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CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS ENSAIOS DE HOMENAGEM A AMADEU FERREIRA VOLUME II

CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS ENSAIOS … · relativa à divulgação das recomendações de in-vestimento. Em 2007, após a entrada em vigor na maioria dos Estados

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CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

ENSAIOS DE HOMENAGEM A AMADEU FERREIRA

VOLUME II

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ÍNDICE

EDITORIAL 7

ARTIGOS:

A REVISÃO DAS DIRETIVAS DO ABUSO DE MERCADO: NOVO ÂMBITO, O MESMO REGIME 11Helena Bolina

O REGIME EUROPEU DO SHORT SELLING 29Manuel Monteiro

A DISCRICIONARIEDADE EMPRESARIAL, A BUSINESS JUDGMENT RULE E A CELEBRAÇÃO DE CONTRATOS DE SWAP (E OUTROS DERIVADOS) 57José Ferreira Gomes

A INDEPENDÊNCIA DA CMVM NO CONTEXTO DA ADSTRIÇÃO ADMINISTRATIVA E DA REGULAÇÃO FINANCEIRA EM REDE 99Gonçalo Castilho Santos

CONTRIBUTO PARA O DEBATE SOBRE O(S) REGIME(S) JURÍDICO(S) APLICÁVEL(EIS) AQUANDO E APÓS A MEDIDA DE RESOLUÇÃO APLICADA AO BES 119Maria Luísa Azevedo

THE INFORMATION CONTENT OF BANKING STRESS TESTS RESULTS 127Carlos Alves, Victor Mendes e Paulo Silva

A PROIBIÇÃO DE REFORMATIO IN PEIUS E O PROCESSO DE CONTRAORDENAÇÃO 137Frederico de Lacerda da Costa Pinto

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E D I T O R I A L

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EDITORIAL

Num pequeno texto que escrevi para um livro biográfico sobre Amadeu Ferreira, disse que “A vida do Amadeu, quase já se confunde com a da CMVM que ele abraçou desde o seu nasci-mento há 23 anos (…)”. O que sendo bem ver-dade para estas mais de duas décadas, não faz jus, todavia, à riqueza da sua vida anterior, como essa obra bem o atesta. Mas foi na CMVM que conheci bem as qualidades humanas e profissio-nais de Amadeu Ferreira. Tínhamos em comum muitos dos valores que prezo na minha vida pro-fissional e o gosto pelo debate de ideias e pontos de vista, inclusive do foro jurídico, a ponto de, com a sua graça natural, me ter honrado com a distinção de “jurista honorário”.

No mesmo texto referi que o Amadeu deu um contributo essencial para tornar a CMVM a ins-tituição prestigiada que é. Esta casa, que tive a honra de servir durante dez anos, tem uma dí-vida de gratidão para com Amadeu Ferreira que nenhuma homenagem que lhe façamos poderá pagar. Aliás, nunca foi homem de pretender home nagens ou agradecimentos. Mesmo no triste momento da sua morte, não quis cerimó-nias fúne bres para além da passagem dos seus amigos pela “sua” Casa de Trás-os-Montes”. Por isso, achámos que a melhor homenagem que lhe poderíamos fazer seria a de dar mais um contri-buto para o conhecimento científico na área dos Valores Mobiliários, que ele tanto acarinhou. E contámos para isso com o saber e a genero-sidade de alguns dos nossos melhores especia-listas que conheceram bem o Amadeu e que se disponibilizaram para, num prazo curto, escrever textos académicos para um número especial dos “Cadernos de Valores Mobiliários, que a CMVM publica regularmente. Os textos que agora publi-

camos, para além da sua qualidade intrínseca, abordam temas da maior actualidade e de grande interesse para a actividade da CMVM que, no passado recente, se viu a braços com algumas questões bem difíceis de aplicação da lei que, por muita qualidade que tenha, não é perfeita e nem sempre é clara. Para além de que a evolução rápida dos mercados financeiros e a sofisticação dos seus agentes tornam as leis respectivas fre-quentemente desactualizadas ou incompletas. Por isso, esta edição especial dos “Cadernos” tem também uma finalidade útil, como tanto se-ria do agrado do Amadeu.

Mas nesta singela homenagem, não poderíamos esquecer o contributo que os colaboradores da CMVM têm dado para o saber no domínio dos Valores Mobiliários e para a aplicação da lei com inegável competência e sucesso. E, por isso, estes “Cadernos” especiais têm dois volumes, sendo o segundo integrado por textos de alguns dos nossos excelentes especialistas, na mesma lógica de qualidade, de actualidade e de interesse dos temas tratados.

Quero, assim, agradecer reconhecidamente aos autores dos trabalhos que agora publicamos a possibilidade que deram ao Conselho de Admi-nistração da CMVM de prestar a Amadeu Fer-reira uma homenagem através daquilo de que ele mais gostava, para além do seu “Mirandês”: o estudo dos valores mobiliários. A todos os que contribuíram, bem hajam. Bem-haja também o Amadeu pelo que nos deu e ensinou.

CARLOS TAVARES

Presidente do Conselho de Administração da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários

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ARTIGOS

* A REVISÃO DAS DIRETIVAS DO ABUSO DE MERCADO: NOVO ÂMBITO, O MESMO REGIME

* O REGIME EUROPEU DO SHORT SELLING

* A DISCRICIONARIEDADE EMPRESARIAL, A BUSINESS JUDGMENT RULE E A CELEBRAÇÃO DE CONTRATOS DE SWAP (E OUTROS DERIVADOS)

* A INDEPENDÊNCIA DA CMVM NO CONTEXTO DA ADSTRIÇÃO ADMINISTRATIVA E DA REGULAÇÃO

FINANCEIRA EM REDE

* CONTRIBUTO PARA O DEBATE SOBRE O(S) REGIME(S) JURÍDICO(S) APLICÁVEL(EIS) AQUANDO E APÓS A MEDIDA

DE RESOLUÇÃO APLICADA AO BES

* THE INFORMATION CONTENT OF BANKING STRESS TESTS RESULTS

* A PROIBIÇÃO DE REFORMATIO IN PEIUS E O PROCESSO DE CONTRAORDENAÇÃO

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A REVISÃO DAS DIRETIVAS DO ABUSO DE MERCADO: NOVO ÂMBITO, O MESMO REGIME

HELENA MAGALHÃES BOLINA*

Dedicado a Amadeu Ferreira

que tenemos siempre persente na mimória

INTRODUÇÃO

Em 16 de abril de 2014 foi publicado o regu-lamento (UE) n.º 596/2014 (adiante MAR1) e a diretiva (do Parlamento e do Conselho) 2014/57/UE (adiante nova MAD2) que vieram substituir a anterior diretiva sobre abuso de mercado (adian-te MAD) e respetivos diplomas comunitários de concretização.

A publicação destes dois novos diplomas traduz a conclusão de um processo de avaliação do re-gime comunitário sobre abuso de mercado que teve início em 2007, pouco tempo após a sua transposição pelos Estados membros.

O presente texto tem como objetivo relatar as principais questões sobre que incidiu esse debate

e enunciar as alterações introduzidas pelo novo regime comunitário que entrarão em vigor em 2016.3

I. A HISTÓRIA DO REGIME COMUNITÁRIO DO ABUSO DE MERCADO

O pacote comunitário sobre abuso de mercado, agora revisto, data de 2003 e é constituído por um diploma de nível 1 – a diretiva 2003/06/CE (MAD) – e quatro diplomas de nível 2: três dire-tivas e um regulamento.4

A publicação, em 2003 e 2004, deste conjunto de diplomas comunitários sobre este tema inseriu--se no âmbito do objetivo de criação do mercado financeiro único. À data (maio de 2001) em que a Comissão Europeia apresentou uma proposta de

*- Jurista, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.As opiniões expressas neste texto são as do autor, e não necessariamente as da CMVM.

1- Sigla de Market Abuse Regulation.

2- Sigla de Market Abuse Directive, expressão pela qual é comumente designada a diretiva sobre abuso de mercado de janeiro de 2003. A distinção no presente texto da diretiva de 2014 relativamente à de 2003 é efetuada, utilizando-se para a diretiva de 2014 a expressão «nova MAD». Esta opção assenta exclusivamente na facilidade de identificação dos diplomas, uma vez que, em rigor, o diploma que verdadeiramente veio substituir a MAD foi o MAR, o regulamento comunitário de 2014 e não a nova MAD, cujo âmbito se limita ao enquadramento criminal das condutas.

3- Após transposição das normas relativas à definição das sanções aplicáveis aos ilícitos no âmbito destes diplomas. Na ver-dade, tratando-se embora de um Regulamento comunitário (e, por conseguinte, não carecendo de transposição), para que o MAR seja verdadeiramente vigente, os Estados membros têm de elaborar as normas que preveem as sanções, uma vez que estas não estão definidas no Regulamento. Do MAR apenas consta a indicação de montantes mínimos de sanções pecuniá-rias que os Estados membros devem respeitar nessa definição das sanções. Assim, muito embora não haja lugar a produção legislativa nacional quanto à definição dos comportamentos ilícitos, pois esta já consta do MAR, tal definição não terá efeito enquanto as sanções não forem definidas pelos Estado membros, o que deverá ter lugar, de acordo com o disposto no artigo 39.º do Regulamento comunitário, até 3 de julho de 2016.

4- Diretivas da Comissão 2003/124/CE, 2003/125/CE e regulamento da Comissão (CE) 2273/2003, todos de 22 de dezembro e diretiva 2004/72/CE, de 29 de abril, também da Comissão.

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diretiva sobre o abuso de mercado,5 não existia um regime europeu harmonizado sobre manipu-lação de mercado, uma vez que o único diploma comunitário vigente nesta matéria era a diretiva 89/592/CE que tinha exclusivamente como âm-bito o abuso de informação privilegiada.

Foi o objetivo de estabelecer um level playing

field ao nível europeu também quanto à preven-ção da manipulação de mercado que esteve na origem da criação deste regime,6 para além de preocupações de reforço da supervisão desta ma-téria e da repressão dos respetivos ilícitos.

A designação abuso de mercado abrange, assim, o conjunto de normas destinadas a proteger a transparência e a regularidade do funciona mento do mercado e contempla os seguintes temas: abuso de informação privilegiada, manipulação de mercado, deveres de informação ao público e às entidades de supervisão, deveres de elabora-ção de listas de insiders e regulação da matéria relativa à divulgação das recomendações de in-vestimento.

Em 2007, após a entrada em vigor na maioria dos Estados membros dos diplomas de transpo-sição das diretivas, a Comissão Europeia solici-tou a um grupo de peritos – o ESME, European Securities Markets Expert Group7 – que emitisse um parecer sobre a MAD que foi concluído em julho de 20078 e onde são já enunciadas algu-mas dúvidas quanto a certos aspetos do regime, designadamente no que respeita à definição de informação privilegiada e aos critérios do diferi-mento de divulgação da informação.

Em novembro de 2007, o CESR9 elaborou, a pedido da Comissão, uma lista das sanções na área do abuso de mercado em todos os Estados membros,10 de onde resultava alguma dispari-dade ao nível das sanções definidas: as sanções pecuniá rias previstas nas várias legislações nacionais osci lavam entre um máximo de 1200 euros e sanções pecuniárias ilimitadas e, no caso dos países em que o abuso de informação e a manipulação de mercado eram criminalizadas, entre o máximo de um ano de pena de prisão e um máximo de 15 anos.11

5- http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52001PC0281&from=EN (acedido em 24.06.2015).

6- Mais desenvolvidamente sobre as características do pacote comunitário sobre abuso de mercado de 2003-2004, Helena BOLINA, «Market manipulation and Insider Dealing in the new Market Abuse Directive (2003/6/EC)», in EUREDIA (Revue Européenne de Droit Bancaire et Financier), 2001-2002/4, pp. 555-576 e «A manipulação de mercado e o abuso de infor-mação privilegiada na nova directiva sobre abuso de mercado (2003/6/CE)», Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários n.º 18 (agosto de 2004), pp. 62-71.

7- «Grupo Europeu de Peritos de Valores Mobiliários para prestar aconselhamento jurídico e económico no âmbito da apli-cação das directivas da UE em matéria de valores mobiliários» criado por decisão da Comissão de 30 de Março de 2006 (2006/288/CE). O grupo – que se manteve em funções até 2009 – era constituído por 20 membros, a maioria dos quais eram representantes de intermediários financeiros europeus. A composição do grupo está disponível em:http://ec.europa.eu/internal_market/securities/docs/esme/list_experts_en.pdf(acedido em 24.06.2015).

8- http://ec.europa.eu/internal_market/securities/docs/esme/mad_070706_en.pdf (acedido em 24.06.2015).

9- Committee of European Securities Regulators (Comité das Autoridades de Regulação dos Mercados Europeus de Valo-res Mobiliários) era um comité de natureza consultiva da Comissão Europeia, criado pela Decisão da Comissão Europeia n.º 2001/527/CE, de 06/06, onde estavam representados as autoridades de supervisão do Estado membros. A decisão pode ser consultada em (acedido em 24.06.2015):http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32001D0527&from=PT .

10- http://www.esma.europa.eu/system/files/07_693__2_.pdf (acedido em 24.06.2015).

11- Para uma comparação mais detalhada das sanções existentes à data nos vários países, veja-se o sumário executivo e as estatísticas realizadas pelo CESR no documento CESR/08-99, de fevereiro de 2008, disponível em http://www.esma.europa.eu/system/files/08_099.pdf (acedido em 24.06.2015).

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A REVISÃO DAS DIRETIVAS DO ABUSO DE MERCADO: NOVO ÂMBITO, O MESMO REGIME : 13

Finalmente em novembro de 2008, a Comissão Europeia organizou uma conferência subordina-da ao tema «Reviewing Market Abuse Regime» onde estiveram presentes participantes do mer-cado, supervisores e investidores, para debater o regime, a aplicação das diretivas e a necessidade da sua revisão.12

Na sequência destes contactos e das respostas que a Comissão Europeia foi recebendo sobre a matéria, em abril de 2009, a Comissão Europeia divulgou uma call for evidence13 sobre a eventual revisão das diretivas do abuso de mercado enun-ciando as questões que tinham sido debatidas ao longo do processo e que a Comissão incluiu nesse inquérito destinado a delimitar a necessi-dade e o âmbito de uma eventual revisão.14

As principais questões identificadas nesse pro-cesso como carecendo de revisão incidiam essen-cialmente sobre os seguintes temas: o âmbito de aplicação das diretivas, a definição de informa-ção privilegiada e de manipulação de mercado e a questão do reforço da supervisão.15

A Comissão Europeia apresentou a primeira pro-posta de Regulamento16 e de nova Diretiva17 so-

bre abuso de mercado em outubro de 2011. Em julho de 2012 a Comissão apresentou propostas alteradas18 e, finalmente, em abril de 2014 foram publicados ambos os diplomas.

A revisão incidiu sobre os temas identificados nas consultas e no debate prévio. Todavia, como se verá, nos pontos seguintes, muitas das altera-ções inicialmente propostas para dar resposta a essas questões acabaram por ser revertidas e, em relação a muitos aspetos, o texto final do Regu-lamento é exatamente idêntico àquele que cons-tava da MAD de 2003.

II. OS TEMAS DA REVISÃO

1. O âmbito de aplicação do regime comuni-tário sobre Abuso de Mercado

O âmbito de aplicação das diretivas do abuso de mercado de 2003-2004 encontra-se definido no artigo 9.º da MAD. Em função do objetivo ex-presso na diretiva de defesa da integridade dos mercados regulamentados, a definição desse âmbito fazia-se essencialmente em função dos instrumentos financeiros admitidos à negociação em mercado regulamentado.19 É o que resulta dos artigos 1.º, n.º 3 e 9.º da MAD.

12- A conferência teve lugar em Bruxelas em 12 de novembro de 2008 e o resumo das intervenções pode ser consultado em http://www.eurocapitalmarkets.org/system/files/Report_MAD%20Conference.pdf (acedido em 24.06.2015).

13- O conteúdo da consulta, a descrição do processo e as respostas recebidas pode ser acedido em http://ec.europa.eu/inter-nal_market/consultations/2009/market_abuse_en.htm (acedido em 24.06.2015).

14- Não obstante, a afirmação inicial constante do documento, no sentido de que este não constitui qualquer tomada de posi-ção sobre o conteúdo de eventuais futuras propostas da Comissão, o documento adianta a posição da Comissão Europeia quanto aos aspetos que carecem de revisão.

15- Esta questão do reforço da supervisão foi tratada transversalmente em relação a todos os diplomas comunitários recentes na área do mercado financeiro, não sendo específica do novo regime do abuso de mercado.

16- Disponível em http://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX:52011PC0651 (acedido em 24.06.2015).

17- Disponível em http://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX:52011PC0654 (acedido em 24.06.2015).

18- Disponíveis em http://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX:52012PC0421 e http://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX:52012PC0420 (acedido em 24.06.2015).

19- É certo que a MAD era um diretiva de harmonização mínima, o que significa que os Estados membros poderiam alargar o respetivo âmbito de aplicação. É esse o caso da definição dos crimes de abuso de informação e de manipulação de mercado no Código dos Valores Mobiliários, da qual não consta qualquer condição relativa à admissão à negociação a mercado regula-mentado dos valores mobiliários em causa nessas normas. Tais crimes já se encontravam definidos com esse âmbito antes da transposição da MAD. Todavia, as demais normas incluídas no âmbito da prevenção do abuso de mercado, como é o caso do

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Ainda assim, existia uma diferença entre, por um lado, o âmbito de aplicação do abuso de informa-ção e o da manipulação de mercado.

Com efeito, no que respeita ao abuso de infor-mação, o artigo 9.º da MAD referia instrumentos financeiros admitidos à negociação em mercado regulamentado, em relação aos quais se detenha informação privilegiada mas também outros ins-trumentos financeiros não admitidos mas cujo valor depende do valor de instrumentos financei-ros admitidos a mercado regulamentado – artigo, 9.º, §2.º.

O mesmo não sucede relativamente à manipula-ção de mercado a que é feita referência apenas no §1 e não no §2, ou seja, apenas a parte em que o artigo refere instrumentos financeiros admiti-dos à negociação em mercado regulamentado.

Quer no caso do abuso de informação, quer no caso da manipulação de mercado o âmbito de aplicação da diretiva abrange quaisquer opera-ções realizadas sobre instrumentos admitidos à negociação em mercado regulamentado, inde-pendentemente de onde tais operações se reali-zem. Ou seja, as operações sobre os instrumen-tos financeiros não têm de ser realizadas em mer-cado regulamentado.

Atendendo à redação do artigo 9.º, no caso da manipulação de mercado suscitava-se a dúvida sobre se estariam abrangidas no âmbito da mani-pulação de mercado operações que incidiam sobre instrumentos financeiros não admitidos à negociação em mercado regulamentado.

Assim, a questão acerca do âmbito de aplicação do regime do abuso de mercado contempla, na verdade, dois aspetos distintos:

Um, relativo ao mercado ou sistema onde os instrumentos financeiros devem ser negociados para estarem abrangidos pelo âmbito da diretiva e pela aplicação de todos os deveres nela pre-vistos.

Outro, relativo ao facto de as proibições de abuso de informação e manipulação de mercado pode-rem ser preenchidas através de operações sobre quaisquer instrumentos financeiros, ainda que não sejam negociados em qualquer mercado mas apenas fora dele, como é o caso de alguns deri-vados, desde que entre estes e os instrumentos financeiros abrangidos exista uma relação de in-fluência.

a) Alargamento do âmbito a MTF e OTF

Quanto ao primeiro aspeto apontado, a restrição do âmbito de aplicação das diretivas aos ins-trumentos admitidos a mercado regulamentado foi uma das principais dificuldades apontadas às diretivas, tendo a vista a necessidade de um sis-tema eficaz de tutela do regular funcionamento do mercado.

Com efeito, conforme se enuncia na call for evi-

dence20, desde a publicação da MAD registou-se um aumento dos volumes transacionados fora de mercado regulamentado (market shift), de-signadamente em MTFs21 após a DMIF, sendo que estes não estão abrangidos pelos requisitos da MAD.

Cumpre, todavia, precisar o que significa o facto de os MTFs não estarem abrangidos no âmbito da MAD, uma vez que tal afirmação não é intei-ramente rigorosa.

Na verdade, os MTF só não estão abrangidos pela proibição de transações da MAD relativa-

dever de divulgação de informação privilegiada previsto no artigo 248.º do CódVM, já restringem a sua aplicação aos valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado.

20- Cit., p.4.

21- Multilateral Trading Facility ou Sistema de Negociação Multilateral, definido no artigo 4.º, n.º 1, ponto 22 da Diretiva 2014/65/EU (nova DMIF) e, entre nós, no artigo 200.º do CódVM.

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A REVISÃO DAS DIRETIVAS DO ABUSO DE MERCADO: NOVO ÂMBITO, O MESMO REGIME : 15

mente aos instrumentos financeiros que não es-tejam também admitidos à negociação em mer-cado regulamentado. Ou seja, as operações sobre instrumentos financeiros admitidos a mercado regulamentado e que sejam simultaneamente negociados num MTF estão sempre abrangidas no âmbito da MAD, nos termos do disposto no artigo 9.º, n.º 1, quer na parte em são realizadas em mercado regulamentado, quer na parte em que sejam realizadas em MTF ou em qualquer outro local.

Em rigor, o que não está abrangido no âmbito da MAD, não é o MTF em si mas os instrumentos financeiros que não estão admitidos à negocia-ção em mercado regulamentado, nem em relação a eles foi solicitada a admissão.

Para além das normas que proíbem o abuso de informação e a manipulação de mercado, há que ter em conta que o regime do abuso de mercado abrange um conjunto de deveres que têm uma função preventiva dessas infrações. É o caso do dever a cargo dos emitentes de divulgação de in-formação privilegiada previsto no artigo 6.º, n.º 1 da MAD e no artigo 248.º do Código do Valores Mobiliários (adiante CódVM), da elaboração de listas de insiders, da comunicação de transações de dirigentes, da comunicação de operações sus-peitas.

Ora, nos termos da MAD, este conjunto de deve-res apenas se aplica a valores mobiliários admi-tidos à negociação em mercado regulamentado. Esse âmbito objetivo de aplicação tem, assim, consequência sobre a delimitação do próprio âmbito subjetivo dos deveres: só os emitentes de valores mobiliários admitidos a mercado regula-mentado e os seus dirigentes ficam abrangidos por estas disposições.

Alargar o âmbito de aplicação do regime do abuso de mercado a instrumentos não admitidos a mer-

cado regulamentado mas admitidos, designada-mente, a MTFs significa estender também esses deveres aos emitentes de instrumentos financei-ros não admitidos a mercado regulamentado e, relativamente à comunicação de transações, aos respetivos dirigentes. Esta circunstância poderia não se revelar muito adequada ou proporcionada a certos segmentos de mercado, sobretudo tendo em conta que a seleção para negociação em MTF independe por vezes da vontade do próprio emi-tente que, por ato alheio, ficaria onerado com o cumprimento de deveres de informação e respe-tivas consequências infracionais em caso de in-cumprimento.

A solução adiantada pelo novo regime europeu pretende alcançar um equilíbrio entre as preocu-pações descritas.

Por um lado, o artigo 2.º do MAR delimita o âmbito de aplicação do regime em função dos instrumentos financeiros admitidos à negociação a mercado regulamentado ou negociados num MTF ou num OTF.22

Por outro lado, a propósito de cada dever pre-ventivo, o MAR acautela aquelas outras preocu-pações, impondo esses deveres quando estejam em causa instrumentos financeiros admitidos à negociação em mercado regulamentado mas acrescentando outras condições para a aplicação desses deveres nos casos de instrumentos finan-ceiros admitidos exclusivamente a MTF ou OTF.

Com efeito, no artigo 17.º, que regula o dever a cargo do emitente de divulgação de informação privilegiada, no artigo 18.º quanto à elaboração de listas de insiders e no artigo 19.º, quanto à comunicação de transações de dirigentes, quanto a emitentes cujos valores mobiliários sejam nego-ciados exclusivamente em MTF ou OTF, o MAR restringe a aplicação dos deveres àqueles ca-sos em que os emitentes tenham aprovado essa

22- Organised Trading Facility ou Sistema de Negociação Organizada definido no artigo 4.º, n.º 1, ponto 23 da Diretiva 2014/65/EU (nova DMIF).

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admissão à negociação num MTF ou num OTF ou a tenham solicitado eles próprios (artigo 17.º MAR, n.º 1, §3, 18.º, n.º 7 e 19.º, n.º 4, alínea b).

O MAR prevê também algumas adaptações no caso de emitentes admitidos à negociação num mercado de PME em crescimento23: o artigo 17.º, n.º 9 do MAR prevê, em relação ao dever de disponibilizar a informação privilegiada no site do emitente, que este possa ser substituído pela divulgação no próprio site da plataforma de negociação e, no artigo 18.º, n.º 6, dispensa estes emitentes da elaboração de listas de insiders, ve-rificadas certas condições.

b) Alargamento do âmbito da manipulação de mercado a instrumentos financeiros negocia-dos fora de mercado (OTC)

A segunda relativa âmbito prende-se com a de-terminação do âmbito de aplicação das proibi-ções.

Com efeito, ainda que os mercados que se visa proteger sejam os mercados regulamentados no caso da MAD, e também os MTFs e OTFs no caso do MAR, a questão que se coloca é a de sa-ber se as infrações de abuso de informação e de manipulação de mercado apenas são concretiza-das quando os agentes transacionem diretamente os instrumentos financeiros abrangidos pelo âm-bito de aplicação.

Como se referiu, a MAD incluía expressamente no âmbito do abuso de informação privilegiada a proibição de transacionar instrumentos financei-ros não negociados em mercado mas cujo valor dependia de instrumentos admitidos a mercado regulamentado.

No artigo 9.º da MAD não se referia expressa-mente que o mesmo fosse aplicado à manipula-ção de mercado, razão pela qual tal veio a ser ex-pressamente consagrado no artigo 2.º do MAR.

Todavia, esta consagração não parece ser mais do que um esclarecimento (útil), uma vez que o âmbito da aplicação das proibições incluídas na manipulação de mercado não era exclusivamente recortado pelo disposto no artigo 9.º da MAD.

Diferentemente do que sucedia com o abuso de informação, em que a MAD, no seu artigo 2.º, reportava a proibição de transações expressa-mente aos instrumentos financeiros em relação aos quais se detinha informação privilegiada (portanto, os negociados em mercado regula-mentado), o âmbito das proibições da manipula-ção não continha essa restrição.

E, por as proibições de manipulação de mercado não conterem essa restrição, não havia necessi-dade de alargar o seu âmbito, como se fazia para o abuso de informação, no n.º 2 do artigo 9.º, que dispunha constituir também abuso de informa-ção as operações sobre instrumentos financeiros não admitidos cujo valor dependia dos admitidos a mercado regulamentado.

No caso do abuso de informação, se não hou-vesse a extensão do artigo 9.º, a proibição não se aplicava às transações de instrumentos finan-ceiros não admitidos porque o artigo 2.º, n.º 1 refere a proibição à transação de instrumentos financeiros a que a informação privilegiada diz respeito. No caso da manipulação, o âmbito defi-nido no artigo 1.º da MAD não estava restringido a transações sobre instrumentos admitidos e, se o âmbito não estava à partida restringido, não ha-via necessidade de o alargar no artigo 9.º, como se fez para o abuso de informação.

Nestes termos, a ausência de referência no §2 do artigo 9.º à manipulação de mercado não significava uma restrição do âmbito da mani-pulação mas apenas uma desnecessidade dessa refe rência.

23- Previsto no artigo 33.º da nova DMIF.

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A REVISÃO DAS DIRETIVAS DO ABUSO DE MERCADO: NOVO ÂMBITO, O MESMO REGIME : 17

Com efeito, o artigo 1.º, n.º 2, da MAD, quando define manipulação de mercado nunca afirma que as operações proibidas são as realizadas so-bre instrumentos financeiros admitidos à nego-ciação em mercado regulamentado mas apenas que são proibidas as operações ou ordens que sejam suscetíveis de originar indicações fal-sas ou enganosas quanto à oferta ou à procura desses instrumentos. Desde que as operações sejam suscetíveis de produzir este efeito sobre instrumentos admitidos à negociação em mer-cado regu lamentado, não há qualquer razão para exigir (uma vez que tal não está na norma) que essas ordens tenham de ser dadas sobre os pró-prios instrumentos admitidos.

Aliás, a manipulação pode, até, ser realizada sem que se adquiram quaisquer instrumentos finan-ceiros, como é o caso da manipulação ruidosa.

Assim sendo, qualquer ordem ou operação, seja sobre que instrumento for (e, até, simplesmente a divulgação de informação na comunicação so-cial) que seja suscetível de produzir esse efeito sobre os instrumentos financeiros admitidos a mercado regulamentado já seria proibida à luz das regras da manipulação de mercado.

O que significa que, mesmo à luz do disposto na MAD, a realização de transações sobre deri-vados não admitidos a mercado regulamen tado apta a produzir indicações enganosas sobre a oferta ou a procura de instrumentos financeiros admitidos (situação hoje expressamente referida no artigo 2.º, n.º 1, alínea d) do MAR) estava incluída no âmbito da previsão de manipulação de mercado do artigo 1.º.

Contudo, as dúvidas que sempre foram suscita-das acerca do âmbito de aplicação das proibições de manipulação de mercado concorrem clara-mente para afirmar a bondade deste esclareci-mento do MAR.

c) Outros alargamentos de âmbito: licenças de emissão, contratos de mercadorias à vista e índices de referência

Para além dos aspetos já enunciados, o MAR, no n.º 1 do seu artigo 2.º, inclui no seu âm bito de aplicação, as licenças de emissão de gases com efeito de estufa, na sequência da sua quali-ficação como instrumentos financeiros pela nova DMIF,24 estabelecendo ao longo do diploma pre-visões específicas para as licenças de emissão quanto à definição de informação privilegiada (7.º), ao abuso de informação (8.º), à manipula-ção de mercado (12.º), à divulgação de informa-ção privilegiada (17.º), à elaboração de listas de insiders (18.º) e à comunicação de transações de dirigentes (19.º).

Já quanto aos contratos de mercadorias à vista e índices, a sua inclusão respeita unicamente às condutas proibidas no âmbito da manipulação de mercado – artigos 2.º, n.º 2 e 12.º, n.º 1, alínea d).

2. A definição de informação privilegiada

Um dos temas que mais dúvidas gerou no regime comunitário do abuso de mercado foi o da defini-ção de informação privilegiada.

A definição de informação privilegiada na MAD, em si, não sofreu grande alteração relativa mente ao conceito da anterior diretiva 89/592/CEE e que entre nós constava já do disposto no artigo 378.º do CódVM.

Os requisitos da informação privilegiada man-tiveram-se idênticos: para ser qualificada como privilegiada, a informação tem de ser especí fica, precisa, price sensitive e não pública. O que o regime comunitário de 2003 veio acrescentar, no que à definição respeita, foi uma definição mais detalhada da definição do carácter preciso e price sensitive.25

24- Diretiva 2014/65/EU, de 15/05, relativa aos mercados de instrumentos financeiros.

25- Com detalhe sobre a definição destas características e as concretizações levada a cabo pela MAD, veja-se Filipe Matias SANTOS, Divulgação de Informação privilegiada, Coimbra: Almedina, 2011, pp. 58-87.

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18 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

A questão colocada quanto à definição de infor-mação privilegiada introduzida pela MAD não está, assim, relacionada com a definição do con-ceito mas com a dupla relevância que esse con-ceito de informação privilegiada passou a ter.

O que sucede é que, no regime anterior à MAD, o conceito de informação privilegiada tinha re-levo exclusivamente para a infração de abuso de informação.

O dever de divulgação de informação a cargo dos emitentes era recortado pelo conceito de fac-tos relevantes que o artigo 248.º do CódVM, na reda ção anterior à transposição da MAD, definia, em linha com o disposto na diretiva 2001/34/CE, como sendo factos ocorridos na esfera de ativi-dade de um emitente que não sejam do conhe-cimento público e que, devido à sua incidência sobre a situação patrimonial ou financeira ou sobre o andamento normal dos seus negócios, sejam suscetíveis de influir de maneira relevante no preço.

A grande alteração do regime comunitário de 2003, no que à informação privilegiada respeita, foi a eliminação do conceito de factos relevantes e a sua substituição, para efeito do dever de di-vulgação de informação, pelo conceito de infor-mação privilegiada.

Ou seja, o conceito de informação privilegiada passou a ter uma dupla relevância: como pres-suposto da infração de abuso de informação e como pressuposto do dever de divulgação de infor mação por parte dos emitentes.

É certo que, quanto a este dever, o conceito sofre uma restrição de âmbito, na medida em que os emitentes apenas têm de divulgar a informação que lhes diga diretamente respeito mas, ainda assim, a substituição do pressuposto do dever de divulgação implicou para os emitentes que tal

dever se constituísse mais cedo do que sucedia no caso dos factos relevantes.

A isto acresce o facto de a MAD tomar clara-mente partido quanto à questão da divulgação de negociações, na medida em que possam constituir já informação privilegiada, conforme decorre do que se dispõe no artigo 3.º, n.º 1, alí-nea a) da diretiva (de concretização da MAD) n.º 2003/124/CE.

Esta situação de divulgação mais prematura poderia naturalmente causar dificuldades aos emitentes, ao impor a divulgação de informação rela tiva a fases negociais, na medida em que tal divulgação poderia prejudicar o bom andamento e o sucesso de tais negociações.

Assim sendo e como forma de equilibrar o re-gime, a MAD previa a possibilidade de diferi-mento da divulgação subordinada a três condi-ções: a divulgação pudesse prejudicar os legíti-mos interesses do emitente, o diferimento não fosse suscetível de induzir o público em erro e o emitente fosse capaz de assegurar a confidencia-lidade da informação (artigo 6.º, n.º 2, da MAD).

As críticas a este regime incidiram sobre os dois aspetos: a dupla relevância do conceito de infor-mação privilegiada e as condições exigidas para o diferimento que se consideravam difíceis de satisfazer, especialmente no caso da não susceti-bilidade de induzir o público em erro.26

Houve várias propostas no sentido do retorno ao modelo anterior à MAD: o conceito de infor-mação privilegiada relevaria apenas como pres-suposto do abuso de informação e um voltaria a usar-se um conceito semelhante ao dos factos rele vantes como pressuposto do dever de divul-gação. Foi também intensamente debatida a ne-cessidade de reformulação das condições exigi-das para o diferimento.

