PREITE, Disiano, Recenti Sviluppi in Tema di Contratti Differenziali Semplici (in Particolare Caps, Floors, Swaps, Index Futures), in: VI “Diritto del Commercio Internazionale” (1992), 171-194; WINTER, Oliver, Der wirtschaftliche und rechtliche Charakter von Zinsbegrenzungsverträgen, in: 49 “Wertpapier-Mitteilungen – Zeitschrift für Wirtschafts- und Bankrecht” (1995), 1169-1176

199- Financeiramente, os “caps” e “floors” estruturam-se como uma série de opções de estilo europeu, com liquidação financeira e exercício automático peran-te a taxa referencial (FLACH, Uwe/ SOMMER, Daniel, Caps, 5, AAVV, “Handbuch Corporate Finance”, Deutscher Wirtschaftsdienst, Köln, 1997). Juridica-mente, a sua natureza é discutida, havendo quem os qualifique como opções, como seguros, e como contratos atípicos (CLOUTH, Peter, Rechtsfragen der ausserbörslichen Finanz-Derivate, 52, Beck, München, 2001; CORTI, C. Lorenzo, Esperienze in Tema di Opzioni, 131, in: AAVV, “I Derivati Finanziari”, 125-132, Edibank, Milano, 1993; HUDSON, Alastair, The Law on Financial Derivatives, 66, 3rd edition, Sweet & Maxwell, London, 2002).

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última o eventual diferencial entre a taxa de juros variável aplicável a montante de capital de que seja credora e uma taxa de mercado que haja descido abaixo de determinado patamar mínimo garantido (“floor” ou base): contratos em tudo semelhantes aos “caps”, os “floors” asseguram aos mutuantes ou investidores um rendimento mínimo de capital, garantindo-os contra eventuais descidas de juros abaixo de certo nível durante o período de vigência con-tratual. Finalmente, o “collar” (também deno-minado “tunnel”) designa o contrato pelo qual uma das partes vende à outra um “cap” (comprometendo-se a pagar o eventual diferencial pecuniário existente entre os juros calculados à taxa variável e à taxa de mercado superior ao limite máximo fixado) e esta vende àquela um “floor” (comprometendo-se a pagar- -lhe o eventual diferencial entre os juros calcu-lados à taxa variável e à taxa de mercado infe-rior ao limite mínimo fixado), ou vice-versa – também conhecidos, respectivamente, como “passive collar” e “active collar”: os “collars” são, por conseguinte, contratos que resultam da combinação ou cruzamento de um “cap” e um “floor”, relativamente aos quais, por conseguin-te, não se pode falar propriamente de partes “compradora” e “vendedora”.200

III. Ao lado destas modalidades principais, existem ainda outras variantes especiais resul-tantes da respectiva miscigenação ou complexi-ficação. Tal é o caso dos chamados “corridors”, produto financeiro que se contra-distingue pelo facto de o montante pago pelo vendedor de um “cap” ou “floor” ser, ele

próprio, limitado a um determinado valor máxi-mo: por exemplo, uma empresa A, titular de um empréstimo a taxa variável Euribor (à data da sua realização, situada nos 5%), compra ao ban-co B um “cap” de 10% mas com o limite máxi-mo de 13%, de tal forma que, em caso de subi-da da taxa de juros, o vendedor apenas desem-bolsará pagamentos no “corredor” entre 10% e 13% ainda quando a taxa Euribor ultrapasse este valor (v.g., se a taxa atingir 15%, A apenas receberá o diferencial correspondente à aplica-ção de uma taxa de 13%). Tal é o caso ainda dos “participating rate agreements” (PRA), cuja particularidade reside no facto de o prémio pago pelo comprador, no lugar de fixo e deter-minado no momento da celebração contratual, consistir num montante variável aferido por um determinado percentual aplicado aos diferen-ciais entre um “cap” ou “floor” e as taxas em vigor (“rate participation”). XII. OUTROS. DERIVADOS ATÍPICOS, HÍBRIDOS E SINTÉTICOS I. Como já se sublinhou, os derivados consti-tuem uma categoria dos instrumentos financei-ros caracterizada por uma profusão aberta de espécies e subespécies, que jamais é possível elencar exaustivamente: isto mesmo foi reco-nhecido pelo legislador português que, após enumerar genericamente no art. 2.º, nº 1, c) a f) do CVM as diversas espécies de derivados atrás analisadas (futuros, opções, “swaps”, derivados de crédito, contratos diferenciais, etc.), mencio-na ainda expressamente várias outras categorias relativas a activos subjacentes específicos

200- Suponha-se um empresário A que contraiu um empréstimo de 10 milhões de euros a cinco anos, a taxa de juros variável (Euribor a 6 meses), sendo de 5% o valor da taxa em vigor no momento da celebração do empréstimo. Caso o referido empresário pretenda proteger-se contra os riscos da subida da taxa de juro (admita-se que a máxima taxa de endividamento suportável pela sua empresa é de 10%) mas esteja convicto que essa taxa jamais descerá abaixo de um deter-minado nível (por exemplo, 7%), poderá conseguir mitigar o custo total da sua operação de cobertura de risco comprando um “cap” a 10% e simultaneamente vendendo um “floor” a 7% contra a Euribor a 6 meses: dessa forma, ao mesmo tempo que contratualiza uma garantia de nível máximo de endividamento, poderá diminuir o custo da garantia mediante o encaixe de um prémio.

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(v.g., derivados sobre mercadorias, variáveis climáticas, tarifas de fretes, licenças de emis-são, etc.: cf. art. 2.º, nº 1, e), i) a iii) do CVM), e consagra ainda – qual válvula de escape de um sistema legal que vive debaixo da constante pressão da incessante inovação financeira – uma categoria residual e aberta que abrange genericamente “quaisquer outros contratos deri-vados” (art. 2.º, nº 1, f) do CVM). II. Os derivados sobre mercadorias (“commodity derivatives”) constituem um ins-trumento financeiro derivado frequente, expres-samente consagrado na lei portuguesa (art. 2.º, nº 1, e), ii) e iii) do CVM), cuja negociação pro-fissional, de resto, confere às entidades nego-ciadoras a natureza de investidor qualificado (art. 30.º, nº 1, h) do CVM) e carece de autori-zação nos termos a fixar em portaria conjunta do Ministro das Finanças e do Ministro respon-sável pela área do respectivo sector, sob parecer prévio da CMVM e do Banco de Portugal (art. 207.º, nº 3 do CVM).201 A sua enorme difusão actual explica-se, outros-sim que pela sua função de cobertura do risco de variação do preço dos bens e matérias- -primas, pela circunstância de as “commodities” se terem vindo a impor como um mercado de investimento alternativo aos

mercados tradicionais (mercado accionista, obrigacionista, imobiliário, etc.): as mercado-rias que podem servir de activo subjacente ou parâmetro de derivação são virtualmente ilimi-tadas, indo desde produtos agrícolas (as chama-das “soft commodities”: v.g., café, cacau, açú-car, algodão, soja, milho) até recursos naturais (“hard commodities”: v.g., ouro, prata, aço, pla-tina, chumbo, zinco, papel) ou fontes energéti-cas (v.g., electricidade, gás natural, carvão)202. Por outro lado, este tipo de derivado pode ser negocialmente construído através de uma plura-lidade de modalidades operacionais, incluindo “forwards” sobre mercadorias ou índices de mercadorias, “swaps” de mercadorias, “caps” ou “floors” sobre mercadorias, etc. Assinale-se ainda, por último, que a maior parte dos deriva-dos merceológicos estão sujeitos a uma mera liquidação financeira (“cash settlement”), embora existam também alguns que prevêem liquidação física (“physical settlement”), ou seja, a obrigação de entrega do activo subjacen-te (mormente, no caso do ouro, prata, platina e outros metais preciosos): retenha-se, todavia, que, por força do art. 2.º, nº 1, e), iii) do CVM, este último tipo de derivados apenas é admissí-vel caso sejam negociados em mercado organi-zado ou, não possuindo finalidade comercial, preencham os requisitos do art. 38.º do Regula-mento CE/1287/2006, de 10 de Agosto.203

201- Sobre este tipo de derivados, vide LAMANDINI, Marco/ MOTTI, Cinzia, Scambi su Merci e Derivati su Commodities, Giuffrè, Milano, 2006; PUDERBACH, Frank/ ZENKE, Ines, Der Handel mit Warenderivaten in Europa und Deutschland, in: 3 “Zeitschrift für Bank- und Kapitalmarktrecht” (2003), 360-366; SCHOFIELD, Neil, Commodity Derivatives: Markets and Applications, J. Wiley & Sons, New York, 2008.

202- Por mercadoria entende-se “quaisquer bens de natureza fungível susceptíveis de ser entregues, incluindo metais e seus minérios e ligas, produtos agrícolas e produtos energéticos, tais como a electricidade” (art. 2.º, ponto 2 do Regulamento CE/1287/2006, de 10 de Agosto) (cf. GEMAN, Héylette, Commodities and Commodity Derivatives: Modelling and Pricing for Agriculturals, Metals, and Energy, J. Wiley & Sons, Chichester, 2005). Relevância particular, especialmen-te após a liberalização dos mercados, possuem hoje os derivados sobre fontes energéticas (“maxime”, electricidade e gás), que colocam complexos problemas de supervisão: cf. FUSARO, Peter/ WILCOX, Jeremy, Energy Derivatives: Trading Emerging Markets, Energy Publishing Enterprises, New York, 2000; GRANZOW, Sonja, Die Aufsicht über den Handel mit Energiederivaten nach dem Gesetz über das Kreditwesen, Peter Lang, Frankfurt am Main, 2007.

203- Importante e complexa é assim a linha de fronteira entre os contratos financeiros derivados sobre mercadorias, regidos pelo CVM, e os contratos comer-ciais a prazo sobre mercadorias, subordinados às disposições comuns do Código Comercial. Sobre a questão, noutros quadrantes, vide BAUDOUIN, Vincent, Loi de Securitè Financiére: Enfin une Claire Distinction entre Contrats Financiers à Terme et Contrats Commerciaux à Terme sur Marchandises, in: 100 “Petites Affiches” (2004), 5-12.

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III. Os derivados sobre variáveis climáticas (“weather derivatives”) constituem outro instru-mento financeiro derivado expressamente con-sagrado na lei portuguesa (art. 2.º, nº 1, e), ii) do CVM).204 As condições meteorológicas, sobretudo no advento do recente fenómeno das alterações climatéricas, tornaram-se a pouco e pouco num dos factores de risco e incerteza mais relevantes da actividade das empresas modernas: estima-se que três quartos das actividades comerciais e industriais sejam hoje directa ou indirectamente afectadas de modo significativo por este tipo de risco (v.g., agricultura, turismo, produção de energia eléctrica, transportes, construção, etc.)205. Justamente para fazer face à necessida-de da sua cobertura, surgiu em finais da década de 90 um novo tipo de derivado assente em contratos que tomam as variáveis climáticas por activo subjacente: entre os mais divulgados, estão aqueles que tomam como unidades de derivação a temperatura (“degree days”) e os índices meteorológicos (“weather index”), podendo assumir uma enorme variedade de modalidades operacionais (v.g., “weather index call options”, “weather index swaps”, “weather caps”). IV. Os derivados sobre tarifas de fretes (“freight derivatives”) são também um instru-mento financeiro derivado nominado (art. 2.º, nº 1, e), ii) do CVM).206

O transporte constitui hoje uma actividade empresarial de primeira grandeza, constituindo um dos mais relevantes custos no âmbito do comércio internacional: ora, esse custo – comummente conhecido como “frete” ou preço do transporte (“freight”, “Fracht”, “prix”, “prezzo”) – está sujeito a um conjunto de facto-res significativamente voláteis, tais como as oscilações do preço do combustível, as vicissitudes geopolíticas, e os fluxos de trocas comerciais207. Os derivados tarifários são justa-mente um instrumento financeiro de cobertura ou especulação assente em contratos que tomam por referente tarifas transportadoras: entre as suas particularidades, refira-se que tais tarifas são geralmente indexadas à “Worldscale Tanker Nominal Freight”, tarifa de natureza nominal que serve de referencial principal no sector transportador (12 mil dólares por dia), tomando os contratos por base percentual a mesma tarifa (assim, por exemplo, “Worldscale 130” significará um frete cujo valor é igual a 130 por cento daquela tarifa). V. Outros derivados nominados, igualmente previstos na lei portuguesa, poderiam aqui ser referidos: é o caso dos derivados sobre indica-dores económicos e financeiros (“economic derivatives”), geração recente de derivados (cujas primeiras operações foram lançadas pela “Goldmann Sachs” e pelo “Deutsche Bank” em 2005) que tomam por parâmetro taxas de infla-ção, de desemprego, de crescimento, de produto

204- Sobre este tipo de derivados, vide JEWSON, Stephen/ BRIX, Anders/ ZIEHMANN, Christine, Weather Derivative Valuation, CUP, Cambridge, 2005; OSSOLA, Giovanni, Derivati Meteorologici (Weather Derivatives), Giuffrè, Milano, 2003; HEE, Christian/ HOFMANN, Lutz, Wetterderivate Grundlagen, Exposure, Anwendung und Bewertung, Gabler, Wien, 2006. Sublinhe-se que os derivados climatéricos não são admitidos em todos os países: assim, por exemplo, na Alemanha (SAMTLEBEN, Jürgen, Das Börsentermingeschäft ist tot – es lebe das Finanztermingeschäft?, 71, in: 15 “Zeitschrift für Bankrecht und Bankwirtschaft” (2003), 69-77).

205- DISCHEL, Robert, Climate Risk and Weather Market, Risk Books, London, 2002; STOWELL, Debbie, Climate Trading, Palgrave MacMillan, New York, 2003.