26- Veja-se com detalhe o relato dessas objeções em Carmine DI NOIA e Matteo GARGANTINI, «The Market Abuse Direc-tive Disclosure Regime in Practice: Some Margins for Future Actions», Rivista delle Societá, n.º 4/2009, pp. 782-835.

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A REVISÃO DAS DIRETIVAS DO ABUSO DE MERCADO: NOVO ÂMBITO, O MESMO REGIME : 19

A proposta de Regulamento inicialmente apre-sentada pela Comissão Europeia tentava dar acolhimento a algumas destas críticas fazendo uma distinção, na alínea e) do n.º 1 do artigo 6.º, quanto ao conceito de informação privilegiada, falando, de modo não inteiramente compreensí-vel, de informação não abrangida pelo conceito geral de informação privilegiada mas «relativa a um ou mais emitentes de instrumentos finan-ceiros ou a um ou mais instrumentos financei-ros, que, em geral, não é divulgada ao público mas que, caso fosse posta à disposição de um investidor razoável que negoceia regularmen-te no mercado e no instrumento financeiro ou num con trato de mercadorias à vista com eles relacionado, seria considerada por essa pessoa como pertinente para determinar as condições de execução das operações sobre esse instrumento financeiro ou de um contrato de mercadorias à vista com ele relacionado».

Ou seja, na verdade, uma definição que em nada se afastava do conceito de informação privile-giada previsto na alínea a) desse artigo e dando, assim, lugar a uma construção, algo peculiar, de informação que é privilegiada e, ao mesmo tem-po, não é.

Desta modalidade especial de informação pri-vilegiada estavam os emitentes dispensados de divulgação no n.º 3 do artigo 12.º da proposta de regulamento, embora a mesma contasse como pressuposto da infração de abuso de informação no artigo 7.º da mesma proposta.

Este ensaio de distinção entre a informação privi-legiada para efeito da infração de abuso de infor-mação e como pressuposto do dever de divulga-

ção de informação pelos emitentes veio a soço-brar nas discussões subsequentes, man tendo-se na versão final do MAR a dupla relevância do conceito de informação privilegiada nos mesmos exatos termos em que constava da MAD.

Não há, assim, no novo regime qualquer distin-ção no conceito de informação privilegiada ou na sua relevância relativamente ao regime que a MAD dispunha.

O MAR veio, inclusivamente, reforçar certos as-petos da qualificação de informação privilegiada no que respeita a fases negociais, estabelecendo claramente no artigo 7.º relativo à definição de informação privilegiada, no seu n.º 3 que «um passo intermédio num processo continuado no tempo pode constituir informação privilegiada se, por si só, cumprir os requisitos da informação privilegiada». Este entendimento entre nós tinha já sido afirmado pelo Tribunal da Relação de Lisboa logo em 2004, no âmbito de um processo sobre abuso de informação.27 O mesmo entendi-mento sufragou aquele Tribunal, no âmbito de recursos de contraordenação por violação do de-ver de divulgação de informação privilegiada.28

Quanto às condições do diferimento, o MAR manteve também, no n.º 4 do seu artigo 17.º, as condições de diferimento tal e qual estavam defi-nidas na MAD, acrescentado o dever de infor-mar a autoridade competente desse diferimento imediatamente após a cessação do diferimento e a correspondente divulgação. Ou seja, a deci-são de diferimento continua exclusivamente na responsabilidade do emitente e o regulador não tem de ser informado nesse momento mas ape-nas quando a informação é divulgada.29

27- Acórdão de 24.12.2004 e também de 22.06.2006 e de 23.10.2007.

28- Acórdãos de 01.02. 2011 (Proc. 1022/09, 3ª Secção), 06.07.2011 (Proc. 1485/08, 3ª Secção), 25.10.2011 (Proc. 464/09, 5ª Secção), 15.11. 2011 (Proc. 575/10, 5ª Secção), 09.02.2012 (Proc. 705/09, 9ª Secção) e de 17.02.2013 (Proc. 575/10, 5ª Secção).

29- Pode duvidar-se da utilidade deste dever mas ele tem, pelo menos, a virtualidade de permitir estabelecer que a não divul-gação se deveu a uma situação de diferimento de informação privilegiada e não a um entendimento do emitente de que não havia informação privilegiada a divulgar, assim dispensando o debate sobre a qualificação da informação, bastando que seja submetidas a análise a questão da verificação das condições do diferimento.

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20 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

Esta situação apenas é excecionada quando se trate de um emitente que seja uma instituição de crédito ou outra instituição financeira e esteja em causa a estabilidade do sistema financeiro (n.ºs 5 e 6 do artigo 17.º).

Nesse caso, as condições do diferimento são di-ferentes: risco de comprometer a estabilidade fi-nanceira do emitente, em lugar do prejuízo para os seus legítimos interesses; o diferimento ser do interesse público, em lugar da insusceptibili-dade de induzir o público em erro. As exigências de confidencialidade mantêm-se mas o emitente tem de obter o consentimento da autoridade competente a fim de poder diferir a informação.

Pelo que continua a ser exigido que o diferimento não seja suscetível de induzir o público em erro. A dificuldade de interpretação dessa condição reside no facto de, tratando-se de informação privilegiada, um dos requisitos consistir em ser informação «que um investidor razoável utiliza-ria normalmente para fundamentar em parte as suas decisões de investimento» (artigo 7.º, n.º 4 do MAR). Não será fácil considerar que a omis-são da divulgação deste tipo de informação não é suscetível de induzir os investidores em erro.

Perante idêntico regime da MAD e por forma a dar alguma utilidade ao regime do diferimento, alguns autores sugeriram interpretar esta condi-ção no sentido de a suscetibilidade de induzir o público em erro existir somente nos casos em que a informação não divulgada seja de sentido contrário às expectativas que o mercado tem so-bre aquele emitente.30

Em conclusão, com a exceção da necessidade de informar (a posteriori) o regulador da decisão de diferimento e dos casos de risco para a estabi-lidade do sistema financeiro quando se trate de emitentes que sejam instituições de crédito ou outras instituições financeiras, o dever de divul-

gação de informação e as condições do diferi-mento mantém-se exatamente igual ao regime que constava da MAD.

3. Definição de abuso de informação:

a) A “conduta legítima”

A descrição das condutas proibidas, quando em presença de informação privilegiada, é idêntica à da MAD, o que poderia conduzir à conclusão de que a definição da infração se mantém idêntica.

Todavia, o MAR utiliza, a propósito do abuso de informação, uma técnica – que não constava da MAD – que é a definição de exceções e exclu-sões do âmbito de aplicação da infração e que consta do artigo 9.º do MAR, subordinada à epí-grafe «conduta legítima».

Nos números 1 e 2 desse artigo, o MAR enuncia um conjunto de situações que afastam a qualifi-cação como abuso de informação (mas apenas, numa primeira linha, como se verá adiante) de atuações levadas a cabo por pessoas coletivas ou por quem as represente.

No número 2 do artigo, enunciam-se as situações em que a pessoa coletiva em causa é um criador de mercado ou tem como atividade a prestação do serviço de execução de ordens, desde que as transações sejam feitas no normal exercício da sua atividade.

No número 1, o objetivo parece ser o de evitar a comunicação da responsabilidade à pessoa cole-tiva das transações efetuadas por pessoas singu-lares que agem em seu nome, quando existam mecanismos adequados e eficazes para garantir que a pessoa singular que realiza as transações (e as pessoas que possam ter tido influência nessa decisão) não estava na posse de informação pri-vilegiada (alínea a) e que a pessoa coletiva não induziu, recomendou ou influenciou por qual-

30- É a sugestão que consta do Relatório do ESME (cit., p. 9). Todavia, Di Noia (cit., p. 22) entende que essa é apenas uma solução de recurso, atenta a dificuldade de avaliar as expectativas do mercado.

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A REVISÃO DAS DIRETIVAS DO ABUSO DE MERCADO: NOVO ÂMBITO, O MESMO REGIME : 21

quer modo a pessoa singular a fazer essas transa-ções (alínea b).

Os requisitos são cumulativos e suscitam algu-mas dificuldades de interpretação.

Quanto ao que se dispõe na alínea a), parece claro que, se se vier a demonstrar que a pessoa singular que efetuou as transações estava na pos-se de informação privilegiada, tal circunstância impede a consideração de que a condição foi respeitada. Com efeito, se a pessoa que realiza as transações está na posse da informação pri-vilegiada, tal evidencia que os procedimentos instituídos para evitar esse acesso não foram efi-cazes. Sendo a eficácia dos procedimentos um requisito desta condição (e não apenas a exis-tência de procedimentos adequados), esta falha a sua verificação se a pessoa singular em causa, de facto, detiver a informação.

Já a exigência da alínea b) do n.º 1 de que a pes-soa coletiva não influencie a decisão de aquisição é mais difícil de configurar, uma vez que, se a pessoa singular age em nome da pessoa coletiva, realizará as transações, não por sua iniciativa, mas por indicação da pessoa coletiva em nome de quem age. Pelo que não se vislumbra facil-mente uma situação em que uma pessoa realiza transações em nome de outra, sem que esta tenha qualquer influência sobre essa decisão.

O número 3 do referido artigo abrange pessoas singulares e coletivas e contém alguns aspetos que constituem, na verdade, apenas esclarecimen-tos de situações que já anteriormente não eram consideradas abrangidas no âmbito do abuso de informação.

A primeira delas consiste numa situação de des-fasamento temporal entre o momento em que é tomada a decisão de transacionar e é dada a or-dem (em que a pessoa não estava na posse de informação privilegiada) e o momento em que os instrumentos financeiros são efetivamente trans-mitidos (em que já detém informação privile-giada). Naturalmente que a prática da infração pressupõe uma coincidência temporal entre a

ordem de transacionar e a detenção de informa-ção privilegiada, pelo que, ainda que o MAR não dispusesse desta referência, esta situação não poderia ser enquadrada, uma vez que o regime do abuso de informação não impõe que quem está na posse de informação privilegiada tenha de alterar as decisões que previamente tomou e que o virão beneficiar em função da superve-niência de novos factos.

A proibição de abuso de informação não visa evitar que os investidores tenham ganhos com o facto de acontecerem situações que valorizam os emitentes, mas sim evitar que esses ganhos surjam em virtude de assimetria informativa, à data da decisão de investimento, entre o investi-dor que realiza esses ganhos e os demais inves-tidores.

Se a decisão de investir ou desinvestir foi tomada num momento em que não existia assimetria infor mativa, como é o caso das duas alíneas deste número 3, não há razão para que o investidor ve-nha a ser penalizado pelas transações.

O MAR acrescenta, todavia, a exigência de que essas transações sejam feitas de boa fé e não para contornar a proibição de abuso de informa-ção (9.º, n.º 3). Sendo justamente a característica destas duas situações o facto de o investidor não estar na posse da informação privilegiada quando tomou a decisão, não se compreende inteira-mente em que medida é que poderia contornar a proibição de abuso de informação privile giada, quando não estava na posse desta. Todavia esta condição, não acrescentando aparentemente nada de relevante àquilo que já serão, em si, as características das condições descritas, tem a virtualidade de constituir um fecho de segurança perante a variedade das situações da vida que po-dem vir a enquadrar-se nestes casos, garantindo que a exclusão do âmbito do abuso de informa-ção se fará sempre num contexto de atuação de boa fé.

A maior dificuldade interpretativa suscitada por este artigo reside no facto de, por um lado, boa

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22 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

parte destas exclusões incluírem uma salvaguar-da no sentido de referir que estas atuações não consistem necessariamente em abuso de infor-mação mas abrindo a possibilidade de o serem. O que significa que não constituem propriamen-te safe harbours no mesmo sentido em que o são as normas relativas aos programas de recompra ou a estabilização (artigo 5.º).

A ideia de que estas situações não constituem necessariamente abuso de informação mas po-dem ser consideradas como tal é também afir-mada pelo que dispõe o n.º 6 do mesmo artigo 9.º, onde se afirma que as situações descritas podem constituir abuso de informação, se a au-toridade competente determinar que existiu uma razão ilegítima subjacente às ordens.

Esta parte do artigo carece de interpretação cui-dadosa, uma vez que este artigo releva também para o crime de abuso de informação previsto no artigo 3.º da nova MAD, por via do disposto no n.º 8 desse artigo.

Atendendo à vigência do princípio da legalidade na definição das infrações (e especialmente dos crimes) não pode a definição do que seja uma in-fração depender daquilo que a autoridade admi-nistrativa defina, caso a caso, como sendo uma razão ilegítima para transacionar, fora do quadro da previsão legal do abuso de informação.

A maioria das situações previstas na norma são situações em que, ou a pessoa que transacio-na não tem qualquer informação privilegiada quando dá a ordem, ou a detenção de informação privilegiada não releva para a transação.

Parece, assim, poder concluir-se que a razão de ser da previsão deste conjunto de condutas é a de

não penalizar aquelas situações em que aquilo que se visa evitar com a repressão do abuso de informação – a obtenção de ganhos por via de uma situação de assimetria informativa – não está em causa. Nesse sentido concorre o que o MAR afirma no considerando 24 quanto ao objetivo do regime do abuso de mercado «que consiste em proteger a integridade do mercado financeiro e reforçar a confiança dos investidores, baseada, por seu lado, na garantia de que os investidores se encontram em pé de igualdade e protegidos da utilização ilícita de informação privilegiada».31

Assim, a razão ilegítima que a autoridade admi-nistrativa pode determinar existir nos termos do n.º 6 deste artigo 9.º é a verificação de que existiu efetivamente uma situação de assimetria infor-mativa em relação a informação privilegiada que esteve na origem da atuação dos agentes.

Circunstância que sempre estaria abrangida pela definição de abuso de informação do artigo 8.º.

Será o caso, por exemplo, da necessária conju-gação entre a previsão da alínea b) do n.º 2 deste artigo 9.º, relativa à execução de ordens de clien-tes, quando esteja em causa a atuação com in-formação privilegiada sobre as próprias ordens dos clientes, tal como definida no artigo 7.º, n.º 1, alínea d).

Ou seja, mesmo que um intermediário financeiro se limite a executar ordens de clientes no exercí-cio da sua atividade, se organizar essa execução de ordens em função da informação privilegiada que detém quanto à ordem de um cliente (como é o caso nas condutas de front running) pratica abuso de informação, ainda que o faça no exercí-cio da sua atividade profissional.

31- Noutro considerando, o 23, afirma-se no MAR que a característica do abuso de informação consiste na obtenção de um benefício indevido a partir da informação privilegiada em detrimento de terceiros que desconhecem tal informação. Há que precisar que, não obstante esse ser um fundamento da previsão desta conduta como infração, a obtenção de benefício não é um pressuposto da infração: a infração é cometida independentemente do facto de o agente vir ou não a retirar um benefício da sua atuação. Aliás, este pressuposto da obtenção de um benefício foi uma das alterações de relevo na definição da infração que a MAD introduziu em 2003.

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A REVISÃO DAS DIRETIVAS DO ABUSO DE MERCADO: NOVO ÂMBITO, O MESMO REGIME : 23

Isto significa que, não obstante estar descrita

no artigo 9.º como não sendo necessariamente

abuso de informação a situação de execução de

ordens de clientes estando o intermediário finan-

ceiros na posse de informação privilegiada, caso

a detenção dessa informação privilegiada deter-

mine a sua atuação, a exclusão não se aplica, jus-

tamente porque a razão para a atuação é ilegíti-

ma, à luz das proibições do abuso de informação.

Em função do princípio da legalidade, a auto-

ridade administrativa não pode considerar, para

efeito da imputação do crime (ou da contraor-

denação) de abuso de informação outras razões

ilegítimas para as transações – designadamente

evasão fiscal, branqueamento de capitais, etc –

que não os próprios pressupostos da definição da

infração em causa.

Poderá naturalmente, caso verifique que tais ra-

zões estão subjacentes às transações, denunciar

as suspeitas desses outros crimes às autoridades

competentes, mas não considerar essas razões

ilegítimas como parte dos pressupostos da infra-

ção de abuso de informação.

b) Abuso de informação e transações de diri-gentes

O artigo 19.º, n.º 11, do MAR veio introduzir

uma proibição de os dirigentes transacionarem

ações ou instrumentos de dívida do emitente du-

rante o período de 30 dias que antecede a divul-

gação de um relatório financeiro intercalar ou de

um relatório anual.

A instituição de um período fechado a transações

de dirigentes havia já sido considerada quando

da elaboração da MAD mas a opção legislativa

final consistiu em deixar essas situações no âm-

bito da proibição geral de abuso de informação:

os dirigentes que detivessem informação privi-

legiada estavam, nos termos da previsão geral,

proibidos de transacionar, independentemente

de o fazerem 29, 30 ou 31 dias antes da divulga-

ção da informação.

Esse enquadramento dependia, todavia, da veri-ficação do facto da detenção da informação por parte do dirigente.

Esta nova previsão contempla uma proibição simples de transacionar, independentemente do facto de o dirigente deter ou não a informação. Todavia, as normas do abuso de informação não deixam de ser aplicáveis, pelo que a infração de abuso de informação sempre se verificará naque-las situações em que em que, detendo informa-ção privilegiada, o dirigente transaciona e, neste caso, independentemente da definição de qual-quer período. Isto significa que, o facto de o diri-gente transacionar fora do período fechado (a 31 ou 32 dias da divulgação das contas, por exem-plo) exime-o da aplicação desta disposição mas não das normas relativas ao abuso de informa-ção: em todas as situações em que verifiquem os respetivos pressuposto, as normas que proíbem o abuso de informação serão aplicáveis.

4. Definição de manipulação de mercado

a) Práticas de Mercado Aceites

No que respeita à definição de manipulação de mercado, o essencial das preocupações residia na possibilidade prevista na MAD de cada Es-tado membro poder definir práticas de mercado aceites específicas para o seu mercado e que os participantes no mercado entendiam ser gerado-ra de incerteza quanto à definição dos comporta-mentos ilícitos.

Com efeito, a definição de uma prática de mer-cado aceite implica a exclusão desse comporta-mento do âmbito da definição de manipulação de mercado, constituindo, assim, um safe harbour naquele ordenamento específico (mas não nos demais).

Esta possibilidade poderia afetar a harmonização do regime do abuso de mercado, na medida em que, em relação a um aspeto central do regime como é a manipulação de mercado, a definição do comportamento ilícito não seria coincidente.

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24 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

Durante os anos de vigência do regime do abuso de mercado houve lugar à definição de dez práti-cas de mercado aceites.32

A Comissão Europeia colocou a questão da in-trodução de mecanismos que permitissem uma maior convergência das práticas adotadas. O ar- tigo 13.º do MAR manteve as mesmas condições para a definição da prática mas reforçou os pro-cedimentos quanto ao acordo (ou melhor, não oposição) dos vários reguladores e também da ESMA relativamente à aceitação da cada prática.

b) A divulgação de informações falsas ou en-ganosas

A definição de manipulação de mercado da MAD contempla uma modalidade de manipu-lação que é a divulgação de informações sus-cetíveis de dar indicações falsas ou enganosas. Esta modali dade, entre nós, encontrava-se con-templada no âmbito do artigo 379.º do CódVM relativo à manipulação de mercado, ainda antes da transposição das diretivas.

O regime da MAD, na parte final do n.º 2 do ar-tigo 1.º, enuncia três exemplos de manipulação, um dos quais consiste no facto de alguém «tirar proveito do acesso pontual ou regular aos meios de comunicação social […] emitindo opiniões sobre um instrumentos financeiro […], tendo previamente tomado posições nesse mesmo ins-trumento financeiro e tirando seguidamente pro-veito do impacto dessa opinião no preço do ins-trumento financeiro, sem simultaneamente haver revelado ao público, de forma adequada e eficaz, o conflito de interesses existente».

Esta matéria é também abordada a propósito da divulgação de recomendações de investimento (diretiva MAD nível2 2003/125/CE), através das regras que impõem a divulgação de conflitos de interesses subjacentes à recomendação.

A inclusão deste comportamento no âmbito da manipulação de mercado pressupõe a identifica-ção de um elemento apto a dar indicações falsas ou enganosas, tal como se descreve na alínea c) do n.º 2 da MAD de que este comportamento é exemplo. Não se exige, todavia, que a opinião emitida seja falsa pelo que esse elemento enga-natório resulta, não tanto da qualidade da opi-nião emitida, mas do facto de ser omitido ao público que quem a emite detém em carteira os instrumentos financeiros sobre que está a emitir opinião.

Este regime não foi alterado no novo MAR que mantém o exemplo na alínea d), do n.º 2 do ar-tigo 12.º, relativo à manipulação de mercado. Contudo, do considerando 28 do Regulamento parece resultar que o conhecimento sobre a fu-tura divulgação dessa opinião pode constituir informação privilegiada e que a negociação com base nesse conhecimento pode constituir abuso de informação, na medida em que seja expectá-vel que a divulgação dessas opiniões contribua para a formação dos preços.

Estes comportamentos são, além disso, abarca-dos pela violação de deveres específicos, seja quanto à divulgação de conflitos de interesses nas recomendações de investimento (artigo 20.º do MAR), seja quanto a proibições de transações por parte das pessoas envolvidas na elaboração de recomendações que constam do conjunto de normas destinadas a regular a atividade dos intermediários financeiros (artigo 309.º-D do CódVM).

Assim, há que delimitar, quanto a este caso, o âmbito de aplicação respetivo do abuso de infor-mação e da manipulação de mercado, atenta a aparente sobreposição de enquadramento.

O considerando 28 da diretiva, ao referir este comportamento, reporta-o a «opiniões de um

32- Divulgadas no site da ESMA: http://www.esma.europa.eu/page/accepted-markets-practices.

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A REVISÃO DAS DIRETIVAS DO ABUSO DE MERCADO: NOVO ÂMBITO, O MESMO REGIME : 25

comentador ou de uma instituição de mercado reconhecidos que podem influenciar os preços dos instrumentos financeiros com ela relacio-nados».

A informação que se qualifica como privilegiada é, então, a divulgação da opinião enquanto facto que é apto a produzir um efeito sobre o preço do instrumento financeiro e que, portanto, diz res-peito a um instrumento financeiro na medida em que concorre para a definição do respetivo preço. E o abuso de informação consistira em transa-cionar, estando na posse do conhecimento acerca dessa divulgação.

A distinção entre o âmbito de aplicação da ma-nipulação de mercado e do abuso de informação deverá, então, ser realizada em função do com-portamento que se está a considerar.

Sendo a opinião emitida apta a dar indicações fal-sas ou enganosas, através da omissão de transpa-rência quanto às participações detidas por quem emite a opinião, o comportamento que deverá ser enquadrado como manipulação de mercado – em função da presença do elemento enganatório que consiste em omitir essas participações – é a própria divulgação de opinião.

O que poderá ser enquadrado como abuso de informação (mesmo que haja cumprimento dos deveres de transparência quanto às participa-ções) não é a própria divulgação da opinião mas o comportamento que consiste em transacionar antes dessa divulgação, com o conhecimento de que essa divulgação irá ter lugar.

Os comportamentos abrangidos são diferentes e pode bem suceder que os agentes também não sejam os mesmos: a pessoa que comete o abuso de informação pode não ser aquela que emite a opinião mas apenas uma pessoa que tem conhe-cimento do conteúdo da opinião que vai ser di-vulgada e da sua futura divulgação.

E, para que esse conhecimento traduza a deten-ção de informação privilegiada, será necessário que essa informação (a divulgação da opinião) seja apta a produzir um efeito sobre o preço dos instrumentos financeiros.

Este impacto é usual quando se trata de reco-mendações dadas por instituições ou analistas que o fazem profissionalmente e é, ainda mais notório, quando se trata de notações de risco. Com efeito, a divulgação de notação de risco relaciona-se com o valor do instrumento finan-ceiro de tal modo que é um elemento da sua clas-sificação, com consequências relevantes, não só quanto à avaliação que os investidores fazem do instrumento financeiro, como também quanto a outros aspetos, como é o caso da aplicação de regras de composição de carteiras de fundos de investimento, quanto aos ativos que podem ser elegíveis.

Quanto ao âmbito de aplicação da manipulação de mercado e das regras relativas à divulgação de conflitos de interesses constantes do artigo 20.º do MAR33 (e da diretiva 2003/125/CE do pacote comunitário de 2003-2004), a distinção assenta também nos comportamentos envolvidos.

Para o enquadramento no tipo de manipulação de mercado previsto na alínea d) do n.º 2 do artigo 12.º do MAR, é necessária a verificação de um comportamento complexo. O agente tem de tomar posição nos instrumentos financeiros, emitir a opinião sem divulgar essa posição e se-guidamente tirar proveito do impacto da divulga-ção dessa opinião.

A violação das regras relativas à omissão de di-vulgação de conflitos de interesses nas recomen-dações de investimento dá-se pelo facto simples dessa omissão, independentemente de as posi-ções terem sido tomada com vista a essa divulga-ção ou já existirem previamente e ainda que, após

33- E que serão desenvolvidas, conforme se dispõe nesse artigo 20.º, pela Comissão Europeia através de normas técnicas de regulamentação, certamente com conteúdo idêntico àquele que consta da diretiva 2003/125/CE.

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a divulgação, não haja qualquer aproveitamento do impacto causado com a divulgação (ou, até, independentemente de qualquer impacto).

c) Negociação algorítmica: artigo 12.º, n.º 2 alí-nea c)

Não obstante a manutenção da definição de mani pulação de mercado que constava da MAD, o MAR acrescenta um exemplo de manipulação na alínea c) do seu n.º 2 destinado a abranger estratégias de negociação algorítmica e de alta frequência.

A novidade deste exemplo é que a estratégia é qualificada como manipuladora, não apenas nas situações em dela resultem indicações falsas ou enganosas quanto à oferta ou procura dos instru-mentos financeiros, mas também naqueles casos em que a referida estratégia tenha como efeito perturbar a negociação ou dificultar a identifica-ção por outras pessoas de verdadeiras ordens – 12.º, n.º 2, alínea c), pontos i) e ii).

III. SÍNTESE DAS ALTERAÇÕES

A alteração de relevo no conteúdo do regime do abuso de mercado é a do alargamento do seu âmbito de aplicação a instrumentos financei-ros negociados em MTF e OTF, às licenças de emissão (na sequência da sua qualificação como instrumentos financeiros) e, no caso da mani-pulação de mercado, também a contratos sobre mercadorias e a índices.

No demais, o novo MAR, não obstante o intenso debate realizado antes e após a apresentação das propostas pela Comissão Europeia, pouco alte-rou da estrutura essencial do regime desenhado pela MAD. A dupla relevância da definição de informação privilegiada manteve-se, o mesmo sucedendo quanto às condições de diferimento, com exceção de alguns afinamentos descritos no ponto seguinte. A definição de manipulação de mercado também não foi, no essencial, alterada.

Para além da questão do âmbito de aplicação, as alterações não são, portanto, de fundo. Contudo foram acrescentados ou alterados alguns aspetos

que seguidamente se enunciam, incluindo tam-bém aqueles já referidos ao longo do texto:

a) Sondagens de mercado: possibilidade de comunicação de informação privilegiada antes do anúncio de uma operação, no con-texto de uma interação com investidores destinada a avaliar o interesse e as possíveis condições de uma operação de alienação de instrumentos financeiros (11.º);

b) Referência à negociação algorítmica e des-crição de algumas estratégicas específicas nesse contexto – 12.º, n.º 2, al. c);

c) Alterações às condições para o diferimento da divulgação de informação privilegiada: comunicação ao regulador da decisão de di-ferimento no momento da divulgação (17.º, n.º 4. §3); autorização necessária, quando os emitentes são instituições de crédito ou financeiras nos casos de risco para a esta-bilidade do sistema financeiro – 17.º, n.º 5, d);

d) Listas de insiders: modelos de listas a se-rem emitidos pela Comissão Europeia (18.º, n.º 9), por forma a reduzir o peso adminis-trativo do dever;

e) Comunicação de operações de dirigentes: inclusão do dever de os dirigentes comu-nicarem também instrumentos de dívida (e não apenas ações) e esclarecimento do tipo de operações a notificar (19.º, n.ºs 1 e 7). O dever mantém-se a partir de €5.000 mas as legislações nacionais podem aumentá-lo para 20.000 (19.º, n.ºs 8 e 9);

f) Previsão de um período fechado a transa-ções de dirigentes de 30 dias antes do anún-cio de um relatório financeiro intercalar ou de um relatório anual (19.º, n.º 11);

g) Whistle blowing: proteção e sigilo das comu nicações de suspeitas de infração e possibilidade de se prever incentivos finan-ceiros a essas denúncias (32.º).

IV. A HARMONIZAÇÃO DO REGIME E DAS SANÇÕES

Finalmente, de grande relevância sobre o fun-cionamento do regime do abuso de mercado, é a

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questão da harmonização total das normas, atra-vés de um regulamento comunitário e da harmo-nização mínima das sanções. Não obstante este aspeto não estar relacionado com o conteúdo do regime (esse, como se referiu, não dista grande-mente da MAD), o facto de o novo regime comu-nitário seguir a forma de regulamento impõe uma harmonização necessária do regime apli-cável no espaço europeu, só limitada pelo facto de se continuar a prever a possibilidade de cada Estado membro, através do seu regulador, poder definir práticas de mercado aceites só vigentes no seu mercado (não obstante a necessidade de consulta aos demais reguladores).

Por outro lado, a previsão de limiares mínimos de molduras máximas de sanção poderá também ter como efeito a atenuação das disparidades existentes a esse nível. Esta preocupação não é, contudo, específica do regime do abuso de mer-cado, uma vez que esse esforço de harmonização é comum à maioria dos diplomas comunitários mais recentes no âmbito do mercado financeiro.

Esta harmonização quase total induz também dificuldades, uma vez que se está perante a defi-nição de infrações e os ordenamentos jurídicos onde o regime irá vigorar enquadram-nas de modo não inteiramente coincidente: em alguns casos, as infrações no âmbito do abuso de mer-cado são infrações de natureza administrativa, noutros ordenamentos são crimes e, noutros, contraordenações.

É certo que o regime comunitário, por um lado, não contempla, em regra, normas de natureza processual, pelo que a diversidade de regimes processuais sempre poderá ser respeitada. Por outro lado, o princípio da legalidade, consa grado no artigo 49.º da Carta dos Direitos Fundamen-tais da União Europeia, é vigente em todo o es-paço europeu, pelo que também quanto a este aspeto inexistem razões para haver divergência.

Todavia, não obstante a inexistência de normas de natureza processual e a aplicação generali-zada do princípio da legalidade, o enquadra-

mento sancionatório divergente (infrações ad-ministrativas, contraordenações, crimes) sempre dará origem a algumas diferenças.

Aliás, a consideração dessas diferenças resulta evidente do abandono da ideia inicial da pro-posta de consagrar simultaneamente crimes e infrações administrativas (ou contraordenações, no caso dos ordenamentos jurídicos onde estas vigoram). Na versão final do MAR, conforme resulta do disposto no artigo 30.º, n.º 1 §2, os Estados membros têm a possibilidade de, caso criminalizem os comportamentos descritos no MAR, não prever para esses comportamentos sanções administrativas.

CONCLUSÃO

O breve percurso realizado pelo regime euro-peu do abuso de mercado publicado em 2014 incidiu essencialmente sobre o regime constan-te do MAR, o novo Regulamento Comunitário n.º 596/2014 sobre abuso de mercado, dado que, não obstante a publicação simultânea de uma diretiva sobre abuso de mercado, o essencial do regime europeu está contido no Regulamento e é nele que se refletem os resultados do debate sobre as diretivas do abuso de mercado que se iniciou em 2007.

O debate sobre a MAD havia incidido com muita intensidade sobre a questão da dupla relevância do conceito de informação privilegiada e sobre o dever de divulgação desta informação a car-go dos emitentes. A versão final do regulamento comunitário publicado em 2014 manteve o re-gime tal como tinha sido desenhado pela MAD, o mesmo sucedendo, no essencial, quanto à defi-nição da generalidade dos deveres incluídos no âmbito do abuso de mercado, sem embargo de algumas novidades assinaladas neste texto.

Aquilo que verdadeiramente traduz uma altera-ção muito relevante quando ao regime anterior é, na verdade, o alargamento do seu âmbito de apli-cação, agora estendido a instrumentos financei-ros não negociados em mercado regulamentado e, no que às proibições de manipulação respeita,

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também a contratos de mercadorias à vista e a condutas relativas a índices de referência.

Não se trata, assim, de um novo regime europeu do abuso de mercado quanto ao conteúdo mas antes da atribuição de um novo âmbito ao regime já existente.

Esta alteração é, todavia, de relevo, na medida em que coloca sob o controle das regras relativas ao abuso de mercado um número muito maior de condutas e de intervenientes.

A outra grande novidade é a harmonização de regras das quais decorre a previsão de infrações através de regulamento comunitário. Não obs-tante o objetivo da MAD de 2003 ser já o da harmonização do regime europeu, as decisões concretas quanto ao texto da transposição eram deixadas a cada Estado membro que, assim, o

podia adaptar às especificidades do seu sistema sancionatório.

Essa modalidade tinha, por outro lado, o risco de induzir divergências no tratamento jurídico das mesmas situações ao nível europeu, sendo também mais demorada a entrada em vigor do regime, uma vez que dependia da transposição pelos Estado membros.

A opção por um regulamento comunitário afas-ta certamente estes inconvenientes mas, atenta a novidade do modelo, está, ainda por verificar o nível de dificuldade que decorrerá da integração de uma definição uniforme de infrações em or-denamentos jurídicos com sistemas sancionató-rios diferentes.

É o que muito em breve teremos oportunidade de observar.

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INTRODUÇÃO

Em Novembro de 2012 entrou em vigor o regime europeu sobre operações de venda curta e posições curtas relevantes em acções, dívida soberana e cre-

dit default swaps (CDS), habitualmente conhecido por regime europeu do short selling. A matéria foi pela primeira vez legislada a nível europeu.

O regime europeu é todo ele de aplicação directa, constando de diversos regulamentos: o Regula-mento UE do Parlamento Europeu e do Conselho n.º 236/2012, de 14/3 (RSS) e cinco regulamentos da Comissão Europeia (CE) que o concretizam: Os regulamentos delegados n.º 826/2012, de 29/6 (RD 826), n.º 918/2012, de 5/7 (RD 918), n.º 919/2012, de 5/7 (RD 919) e o regulamento de implementação n.º 827/2012, de 29/6 (RI 827).

Só a vertente sancionatória – que se pretende seja efectivamente dissuasora – ficou a cargo das autoridades nacionais (art. 41.º do RSS), cabendo ainda aos Estados-membros garantir que aque-las dispõem do conjunto de poderes necessário para a adequada supervisão do regime: poderes esses que são elencados pelo próprio RSS (art. 33.º), designadamente o de acesso a registos de comunicações – o que atesta bem o empenho do

legislador em ver adequadamente controlada a observância do regime1.

O propósito do legislador foi o de harmonizar as regras aplicáveis ao short-selling na UE, o de procurar diminuir o risco do short selling para o funcionamento dos mercados, em particular o risco de falhas de liquidação resultantes de ope-rações de venda curta2, bem como o de procurar obter uma aplicação harmonizada das medidas excepcionais que venham a ser adoptadas pelas autoridades nacionais, garantindo a circulação de informação e conferindo à nova autoridade europeia um papel de coordenação.

Convirá ter presente desde o início algumas parti-cularidades do regime, como é o caso da aplicação extra-territorial das suas normas; de serem seus destinatários os investidores que ordenem vendas curtas ou que detenham posições curtas – no que constitui uma grande inovação no plano da legislação europeia do sector financeiro que, por regra, constitui deveres sobre entidades financei-ras e não sobre investidores; de não incidir sobre a disciplina própria dos sistemas de liquidação e de compensação e dos deveres dos respectivos participantes, nomeadamente de boa e atempada

O REGIME EUROPEU DO SHORT SELLING

MANUEL MONTEIRO*

*- Jurista, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.As opiniões expressas neste texto são as do autor, e não necessariamente as da CMVM.

1- Entre nós, no essencial, não foi necessário proceder a transposições do regime porque a CMVM já dispunha das compe-tências previstas no RSS e o Código dos Valores Mobiliários (Cód. VM) contemplava já normas sancionatórias que, pela sua generalidade, permitiram acomodar o novo regime (a do art. 388.º, n.º 3 do Cód. VM, entre outras). Foram apenas introduzidos pontuais ajustamentos pela alteração ao Código dos Valores Mobiliários efectuada pelo Decreto-Lei n.º 18/2013, de 6 de Feve-reiro. Foi o caso da alteração de redacção do art. 359.º, n.º 1 do Cód. VM, tendo sido aditada uma nova alínea j) para colocar os detentores de posições curtas relevantes e os adquirentes de CDS no leque de entidades sujeitas a supervisão da CMVM.

2- Neste particular domínio o RSS inclui uma importante norma que tem menos visibilidade: trata-se do art. 15.º que impôs às entidades gestoras de serviços de compensação a adopção de prazos limite para desencadear procedimentos de recompra (os designados buy-in) bem como a obrigação de aplicar penalidades pecuniárias pelos dias de mora – suficientemente elevadas para que possam ter efeitos dissuasores –, assim alterando significativamente as práticas de mercado à data vigentes na UE.

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liquidação ou compensação de operações, deveres independentes do regime do short seling que se mantêm; bem como o de não interferir com os deveres próprios dos intermediários financeiros que recebem ou executam ordens de venda e que não são destinatários – nessa qualidade3 – deste regime europeu harmonizado. Por último, e em relação ao seu âmbito, o regime aplica-se a acções negociadas em mercado ou sistema de negociação na União Europeia e a dívida soberana.

Quanto ao conteúdo, o regime versa, no essen-cial, sobre vendas curtas de acções e de dívida soberana bem assim como sobre a transparência na detenção de posições curtas em acções e em dívida soberana.

Em matéria de vendas curtas sobre acções e dí-vida soberana, o regime harmoniza as condições, ditas restritivas, em que as mesmas podem ser realizadas. Fora das condições nele previstas fica vedada a possibilidade de vender acções e dívida soberana a descoberto. Ou seja, as vendas a des-coberto são, em princípio, proibidas só podendo ser efectuadas se forem asseguradas determinadas salvaguardas. De entre as regras legitimadoras da realização de uma venda a descoberto merecem especial atenção as respeitantes à intervenção de entidades terceiras especialistas no mercado da acção ou dívida objecto da venda, naquilo que constitui uma importante inovação introduzida pelo regime. Estas regras sobre a intervenção das entidades terceiras conhecem contornos distintos consoante a intervenção incida sobre dívida sobe-rana ou sobre acções, consoante a natureza líquida ou não do instrumento financeiro e, ainda, em função da natureza da venda curta, em concreto da manutenção, ou não, da posição curta no final do

dia (short-selling intra-diário). As demais regras legitimadoras das vendas encontram-se relacio-nadas com instrumentos jurídicos já conhecidos, como é o caso dos empréstimos ou dos contratos de efeito similar. Estas normas restritivas pressu-põem e assentam num conceito muito amplo de venda a descoberto (sendo, a contrario, muito restritivo, para efeitos do regime, o conceito de detenção de instrumentos financeiros). Não pode-remos abordar as condições de venda sem antes nos determos sobre o conceito de venda curta.

O regime consagra depois regras de transparência em relação às posições curtas4 relevantes sobre acções e dívida soberana. Estas regras de trans-parência consistem na comunicação das posições curtas relevantes às autoridades de supervisão e, apenas para as acções, na sua divulgação ao mercado. Posições curtas e vendas curtas são, naturalmente, realidades distintas: um investidor pode deter uma posição curta em acções sem ter efectuado qualquer venda curta das mesmas – e o inverso também pode ser verdade. A posição curta pode resultar não da venda curta de acções mas sim da aquisição de posições curtas em derivados (em contratos por diferenciais ou CFDs ou num contrato de swap): de uma posição curta sinté-tica, como sucede as mais das vezes. As posições curtas relevantes para efeitos de transparência são posições curtas compensadas por eventuais posições longas detidas sobre a mesma acção ou sobre o mesmo emitente de dívida soberana5. O regime incide também sobre as regras de cál-culo das posições curtas e das posições longas (como é que a detenção de um derivado sobre um índice deve ser contado, p.ex.) bem como da compensação entre ambas. Sobre esta vertente do regime não nos deteremos, excepção feita para as

3- Podendo sê-lo na qualidade de investidores.

4- Um investidor detém uma posição curta numa determinada acção quando detém instrumentos financeiros que lhe permitem beneficiar em caso de descida do preço da acção – e uma posição longa quando a subida de preço lhe confere vantagem.

5- Se, por exemplo, um investidor vender a descoberto acções representativas de 0,3% do capital social de uma sociedade e adquirir posições longas em CFDs representativas de 0,1% do referido capital social, a sua posição curta, depois de compensada (descontada) aposição longa será de 0,2%.

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regras especiais de cálculo aplicáveis a estruturas complexas como é o caso da actividade de gestão de activos ou dos grupos de empresas.

Como contrapartida da harmonização do regime a nível europeu com a consequente retirada de pode-res às autoridades nacionais neste domínio – para definirem as regras –, contempla alguns elementos de flexibilidade reconhecendo a possibilidade de surgirem situações de mercado excepcionais e a necessidade de as mesmas serem geridas pelas autoridades nacionais e europeia. Confere assim poderes às autoridades de supervisão nacionais – e, em certas condições, à própria European

Supervisory Markets Authority (ESMA) – para fixarem temporariamente proibições e restrições à realização de operações de venda curta ou à detenção de posições curtas sobre acções e dívida soberana – ou mesmo sobre outros instrumentos financeiros não abrangidos pelo regime. No caso da dívida soberana e dos CDS os poderes excepcionais são também de sentido contrário, isto é, para levantar proibições ou restrições. Define ainda mecanismos de coordenação entre as autoridades nacionais na adopção dos acima aludidos poderes excepcionais, conferindo à ESMA um papel especialmente relevante neste domínio da coordenação. Entende-se que assim seja porque em matéria de short selling as regras só são adequadamente eficazes se vigentes em diversas jurisdições.

Contempla também excepções, afastando do regime as acções cuja principal plataforma de negociação em termos de liquidez se situe fora da União Europeia. Permite ainda que determi-

nadas regras – as restritivas e as de transparência – não sejam aplicadas a entidades financeiras que tenham uma actividade especialmente relevante para o funcionamento dos mercados, como é o caso dos market makers e dos primary dealers,

apenas no âmbito dessas actividades e em relação às concretas acções ou dívida soberana objecto da actividade.

O regime proíbe a detenção de CDS soberanos6 a descoberto7. No entanto, delimita com alguma amplitude os casos que se podem considerar de detenção de CDS com o propósito de cobertura de risco (de hedging), assim circunscrevendo as possibilidades de legítima detenção de CDS. Visa banir a utilização destes instrumentos finan-ceiros com intuitos especulativos, tendo o cuidado de não introduzir barreiras à sua disponibilidade para efeitos de estratégias legítimas de cobertura de risco, de modo a prevenir ineficiências e au-mentos de custos para o mercado.

Adiante propomo-nos percorrer estes diversos traços do regime europeu do short-selling.

Já depois da entrada em vigor do regime europeu, a ESMA aprovou guidelines dirigidas às autori-dades de supervisão nacionais sobre as isenções ao regime para as actividades de market making

e para primary dealers8. Aprovou também um conjunto de perguntas e respostas (Q & A) para esclarecer algumas dúvidas de interpretação que entretanto se foram colocando9. Igualmente depois da entrada em vigor do regime, e tal como previsto no RSS, a ESMA elaborou e entregou à Comissão Europeia um interessante relatório com o balanço da aplicação do regime10.

6- CDS que tenham como activo subjacente dívida soberana (não sendo a proibição aplicável a CDS sobre dívida privada).

7- Em particular sobre o tema da proibição ou não dos CDS soberanos a descoberto, antes da entrada em vigor do RSS vide ALVES, CARLOS FRANCISCO, Um Breve Contributo para a Eliminação de Alguns Equívocos sobre o Short Selling, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, vol. 37, pp. 10-32.

8- Em Abril de 2013 (ref.ª ESMA/2013/74): Exemption for market making activities and primary market operations under Regulation (EU) 236/2012.

9- Em Janeiro de 2013 (ref.ª ESMA/2013/159): Questions and Answers – Implementation of the Regulation on short selling and certain aspects of credit default swaps (2nd UPDATE).

10- Em Junho de 2013 (ref.ª ESMA/2013/614): ESMA‘s technical advice on the evaluation of the Regulation (EU) 236/2012.

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Ainda a nível europeu mas antes da 2012, houve também desenvolvimentos relevantes, em Março e Maio de 2010, com a aprovação pelo então Co-mité Europeu de Reguladores e Supervisores dos mercados de instrumentos financeiros (CESR), de pareceres técnicos dirigidos à Comissão Europeia e relativos à adopção de um regime europeu de transparência de posições curtas relevantes sobre acções11.

No plano nacional, o regime de transparência sobre acções é muito anterior ao aconselhamento técnico do CESR, remontando a 2008, na sequên-cia da crise financeira mundial12. Mais tarde, em 2010, o regime de transparência sofre ajustamen-tos para se adaptar ao aconselhamento do CESR e estende-se a todas as acções negociadas em mercado regulamentado ou em sistema de nego-ciação multilateral a funcionar em Portugal (antes vigorava apenas para as acções que integravam o PSI 20 e de emitentes financeiros)13.

Ainda no plano nacional, importa não perder de vista que até Novembro de 2012 vigoraram res-trições adicionais à realização de operações de venda curta sobre acções de emitentes financeiros admitidos à negociação em mercado regulamen-tado a funcionar em Portugal14.

Importará também ter presente a disciplina con-sagrada no Código dos Valores Mobiliários (Cód. VM)15, desde a sua primitiva redacção, sobre vendas de instrumentos financeiros bem como o parecer genérico da CMVM sobre vendas curtas16.

Ainda a este propósito é interessante recuar até ao Código do Mercado dos Valores Mobiliários para recordar as condições muito restritivas que o seu art. 410.º estabelecia para a realização de operações de venda em bolsa com a regra geral de que “só podem ser objecto de operações de

venda a contado os valores de que o comitente

tenha legitimidade para dispor na data da res-

pectiva ordem de bolsa”. O corretor executante tinha mesmo que verificar a disponibilidade dos valores e promover o respectivo bloqueio.

Por fim, e antes de avançar para o regime europeu vigente, recuaremos um pouco mais no tempo para dizer que as operações de venda curta estão longe de constituir uma novidade ou uma con-sequência da globalização ou sofisticação dos mercados e dos investidores. Já no princípio do século passado, ao comentar os arts. 354.º a 356.º do Código Comercial de 1888, CUNHA GON-ÇALVES17 escrevia “Das vendas firmes, as mais

interessantes e as que mais se prestam ao jogo são

11- Na vertente europeia, podem-se também recordar as proibições de constituição e de incremento de posições curtas em acções de emitentes financeiros que foram tomadas por diversas autoridades de supervisão, designadamente em Agosto de 2011, na sequência da elevada volatilidade das acções de emitentes financeiros na Europa (cfr. decisões da HCMC grega de 8/8, da FSMA belga, da AMF francesa e da CNMV espanhola, também de 11/8 e da Consob italiana de 12/8).

12- Regulamento da CMVM n.º 4/2008, de 26 de Setembro.

13- Regulamento da CMVM n.º 4/2010, de 8 de Julho.

14- Instrução da CMVM n.º 2/2008, de 22 de Setembro, aplicável aos membros dos mercados a funcionar em Portugal. Vigoraram também temporariamente obrigações de informação à CMVM relacionadas com vendas a descoberto (Instrução da CMVM n.º 1/2008, de 19 de Setembro).

15- Sobre o regime jurídico das vendas curtas antes da entrada em vigor do RSS, em especial quanto à discussão da admissibi-lidade ou não do designado naked short selling de acções em mercado regulamentado nacional, vide SILVA, PAULA COSTA, As Operações de Venda a Descoberto de Valores Mobiliários, Coimbra Editora, 2010.

16- O art. 326.º, n.º 2, alíneas a) e b) do Cód. VM que confere ao intermediário financeiro que recebe uma ordem de venda a faculdade de não a executar se o ordenante não lhe disponibilizar os instrumentos financeiros nem fizer demonstração do respectivo bloqueio. Parecer Genérico sobre vendas curtas (short selling) de Janeiro de 2001 com as alterações introduzidas em Setembro de 2008.

17- Comentário ao Código Comercial Português, Empresa Editora José Bastos, Lisboa, 1916, Vol. II, n.º 539, pp. 370-371.

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O REGIME EUROPEU DO SHORT SELLING : 33

as que se fazem a descoberto, isto é aquelas em

que nem o vendedor possue os títulos que vende,

nem o comprador tem o dinheiro que representa

o preço. Sendo o contrato feito a sério, durante

o praso, o vendedor adquire os títulos a entre-

gar, pelo menos por meio de um reporte (…)”.

E prossegue referindo-se mesmo àquilo que hoje é vulgarmente designado por intra-day short selling

(apelidando-o de contrato diferencial indirecto): “(…) o vendedor a descoberto, não possuindo

os títulos, recompra-os para o dia da liquidação,

para os pagar com o preço da venda anterior.

No dia da liquidação cada uma das operações é

compensada pela inversa”. Conclui a sustentar a validade da venda, ainda que os títulos não sejam entregues pelo vendedor na data da liquidação, po-dendo apenas a eficácia do contrato ser invocada pelo comprador18.

1. CONDIÇÕES PARA REALIZAÇÃO DE OPERAÇÕES DE VENDA CURTA

O RSS visou harmonizar nas diversas jurisdições da UE as condições para realização de operações de venda curta sobre acções admitidas à nego-ciação em plataforma de negociação europeia e sobre dívida soberana – e é este o mais relevante aspecto do regime europeu do short-selling con-sagrado no RSS.

Para tal o RSS define o que se deve entender por operação de venda curta, assim delimitando a realidade que pretende disciplinar para, depois, estabelecer em que condições restritivas podem os investidores realizar essas operações de venda curta. É o que iremos ver de seguida, dedicando especial atenção aos casos em que são permitidas

vendas curtas com a intervenção de entidades terceiras.

As condições que devem estar preenchidas para a realização de uma operação de venda curta aplicam-se a qualquer investidor, independen-temente da sua natureza jurídica e da jurisdição da sua sede ou residência. O regime europeu tem por destinatários das obrigações e limitações nele estabelecidas os investidores.

Quanto aos CDS, o RSS proíbe a aquisição de CDS a descoberto (art. 14.º, n.º 1) motivo pelo qual não se coloca sequer o tema das condições restritivas para as vendas a descoberto em relação a estes instrumentos financeiros.

1.1. Conceito de venda curta

O conceito de venda curta encontra-se consagrado no art. 2.º, n.º 1, b) do RSS, entre as definições, e é muito amplo: inclui todos os casos em que, no momento em que ordena a venda, o investidor não é titular (não é proprietário19) das acções ou das obrigações. Ainda que tenha já no momento da transmissão da ordem de venda obtido os títulos de empréstimo ou celebrado acordo para os obter de empréstimo a tempo da liquidação, o RSS considera a venda como sendo curta – trata depois estes casos de empréstimo como actos legitimadores da operação de venda curta.

O legislador europeu esclarece ainda, no RSS (art. 2.º, n.º 1, b), (i) a (iii) e considerando 17), que o conceito não abrange, designadamente, os con-tratos de futuros ou outros contratos de derivados em que seja acordada a venda de títulos no futuro nem os acordos de recompra20.

18- É pertinente ainda recordar, com CUNHA GONÇALVES, o regime especial das vendas sobre fundos públicos em relação às quais o Código Comercial de 1888 não admitia os contratos diferenciais obrigando o vendedor a deter e entregar os títulos na liquidação (não podia liquidar por compensação); ou o art. 273.º do Código Penal à data vigente que punia com pena de prisão até 6 meses aquele que vendesse, entre outros, fundos do governo ou de estabelecimentos públicos se não provasse que os tinha à sua disposição no momento da venda ou que os devia ter no momento da entrega. Como se vê, a problemática das vendas curtas está longe de ser um tema recente.

19- “Does not own” na versão em inglês do RSS.

20- Em que uma parte vende títulos a outra a um determinado preço ficando esta contraparte vinculada a vender de volta os títulos numa data futura a um preço convencionado.

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No art. 3.º, n.º 2, do RD 918, o legislador indica mais casos que não se devem considerar abran-gidos pelo conceito de vendas curtas, assim os excluindo do conceito.

São, por exemplo, as situações em que o investi-dor compra os títulos em momento anterior ao da transmissão da ordem de venda, no pressuposto de que o prazo de liquidação da compra é compatível com o da venda. Será o caso de um investidor day-trader que começa a sessão com uma posi-ção longa para a encerrar de seguida, vendendo as acções compradas mas que ainda não recebeu.

Também a venda pelo mutuante não é considerada curta desde que o mutuante tenha o direito de re-ceber os títulos a tempo de assegurar a atempada liquidação da operação e tenha exercido esse direito21.

Por fim, não é considerada curta a venda pelo titular de opção de compra – ou direito de efeito equivalente – cujo exercício lhe permita obter os títulos a tempo de assegurar a liquidação da venda.

Estes são casos, sublinhe-se, não de condições legitimadoras da realização de operações de venda curta mas sim de vendas que não se consideram curtas apesar de o investidor poder não ser o pro-prietário dos instrumentos financeiros22, conceito este (propriedade de instrumentos financeiros) que não é uniforme nas diversas jurisdições euro-peias23 o que permite compreender algumas das opções do legislador europeu.

No seu n.º 1, o art. 3.º do RD 918, estatui que, para efeitos de determinar se o investidor é ou

não proprietário das acções ou da dívida soberana objecto da venda é aplicável a lei da jurisdição em que a venda é executada. Não releva, por isso, a lei do Estado da sede ou residência do investi-dor, do local da transmissão da ordem de venda ou da jurisdição em que possa ter realizado um determinado negócio do qual proteste resultar o direito de propriedade: releva apenas a lei da juris-dição em que a venda se destina a ser executada. Pese embora o legislador tenha o cuidado de excluir determinadas situações jurídicas do conceito de venda curta, como acabámos de ver, assegurando-se de que as leis nacionais não inter-ferem na harmonização do conceito, este princípio (aplicação da lei da jurisdição da venda) reveste-se da maior importância, de modo a prevenir que a aplicação de leis extra-UE, designadamente leis de jurisdições off-shore, possam contribuir para contornar o regime europeu das vendas curtas.

Outro contributo importante deste art. 3.º, n.º 1 em relação à definição do investidor proprietário dos instrumentos financeiros é o da relevância do beneficiário económico final na sua acepção material, isto é, o que assumiu e detém efectiva-mente o risco económico associado à venda (ou aquisição, se se tratar de um derivado) do instru-mento financeiro – não relevando para este efeito, claro está, eventuais posições longas detidas em relação ao mesmo instrumento financeiro mas apenas a propriedade em si mesma. Deste modo, o RD918 resolve a questão complexa das cadeias de custódia e das inerentes detenções por conta de terceiro (dos titulares das ditas nominee accounts, nomeadamente).

21- É frequente ver convencionada nos contratos de empréstimo com investidores profissionais uma cláusula dita de recall mediante a qual o mutuante tem a faculdade de, a qualquer momento, exigir ao mutuário a devolução dos títulos o que este deverá fazer em 3 dias de negociação. Diferente deste modelo é o dos contratos de empréstimo a termo. Perante estes últimos, a venda pelo mutuante só poderá não ser tida como curta se a liquidação da venda não for posterior à data convencionada no contrato de mútuo para entrega dos títulos.

22- Embora a última das acima referidas (exercício de opção de compra) seja de muito difícil distinção de uma das condições legitimadoras.

23- A questão de saber se o contrato de mútuo opera, ou não, a transmissão do direito de propriedade sobre os instrumentos financeiros não tem uma resposta uniforme nas diferentes legislações europeias, por exemplo.

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Ainda em relação ao conceito de venda curta, será pertinente distingui-lo do conceito de detenção de acções ou de obrigações para efeitos de cálculo de posições longas, consagrado no art. 4.º do RD 918. Este é mais amplo, residindo a diferença na sua alínea b): se o investidor for titular, à luz da lei da jurisdição da venda, de um direito irrevo-gável a ver transferida para si a propriedade das acções ou das obrigações, considera-se – para efeitos de cálculo de posições longas – que ele detém os instrumentos financeiros objecto desse direito irrevogável24. Quanto ao regime das vendas curtas, como teremos oportunidade de ver infra, este direito irrevogável poderá constituir uma das causas legitimadoras da venda curta mas somente nos casos em que a entrega dos instrumentos fi-nanceiros ocorra a tempo de permitir a liquidação da venda.

A venda curta de instrumentos financeiros é, em rigor, a venda de um bem alheio. Porém, o seu regime é bem distinto dos regimes de direito civil e de direito comercial.

O Código Comercial de 1888, no seu art. 467.º, n.º 2 (já revogado) estatuía a admissibilidade da venda de coisa alheia, caso em que o vendedor ficava obrigado “a adquirir por título legitimo

a propriedade da cousa vendida e a fazer a en-

trega ao comprador, sob pena de responder por

perdas e danos”. Também aqui, no domínio do direito comercial, se reconhecia a necessidade, decorrente de práticas comerciais habituais, de admitir a validade dos contratos de venda de coisa que fosse propriedade de terceiro ficando o comerciante vendedor obrigado perante o compra-dor pela sua entrega ou pelo pagamento de uma indemnização. Já no direito civil o contrato de venda de bens alheios é nulo (art. 892.º do Código

Civil), fi cando o vendedor obrigado a convalidar o contrato pela aquisição da propriedade do bem objecto da venda (art. 897.º, n.º 1 do Cód. Civil), de modo a garantir a entrega da coisa vendida (art. 882.º do Cód. Civil)25.

Embora na sua essência, como dissemos, o con-ceito de venda curta de instrumentos financeiros negociados em mercado seja o da venda de bens alheios, não nos parece possível reconduzir as normas europeias ao regime do direito civil (ou comercial).

Por um lado, as normas europeias restringem as condições em que pode ser realizada uma venda de acções (ou de dívida soberana) de que não se seja proprietário, proibindo-as se não se verificarem determinadas condições, todas elas orientadas para a responsabilidade do ordenante pela entrega das acções vendidas. O regime civil prevê a possibilidade da venda de coisa de que não se seja proprietário para estabelecer depois o seu regime. O primeiro versa sobre as condições das vendas (incide sobre o momento anterior à venda) e o segundo sobre as suas consequências (sobre o momento subsequente à venda).

Por outro lado, na venda de instrumentos finan-ceiros em mercado – regulamentado, designada-mente – o investidor vendedor não assume com-promissos perante o investidor comprador, que nem sequer conhece. A obrigação e a garantia de entrega dos instrumentos financeiros é assumida por intervenientes especiais, participantes nos sistemas de compensação ou de liquidação do mercado. Por sua vez, os membros que negoceiam no mercado assumem responsabilidades perante aqueles e os investidores ordenadores das vendas perante os intermediários a quem transmitem as

24- Em linha similar à de alguns dos casos de detenção considerados relevantes pela Directiva da Transparência para efeitos de cálculo de participações qualificadas (e pela Directiva das OPAs para outros efeitos).

25- Em qualquer caso o vendedor que não entregasse a coisa vendida constituía-se na obrigação de indemnizar o comprador como bem assinala MARTINEZ, PEDRO ROMANO, Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos, Almedina, 2.ª Edição, 2001, p. 120.

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ordens de venda (que não são necessariamente os membros do mercado que as executam): quem vende não está obrigado a entregar ao comprador e quem assume esta obrigação não vende.

Os negócios em mercado envolvem cadeias de in-tervenientes complexas, normalmente localizados em diversas jurisdições, e responsabilidades de diversa natureza entre os intervenientes na cadeia. Destas diversas responsabilidades o regime euro-peu do short-selling não cuida. Pressupõe a sua existência e adiciona-lhes uma outra – importante – responsabilidade perante o sistema. Vai ao final da cadeia para obrigar quem vende – o investidor – a garantir, se não dispuser das acções no momento em que decide vender, que as pode obter e entregar atempadamente. Se, por si ou através de terceira entidade, não conseguir assegurar esta condição não pode vender.

1.2. Restrições à realização de vendas curtas

O RSS, nos seus arts. 12.º e 13.º, respectivamente para as acções e para a dívida soberana, estabelece as condições para a realização de operações de venda curta. Ou seja, o RSS proíbe, por princípio, a realização de operações de venda curta admi-tindo-as apenas se se encontrarem preenchidos determinados requisitos: teve por efeito, como acima referimos, restringir as condições em que na União Europeia podem ser ordenadas vendas curtas sobre acções e dívida soberana.

De um modo muito simples pode-se dizer que se o investidor não for proprietário dos títulos (e em relação a ele não se verificar alguma das situações excluídas do conceito de venda curta, acima pas-sadas em revista) só os poderá vender se estiver legitimado por empréstimo desses mesmos títulos ou por direito que lhe confira a propriedade até ao momento da liquidação. Pode ainda – naquilo que constitui uma importante inovação do RSS – vender com base numa intervenção de uma terceira entidade (financeira). Vejamos em detalhe

cada uma destas condições, alternativas entre si.

A primeira encontra-se, como se disse, relaciona-da com o empréstimo: o investidor pode vender acções ou dívida soberana de que não seja proprie-tário tiver já obtido os títulos por empréstimo (os tiver já recebido) ou se tiver já celebrado contrato de empréstimo (ou accionado cláusula deste) que lhe garanta a disponibilidade dos títulos a tempo de assegurar a oportuna liquidação da operação: é o que resulta da primeira parte das alíneas a) e b) dos n.ºs 1 dos arts. 12.º e 13.º do RSS. De acordo com a segunda parte das alíneas a) dos n.ºs 1 dos arts. 12.º e 13.º, é suficiente qualquer outro instru-mento jurídico do qual resulte efeito equivalente ao do empréstimo dos títulos (detenção com poder de disposição dos mesmos, designadamente).

A segunda das condições (2.ª parte das alíneas b) dos n.ºs 1 dos arts. 12.º e 13.º do RSS) admitidas para legitimar a realização de uma venda curta é a de o investidor dispor de um direito irrevogável, de natureza contratual ou real, à transmissão para si do direito de propriedade sobre os instrumentos financeiros objecto da venda curta desde que em quantidade não inferior à venda e em momento compatível com a atempada liquidação da ope-ração.

O art. 5.º do RI 827 vem concretizar este tipo de direitos, fornecendo uma listagem dos mesmos. De entre esses exemplos figura a detenção de di-reitos de subscrição ou os contratos de futuros, de opções ou de swap que prevejam a entrega física dos títulos objecto da venda curta26. Além destes, o art. 5.º do RI 827 contempla uma cláusula resi-dual e abrangente: a alínea f) do n.º 1. Esta prevê a possibilidade de existir qualquer outro direito ou contrato do qual resulte a obrigação de entrega das acções ou dívida soberana objecto da venda curta, em quantidade suficiente e em prazo compatível com a liquidação da operação. Assim, o RI 827 fornece um conjunto de exemplos de direitos que

26- Além destes prevêem-se também os acordos de recompra e os standing agreements ou rolling facilities.

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considera suficientes para legitimar a venda curta mas sem fechar a porta a quaisquer outros com efeito equivalente.

Os direitos em apreço – quaisquer que sejam – devem estar constituídos até ao momento da transmissão da ordem de venda curta, devem ser juridicamente vinculativos (e irrevogáveis) entre a transmissão da ordem e a liquidação da operação, ter prazo de execução compatível com a atempada liquidação e, de acordo com o n.º 2 da norma, constar de suporte durável que o investidor deve manter (embora o RI 827 não concretize o prazo).

A terceira condição, sobre a qual nos deteremos infra, é a habitualmente designada locate confir-

mation por uma terceira entidade (arts. 12.º e 13.º, n.ºs 1, alíneas c) ). O investidor não tem nenhum contrato de empréstimo nem qualquer direito à transferência atempada do direito de propriedade, dirigindo-se a uma terceira entidade (que não tem que ser o intermediário receptor da ordem de venda curta) para que esta emita uma declaração que lhe confira uma expectativa razoável de liqui-dação da operação. Como se verá mais à frente, as declarações em causa assumem natureza distinta, mas poder-se-á desde já adiantar que a intervenção das entidades terceiras varia entre, no grau mais forte, a responsabilidade pela atempada liquidação da operação de venda curta pelo investidor e, no grau mais fraco, a responsabilidade por certificar a facilidade de encerramento atempado da posição em condições normais de mercado. À frente ver--se-á o regime destas declarações – que reveste alguma complexidade.

É nesta intervenção das entidades terceiras – além da excepção a que se aludirá já de seguida – que reside a única diferença (que não é de somenos)

entre as condições restritivas para a realização de operações de venda curta em acções e em dívida soberana – tornando menos limitativa a realização de vendas curtas sobre dívida soberana, como o RSS pretende e assume. A diferença de redacção da segunda parte das alíneas c) dos n.ºs 1 dos arts. 12.º e 13.º é a este respeito decisiva.

Finalmente, e exclusivamente em relação à dívida soberana, não se aplicam as restrições a operações de venda curta sempre que as mesmas se destinem a cobrir o risco de detenção de posições longas em instrumentos representativos de dívida cujo preço apresente uma correlação elevada com o preço da dívida soberana em causa. Esta é uma importante excepção às restrições à venda curta de dívida soberana consagrada no art. 13.º n.º 2, desde que a venda seja feita com o propósito de hedging de outra dívida que apresente correlação elevada de preço. A excepção é muito ampla porque o RSS não estabelece limitações à natureza, pública ou privada, do emitente da dívida correlacionada nem parece estabelecer limitações geográficas quanto à sede do emitente dessa dívida. Também não concretiza o conceito de correlação elevada – que é objecto de concretização no RD 918 mas para outros fins27.

1.3. O caso concreto da condição relacionada com a intervenção de entidades terceiras

Uma das principais novidades do regime europeu é a de ter concebido um mecanismo de intervenção de entidades terceiras – que não necessariamente o intermediário financeiro que recebe ou executa a ordem de venda curta do investidor28 – que assu-mem responsabilidades na realização da operação de venda curta. Essas responsabilidades variam em função da natureza do instrumento financeiro

27- Embora não pretendamos entrar no domínio das regras aplicáveis em geral ao cálculo de posições curtas compensadas não deixaremos de notar que a correlação elevada é também usada pelo art. 3.º, n.º 5 do RSS quando admite que uma posição curta em determinada dívida soberana possa ser compensada não apenas com essa dívida soberana mas também com outra que com ela apresente correlação elevada.

28- O qual pode nem sequer ter conhecimento da intervenção da entidade terceira.

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(acções ou dívida soberana), do tipo de operação (short-selling intra-diário, p.ex.) ou da natureza, líquida ou não, do instrumento financeiro. Podem ir desde a garantia pela atempada entrega dos instrumentos financeiros até a abordagens mais flexíveis de aferição da existência de condições fáceis de recompra ou obtenção de empréstimo pelo investidor. Todo o mecanismo foi pensado para obter um adequado compromisso entre a necessária garantia da liquidação das operações de venda curta para os investidores que não são titulares de direito que lhes permita dispor dos instrumentos financeiros, por um lado, e por evitar que este mecanismo gerasse custos acrescidos para o mercado, quer quanto à realização de ope-rações de venda curta quer quanto à desnecessária imobilização de instrumentos financeiros.

Pela relevância que assumem perante todo o sistema, o legislador europeu rodeia-se de acres-cidas cautelas quando disciplina as entidades terceiras. Subjectivamente, impõe que revistam determinadas características que garantam a sua credibilidade perante o sistema, reservando este papel para entidades que integram o sistema finan-ceiro. Mas não se basta com isso: objectivamente exige-lhes que tenham um especial conhecimento e experiência do mercado do concreto instrumento financeiro sobre o qual incida a sua intervenção legitimadora da venda curta.

Por isso – pela sua novidade e relevância – de-dicaremos especial atenção a esta condição legitimadora das vendas curtas: a intervenção de entidades terceiras.

1.3.1. Entidades terceiras (third parties)

Um dos casos previstos pelo RSS para legitimação de uma operação de venda curta é o de intervir uma terceira entidade que assume determinadas responsabilidades perante o investidor de modo a prevenir ou, pelo menos, mitigar o risco de não liquidação das operações (arts. 12.º e 13.º, n.ºs 1, alíneas c) ). Porém, o RSS não se satisfaz com a intervenção de uma qualquer entidade, ainda que de natureza financeira. Pelo contrário, reserva essa possibilidade a um leque limitado de enti-dades e não se basta com isso: exige ainda que tenham uma relação próxima com as acções ou dívida soberana cujas operações de venda curta viabilizem. É o art. 8.º do RI 827 que estabelece os requisitos que devem preencher29.

Podem ser entidades terceiras as empresas de investimento, qualquer outra entidade que tenha sido autorizada ou registada por membro do Sistema Europeu de Supervisão Financeira (uma instituição de crédito ou uma empresa de seguros, p.ex.) ou uma entidade extra-UE que tenha sido autorizada ou registada no seu Estado de origem e esteja sujeita a supervisão nesse Estado30.