206- Sobre este tipo de derivados, vide KAVUSSANOS, Manolis/ VISVIKIS, Ilias, Derivatives and Risk Management in Shipping, Whiterbys, London, 2006.

207- Sobre o contrato de transporte, em geral, e a obrigação de pagamento do frete, em particular, vide BASEDOW, Jürgen, Transportrecht, Band 7a, 44 e segs., Beck, München, 2000; MERCADAL, Barthélémy, Droit des Transports Terrestres et Aériens, 116 e segs., Dalloz, Paris, 1996.

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nacional interno, e outras (v.g., “U.S. gross domestic product”, “Eurozone HICP inflation index”, etc.) (art. 2.º, nº 1, e) do CVM)208; é o caso dos derivados sobre licenças de emissão (“emission allowance transaction derivatives”), que têm a sua origem remota no regime de comércio de licenças de emissão de gases com efeito de estufa (Directiva 2003/87/CE, de 13 de Outubro), o qual fez despontar um mercado de transferências de quotas ou licenças de emis-são (art. 2.º, nº 1, e) do CVM)209; e é ainda o caso de múltiplos outros derivados que assen-tam em activos subjacentes tão diversos quanto a largura de banda de telecomunicações, a capa-cidade de armazenamento, transmissão ou transporte de mercadorias, os direitos ou activos análogos directamente relacionados com o for-necimento, distribuição ou consumo de energias renováveis, as variáveis físicas (tais como variáveis geológicas e ambientais), os direitos ou activos fungíveis (que não um direito a rece-ber um serviço susceptível de ser transferido), ou os índices ou medidas relativos ao preço, valor, ou volume de transacções (art. 39.º do Regulamento CE/1287/2006, de 10 de Agosto, “ex vi” do art. 2.º, nº 1, f) do CVM).

VI. Finalmente, não se pode excluir a existência de derivados atípicos, híbridos, e sintéticos. Nos termos do art. 2.º, nº 1, f) do CVM, são ainda considerados derivados para efeitos da regulação jusfinanceira “quaisquer outros con-tratos derivados (...) que tenham características análogas às dos outros instrumentos financeiros derivados nos termos do artigo 38.º (do Regula-mento CE/1287/2006, de 10 de Agosto)”: um exemplo de um derivado atípico e inominado poderá ser encontrado hoje, “ex multi”, nos derivados imobiliários (“real estate derivati-ves”), como é o caso dos “total return swaps” sobre índices imobiliários que foram lançados nos finais de 2006 pela “Chicago Mercantile Exchange”210. Além disso, há ainda que ter em atenção a existência de derivados híbridos, fru-to da combinação operacional de várias espé-cies singulares de derivados numa nova espécie mista dotada de identidade própria: assim, por exemplo, é impossível afirmar com segurança se uma “swaption” deve ser classificada como um “swap” ou uma opção, parecendo antes con-figurar uma nova espécie ou variante dotada de (algum grau de) autonomia211. Por fim, fala-se ainda por vezes em derivados sintéticos para

208- De entre estes, destacam-se os derivados sobre taxas de inflação (“inflation derivatives”), que foram objecto de consagração legal autónoma (cf. art. 2.º, nº 1, e), ii) do CVM) e podem ser definidos como “produtos financeiros utilizados por entidades tais como Estados, instituições financeiras e empresas, a fim de gerir os riscos associados a taxas de inflação variáveis” (DEACON, Mark/ DERRY, Andrew/ MIRFENDERESKI, Daniush, Inflation-Indexed Securities – Bonds, Swaps and Other Derivatives, 235, J. Wiley & Sons, West Sussex, 2004; ICKSTADT, Dieter/ KARG, Stefan, Inflationsderivate: Aus Inflation wird Investition, in: 9 “Die Bank – Zeitschrift für Bankpolitik und Bankpraxis” (2007), 20-22).

209- BARSI, Guy, Les “Permis d’Émission Négociables” – De Nouveaux Produits Financiers?, in: “Actes Pratiques et Ingénierie Sociétaire” (2003), 3-9; HIMMER, Richard, Energiezertifikate in den Mitgliedstaaten der Europäischen Union, 109 e segs., Nomos, Baden-Baden, 2005; PHILP, Larry, Los Mercados Emergentes de Carbono: Instrumentos Financieros para Mitigar el Cambio Climático, in: 98 “Análisis Financiero” (2005), 22-27.

210- É verdade que a propriedade imobiliária não constitui um dos activos expressamente referidos no art. 2.º, nº 1 do CVM – o que, atendendo à já menciona-da natureza fechada ou taxativa do elenco legal dos activos subjacentes, constituiria aparentemente um óbice à sua admissibilidade entre nós (cf. supra II, 3). Todavia, além de o objecto deste tipo de derivados sempre poder indirectamente reconduzir-se ao conceito de “mercadoria” ou de “índices financei-ros” (mormente, no caso dos índices imobiliários), eles também se afiguram ser susceptíveis de preencher, ao menos em abstracto, as condições previstas no citado art. 38.º do Regulamento CE/1287/2006, de 10 de Agosto, mormente a sua negociação em mercado organizado. Sobre este tipo de derivado, vide CLAYTON, Jim, Commercial Real Estate Derivatives: The Developing U.S. Market, in: 32 “Real Estate Issues” (2007), 32-38; SEDGWICK, Claire/ CLAYTON-STEAD, Matthew, Property Derivatives: The Last Frontier, in: 23 “Butterworths Journal of International Banking” (2008), 42-42; para uma figura não inteiramente idêntica (“commercial property derivatives”), vide EDWARDS, Stuart, Legal Development of Property Derivatives, in: 5 “Journal of Business Law” (2008), 448-459.

211- Sobre a “swaption”, vide supra VII.

OS DERIVADOS: 135

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designar o caso particular daqueles instrumen-tos financeiros que, embora construídos na base de técnicas de derivação, são objecto de uma emissão e dotados de forma representativa pró-pria, mormente valores mobiliários: assim

sucede, por exemplo, com as “credit-linked notes” (CLN), as “indexed amortizing notes” (IAN), as “synthetic convertible notes” (SCN), ou as “interest differential notes” (IDN).212

212- Sobre os derivados sintéticos, também conhecidos por designações diversas tais como “structured notes”, “embedded derivatives” ou “compound derivati-ves” – diversidade terminológica essa que, aliás, logo dá bem nota da disparidade de entendimentos quanto à sua qualificação e enquadramento tipológicos –, vide DAS, Satyajit, Structured Notes and Derivative Embedded Securities, Euromoney, London, 1996; FUNK, Thomas, Hybride Finanzinstrumente im US-Steuerrecht, in: 44 “Recht der internationalen Wirtschaft” (1998), 138-145; KLEIN, Robert/ LEDERMAN, Jess, The Handbook of Derivatives & Synthetics, espec. 179 e segs., Probus Pub., Chicago/ Cambridge, 1994.

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1. INTRODUÇÃO Poder-se-á julgar prematura a dissertação sobre uma matéria que não se encontra, neste momen-to, ainda consolidada, dado estarmos perante um tema que se encontra ainda em fase de con-sulta pelo Comité Europeu de Reguladores de Valores Mobiliários (CESR), sendo certo, porém, que tem por base mandato da Comissão Europeia (CE). Com efeito, na sua Proposta de revisão da Directiva UCITS (UCITS IV), apresentada recentemente em Julho de 2008, a CE optou por não incluir, para já, quaisquer medidas de nível 1 sobre o designado passaporte europeu para as sociedades gestoras de UCITS, remetendo para posterior análise do advice do CESR a elabora-ção de um possível quadro normativo sobre a matéria. Recorde-se, porém, que desde há muito1 se vem aventando a possibilidade de se progredir para uma solução de passaporte europeu para as sociedades gestoras de UCITS que contenha uma solução de ‘plena circulação’ das gestoras, pelas diversas jurisdições europeias, em que estas possam prestar a totalidade dos serviços a que estão autorizadas no seu Estado Membro de

Origem, quer através de livre prestação de ser-viços quer mediante o estabelecimento de uma sucursal. Esses serviços são, conforme resultam da actual redacção da Directiva 85/611/CE (também designada por UCITS III após as alterações sofridas em 2001): • A Gestão de UCITS autorizados nos termos

da supra mencionada Directiva, quer sob a forma contratual ou societária, o que não impede porém a gestão de outros organismos de investimento colectivo ditos ‘não harmo-nizados’, não beneficiando estes porém de passaporte europeu.

• Com base em mandatos conferidos pelos investidores, gestão discricionária e indivi-dualizada de carteiras de investimento, incluindo as respeitantes a fundos de pen-sões, sempre que as carteiras destes incluam pelo menos um dos instrumentos financeiros a coberto da Directiva de Mercados e Instru-mentos Financeiros (DMIF).

• Enquanto serviços acessórios • Consultoria em matéria de

investimentos relativamente a um ou mais instrumentos previstos na DMIF;

ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS PARA A INDÚSTRIA E SUPERVISÃO PORTUGUESAS DO NOVO PASSAPORTE EUROPEU DAS SOCIEDADES GESTORAS DE ORGANISMOS DE INVESTIMENTO COLECTIVOS EM VALORES MOBILIÁRIOS (UCITS)* FERNANDO SILVA**

* - As opiniões expressas no presente artigo vinculam apenas o autor, não podendo, como tal, ser tidas como a posição oficial da CMVM sobre a matéria. **- Gabinete de Estudos. 1- Vide Livro Branco sobre o enquadramento dos fundos de investimento na Europa publicado pela CE em 2006, em www.ec.europa.eu.

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• Guarda e administração de participa-ções em organismos de investimento colectivo.

Este leque de serviços tinha o intuito de elevar as sociedades gestoras de UCITS a verdadeiras sociedades gestoras de activos em sentido amplo, como também fazia antever a existência de um passaporte europeu tendente a concreti-zar um objectivo de uma cada vez maior e pro-gressiva integração do mercado europeu neste domínio, dada a disposição do art.º 6.º da Direc-tiva que estatuía que os Estados membros deve-riam assegurar às sociedades gestoras, autoriza-das nos termos da mesma pelas autoridades competentes de outro Estado-Membro, a possi-bilidade de exercício das actividades abrangidas pela autorização, quer mediante o estabeleci-mento de uma sucursal, quer através da livre prestação de serviços.

A realidade veio porém comprovar que esse Passaporte foi um verdadeiro ‘tiro na água’ numa matéria tida como fulcral, pois não per-mitia de facto a concretização de um desiderato almejado por alguns estados Membros: a gestão de UCITS domiciliados num dado Estado Membro, por uma sociedade gestora provenien-te de outro Estado membro.

As razões para esta impossibilidade foram de duas ordens, ambas tendo como fonte de problema a CE: • As alegadas dificuldades de coordenação de

supervisão que tal situação levantaria, dada a cisão entre domicilio de origem do produto e do operador;

• O facto de se ter descurado a revisão/eliminação, no âmbito do processo UCITS III, de uma norma que impedia a concretiza-ção legal de tal extensão do passaporte, a saber, o disposto no art.º 3 que dispõe que um UCITS é considerado como estando situado no Estado-Membro em que se encontre a sede estatutária da Sociedade gestora.

Em tese, pode-se porém argumentar ser irracio-nal, do ponto de vista económico (e.g. duplica-ção de custos administrativos, menor dimensão média dos fundos, etc), a constituição de fundos em diversas jurisdições, por exemplo por uma mesma sociedade gestora, só se justificando, aparentemente, pela falta de efectiva harmoni-zação dos UCITS no contexto europeu, deriva-da de interpretações de transposição heterogé-neas pelos diversos Estados-membros. Esta situação potenciaria assim situações de arbitragem na escolha dos ambientes regulató-rios mais permissivos. Mas, como se tentará demonstrar, são várias outras as razões que pro-piciam a retirada de vantagens pela existência deste tipo de passaporte.

2. OS CONTORNOS DO NOVO MODELO DE PASSAPORTE PROPOSTO PELO CESR Tendo sido mandatado pela CE, no âmbito da proposta de revisão da Directiva UCITS, o CESR apresentou em Setembro de 2008 o seu draft advice designado “Consultation paper on UCITS Management Company Passport”. Atentemos pois ao conjunto de soluções propostas pelo CESR2 para agilizar o funciona-mento do passaporte na sua plenitude.

2 - O documento em si mesmo não é consensual pois não traduz a visão de todos os membros do CESR em cada aspecto específico do seu conteúdo. Vide www.cesr.eu, Consultation paper de 15 de Outubro de 2008.

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2.1 Definição do Domicilio A primeira preocupação contida no documento passa pela definição do conceito de domicílio da sociedade gestora e do UCITS e das respectivas entidades competentes para a sua autorização. As soluções consagradas a este propósito pare-cem simples e intuitivas: a sociedade gestora deverá ter como domicilio o Estado-Membro onde se situa a sua sede ou escritório principal e o UCITS deve ser considerado como localizado no Estado-membro onde a sociedade gestora solicitou a sua constituição e onde deverá tam-bém estar localizado o depositário, sendo este requisito um imperativo para se manter um ele-mento de conectividade entre o UCITS e os seus participantes. Resulta daqui pois que os requisitos de autori-zação previstos na Directiva serão da compe-tência da autoridade do Estado de origem da sociedade gestora no que a esta se refere, sendo os do UCITS competência da autoridade do país que acolhe o pedido da autorização de uma dada sociedade gestora estrangeira, de acordo com os procedimentos e regulamentação daque-le. De forma a se assegurar alguma (mínima) liga-ção entre a sociedade gestora e o seu país de origem propõe-se que aquela seja no mínimo compelida a gerir um UCITS localizado no seu Estado de proveniência, sendo que essa autori-zação, existindo, torna válida por todo o espaço da União Europeia a possibilidade de constituir UCITS em quaisquer outras jurisdições. Introduz-se, com prudência, a impossibilidade

de uma sucursal de uma sociedade gestora do país x, situada no país z, constituir fundos num outro país, por exemplo w, para se evitar assim um desnecessário e complexo estilhaçar das competências de supervisão por diversos regu-ladores. Por último, e no que se refere ao UCITS pro-priamente dito e respectivos participantes, é requerida a existência de um ponto de contacto local que estabeleça a ponte entre a gestão e o produto, ponto esse que poderá ser centralizado no depositário. Este requisito tem por objecti-vos permitir a recepção de reclamações dos investidores, a realização de operações de subs-crição e resgate, e bem assim a de divulgar toda a informação disponível sobre o UCITS quer a pedido do público quer da autoridade compe-tente do UCITS. Este elemento de conectivida-de assume, em nossa opinião, um papel decisi-vo na ligação entre os investidores e o produto financeiro em causa, como por exemplo, em situações em que seja necessária a aqueles apre-sentarem reclamações relativas ao investimento que efectuaram. Refira-se, no entanto, que esta obrigação de existência de um ponto de contacto não se apli-ca perante a presença de uma sucursal da socie-dade gestora, a qual assegurará então a repre-sentação desta. 2.2 Lei Aplicável e Alocação de Responsabilidades de Supervisão

Introduzindo-se assim pois a já mencionada cisão entre domicílio do operador e do produto, a qual suscita dúvidas no tocante à repartição das responsabilidades de supervisão, o docu-mento aborda com profundidade esta matéria procurando dar resposta à mesma.

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Primeiramente começa por definir qual a lei aplicável em matérias relacionadas com a acti-vidade dos UCITS, tornando bem claro que em temas relacionados com os UCITS como sejam: • O processo de constituição; • Aprovação de regulamentos de gestão; • Exercício de direitos de voto pelos

participantes; • Políticas de investimento e limites; • Cálculo de exposição total e alavancagem; • Restrições sobre empréstimos e vendas a

descoberto; • Valorização de activos e contabilidade; • Emissão e resgate de unidades de

participação; • Cálculo do valor da unidade de participação; • Distribuição ou reinvestimento de

rendimentos; • Divulgação de informação; • Comercialização de unidades de

participação; • Fusões e reestruturações; • Liquidação,

se aplica a lei do estado de origem do UCITS, quer este seja constituído mediante livre presta-ção de serviços ou mediante sucursal de gestora estrangeira, sendo pois matéria da competência de supervisão da entidade que regula o UCITS. Concorda-se inteiramente com a solução adop-tada por ser a mais coerente em termos de equi-dade e harmonização do funcionamento dos UCITS independentemente de quem os gere. Relativamente às sociedades gestoras que giram esses UCITS, aponta-se para que sejam obser-vadas as regras do país de origem das mesmas no tocante a: • Requisitos de organização; • Gestão de risco; • Conflitos de interesses; • Normas de conduta,

devendo a entidade competente pelo UCITS considerar como suficiente o cumprimento desses requisitos junto do país de origem da gestora. Levantam-se aqui, porém, algumas questões que têm a ver com o possível ‘desconforto’ do regulador que acolhe o UCITS, dado que muitas destas matérias ou não são harmonizadas ou são alvo de harmonização mínima, podendo introduzir assim pois alguma distorção (negativa, mas também positiva) na concorrência com as entidades gestoras ‘locais’ face às estrangeiras Pretende-se com este quadro assegurar um prin-cípio base: o de que as regras que regem a cons-tituição e funcionamento de um UCITS sejam idênticas independentemente do mesmo ser gerido por uma sociedade gestora local ou estrangeira. Por último, no domínio da partilha de responsa-bilidades de supervisão, e de forma a assegurar uma adequada supervisão do UCITS, da gestora e do depositário é sugerido que às diversas enti-dades reguladoras envolvidas seja atribuído o poder de celebrarem acordos de cooperação (bilaterais ou multilaterais) que no limite pos-sam envolver a delegação de funções de super-visão. Não é afastada, e bem, também a criação de estruturas tipo de colégios de reguladores para o exercício conjunto das funções de super-visão, seguindo-se assim um modelo já posto em prática noutras áreas dos mercados financei-ros (e.g vide colégio de reguladores do NYSE Euronext).

2.3 Supervisão Contínua da Gestão do UCITS

È estabelecida a possibilidade da entidade com-petente pela supervisão do UCITS solicitar directamente informação à entidade gestora localizada noutro domicílio, bem como receber

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relatórios periódicos sobre a actividade de ges-tão, que sejam necessários para o cumprimento das suas funções, designadamente as elencadas no ponto anterior. Sem prejuízo deste facto, a entidade de supervisão competente da socieda-de gestora deve ter acesso a essa informação, sugerindo-se a criação de bases de dados onde esses elementos possam ser partilhados, evitan-do-se duplicações e custos desnecessários para a sociedade gestora. Esta medida revela-se ade-quada de um ponto de vista de desburocratiza-ção do funcionamento do passaporte, podendo o CESR desempenhar um papel importante nesta matéria, tal como no sistema do transaction report Mechanism (TREM) no âmbito da DMIF. De forma inovadora, as propostas apontam tam-bém para a possibilidade de serem realizadas acções de supervisão presenciais à sociedade gestora, pela entidade de supervisão responsá-vel pelo UCITS, deixando-se em aberto a possi-bilidade de essas acções serem lideradas por um ou outro regulador, consoante a discricionarie-dade da entidade competente pela supervisão da sociedade gestora. Critica-se aqui esta opção, uma vez que se entende que deveria ser atribuí-da a responsabilidade de liderar as acções de supervisão ao Estado-membro responsável pela autorização do UCITS dado que, na prática, todo o funcionamento do fundo segue as regras impostas por aquele Estado. Isto assumindo, que essas acções de supervisão se limitam a verificar o cumprimento dessas regras e que não abordam matéria da competência do Estado de origem da entidade gestora, como por exemplo questões de natureza prudencial.

Simetricamente, e quando tal se revele impera-tivo, poderá a entidade competente pela super-visão da sociedade gestora efectuar acções de supervisão presencial ao depositário (recorde-se, necessariamente localizado na jurisdição do UCITS), aplicando-se a mesma lógica de proce-dimento referida no parágrafo anterior. Definem-se casos de excepção neste cenário de cooperação, designadamente quando a mesma coloque em causa a soberania ou a segurança do Estado visado, bem como quando já existam procedimentos judiciais em curso contra deter-minadas pessoas no estado a que é requisitada cooperação. Teme-se que estas restrições pos-sam funcionar, na realidade, como obstáculos à operacionalização da cooperação entre jurisdi-ções, assumindo muitas vezes a natureza de regra e não de excepção, como pretendido. Adicionalmente, estabelece-se o dever de as entidades competentes do UCITS e da socieda-de gestora se informarem mutuamente sempre que existam informações materiais adversas que possam colocar em causa a capacidade de ges-tão do fundo no melhor interesse dos partici-pantes. Por último, no domínio dos auditores dos fun-dos e da sociedade gestora estabelece-se o dever destes serem independentes e de celebra-rem acordos de troca de informação sempre que o Auditor do UCITS não seja o mesmo da sociedade gestora, impondo-se ainda um dever de comunicação pelos auditores às respectivas entidades competentes pela supervisão sempre que se detectem factos susceptíveis de colocar

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em causa a boa situação financeira, organizativa ou contabilística dos fundos e das sociedades gestoras. 2.4 Incumprimentos das Regras que Regem a Gestão do UCITS. Neste campo confere-se poderes à entidade de supervisão do UCITS para impor directamente sanções à entidade gestora (nacional ou estran-geira), dentro da esfera das suas competências, devendo porém informar a autoridade compe-tente pela supervisão da entidade gestora. Enfa-tiza-se que essas sanções deverão ser efectivas, proporcionais e dissuasivas. Concorda-se com este princípio orientador, que bem defende os direitos dos investidores dos fundos sem colo-car severamente em causa as competências do estado de origem da sociedade gestora No limite a entidade responsável pela supervi-são do fundo poderá, em situações de graves ou reiteradas violações à lei, retirar a licença para a gestão do fundo, tendo poderes para determinar uma adequada substituição da sociedade gestora ou até a liquidação do fundo. Por fim, como medida menos drástica, pode a entidade compe-tente, atento o interesse dos investidores e do público, determinar a suspensão das subscrições e resgates do fundo. Impõe-se ainda que, em caso algum, seja dimi-nuída a responsabilidade da sociedade gestora e do depositário pelos simples facto de existir uma separação entre domicílio do fundo e da gestora. Esta imposição assume-se como funda-mental para assegurar a protecção dos investi-dores quer estes invistam em fundos geridos por entidades ‘locais’ ou domiciliadas noutras jurisdições.

Em sequência, os direitos dos participantes de exigirem indemnizações em caso de violação das regras da Directiva deverão ser idênticos a como se fundo e gestora se encontrassem locali-zadas na mesma jurisdição, devendo essas acções serem dirigidas a entidade judicial loca-lizada no estado membro do UCITS.

3. CONSEQUÊNCIAS PARA A INDÚSTRIA PORTUGUESA Os fundos portugueses já hoje sofrem a concor-rência dos fundos estrangeiros, mediante a exis-tência de um passaporte comunitário que permi-te a comercialização destes últimos em Portu-gal. Em 30 de Junho de 2008 existiam 70 UCITS com autorização de comercialização em Portu-gal (há porém que ter em conta que muitos des-te UCITS assumem a natureza societária, estan-do divididos em múltiplos compartimentos, o que na prática significará que algumas centenas de ‘fundos’ serão potencialmente comercializá-veis). Porém, o valor colocado junto de investi-dores nacionais assume uma expressão ainda reduzida (cerca de 825 milhões de euros) uma vez que não atinge mais do que 4% do volume sob gestão em fundos de investimento nacio-nais. A razão de ser para esta situação é dupla: a) os fundos estrangeiros têm fiscalidade mais agra-vada do que os nacionais – taxa de retenção na fonte de 20% independentemente do tipo de fundo (art.º 101/2/b do CIRS); b) Mais impor-tante, os canais de distribuição imperam nesta matéria e a penetração dos fundos estrangeiros tem sido efectuada essencialmente mediante canais on-line, havendo uma clara resistência a

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a oferta de fundos estrangeiros nos canais mais tradicionais (balcões).

Assim, no plano fiscal uma primeira conse-quência do passaporte é propiciar um Idêntico level playing field para os fundos que compe-tem em cada mercado, independentemente da origem da sua sociedade gestora (seja domésti-ca ou estrangeira, há um efeito de captação da fiscalidade local uma vez que o UCITS se con-sidera sempre constituído na mesma jurisdição).

A compatibilização desta realidade com a exis-tência de Master Feeder funds, uma solução também proposta pela CE na actual revisão da Directiva, que, refira-se brevemente, consiste na criação de um fundo de elevada dimensão de escala global (Master) no qual diversos fundos de menor dimensão (Feeders) investem exclusi-va ou quase exclusivamente o seu património, permite a constituição de um Master localizado em Jurisdição europeia com ambiente fiscal mais favorável e vários feeders micro localiza-dos em outras jurisdições europeias que captam o ambiente fiscal local (sendo geridos directa-mente por uma gestora estrangeira), irá favore-cer entidades gestoras de activos de maior dimensão que beneficiem da criação de um ou vários masters que permitem o ganho de signifi-cativas economias de escala na sua gestão.

È de esperar porém que o imperativo do domí-nio dos canais de distribuição continuará a estreitar o efeito concorrência, não sendo de prever um aumento significativo do

cross-selling de fundos estrangeiros nos canais tradicionais.

Noutro plano, o cenário de gestão de um UCITS português em idênticos moldes, por gestoras estrangeiras e nacionais, acentua a falta de harmonização total existente no plano dos requisitos prudenciais (harmonização mínima), em particular no que toca às exigências de capi-tais próprios (recorde-se, uma dada percenta-gem sobre o valor dos fundos administrados), o que não só distorce a concorrência, como colo-ca os investidores em diferentes níveis de pro-tecção quando esses capitais hajam de ser cha-mados para dar cobertura a situações de erro ou dolo atribuível à gestora e ao depositário dos fundos. Note-se que em Portugal os requisitos no que se refere a esta matéria foram fixados bastante acima do exigido pela Directiva. Uma dúvida importante pois aqui se coloca, qual o será o regime de fundos próprios aplicável a uma ‘gestora estrangeira’ que gira, por exem-plo, um fundo domiciliado em Portugal? O do país de origem, que poderá ser menos exigente do que o português? (parece ser esta a solução de facto)? Ou, pelo contrário, o do país de resi-dência do fundo? Esta questão deve ser clara-mente respondida e assumidas as consequências da via escolhida.

Mas também existem oportunidades para a ges-tão de activos nacional, nomeadamente o desa-fio da indústria portuguesa também se poder internacionalizar mediante a constituição de fundos noutras jurisdições por sociedades ges-toras nacionais, sujeita é certa, agora no outro verso da medalha, à capacidade de possuir canais de distribuição para os seus fundos.