O RI 827 exige (art. 8.º, n.º 2), para estas três categorias de entidades, que dêem garantias do envolvimento com as acções ou dívida soberana em causa e de conhecimento dos respectivos mercados – de transacções e de empréstimos. As mencionadas entidades precisam de estar, de algum modo31, envolvidas na compra ou no em-préstimo das acções ou dívida soberana objecto da

29- Embora a prática dos actos reservados a entidades terceiras não esteja dependente de autorização, a falta de preenchimento dos requisitos para ser entidade terceira, incluindo a falta superveniente ou o incumprimento frequente dos seus deveres pode justificar a não aceitação das suas intervenções pelas autoridades de supervisão – que não lhe seja reconhecida a qualidade de entidade terceira.

30- Desde que a autoridade de supervisão desse Estado mantenha acordo de troca de informações com a autoridade de super-visão competente para controlar a observância das regras sobre as vendas curtas objecto da intervenção da entidade (a das acções ou do emitente de dívida soberana).

31- Dizemos de algum modo porque o regime não parece impor que a entidade terceira necessariamente compre ou empreste os títulos, podendo ter outro tipo de intervenção como, por exemplo, intermediação entre o titular das acções mutuante e os investidores mutuários. Com efeito, o art. 8.º, n.º 2, alínea a) do RI 827 refere “participate in the management of borrowing or purchasing” [sublinhado nosso].

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venda curta que legitimem perante o investidor e demonstrar esse envolvimento. Se solicitadas para tal, têm também que comprovar a sua capacidade para entregar os títulos atempadamente às suas contrapartes (aos investidores), incluindo dados estatísticos.

Além das referidas entidades, o RI 827 admite ainda que possam ser entidades terceiras os bancos centrais, as entidades gestoras de dívida pública, as contrapartes centrais e os sistemas de liquidação. Para todas – à excepção da entidade gestora da dívida pública – impõe uma ligação aos títulos objecto da venda curta em relação à qual intervenham: por exemplo, para as contrapartes centrais, que compensem os títulos em causa.

A autoridade de supervisão competente para aferir da legitimidade da operação de venda curta pode solicitar os elementos e informações de que careça para verificar se a entidade preenche todos os requisitos, subjectivos e objectivos, para poder intervir como entidade terceira.

A entidade terceira é assim uma entidade finan-ceira que precisa de ter – e demonstrar – a quali dade de especialista nas concretas acções ou obrigações de dívida pública objecto da sua intervenção: não necessariamente enquanto enti-dade que transacciona os instrumentos financei-ros podendo ser mero detentor, emprestador ou especialista na intermediação de empréstimos. Nada impede que seja o intermediário financeiro receptor da ordem da venda que poderá cobrar custos pela sua intervenção enquanto entidade terceira. Também nada parece obstar a que a en-tidade terceira integre o grupo financeiro da que procede à venda curta – não se vê motivo para impedir a intervenção no âmbito do grupo.

Pode-se dizer, muito em síntese, que se admite a intervenção como third party a entidades financei-ras devidamente autorizadas, incluindo as extra--UE, desde que estejam envolvidas no mercado de

compras ou de empréstimos dos títulos em causa, de modo a que a sua intervenção ofereça garantias mínimas de conhecimento dos mercados do título e de estar em condições para garantir ou contribuir para a liquidação atempada da operação de venda curta. Além destas, também as entidades gestoras de sistemas de liquidação, de contrapartes centrais e os bancos centrais e entidades gestoras da dívida pública podem intervir em relação aos títulos com que mantenham envolvimento.

1.3.2. Acções

Os termos em que a intervenção das entidades terceiras é admitida – para legitimar a realização de uma operação de venda curta – encontram--se previstos no art. 6.º do RI 827. Esta norma estabelece um regime regra e admite um outro, mais flexível, aplicável a acções líquidas e, com pequenas particularidades, a quaisquer acções, sempre que o investidor tencione realizar apenas uma operação de venda curta intra-diária. Estes regimes específicos apresentam alguns traços comuns.

De acordo com o regime regra (art. 6.º, n.º 2 RI 827), a entidade terceira tem que emitir uma con-firmação de alocação das acções objecto da pre-tendida operação de venda curta e tem, cumulati-vamente, que emitir uma confirmação de reserva das acções. Assim, a entidade terceira declara que alocou as acções por determinado prazo32 de modo a poder disponibilizá-las a tempo de assegurar a atempada liquidação da operação – e é nisto que reside a locate confirmation. Porém, não basta emitir esta declaração de alocação das acções: é necessário que a entidade terceira coloque as acções sob reserva (put on hold confirmation).

Com a emissão da declaração de alocação e de reserva, as entidades terceiras assumem perante o investidor destinatário a obrigação de entregar as acções objecto da venda curta na quantidade necessária e dentro do prazo que garanta a atem-

32- Por isso, o prazo de validade da declaração de alocação deverá constar sempre da mesma.

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pada liquidação da operação. Não é necessário que a entidade terceira seja titular das acções ou que disponha delas por empréstimo mas tem, pelo menos, de as poder obter junto de terceiro. É esta terceira entidade que, se for necessário, irá entregar as acções a tempo de garantir a liquidação da venda curta realizada pelo investidor: quando emite a reserva (a put on hold confirmation)

precisa de ter uma segurança jurídica (e não uma mera expectativa) quanto à atempada disponibi-lização das acções: porque detém as acções ou a elas pode aceder.

Entendemos que, em relação a estas – e a quais-quer outras obrigações das entidades terceiras consagradas nos regulamentos –, as autoridades de supervisão competentes para controlarem o cumprimento das regras sobre realização das ope-rações de venda curta (a autoridade de supervisão das acções) dispõem de poderes para supervisio-nar e sancionar os deveres das third parties.

Em relação a acções líquidas33, designadas pelo RI 827 como acções fáceis de obter de emprés-timo ou de comprar (art. 6.º, n.º 4), admite-se um regime mais flexível permitindo-se que as entidades terceiras possam optar por não emitir declaração de reserva substituindo-a por declara-ção de facilidade de obtenção por empréstimo ou por compra. A razão de ser da consagração deste regime mais flexível é a de prevenir os previsíveis maiores custos associados à imobilização das acções resultante da exigência, no regime regra, da confirmação de reserva – não se justificando aqui em resultado da natureza líquida do mercado da acção. A confirmação de alocação mantém-se, devendo também neste caso das acções líquidas ser emitida pela third party.

Nesta hipótese, o investidor deve transmitir à enti-dade terceira instruções para procurar as acções se ele próprio não as conseguir comprar nem obter de empréstimo. A instrução deve ser transmitida pelo investidor logo após verificar que não consegue comprar as acções nem obtê-las por empréstimo e, entendemos, deve a entidade terceira obter as acções a tempo de assegurar a atempada liquida-ção da operação de venda curta34.

Para estes efeitos, o conceito de acções líquidas (em rigor, como acima se disse de acções fáceis de comprar ou de obter de empréstimo) não coincide com o da Directiva do Mercado de Instrumentos Financeiros (DMIF), porque, além das acções líquidas na acepção daquela Directiva35, com-preende ainda as acções que integrem o principal índice de cada Estado-membro e sejam, simulta-neamente, activo subjacente de contrato de deri-vados negociado em plataforma de negociação.

Note-se que a declaração a emitir pela entidade terceira não é um simples reconhecimento de a acção objecto de venda curta se reconduzir a esta categoria (para isso não seria necessária a decla-ração). A declaração é emitida por uma entidade com conhecimentos especiais sobre o mercado da acção em causa, tem que considerar as condições de mercado existentes – e toda a informação de que a entidade disponha sobre a acção – bem como a quantidade que o investidor pretende vender. É, por isso, uma previsão resultante da análise ao mercado da terceira entidade e que envolve para esta a obrigação de procurar obter as acções ne-cessárias para garantir a liquidação se o investidor não o conseguir.

Por fim, prevê-se um regime para operações de venda curta intra-diárias (art. 6.º, n.º 3 do RI

33- Designação que adoptaremos para facilidade de compreensão.

34- Precisa para isso que o investidor não se atrase a transmitir-lhe as instruções para cobertura da venda e, em circunstâncias normais, deverá disponibilizar as acções ao investidor a tempo de este liquidar a operação. Depois de ter declarado a facilidade de compra ou de obtenção de empréstimo a entidade terceira precisará de ter uma justificação relevante e atendível – designa-damente perante a autoridade de supervisão competente – caso não consiga disponibilizar as acções atempadamente.

35- Cfr. art. 22.º do Regulamento Europeu n.º 1287/2006, de 2/9.

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827). Este regime aplica-se aos casos em que o in-vestidor, quando solicita a declaração de alocação, informa a entidade terceira que pretende encerrar a posição curta no mesmo dia, comprando as acções vendidas a descoberto. É em quase tudo semelhante ao regime flexível aplicável às acções líquidas designadamente na obrigatoriedade de emissão da declaração de alocação das acções, comum a todos os regimes, e à possibilidade de a third party substituir a declaração de reserva das acções por uma confirmação de facilidade de compra ou de obtenção por empréstimo. Também aqui o investidor fica vinculado a transmitir ins-truções de cobertura da operação de venda curta nos termos mencionados para as acções líquidas com duas particularidades. Do confronto das duas normas resulta que, neste cenário de venda curta intra-diária, a instrução deve ser transmitida logo que o investidor verifique que não consegue com-prar as acções (na mesma sessão de mercado), não devendo aguardar pela tentativa de obter de em-préstimo, por um lado. Por outro lado, o investidor fica obrigado a monitorizar o montante da posição curta não encerrada, obrigação de monitorização não aplicável ao regime das acções líquidas não gizado para vendas curtas intra-diárias36.

Em síntese, e simplificando: exige-se sempre que a entidade terceira confirme a alocação das acções, responsabilizando-se pela sua atempada disponibilização ao investidor. No regime regra tem também que reservar as acções. Para as operações de venda curta intra-diárias e para as vendas curtas de acções líquidas (na acepção do RI 287), permite-se que a third party substitua a confirmação de reserva das acções pela confirma-

ção da facilidade de obtenção de empréstimo ou de compra, devendo nesta hipótese o investidor transmitir instruções à entidade terceira para lhe disponibilizar as acções caso não as consiga obter por si.

Assim, no regime regra, a entidade terceira reserva as acções e tem que as entregar se se concretizar a venda curta. Nas vendas curtas intra-diárias e nas vendas curtas de acções líquidas (depois de ter declarado que o mercado da acção que conhece – incluindo de empréstimos – é líquido) também terá que as entregar se o investidor o solicitar. Ao contrário do regime regra, parece poder justifi-car a não entrega atempada das acções (porque não está obrigada a reservá-las) em situações excep-cionais: com a manifesta ausência de antecedência aceitável do pedido do investidor (em relação ao momento da liquidação) ou com alterações supervenientes e imprevisíveis das condições de liquidez do mercado das acções.

Com a reserva das acções – sublinhe-se por úl-timo – a entidade assume o compromisso de não as utilizar e, sempre que necessário, de as entregar a tempo de liquidar a venda curta. Em regra terá que garantir a boa liquidação da venda curta que não pretende ser intra-diária nem incidirá sobre acções líquidas. Ou seja, em regra o investidor não terá outro meio de garantir a liquidação, estando para esse efeito dependente da entidade terceira, ao contrário do que sucede em outras modalida-des de intervenção da entidade terceira (em que esta intervém exactamente para assegurar que o investidor conseguirá liquidar pelos seus próprios meios, actuando a entidade terceira apenas sub-sidiariamente)37.

36- Por isso, a venda curta intra-diária de acções líquidas deve-se reger, parece-nos, pelo n.º 3 do art. 6.º do RI 827 e não pelo seu n.º 4.

37- A entidade terceira tem que deter o bem reservado (neste caso as acções) ou dispor do direito de o obter atempadamente junto de terceiro. Caso não detenha as acções e precise de recorrer a um terceiro, qualquer incumprimento deste perante a entidade terceira não a desresponsabiliza nem perante o investidor nem perante o mercado – a autoridade de supervisão com-petente – junto do qual assume o compromisso, de natureza pública, de garantir a entrega das acções a tempo de assegurar a liquidação da venda curta.

A reserva é, de resto, uma figura de há muito conhecida no direito comercial: o comerciante guarda durante determinado prazo um bem para efeitos de venda a um determinado cliente – ainda que sem entrega de qualquer quantia por este que pode

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Todas as três declarações (de alocação, de reserva e de facilidade de obtenção por empréstimo ou compra), têm dois traços de regime comum: todas têm que ser obtidas pelo investidor em momento prévio ao da transmissão da ordem e todas as de-clarações têm que ser emitidas em meio durável para que o investidor possa delas manter evidên-cia, aqui consagrando o legislador europeu uma novidade que consiste em impor aos investidores deveres de obter e conservar documentos (os quais lhe podem ser solicitados pelas autoridades de supervisão das acções objecto da venda curta).

Quanto ao conteúdo, as declarações de alocação e de facilidade de obtenção têm que indicar a quantidade de acções objecto da declaração – que não poderá ser inferior à da venda pretendida. As segundas, além das condições de mercado, devem também considerar outra informação a que a entidade terceira tenha acesso sobre a dis-ponibilidade das acções. Pode a third party, por exemplo, ter acordo com investidor profissional (fundo de investimento, v.g.) que mantenha em carteira disponíveis para empréstimo as acções objecto de venda curta.

1.3.3. Dívida soberana

Para legitimação de uma operação de venda curta sobre dívida soberana, o RSS admite também a intervenção de uma entidade terceira. Todavia, em comparação com as acções, consagrou um regime de intervenção destas entidades menos

exigente, o que resulta da diferença de redacção entre os arts. 12.º, n.º 1, c) e 13.º, n.º 1, c) do RSS conforme intenção expressa no seu considerando 20. Desde logo, o RI 287, no art. 7.º, acolhe, a par da confirmação de alocação das obrigações, dois outros tipos de declarações: a de expectativa razoável de compra no mesmo dia ou de atempada liquidação da operação.

No caso da dívida soberana, o regime das entida-des terceiras apresenta algumas diferenças em re-lação ao regime das acções. A primeira diferença reside na circunstância de nunca ser exigida uma declaração de reserva das obrigações. A segunda, a de não se estabelecerem deveres de procura das obrigações pela entidade terceira. A terceira, a de nem sempre ser exigida a declaração de alocação das obrigações que pode ser substituída por decla-rações de expectativa razoável de compra ou de liquidação, desde que se verifiquem os requisitos para tal.

Aspectos comuns ao regime das acções são a exigência de obtenção de uma declaração em momento prévio ao da transmissão da ordem de venda curta38, a de a declaração dever mencionar a quantidade máxima da operação e a de as decla-rações deverem ser prestadas em suporte durável.

Vejamos então o regime aplicável à dívida sobe-rana. No regime regra (art. 7.º, n.º 2 do RI 287) o investidor tem que obter uma declaração de alocação da dívida soberana, declaração pela

não vir a adquirir o bem. Todavia, entendemos que esta declaração de reserva das entidades terceiras tem uma importante particularidade que é a componente de natureza pública da sua intervenção enquanto mecanismo de salvaguarda do sistema. Com efeito, é a sua intervenção que permite a um investidor praticar um acto – vender acções a descoberto – que de outro modo lhe estava vedado. Dito de outro modo, que lhe permite praticar um acto relativamente proibido. Compreende-se assim que se a entidade terceira incumprir a sua responsabilidade não se circunscreva à sua relação com o investidor e aos prejuízos que eventualmente lhe possa causar: ela é também responsável perante a autoridade de supervisão competente (do mercado em que a venda seja executada).

38- As declarações de expectativa razoável não têm prazo de validade pelo que bastará que seja obtida uma primeira declaração antes de ser transmitida a primeira ordem de venda curta. Depois disso, e no pressuposto de a declaração não ser revogada pela entidade terceira, bastará que as operações de venda curta não excedam a quantidade objecto da declaração de expectativa razoável.

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qual a entidade terceira se obriga a disponibilizar as obrigações objecto da venda curta a tempo de assegurar a liquidação da operação39.

Para a hipótese de uma venda curta intra-diária (art. 7.º, n.º 3 do RI 287) de dívida soberana, a declaração de ser razoavelmente expectável que o investidor consiga comprar as obrigações no mesmo dia é suficiente (em linha com o exemplo fornecido pelo próprio RSS no seu já citado con-siderando 20).

Admitem-se depois outros dois casos de emissão de declaração de expectativa razoável, agora de liquidação atempada da operação.

O primeiro (art. 7.º, n.º 4 do RI 287), em resul-tado da participação da entidade terceira num sistema que lhe garanta acesso incondicional às obrigações objecto da venda curta em quantidade compatível com a operação. Trata-se das habitual-mente designadas facilidades de repos, desde que operadas por banco central, entidade gestora de dívida soberana ou sistema de liquidação.

O segundo (art. 7.º, n.º 5 do RI 287), quando a entidade terceira esteja convencida da facilidade

de compra ou de obter de empréstimo a dívida soberana vendida a descoberto.

Vejamos ainda a questão da responsabilidade das entidades terceiras quando emitem declarações para efeitos de vendas curtas de dívida soberana.

No regime regra e na unconditional repo con-

firmation parece claro que a entidade terceira fica obrigada a entregar as obrigações a tempo de garantir a atempada liquidação da operação. Na segunda situação esta conclusão resulta do fundamento da emissão da declaração: não faria sentido permitir à entidade terceira emitir a declaração com fundamento no seu acesso

incondicional a uma facilidade de empréstimos para permitir depois que não estivesse obrigada a entregar as obrigações alienadas a descoberto, caso se revele necessário.

Para as hipóteses de vendas curtas intra-diárias ou de vendas curtas de obrigações que apresentem liquidez (ainda que apenas no mercado de em-préstimos), as declarações de expectativa razoável não parecem constituir as entidades terceiras na obrigação de disponibilizar atempadamente as obrigações ou de as procurar obter: tal é o que resulta do confronto com o regime previsto para as acções, designadamente para os casos em que é emitida declaração de facilidade de compra ou de empréstimo40. Não pode isso significar que as terceiras entidades não assumam qualquer responsabilidade pela emissão da declaração, perante os investidores e perante as autoridades de supervisão. São não apenas responsáveis pelos fundamentos da emissão das declarações como também pela manutenção (não revogação) das mesmas caso se alterem as condições de mercado em que foram emitidas: embora não tenham que disponibilizar as obrigações são estas entidades terceiras que verificam o seu nível de liquidez, não sendo admissível que emitam (ou mantenham) declarações em relação a obrigações cujo nível de liquidez não torne razoavelmente expectável a facilidade de recompra ou de empréstimo.

2. OS CASOS DE DETENÇÃO LEGITÍMA DE CREDIT DEFAULT SWAPS (CDS)

O Regulamento proíbe a detenção de CDS so-beranos a descoberto (art. 14.º, n.º 1 do RSS). No seu art. 4.º esclarece, pela negativa, o que se deve entender por detenção de CDS a descoberto: todos os que não sejam adquiridos ou detidos com o propósito de cobertura do risco (hedging)

39- Em moldes em tudo idênticos ao regime regra das acções, com a particularidade – já assinalada – de não ser exigível a reserva das obrigações: não tem que as imobilizar antes da declaração mas tem que as obter a tempo da liquidação.

40- Que nas acções é sempre acompanhada de confirmação de alocação.

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de instrumentos financeiros ou de outros activos detidos ou responsabilidades existentes. Por sua vez, o RD 918 (arts. 14.º e 15.º) concretiza as situações que não se devem considerar de deten-ção de CDS a descoberto. Como adiante se verá o regime é muito abrangente quando delimita o âmbito da detenção permitida de CDS – ao admitir um largo espectro de casos em que se possibilita a detenção de CDS para cobertura de risco. Como acima houve já ocasião de referir, o legislador pretendeu que a proibição de especulação em CDS soberanos não limitasse de modo nenhum a utilização destes instrumentos financeiros para cobertura de risco com as consequências que daí poderiam resultar em termos de ineficiência dos mercados (aumentos de custos de financiamento e diminuição de liquidez nomeadamente). Melhor teria sido talvez optar, também em relação aos CDS, por um regime de transparência.

Esta particular vertente do regime europeu reves-te-se de especial complexidade e tecnicidade que, não se pode negar, poderá levantar alguns desafios na sua supervisão41, para a qual as autoridades de supervisão devem dispor de poderes para solici-tar todas as informações necessárias a quaisquer detentores de CDS soberanos que lhes permitam verificar o propósito legitímo da sua detenção (art. 33.º, n.º 3 do RSS).

De acordo com o art. 4.º do RSS, a detenção de CDS soberanos só é admissível para cobertura do risco de incumprimento da dívida soberana que o investidor detenha ou para cobertura do risco de desvalorização de activos que detenha ou de responsabilidades a que se encontre sujeito e cujo valor se encontre correlacionado com o da dívida soberana objecto dos CDS. Esta norma deve ser interpretada em conjugação não só com

os já mencionados arts. 14.º e 15.º do RD 918 como também com os seus arts. 18.º e 19.º que concretizam o requisito da correlação relevante para estes efeitos e estabelecem um outro: o da proporcionalidade dos CDSs detidos.

Quanto à concretização, pelo RD 918, dos casos que se devem considerar de detenção legítima (que são excluídos da detenção a descoberto) figura a aquisição de CDS para cobrir o risco de desva-lorização de activos ou responsabilidades cujo valor se encontre correlacionado com a evolução do valor da dívida soberana objecto dos CDS, desde que esses activos e responsabilidades se refiram a entidades do Estado-membro emitente da dívida soberana.

Prevêem-se também algumas situações de deten-ção legítima de CDS que contemplam cenários em que o devedor ou a contraparte dos activos se encontre localizada em mais de um Estado--membro, designadamente em relação a grupos de sociedades. É, entre outros, o caso de uma sociedade de controlo (uma holding) que emita dívida e que tenha uma filial localizada em ou-tro Estado-membro nele exercendo actividade operacional relevante: admite-se aqui que sejam adquiridos CDS que tenham como subjacente dívida soberana do Estado onde está localizada a filial para cobertura do risco da dívida emitida pela holding 42. É também possível optar por adquirir CDS sobre dívida soberana do Estado-membro onde se encontre sedeada a sociedade de controlo para cobertura do risco de dívida emitida por uma sua filial localizada em outro Estado-membro. Também para estes casos de pluri localização a existência de correlação é requisito necessário para se poder considerar que a detenção dos CDS teve o propósito de cobertura do risco.

41- Esta complexidade poderá esbater-se em função da natureza do investidor detentor dos CDS. Com efeito, um banco po-derá desenvolver mais actividades e assumir riscos que possam ser objecto de cobertura enquanto um fundo de investimento tenderá naturalmente a adquirir CDS para cobrir apenas o risco inerente à detenção de alguns outros instrumentos financeiros.

42- Compreende-se que assim seja porque o risco principal – o da actividade – está localizado no Estado-membro da filial e não no da sociedade de controlo.

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activos ou responsabilidades elegíveis para efeitos de cobertura de risco e de se verificar, in casu e à data da aquisição dos CDS, uma correlação relevante da dívida soberana objecto dos mesmos com os activos ou responsabilidades cujo risco se pretende cobrir. É necessário ainda que o valor dos CDS detidos seja proporcional ao valor do risco a cobrir.

A proporcionalidade deve ser aferida no momen-to da aquisição dos CDS mas deverá manter-se subsequentemente. Assim, se o investidor vir por qualquer motivo reduzido o valor dos activos a proteger (amortização de dívida, p.ex.) terá que reduzir (alienar) os CDS em excesso, excepto se adquirir logo de seguida mais activos elegíveis para cobertura. Já a desproporcionalidade resul-tante não de uma alteração na composição da vertente do risco (activos ou responsabilidades) mas da flutuação da sua valorização de mercado – ou do valor de mercado dos CDS – não dita a necessidade de o investidor reduzir a sua posição em CDS para garantir a proporcionalidade entre cobertura e risco.

Admite-se ainda que a cobertura não seja per-feita, ou seja, que o valor do risco coberto pelos CDS seja superior ao valor dos activos cobertos. Porém, a necessidade de sobre cobertura só é per-mitida nos casos em que o investidor demonstre que a mesma é imprescindível podendo lançar mão de argumentos técnicos (que a autoridade competente aceitará ou não) como o facto de estar a utilizar uma estratégia de hedging dinâmica.

Também aqui o investidor tem que poder sempre demonstrar à autoridade de supervisão compe-tente, a pedido desta, a verificação – inicial e subsequente – da proporcionalidade.

3. DEVERES DE TRANSPARÊNCIA

Um dos aspectos nucleares do RSS é o estabele-cimento de um regime de transparência relativa-mente à detenção de posições curtas relevantes em acções, dívida soberana ou CDS – as quais, recorde-se, podem não envolver qualquer venda curta. Para estes últimos só nos casos em que as

Há ainda (art. 19.º, n.º 5 do RD 918) um outro caso em que não se considera existir uma detenção de CDS a descoberto: a detenção por membros de contraparte central que compense operações em CDS soberanos desde que a posição seja adquirida em cumprimento das regras do sistema.

O art. 17.º do RD 918 esclarece ainda os activos e responsabilidades que o investidor pode deter e que, verificadas que sejam as demais condições, são elegíveis para efeitos de detenção de CDS soberanos. É designadamente o caso da exposição do investidor a entidades do sector privado esta-belecidas no Estado-membro emitente da dívida soberana objecto dos CDS, incluindo emprésti-mos ou garantias concedidas a estas entidades. Um swap de taxa de juro ou de divisas poderá também, em certas condições, ser aceite como elegível – tal como eventuais componentes de exposição indirecta, através de índices ou socie-dades instrumentais (special purpose vehicles).

Em relação ao requisito da correlação entre o valor dos activos ou responsabilidades e o da dívida soberana subjacente dos CDS, o investidor está obrigado a demonstrar a sua existência à data em que adquiriu os CDS, sempre que a autoridade de supervisão competente o questione. Pode fazê-lo de duas formas: demonstrando a existência de correlação quantitativa, superior a 70%, calculada de acordo com determinada metodologia técnica (coeficiente de correlação de Pearson) e usando dados de um período não inferior a 12 meses. Admite-se que, em alternativa, o investidor pro-cure demonstrar a existência de correlação usando um outro método – a demonstração da designada correlação qualitativa. Em alguma situações o art. 18.º do RD 918 considera existir correlação sem necessidade de aplicação das metodologias antes referidas: são, p.ex., os casos em que os CDS são adquiridos para cobrir o risco de activos garantidos pelo emitente soberano ou ligados a um projecto de infraestruturas com financiamento significativo do emitente soberano.

Por fim, importa ter presente que a detenção legi-tíma de CDS não depende apenas da detenção de

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autoridades de supervisão levantem a proibição de detenção de CDS a descoberto. Os deveres de transparência recaem sobre qualquer investidor detentor de uma posição curta relevante indepen-dentemente da sua natureza jurídica ou de a sua residência ou sede se encontrar localizada dentro ou fora da UE (art. 10.º RSS).

O RSS consagra deveres de comunicação às autoridades de supervisão de posições curtas relevantes43 detidas sobre acções, dívida sobera-na e CDS. No caso das acções, estabelece ainda deveres de divulgação ao mercado quando essas posições curtas ultrapassem determinado patamar. Vicissitudes subsequentes como aumentos, dimi-nuições e cessações de detenção devem também ser objecto de comunicação.

Para as acções o mercado passa a dispor de infor-mação pública sobre o montante global de posi-ções curtas relevantes detidas sobre determinado emitente bem como sobre os titulares e dimensão de cada uma dessas posições curtas – sempre que excedam o limiar para divulgação pública. Em ambos os casos as autoridades de supervisão passam a dispor de importante informação para efeitos de supervisão, passando também a ESMA a dispor de informação global sobre as estratégias curtas dos investidores em resultado da informa-ção periódica que lhes é disponibilizada pelas autoridades nacionais (art. 11.º do RSS).

O RSS alinha o regime da transparência para as acções pelo anterior regime pan-europeu da transparência do CESR acrescentando deveres de transparência sobre dívida soberana e CDS, em-

bora aqui apenas de comunicação às autoridades de supervisão44.

3.1. Acções

As posições curtas relevantes sobre acções são definidas em termos de percentagem do capital social do emitente. De acordo com os arts. 5.º e 6.º do RSS, se a posição atingir ou ultrapassar 0,2% deve ser comunicada à autoridade de supervisão do emitente das acções45 e se atingir ou exceder 0,5% deve ser também divulgada ao mercado (pela autoridade de supervisão). Objectivamen-te, os deveres incidem sobre acções admitidas à negociação em plataforma de negociação na UE excepto para as acções em relação às quais a principal plataforma de negociação em termos de liquidez se situe fora da UE (art. 16.º do RSS).

São também objecto de comunicação e, sendo caso disso, de divulgação, todos os aumentos e diminuições da posição curta relevante que atinjam 0,1%.

3.2. Dívida soberana

As posições curtas relevantes sobre dívida so-berana46 são apenas objecto de comunicação às autoridades de supervisão do emitente: não são divulgadas ao mercado. O regime de comunicação resulta do art. 7.º do RSS e do art. 21.º do RD 918. Ao contrário do que sucede com as acções não são definidas em termos percentuais mas sim em termos de um montante monetário resultante da aplicação de uma determinada percentagem. Este montante monetário é actualizado trimes-tralmente e divulgado, em relação a cada dívida

43- Informação esta que se revela útil para as autoridades de supervisão poderem monitorizar o risco sistémico, abuso de mercado e outro tipo de perturbações no funcionamento dos mercados.

44- Não se terá optado pela divulgação pública pelos possíveis impactos negativos que isso eventualmente teria sobre a liqui-dez do mercado – tendendo os investidores para evitar revelar as suas estratégias curtas sobre dívida soberana aos demais intervenientes no mercado.

45- Art. 2.º, alínea j), (v) do RSS: a do mercado regulamentado em que a acção foi pela primeira vez admitida à negociação, nomeadamente.

46- O conceito de dívida soberana abrange também a dívida emitida por estados federados (da Alemanha), pela própria UE ou por entidades em nome desta ou de Estados-membros (BEI ou EFFS, p.ex.).

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soberana, no site da ESMA. A opção pelo mon-tante monetário decorre da constante flutuação do valor global de dívida soberana emitida, resultante das frequentes amortizações e emissões de dívida, factores que também justificam a actualização periódica.

Com o objectivo de ajustar a dimensão das po-sições curtas relevantes às dimensões da dívida emitida por cada emitente soberano, assim procu-rando prevenir a ocorrência de um número muito elevado de notificações, por um lado, e, por outro, evitar a ausência de comunicações de posições relevantes, estabeleceram-se duas distintas ca-tegorias em função do montante global de cada uma das dívidas. Assim, para as dívidas soberanas de valor global superior a 500 biliões de euros47, fixou-se a percentagem de 0,1% enquanto para as dívidas soberanas de montante global inferior àquele valor ou em relação às quais haja um mer-cado de futuros líquido, foi fixada a percentagem mais elevada de 0,5% 48, a qual é presentemente aplicável à dívida soberana portuguesa49. Em ambas as categorias a percentagem relevante para os incrementos subsequentes é de 50% da percen-tagem inicial, ou seja, de 0,05% em relação ao limiar de 0,1% e de 0,25% em relação ao patamar de 0,5%. Estas duas categorias não são estanques podendo um emitente deslocar-se de uma para a outra se, durante um ano, se alterarem as condi-ções dessa dívida soberana: o montante global de dívida emitida baixar abaixo do montante dos 500 biliões de euros, p.ex..

3.3. CDS

Caso, nos termos do art. 14.º, n.º 2 do RSS, as autoridades de supervisão suspendam tempo-rariamente a proibição de detenção de CDS soberanos a descoberto, a detenção de posições curtas relevantes em CDS deve ser objecto de comunicação às autoridades de supervisão (art. 8.º). Nesta hipótese, são aplicáveis os limiares monetários, inicial e subsequentes, fixados para a correspondente dívida soberana.

3.4. Aspectos gerais

O art. 9.º, n.º 1, 2.º § do RSS consagra um im-portante dever de guarda a cargo de investidores, o que constitui uma novidade. Com efeito, os detentores de posições curtas relevantes ficam obrigados a manter registos das posições curtas e longas brutas que integrem a posição curta compensada relevante, pelo prazo de cinco anos, registos estes que lhes poderão ser solicitados pelas autoridades de supervisão competentes (das acções ou do emitente da dívida).

As posições curtas relevantes devem ser cal-culadas à meia-noite do dia em que passem a ser detidas e comunicadas à autoridade de supervisão competente até às 15h30mn do dia de negociação subsequente sendo relevante a hora da jurisdição desta autoridade (art. 9.º, n.º 2 do RSS). Matérias como o conteúdo das notificações, outros aspectos relacionados com as mesmas ou com a divulgação ao mercado de informação são disciplinadas nos arts. 2.º e 3.º do RD 826.

47- O valor global da dívida soberana emitida é calculado de acordo com o método duration adjusted conforme resulta do art. 21.º, n.º 4 do RD 918 e do seu Anexo II, Parte 2, n.º 1 (Any cash positions shall be taken into account using their nominal value duration adjusted) e da Questão 4, em especial 4, a), das Q&A.

48- Como resulta expressamente do Considerando 7.º do RD 918 admite-se a revisão dos limiares no futuro. Isto porque não se dispõe ainda de toda a necessária informação como é o caso dos níveis de liquidez de cada um dos mercados de dívida soberana ou do valor médio das posições curtas detidas pelos investidores.

49- Trimestralmente a percentagem é multiplicada pelo valor global da dívida soberana emitida assim se apurando em valor monetário o limiar a aplicar no trimestre.

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4. CÁLCULO DE POSIÇÕES CURTAS NO ÂMBITO DE ESTRUTURAS COMPLEXAS

O RSS prevê que as posições curtas compensadas relevantes sejam divulgadas ou comunicadas pelas entidades que as detêm e, por isso, calculadas ao nível destas entidades50. Contempla, todavia, duas excepções (art. 7.º, n.º 3 do RSS) em relação à actividade de gestão de activos e aos grupos de empresas, estruturas em relação às quais prevê métodos de cálculo específicos. Visa com isso garantir um nível adequado de transparência e prevenir que estruturas complexas pudessem ser utilizadas para ocultar ou diluir posições curtas relevantes (distribuindo-as por diversas entidades do grupo ou vários fundos individuais sob gestão da mesma entidade)51. O regime traçado procura também não originar duplas contagens da mesma posição curta detida – contando-a ao nível da gestão de activos e considerando-a igualmente ao nível do grupo, p.ex..

As regras sobre o cálculo e comunicação ou divulgação de posições curtas no âmbito destas estruturas complexas – gestão de activos e fundos – encontram-se previstas nos arts. 12.º e 13.º do RD 918 52.