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4. OS PROBLEMAS DE SUPERVISÃO DECORRENTES DO NOVO MODELO DE PASSAPORTE

Uma primeira expectativa é a de que a possibi-lidade de constituição de fundos por uma dada gestora, nas diversas jurisdições europeias, venha a propiciar situações de arbitragem no respeitante aos prazos administrativos e termos em que são aprovados os fundos em cada país. De facto, trata-se de matéria não harmonizada e que varia entre sistemas paternalistas, em que tudo é escrutinado e aprovado, e como tal são mais morosos, e outros sistemas mais aligeirados em que apenas é efectuado o designado filing de elementos junto do regula-dor, o qual apenas certifica a presença dos documentos mínimos para conceder a respecti-va autorização. Noutro plano, os acordos de cooperação que estão previstos serem efectuados entre regula-dores, que poderão envolver pelo menos 3 enti-dades (dado o não arrojo pela deslocalização do depositário face ao domicilio do UCITS), o regulador do fundo, da entidade gestora e de eventuais entidades a quem tenham sido delega-das funções por esta, podem originar a criação de estruturas complexas de supervisão que sejam na prática pouco operacionais. A gestão de situações limite que influenciam simultaneamente a esfera dos fundos e da socie-dade gestora, como por exemplo a ocorrência de erros de valorização do valor das unidades de participação (matéria que se situa ao nível do fundo e da responsabilidade da respectiva entidade reguladora) e que despoletem a

necessidade de indemnização dos investidores (regra geral com os capitais próprios da socie-dade gestora e logo com influência na esfera prudencial definida pela entidade reguladora da sociedade gestora) será certamente um teste permanente à eficiência dessa cooperação. 5. CONCLUSÃO

As novas regras do passaporte integram o mer-cado de UCITS numa lógica global de gestão transfronteiriça e não apenas de comercializa-ção, como até à data vinha sucedendo. A combinação desta realidade com as estruturas de Master Feeder Funds, também propostas pela CE na sua alteração da Directiva, tenderá a beneficiar as sociedades de gestão de activos europeias de maior dimensão que consigam efeitos de escala relevantes na criação de fun-dos Master com elevado volume de activos e consequente distribuição em cada mercado europeu de diversos feeders. Acresce a este facto que a possibilidade de se ‘captar’ a fiscalidade local mediante a constitui-ção de fundos noutra jurisdição aumenta a con-corrência em cada mercado individualmente considerado, uma vez que, não existindo har-monização fiscal, em regra, os fundos entrando no mercado como estrangeiros são penalizados a este nível face aos fundos nacionais. Os desafios para a supervisão são imensos e podem propiciar a criação de uma rede de acor-dos de cooperação e/ou colégios de reguladores sem precedentes noutras áreas dos serviços financeiros.

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Os actos de supervisão presencial até hoje res-tringidos por cada entidade de supervisão ao seu espaço de actuação local passarão a ser exercidos duma forma plenamente aberta e inte-grada em todo o espaço da União Europeia criando um novo paradigma de supervisão pelo menos no domínio dos UCITS. Existirão sempre áreas cinzentas de competên-cias de supervisão (vide exemplos mencionados sobre erros de valorização e compensação dos

participantes, bem como em matéria de fundos próprios) que irão com elevada certeza colocar à prova a eficiência da cooperação entre regula-dores. Não se coloca de parte que tais situações possam ter efeitos ao nível da protecção dos investidores, nomeadamente nos casos em que essa cooperação seja menos afinada e tenha que vir a ser concertada ao nível de ‘instâncias’ superiores como seja o CESR.

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ANOTAÇÃO A ACÓRDÃO

GESTÃO DE CARTEIRAS - DEVERES DE INFORMAÇÃO ANOTAÇÃO À SENTENÇA DA 5ª VARA CÍVEL DA COMARCA DO PORTO,

3ª SECÇÃO, PROCESSO N.º 2261/05.0TVPRT

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VARAS CÍVEIS DO PORTO 5ª VARA - 3ª SECÇÃO PROCESSO 2261/05.0TVPRT

“I – RELATÓRIO

J., residente em na rua F, na Maia, intentou acção declarativa de condenação contra D., S.A., com sede na rua E, no Porto, pedindo a sua condenação o pagamento da quantia de € 15.649,89 acrescida de juros de mora desde 31/08/2004 até efectivo e integral pagamento, contando-se os vencidos em € 1.667,03.

Alegou para tal e em suma que: i. Entregou à ré a quantia de € 15.649,89

para que a ré procedesse à sua gestão, adquirindo e alienando valores mobiliá-rios ou equiparados, realizando outras operações e gerindo a sua carteira de títulos;

ii. Desde o início do contrato a ré não prestou ao autor qualquer informação sobre a gestão da carteira que estava a ser efectuada;

iii. (…) iv. O facto de a ré não ter informado o autor

da composição da carteira impediu-o de verificar os investimentos realizados pela ré.

Citada a ré, veio contestar, (…) mais se defendendo por impugnação.

Conclui pela improcedência da acção, com a sua consequente absolvição do pedido.

Respondeu o actor, concluindo como na p.i.

Foi realizada audiência preliminar, tendo sido proferido despacho saneador com selecção da matéria de facto assente e fixação da base instrutória. Veio a realizar-se o julgamento com observân-cia do formalismo legal e no final o tribunal respondeu à matéria de facto conforme despacho de fls. 410 e ss. Mantém-se a validade e a regularidade da instância. II – FUNDAMENTAÇÃO 2.1 – Matéria de Facto Provada

Encontra-se assente a seguinte factualidade: 1. A ré é uma sociedade corretora registada

no Banco de Portugal e é membro da EURONEXT;

2. O autor entregou à ré a quantia de € 24.939,89 no âmbito da celebração do contrato de 17 de Abril de 2001, junto a

GESTÃO DE CARTEIRAS - DEVERES DE INFORMAÇÃO

ANOTAÇÃO À SENTENÇA DA 5ª VARA CÍVEL DA COMARCA DO PORTO, 3ª SECÇÃO, PROCESSO N.º 2261/05.0TVPRT1 PEDRO BOULLOSA GONZALEZ*

* Jurista do Departamento de Assuntos Jurídicos e Contencioso da CMVM. 1- É apenas apresentado um excerto da Sentença, sendo que a versão integral se encontra disponível no sítio de internet das Bases Jurídico-Documentais do Instituto das Tecnologias de Informação na Justiça, pertencente ao Ministério da Justiça: http://www.dgsi.pt

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fls. 14 e ss., cujo teor se dá aqui por reprodu-zido, para que esta procedesse à gestão do mesmo;

3. De acordo com o referido contrato o autor atribuiu à ré todos os poderes necessários para, em seu nome, em Portugal ou no estrangeiro, seja em mercado regulamentado ou fora de mercado regulamentado, efectuar, nos termos previstos nas condições específi-cas do contrato, as seguintes operações: a. Subscrever, adquirir ou alienar quaisquer

valores mobiliários ou equiparados, unidades de participação em fundos de investimento, certificados de depósito, bilhetes de tesouro e valores de dívida pública, em moeda nacional ou estrangei-ra;

b. Realizar operações sobre opções, sobre futuros e outros instrumentos financeiros derivados, tendo ou não por objectivo a cobertura do risco inerente às demais posições que constituem a carteira, podendo os referidos instrumentos finan-ceiros ter por activo subjacente valores mobiliários, de natureza real ou teórica, taxas de juro, instrumentos do mercado monetário ou cambial e, bem assim, índi-ces de quaisquer um dos instrumentos financeiros atrás referidos;

c. Exercer os direitos parciais e/ou poten-ciais dos activos financeiros que a cada momento integram a carteira, nomeada-mente direitos de preferência e outros, novas subscrições ou aumentos de capi-tal, unidades de participação em fundos de investimento nacionais ou internacio-nais, certificados de depósito, bilhetes de tesouro, papel comercial;

d. Realizar as demais operações sobre ins-trumentos financeiros e monetários que sejam legalmente admissíveis.

4. A ré obrigou-se a gerir a carteira de títulos do autor como um gestor criterioso e dili-gente no interesse deste, e mais concreta-mente: a. Informar o cliente de todas as operações

que realiza mediante o envio mensal e quando expressamente solicitado pelo cliente de uma relação discriminada das operações realizadas no período em ques-tão e, bem assim, a apresentação da com-posição da carteira – e respectiva valori-zação e do saldo da sua conta;

b. Guardar completo sigilo de tudo o que disser respeito ao cliente, não identifican-do a sua identidade, contas e movimentos ou outras operações bancárias/financeiras;

c. Não utilizar as disponibilidades decorren-tes da execução deste contrato em tran-sacções que com ele não estejam relacio-nadas;

d. Dentro dos parâmetros previamente defi-nidos pelo Cliente nas condições especí-ficas, alertar o cliente dos riscos inerentes aos produtos escolhidos e definir a colo-cação do seu património considerada a mais adequada à optimização do mesmo;

e. Cumprir todas as instruções recebidas do cliente no que concerne a eventual revo-gação do contrato;

f. No termo do contrato ou na eventualida-de de revogação do mesmo, não efectuar mais operações, excepto as expressamen-te autorizadas, devendo dar conhecimen-to ao cliente do saldo da sua conta, assim como enviar toda a respectiva correspon-dência.

5. Foi aberta uma conta no BCP – Corporate que funcionou como suporte das operações spot e de derivados realizadas ao abrigo do presente contrato;

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5. Pelos serviços prestados ao abrigo do referi-do contrato, a ré cobrava um “success-fee” correspondente a 20% dos lucros dos inves-timentos realizados depois de impostos;

6. A ré obrigou-se ainda a desempenhar as suas funções com a diligência de um gestor razoável e prudente e com a competência de um técnico dotado de conhecimentos ade-quados e actualizados relativamente à função exercida, sempre com respeito por todas as normas aplicáveis de fonte local, nacional ou comunitária e de acordo com os parâmetros nacional e internacionalmente aceites;

7. A ré informou o autor que tinha como refe-rência nos seus investimentos os índices PSI 20, Dow Jones e NASDAQ;

8. Em 19/04/2001 os referidos índices tinham os seguintes valores:

• PSI-20: 10.025,50 • Dow Jones: 10.693,71 • NASDAQ: 1953,28

10.Em 23 de Agosto de 2004 o autor solicitou à ré informações sobre a sua carteira;

11.E recebeu como resposta o fax da ré de 24 de Agosto de 2004, onde se refere “a gestão de carteiras da DIF Broker teve uma altera-ção da sua liderança em Agosto de 2003. O Dr. Paulo Ramalho até então responsável e a pessoa com quem contactava, apresentou a sua demissão em Julho de 2003” e ainda “Não podemos comentar a actividade do gestor anterior, actualmente responsável de uma empresa concorrente”;

12.Referem também que em Agosto de 2003 a carteira do autor tinha um valor de € 9.373,59;

13.O autor remeteu novo fax em 24 de Agosto de 2004;

14.O autor denunciou o contrato, o que teve efeitos em 31 de Agosto de 2004;

15.(…)

16.Dá-se aqui por reproduzido o contrato de fls. 14 e ss;

17.A ré procedeu, desde o início da celebração do contrato – Abril de 2001 – ao envio men-sal dos extractos integrados da conta n.º 30013 pertencente ao autor;

18. A ré, a partir de Agosto de 2003, para além do extracto integrado, começou a fornecer ao autor um relatório detalhado mensal da actividade da gestão de carteiras;

19. Enviando-lhe ainda, a partir de 2004, um quadro onde lhe era apresentada de forma clara a rentabilidade média da gestão de car-teiras e as rentabilidades dos diferentes ins-trumentos existentes no mercado, quer sejam índices, taxas de juro ou produtos cambiais.

2.2 Fundamentação Fáctico-Conclusiva e Jurídica

(…) O autor fundamenta a sua pretensão na violação pela ré do direito de informação (…). Tendo em conta: i. O referido nos pontos 2. e 3. da matéria de

facto dada como provada; ii. O facto de o contrato assinado ter sido cele-

brado por um particular, o autor, e a ré, que é uma sociedade corretora registada no Ban-co de Portugal;

iii. Que a ré é, pois, uma empresa de investi-mento em valores mobiliários, constituindo aquilo que a lei designa por intermediário financeiro (cf. art. 293.º, n.º1, a) e n.º2, a) do Código dos Valores Mobiliários - CdVM);

iv. Que o autor pretendeu com a celebração des-te contrato, entre outras coisas, constituir uma carteira de valores mobiliários, autori-zando a ré a proceder à compra e venda de acções, destinada a ser gerida pela ré corre-tora, concedendo-lhe todos os poderes necessários e suficientes para, em seu nome,

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efectuar no mercado as necessárias opera-ções, obrigando-se a ré perante o autor a praticar em nome deste um conjunto de operações bolsistas no sentido de proceder à valorização do montante inicial entregue pelo autor à ré para a constituição inicial da carteira.

Conclui-se que estamos perante um contrato de gestão de carteiras, de acordo, aliás, com a qua-lificação que dele foi feita pelas partes. Atendendo à data de celebração do contrato – 17 de Abril de 2001 – o mesmo encontra-se sujeito às disposições legais do CdVM, diploma aprovado pelo DL 486/99 de 13/11, que entrou em vigor no dia 01 de Março de 2000 (revogando o anterior código aprovado pelo DL 142-A/91, de 10/04). Este código configura uma série de contratos de intermediação, importando, no entanto, ressaltar que “(…) o elenco que o CdVM apresenta dos contratos de intermediação não exclui a possi-bilidade de serem celebrados contratos de cele-bração que não se encaixem nos tipos elenca-dos. Por outras palavras: esses tipos legais não são taxativos, não formam um numerus clau-sus” como refere Rui Pinto Duarte in “Contratos de Intermediação no Código de Valores Mobiliários”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º7, Abril de 2000, pág. 38. No âmbito dos contratos de intermediação espe-cialmente previstos, o CdVM prevê o contrato de gestão de carteiras nos artigos 332.º e ss. A actividade de gestão de carteiras por conta de outrem é um serviço de investimento em valo-res mobiliários, que constitui actividade de intermediação financeira própria de empresas

como a ré, a qual constitui, como vimos, um intermediário financeiro – arts. 289.º e 290.º, n.º1, c) do CdVM, encontrando-se o seu regime jurídico previsto nos arts. 332.º a 336.º do CdVM. Através deste contrato, o investidor autoriza o seu intermediário financeiro a, utilizando os seus conhecimentos e técnicas, tomar livremen-te decisões de investimento que considere mais apropriadas, tendo em vista a valorização da carteira. Uma vez que o contrato de gestão de carteiras constitui o intermediário na obrigação de prati-car actos jurídicos por conta de outrem, recon-duz-se ainda a um contrato de prestação de ser-viços e, dentro destes, ao contrato de mandato (arts. 1154.º e 1155.º do Código Civil). Ver nes-te sentido Maria Vaz de Mascarenhas, in “Contratos de Gestão de Carteiras: Natureza, Conteúdo e Deveres”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º13, Abril/2002, pág. 122 e ss., em comentário ao Acórdão do STJ de 11/01/2000, acórdão este disponível em www.dgsi.pt e Rui Pinto Duarte, in estudo citado, pág. 366. E porque objectiva e subjectivamente implica a prática de actos de comércio estamos perante um mandato comercial. Com efeito, os actos praticados no âmbito deste contrato são objectivamente comerciais porque “havendo aquisição ou alienação de valores mobiliários em mercado, há necessariamente o exercício de actos de comércio” (Maria Vaz de Mascarenhas, estudo citado, pág. 123) – cfr. art. 2.º e 362.º do Código Comercial. E o contrato de mandato comercial caracteriza-se precisamente por se tratar de um contrato em

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que uma pessoa se encarrega de praticar um ou mais actos de comércio por mandato de outrem – art. 231.º do C. Comercial. São subjectivamente comerciais, porque as enti-dades gestoras de carteiras são sociedades comerciais, pelo que são comerciantes nos ter-mos do art. 13.º do C. Comercial. Conclui-se assim que para além das normas especialmente previstas nos arts. 332.º do CdVM e das regras comuns aos vários contratos de intermediação estabelecidas nos arts. 321.º e ss. do mesmo código, são aplicáveis subsidia-riamente ao contrato de gestão de carteiras as regras do mandato comercial. Posto isto, uma vez apurado o direito aplicável, debrucemo-nos agora sobre o caso concreto a apreciar. Como vimos, o autor baseia a sua pretensão judicial (…): - Na violação do dever de informação. (…) Analisemos (…) se houve ou não violação do dever de informação. O autor alegou que desde o início do contrato (em 17 de Abril de 2001) a ré não lhe prestou qualquer informação. Que a informação relativa à sua carteira só lhe veio a ser dada, quando o solicitou à ré em Agosto de 2002. Que a partir dessa data deixou novamente de ter qualquer informação, a qual só veio a ser obtida em Agosto de 2004, tendo o autor posto termo ao contrato no final desse mês.

Alega o autor que a falta de informação sobre a composição da carteira, nem do seu valor, impediu-o de verificar os investimentos realiza-dos pela ré. O intermediário financeiro está adstrito ao dever de informação como decorre do art. 312.º e 323.º do CdVM, que genericamente estabele-ce que aquele deve prestar, relativamente aos serviços que ofereça, que lhe sejam solicitados ou que efectivamente preste, todas as informa-ções necessárias. Mais dizendo o n.º2 da mesma norma que a extensão e profundidade da informação devem ser tantos maiores quanto menor for o grau de conhecimentos e de experiência do cliente. Em causa está apenas o dever de informação relativamente aos serviços prestados, pelo que apenas nesta vertente será o direito de informa-ção apreciado. O art. 323.º do CdVM dispõe que para além dos deveres do art. 312.º, o intermediário financeiro deve informar os clientes sobre a execução e os resultados das operações que efectue por conta deles; a ocorrência de dificuldades especiais ou a inviabilidade de execução da operação e quaisquer factos ou circunstâncias de que tome conhecimento, não sujeitas a segredo profissio-nal, que possam justificar a modificação, ou a revogação das ordens ou instruções dadas pelo cliente. Como refere Maria Vaz de Mascarenhas, in estudo cit., pág. 124, “Verifica-se que o dever de informação constante do art. 239.º do C. Comercial, nos termos do qual o mandatário é obrigado a participar ao mandante todos os

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factos que possam levá-lo a modificar ou revo-gar o mandato, é consumido no caso da gestão de carteiras (e pelos contratos de intermedia-ção em geral) pelo disposto no art. 323.º, c) do CdVM. Na verdade não é só este dever, mas os restantes que se invocam são deveres de infor-mação típicos das relações de mandato”, como salienta Sofia Nascimento Rodrigues in “A pro-tecção dos investidores em valores mobiliá-rios”, 2001, pág. 47 e Menezes Leitão in “Actividades de Intermediação e Responsabili-dade de Intermediários Financeiros”, Direito dos Valores Mobiliários, Vol. II, 2000, pág. 144, ambos citados por aquela autora. Também o Regulamento da CMVM n.º 12/2000 Intermediação Financeira p. in DR II série, n.º 45 de 23/02/2000 que entrou em vigor em 01 de Março de 2000 (com as alterações introduzidas pelos Regulamentos da CMVM n.º 32/2000, 17/2002, n.º2/2003 e n.º 10/2003), que veio proceder ao desenvolvimento das regras relativas às actividades de intermediação finan-ceira, concretizou este dever de informação nos seus arts. 38.º e ss. Nos termos do art. 41.º deste Regulamento, para além das operações realizadas, “o intermediário financeiro comunica aos seus clientes todas as informações relativas à constituição, reforço e substituição de garantias; ajustes de ganhos e perdas realizadas; liquidações efectuadas; transferências de posições e outros incidentes ocorridos…”. O n.º2 do art. 41.º deste Regulamento dispõe que o intermediário financeiro realiza diaria-mente estas comunicações, podendo fazê-lo de forma aglutinada num único documento para cada cliente.

E acrescenta o n.º3 que o intermediário e cliente podem estabelecer, através de contrato, uma periodicidade distinta para o envio de comuni-cações, embora nunca superior a um mês. No contrato celebrado entre as partes, no capí-tulo denominado “Obrigações da D, S.A.”, no ponto 1, a), a ré expressamente obrigou-se a informar o aqui autor de todas as operações que realiza mediante o envio mensal e quando expressamente solicitado pelo cliente de uma relação discriminada das operações realizadas no período em questão e bem assim a apresen-tação da composição da carteira e respectiva valorização e o saldo da sua conta. Maria Rebelo Pereira no seu estudo “Contrato de Registo e Depósito de Valores Mobiliários”, in Cadernos da CMVM n.º 15, de Dezembro de 2002, pág. 327, refere a este propósito que o princípio da protecção do investidor determina que o intermediário financeiro, como sujeito passivo do dever de informar, está não só ads-trito ao cumprimento das obrigações que assu-miu para com os seus clientes, mas também a um dever especial de proteger os interesses des-tes, enquanto credores, nos contratos de inter-mediação financeira (art. 304.º do CdVM). Alegou o autor, como vimos, que a ré não o informou da composição da carteira, nem do seu valor de maneira que pudesse verificar os investimentos realizados pela ré. Ora, provou-se que a ré procedeu, desde o iní-cio da celebração do contrato, ao envio mensal dos extractos integrados da conta pertencente ao autor. (facto supra n.º28) E que, a partir de Agosto de 2003, para além do

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extracto integrado, começou a fornecer ao autor um relatório detalhado mensal da actividade da gestão de carteiras. (facto supra n.º 29) Tratam-se dos documentos juntos aos autos a fls. 47 e ss., onde estão discriminadas todas as operações efectuadas pela ré, desde o início do contrato até ao seu termo. Daqui decorre que a ré, ao informar mensal-mente o autor da actividade por si exercida, compras e vendas efectuadas, como fez, e ao contrário do por este alegado, não violou o dever que sobre si impendia, pelo que, também com este fundamento, improcede a pretensão indemnizatória do aqui autor. Mas repare-se que, mesmo que fosse verdadeira a versão do autor, de nada ter sabido da activi-dade da ré, desde o início do contrato até Agos-to de 2002, dir-se-ia que houve uma ratificação da gestão efectuada pela ré, já que, sempre se teria de presumir que o autor, ao tomar conheci-mento da mesma, mantendo a procuração con-ferida à ré, ratificou as operações bolsistas que o gestor da ré efectuou. E o mesmo se diga relativamente aos dois anos que se seguiram. III - DECISÃO Conclui-se assim da factualidade apurada, que a corretora aqui ré não poderá ser responsabiliza-da pelos prejuízos sofridos pelo autor em conse-quência dos seus investimentos no mercado bolsista.

Terá, consequentemente de ser julgada impro-cedente a presente acção. Pelo exposto e em conclusão julgo não provada e improcedente a presente acção, pelo que em consequência absolvo a ré do pedido. Custas pelo autor. Registe e notifique. Porto, 04/09/2007 ANOTAÇÃO A questão decidida pela sentença que ora se comenta é a de saber se a ré violou os deveres de informação a que está adstrita, enquanto gestora de carteiras por conta de outrem, perante os seus clientes. A 5.ª Vara Cível da Comarca do Porto, na sen-tença transcrita, proferida a 4 de Setembro de 2007, no processo n.º 2261/05, decidiu-se pela negativa. Na anotação desta sentença procurar-se-á – a propósito desta posição do Tribunal, que enten-demos dever ser sufragada – fazer uma breve análise dos deveres de informação a que está sujeito o gestor de carteiras, tal como hoje são configurados pelo Código dos Valores Mobiliá-rios. I – Deveres de Informação do Gestor de Carteiras à data da prática dos factos

O autor interpôs acção com fundamento na violação, pela ré, do dever de informação quanto à composição da carteira.

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Os factos em apreço ocorreram entre 17 de Abril de 2001 e 31 de Agosto de 2004. Nessa data, regia o disposto nos arts. 85.º, n.º4, a), 312.º, 323.º e 336.º do CdVM e nos arts. 38.º e ss. e 71.º do Regulamento da CMVM n.º 12/2000. Acontece que no passado dia 1 de Novembro de 2007 entrou em vigor o Decreto-Lei (DL) n.º 357-A/2007, de 31 de Outubro, que veio alterar o CdVM, alterando, entre outros, o art. 312.º do CdVM. No mesmo sentido, em 10 de Novembro de 2007 entrou em vigor o Regulamento da CMVM n.º 3/2007, que veio revogar o Regula-mento da CMVM n.º 12/2000. A nova versão do art. 312.º do CdVM vem acrescentar espécies de informação que têm de ser prestadas pelo intermediário financeiro e o DL n.º 357-A/2007, de 31 de Outubro veio tam-bém introduzir novos deveres de informação aplicáveis aos intermediários financeiros, nomeadamente os constantes dos arts. 323.º-A e 323.º-B.2 Os referidos preceitos do CdVM e do Regula-mento da CMVM n.º 12/2000 contêm, em suma, dois tipos de deveres de informação no âmbito do contrato de gestão de carteiras:

i. Informação pré-contratual; ii. Informação a ser prestada na vigência do

contrato. 1.1 – Deveres de informação pré-contratual

Comecemos por analisar os primeiros, que resultavam dos arts. 312.º e 336.º do CdVM e

38.º e 39.º do Regulamento da CMVM n.º 12/2000.

O art. 312.º do CdVM, na versão em vigor à data da prática dos factos3, tinha a seguinte redacção: “1 – O intermediário financeiro deve prestar, relativamente aos serviços que ofereça, que lhe sejam solicitados ou que efectivamente preste, todas as informações necessárias para uma tomada de decisão esclarecida e fundamentada, incluindo nomeadamente as respeitantes a:

a. Riscos especiais envolvidos pelas opera-ções a realizar;

b. Qualquer interesse que o intermediário financeiro ou as pessoas que em nome dele agem tenham no serviço prestado ou a prestar;

c. Existência ou inexistência de qualquer fundo de garantia ou de protecção equivalente que abranja os serviços a prestar;

d. Custo do serviço a prestar. 2 – A extensão e a profundidade da informação devem ser tanto maiores quanto menor for o grau de conhecimentos e de experiência do cliente. 3 – A circunstância de os elementos informati-vos serem inseridos na prestação de conselho, dado a qualquer título, ou em mensagem pro-mocional ou publicitária não exime o interme-diário financeiro da observância dos requisitos e do regime aplicáveis à informação em geral.” O art. 336.º do CdVM, também na versão em vigor à data da prática dos factos, estabelecia que: “O gestor tem o dever de informar o cliente sobre os riscos a que fica sujeito em consequência da gestão, tendo em conta

2- O art. 3.º, n.º2 do RGCORD manda, em caso de sucessão de leis, aplicar a lei mais favorável ao arguido, pelo que em sede de processo de contra-ordenação tendo por objecto os factos supra descritos, se colocaria uma questão de sucessão de leis. Todavia, uma vez que a decisão em análise foi proferida em sede de processo de natureza cível, rege a lei vigente à data da prática dos factos, cf. art. 12.º do Código Civil, uma vez que quando entraram em vigor as alterações legais já o contrato entre autor e ré havia sido resolvido. 3- Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 61/2002, de 20 de Março, pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, pelo Decreto-Lei n.º 107/2003, de 4 de Junho, pelo Decreto-Lei n.º 183/2003, de 19 de Agosto e pelo Decreto-Lei n.º 66/2004, de 24 de Março.”

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especialmente os objectivos do investimento e o grau de discricionariedade concedida ao gestor.” Os arts. 38.º e 39.º do Regulamento da CMVM n.º 12/2000, na versão em vigor à data da práti-ca dos factos em apreço, dispunham que: “1. Antes de iniciar a prestação do serviço, o intermediário financeiro informa o potencial cliente sobre as principais características da empresa abrangendo, pelo menos:

a. A identificação do intermediário finan-ceiro e respectiva morada;

b. A identidade e a posição no intermediá-rio financeiro dos funcionários ou outros colaboradores e serviços com quem o cliente tem ou irá ter contacto;

c. Indicação da data do registo, junto da entidade de supervisão, da actividade a prestar ao cliente;

d. Tipo de intermediário financeiro e res-pectiva capacidade para fornecer os ser-viços pretendidos.

2. Qualquer informação que o intermediário financeiro forneça ao investidor sobre o desem-penho passado daquele deve:

a. Ser relevante para a avaliação do desem-penho do serviço que o intermediário financeiro se propõe oferecer;

b. Ser um registo completo e não engana-dor.”