4.1. Gestão de activos

A entidade gestora de activos53 calcula as posições curtas compensadas ao nível individual de cada um dos fundos de investimento – independente-

mente da natureza jurídica destes, designadamente de serem ou não dotados de personalidade jurídica – e das carteiras individuais sob gestão discricio-nária. Considera, para este efeito, os fundos e as carteiras individuais que gere por subcontratação de outra entidade gestora de activos e exclui aqueles cuja gestão se encontra subcontratada a terceira entidade.

Num segundo passo agrega (soma) todas as po-sições curtas compensadas individuais. Se dessa agregação resultar a ultrapassagem de limiar relevante procede à sua divulgação ou comuni-cação. No caso da gestão de activos, a posição curta agregada (final) não é objecto de qualquer compensação com eventuais posições longas existentes ao nível individual dos fundos ou das carteiras sob gestão discricionária.

Se a entidade gestora exercer também outras actividades – negociação por conta própria, v.g. – não considera nos cálculos as eventuais posições curtas compensadas detidas no âmbito dessa outra actividade, devendo proceder ao cálculo indepen-dente dessa eventual posição curta compensada e, se ultrapassar limiar relevante, divulgar ou comunicar autonomamente a posição detida pela sua carteira própria.

4.2. Grupos

Cada uma das entidades individuais que integram o grupo54 procede ao cálculo das posições curtas

50- Como já tínhamos advertido logo de início não nos iremos ocupar das regras de cálculo das posições curtas compensadas, constantes do art. 3.º do RSS e dos arts. 5.º a 11.º do RD 918.

51- Particularidade que surgia já, embora com distintos contornos, nos Technical details of the pan-European short-selling regime do CESR.

52- No Aconselhamento à CE (ref. ESMA 2012/263, de 19/4/2012) que esteve na origem dos regulamentos delegados, podem--se ver alguns exemplos de cálculo de posições curtas no âmbito destas estruturas complexas (pp. 29-33).

53- Nos termos do RD 918, a entidade gestora de activos pode ser não só qualquer pessoa ou entidade que exerça a actividade de gestão de fundos de investimento ou de carteiras individuais (v.g., sociedade gestora de fundos de investimento ou sociedade gestora de patrimónios) como também uma divisão, unidade ou departamento de uma entidade (v.g., banco) encarregue da actividade de gestão de activos.

54- Para este efeito, de acordo com o art. 2.º, n.º 1, alínea a) do RD 918, releva o conceito de grupo consagrado na Directiva da Transparência (art. 2.º, n.º 1, alínea f) da Directiva 2004/109/CE).

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compensadas (excluindo a componente da gestão de activos55). Se for ultrapassado limiar relevante, a entidade, ou o grupo por ela, divulga ou comu-nica a posição curta compensada detida.

Simultaneamente, ao nível do grupo, são agrega-das (somadas) todas as posições curtas compen-sadas apuradas ao nível das entidades individuais que o integram o mesmo se fazendo em relação às posições longas compensadas detidas pelas enti-dades individuais56. Depois é feita a compensação entre as posições curtas e longas previamente agregadas. Se daí resultar uma posição curta glo-bal que exceda limiar relevante o grupo divulga ou comunica.

A divulgação ou comunicação é feita pela enti-dade individual (ou por entidade do grupo em seu nome) quando não se verifique uma ultrapassagem simultânea do limiar relevante ao nível do grupo. Neste último caso, a comunicação ou divulgação é feita apenas ao nível do grupo: ainda que ao nível do grupo seja ultrapassado apenas o limite para comunicar enquanto ao nível individual seja excedido o limiar para divulgar57. Nas situações de ultrapassagem simultânea do limiar pretende-se evitar a dupla notificação – com a consequente dupla contagem – que poderia ser enganadora para as autoridades de supervisão e para o mercado.

A lógica da articulação entre a informação sobre as posições curtas detidas a nível individual e a nível do grupo é a de, por um lado, evitar a falta de transparência de eventuais posições curtas individuais quando o grupo não detiver qualquer posição curta, o que envolve o dever de informar sobre posições curtas individuais sempre que o

grupo não detenha posição curta comunicável, incluindo nos casos em que a deixa de deter58; por outro lado, evitar sobreposições de comunicações individuais e ao nível do grupo. Consequentemen-te, quando este detém posição curta – e enquanto a detenha – não há lugar a comunicações de en-tidades individuais.

5. EXCEPÇÕES E MECANISMOS DE FLEXIBILIDADE DO REGIME

O regime europeu contempla excepções à sua aplicação e prevê mecanismos que lhe asseguram alguma flexibilidade.

A primeira excepção (absoluta) contempla a não aplicação do regime às acções negociadas em plataforma de negociação europeia mas que apre-sentem maior nível de liquidez em plataforma de negociação situada fora da UE na qual também sejam negociadas (art. 16.º do RSS). Neste caso o regime não será pura e simplesmente aplicável59.

A segunda excepção abrange as entidades que sejam primary dealers de dívida soberana ou, em relação a esta ou a acções, desempenhem funções de market making (art. 17.º do RSS). Esta segunda excepção (de carácter temporal) permite afastar apenas alguns aspectos do regime como veremos infra (n.º 5.1.).

O RSS prevê também mecanismos que permitem temporariamente conferir alguma flexibilidade ao regime adaptando-o a concretas situações de mercado excepcionais. Fá-lo conferindo poderes de intervenção às autoridades de supervisão nacionais e, em alguns casos, à própria ESMA – impondo regras de articulação para estes cenários.

55- As regras específicas para cálculo de posições curtas em grupos não são aplicáveis caso o grupo exerça exclusivamente actividades de gestão de activos (neste sentido, vide Q&A, Questão 5e).

56- O que constitui uma diferença relevante em relação à gestão de activos.

57- Cfr. Q&A, Questão 5i.

58- Cfr. Q&A, Questão 5j.

59- Note-se porém que o RSS prevê cálculos periódicos sobre o nível de liquidez das acções o que pode conduzir a situações em que o regime se aplique a determinada acção durante dois anos, se deixe de aplicar nos dois seguintes para, depois, se tornar a aplicar. A lista das acções excluídas é objecto de divulgação pública no site da ESMA.

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Para a dívida soberana admite o levantamento das restrições à realização de operações de venda curta em caso de diminuição relevante do nível de liquidez do mercado de dívida soberana de um determinado emitente (art. 13.º, n.º 3 do RSS). Também em relação à dívida soberana, confere às autoridades nacionais poderes para suspender temporariamente a proibição de detenção de CDS a descoberto (art. 14.º do RSS). Trata-se, em ambos os casos, de competências para levantar restrições.

Por outro lado, o RSS confere também compe-tências para estabelecer restrições ao regime em circunstâncias excepcionais, as quais incluem ins-trumentos financeiros não abrangidos pelo âmbito objectivo de aplicação do regime. Com efeito, o RSS confere competências às autoridades nacio-nais (e em determinadas circunstâncias à ESMA) para estabelecer restrições – ou mesmo proibições – às operações de venda curta, à detenção ou au-mento de posições curtas e, em certas situações, para estabelecer deveres de transparência sobre outros instrumentos financeiros, sempre tempora-riamente. O exercício desses poderes pode resultar de uma queda acentuada de cotação dos instru-mentos financeiros num só dia de negociação e num determinado mercado (art. 23.º do RSS) ou de uma ameaça séria à estabilidade financeira ou confiança no mercado (art. 20.º do RSS).

5.1. Excepção dos market makers e primary dealers

O art. 17.º, n.º 1 do RSS permite que entidades que têm um papel relevante no funcionamento do mercado, nomeadamente no fornecimento de liquidez ao mercado fiquem abrigadas do âmbito de aplicação do RSS quanto aos seus aspectos nucleares: transparência e restrições à realização de vendas curtas – com excepção, no entanto, dos deveres de transparência associados à detenção de CDS. A relevância destes actores continua a ser reconhecida pelo RSS quando permite que as autoridades nacionais ou a própria ESMA os deixem de fora do alcance de medidas restritivas que sejam adoptadas como adiante se verá. Trata-

-se dos criadores de mercado (market makers) e dos operadores de mercado primário em dívida soberana (primary dealers). A excepção vale não para a entidade em si mesma mas apenas para as actividades abrangidas pela excepção – de market

making, designadamente. De resto, não é expectá-vel que um market maker detenha posições curtas relevantes, menos ainda que as detenha durante período de tempo prolongado.

O n.º 4 do citado art. 17.º consagra excepção seme-lhante para as entidades que realizem operações em execução de contratos de estabilização.

O RSS (art. 2.º, alínea k) ) contempla uma defi-nição daquilo que, para efeitos do mesmo, se devem considerar actividades de market making,

sendo elementos essenciais da mesma, a natureza da entidade (empresa de investimento ou banco, designadamente), a qualidade de membro de plataforma de negociação e o desenvolvimento regular de negociação por conta própria (ainda que relacionada com ordens de clientes) que tenha por efeito gerar liquidez em relação às acções (dívida soberana ou CDSs) objecto da isenção pretendida.

A isenção não opera automaticamente, por efeito directo da lei. Para dela beneficiarem os interessa-dos têm que notificar a autoridade de supervisão competente: a do emitente da dívida soberana no caso dos primary dealers e a do seu Estado--membro de origem no caso dos market makers.

Quanto a estes últimos funciona um sistema que muito se assemelha ao do passaporte europeu. Com efeito, se uma empresa de investimento autorizada no Reino Unido pretender beneficiar da excepção em relação a acções holandesas no-tifica a sua autoridade de supervisão e não a das acções (do mercado). Com a notificação ficará isenta de comunicar posições curtas relevantes à autoridade do mercado e de cumprir as condições para realização de operações de venda curta que cabe à autoridade do mercado supervisionar. Já não assim em relação aos primary dealers que se devem dirigir à autoridade de supervisão do emitente da dívida – que também pode não ser a do mercado mas é, em qualquer caso, a desti-

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natária das comunicações sobre posições curtas relevantes e a que deve controlar o cumprimento das regras que estabelecem restrições às vendas.

Se a autoridade destinatária da notificação entender que não estão reunidos os requisitos para aplicação da isenção pode-se-lhe opor, no momento em que a receba ou subsequentemente se considerar que as condições da sua aplicação deixaram de se verificar.

Com o intuito de garantir uma aplicação unifor-me da verificação das condições para aplicação da isenção e da sua subsequente monitorização, a ESMA emitiu Guidelines60. Estas fornecem alguns indicadores materiais sobre as condições que devem ser observadas pelos market makers,

em especial na acepção do art. 2.º, n.º 1, k), (i) do RSS. Para os primary dealers a demonstração de existência de contrato com o emitente soberano é suficiente para aceder à isenção.

5.2. Suspensão das restrições às vendas curtas de dívida soberana

O art. 13.º, n.º 3 do RSS confere poderes à au-toridade nacional de supervisão do emitente de dívida soberana para suspender a aplicação do art. 13.º, n.º 1, assim levantando as restrições à realização de operações de venda curta sobre toda a dívida soberana em causa. Pode fazê-lo sempre que o mercado de dívida soberana em apreço, globalmente considerado, apresente uma dimi-nuição relevante do nível de liquidez em relação ao seu nível médio de liquidez. A suspensão das restrições assume carácter temporário: vigora por um período que não pode exceder 6 meses, sucessivamente renovável.

Este poder acarreta o estabelecimento de um novo dever às autoridades nacionais: o de cal-

cularem e monitorizarem regularmente o nível de liquidez da dívida soberana do seu Estado. Esse dever é imposto pelo n.º 4 do art. 13.º do RSS e concretizado depois pelo art. 22.º do RD 918 que define o método de cálculo do nível de liquidez dos mercados de dívida soberana. Porém, consi-derando que na maioria dos casos a dívida sobe-rana é transaccionada em diversas plataformas de negociação e, parte significativa, fora de mercado, é deixada margem às autoridades nacionais para, nesse cálculo – e empregando necessariamente o método estabelecido, o qual permite aferir do carácter relevante da descida do nível de liqui-dez –, usarem toda a informação sobre transacções disponível ou seleccionarem apenas os mercados ou plataformas mais representativos61. A periodi-cidade dos cálculos é também deixada ao critério das autoridades de supervisão nacionais.

Nesta como nas demais competências que desig-námos de flexibilização do regime, a autoridade nacional não está obrigada a exercer o poder se estiverem reunidos os pressupostos para o efeito: não se trata de um poder-dever.

5.3. Levantamento da proibição de detenção de CDS a descoberto

O art. 14.º, n.º 1 do RSS proíbe a detenção de CDS soberanos a descoberto, ou seja, dos que não sejam adquiridos com o propósito de cobertura de risco (hedging). O n.º 2 do mesmo preceito confere poderes à autoridade de supervisão da dívida soberana objecto dos CDS para suspender essa proibição. A medida tem carácter temporário: a suspensão pode ser decretada por um período inicial não superior a 12 meses podendo ser re-novada automaticamente por sucessivos períodos não superiores a 6 meses.

60- Cfr. Ref.ª ESMA/2013/74. Algumas autoridades de supervisão manifestaram intenção de não as seguir.

61- Quanto às obrigações, devem seleccionar um cabaz de algumas que se possam considerar benchmarks para diferentes maturidades. A medida de liquidez a adoptar é a do turnover definido em termos do valor nominal global das obrigações transaccionadas, comparando-se o nível de liquidez de um mês com a média mensal dos últimos 12 meses (art. 22.º, n.ºs 1 e 2 do RD 918).

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E em que situações pode ser exercido este poder? Sempre que a autoridade nacional competente entenda que o seu mercado de dívida soberana não está a funcionar adequadamente (apresente deficiências de funcionamento) e que a restrição à detenção de CDS a descoberto possa estar relacionada com essas deficiências de funcio-namento, contribuindo para o aumento do custo de financiamento ou dificultando as emissões. Esse entendimento tem que ser fundamentado em razões objectivas. O preceito fornece alguns exemplos de indicadores de deficiências de fun-cionamento do mercado de dívida soberana mas admite que a decisão se baseie em quaisquer outros factos relevantes. Entre esses exemplos figura o aumento, acentuado ou reiterado, da taxa de juro ou o aumento dos spreads dos CDS em relação à sua própria curva ou à curva de outros CDS soberanos.

5.4. Restrições resultantes de queda acentuada de cotação

Em relação às acções, e ao contrário do que sucede com a dívida soberana e com os CDSs, os poderes das autoridades de supervisão nacionais têm por escopo restringir ainda mais – e, no limite, proi-bir – as condições em que podem ser efectuadas operações de venda curta sobre acções e incluem a extensão de restrições à própria constituição ou aumento de posições curtas anteriormente detidas. Estes poderes restritivos excepcionais

permitem igualmente às autoridades nacionais trazer temporariamente para o âmbito objectivo de aplicação do regime europeu outros instrumentos financeiros que não apenas as acções e a dívida soberana, podendo impor em relação àqueles deveres de transparência, restrições à realização de vendas curtas ou mesmo proibições.

Esta diferença de abordagem consoante se esteja na presença de acções ou de dívida soberana re-flecte uma opção de fundo distinta do legislador europeu, opção espelhada também no regime das locate confirmations e nos poderes de intervenção da ESMA em circunstâncias excepcionais62.

O art. 23.º do RSS permite às autoridades de supervisão de uma determinada plataforma de negociação (trading venue) proibir ou restringir operações de venda curta sobre acções ou dívida soberana se, numa mesma sessão de negociação, a acção ou obrigação apresentar uma descida de preço63 muito significativa. Se a descida acentuada de cotação se verificar em relação a outros tipos de instrumentos financeiros, a norma permite estabelecer limitações às vendas curtas sobre os mesmos64.

A decisão incide exclusivamente sobre um con-creto instrumento financeiro e sobre as transac-ções do mesmo numa dada plataforma de nego-ciação. Esta decisão é tomada não pela autoridade competente para supervisionar o instrumento

62- Esclareça-se desde já que os poderes excepcionais restritivos de que abordaremos infra podem ser exercidos em relação a dívida soberana, residindo a diferença na impossibilidade de as autoridades nacionais levantarem restrições à realização de operações de venda curta sobre acções, ao contrário do que sucede para a dívida soberana.

63- Aferida por confronto com o preço de fecho da sessão anterior.

64- Do confronto entre o 1.º e o 2.º parágrafos do art. 23.º, n.º 1, parece resultar que as autoridades de supervisão não podem proibir nem restringir as vendas curtas quando a descida relevante de cotação incidir sobre outro tipo de instrumentos financeiros que não acções ou dívida soberana: podem tão só limitar as vendas curtas. Embora não seja clara a distinção entre as restrições e as limitações, parece aceitável sustentar que estas últimas poderão consistir no estabelecimento de regras específicas para a execução de vendas curtas como, por exemplo, as condições de preço que devem observar as ordens de venda curta (p.ex., não ser inferior ao da último negócio independente). Um caso de norma limitativa é a designada revised uptick rule adoptada nos Estados Unidos pela SEC em 24/2/2010 (Rule 201 do Regulation SHO), tal como a norma por esta revogada, a uptick rule (a norma original vigorou entre 1938 e 2007). Nos termos daquela norma norte-americana, em caso de queda de cotação de acções superior a 10% as ordens de venda curta não podem ser transmitidas por preço inferior à melhor oferta de venda nacional (de preço mais baixo).

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financeiro (do emitente da dívida soberana, v.g.) mas sim da plataforma de negociação. Assim sendo, se num mercado italiano se verificar uma acentuada desvalorização da cotação de uma acção cuja auto ridade de supervisão relevante seja a francesa, a autoridade italiana dispõe de competência para proibir vendas curtas sobre essa acção nesse mercado sob a sua supervisão65.

Como é compreensível o citado art. 23.º prevê, no seu n.º 3, a comunicação da decisão à ESMA e às demais autoridades de supervisão que su-pervisionem plataformas de negociação onde o instrumento financeiro também seja negociado, de modo a que estas outras autoridades possam estender a aplicação da medida a essas plata-formas. Não havendo acordo entre as diversas autoridades nacionais a ESMA pode exercer os seus poderes de mediação66, o que terá que fazer antes da abertura dos mercados no dia seguinte. Não obstante estas medidas de coordenação, o eventual exercício destas competências por auto-ridade que não a do principal mercado do título em termos de liquidez recomenda, naturalmente, alguma prudência, designadamente quando estiver em causa dívida soberana.

Este tipo de medidas vigoram por tempo muito limitado: na sessão de mercado seguinte à des-valorização acentuada podendo ser estendida por mais duas, três no total (art. 23.º, n.º 2 do RSS)67.

Quanto ao limiar relevante para efeitos de con-siderar ter existido uma acentuada descida de

cotação, dispõe o n.º 5 do art. 23.º do RSS para acções líquidas (na acepção da DMIF), fixando--o em 10% ou mais, e o art. 23.º do RD 918 para os demais instrumentos financeiros. Esta última norma fixa o mesmo limite (10%) caso as acções integrem o principal índice accionista do corres-pondente Estado-membro de supervisão e sejam simultaneamente activo subjacente de contrato de derivados negociado em plataforma de nego-ciação68 ou em 40% no caso das normalmente designadas penny-stock (art. 23.º, n.º 1 do RD 918). Para a dívida soberana, é adoptado um cri-tério diferente: considera-se a evolução da curva da yield de toda a dívida soberana. A competência pode ser exercida se num só dia de negociação essa yield da dívida soberana correspondente a uma determinada obrigação pública aumentar 7% ou mais (art. 23.º, n.º 2 do RD 918)69.

A autoridade de supervisão não está obrigada a decretar a medida restritiva sempre que se de-pare com uma acentuada queda de cotação: esta confere-lhe um poder para actuar caso entenda conveniente. Antes de o exercer, a autoridade de supervisão deve verificar em que condições ocorreu a acentuada queda de cotação: se existiu informação de carácter negativo que permita jus-tificar a descida de cotação, p.ex.

5.5. Restrições decorrentes de ameaça à esta-bilidade financeira ou à confiança no mercado

Em circunstâncias excepcionais o RSS confere poderes de intervenção às autoridades de super-

65- A CMVM tem habitualmente exercido este poder quando as acções registam quedas decotação superiores a 10% numa sessão de mercado, tal como aconteceu em relação a quatro títulos em 3/7/2013.

66- Nos termos do art. 19.º do Regulamento Europeu n.º 1095/2010.

67- Extensão que pressupõe a continuação da descida acentuada de cotação nas sessões seguintes – bastando neste caso que seja de metade do limiar relevante para a aplicação inicial da medida.

68- Em coerência com o conceito alargado de acções líquidas utilizado para efeitos do regime da locate confirmation de acções.

69- São também fixados limiares em relação a dívida privada, ETFs e derivados que tenham como activo subjacente único algum dos instrumentos financeiros em relação aos quais se encontre definido limiar que permita exercer a competência: neste último caso atingido que seja o limiar para o activo subjacente é possível exercer a competência em relação ao derivado independentemente da oscilação de cotação que este tenha conhecido.

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visão nacionais, poderes resultantes dos seus arts. 18.º a 21.º – e também à ESMA, nos termos do art. 28.º.

Em relação às autoridades nacionais, os requisitos para o exercício de todos os poderes de emer-gência são idênticos podendo-se assim afirmar que nada parece obstar a que as autoridades exerçam mais de uma destas competências em simultâneo e com o mesmo concreto fundamento. Os poderes podem ser exercidos em caso de ame-aça séria à estabilidade financeira ou à confiança no mer cado70 – do Estado-membro da autoridade de supervisão ou de diversos Estados. As medidas, dispõe o RSS, têm que ser necessárias e propor-cionais, sendo estes os principais limites impostos pelo legislador às autoridades competentes.

É o art. 24.º, n.º 1 do RD 918 que vem depois concretizar alguns dos eventos que se podem considerar poder constituir ameaça séria à esta-bilidade financeira ou à confiança nos mercados. Nesses exemplos os eventos estão, na sua maio-ria, relacionados com instituições financeiras71 consideradas relevantes para o sistema finan-ceiro, ideia que se encontra associada ao risco sistémico. Um incumprimento (default) por uma destas entidades – ou por um Estado-membro – é um dos exemplos dados pelo RD 918 (art. 24.º, n.º 1, alínea b) ). Outro dos exemplos é o de uma falha relevante num sistema de liquidação ou de pagamentos que possa ter efeitos significativos

conduzindo a outras falhas ou atrasos em outros sistemas (art. 24.º, n.º 1, alínea e) do RD 918)72.

Um dos poderes de excepção das autoridades nacionais é o de proibir operações de venda cur-ta ou de proibir a constituição ou o aumento de posições curtas73 (art. 20.º do RSS). A autoridade competente pode optar por estabelecer apenas restrições ou condições – em vez de proibir – po-dendo também consagrar excepções à proibição ou restrição: para market makers, p.ex.. A medida adoptada pode incidir sobre um determinado ins-trumento financeiro, sobre todos os instrumentos financeiros em relação aos quais seja a autoridade relevante ou a determinada classe de instrumentos. Em qualquer caso a medida tem aplicação extra--territorial vigorando em qualquer jurisdição, ainda que fora da UE e aplicando-se a qualquer transacção ou negócio independentemente da lei nacional aplicável ao mesmo74.

Outro dos poderes, este consagrado no art. 18.º do RSS, confere às autoridades nacionais a faculdade de estabelecer deveres de transparência (de comu-nicação apenas ou de divulgação ao mercado) em relação a instrumentos financeiros para os quais o RSS não estatua já um regime de transparência.

Em matéria de CDS soberanos, o art. 21.º do RSS permite que seja restringida a realização de transacções sobre CDS bem como limitado o valor máximo das posições susceptíveis de serem

70- Cfr. alíneas a) e b) dos n.ºs 1 dos arts. 18.º, 19.º, 20.º e 21.º do RSS.

71- Bancos, seguradoras, gestoras de activos ou entidades gestoras de infra-estruturas de mercado.

72- Os factos ou eventos que podem ser tidos em consideração são também aqueles dos quais se possa esperar com razoabi-lidade que conduzam aos factos (resultados) indicados no art. 24.º do RD 918.

73- Poder muito relevante já que o RSS não estabelece quaisquer restrições à detenção de posições curtas, excepção feita ao caso dos CDS especulativos.

74- A proibição de constituição e de reforço de posições curtas sobre dois bancos italianos, decidida pela autoridade de super visão italiana na sequência da divulgação de informação sobre insuficiências de capital identificadas em Comprehensive Assessment realizado pelo BCE constitui exemplo de exercício deste poder (Resolução da CONSOB de 27/10/2014). Durante a vigência da medida as autoridades italianas notaram uma diminuição do nível de falhas de liquidação nas acções dos dois bancos objecto da medida – informação que consta do parecer favorável da ESMA sobre a renovação da medida (Opinião da ESMA de 10/11/2014).

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detidas por cada investidor. A norma parece con-ferir amplos poderes aos supervisores nacionais em situações de excepção. Desde logo, parece aplicar-se à aquisição ou detenção de CDS para cobertura de risco – os ditos covered CDS. Com efeito, a detenção de CDS a descoberto é vedada pelo RSS não fazendo sentido, parece-nos, que este poder tivesse sido pensado para os casos em que as autoridades nacionais tenham optado por suspender a proibição: nesse caso bastaria fazer cessar a medida transitória de levantamento da suspensão. Não parece poder aplicar-se às transac-ções em que seja assumida posição vendedora dos CDS, ou seja, às entidades que cobrem o risco de incumprimento (aos vendedores de CDS). Tam-bém não parece que limites ao valor máximo das posições possa afectar posições de valor superior anteriormente constituídas.

Por fim, no seu art. 19.º, o RSS faculta às auto-ridades nacionais a possibilidade de impor às instituições que prestem o serviço de emprés-timo de determinados instrumentos financeiros a obrigação de as notificar de alterações relevantes às comissões cobradas pelos empréstimos, poder que não se afigura, a nosso ver, ter especial rele-vância. Já assim não seria, entendemos, se estas entidades pudessem ser obrigadas a comunicar as quantidades de instrumentos financeiros objecto de empréstimos, informação da maior importân-cia para viabilizar uma adequada supervisão da observância das regras aplicáveis às vendas curtas (e às posições curtas) – e não apenas em situações de excepção.

Também a ESMA dispõe de poderes de interven-ção em circunstâncias excepcionais conforme resulta do art. 28.º do RSS 75. Os requisitos para

exercício dessas competências são similares – mas não idênticos – aos aplicáveis às autorida-des nacionais só podendo a ESMA, no entanto, actuar supletivamente, ou seja, caso as autoridades nacionais não adoptem medidas ou as adoptem mas de modo insuficiente. Também os poderes que detém são semelhantes aos das autoridades competentes, todavia com uma importante ex-cepção: a actuação relativa a dívida soberana e a derivados com a mesma relacionada. Os poderes de excepção regulados no RSS não se aplicam a estes instrumentos financeiros remetendo-se ape-nas para os poderes gerais da ESMA constantes do seu próprio Regulamento: é o que resulta do art. 29.º do RSS que remete para os arts. 18.º e 38.º do Regulamento Europeu n.º 1095/2010.

Muito importante é o princípio consagrado no n.º 11 do art. 28.º do RSS que faz prevalecer as medidas que sejam adoptadas pela ESMA sobre as que tenham sido adoptadas pelas autoridades nacionais.

Traço comum aos poderes de excepção das auto-ridades nacionais (bem como aos poderes relacio-nados com os instrumentos de flexibilização do regime supra descritos76), é o da necessidade de as decisões terem que ser previamente fundamenta-das e comunicadas à ESMA que sobre as mesmas emite opinião que é publicamente divulgada77. O RSS contempla mecanismos de coordenação das medidas, conferindo à ESMA esse papel de coordenação (art. 27.º do RSS).

Todas as medidas de excepção, sejam adoptadas pelas autoridades nacionais ou pela ESMA, vigo-ram por período não superior a 3 meses, renovável por idênticos períodos (art. 24.º e 28.º, n.º 10, ambos do RSS).

75- O Tribunal de Justiça da UE (Acórdão de 22/1/2014) negou provimento ao recurso de anulação interposto pelo Reino Unido que visava questionar a validade jurídica do referido art. 28.º do RSS que confere à ESMA poderes de intervenção em circunstâncias excepcionais.

76- Cfr. n.ºs 3.2. a 3.4.

77- Cfr. arts. 13º, nº 3, 14º, nº 2, § 5º, 23º, nº 3 e 26º todos do RSS.

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1. O PROBLEMA

I. Os problemas em torno da contratação de deri-vados financeiros por sociedades não são novos. Há vinte anos, HENRY T. HU explicava que, con-siderando a diversidade de riscos que podiam já então ser cobertos e os meios disponíveis para o efeito, podiam as sociedades atuar numa “rea-lidade virtual”. Através da contratação de deri-vados, as sociedades podiam direta e facilmente alterar o ambiente em que operavam1.

Já então afirmava o autor que, face à importân-cia da questão, seria de esperar que a doutrina jurídico-económica tivesse desenvolvido e clari-ficado os termos em que tal contratação poderia ocorrer, do ponto de vista das sociedades com-pradoras. Seria de esperar que tivessem sido cla-rificados não só os fins que a administração está

adstrita a prosseguir, mas também os meios ao alcance da mesma para cumprir os seus deveres legais2.

Tal clarificação não existia em 1995 e, apesar dos progressos entretanto verificados, parece--nos não estar ainda consolidada em 2015.

II. A crise iniciada em 2007-2008 colocou os de-rivados, mais do que nunca, no centro das aten-ções. Em particular, a queda das taxas de juros determinou perdas substanciais para sociedades que contrataram interest rate swaps numa altura em que não era previsível uma descida tão acen-tuada. Estas perdas constituíram o combustível para inúmeros litígios e subsequente discussão sobre diversas questões relacionadas com estes derivados.

A DISCRICIONARIEDADE EMPRESARIAL, A BUSINESS JUDGMENT RULE E A CELEBRAÇÃO DE CONTRATOS DE SWAP (E OUTROS DERIVADOS)*

JOSÉ FERREIRA GOMES**

O presente texto constituiu uma homenagem singela ao Dr. Amadeu Ferreira que

partiu em março passado, deixando uma marca indelével em todos aqueles que

tiveram o privilégio de com ele conviver e uma memória de valores humanos que

quase faz esquecer as suas extraordinárias qualidades técnicas.

*- Nos primeiros capítulos do presente texto reproduzem-se alguns trechos da nossa dissertação de doutoramento que, para efeitos desta publicação, foram significativamente encurtados. Cfr. JOSÉ FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscali-zação de Sociedades: A obrigação de vigilância dos órgãos da sociedade anónima, Coimbra: Almedina, 2015.

**- Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

1- Nas palavras do autor:«Whether such purchases are characterized as “hedging” or “speculation,” corporations now can – and increasingly do – enter into a “derivative reality” in which the prices, tax rates, credit risks, and other aspects of the state of the world are affirmatively chosen. With mere tokens – the cost of many of these products keeps dropping – players get a world that has been purged of unwanted surprises, leaving only the desired risks and thrills».

Cfr. HENRY T. HU, Hedging expectations: “derivative reality” and the law and finance of the corporate objective, Texas Law Review, 73, 1995, p. 1013-1014.

2- Ibidem, p. 1014.

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O STJ, por exemplo, tem discutido sobretudo a natureza e validade destes contratos em função da capacidade da sociedade para os celebrar e da sua qualificação como (ou aproximação ao) con-trato de jogo e aposta3, para efeitos do disposto no art. 1245.º CC, atendendo aos fins prossegui-dos pelas partes: a cobertura de risco financeiro associado às oscilações de taxas de juros, a espe-culação e a arbitragem4.

Neste artigo, abordamos a questão numa pers-petiva diferente daquela que tem estado pa tente na jurisprudência e na doutrina recente sobre esta matéria. Não partimos da discussão sobre a validade ou invalidade dos contratos de swap e outros derivados, mas sim da questão interna da discricionariedade empresarial na sua celebra-ção, oferecendo critérios para a avaliação da lici-tude ou ilicitude da conduta dos administradores no processo de contratação.

Estamos, portanto, no domínio da competência jus-societária, na delimitação dos espaços de licitude e de ilicitude, das condutas permitidas

aos – e devidas pelos – titulares dos órgãos so-ciais5. Pretendemos contribuir para a delimitação e densificação do dever ser, da conduta devida pelos titulares dos órgãos sociais (não só, mas também) enquanto pressuposto de responsabili-dade civil obrigacional para com a sociedade.

III. À luz do quadro em que esta questão é habi-tualmente tratada, poderia dizer-se que a questão interna, do dever ser dos administradores, de-corre da resposta que se dê à questão externa, da validade destes contratos no relacionamento com terceiros: se o contrato é inválido, o admi-nistrador que o celebrou atuou ilicitamente, po-dendo eventualmente ser responsabilizado pelos pre juízos que daí advieram; se o contrato é vá-lido, o administrador não poderia ser responsa-bilizado pela sua celebração.

A questão, porém, é mais complexa porque – abstraindo agora da discussão sobre outras causas de invalidade frequentemente invocadas6 – não é possível delimitar aprioristicamente os contratos swap que cabem na capacidade da so-ciedade e aqueles que não cabem.

Tomamos por base a posição de que o princípio da especialidade se encontra, em grande medida, superado7 na medida em que, na melhor das hi-póteses, circunscreve a capacidade da sociedade aos direitos e obrigações necessários ou conve-nientes à prossecução do lucro, sendo certo que cabe aos órgãos da sociedade delimitar o que seja necessário ou conveniente a tal fim, no qua-dro das suas competências legais e estatutárias.

Neste contexto, só em casos manifestamente escan dalosos se poderia concluir pela invali dade

3- Sobre a capacidade da sociedade, vide, por todos, a recente obra de DIOGO COSTA GONÇALVES, Pessoa Coletiva e Sociedades Comerciais: Dimensão problemática e coordenadas sistemáticas da personificação jurídico-privada, Coimbra: Almedina, 2015, em particular, p. 756 ss.

4- Cfr., v.g., STJ 29-jan.-2015 (BETTENCOURT DE FARIA), processo n.º 531/11.7TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

5- Esta afirmação, só por si, permite descobrir o sentido sustentado para as normas de competência jus-societária. Estas habil itam o titular de cada órgão social à produção de determinados efeitos jurídicos, tendo um sentido deôntico prima facie permissivo. Tais normas, porém, são requalificadas como impositivas pela sua conjugação sistemática com outras nor-mas que sujeitam o exercício das funções orgânicas à prossecução do interesse social (maxime, o art. 64.º). Dessa conjugação resultam, portanto, as obrigações de administração e de vigilância, conceitos-síntese (Inbegriffe) do complexo normativo a que estão sujeitos os órgãos sociais. Cfr. FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades…, § 62.1, p. 703 ss.