“1. Antes de iniciar a prestação de um serviço, o intermediário financeiro:

a. Fornece ao investidor informação ade-quada sobre a natureza, os riscos e as implicações da operação ou do serviço em causa, cujo conhecimento seja neces-sário para a tomada de decisão de inves-timento ou de desinvestimento, tendo em

conta a natureza do serviço prestado e o conhecimento e a experiência do investi-dor em causa;

b. Entrega ao investidor documento sobre os riscos gerais do investimento em valo-res mobiliários ou noutros instrumentos financeiros;

c. Fornece ao investidor informação especí-fica e detalhada sobre o risco envolvido, quando os produtos ou serviços envol-vam risco de liquidez, risco de crédito ou risco de mercado;

d. Informa o investidor sobre a existência e o modo de funcionamento do serviço do intermediário financeiro destinado a receber e analisar as reclamações dos investidores e da possibilidade de recla-mação junto da entidade de supervisão.

2. (…)” Os referidos preceitos dizem respeito a infor-mação que, por definição, deve ser prestada em momento anterior ou contemporâneo com o momento em que o investidor (neste caso, o autor) toma a decisão de recorrer a um qualquer serviço prestado pelo intermediário financeiro. No presente caso, o conteúdo dos citados pre-ceitos seria aplicável a um momento anterior ou contemporâneo com a assinatura do contrato de gestão de carteiras, pois foi essa a única decisão que o autor tomou relativamente aos serviços da ré. Foi com a assinatura do contrato de gestão de carteiras, em 17 de Abril de 2001, que o autor tomou a decisão de investir o seu capital mediante recurso aos serviços da ré e era até esse momento que a ré tinha o dever de cumprir o disposto nos citados preceitos.4

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4- Assim, é a esta data – de celebração do contrato de gestão de carteiras – que se reporta a eventual violação dos deveres previstos nos arts. 312.º e 336.º do CdVM e 38.º e 39.º do Regulamento da CMVM n.º 12/2000 e, a existir infracção, ela estaria consumada nessa data, o que poderia ter relevância para efeitos de prescrição, se estivéssemos perante processo de contra-ordenação, caso em que seria aplicável o prazo de cinco anos previsto no art. 418.º, n.º1 do CdVM. No âmbito da sentença em apreço, rege, quanto a prazo de prescrição, o disposto no art. 309.º do Código Civil (prazo de prescrição de vinte anos), pelo que não se levanta qualquer questão de prescrição.

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A sentença que agora se anota não analisou a eventual violação destes preceitos pela ré, tendo limitado a sua análise à eventual violação dos deveres de informação na vigência do contrato de gestão de carteiras. Em rigor, a posição do Tribunal foi a correcta, uma vez que o autor limitou o objecto da acção à violação dos deveres de informação quanto à composição da carteira, ou seja, deveres de informação que existem na vigência do contrato de gestão de carteiras pois que, por definição, na fase pré contratual nada tem o gestor de car-teiras que informar acerca da composição de uma carteira que ainda não existe.5 A sentença menciona o art. 312.º do CdVM (juntamente com o art. 323.º) como base legal para o dever de informação que impende sobre o intermediário financeiro mas, erradamente do nosso ponto de vista, esquece que o dever que resulta do referido preceito deve ser cumprido em momento anterior ou contemporâneo com a celebração do contrato de gestão de carteiras entre o autor e a ré. Assim, se o Tribunal se limitou a analisar o eventual (in)cumprimento dos deveres de infor-mação na vigência do contrato, posição com a qual concordamos, atendendo ao pedido do autor, o certo é que invocou como base legal um preceito que respeita a deveres de informa-ção pré-contratual, que estavam fora do âmbito da acção judicial em causa. A verdade é que estes deveres de informação pré-contratual do gestor de carteiras assumem a maior importância, em especial quando o inves-tidor em causa tenha pouca experiência na área dos valores mobiliários.

Com efeito, o cumprimento dos deveres de informação pré-contratual por parte do gestor de carteiras, para além de constituir o cumpri-mento de deveres legais, é a melhor forma de o gestor se precaver de eventuais processos judi-ciais ou de outra natureza que lhe sejam movi-dos. Se, nomeadamente, por meio de disposição do contrato de gestão de carteiras, assinado pela ré e pelo autor, este último tivesse declarado ter recebido informação clara, discriminada e inte-gral referente aos produtos da arguida que dese-java subscrever, dispondo de conhecimento total do risco e da rentabilidade potencial inerentes ao investimento nesses produtos, e ter recebido documento sobre os riscos gerais do investimento em valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros, a ré teria prova cabal do cumprimento dos seus deveres de informa-ção pré-contratual. 1.2 – Deveres de informação na vigência do contrato de gestão de carteiras Os deveres de informação do gestor de cartei-ras, a cumprir na vigência do contrato, resulta-vam, à data da prática dos factos, dos arts. 323.º do CdVM e do art. 71.º do Regulamento da CMVM n.º 12/2000. O art. 323.º do CdVM, na versão em vigor à data da prática dos factos, estabelecia que: “Além dos deveres a que se refere o artigo 312.º, o intermediário financeiro deve informar os clientes com quem tenha celebrado contrato sobre:

a. A execução e os resultados das opera-ções que efectue por conta deles;

b. A ocorrência de dificuldades especiais ou a inviabilidade de execução da opera-ção;

5- O Tribunal está, em obediência ao princípio dispositivo, previsto nomeadamente no art. 661.º, n.º1 do Código de Processo Civil, limitado à definição do objecto do processo tal como foi configurada pelas partes. Neste sentido, FREITAS, José Lebre de, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à luz do código revisto, Coimbra Editora, pp. 128 e ss.

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c. Quaisquer factos ou circunstâncias de que tome conhecimento, não sujeitos a segredo profissional, que possam justifi-car a modificação ou a revogação das ordens ou instruções dadas pelo cliente.”

O art. 71.º do Regulamento da CMVM n.º 12/2000, em vigor à data da prática dos factos, dispunha que: “1. Com uma periodicidade mínima mensal e sempre que lhes for solicitado, as empresas de investimento enviam aos investidores um extracto dos movimentos efectuados nas respec-tivas contas de dinheiro durante o respectivo período. 2. Do extracto mencionado no número anterior constam os seguintes elementos: a) Data da realização dos movimentos; b) Descrição dos movimentos; c) Identificação dos saldos inicial, final e após cada movimento de conta. 3. Quando as contas não apresentarem movi-mentos, pode a empresa de investimento enviar ao cliente o extracto mencionado no n.º1 ape-nas trimestralmente.” Dos citados preceitos resultam os deveres:

i. Dos intermediários financeiros: a. De informar sobre a execução e os

resultados das operações realizadas por conta dos clientes;

b. De informar sobre eventuais dificulda-des ou inviabilidade de realização de cada operação e sobre factos, não sujeitos a segredo profissional, que possam justificar a modificação de ordens ou instruções dadas pelo cliente;

ii. Das empresas de investimento, de enviar um

extracto mensal contendo data e descrição dos movimentos realizados e menção do saldo inicial, final e após cada movimento realizado.

Uma vez que estava em causa, no processo em análise, um contrato de gestão de carteiras, a ré estava especificamente sujeita aos deveres: i. De informação sobre a execução e os resul-

tados das operações realizadas por conta dos clientes (art. 323.º do CdVM), ao qual estava sujeita por ser, nos termos do art. 293.º, n.º1, a) e n.º2, a) do CdVM, um intermediário financeiro;

ii. De envio de um extracto mensal contendo data e descrição dos movimentos realizados e menção do saldo inicial, final e após cada movimento realizado (art. 71.º do Regula-mento da CMVM n.º 12/2000), dado que o art. 293.º, n.º2, a) qualificava a ré como uma empresa de investimento em valores mobi-liários.

Acresce que, nos termos do contrato de gestão de carteiras assinado, entre autor e ré, esta ficou sujeita ao dever de Informar o cliente de todas as operações que realiza mediante o envio mensal e quando expressamente solicitado pelo cliente de uma relação discriminada das opera-ções realizadas no período em questão e, bem assim, a apresentação da composição da car-teira – e respectiva valorização e do saldo da sua conta.6 Já os deveres de informar o cliente: i. Sobre eventuais dificuldades ou inviabilida-

de de realização de cada operação e ii. Sobre factos, não sujeitos a segredo profis-

sional, que possam justificar a modificação de ordens ou instruções dadas pelo cliente;

GESTÃO DE CARTEIRAS - DEVERES DE INFORMAÇÃO : 157

6- Cf. Ponto 4 da matéria de facto provada.

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158 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

Não eram aplicáveis à ré, na medida em que pressupõem a transmissão de ordens ou instru-ções por parte do cliente e isso não ocorreu no caso em apreço, em que não existiram ordens do autor à ré.7 Com efeito, o contrato de gestão de carteiras caracteriza-se pela autonomia ou discricionarie-dade do gestor no exercício da sua actividade, ainda que sujeito a um quadro estratégico, defi-nido pelo investidor.8 Cabe, portanto, ao gestor, realizar os actos de disposição sobre os activos que integram a car-teira do investidor de acordo com as disposi-ções legais vigentes e o conteúdo do próprio contrato. Há, no entanto, um aspecto referido na sentença sob anotação com o qual discordamos. Refere o Tribunal que o dever previsto no art. 239.º do Código Comercial, nos termos do qual o man-datário é obrigado a participar ao mandante todos os factos que possam levá-lo a modificar ou revogar o mandato, é consumido, no caso do contrato de gestão de carteiras, pelo dever pre-visto no art. 323.º, c) do CdVM. O argumento invocado pelo Tribunal prende-se com o facto de o dever previsto no art. 323.º, c) do CdVM ser um dever de informação típico das relações de mandato. Não nos parece que assim deva ser. Com efeito, o art. 323.º, c) do CdVM tem um âmbito de aplicação objectiva distinto do abran-gido pelo art. 239.º do Código Comercial.

O primeiro abrange apenas os factos ou circuns-tâncias que possam justificar a modificação ou revogação das ordens ou instruções dadas pelo cliente, pelo que nem sequer esgota o conteúdo de um contrato de gestão de carteiras (uma vez que a actuação do gestor não se cinge, nem pressupõe necessariamente as ordens ou instru-ções do cliente). Já o art. 239.º do Código Comercial abrange os factos ou circunstâncias que possam levar o mandante a modificar ou revogar o mandato (e não apenas as ordens ou instruções dadas pelo mandante ao mandatário). Assim, ao concluir-se como o Tribunal, cai-se no erro de entender que uma norma com deter-minado âmbito de aplicação objectiva consome outra cujo âmbito de aplicação objectiva não está compreendido no seu. Acresce que a posição adoptada pelo Tribunal acarreta a consequência de conferir-se ao inves-tidor no âmbito de um contrato de gestão de carteiras uma protecção inferior à conferida a qualquer mandante, ao abrigo de mandato comercial, quando, a existir uma distinção de graus de protecção, ela deveria ser no sentido inverso, atentas as especificidades da gestão de carteiras. É que no âmbito de um contrato de gestão de carteiras verificam-se todas as carac-terísticas de um mandato (comercial) acrescidas de especificidades que impõem maior exigência a respeito de deveres de informação.9

O Tribunal concluiu que a ré cumpriu com os seus deveres de informação, uma vez que: i. Desde a data de celebração do contrato,

7- Naturalmente que se o cliente, no âmbito de contrato de gestão de carteiras, transmitir ordens ao gestor, este ficará adstrito aos referidos deveres (cf., à data da prática dos factos, art. 334.º do CdVM e, actualmente, art. 336.º do CdVM). 8- Neste sentido, AFONSO, Ana, O Contrato de Gestão de Carteira – Deveres e Responsabilidade do Intermediário Financeiro, in Jornadas – Sociedades Abertas, Valores Mobiliários e Intermediação Financeira, Almedina, pp. 55 e ss.; MASCARENHAS, Maria Vaz de, O Contrato de Gestão de Carteiras: Natureza, Conteúdo e Deveres, Anotação a Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º13, Abril de 2002; DUARTE, Rui Pinto, Os Contratos de Intermediação no Código dos Valores Mobiliários, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º7, Abril de 2000. 9- A este respeito, ver infra, ponto 2.3.

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159 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

procedeu ao envio ao autor dos extractos integrados da conta;

ii. A partir de Agosto de 2003, para além do extracto integrado, começou a fornecer ao autor um relatório detalhado mensal da acti-vidade da gestão de carteiras;

Pelo que a ré, informando mensalmente o autor da actividade por si exercida, compras e vendas efectuadas, como fez, não violou os seus deve-res de informação. Entendemos que a conclusão do Tribunal é a correcta, embora julguemos que as premissas que a permitem não foram devidamente explo-radas. Como referido supra, entendemos que no caso eram aplicáveis à ré os deveres de:

i. Informação sobre a execução e os resul-tados das operações realizadas por conta dos clientes (cf. art. 323.º CdVM); e

ii. De envio de um extracto mensal conten-do data e descrição dos movimentos rea-lizados e menção do saldo inicial, final e após cada movimento realizado, (cf. art. 71.º do Regulamento da CMVM n.º 12/2000).