6- Assim, v.g., a qualificação destes contratos como (ou aproximação ao) contrato de jogo e aposta.

7- Apesar das resistências de alguma doutrina e jurisprudência. Cfr., em particular, CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, Da prestação de garantias por sociedades a dívidas de outras entidades, Revista da Ordem dos Advogados, 56:2, 1996 e

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A DISCRICIONARIEDADE EMPRESARIAL, A BUSINESS JUDGMENT RULE E A CELEBRAÇÃO DE CONTRATOS DE SWAP : 59

dos contratos. Nos demais casos, os contratos se-riam válidos.

IV. O facto de o contrato ser válido não significa que o administrador que o celebrou tenha atuado licitamente. Com efeito, poderá concluir-se que a conduta do administrador não foi conforme à sua obrigação de diligente administração, devendo o mesmo responder pelos danos causa-dos à sociedade pelo contrato validamente cele-brado.

Neste artigo, mais do que oferecer respostas apriorísticas sobre a licitude ou ilicitude de de-terminadas condutas, procuramos expor um qua-dro de análise que permita ao intérprete-aplica-dor alcançar conclusões em cada caso concreto: como se caracteriza a obrigação de diligente administração; como se delimita a discriciona-riedade normativamente reconhecida aos admi-nistradores; qual o sentido da business judgment

rule no nosso sistema; e como é que a posição dos administradores se concretiza no âmbito da

contratação de swaps. Neste último ponto, ana-lisamos tanto os critérios procedimentais – que conformam a preparação e a fundamentação da decisão – como os critérios materiais que permi-tem sindicar o mérito da decisão tomada. Com base neste quadro de análise e nas concretiza-ções jurisprudenciais expostas seguidamente, apresentamos a final as nossas conclusões.

2. A OBRIGAÇÃO DE DILIGENTE ADMINISTRAÇÃO

I. A obrigação de administração constitui um conceito-síntese (Inbegriff) do complexo norma-tivo a que estão sujeitos os órgãos de adminis-tração8, traduzindo a sua adstrição à prática dos atos necessários à promoção do fim ou interesse social, tomando a iniciativa na condução da ati-vidade social. Nas sintéticas palavras de Semler, o órgão ao qual é imputada a obrigação de admi-nistração deve fazer tudo quanto seja necessário para um efetivo e bem sucedido desenvolvi-mento da empresa9. Estamos, portanto, perante um conceito normativo determinado pela função

De novo sobre a prestação de garantias por sociedades a dívidas de outras entidades: luzes e sombras, Revista da Ordem dos Advogados, 58:2, 1998, ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, “Capacidade e representação das sociedades comerciais”, in Problemas do Direito das Sociedades, Coimbra: Almedina, 2002, p. 472 e “Da personalidade e capacidade jurídicas das sociedades comer ciais”, in Estudos de direito das sociedades, 10.ª ed., Coimbra: Almedina, 2010, p. 110 ss., ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, in JORGE COUTINHO DE ABREU (ed.), Código das Sociedades Comerciais em comentário, 1, Coimbra: Alme dina, 2010, art. 6.º, p. 110-112, 119, ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA, Sociedades comerciais, valores mobiliários e mercados, 6.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 30-42.

Sobre a superação deste princípio, cfr., por todos, JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Teoria geral, 1 – Introdução, as pes-soas, os bens, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 257 ss., ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Direito das socie-dades, 1, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2011, p. 378-390, PAIS DE VASCONCELOS, Teoria geral do direito civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2012, p. 134-141, bem como PEDRO DE ALBUQUERQUE, A vinculação das sociedades comerciais por garantia de dívidas de terceiros, Revista da Ordem dos Advogados, 55:3, 1995, PEDRO DE ALBUQUERQUE, Da pres-tação de garantias por sociedades comerciais a dívidas de outras entidades, Revista da Ordem dos Advogados, 57:1, 1997. Cfr. também, de forma desenvolvida, JOÃO ESPÍRITO SANTO, Sociedades por quotas e anónimas: vinculação: objecto social e representação plural, Coimbra: Almedina, 2000, em especial, p. 167-168.

8- Referindo-se à obrigação de administração como Inbegriff, MANUEL CARNEIRO DA FRADA, “A business judgment rule no quadro dos deveres gerais dos administradores”, in A Reforma do Código das Sociedades Comerciais: Jornadas em Homenagem ao Professor Doutor Raúl Ventura, Coimbra: Almedina, 2007, p. 66. Mais recentemente, a propósito do dever de legalidade, refere-se a conceito-quadro (Rahmenbegriff) e a conceito-resumo (Sammelbegriff), como forma de expressão de uma multiplicidade de deveres que sujeitam todos os administradores. Justifica uma tal referência com a função da ciência jurídica de descrever e ordenar as matérias jurídicas, com clareza e simplificação. Cfr. MANUEL CARNEIRO DA FRADA, O dever de legalidade: um novo (e não escrito?) dever fundamental dos administradores, Direito das Sociedades em Revista, 4:8, 2012, p. 67.

9- JOHANNES SEMLER, Leitung und Überwachung der Aktiengesellschaft, 2.ª ed., Bonn, München: Heymann, 1996, p. 9-10.

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(Zweckbegriff)10 cujo conteúdo é a priori par-cialmente indeterminado11, mas determinável no caso concreto, em função do padrão de diligên-cia normativa12.

A determinação dos atos necessários à promo-ção do interesse social, a praticar pelo órgão de administração, dependerá das circunstâncias do caso concreto. O mesmo é dizer que a obriga-ção de administração é uma obrigação de meios a priori parcialmente indeterminada13. Sem pre-juízo das concretizações legais, em geral, não é possível conhecer ab initio a conduta devida pelos administradores. Esta é determinável ape-nas perante as específicas circunstâncias do caso

concreto, tanto ex ante como ex post, de acor-do com padrão de diligência aplicável, assim delimitando os comportamentos necessários ao cumpri mento, segundo o quadro geral jus-obri-gacional14.

Ex ante, não estando integralmente definido pela norma aplicável, cabe ao devedor descobrir qual o comportamento devido em função do fim a atingir (o resultado definidor) e das circunstân-cias do caso concreto15. Parafraseando Pessoa Jorge, «o sujeito tem de integrar o imperativo da norma; esta, seja genérica ou individual, con-

fia ao próprio destinatário a determinação dos actos que hão-de constituir a conduta devida»16.

10- Cfr. KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, tradução de José Lamego, 4.ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005 p. 686-692, que descreve este tipo de conceito como dirigido à realização de um escopo normativo.

11- Afirmamos que é “parcialmente” indeterminado porquanto a lei identifica, com maior ou menor exatidão, inúmeras con-cretizações da obrigação de administração, de difícil sistematização, atenta a dispersão normativa por diversas fontes legais.

12- FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades…, § 13, p. 148 ss..

13- A obrigação diz-se indeterminada quando a lei ou o negócio jurídico não delimitam integralmente o seu objeto, não permitindo às partes conhecer ab initio o seu percurso na execução da obrigação Cfr., por todos, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito civil, 6, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2012, p. 558, LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das obrigações, 1 – Introdução, da constituição das obrigações, 10.ª ed., Coimbra: Almedina, 2013, p. 127-128.

14- FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades…, §§ 62.2-62.3, p. 713 ss., PESSOA JORGE, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, Lisboa: Centro de Estudos Fiscais da Direcção-Geral das Contribui-ções e Impostos, Ministério das Finanças, 1968, p. 72.

15- Ibidem, p. 73, 77, 80-88.

16- FERNANDO PESSOA JORGE, Ensaio... p. 77. Não só os deveres indeterminados, mas também os ditos determinados são completados ou integrados pelo dever de diligência. Cfr. MANUEL GOMES DA SILVA, O dever de prestar e o dever de indemnizar, 1, Lisboa: FDL, 1944, p. 238. Estando a prestação definida, pode ainda assim o dever de diligência impor outros atos instrumentais ou acessórios. PESSOA JORGE, Ensaio... p. 78.

PESSOA JORGE foi acompanhado, no domínio jus-societário, desde logo por RAUL VENTURA e BRITO CORREIA: caberia ao administrador a escolha dos actos necessários à prossecução do fim imposto, atendendo às circunstâncias do caso e recorrendo às noções de diligência e de interesse social (noções que os autores delimitam brevemente). Cfr. RAUL VEN-TURA e LUIS BRITO CORREIA, Responsabilidade civil dos administradores e directores das sociedades anónimas e dos gerentes das sociedades por quotas: Estudo comparativo dos direitos alemão, francês, italiano e português. Nota explicativa do capítulo II do Decreto-Lei n.º 49381 de 15 de Novembro de 1969, Separata do Boletim do Ministério da Justiça n.ºs 192, 193, 194 e 195, Lisboa: Ministério da Justiça, 1970, p. 94-112. A violação dos deveres decorrentes de uma tal concretização constituiriam o administrador civilmente responsável pelos danos causados. Cfr. ibidem, p. 133.

A exposição de RAUL VENTURA e BRITO CORREIA foi depois seguida, ainda antes do Código das Sociedades Comer-ciais (mas face ao regime do Decreto-Lei n.º 49.381) por VASCO DA GAMA LOBO XAVIER, Anulação de deliberação social e deliberações conexas, reimp., Coimbra: Almedina, 1998, p. 341-342 (em especial nota 90), e desenvolvida já na vigência deste código, v.g., por ILÍDIO DUARTE RODRIGUES, A administração das sociedades por quotas e anónimas, Lisboa: Petrony, 1990, p. 172-180, 208-218, ELISABETE GOMES RAMOS, Responsabilidade civil dos administradores e directores das sociedades anónimas perante os credores sociais, Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 65-99, em espe-cial, p. 76, 87-90, JOSÉ MARQUES ESTACA, O interesse da sociedade nas deliberac’/o/es sociais, Coimbra: Almedina,

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A DISCRICIONARIEDADE EMPRESARIAL, A BUSINESS JUDGMENT RULE E A CELEBRAÇÃO DE CONTRATOS DE SWAP : 61

O critério da escolha e execução desses atos, nos termos desejados pela ordem jurídica para satis-fação do interesse do credor, é a “diligência nor-mativa” (“diligência devida” ou “dever de dili-

gência”), ou seja, aquela que Pessoa Jorge define como o grau de esforço requerido pelo Direito para a execução de uma conduta devida ou pres-tação17. Esta é indefinível em abstrato, depen-

2003, p. 37. Depois da reforma de 2006, cfr., v.g., ORLANDO VOGLER GUINÉ, Da conduta (defensiva) da administra-ção “opada”, Coimbra: Almedina, 2009, p. 61-63, RICARDO COSTA e GABRIELA FIGUEIREDO DIAS, in JORGE COU TINHO DE ABREU (ed.), Código das Sociedades Comerciais em comentário, 1, Coimbra: Almedina, 2010, art. 64.º, p. 733-734, PEDRO CAETANO NUNES, Dever de gestão dos administradores de sociedades anónimas, Coimbra: Alme-dina, 2012, p. 473 474, 479 485.

Na jurisprudência, merece inigualável destaque a sentença proferida pela 3.ª Vara Cível de Lisboa de 27-out.-2010 (PEDRO CAETANO NUNES), reproduzida em PEDRO CAETANO NUNES, Corporate governance, Coimbra: Almedina, 2006, p. 9-44 (e também em CJ – STJ, 11:3, 2003, p. 17-27), concluindo que, concretizando o dever de gestão, se deve considerar neles estarem incluídos «o dever de obtenção de informação no iter decisional e o dever de não tomar decisões irracio-nais», mas não o dever de tomar decisões adequadas», concepção que «constitui uma limitação de sindicabilidade do mérito das decisões empresariais (com correspondência na business judgment rule)». Cfr. PEDRO CAETANO NUNES, Corporate governance, p. 40.

Diversamente da linha sustentada por RAUL VENTURA e BRITO CORREIA, MENEZES CORDEIRO defendeu, ainda face à sua anterior redação, que «o art. 64.º, pela sua incompletude estrutural, nunca poderia, só por si, fundamentar a responsa-bilidade dos administradores, por erro de gestão», acrescentando que «os tribunais não estão apetrechados para proceder à apreciação do mérito da gestão». O limite seria o erro grosseiro que, na construção de MENEZES CORDEIRO, decorreria de uma norma construída a partir do princípio da boa-fé. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da responsabilidade civil dos administradores das sociedades comerciais, Lisboa: Lex, 1997, p. 523. Na construção do Professor, a bitola de diligência fixada pelo art. 64.º seria uma regra de conduta incompleta que apenas em conjunto com outras normas teria um conteúdo útil preciso. Era assim negada a possibilidade de concretização do dever de gestão diligente sem referência a outras normas. MENEZES CORDEIRO manteve esta sua posição após a reforma do Código das Sociedades Comerciais de 2006, explican-do que «ninguém actua diligentemente, tout court: há que saber de que conduta se trata para, então, fixar o grau de esforço exigido na actuação em jogo». Cfr. MENEZES CORDEIRO, Direito das sociedades, 13... p. 987-988, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Os deveres fundamentais dos administradores de sociedades, Revista da Ordem dos Advogados, 66:2, 2006, p. 453-454. Em suma, a responsabilização dos administradores sempre exigiria a infração de normas específicas atinentes à administração, legais ou contratuais. Mais recentemente, o insigne Professor viria ainda a acrescentar que, a partir dos con-ceitos de “disponibilidade”, “competência técnica” e “conhecimento da atividade da sociedade”, referidas no al. a) do n.º 1 do art. 64.º, não é possível retirar as condutas concretas a que está adstrito o administrador, pelo que restariam dois caminhos:

«– ou imaginar que os elencados deveres, genericamente ditos “de cuidado”, sofrem um processo de autoconcretização; – ou entender que esses “deveres” só se concretizam em conjugação com outras normas. Imaginar um “dever de cuidado” como uma cláusula geral de conduta, a concretizar perante cada problema, equivale a uma inglória duplicação. Para tanto, temos já as cláusulas civis – da boa-fé e dos bons costumes; além disso, dispomos ainda da cláusula de lealdade – 64.º/1, b) –, especificamente societária».

Na sequência desta exposição, reafirma MENEZES CORDEIRO considerar mais útil o tratamento dos “deveres de cuidado” como normas parcelares ou incompletas, exigindo-se uma norma de conduta de onde emerja um qualquer dever a cargo dos administradores. MENEZES CORDEIRO, Direito das sociedades, 13... p. 987-988.

Com a devida vénia, não podemos acompanhar o autor nesta construção, por considerarmos que essa norma de conduta pode resultar da concretização da obrigação de vigilância (ou da obrigação de administração, consoante o caso) face ao padrão de diligência normativa, na sequência aliás dos seus ensinamentos no campo obrigacional (MENEZES CORDEIRO, Tratado, 62... p. 477-488), ou mesmo jus-societário, onde desenvolve a construção de PESSOA JORGE sobre a determinação e execução da conduta que integra o cumprimento do dever, de acordo com a bitola da diligência normativa (MENEZES CORDEIRO, Direito das sociedades, 13... p. 860-861).

17- PESSOA JORGE, Ensaio... p. 76-77. Em sentido idêntico, mas sem considerar a distinção proposta por PESSOA JORGE entre “diligência psicológica”, “diligência normativa” e “diligência objetiva”, JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Contrato de man-dato, reimp., Lisboa: AAFDL, 2007, p. 70-71 explica que

«a diligência constitui, de facto, um critério de determinação do conteúdo da prestação, indicativo da medida de atenção, de preocupação e do espaço psicológico que o devedor deve adoptar para actuar a prestação».

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dendo das circunstâncias do caso concreto e do fim (resultado definidor) da obrigação. Perante a bitola de diligência aplicável, deverá então o sujeito questionar-se sobre os atos necessários e adequados à consecução do fim visado (resul-tado definidor) no caso concreto18.

Ex post, a concretização operada pelo devedor pode ser sindicada face aos critérios referidos, seja por outros órgãos sociais com competên-cia para o efeito, seja pelo tribunal19 (nomeada-mente, em ação de responsabilidade civil ou em ação relativa à destituição de titulares de órgãos sociais). Seguindo Larenz, cabe ao julgador for-mular juízos de valor dirigidos à concretização de uma pauta “carecida de preenchimento”, de forma a coordenar a situação facto com a previ-são normativa20, atendendo não só ao fim preten-dido, mas também ao poder do agente e demais circunstâncias do caso21.

II. Em última análise, «é a própria jurisprudência dos tribunais quem decide quais as exigências que hão-de colocar-se em cada caso»22. A inter-venção judicial permite a progressiva densifica-

ção e concretização do complexo de situações jurídicas imputadas a cada órgão, no contexto de um sistema aberto, cuja sistematização e com-preensão reclama a formulação de parâmetros gerais e grupos de casos pela doutrina. Estes per-mitem de alguma forma balizar a variável inten-sidade da obrigação de vigilância.

Este movimento de densificação e concretização é potenciado, aliás, pela dimensão constitutiva da própria realidade empresarial, que se reflete no desenvolvimento contínuo das leges artis, compiladas ou não em códigos de bom governo das sociedades e noutros instrumentos. O sis-tema pode reclamar aqui específicas valorações económicas, devendo o intérprete-aplicador socorrer-se das coordenadas dadas pela teoria económica.

Esta densificação progressiva permite, por um lado, a “descoberta” de princípios23 e, por outro, a elaboração de tipos intermédios entre a bi tola legal e as concretas circunstâncias do caso24, promovendo a conformação ex ante da conduta dos sujeitos e conferindo modelos de decisão ao

No mesmo sentido, JOSÉ ENGRÁCIA ANTUNES, A fiscalização das sociedades comerciais: Estudo preparatório de re-forma legislativa, inédito, 1997, p. 175, para quem a diligência representa o medium jurídico-normativo através do qual se circunscreve o âmbito da própria prestação devida pelo sujeito no exercício da sua missão ou competência fiscalizadora concreta, e assim, indiretamente, o âmbito da sua responsabilidade pelos atos ou omissões praticados nesse mesmo exercício.

Estamos, portanto, no campo da ilicitude, da delimitação do dever ser, e não do juízo de censurabilidade inerente à determi-nação da culpa.

18- PESSOA JORGE, Ensaio... p. 73-102, em especial, p. 80. No mesmo sentido, MENEZES CORDEIRO, Tratado, 62... p. 483 ss.

19- Cfr. PESSOA JORGE, Ensaio... p. 80.

20- LARENZ, Metodologia... p. 406.

21- FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades…, § 62.3, n.os de margem 1852-1858.

22- LARENZ, Metodologia..., p. 408.

23- LARENZ, Metodologia... p. 674.

24- No mesmo sentido, cfr. MANUEL CARNEIRO DA FRADA, Direito civil – Responsabilidade civil – O método do caso, Coimbra: Almedina, 2006, p. 119-120 que, ainda face à redação anterior do art. 64.º, defendia «a desenvolução paulatina de um conteúdo actual e operativo [da respectiva] regra, segundo situações-tipo», como caminho apropriado para responder às exigências de uma correta governação empresarial. Cfr. também NUNO TRIGO DOS REIS, Os deveres de lealdade dos administradores de sociedades comerciais”, in Cadernos o Direito: Temas de Direito Comercial, Coimbra: Almedina, 2009, p. 333-334.

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A DISCRICIONARIEDADE EMPRESARIAL, A BUSINESS JUDGMENT RULE E A CELEBRAÇÃO DE CONTRATOS DE SWAP : 63

intérprete aplicador. Estes serão modelos de deci são móveis que, nessa medida, sempre exi-girão a ordenação de vários factores em função das concretas circunstâncias do caso25.

III. Partimos assim do critério do gestor crite-rioso e ordenado [art. 64.º/1, a)26], mais exigente do que o critério comum (bonus pater familias), por se dirigir a especialistas fiduciários encar-regues, consoante o caso, da gestão de bens alheios. Perante este podem ser exigidos ao su-jeito atos que não praticaria na gestão dos seus próprios bens.

A concretização desta bitola – aplicável tanto à atividade do devedor dirigida à “descoberta” do comportamento adequado para atingir o fim que lhe é proposto, como à posterior “realização” desse comportamento – depende do fim visado e das específicas circunstâncias do caso con creto27.

IV. O fim visado, que modela a obrigação de ad-ministração em cada caso concreto, é o fim ou interesse da sociedade.

O “fim da sociedade” referido no art. 6.º/1 tende a ser identificado, em primeira linha, com o seu

escopo lucrativo, resultante do enquadramento da “sociedade comercial” como espécie do gé-nero “sociedade” previsto no art. 980.º CC28. O “fim” distinguir-se-ia portanto do “objeto social”, traduzido nas atividades comerciais a desenvolver pela sociedade com vista à obten-ção de lucro. No entanto, reconhece-se em geral a interligação entre estes dois conceitos, de tal forma que o primeiro surge frequentemente de-signado como “fim mediato” e o segundo como “fim imediato”. Desta interligação deve reter-se a ideia de que o objeto social concretiza ou pre-cisa o sentido do fim social.

Isto não é, porém, suficiente para delimitar o fim visado pelos órgãos sociais (o resultado defini-dor da prestação devida), ou seja, o “interesse social”.

Para o que ora importa, o “interesse social” tra-duz o fim orientador (ou resultado definidor) da conduta dos órgãos sociais, tal como concreti-zado e densificado não só pela lei (o tal escopo lucrativo29) e pelos estatutos (as «actividades que os sócios propõem que a sociedade venha a exercer» na cláusula do objecto social30), mas

25- FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades…, § 62.3, n.os de margem 1855-1858.

26- Os artigos sem referência são do Código das Sociedades Comerciais.

27- FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades…, § 62.3, n.os de margem 1859-1863.

28- JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito comercial, 4 – Sociedades comerciais, parte geral, Lisboa: AAFDL, 2000, p. 15-20, em especial, p. 17. Cfr. também, v.g., ALEXANDRE DE SOVERAL MARTINS, Capacidade e representação das sociedades comerciais”, in Problemas do Direito das Sociedades, Coimbra: Almedina, 2002, p. 472; CSC em comentário..., art. 6.º, p. 110, citando LOBO XAVIER.

Contra a construção da “sociedade” prevista no art. 980.º CC como conceito geral e abstrato de sociedade ao qual se subsu-mem as sociedades comerciais, sustentando que corresponde apenas à sociedade civil simples, cfr. PEDRO PAIS DE VAS-CONCELOS, Contratos atípicos, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2009, p. 65-70, 92, 175, e A participação social nas sociedades comerciais, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2006, p. 15-30.

Mais recentemente, PEDRO MAIA, Voto e corporate governance: um novo paradigma para a sociedade anónima, Disserta-ção para doutoramento em Ciências Jurídico-Empresariais apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, inédito, 2009 p. 7, 15 ss., sustentou que o exercício em comum de uma atividade económica corresponde à participação dos sócios em assembleia geral, enquanto órgão colegial.

Sobre os elementos das sociedades, cfr. ainda MENEZES CORDEIRO, Direito das sociedades, 13... p. 288-303.

29- Sem prejuízo de outros referentes normativos que direta ou indiretamente também contribuem para a delimitação do interesse da sociedade, como referimos, de seguida, no corpo do texto.

30- Cfr. art. 11.º/2.

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também pelos próprios órgãos sociais, de acordo com as normas de competência aplicáveis. Cor-responde, portanto, a uma noção ampla de “fim da sociedade”31 e, logo, de fim (ou resultado definidor) da conduta dos órgãos sociais e dos demais devedores vinculados à prossecução do mesmo (trabalhadores e outros colaboradores da sociedade)32.

É necessário atender, portanto, à concretização

ou densificação do fim da sociedade pelos ór-gãos sociais. Esta é delimitada sobretudo pelo “sistema político” da sociedade em causa, ou seja, pela articulação dos diferentes órgãos no quadro das suas competências, atendendo à sua específica composição. Contudo, a partir das normas que regulam a forma pela qual é deter-

minado o interesse social em cada momento po-demos retirar elementos para a densificação do seu conteúdo33.

No início e dentro dos limites legais, os acionis-tas expressam o seu consenso sobre a criação do

ente social, sobre o exercício coletivo de uma atividade comercial através do mesmo e sobre os termos desse mesmo exercício. O ato constitu-tivo e os estatutos da sociedade traduzem, por-tanto, uma manifestação conjunta de diferentes vontades individuais dos sócios que expressam uma comunhão de interesses num determinado projeto económico34. Este projeto económico é delimitado, em traços gerais, pela cláusula do objeto social [art. 9.º/1, d)], cabendo aos órgãos sociais desenvolver e concretizar o disposto no contrato de sociedade, de acordo com as regras de competência aplicáveis em cada caso.

Num primeiro momento, esta tarefa cabe aos próprios acionistas, nos termos do art. 11.º/3. A estes compete «deliberar sobre as atividades compreendidas no objecto contratual que a so-ciedade efectivamente exercerá», assim concre-tizando o projeto económico pretendido.

Num segundo momento, numa sociedade anó-nima, dentro das linhas fixadas no contrato de

31- Englobando entre outros elementos os conceitos de fim (escopo lucrativo) e de objeto social (atividades que os sócios propõem que a sociedade venha a exercer).

32- Esta identificação do interesse com o fim da sociedade (em sentido amplo) encontra fundamento normativo no disposto no art. 6.º/3 e parece ser implicitamente aceite pela doutrina que se debruça sobre esta disposição. Cfr. JORGE COUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial, 2, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2013, p. 198-207, CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, Da prestação de garantias..., passim, em especial, p. 580, CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, De novo sobre a prestação de garantias por sociedades a dívidas de outras entidades: luzes e sombras, Revista da Ordem dos Advogados, 58:2, 1998, passim, CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, “A prestação gratuita de garantias e a assistência financeira no âmbito de uma relação de grupo”, in Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, 2, Coimbra: Almedina, 2012, passim, SOVERAL MARTINS, CSC em comentário..., art. 6.º, p. 114-118.

Também a jurisprudência identifica o fim social com o interesse da sociedade, a propósito do art. 6.º/3. E.g., em STJ 17-jun.-2004 (QUIRINO SOARES), processo n.º 04B1773, disponível em www.dgsi.pt, CJ, 12:2, 2004, p. 94-96, a propó-sito da constituição de um aval, afirmou o tribunal que «o justificado interesse da sociedade (…) há-de compreender-se por referência ao fim da sociedade, que é a obtenção e distribuição dos lucros da actividade económica (…)». Cfr. também STJ 17-set.-2009 (ALBERTO SOBRINHO), processo n.º 267/09.9YFLSB.S1, disponível em www.dgsi.pt, e RPt 20-mai.-1999 (CUSTÓDIO MONTES), processo n.º 9930326, in CJ, 24:3, 1999, p. 189-196, sumário disponível em www.dgsi.pt.

Alguns autores identificam ainda expressamente o interesse social com o fim da sociedade, à margem do art. 6.º. É o caso, e.g., de PAULO OLAVO CUNHA, Direito das sociedades comerciais, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2012, p. 121-123. Note-se, porém, que este autor engloba no conceito de interesse da sociedade não só o interesse dos sócios, mas também os interesses dos trabalhadores, clientes e credores.

33- FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades…, § 62.3, n.os de margem 1877-1878.

34- Deixamos de lado o específico enquadramento das sociedades unipessoais, bem como das sociedades constituídas por ato legislativo.

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sociedade e nas deliberações dos acionistas, aprovadas nos termos do art. 11.º/3 (art. 6.º/4), cabe ao conselho de administração35 concretizar esse mesmo projeto, no uso da sua competência para gerir as atividades da sociedade, devendo subordinar-se às deliberações dos acionistas ou às intervenções do conselho fiscal apenas nos casos em que a lei ou o contrato de sociedade o determinarem (art. 405.º/1)36.

Esta solução normativa traduz o equilíbrio en-tre a posição individual dos acionistas e a ope-racionalidade da sociedade anónima, paradigma das sociedades de capitais, assente num quadro organizativo de colaboração privada e dirigida à congregação de capitais de diferentes tipos de in-vestidores, com uma finalidade lucrativa37.

O requisito de unanimidade na posição dos acionistas esgota-se no ato de constituição da

sociedade, no qual se define pouco mais do que a finalidade lucrativa e o objeto social. Após a constituição da sociedade, vale a regra da maio-ria, seja nas deliberações sobre as atividades compreendidas no objeto contratual que a so-ciedade efetivamente deverá desenvolver (art. 11.º/3), seja na designação dos titulares dos ór-gãos sociais que irão concretizar as (vagas) dire-trizes dos sócios (arts. 391.º e 386.º). Face ao poder de determinar a designação dos órgãos so-ciais, os acionistas controladores têm, de facto, um papel central na concretização do interesse social.

De iure, porém, cabe ao conselho de adminis-tração a mais relevante concretização do fim da sociedade, dentro dos limites genéricos fixados pelos acionistas (nos estatutos e nas deliberações tomadas nos termos do art. 11.º/3)38. Trata-se

35- Para facilitar a exposição, tomamos aqui por referência o modelo tradicional português de governo da sociedade anónima, valendo a construção apresentada igualmente para os modelos germânico e anglo-saxónico, com as necessárias adaptações.

36- FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades…, § 62.3, n.os de margem 1879-1881.

37- MENEZES CORDEIRO, Manual de direito das sociedades, 2, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2007, p. 482.

38- Neste sentido, RAUL VENTURA e BRITO CORREIA, Responsabilidade civil... p. 101, na esteira de MINERVINI, afir-mam que «[o] administrador diligente “tem de descobrir os actos adequados ao fim que se lhe impõe e de os realizar”, mas “o fim que se lhe impõe” não é por vezes concretamente delimitado. É essa precisamente a função do conceito de interesse social: é o critério que permite ao administrador diligente definir o objectivo a alcançar, que lhe marca o caminho a seguir». Neste sentido, afirma também corretamente MARIA AUGUSTA FRANÇA, A estrutura das sociedades anónimas em relação de grupo, Lisboa: AAFDL, 1990, p. 52-63 que os sócios, ao constituírem a sociedade e a empresa por ela enquadrada estabe-lecem como fins o exercício de uma determinada atividade e a obtenção de ganhos e vantagens, sendo estes fins completados por outros fins secundários, concretizados nas decisões diárias dos gestores profissionais que integram os órgãos legalmente competentes. Nesta concretização, não visam só o lucro máximo (fim que seria válido apenas em mercados de concorrência perfeita, sob premissas de informação completa e flexibilidade ilimitada), mas também a capacidade de sobrevivência e a garantia da estabilidade, liquidez e crescimento. Porém, numa perspetiva institucionalista que não podemos acompanhar, a autora acrescenta que o art. 64.º, na redação anterior a 2006, impunha aos membros do órgão de administração a consideração também dos interesses dos trabalhadores na formação da vontade social, não sendo estes interesses meros limites ao interesse dos sócios, mas parte do interesse social.

Em sentido contrário ao sustentado no texto, afirmando caber aos sócios a definição e a concretização do interesse social, cfr., v.g., PAIS DE VASCONCELOS, A participação social2... p. 328-329, CARNEIRO DA FRADA, Acordos parassociais “omnilaterais”, Direito das Sociedades em Revista, 1:2, 2009, p. 117. Para MARIA DE FÁTIMA RIBEIRO, A tutela dos cre-dores da sociedade por quotas e a “desconsideração da personalidade jurídica”, Coimbra: Almedina, 2009, p. 524, é «ponto assente que a determinação do interesse social de uma dada sociedade cabe ao conjunto dos sócios».

Também no sistema alemão, a determinação do interesse social é uma tarefa constante e discricionária, de carácter empresa-rial, do Vorstand e do Aufsichtsrat. Cfr., e.g., SEMLER, Leitung und Überwachung2... p. 33-34, 40-41.

Entre nós, sobre a distribuição legal de competências entre a assembleia geral e o conselho de administração nos termos dos arts. 373.º /3 e 405.º/1, vide em especial PEDRO MAIA, Função e funcionamento do conselho de administração da sociedade anónima, Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 137-168, JOÃO ESPÍRITO SANTO, Sociedades por quotas e anónimas …, p. 411-417.

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de uma competência própria e injuntiva, atra-vés da qual se pretende assegurar a formulação de um juízo autónomo face às deliberações dos acionistas (não incluídas no art. 11.º/3; cfr. art. 373.º/3)39.

O critério para esta concretização resulta das di-ferentes coordenadas sistemáticas. A sociedade resulta de uma iniciativa dos acionistas, tradu-zida numa manifestação de vontade conjunta, dirigida à criação de um mecanismo técnico--jurídico para, com maior comodidade e eficiên-cia, organizar a realização dos seus interesses colectivos e duradouros40. Esta configuração dogmática resulta não só dos efeitos normati-vamente associados à manifestação da vontade dos acionistas na constituição da sociedade [arts. 5.º e 7.º CSC e arts. 3.º/1, a) e 29.º/1 CRCom], mas também do papel normativamente reconhe-cido aos acionistas na conformação da sociedade em cada momento: (i) os acionistas delimitam a conduta da administração (art. 6.º/4); (ii) os acionistas designam os membros do conselho de administração (art. 391.º42); (iii) só os acionistas têm competência para aprovar as contas anuais (art. 376.º), a alteração do contrato de sociedade (art. 85.º), a fusão, a cisão, a transformação e a dissolução da sociedade [arts. 100.º/2, 117.º-F/1, 120.º, 133.º, 141.º/1, b)]; só os acionistas podem responsabilizar os administradores pela sua con-duta, seja promovendo a sua destituição (com ou sem justa causa, art. 403.º/1), seja promovendo ações de responsabilidade civil em nome da so-ciedade (ações sociais ut singuli, art. 77.º).

V. Numa sociedade por quotas não tem aplicação o Führerprinzip, estando os gerentes vinculados ao cumprimento das deliberações dos sócios so-bre matérias de gestão (art. 259.º).

VI. Face às referidas coordenadas sistemáticas, o interesse social é normativamente apresentado, para o que ora importa42, como o fim ou resul-tado definidor da conduta devida pelos titulares43

dos órgãos sociais e traduz o interesse comum dos sócios enquanto sócios (ou o interesse dos sócios em modo coletivo).

Na tripartição entre “interesse subjetivo”, “inte-resse objetivo” e “interesse técnico”, sugerida por MENEZES CORDEIRO44, enquadra-se na acepção do “interesse objetivo”, como «a rela-ção de adequação que surge entre uma pessoa, que tem necessidades (reais e constatáveis) e a realidade apta a resolvê-las»45.