Assim, e visto que a norma do citado art. 323.º do CdVM não continha prazo para cumprimen-to do dever de informação sobre as operações realizadas, entendemos que o dever aí referido era consumido, no que diz respeito a informa-ção oficiosamente prestada10, pelo dever de envio de extracto mensal que contivesse descri-ção dos movimentos realizados. Ou seja, se em teoria eram dois os deveres a que estava sujeita a ré, a verdade é que a norma que estabelecia o dever de informação sobre a

execução e resultados das operações realizadas por conta de clientes não continha prazo para o cumprimento de tal dever, pelo que se, median-te envio do extracto mensal, a ré informou tam-bém sobre as operações realizadas durante o mês por conta do autor, não pode senão con-cluir-se que a ré cumpriu tanto com o dever de envio de extracto mensal como com o dever de informação sobre as operações realizadas por conta do autor (cumprindo assim com o dispos-to nos arts. 323.º do CdVM e 71.º do Regula-mento da CMVM n.º 12/2000). II – Deveres de Informação do Gestor de Carteiras de acordo com a legislação vigente

A matéria da informação assume especial rele-vância em várias vertentes da área dos valores mobiliários. Em particular, no que diz respeito às activida-des de intermediação financeira, em que se insere a actividade de gestão de carteiras por conta de outrem, os deveres de prestação de informação a que está adstrito o intermediário representam um dos aspectos essenciais da tute-la da relação jurídica entre intermediário e cliente. Com efeito, por meio de um contrato de inter-mediação financeira, ocorre uma situação de dissociação subjectiva: por um lado, existe o investidor, que detém capital que pretende ver investido da melhor forma e que assume os riscos inerentes ao investimento em instrumen-tos financeiros; de outro lado, existe o interme-diário financeiro, que detém know-how, conhecimentos específicos e que é quem pratica os actos inerentes à gestão do capital do investi-dor.

GESTÃO DE CARTEIRAS - DEVERES DE INFORMAÇÃO : 159

10- Já assim não será se o cliente solicitar que o gestor lhe preste informação relativa à execução e resultados das operações realizadas por sua conta. O dever apenas é consumido no que toca à informação a prestar oficiosamente pelo gestor mas não à informação a prestar a solicitação do cliente, caso em que se mantém o dever do gestor de informar.

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Assim, existe uma relação em que uma das par-tes detém capital e assume riscos e a outra detém conhecimentos e a possibilidade de exe-cutar, ou mesmo de decidir e executar, os actos relativos ao investimento do capital. Daí que, no âmbito da relação contratual, a pro-tecção do investidor seja conseguida essencial-mente através da imposição de deveres de infor-mação a prestar pelo intermediário financeiro, por forma a permitir um controlo da sua activi-dade por parte do investidor. Os deveres de informação do gestor de carteiras resultam hoje dos arts. 312.º a 312.º-G, 316.º, 321.º-A e 323.º-A a 323.º-C do CdVM11 e dos arts. 14.º, 23.º-26.º e 28.º do Regulamento da CMVM n.º 2/2007. O quadro legal actualmente em vigor na matéria resulta da transposição da Directiva dos Merca-dos de Instrumentos Financeiros (DMIF)12 e é marcado, em traços gerais, por:

i. Um aprofundamento dos deveres de informação a prestar aos clientes13;

ii. A possibilidade de prestação de informa-ção por meios electrónicos (internet).

Paralelamente, foram estabelecidos deveres de recolha de informações relativas aos clientes por parte dos intermediários financeiros. 2.1 – Deveres de informação pré-contratual

Em relação aos deveres de informação a cumprir pelo gestor de carteiras antes ou

independentemente da celebração do contrato, rege o disposto nos arts. 312.º a 312.º-G do CdVM e nos arts. 23.º a 25.º do Regulamento da CMVM n.º 2/2007. Os referidos preceitos legais estabelecem os seguintes deveres de informação para o gestor de carteiras: i. Prestar, por escrito (ainda que sob forma

padronizada), todas as informações necessá-rias para uma tomada de decisão esclarecida e fundamentada do investidor (cf. art. 312.º CdVM).

ii. A informação a prestar a investidores não qualificados, o gestor deve: a. Incluir a sua denominação social (cf. art.

312.º-A, n.º1, a) do CdVM); b. Não dar ênfase a quaisquer benefícios

potenciais de uma actividade de interme-diação ou de um instrumento financeiro em dar igualmente uma indicação correc-ta e clara de quaisquer riscos relevantes (cf. art. 312.º-A, n.º1, b) do CdVM);

c. Ser apresentada de modo a ser compreen-dida pelo destinatário médio e a não ocultar ou subestimar elementos, declara-ções ou avisos importantes (cf. art. 312.º-A, n.º1, c) e d) do CdVM).

iii. Relativamente à comparação de actividades de intermediação financeira e instrumentos financeiros; à indicação e à simulação de resultados registados no passado ou à indica-ção de resultados futuros, cumprir os requi-sitos de qualidade de informação previstos a esse respeito no CdVM (cf. 312.º-A do CdVM).

11- Os arts. 314.º-314.º-D do CdVM contêm deveres relativos a informação que os intermediários devem obter dos seus clientes (“know your customer”), de forma a traçar um perfil de cada cliente e avaliar a adequação dos serviços pretendidos a esse perfil. 12- Directiva n.º 2004/39/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril, alterada pela Directiva 2006/31/CE do Parlamento Europeu e do Conse-lho, de 5 de Abril de 2006 e aplicada pelo Regulamento (CE) n.º 1287/2006 da Comissão, de 10 de Agosto de 2006 e pela Directiva 2006/73/CE da Comissão, de 10 de Agosto de 2006. 13- Neste sentido, RODRIGUES, Sofia Nascimento, A Protecção dos Investidores nos Contratos Sobre Valores Mobiliários, in Jornadas, Sociedades Abertas, Valores Mobiliários e Intermediação Financeira, pp. 156 e ss.

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161 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

iv. Com antecedência suficiente14 à vinculação a qualquer contrato de gestão de carteiras, revelar: a. Ao investidor não qualificado, o conteú-

do do contrato em causa (cf. art. 312.º-B, n.º1, a) do CdVM);

b. Tratando-se de investidor qualificado, informá-lo de que as contas que conte-nham instrumentos financeiros estão, ou podem vir a estar, sujeitas a lei estrangei-ra (indicando os direitos do cliente que possam ser afectados) e a existência e conteúdo dos direitos que um terceiro tenha ou possa vir a ter relativamente aos instrumentos financeiros ou dinheiro des-se cliente (cf. art. 312.º-B, n.º3 e art. 312.º-F, n.º2 do CdVM).

v. Com antecedência suficiente, notificar o cliente de alterações significativas na infor-mação prestada relativa ao intermediário financeiro e serviços por si prestados, à ges-tão da carteira, aos instrumentos financeiros em causa à protecção do património do cliente e aos custos (cf. art. 312.º-B, n.º4 do CdVM).

vi. No que toca a informação sobre si próprio e os serviços por si prestados, informar os investidores não qualificados sobre (cf. art. 312.º-C do CdVM e art. 23.º do Regulamento da CMVM n.º 2/2007): a. A sua denominação, natureza, endereço e

elementos de contacto necessários para que o cliente possa comunicar efectiva-mente consigo;

b. Os idiomas em que o cliente pode comu-nicar consigo e receber documentos e outra informação;

c. Os canais de comunicação a utilizar entre ambos;

d. Declaração que ateste que está autorizado para prestar a actividade de gestão de carteiras, indicação da data de autoriza-ção, referindo a autoridade de supervisão que a concedeu e o respectivo endereço de contacto;

e. Sempre que actue através de agente vin-culado, uma declaração nesse sentido, especificando o Estado membro da União Europeia em que o agente consta de lista-gem pública;

f. A natureza, a frequência e a periodicida-de dos relatórios sobre o desempenho do serviço a prestar ao cliente;

g. Caso detenha instrumentos financeiros ou dinheiro dos clientes, uma descrição sumária das medidas tomadas para asse-gurar a sua protecção;

h. Descrição, ainda que sintética, da política em matéria de conflitos de interesses seguida, de acordo com o artigo 309.º-A e, se o cliente o solicitar, informação adi-cional sobre essa política;

i. Existência e modo de funcionamento do serviço destinado a receber e a analisar as reclamações dos investidores, bem como indicação da possibilidade de reclamação junto da autoridade de supervisão;

j. A natureza, os riscos gerais e específicos, designadamente de liquidez, de crédito ou de mercado, e as implicações subja-centes ao serviço de gestão de carteiras, cujo conhecimento seja necessário para a tomada de decisão do investidor, tendo em conta o conhecimento e a experiência manifestadas, entregando-lhe um docu-mento que reflicta essas informações;

k. O facto de a prestação de serviços de investimento disponibilizados se encon-trar registada na CMVM;

GESTÃO DE CARTEIRAS - DEVERES DE INFORMAÇÃO : 161

14- Nos termos do art. 312.º-B, n.º2, o intermediário financeiro pode prestar esta informação imediatamente após o início da prestação do serviço se: i. A pedido do cliente, o contrato tiver sido celebrado utilizando meio de comunicação à distância; ou ii. Prestar a informação exigida pelo art. 15.º do Decreto-Lei n.º 95/2006, de 29 de Maio (regime jurídico aplicável aos contratos à distância relativos a

serviços financeiros celebrados com consumidores), como se o investidor fosse um consumidor e o intermediário financeiro um “prestador de ser-viços financeiros”.

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l. Os riscos de solicitações indevidas de elementos de identificação, as quais devem ser prestados exclusivamente atra-vés dos meios de comunicação expressa-mente convencionados entre as partes;

m. Caso partilhe o sítio na internet com outras entidades tem de resultar evidente a distinção relativamente aos serviços efectivamente prestados por cada uma delas.

vii.Quando o cliente for um investidor qualifi-cado, a informação referida em vi) (supra) só será prestada se este assim solicitar, devendo o intermediário financeiro informá-lo expressamente desse direito (cf. art. 312.º-C, n.º2).

viii.A respeito da gestão da carteira do cliente que seja um investidor não qualificado, informar sobre (cf. art. 312.º-D do CdVM e art. 26.º, n.º1 do Regulamento da CMVM n.º 2/2007): a. O método e a frequência de avaliação dos

instrumentos financeiros da carteira; b. Qualquer subcontratação da gestão dis-

cricionária da totalidade, ou de uma par-te, dos instrumentos financeiros ou do dinheiro da carteira;

c. A especificação do valor de referência face ao qual são comparados os resulta-dos da carteira ou de outro método de avaliação que seja adoptado;

d. Os tipos de instrumentos financeiros sus-ceptíveis de serem incluídos na carteira e os tipos de operações susceptíveis de serem realizadas sobre esses instrumen-tos financeiros, incluindo eventuais limi-tes;

e. Os objectivos de gestão, o nível de risco reflectido no exercício de discricionarie-dade do gestor e quaisquer limitações específicas dessa discricionariedade;

f. Para permitir a avaliação pelo cliente do desempenho da carteira, deve o gestor estabelecer um método adequado de ava-liação, designadamente através da fixa-ção de um valor de referência, baseando-se nos objectivos de investimento do cliente e nos tipos de instrumentos finan-ceiros incluídos na carteira;

g. O momento a partir do qual se considera celebrado o contrato para efeitos de iní-cio da prestação do serviço.

ix. No que toca aos instrumentos financeiros (cf. art. 312.º-E do CdVM):

a. Informar os investidores da natureza e

dos riscos dos instrumentos financeiros, explicitando, com um grau suficiente de pormenorização, a natureza e os riscos do tipo de instrumento financeiro em causa.

b. A descrição dos riscos deve incluir: • Os riscos associados ao instrumento

financeiro, incluindo uma explicação do impacto do efeito de alavancagem e do risco de perda da totalidade do investimento;

• A volatilidade do preço do instrumen-to financeiro e as eventuais limitações existentes no mercado em que o mes-mo é negociado;

• O facto de o investidor poder assumir, em resultado de operações sobre o instrumento financeiro, compromissos financeiros e outras obrigações adicio-nais, além do custo de aquisição do mesmo;

• Quaisquer requisitos em matéria de margens ou obrigações análogas, apli-cáveis aos instrumentos financeiros desse tipo.

x. Acerca da protecção do património de clien-tes que sejam investidores não qualificados, informar sobre (cf. art. 312.º-F do CdVM):

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a. A possibilidade de os instrumentos finan-ceiros ou o dinheiro poderem vir a ser detidos por um terceiro em nome do ges-tor e a responsabilidade assumida por este, por força do direito aplicável relati-vamente a quaisquer actos ou omissões do terceiro, e as consequências para o cliente da insolvência do terceiro;

b. A possibilidade de os instrumentos finan-ceiros poderem vir a ser detidos por um terceiro numa conta global, caso tal seja permitido pelo direito aplicável, apresen-tando um aviso bem visível sobre os ris-cos daí resultantes;

c. A impossibilidade, por força do direito aplicável, de identificar separadamente os instrumentos financeiros dos clientes, detidos por um terceiro, face aos instru-mentos financeiros propriedade desse terceiro ou do gestor, apresentando um aviso bem visível dos riscos daí resultan-tes;

d. O facto de as contas que contenham ins-trumentos financeiros ou dinheiro do cliente estarem, ou poderem vir a estar, sujeitas a lei estrangeira, indicando que os direitos do cliente podem ser afecta-dos;

e. A existência e o conteúdo de direitos decorrentes de garantias que um terceiro tenha, ou possa vir a ter, relativamente aos instrumentos financeiros ou ao dinheiro do cliente ou de direitos de com-pensação que tenha face a esses instru-mentos financeiros ou dinheiro.

xi. Tratando-se de investidores qualificados, o gestor apenas tem de prestar, a este respeito, a informação mencionada nas alíneas d) e e) supra.

xii.No que respeita a custos, o gestor deve informar15 sobre (cf. art. 312.º-G do CdVM e 23.º do Regulamento da CMVM n.º 2/2007): a. O preço total a pagar pelo investidor rela-

tivamente ao instrumento financeiro ou à actividade de gestão de carteiras, incluin-do todas as remunerações, comissões discriminadas, encargos e despesas cone-xos e todos os impostos a pagar através do gestor ou, caso não possa ser indicado um preço exacto, a base de cálculo do preço total, de modo que o investidor o possa verificar16;

b. A indicação da moeda envolvida e das taxas e custos de conversão cambial apli-cáveis, sempre que qualquer parte do pre-ço total deva ser paga ou represente um montante em moeda estrangeira;

c. Comunicação da cobrança ao cliente de outros custos, incluindo impostos relacio-nados com operações referentes ao ins-trumento financeiro ou à actividade de intermediação financeira, que não sejam pagos através do gestor;

d. Modalidades de pagamento ou outras eventuais formalidades.