Seguindo a sugestão de PEDRO MÚRIAS, pode igualmente configurar-se como aquilo que um gestor criterioso e ordenado (ou um fiscalizador empregando elevados padrões de diligência pro-fissional) entenderia como “bom” ou “desejável” para os sócios (em modo coletivo), perante as circunstâncias do caso concreto. Não se confun-de o interesse com o que é desejado, correspon-dendo o interesse àquilo que o seu titular pode

ou deve desejar, assim erigindo a razão a critério da vontade. «Ter interesse em x é ter razão, tudo visto, para querer x». Assim, «[d]escobrir se al-guém tem ou não tem interesse em certa coisa é

39- FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades…, § 62.3, n.os de margem 1882-1887.

40- CARLOS DA MOTA PINTO, ANTÓNIO PINTO MONTEIRO e PAULO MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 139-140.

41- Tomamos aqui por referência o modelo tradicional português.

42- Ou seja, no contexto da obrigação de vigilância (tal como da obrigação de administração) dos órgãos da sociedade anó-nima.

43- Recorde-se que já GOMES DA SILVA, O dever de prestar..., p. 44, reconduzia o “interesse” ao fim considerado pela lei.

44- MENEZES CORDEIRO, Tratado, 62... p. 311-312.

45- Ibidem, p. 312.

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A DISCRICIONARIEDADE EMPRESARIAL, A BUSINESS JUDGMENT RULE E A CELEBRAÇÃO DE CONTRATOS DE SWAP : 67

discutir as justificações ou os fundamentos que essa pessoa poderia ter para tal coisa»46.

Como explica PEDRO MÚRIAS, esta definição situa o conceito de interesse na relação entre a razão (ou a racionalidade) e a vontade (ou de-sejo). Com este enquadramento, «o interesse corresponde à vontade que se teria numa situa-ção de informação plena e plena racionalidade, dadas as restantes características do titular e do mundo de que essa vontade resultaria. Interesse e vontade coincidem quando o titular for racio-nal e tiver toda a informação pertinente»47.

Sendo a sociedade anónima um instrumento para o desenvolvimento de uma atividade comercial, o critério de racionalidade subjacente à determi-nação do interesse social é, sobretudo, um crité-rio de racionalidade económica ou empresarial

(como aliás resulta do art. 72.º/2)48.

VI. Dito isto, dentro das linhas fixadas pelos acionistas, nos estatutos ou nas deliberações (tomadas nos termos do art. 11.º/3, no caso das sociedades anónimas, e mais genericamente no caso das sociedades por quotas, segundo o art. 259.º), cabe ao órgão de administração concreti-zar e densificar o “interesse da sociedade” como aquilo que é “desejável” para os acionistas (em modo coletivo), perante as circunstâncias do caso concreto49.

Este labor é necessariamente pautado pelo já analisado dever de atuação segundo critérios de

racionalidade empresarial. Pretende-se, nos ter-mos referidos, uma densificação do fim com uma efetiva ou proposta validade objetiva, afe rida pela «“capacidade de fundamentação” e pela “criticibilidade” da medição racional-discursiva das afirmações desse pensamento»50.

O mesmo é dizer que tal concretização ou densi-ficação é sindicável.

Sindicável não só pelo órgão de fiscalização (quanto exista), mas também por um Tribunal que seja chamado a apreciar a conduta da admi-nistração.

3. A DISCRICIONARIEDADE EMPRESARIAL

I. Como sustentámos noutra sede51, a obrigação de administração é uma obrigação de meios, diri gida à adequada tentativa de causação do inte resse da sociedade (resultado definidor).

A prestação, assim caracterizada, é (parcial-mente) indeterminada, mas determinável – pelo menos até determinado nível – segundo o padrão de diligência normativa, levando à descoberta de resultados subalternos que valem tão-só na me-dida em que se adeqúem ao resultado definidor, com as consequências dogmáticas que daí ad-vêm52, implicando o reconhecimento de situações jurídicas analíticas concretizadoras da obrigação de vigilância e a formulação de normas de con-duta no caso concreto.

Tais normas de conduta podem admitir uma ou mais alternativas de ação, deixando uma maior

46- PEDRO MÚRIAS, “O que é um interesse no sentido que geralmente interessa ao juristas?”, in Estudos em memória do Prof. J. L. Saldanha Sanches, 2, Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 853-855.

47- Ibidem, p. 854-856.

48- FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades…, § 62.3, n.os de margem 1894-1900.

49- Na verdade, cada ato praticado pela administração constitui em si mesmo concretização ou densificação do interesse da sociedade.

50- CASTANHEIRA NEVES, Metodologia jurídica: Problemas fundamentais, Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 34-35.

51- FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades…, §§ 62.2-62.4, p. 713 ss.

52- Cfr. Ibidem, nota 2562 (p. 722) e § 62.6, n.os de margem 1953-1957.

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ou menor margem de discricionariedade (Ermes-

sensraum)53 ao órgão em causa, face à qual se imponha uma decisão no sentido de atuar ou não atuar e, em caso afirmativo, sobre o sentido da sua atuação.

Estamos, portanto, no domínio da delimitação positiva da prestação: visa-se a concretização do dever ser, questionando qual a conduta de-vida pelo devedor no caso concreto em aná lise, atendendo ao fim que se pretende atingir e ao grau de esforço (diligência) exigível. Neste pro-cesso deve atender-se, como já vimos antes, às coordenadas dadas por outras normas jurídicas (com particular destaque para o Direito da in-solvência) ou pelas leges artis, no contexto de um sistema aberto. Este pode aqui reclamar es-pecíficas valorações económicas. Quando assim seja, o intérprete-aplicador deve socorrer-se das coordenadas dadas pela teoria económica para a concretização da prestação devida.

Quando a norma de conduta no caso concreto admita apenas uma conduta, não há discricio-nariedade, há uma obrigação de conteúdo espe-

cificado em função das circunstâncias do caso. Sendo admitidas duas ou mais alternativas de ação, há discricionariedade54, podendo o devedor escolher qualquer uma das alternativas55.

II. A específica competência atribuída a cada órgão social determina diferentes níveis de dis-cricionariedade.

Tomando por referência o modelo tradicional português de estruturação da administração e fiscalização (art. 278.º/1, a) CSC), ao conselho de administração cabe concretizar o interesse ou fim da sociedade (dentro dos limites legais, dos estatutos e das deliberações sociais previstas no art. 11.º/3), bem como os meios a adotar para a sua prossecução. O seu processo de decisão as-senta num vasto leque de variáveis e, sobretudo, em juízos de prognose sobre a evolução do mer-cado – desde o mercado dos produtos comercia-lizados ou serviços prestados pela sociedade, aos mercados financeiro e laboral de que depende a captação dos recursos financeiros e humanos para o desenvolvimento da sua atividade.

53- Nas palavras de ENGISCH, Introdução ao Pensamento Jurídico, Lisboa: Gulbenkian, 1988, p. 214, «o conceito de discricionariedade (poder discricionário) é um dos conceitos mais plurissignificativos e mais difíceis da teoria do Direito». Entre nós, tem sido desenvolvido sobretudo no Direito administrativo, sendo um dos temas mais tratados nesta área, multipli-cando-se as concepções sobre o mesmo. Cfr. FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades…, nota 2860 (p. 802-804).

54- Como explica ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES, “O problema da discricionariedade”, in Digesta: Escritos acerca do Direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros, 1, Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 532-538, a essência da discricionariedade reside na liberdade quanto à vinculação jurídica, correspondendo «à possibilidade de opção autónoma entre várias decisões e comportamentos igualmente válidos». Contrariamente à decisão vinculada, a proferir mediante a apli-cação subsuntiva de uma norma legal, a decisão discricionária é juridicamente válida embora não tenha sido subsuntivamente deduzida, direta ou indiretamente, de uma norma jurídica. Tal não obsta a que, no caso da discricionariedade orgânico-socie-tária, haja sempre, de entre o catálogo de decisões consideradas normativamente admissíveis na sequência da concretização da obrigação de vigilância (ou de administração, consoante o caso), uma solução idealmente mais válida do que as demais, porque mais adequada à prossecução dos interesses da sociedade, segundo a convicção do próprio agente. Com base no princí-pio de que «o direito deixou de ser apenas o limite, para ser a própria máxima», o resultado definidor da obrigação legalmente imposta ao órgão societário opera como máxima da sua conduta. Diz-se por isso que a discricionariedade é juridicamente vinculada. A admissão de uma pluralidade de decisões pela norma exprime «a impossibilidade de determinar a priori, por uma prévia determinação lógico-conceitual, o sentido e conteúdo normativo da decisão concreta, que só viria a determinar-se a posteriori e materialmente». Cfr. ibidem, p. 541-545.

55- Tal como nas obrigações alternativas, o devedor exonera-se pela realização da prestação designada por escolha (art. 543.º/1 CC).

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A DISCRICIONARIEDADE EMPRESARIAL, A BUSINESS JUDGMENT RULE E A CELEBRAÇÃO DE CONTRATOS DE SWAP : 69

Face à incerteza inerente a este processo decisó-rio, a delimitação positiva ex ante da prestação devida pelo conselho ou pelos seus membros implica, frequentemente, uma conclusão de exis-tência de várias alternativas de ação normativa-mente admissíveis. O facto de uma tal conclusão se impor frequentemente nos termos expostos não permite, porém, afirmar aprioristicamente a existência de uma qualquer discricionariedade da administração para além daquela que resulta da concretização da obrigação de administração, de acordo com a bitola de diligência normativa56.

Esta concretização da obrigação de adminis-tração depende, como desenvolvemos noutra sede57, do fim ou resultado definidor da presta-ção. Ou seja, depende do interesse da sociedade, tal como resultante das coordenadas legais (o es-copo lucrativo), do objeto social fixado nos esta-tutos e das deliberações dos acionistas (previstas no art. 11.º/3), e progressivamente concretizado ou densificado pelo próprio conselho de admi-nistração.

Esta concretização ou densificação resulta ex-

pressa ou implicitamente das opções sucessi-vamente tomadas pela administração no desen-volvimento da atividade social. Estas opções encadeiam-se umas com as outras, permitindo a sua sindicância por referência às antecedentes, sindicabilidade essa que é tanto mais intensa quanto mais densificado se encontra o interesse social58.

Da mesma forma, a alteração da estratégia em-presarial será questionável face aos investimen-tos já realizados. Quem seja chamado a sindicar a conduta da administração pode e deve ques-

tionar qual a necessidade ou conveniência dessa alteração que, naturalmente, comportará custos adicionais para a sociedade. À administração ca-berá demonstrar que essa alteração serve os me-lhores interesses da sociedade59.

III. Face ao exposto, quem seja chamado a con-trolar ex post a conduta do devedor, em qualquer dos casos descritos, deverá avaliar:

(i) Se, no caso concreto, o devedor deter-minou adequadamente as alternativas de ação normativamente admissíveis, em função da bitola de “diligência norma-tiva”;

(ii) Em caso afirmativo, sendo admissível apenas uma alternativa, se a conduta do devedor foi conforme à norma de con-duta;

(iii) Sendo admissível mais do que uma alter-nativa, se a conduta do devedor se enqua-dra dentro do espaço de discricionarie-dade normativamente delimitado.

Este quadro, sendo em si incompleto, requer al-guns desenvolvimentos adicionais. Desde logo, caso se conclua que, no caso concreto, a con duta adequada para atingir os resultados propostos não era ex ante determinável, por uma razão ou por outra, deve entender-se que tal conduta estava fora do âmbito da prestação devida.

A determinação da conduta devida é feita, se-gundo o padrão de diligência normativa, aten-dendo necessariamente às circunstâncias do caso, pelo que, se face a estas não era exigível ao devedor a descoberta dessa conduta, a mesma não pode ser considerada como parte da presta-ção devida.

56- FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades…, § 62.3, n.os de margem 2037-2045.

57- Ibidem, §§ 62.3-62.4, p. 722 ss.

58- Não se verifica assim contradição entre as afirmações de que “a administração concretiza o interesse (ou fim) da socie-dade” e de que “a conduta da administração é sindicável por referência ao interesse (ou fim) da sociedade”.

59- Ibidem, n.os de margem 2040-2045.

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Não pode formular-se um juízo de incumpri-mento se a decisão, e subsequente atuação do devedor, se enquadrarem no leque possível de comportamentos do homem médio (segundo a bitola de diligência aplicável), face às incertezas verificadas no caso concreto, na prossecução do interesse social, no contexto das suas competên-cias.

A conduta só é devida se e na estrita medida em que o devedor a possa identificar como tal, se-gundo o padrão de diligência normativa60.

VI. Para além disso, é comum afirmar-se que os administradores e fiscalizadores são frequen-temente chamados a atuar em cenários de in-certeza, face aos quais têm de formular juízos de prognose, e que, neste contexto, «deve ser reconhecido à administração um amplo espa-ço de discricionariedade, sem o qual a atuação empreen dedora não é concebível»61.

O espírito empreendedor, traduzido na capaci-dade de introdução de inovações no contexto empresarial, enquanto qualidade pessoal exigí-vel aos membros dos órgãos sociais (maxime, aos administradores e, em menor medida, aos fiscalizadores), implica a capacidade para assu-mir riscos. Pense-se no exemplo da introdução de um produto inovador no mercado. Não exis-tindo um historial de comercialização desse tipo de produto, é muito difícil prever o seu sucesso. Claro que a decisão empresarial sobre a sua pro-dução e comercialização é balizada, entre outra variáveis, por estudos de mercado destinados

a aferir a receptividade do consumidor face ao produto62. No entanto, há sempre uma margem de incerteza até ao momento-chave da comercia-lização do mesmo.

Por um lado, os administradores não estão obri-gados a causar certo resultado positivo, mas ape-nas a tentar adequadamente causá-lo. Por outro, a concretização das suas obrigações no caso con-creto resulta frequentemente no reconhecimento de uma norma de conduta com inúmeras alter-nativas de ação, i.e., no reconhecimento de um espaço normativo de discricionariedade empre-sarial. O facto de não alcançarem um resultado positivo pode desiludir os acionistas, mas não pode implicar, só por si, um juízo de negligência.

O reconhecimento da existência de riscos im-plica, por inferência lógica, o reconhecimento de uma margem de erro possível que será tanto mais assumida pelos membros dos órgãos so-ciais quanto mais seguros estiverem de que não serão civilmente responsáveis pelos erros que caiam nesse âmbito e, consequentemente, pelos eventuais maus resultados financeiros que daí advierem.

Ora, o nosso Direito acompanha esta preocupa-ção: nem os administradores nem os fiscaliza-dores se podem comprometer a causar um resul-tado, nem a lei o exige, porque este não depende apenas da sua conduta, mas de um sem número de variáveis. Um qualquer outro entendimento faria correr o risco empresarial por conta dos ad-ministradores e fiscalizadores da sociedade e não

60- Ibidem.

61- Tal como afirmado pelo BGH no caso ARAG/Garmenbeck, BGH 21-abr.-1997, BGHZ 135, 244-257.

62- Note-se que a realização de estudos de mercado pode não ser possível ou não oferecer resultados satisfatórios para fundamentar uma determinada decisão empresarial, como ilustrou Steve Jobs num episódio icónico na história da Apple: no dia da apresentação do Macintosh (o computador pessoal que, baseado num interface gráfico, revolucionou o respetivo mercado) em 1984, um jornalista da revista Popular Science perguntou a Steve Jobs que tipo de estudos de mercado é que tinham sido desen volvidos, ao que este respondeu: «Did Alexander Graham Bell do any market research before he invented the tele phone?». Cfr. WALTER ISAACSON, Steve Jobs, New York, London, Toronto, New Delhi: Simon & Schuster, 2011, capítulo 14.

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A DISCRICIONARIEDADE EMPRESARIAL, A BUSINESS JUDGMENT RULE E A CELEBRAÇÃO DE CONTRATOS DE SWAP : 71

sobre os seus acionistas que são, nos sugestivos termos da teoria económica, seus “credores re-siduais”.

O Direito assegura, portanto, um espaço de auto-nomia dos administradores face a pressões inad-missíveis dos acionistas, traduzidas em ameaças de responsabilidade civil63. Salvaguarda o espí-rito empreendedor e a capacidade prospectiva dos administradores, traduzida na assunção de riscos no mercado. Enquadra igualmente a atua-ção dos fiscalizadores a quem se exige que, na sua atividade de controlo de riscos, não frustrem a atuação empreendedora dos administradores, devendo em diversas circunstâncias efetuar um juízo ponderado face ao interesse da sociedade, num típico sistema de checks and balances.

Este espaço de autonomia é, contudo, normati-vamente delimitado: quando se conclua que o devedor atuou fora das alternativas de ação nor-mativamente admissíveis em função da bitola de diligência normativa, deve concluir-se pelo in-cumprimento da sua obrigação64.

VII. Deve ainda referir-se que a discussão sobre a discricionariedade empresarial tem sido domi-nada por uma tendência garantística de uma margem de atuação dos órgãos das sociedades comerciais livre de sindicância judicial.

Esta tendência está patente na afirmação corrente de que os tribunais «não podem sindicar decisões de mérito» da administração destas sociedades, seja porque tal condiciona a predisposição dos seus membros para a desejável assunção de riscos empresariais65, seja porque os tribunais não estão habilitados para decidir sobre o mérito de uma determinada opção empresarial66, seja ainda por-que a revisão a posteriori de uma decisão tomada num contexto de incerteza é necessariamente vi-ciada pelo conhecimento entretanto adqui rido da situação subjacente (hindsight bias)67.

Justifica-se a reprodução do pensamento crítico de DAVID DUARTE (a propósito desta questão no Direito administrativo), segundo o qual «as questões da discricionariedade são questões cuja abordagem depende, essencialmente, da com-

63- CARNEIRO DA FRADA, A business judgment rule... p. 81.

64- FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades…, 2064-2070.

65- Cfr., v.g., COX e HAZEN, Corporations... p. 480.

66- Cfr., v.g., MENEZES CORDEIRO, Da responsabilidade civil... p. 523.

Esta é uma tendência refletida em casos como Lewis v. Vogelstein (699 A.2d 327, 332-333), decidido pelo Court of Chancery of Delaware, no qual os acionistas demandaram os membros do conselho de administração da Mattel Inc. por incumprimento de um dever de informação sobre o valor das opções sobre ações concedidas a si mesmos:

«…a careful board or compensation committee may customarily be expected to consider whether expert estimates of the present value of option grants will be informative and reliable to itself or to shareholders. And if such estimates are deemed by the board, acting in good faith, to be reliable and helpful, the board may elect to disclose them to the shareholders, if it seeks ratification of its actions».

Acrescentou ainda que a avaliação do que deve ser objeto de divulgação ao público não deve caber aos tribunais, mas por uma entidade administrativa especializada na matéria como a SEC:

«Judgments concerning what disclosure, if any, of estimated present values of options should be mandated are best made at this stage of the science, not by a court under a very general materiality standard, but by an agency with finance exper-tise. An administrative agency – the Securities and Exchange Commission – has a technical staff, is able to hold public hearings, and can, thus, receive wide and expert input, and can specify forms of disclosure, if appropriate. It can propose rules for comment and can easily amend rules that do not work well in practice».

67- Cfr., v.g., COX e HAZEN, Corporations... p. 480-481. A problemática do hindsight bias prende-se com o facto de, em retrospetiva, a atuação lesiva tender a ser caracterizada como negligente, fenómeno amplamente estudado pela psicologia cognitiva. Para maiores desenvolvimentos, cfr. nota 33. Cfr. também FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades, n.º de margem 2071.

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preensão das normas do conjunto normativo». Devem por isso ser afastadas as “análises emo-tivas” que desvalorizam a avaliação do exercício da discricionariedade com base no apuramento objetivo das condições normativas que suscitam68.

Neste sentido e remetendo para quanto foi dito sobre a determinação da prestação segundo o

critério da diligência normativa69, não pode sim-plesmente afirmar-se estar vedada aos tribunais a apreciação das decisões de mérito da adminis-tração (ou mesmo dos órgãos de fiscalização) da sociedade70.

Pelo contrário, impõe-se uma concretização da prestação a que está vinculado o devedor nos

68- DAVID DUARTE, A norma de legalidade procedimental administrativa: A teoria da norma e a criação de normas de decisão na discricionariedade instrutória, Coimbra: Almedina, 2006 p. 459.

69- Cfr. FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades, § 62.3, p. 722 ss.

70- Esta afirmação, como já referimos, é comum entre nós. Cfr., neste sentido, v.g., MENEZES CORDEIRO, Da responsabi-lidade civil... p. 523, SOARES DA SILVA, A responsabilidade civil dos administradores de sociedades: os deveres gerais e os princípios da corporate governance, Revista da Ordem dos Advogados, 57, 1997, p. 626, afirmando ser geralmente admitido em Portugal o princípio da insindicabilidade do mérito das decisões de gestão por parte dos tribunais.

Não pode igualmente aceitar-se a configuração da administração da sociedade, proposta por PAIS DE VASCONCELOS, Business judgment rule, deveres de cuidado e de lealdade, ilicitude e culpa e o artigo 64.º do Código das Sociedades Comer-ciais, Direito das Sociedades em Revista, 1:2, 2009, p. 71-73, como compreendendo atos de gestão ajurídicos, para depois afirmar que «[o]s tribunais devem julgar questões jurídicas e não questões de negócios». De acordo com a concepção deste Professor, só «[o]s casos de galactic stupidity devem ser qualificados como de violação do dever de cuidado ou do dever de lealdade, ou de ambos», pelo que não deveria admitir-se entre nós uma apreciação substancial da razoabilidade das decisões de gestão (em sentido idêntico, v.g., JORGE COUTINHO DE ABREU, Responsabilidade civil dos administradores de so-ciedades, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2010, p. 37 ss., JORGE COUTINHO DE ABREU e ELISABETE GOMES RAMOS, CSC em comentário..., art. 72.º, p. 845).

Não podemos aceitar esta posição porquanto a atuação dos administradores tem lugar nos termos da sua competência legal e estatutária que, como vimos, é caracterizada por um modo deôntico de imposição, refletido no reconhecimento de uma obri-gação de administração. A atuação dos administradores é, portanto, normativamente exigida e regulada, ainda que a norma do caso concreto possa admitir várias alternativas de ação. Assim, exige-se aos tribunais não uma abstenção face à apreciação de questões de mérito (no sentido defendido por STEPHEN M. BAINBRIDGE, The business judgment rule as abstention doctrine, Vanderbilt Law Review, 57, 2004, com influência decisiva na posição do Prof. PAIS DE VASCONCELOS), mas a aplicação criteriosa do padrão de diligência normativa para descoberta das alternativas de ação normativamente admissíveis e a avaliação da conduta do devedor face às mesmas. Reafirme-se: estamos sempre perante uma “questão jurídica”.

De forma elucidativa, já em 1970, ainda face ao art. 173.º do C. Com. então em vigor, segundo o qual o administrador era responsável pela “inexecução do mandato” e pela violação dos estatutos e dos preceitos da lei, explicavam RAUL VENTURA e BRITO CORREIA, Responsabilidade civil... p. 66 que, face ao direito então em vigor, a execução do mandato correspondia «à prática dos actos de administração, com o conteúdo definido pelas formas idóneas para isso: antes de mais, pela lei comer-cial, em seguida, os estatutos da sociedade e ainda, pelo menos, as deliberações da assembleia geral».

Em síntese, a avaliação da administração da sociedade, seja em questões de mérito ou de procedimento, é sempre uma questão jurídica a que os tribunais não se podem furtar. A esta questão voltaremos adiante, a propósito da business judgment rule.

A nossa jurisprudência parece confirmar a necessidade de uma apreciação de mérito.

Em STJ 12-jan.-2012 (ÁLVARO RODRIGUES), processo n.º 916/03.2TBCSC.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, o tribunal considerou que a celebração de «inúmeros “contratos forward”, e respectivos “roll overs”», que deram causa a uma situação de incapacidade financeira», constituíram atos ilícitos, por ter sido extravasado o objeto social e por ter sido violado «o dever de diligência lhe era imposto pelo artigo 64.º do CSC». Para fundamentar este último juízo, o tribunal invocou as conclusões do relatório pericial onde se podia ler «não se pode dizer que a decisão de expor ao risco maiores quantidades de moeda fosse uma decisão prudente, quando comparada com a decisão de abandonar os investimentos especulativos».

Já antes, em RLx 22-jun.-2010 (MARIA AMÉLIA RIBEIRO), processo n.º 34/2000.L1-7, disponível em www.dgsi.pt, o tribunal concretizou o padrão de diligência normativa no contexto da administração de uma cooperativa, sustentando, relativamente ao réu presidente da cooperativa – a quem competia «coordenar os diversos pelouros da direcção além de poderes de controle

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A DISCRICIONARIEDADE EMPRESARIAL, A BUSINESS JUDGMENT RULE E A CELEBRAÇÃO DE CONTRATOS DE SWAP : 73

e vigilância e ainda a convocação de reuniões ordinárias de acordo com a lei e os estatutos, nomeadamente no que toca à periodicidade mensal» – que

«a simples leitura dos extractos bancários da Cooperativa permitia perceber que algo de errado se estava a passar, uma vez que não iam sendo creditados os valores dos cheques de avultados montantes que iam sendo pagos pelos compradores dos andares».

Sustentou ainda, relativamente ao réu tesoureiro da cooperativa, que«omitiu o dever de efectuar um controlo eficaz sobre os aspectos financeiros pelos quais era responsável e que lhe eram impostos pelos Estatutos da Cooperativa, tornou-se responsável, do ponto de vista jurídico, não lhe servindo como causa de justificação ou de desculpa a invocada juventude».

Sublinha-se ainda a afirmação do tribunal que«[o] valor da confiança entre todos e cada um dos membros de uma cooperativa – que é indispensável ao funcionamento de qualquer grupo ou instituição – não pode elidir os deveres de vigilância que se repercutem no plano das relações externas da Cooperativa: a confiança, no domínio estrito do funcionamento interno; a vigilância, na esfera de terceiros que podem ser prejudicados com os comportamentos ou as omissões de algum ou alguns dos seus membros».

Este ponto do sumário é desenvolvido no corpo do acórdão:«Os RR. R e F parecem contrapor a confiança ao exercício dos deveres de vigilância e fiscalização, o que não pode, de todo, aceitar-se. Porém, a confiança entre todos e cada um dos elementos – que é indispensável ao funcionamento de qualquer grupo ou instituição – não pode elidir os deveres de vigilância que se repercutem no plano das relações externas da Cooperativa. É que, enquanto que a confiança se prende com o domínio estrito do funcionamento interno, a vigilância prende-se com as repercussões na esfera de terceiros que podem ser prejudicados com os comportamento ou as omissões dos membros de uma dada instituição. Portanto, confiança e vigilância são dois valores distintos, mas não incompatíveis, que ordenam o comportamento dos elementos da direcção em planos distintos. Ou seja, têm ambos de estar presentes. Neste caso, houve prejuízo para terceiros. Por isso, não podem estes RR. ser isentos da responsabilidade pela violação do assinalado dever de vigilância, até porque, como se viu, este situava-se num padrão de exigência não acima de uma rigorosa normalidade, perfeitamente acessível a qualquer pessoa. Se os mesmos RR. tivessem dado atenção aos extractos bancários, teriam facilmente constatado, como se viu, que algo de anormal se passava. (…) Verifica-se, assim, que não só não foi pelos RR. R e F ilidida a presunção de culpa prevista no art.º 72.º CSC como, pelo contrário, ficou provado que os mesmos omitiram o dever de vigilância. Ou seja, agiram com culpa.

O argumento de que mesmo que os RR. cooperadores tivessem fiscalizado o modo de actuação do R. C, ter-lhes-ia sido impossível detectar a fraude, dada a complexidade dos mecanismos por ele utilizados, não se nos afigura de grande con-sistência. Na verdade, não se exigiriam grandes conhecimentos contabilísticos e de detecção de fraudes para surpreender a conduta fraudulenta do R. C. Aliás, também não seria necessária uma desconfiança activa e militante para detectar que as coisas não estavam a ser por ele conduzidas de acordo com os interesses da A.. Mais propriamente, os factos demonstram que, pela inexistência de repercussão do depósito dos cheques recebidos pelo R. C nos extractos das contas bancárias da A., os RR. R e F omitiram um dever de cuidado elementar e que se traduziria no mero controlo rotineiro dos extractos bancários da A.

Não foi, pois, afastada a verificação da culpa dos mesmos RR..».

Note-se que o tribunal aplicou o conceito de culpa como “faute”. Sobre esta questão, cfr. FERREIRA GOMES, Da Admi-nistração à Fiscalização de Sociedades..., nota 3238, p. 899-902.

Em STJ 02-mar.-2009 (PAULO SÁ), processo n.º 08A3991, disponível em www.dgsi.pt, o Supremo sustentou a respon-sabilidade dos gerentes na venda de um prédio de 160 mil contos por 20 mil contos, por considerar que a autorização dos sócios para o efeito não incluía a venda nestes termos: «de tais factos se extrai uma ilação que permite “afirmar que a venda realizada, por apenas 20.000.000$00 e muito abaixo do valor real da propriedade, não estava seguramente autorizada pelos sócios, nesses moldes, ao abrigo da deliberação social referida” e que se “evidencia manifestamente violação grosseira dos (…) deveres de gerentes”, por parte dos RR».

Da mesma forma, os tribunais não se coíbem de concretizar o que seja o interesse da sociedade, no caso concreto, também para outros efeitos. Assim, e.g., para efeitos do art. 58.º/1, b), os tribunais apreciam a conformidade de deliberações sociais com o interesse da sociedade. Cfr., v.g., REv 5-jun.-1995 (ÓSCAR CATROLA), processo n.º 708, CJ, 20:3, 1995, p. 286, consultado em http://www.colectaneadejurisprudencia.com; RPt 13-abr.-1999 (AFONSO CORREIA), processo n.º 391/99, CJ, 24:2, 1999, p. 196-202. No contexto do art. 6.º/3, os tribunais apreciam a conformidade da prestação de garantias com um justificado interesse próprio da sociedade. Cfr., v.g., RCb 17-out.-2000 (FERREIRA DE BARROS), processo n.º 1935/00, CJ,

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termos gerais jus-obrigacionais, através da for-mulação da correspondente norma de conduta no caso concreto.

Quando desta resultem duas ou mais alternati-vas de ação, estaremos perante um espaço de discricionariedade normativamente regulado e delimitado, face ao qual é reconhecida uma li-berdade de escolha insusceptível de sindicância judicial721.

VIII. Face às justificações mais frequente mente enunciadas para afastar a sindicância judicial das opções de mérito da administração, deve recordar-se que a discricionariedade é um resul-tado normativo, decorre unicamente do ordena-mento jurídico e não de quaisquer considerações da ciên cia económica relativas à importância do empreendedorismo empresarial72.

Dito isto, a afirmação de que a sindicância judi-cial limita a predisposição dos administradores para assumir riscos empresariais não constitui, por si só, argumento suficiente para afastar o quadro sistemático-dogmático jus-obrigacional de determinação da prestação, patente também no domínio jus-societário73.

Quanto à afirmação de que os tribunais não estão habilitados para decidir sobre o mérito de uma determinada opção empresarial, não se perspe-tivam diferenças face a outras matérias que são levadas diariamente ao conhecimento dos tribu-nais, mas sobre as quais estes não têm qualquer conhecimento ou formação específica. O sistema prevê e dá resposta à falta de conhecimentos dos tribunais sobre as matérias sub judice, em parti-cular, através da prova pericial que, nos termos do art. 388.º CC, «tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando

sejam necessários conhecimentos especiais que

os julgadores não possuem» (itálico nosso). Esta, recorde-se, pode ser oficiosamente orde-nada pelo juiz (art. 477.º CPC, na versão de 2013) ou requerida por qualquer das partes (art. 474.º ss. CPC, na versão de 2013)74.

Quanto aos receios de hindsight bias – ou seja, da tendência para considerar os eventos que já ocorreram como sendo mais previsíveis do que efetivamente eram antes da sua ocorrência75 – estamos no domínio da delimitação do quadro factual a considerar pelo juiz, nos termos já

25:4, p. 37-39, em especial, p. 38, na qual o tribunal sustenta uma apreciação objetiva do justificado interesse próprio no caso concreto, na linha do sustentado por JOÃO LABAREDA, “Nota sobre a prestação de garantias por sociedades comerciais a dívidas de outras entidades”, in Direito societário português: Algumas questões, Coimbra: Quid Iuris, 1998, p. 186.

71- FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades…, n.os de margem 2071-2073.

72- Esta afirmação não prejudica quanto foi dito sobre o recurso à análise económica do Direito na compreensão dos pressu-postos de aplicação do Direito e das consequências decorrentes do processo hermenêutico, na concretização do princípio da materialidade subjacente (que informa a boa fé) no domínio jus-societário, e, em casos restritos, no preenchimento de pautas valorativas, quando o sistema remeta para critérios económicos (que assim operam como critérios mediatos de decisão). Cfr. FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades..., n.os de margem 35-41.

73- Recordem-se a este propósito as certeiras palavras de MENEZES CORDEIRO, Direito das sociedades, 13... p. 860:«Perante a realidade jurídica nacional e considerando as comuns e elementares aspirações de coerência jurídico-científica, não vemos qualquer utilidade em duplicar (ou multiplicar) os sistemas de responsabilidade civil. Haverá assim que manter os quadros civis. E em qualquer caso: será um grave erro de método pretender, sem justificação e sem atentar no que se faz, reescrever, a propósito da responsabilidade dos administradores, todo o sistema de responsabilidade civil».

74- Cfr., v.g., JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A acção declarativa comum: À luz do código revisto, Coimbra: Coimbra Edi-tora, 2010, p. 261-265. Esta solução permitiu, aliás, sustentar o STJ 12-jan.-2012 (ÁLVARO RODRIGUES), processo n.º 916/03.2TBCSC.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

75- Este fenómeno, frequentemente referido em estudos de diversa índole, foi teorizado a partir dos estudos de psicolo-gia cognitiva de DANIEL KAHNEMAN e AMOS TVERSKY (o primeiro viria a ser galardoado com o Prémio Nobel da Economia; o fale cimento prematuro do segundo não lhe permitiria idêntico reconhecimento) (cfr., v.g., A. TVERSKY e

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A DISCRICIONARIEDADE EMPRESARIAL, A BUSINESS JUDGMENT RULE E A CELEBRAÇÃO DE CONTRATOS DE SWAP : 75

expostos. Ainda que a concretização da obriga-ção ocorra em momento posterior – controlo ex

post da descoberta da norma de conduta pelo devedor –, deverá ter sempre por referência o momento histórico da atuação (ou omissão) do devedor. Ou seja, aquele que seja chamado a sin-dicar a conduta do devedor não poderá tomar em consideração factos posteriores que não pude-ram ser atendidos pelo próprio devedor aquando da determinação da prestação orientada à pros-secução dos melhores interesses da sociedade. Só poderá considerar os factos que o devedor conhecia ou devia conhecer naquele momento e não quaisquer outros posteriores76. Dito isto, reco nhecemos, naturalmente, o risco de inade-quada interpretação dos factos pelo tribunal, dada a tendência para exagerar ex post a probabi-lidade ex ante de um evento77, demonstrada ine-quivocamente pelos estudos de psicologia cogni-tiva. Não nos parece, porém, que tal risco possa fundamentar uma alteração do referido quadro dogmático, devendo antes motivar a doutrina a trabalhar no seu desenvolvimento, oferecendo adequados modelos de decisão que possam am-parar, com maior segurança, a decisão judicial

do caso concreto78. A tanto vai dirigido o pre-sente estudo.