2.2 – Deveres de informação na vigência do contrato No que toca aos deveres a prestar na vigência do contrato de gestão de carteiras, compreen-dem-se: i. Um conjunto de deveres que devem

igualmente ser prestados antes da celebração de qualquer contrato de gestão de carteiras (deveres a cumprir antes e durante a vigência do contrato);

ii. Um conjunto de deveres que se aplicam

GESTÃO DE CARTEIRAS - DEVERES DE INFORMAÇÃO : 163

15- Nos termos do art. 312.º-G do CdVM esta informação deve ser divulgada, de forma bem visível, em todos os canais de contacto com o público e deve ser entregue ao investidor no momento da abertura da conta e sempre que no mesmo se introduzam alterações desfavoráveis a este, antes destas entrarem em vigor. 16- De acordo com o art. 23.º do Regulamento da CMVM n.º 2/2007, a informação das remunerações devidas pela prestação do serviço deve ser indicada na página relativa à prestação do serviço e incluir as remunerações subjacentes ao serviço de registo e depósito de instrumentos financeiros, quando o gestor também preste esse serviço ao cliente.

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164 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

exclusivamente à fase da vigência do contrato de gestão de carteiras.

No primeiro conjunto de deveres compreendem-se os que respeitam: i. À qualidade da informação (cf. pontos ii) e

iii) supra); ii. Especificamente com a gestão da carteira do

cliente (cf. ponto viii) supra); iii. Aos instrumentos financeiros em causa (cf.

ponto ix) supra); iv. À protecção do património do cliente (cf.

pontos x) e xi) supra); e v. Aos custos (cf. ponto xii) supra). No segundo grupo, a cumprir exclusivamente durante a vigência do contrato de gestão de car-teiras, compreendem-se os deveres de17: i. E n v i o d e e x t r a c t o p e r i ó d i c o 1 8

(semestralmente aos investidores não quali-ficados, ou trimestralmente, se tal for pedido pelo cliente, ou ainda mensalmente sempre que o cliente tenha autorizado a realização de operações com recurso a empréstimos), por escrito sobre as actividades de gestão de carteiras realizadas por conta do cliente (cf. art. 323.º-A do CdVM);

ii. Caso o gestor realize operações de gestão de carteiras ou opere contas de clientes que incluam uma posição cujo risco não se encontre coberto: comunicar a investidores não qualificados eventuais perdas que ultra-passem o limite pré-estabelecido, acordado com cada cliente (cf. art. 323.º-B do CdVM);

iii. Envio de extracto periódico19 (mensalmente aos investidores não qualificados e anual-mente aos investidores qualificados) relativo aos bens pertencentes ao património dos clientes (cf. art. 323.º-C do CdVM);

iv. Comunicar diariamente aos investidores não qualificados informações relativas a opera-ções sobre instrumentos financeiros deriva-dos (cf. art. 14.º do Regulamento da CMVM n.º 2/2007);

v. Antes do envio de uma ordem pelo cliente, apresentar informação completa sobre as comissões e outros custos, e montante da operação em causa (cf. art. 27.º do Regula-mento da CMVM n.º 2/2007);

vi. Alertar o cliente, expressamente e de forma clara, para a natureza da ordem transmitida, sempre que não inclua limite de preço ou o preço indicado apresente um desvio de, pelo

17- O art. 28.º, n.º2 do Regulamento da CMVM n.º 2/2007 permite que, por convenção escrita, se estabeleça que o gestor preste as informações a que está adstrito perante os clientes (vg, notas de execução de operações e extractos de conta) por meio electrónico Internet, desde que se salvaguarde a confidencialida-de das mesmas e a possibilidade de serem obtidas por escrito. 18- De acordo com o art. 323.º-A, n.º3, b) do CdVM, no caso de o cliente optar por receber a informação sobre as operações executadas numa base operação a operação, após a execução de cada operação, o gestor deve enviar anualmente ao cliente o extracto relativo às actividades realizadas e, bem assim, prestar imediatamente ao cliente a informação essencial relativa a cada operação, excepto no caso de operações relativas a:

i. Títulos de participação, ii. Warrants autónomos; iii. Direitos destacados de acções, obrigações, títulos de participação e unidades de participação em instituições de investimento colectivo, desde que o

destaque abranja toda a emissão ou série ou esteja previsto no acto de emissão; iv. Instrumentos derivados para a transferência do risco de crédito; v. Contratos diferenciais; vi. Opções, futuros, swaps, contratos a prazo e quaisquer outros contratos derivados relativos aos valores mobiliários mencionados na alínea e) do n.º 1

do art. 2.º do CdVM; vii. Quaisquer outros contratos derivados, nomeadamente os relativos a qualquer dos elementos indicados no art. 39.º do Regulamento (CE) n.º

1287/2006, da Comissão, de 10 de Agosto, que tenham características análogas às de outros instrumentos financeiros derivados, nos termos do art. 38.º do mesmo diploma.

19- O legislador prevê a obrigatoriedade de envio, por parte do gestor de carteiras, de dois extractos periódicos: um relativo às operações realizadas por conta do cliente e outro referente ao património do cliente. Apesar de, como vimos supra, a periodicidade de ambos os extractos ser diferente, nada impede, do nosso ponto de vista, que quando coincida o momento de envio dos dois referidos extractos, o gestor de carteiras os envie conjuntamente num só documento. Razões de economia e de renúncia a excessos de burocracia apontam nesse sentido. De resto, o interesse a tutelar é a efectiva prestação da informação ao cliente.

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menos, 10% face ao último preço efectuado (cf art. 27.º, n.º2 do Regulamento da CMVM n.º 2/2007)20;

vii.Disponibilizar no meio electrónico Internet informação relativa (cf. art. 28.º, n.º1 do Regulamento da CMVM n.º 2/2007): a. Ao estado e conteúdo das ordens envia-

das e ainda não executadas ou revogadas; b. Ao conteúdo das operações realizadas; c. Aos preços, características, riscos espe-

ciais e outras informações sobre os ins-trumentos financeiros, sistemas de nego-ciação bilateral, multilateral e mercados disponibilizados para negociação;

d. Ao estado das contas em dinheiro e ins-trumentos financeiros;

e. A informação quanto à possibilidade de as ordens enviadas pelos clientes poderem ser revogadas ou modificadas.

viii.Quando a prestação do serviço de recepção de ordens para a subscrição ou transacção de instrumentos financeiros através de meio electrónico Internet pressuponha a concessão de crédito, o gestor deve (cf. 28.º, n.º4 do Regulamento da CMVM n.º 2/2007) infor-mar o cliente dos elementos essenciais relati-vos ao contrato de concessão de crédito (cf. art. 32.º, n.º1 do Regulamento da CMVM n.º 2/2007), dos mecanismos implementados para controlo de risco (cf. art. 34.º do Regu-lamento da CMVM n.º 2/2007).

Da exposição do regime legal vigente é possível retirar as seguintes conclusões: i. A informação a prestar pelo gestor de

carteiras ao investidor diz respeito: a. Ao próprio gestor de carteiras e aos

serviços por si prestados; b. Aos instrumentos financeiros, em geral e

aos que em concreto estiverem em causa;

c. Aos riscos genéricos da actividade de investimento em instrumentos financeiros e específicos da actividade de gestão de carteiras;

d. Aos custos, de diversa natureza, a supor-tar pelo investidor;

e. À protecção do património do cliente; f. À gestão da carteira do cliente.

ii. O conteúdo, o prazo e a forma de prestação de informação variam consoante o investidor seja qualificado ou não qualificado;

iii. O legislador prevê dois meios de prestação de informação por parte do gestor de cartei-ras ao investidor: por escrito ou através de meio electrónico (internet).

Através de uma comparação do regime legal vigente com o que vigorava à data da prática dos factos analisados pela sentença que agora se anota, facilmente se conclui que aumentou o leque de deveres de informação a cumprir pelo gestor de carteiras.21 Por outro lado, o legislador distingue agora cla-ramente os deveres de informação, consoante o destinatário seja um investidor qualificado ou não qualificado, sendo – naturalmente – o grau de exigência maior perante os últimos. Paralelamente, impõem-se agora aos interme-diários deveres de recolha de informação acerca dos clientes (“know your customer”). Assim, foi clara a marca da evolução do direito comunitário no quadro legislativo nacional, espelhando o Código dos Valores Mobiliários a atenção crescente dada à matéria de prestação de informação aos investidores, sobretudo em consequência das iniciativas de âmbito comunitário22.

GESTÃO DE CARTEIRAS - DEVERES DE INFORMAÇÃO : 165

20- O gestor e o cliente podem convencionar, por escrito, que não seja prestado este alerta (cf. art. 27.º, n.º3 do Regulamento da CMVM n.º 2/2007).

21- KOH, Peter, There’s no hiding from Mifid, in Euromoney, - London: Euromoney Institutional Investor plc., Setembro 2005, refere: “Mifid promises to shake up EU financial markets in a way that will make Big Bang look like a gente nudge.”

22- A este respeito, ver YUBERO, María José Gómez, Educación financiera. De la información al conocimiento y la toma informada de decisiones financieras, in Boletín de la CNMV. - Madrid: Comisión Nacional del Mercado de Valores – CNMV, trimestre II, 2008, pp. 71-87.

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Todavia, não obstante o claro desenvolvimento e aprofundamento dos deveres de prestação de informação, há que constatar que o quadro lógi-co essencial inerente às opções legislativas se mantém. Com efeito, a actividade de intermediação financeira em geral, sendo caracterizada pela já referida dissociação subjectiva23 (de um lado o investidor, detentor de capital e assumindo os riscos inerentes ao investimento e de outro lado um intermediário financeiro, que detém o poder de facto24, 25), acaba por reflectir um desequilí-brio entre o investidor e o intermediário finan-ceiro. Assim, o papel do legislador nesta matéria é essencialmente o de introduzir algum equilíbrio no seio de uma relação à partida desequilibrada. Neste contexto, a informação assume um papel da maior relevância. Assim, os deveres de prestação de informação a

cargo do intermediário financeiro perante os seus clientes é uma das formas de reequilibrar juridicamente uma relação que é, de facto, dese-quilibrada. Se assim é relativamente à intermediação finan-ceira em geral, sê-lo-á com maior relevo ainda a respeito da actividade de gestão de carteiras em que o intermediário financeiro tem não só o referido poder de facto como também um poder juridicamente reconhecido de tomar decisões de investimento por conta do seu cliente (vide art. 335.º, n.º1 do CdVM)26. Daí que se justifique que o leque de deveres de informação seja mais amplo a propósito da acti-vidade de gestão de carteiras do que relativa-mente a qualquer outra actividade de interme-diação financeira.27 É este o contexto de base, que advém da essên-cia da actividade em causa e permanece, por-tanto, não obstante as alterações legislativas que tenham ou possam vir a ter lugar.

23- Neste sentido, BLANCO, Jose Enrique Cachon, Derecho del Mercado de Valores, Tomo II, pp. 417 e ss.

24- Que pode ser ilustrado pela necessidade de intervenção do intermediário financeiro para a realização de operações sobre valores mobiliários. Com efeito, ainda que não exista uma exigência legal de intermediação financeira obrigatória (cf. arts. 206.º e 290.º a 293.º), facto é que, para que um investidor possa aceder às formas mais líquidas, transparentes e céleres de negociação (internalização sistemática, mercados regulamentados ou sistemas de negociação multilateral), tem de o fazer por recurso a um intermediário financeiro, sob pena de os custos económicos se tornarem insuportáveis. De resto, a realização de operações sobre valores mobiliários, em nome e por conta própria, por parte de um investidor não qualificado, fora das supra referi-das formas de negociação, torna-se pouco viável por adoptar um método de negociação com maiores custos e menor liquidez e em que a procura é naturalmen-te mais reduzida comparativamente aos valores mobiliários negociados nas referidas formas de negociação.

25- Neste sentido, BLANCO, Jose Enrique Cachon, op. cit., p. 411, refere que “los inversores particulares (sean pequeños o grandes) carecen de los medios necesarios para actuar correctamente en el mercado de valores: la pluralidad de mercados, los nuevos activos, nuevas operaciones, la aparición de complejas técnicas de análisis y gestión complican la operatoria de los mercados de valores.”

26- Cf. HERMIDA, Alberto Javier Tapia, El contrato de Gestión de Carteras de Inversión, pp. 207e ss. “La calificación contractual del gestor partirá del hecho básico de la ajenidad del interés gestionado, aun cuando su posición, sujeta sin duda a limitaciones, va mas allá de la de un simple subordinado del inversor sin llegar a gozar de una absoluta independencia en su actuación. Por otra parte, el gestor de carteras no es un mero realizador de actos de administración porque se ocupa de la gestión de una cartera de inversión y esta finalidad le autoriza con frecuencia para realizar actos de administración y de disposición. El gestor pertenece a una serie de “supuestos de administradores que realizan con frecuencia, como algo propio de su estatuto normal, actos de disposición”.”

27- HERMIDA, Alberto Javier Tapia, op. cit., refere, a propósito do dever de prestação de informação, que “el fundamento de esta obligación se encuentra en una serie de factores de especial relevancia en el contrato de gestión de carteras de inversión que podemos agrupar genéricamente en dos grandes categorías: 1.ª Factores objetivos. – La información viene exigida por el principio de ajenidad de la actividad gestora y por el deber de ejecutar el mandato con la diligencia exigible.”

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30ª EDIÇÃO DOS CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

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