IX. Por fim, como vimos, a afirmação da ne-cessidade do reconhecimento de um espaço de discricionariedade na atuação dos órgãos sociais é habitualmente limitada a “decisões empresa-riais” (unternehmerischen Entscheidungen), ou seja, a decisões baseadas em juízos de prognose e estimativas não sindicáveis que têm por objeto uma possibilidade de atuação empresarial79.

Ora, sem prejuízo da sua relevância central, a discricionariedade subjacente a decisões em-presariais (ou mais simplesmente “discriciona-riedade empresarial”) não esgota o espaço de discricionariedade normativamente reconhecido aos órgãos sociais. A generalidade das normas de conduta imputadas aos órgãos sociais admite um maior ou menor espaço de avaliação e deci-são não sindicável, na medida em que admita, no caso concreto, mais do que uma alternativa de ação80.

Neste contexto, assume especial relevância a discussão em torno da responsabilidade dos

D. KAHNEMAN, Availability: A heuristic for judging frequency and probability, Cognitive psychology, 5, 1973), com inú-meros desenvolvimentos em diferentes áreas científicas, incluindo na Ciência do Direito. Para uma pequena introdução his-tórica aos estudos sobre esta matéria, cfr. BARUCH FISCHHOFF, An early history of hindsight research, Social Cognition, 25:1, 2007.

76- Neste sentido, é interessante notar o tratamento dado à questão, há muitas décadas, pela jurisprudência norte-americana. Vide, v.g., o acórdão Otis & Co. v. Pennsylvania R. Co., de 1945 (61 F.Supp. 905), relativo ao desenvolvimento jurisprudencial da business judgment rule nos Estados Unidos. Cfr. FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades..., nota 2918, p. 826-827.

77- RICHARD A. POSNER, Economic analysis of law, New York: Aspen, 2007, p. 19.

78- FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades…, n.os de margem 2074-2077.

79- Para GERALD SPINDLER, “Die Haftung von Vorstand und Aufsichtsrat für fehlerhafte Auslegung von Rechtsbegriffen”, in HELDRICH, ANDREAS, JÜRGEN PRÖLSS e INGO KOLLER (eds.), Festschrift für Claus-Wilhelm Canaris zum 70. Geburtstag, München: Beck, 2007, p. 414, a decisão empresarial corresponde à «escolha consciente de uma possibilidade de atuação empresarial, de especiais consequências económicas, entre várias alternativas possíveis, consequências essas que podem resultar da extensão ou do risco associado à situação patrimonial ou financeira da empresa ou da sua influência de-finidora no desenvolvimento global futuro da empresa». Cfr. FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades..., § 64.8, n.os de margem 2274-2276, para mais desenvolvimentos.

80- Cfr., a este propósito, a afirmação de GOMES DA SILVA, O dever de prestar... p. 238:«em todas as prestações, ainda as mais determinadas, há sempre qualquer coisa de vago, e por isso todas as obrigações são em maior ou menor medida indeterminadas; mesmo os operários de indústrias em que a especialização profissional é

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membros dos órgãos sociais pela errada interpre-tação de normas jurídicas que abordámos noutra sede81.

4. O SENTIDO DA “NOSSA” BUSINESS JUDGMENT RULE

4.1. Elementos da previsão normativa do art. 72.º/2 CSC

I. Face ao enquadramento dogmático proposto que, nos seus termos, prevê o espaço de dis-cricionariedade necessário ao desenvolvimento empreendedor da atividade dos administradores e dos fiscalizadores, coloca-se necessariamente a questão: qual o sentido da business judgment

rule, tal como introduzida entre nós?

Não podendo repetir aqui quanto desenvolve-mos noutro estudo82 sobre a sua génese, desen-volvimento e estado atual nos EUA, sobre a sua problemática recepção, por exemplo, no Reino Unido, na Alemanha e em Itália, bem como so-bre o seu lugar no sistema português anterior a 2006 e sobre a intensa discussão que a doutrina tem mantido sobre o seu sentido nos termos pre-vistos no art. 72.º/2 CSC, limitamo-nos a expor,

de forma muito breve, a nossa visão sobre esta última questão.

Ora, a tomada de posição sobre o sentido do art. 72.º/2 impõe uma análise prévia, ainda que sin-tética, dos elementos da sua previsão normativa, a saber: (i) a atuação em termos informados, (ii) a atuação livre de qualquer interesse pessoal; e (iii) a atuação segundo critérios de racionalidade empresarial.

II. O primeiro elemento traduz o reconheci mento da imputação aos administradores e fiscaliza-dores de um dever de obtenção da informação adequada às circunstâncias do caso. Este dever é habitualmente caracterizado como estando funcionalmente orientado à habilitação do ór-gão social para atuar de forma adequada, exer-cendo outras situações jurídicas com as quais se não confundiria. Nesta perspetiva, o dever de obtenção de informação surge hierarquica mente inferior, secundário e instrumental às situa-ções jurídicas cujo exercício visa possibilitar83. Não podemos aceitar esta caracterização no con-texto das obrigações de administração e de vigi-lância84.

minuciosíssima, e em que a cada trabalhador se exigem, por vezes, actos simples e especificados, mesmo esses operários (...) podem cometer faltas de perícia, desperdiçando materiais, deteriorando ferramentas, etc, o que prova que a determina-ção prévia, porventura excessiva, dos actos devidos, não elimina por completo a necessidade de quem os pratica resolver por si algumas dúvidas sobre eles, e tomar algumas cautelas gerais, deixadas ao seu arbítrio».

81- Cfr. FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades…, § 65, p. 921 ss.

82- Ibidem, §§ 64.1-64-7, p. 822-903.

83- Sobre a distinção entre deveres principais e deveres secundários, cfr., v.g., CARLOS MOTA PINTO, Cessão da posição contratual, reimp., Coimbra: Almedina, 2003, p. 337 ss, MENEZES CORDEIRO, Da boa fé... p. 590-592, CARNEIRO DA FRADA, Contrato e deveres de protecção, Coimbra: Almedina, 1994, p. 36-38, PAIS DE VASCONCELOS, Contratos atípi-cos... p. 409, MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações, 12.ª ed., Coimbra: Almedina, 2011, p. 76-77. Cfr. também MENEZES CORDEIRO, Tratado, 62... p. 319-320.

Recorde-se, contudo, que, para alguns autores, como NUNO PINTO DE OLIVEIRA, Princípios de direito dos contratos, Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 49-50, a contraposição entre os conceitos de prestação primária e de prestação secundária tem por base o critério da originariedade e não do grau hierárquico. De acordo com esse critério, os deveres primários cor-respondem a um programa de comportamento; os deveres secundários correspondem em geral a um programa de reparação de danos.

84- No caso do órgão de administração, a obrigação de vigilância integra a própria obrigação de administração. Cfr. FER-REIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades..., § 13, p. 148 ss.

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A DISCRICIONARIEDADE EMPRESARIAL, A BUSINESS JUDGMENT RULE E A CELEBRAÇÃO DE CONTRATOS DE SWAP : 77

O dever de obtenção de informação é um dever

principal que integra tanto a obrigação de admi-nistração como a obrigação de vigilância. Em qualquer decomposição analítica destas obri-gações sempre se conclui pela identificação de um dever de obtenção de informação adequado às circunstâncias do caso85. A configuração da obten ção de informação – enquanto objeto de poderes-deveres de informação e inspeção – como prestação principal e não secundária não é, como se sabe, dogmaticamente inócua86.

Podemos concluir que a imputação de um dever de obtenção de informação pelo art. 72.º/2, para efeitos da exclusão de responsabilidade civil, nada acrescenta face aos quadros dogmáticos anteriores à reforma do Código das Sociedades Comerciais de 2006. Traduz apenas uma concre-tização ou densificação – na continuidade – do sistema pré-existente. De facto, nos termos ge-rais, na concretização das prestações de adminis-tração e de vigilância – ex ante, para efeitos do cumprimento, e ex post, para efeitos de avalia-ção do cumprimento – identificam-se não apenas “resultados subalternos” ditos de mérito, mas também “resultados subalternos” de cariz pro-

cedimental: toda a atuação de um órgão social tem de ser precedida da obtenção de informação adequada e de uma avaliação ponderada das cir-cunstâncias do caso concreto.

A justificação é simples: tanto a obrigação de admi nistração como a obrigação de vigilância têm por objecto prestações que não se esgotam na realização de uma escolha acertada (dentro das alternativas normativamente admissíveis). Como vimos, nas obrigações de meios, só há cumprimento quando o resultado é adequada-mente tentado. O Direito exige assim o cumpri-mento de um determinado procedimento dili-gente87. A esco lha que, por mera sorte – e não por decorrência de um procedimento adequado –, foi acertada, não corresponde ao cumprimento da obrigação de administração ou da obrigação de vigilância. Traduz um comportamento negli-gente com as consequências que daí advêm88.

III. O elemento “atuação livre de qualquer in-teresse pessoal” traduz a dimensão negativa do dever de lealdade89 que subordina a prossecução de outros interesses à satisfação do interesse so-cial90. Está em causa a exigência sistemática de uma adequada gestão de conflitos de interesses.

85- Quanto à prestação de vigilância, uma análise rigorosa permite concluir que a realidade subjacente e linguisticamente figurada no conceito corresponde, antes de mais, a uma atividade de obtenção de informação. Donde, semanticamente, se defi-ne “vigiar” como «observar atentamente, espiar; espreitar (…)». Cfr. dicionário online da Porto Editora, Priberam, disponível em http://www.priberam.pt/dlpo/ (consultado em 11/06/2015), ou RUI GUEDES (ed.) – Cândido de Figueiredo: Grande Dicionário da Língua Portuguesa, 4, 25.ª ed., Venda Nova: Bertrand, 1996.

86- Como explica MENEZES CORDEIRO, Tratado, 62... p. 489, a prestação principal tem um papel decisivo, podendo: ape-lar às normas supletivas aplicáveis; ser tida em vista pelas partes, monopolizando, frequentemente, a atenção dos contraentes normais pela sua mera designação; infletir a concreta configuração dos deveres acessórios; e reportar o sentido teleológico da própria obrigação.

87- A recondução da norma de legalidade procedimental jus-societária aos conceitos-síntese dos respetivos órgãos – obriga-ção de administração nos órgãos de administração e obrigação de vigilância nos órgãos de fiscalização – traduz um afasta-mento face ao enquadramento dogmático da norma de legalidade procedimental administrativa que, no Direito administra-tivo, se afirma ter existência autónoma face às obrigações não procedimentais imputáveis a qualquer órgão administrativo. Cfr. FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades…, n.os de margem 1947-1951.

88- Ibidem, n.os de margem 2252-2255.

89- Como sustentámos antes, a dimensão positiva do dever de lealdade, da qual decorreria a vinculação à prossecução do interesse da sociedade, é consumida pelas obrigações de administração ou de vigilância, consoante o caso.

90- Neste sentido, cfr., v.g., THOMAS M. J. MÖLLERS, “Treuepflichten und Interessenkonflikte bei Vorstands und Aufsi-chtsratsmitgliedern”, in HOMMELHOFF, PETER, KLAUS J. HOPT e AXEL V. WERDER (eds.) – Handbuch Corporate

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O conceito de “qualquer interesse pessoal” cons-tante do art. 72.º/2 deve, por isso, ser objeto de interpretação extensiva, de forma a abranger todas as situações em que, de forma direta ou indireta, o sujeito possa ter um qualquer interesse que afete a sua capacidade para decidir de forma isenta sobre a melhor opção face aos interesses da sociedade91. Assim o impõe a coerência inter-na do sistema que, no n.º 6 do art. 410.º 92, veda a participação do administrador em deliberações do conselho de administração nas quais tenha, “por conta própria ou de terceiro”, um interesse conflituante com o da sociedade.

No preenchimento da proposição “por conta de terceiro” deve atender-se aos avanços dogmáti-cos registados na periferia, a propósito dos “ne-gócios com partes relacionadas”, que constituem o mecanismo mais frequentemente usado na ex-tração de benefícios especiais (private benefits

of control), em prejuízo da sociedade93. Sem-pre que exista, no caso concreto, um interesse de uma “parte relacionada”, faltará ao sujeito a isenção necessária para que se possa assumir que a sua conduta visa a prossecução dos melhores interesses da sociedade. Logo, na aferição da isenção do sujeito face a um “interesse pes soal”, nos termos do art. 72.º, n.º 2, deve atender-se às relações estabelecidas com “partes relacio-

nadas”, tal como definidas, em cada momento, nas normas internacionais de contabilidade (no-meadamente na IAS 24, intitulada “divulgações de partes relacionadas”94) adoptadas e utiliza-das na União Europeia nos termos do Regula- mento n.º 1606/2002/CE [arts. 66.º-A/3, a) e 508.º-F/3, a)]95.

Concluindo, também este elemento da previsão normativa do art. 72.º/2 não introduz nenhum outro dado para além daqueles que resultavam já da adequada concretização e densificação do de-ver de lealdade dos membros dos órgãos sociais. Como se sabe, este dever, tendo várias concre-tizações no Código das Sociedades Comerciais antes da sua reforma de 2006, foi positivado como dever geral na alínea b) do n.º 1 e no n.º 2 do art. 64.º 96.

IV. O elemento “atuação de acordo com crité-rios de racionalidade empresarial” é, de longe, o mais complexo, impondo uma análise mais cui-dadosa.

Como realça PAULO CÂMARA, o critério da racionalidade empresarial era já utilizado no nosso Direito antes da introdução do (novo) art. 72.º/2, com um pequeno desvio linguístico, na ti-pificação da administração danosa pelo art. 235.º CP, cujo n.º 1 dispõe:

Governance: Leitung und Überwachung börsennotierter Unternehmen in der Rechts- und Wirtschaftspraxis, 2.ª ed., Köln, Stutgard: Schmidt, Schäffer-Poeschel, 2009, p. 427-428, 431 e, entre nós, CARNEIRO DA FRADA, A business judgment rule... p. 70.

91- Neste sentido, também CARNEIRO DA FRADA, A business judgment rule... p. 94, afirmando que o legislador foi curto neste ponto, devendo interpretar-se extensivamente esta norma por forma a abranger a prossecução dos interesses de terceiros em detrimento do da sociedade.

92- Aplicável às deliberações do conselho de administração executivo, ex vi art. 433.º/1, e do conselho geral e de supervisão, ex vi art. 445.º/2.

93- Cfr. FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades..., n.os de margem 105-106.

94- Ibidem, nota 903, p. 267.

95- Regulamento n.º 1606/2002/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de julho de 2002, relativo à aplicação das normas internacionais de contabilidade (JO L 243 de 11.9.2002), entretanto alterado pelo Regulamento n.º 297/2008/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 2008 (JO L 97 de 9.4.2008).

96- FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades…, n.os de margem 2256-2259. Cfr. também o nosso Conflitos de interesses... p. 167 ss. e as indicações bibliográficas aí apresentadas.

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A DISCRICIONARIEDADE EMPRESARIAL, A BUSINESS JUDGMENT RULE E A CELEBRAÇÃO DE CONTRATOS DE SWAP : 79

«Quem, infringindo intencionalmente nor-mas de controlo ou regras económicas de uma gestão racional, provocar dano patrimonial importante em unidade económica do sector público ou cooperativo é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias».

De acordo com o comentário de COSTA AN-DRADE97, com a referência a “normas de con-trolo ou regras económicas de uma gestão ra-cional” pretendeu o legislador «significar o conjunto de deveres objectivos de cuidado per-tinentes às leges artis duma gestão responsável, em última instância apostada em minimizar os custos e maximizar os proventos». Esta refe-rência constituiria um paralelo face às usadas noutras sedes como as exigências de “uma ges-tão sã e independente” (art. 118.° RGICSF) ou “diligência de um gestor criterioso e ordenado” (face à anterior redação do art. 64.°). Todas são «expressões com uma natural tensão centrífuga, que só no contexto do caso concreto podem ga-nhar sen tido e alcance definitivos». Esta exposi-ção denota a dificuldade, enunciada pelo autor logo em 1999, de antecipar com rigor e de forma abstrata o conteúdo desta fórmula. De facto, para além desta referência cruzada para o tratamento dado ao problema noutros ramos do Direito, o autor limita-se a remeter para diversos exemplos de positivação dos “deveres de cuidado”.

No quadrante jus-societário, tem sido afirmado que a racionalidade empresarial corresponde à racionalidade económica, especificada quanto ao “fim” da sociedade (a consecução de lucros), ou seja, a consecução de lucros com o mínimo de dispêndio de meios (princípio da economia de meios) ou a consecução, com dados meios, do máximo grau de realização do fim (princípio do máximo resultado)98. O dever de tomar decisões não irracionais corresponderia então ao “dever jurídico mínimo do administrador”, sucedâneo do dever de tomar decisões razoáveis99.

Estas coordenadas, sendo úteis, não são deter-minantes para a densificação do conceito, que depende da identificação do seu papel no sistema de responsabilidade civil dos administradores e fiscalizadores.

Quanto a este aspeto, não nos parece de acolher a elevação deste elemento da previsão norma tiva a bitola de apreciação do mérito das decisões empresariais, no sentido pretendido, v.g., por RICARDO COSTA100 ou COUTINHO DE ABREU / ELISABETE GOMES RAMOS101, muito influenciados por alguma doutrina norte--americana. De acordo com estes autores, o mé-rito das decisões dos administradores não seria julgado com base em critérios de “razoabili-dade”, mas segundo “um critério de avaliação excecionalmente limitado”: o administrador se-

97- MANUEL DA COSTA ANDRADE, in JORGE FIGUEIREDO DIAS (ed.), Comentário Conimbricense ao Código Penal, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, art. 235.º; 910-15

98- JORGE COUTINHO DE ABREU e ELISABETE GOMES RAMOS, Código das Sociedades Comerciais em comentário, 1, Coimbra: Almedina, 2010, art. 72.º, p. 847, JORGE COUTINHO DE ABREU, Responsabilidade civil dos administradores de sociedades, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2010, p. 37-38. Esta ideia tinha sido já defendida pelo autor noutro estudo, a pro-pósito dos deveres de cuidado: JORGE M. COUTINHO DE ABREU, Definição de empresa pública, Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 24, Coimbra: Coimbra Editora, 1990, p. 153 ss.

99- RICARDO COSTA, “Responsabilidade dos administradores e business judgment rule”, in Reformas do Código das Sociedades, Coimbra: Almedina, 2007, p. 75.

100- Ibidem.

101- JORGE COUTINHO DE ABREU e ELISABETE GOMES RAMOS, CSC em comentário..., art. 72.º, p. 845 (= JORGE COUTINHO DE ABREU, Responsabilidade civil2…, p. 37-38), aplicando os ensinamentos de MELVIN ARON EISEN-BERG, Obblighi e responsabilità degli amministratori e dei funzionari delle società nel diritto americano, Giurisprudenza Commerciale, 19:1, 1992, face ao Direito norte-americano.

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ria civilmente responsável apenas quando a sua decisão fosse considerada “irracional”, nos ter-mos da formulação dominante.

Como afirmámos antes, não podemos aceitar a construção redutora do n.º 2 do art. 72.º como traduzindo um padrão de revisão judicial, nos termos do qual se esvaziariam de conteúdo útil as obrigações de administração e de vigilância, substituindo os seus padrões de conduta pelos (mais leves) decorrentes desta norma. A letra da lei, a adequada ponderação sistemática desta norma, bem como a compreensão da sua ratio, tal como indiciada pela proposta da CMVM de alteração do Código das Sociedades Comerciais, implica uma outra perspetiva: o requisito de atua ção de acordo com critérios de racionalidade empresarial traduz uma concretização ou den-sificação das obrigações de administração e de vigilância, de tal forma que o seu teor normativo decorria já das proposições gerais.

Não podendo esvaziar de conteúdo a dimensão substantiva de tais proposições e não podendo valer como «expressão-síntese de todos os deve-res em que se desdobra a conduta a que funcio-nalmente estão adstritos os administradores»102 ou fiscalizadores, deve reconhecer-se que o con-

teúdo desta proposição se resume à concretiza-

ção ou densificação da dimensão procedimental

daquelas obrigações103.

Sublinhe-se novamente: esta dimensão procedi-mental das obrigações de administração e vigi-lância decorre da configuração destas como obri-gações de meios, cujo cumprimento só tem lugar quando o resultado é adequadamente tentado104. O Direito exige, assim, a observância de um pro-cedimento adequado. A escolha que, por mera sorte – e não por decorrência de um procedi-mento adequado –, foi acertada, não corresponde ao cumprimento da obrigação de administração ou da obrigação de vigilância. Traduz um com-portamento negligente com as consequências que daí advêm105.

Na medida em que o devedor prove, em juízo, que atuou em termos informados, livre de inte-resses pessoais e segundo critérios de raciona-lidade empresarial, em princípio demonstra o cumprimento da dimensão procedimental da sua obrigação, sem prejuízo de se poder ver forçado ainda a demonstrar que o resultado produzido se enquadra dentro das alternativas normativa-mente admissíveis106.

Dito isto, estamos em condições de densificar a proposição normativa “atuação segundo critérios de racionalidade empresarial”. Contraria mente

102- CARNEIRO DA FRADA, A business judgment rule... p. 95.

103- No mesmo sentido, CARNEIRO DA FRADA, ibidem, p. 94-95, NUNO TRIGO REIS, Os deveres de lealdade... p. 326 (nota 142).

104- Cfr. FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades..., § 62.2, p. 713 ss.

105- No mesmo sentido, afirma CARNEIRO DA FRADA, A business judgment rule... p. 95-96, que a exclusão de responsa-bilidade depende da demonstração positiva da conformidade da conduta do devedor com os critérios do art. 72.º/2: «[os admi-nistradores] têm o dever de adequar o seu comportamento a essas regras, só essa adequação os salva da responsabilidade». O autor alerta, porém, para o facto de esta interpretação constituir, na prática, um estímulo aos administradores para ade-quarem as suas práticas de gestão empresarial aos standards normalmente reconhecidos e adquiridos como práticas de boa gestão, prejudicando a busca de mais audazes formas de a levar a cabo. Cfr. ibidem, p. 96. Parece-nos que este é um risco que deve ser tido em consideração, sem prejuízo de, tecnicamente, a norma impor apenas que os administradores e fiscalizadores fundamentem adequadamente as suas opções no iter decisional, não se limitando a seguir acriticamente o seu instinto ou intuição na gestão de bens alheios.

106- Caso a sociedade alegue não ter sido alcançado um resultado subalterno que o deveria ter sido. Sobre a distribuição do ónus da prova, cfr. FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades..., nota 3238, p. 899-902.

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A DISCRICIONARIEDADE EMPRESARIAL, A BUSINESS JUDGMENT RULE E A CELEBRAÇÃO DE CONTRATOS DE SWAP : 81

ao pretendido por alguma doutrina, esta não cor-responde a uma bitola de apreciação do mérito das decisões empresariais, a partir da qual se pode afirmar que uma decisão é boa ou má, efi-caz ou ineficaz, eficiente ou ineficiente ou, numa perspetiva deôntica, se cabe nas alternativas de ação normativamente admissíveis. Corresponde sim a um critério de avaliação do iter decisional.

Segundo CASTANHEIRA NEVES, a raciona-lidade traduz a relação entre uma certa posição ou conclusão e certos pressupostos, sejam mate-riais, sejam formais, que discursivamente a sus-tentam: «[u]ma posição ou conclusão diz-se as-sim racional quando é sustentável pela referência a certos pressupostos, através de uma mediação estruturada de pensamento». Por isso, continua, «a antítese da “razão” têmo-la na “intuição” e na “emoção”, enquanto atitudes vivenciais sem mediação pelo pensamento e o seu discurso e, portanto, também sem pressupostos de funda-mentação e justificação». E conclui:

«a racionalidade (...) será a característica de um pensamento que tem ou se propõe ter validade objetiva (...) e que esta validade se afere pela “capacidade de fundamentação” e pela “criti-cibilidade” da medição racional-discursiva das afirmações desse pensamento (das posições ou conclusões por ele manifestadas)»107.

Dito isto, esta proposição normativa densifica as obrigações de administração e de vigilância, no sentido de impor uma atuação racional – não ba-seada em critérios de mera intuição – e não uma decisão num sentido ou noutro. A delimitação

das opções de gestão ou de vigilância normativa-mente admissíveis decorre da concretização das respetivas obrigações face à bitola de diligência normativa e não face um padrão de racionalidade empresarial.

Assim, no contexto da obrigação de vigilância, tanto na obtenção de informação, como na sua avaliação e na reação aos problemas eventual-mente detetados, o devedor deverá pautar a sua atuação por critérios de racionalidade empre-sarial109.

Em suma, trata-se de saber se, no iter decisio-nal, foram adequadamente ponderadas todas as alternativas, os riscos inerentes, as vantagens e desvantagens ou se, pelo contrário, a decisão se baseou apenas no instinto ou na intuição do deve dor ou se, pior ainda, traduziu a opção que lhe exigia menor esforço.

Não se pretende com isto negar a importância do instinto e da intuição dos administradores e fiscalizadores para o sucesso da empresa. Sim-plesmente, por estar em causa a gestão de bens alheios (entendida agora em sentido amplo), deve o devedor sujeitar as conclusões decorren-tes do seu instinto e intuição a um processo ra-cional de confirmação109.

V. Para além dos elementos da previsão norma-tiva do art. 72.º/2 já analisados, é frequente a enunciação de um outro pela doutrina: a “atuação com base numa decisão empresarial discricioná-ria”. Por outras palavras, a responsabilidade dos administradores não seria excluída se tivesse por

107- CASTANHEIRA NEVES, Metodologia... p. 34-35.

108- Contrariamente ao sustentado por CARNEIRO DA FRADA, A business judgment rule... p. 93, para quem os elementos do n.º 2 do art. 72.º são de tomar como distintos entre si, deve reconhecer-se que pelo menos o dever de obtenção de informação (reforçado por esta norma) se cruza necessariamente com o dever de atuar segundo critérios de racionalidade empresarial.

109- Neste sentido, cfr., v.g., HOLGER FLEISCHER, Die “business judgment rule”: vom Richterrecht zur Kodifizierung, Zeitschrift für Wirtschaftsrecht, 25:15, 2004, p. 691, MATTHIAS GRAUMANN, “Der Entscheidungsbegriff in § 93 Abs. 1 Satz 2 AktG – Rekonstruktion des traditionellen Verständnisses und Vorschlag für eine moderne Konzeption”, in Zeits-chrift fur Unternehmens- und Gesellschaftsrecht, 2011, p. 299, GERALD SPINDLER, Prognosen im Unternehmensrecht, Die Aktiengesellschaft, 51:16, 2006, p. 681-682.

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4.2. Conclusão sobre o sentido do art. 72.º/2 CSC

I. A obrigação de administração é a priori inde-terminada, mas determinável no caso concreto, não havendo fundamento normativo para se ex-cluir, de forma absoluta e apriorística, a sindi-cância do mérito das condutas dirigidas ao seu cumprimento. Pelo contrário, deve afirmar-se de forma clara e inequívoca ser sindicável o mérito

das decisões dos administradores114.

Tal sindicância não é contudo ilimitada. A sua fronteira é definida pelo reconhecimento – após a concretização da obrigação ex ante indetermi-nada – de alternativas de ação normativamente admissíveis, face às quais caberá ao devedor esco lher a que lhe parecer mais adequada na ten-tativa de causação do resultado definidor (i.e., na prossecução do interesse social).

Tal escolha não será sindicável senão quanto aos termos do seu processo e ao cumprimento dos limites das alternativas normativamente admissí-veis. A bondade desta construção é reconhecida pela necessidade, sentida por vários autores115, de restringir o âmbito de aplicação da business

judgment rule às decisões discricionárias, dei-xando de fora as decisões vinculadas. A cons-

110- Assim, e.g., CARNEIRO DA FRADA, A business judgment rule... p. 89, que também fala em redução teleológica, e RICARDO COSTA, Responsabilidade dos administradores e BJR... p. 65, 67.

111- JORGE COUTINHO DE ABREU e ELISABETE GOMES RAMOS, CSC em comentário..., art. 72.º, p. 847.

112- Conclui CARNEIRO DA FRADA, A business judgment rule... p. 82:«A business judgment rule não pode ilibar de responsabilidade o administrador quando foram violadas prescrições ou proibições específicas fixadas na lei ou nos estatutos. Não é esse o seu âmbito».

113- FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades…, n.os de margem 2274-2276.

114- Recorde-se que a doutrina dominante é contrária a este entendimento. Cfr., v.g., MENEZES CORDEIRO, Código das Sociedades Comerciais anotado, 2.ª ed., 2.ª reimp., Coimbra: Almedina, 2012, art. 72.º, p. 281.

115- Cfr., v.g., CARNEIRO DA FRADA, A business judgment rule... p. 89, RICARDO COSTA, Responsabilidade dos administra-dores e BJR... p. 67-69, JORGE COUTINHO DE ABREU e ELISABETE GOMES RAMOS, CSC em comentário..., art. 72.º, p. 847-848, CAETANO NUNES, Dever de gestão... p. 522.

base a violação de deveres específicos, perante os quais as decisões são vinculadas e não discri-cionárias.

Dado que a letra da lei não distingue entre a con-duta discricionária e a conduta vinculada, alguns autores têm defendido uma interpretação restri-tiva110 ou restritivo-teleológica111 do art. 72.º/2, assegurando que este preceito se aplica so mente «quando haja uma margem considerável de dis-cricionariedade e autonomia na atuação do ad-ministrador e consequente realização dos inte-resses da sociedade». Ficariam assim de fora as atuações vinculadas, sujeitas a normas de con-duta legais ou contratuais que, sendo específicas, delimitam detalhadamente a prestação devida112.

Face à exposição anterior e à conclusão reafir-mada no ponto seguinte, entendemos não ser necessária uma qualquer interpretação restritiva. Na medida em que o art. 72.º/2 nada acres centa face ao quadro normativo anterior à reforma de 2006 (sem prejuízo dos benefícios da densifica-ção operada) e que hoje se mantém, o importante é assegurar uma correta interpretação e aplicação deste, através dos quais se alcançarão os resul-tados pretendidos pela doutrina através daquele expediente hermenêutico113.

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A DISCRICIONARIEDADE EMPRESARIAL, A BUSINESS JUDGMENT RULE E A CELEBRAÇÃO DE CONTRATOS DE SWAP : 83

trução apresentada permite, salvo melhor opi-nião, fechar o círculo, articulando as diferentes normas aplicáveis num sistema coerente.

Entre nós, a chamada business judgment rule

corresponde, tal como sugerido pela CMVM na sua proposta de alteração do Código das Socie-dades Comerciais, a uma concretização ou den-sificação da obrigação de prestar, na sua dimen-são procedimental, que não exclui a necessidade de determinação dos resultados subalternos (que se podem dizer de “mérito”) que se imponham (pela aplicação da bitola de diligência norma-tiva) e da atuação em conformidade com os mes-mos116.

O devedor deve portanto atender aos critérios procedimentais de decisão de um gestor crite-rioso e ordenado, nomeadamente: (i) em termos estruturais, deve revelar a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da ativi-dade da sociedade adequados às suas funções117; e (ii) em termos conjunturais, relativamente à concreta decisão em causa, deve demonstrar ter atuado em termos informados, livre de quaisquer interesses pessoais e segundo critérios de racio-nalidade empresarial118.

Em suma, porque os deveres de cariz procedi-

mental não esgotam o conteúdo das obrigações de vigilância e de administração, não basta o seu

cumprimento para afastar o juízo de ilicitude e a consequente responsabilidade do devedor.

Como em geral reconhece a doutrina, a ado-ção de um procedimento correto não justifica o incumprimento de um comando normativo determinado. Perante a violação de um tal co-mando – seja este determinado ex ante na lei, nos esta tutos ou no contrato de administração (caso exista) ou, ex post, na sequência de um processo de concretização segundo o padrão de diligência normativa – não pode o devedor pretender afas-tar a sua responsabilidade simplesmente porque atuou com base em informação adequada, livre de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial119.

II. Dito isto, podemos concluir que o art. 72.º/2 positiva soluções que já antes decorreriam de uma adequada interpretação das diferentes nor-mas aplicáveis. Não corresponde portanto a um privilégio de limitação de responsabilidade civil, a uma suavização ou intensificação desta face ao regime precedente, nem a um qualquer teste ou padrão de revisão judicial. Corresponde apenas, repita-se, a uma concretização parcial das obri-gações de administração e de vigilância, na sua dimensão procedimental.

Estas, sendo obrigações de meios, vinculam o devedor a tentar adequadamente causar o resul-

116- Como sustentámos antes, se os deveres legais, devidamente concretizados, impuserem um resultado subalterno – ou, por outras palavras, uma conduta de tal forma determinada que não oferece margem de ponderação ou discricionariedade ao de-vedor – será ilícita a conduta desconforme, sem prejuízo da possibilidade de existência de uma qualquer causa de justificação que, num momento logicamente posterior, afaste o juízo de antijuridicidade. Se a obrigação de prestar, devidamente deter-minada, admitir várias alternativas de ação, será ilícita a conduta que não caiba nas alternativas normativamente admissíveis.

117- Apesar do enquadramento sistemático destas concretizações na alínea a) do n.º 1 do art. 64.º (obrigação de administra-ção), devem as mesmas estender-se à obrigação de vigilância. Naturalmente, também os fiscalizadores devem demonstrar disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções. Tal resulta de uma elementar concretização da obrigação de vigilância.

118- Como vimos, desta afirmação resulta o afastamento da construção deste último pressuposto – decisão segundo critérios de racionalidade empresarial – como fundamento de uma sindicabilidade de último recurso do mérito das decisões empresa-riais, nos termos sustentados, v.g., por RICARDO COSTA, Responsabilidade dos administradores e BJR... p. 69-72, JORGE COUTINHO DE ABREU e ELISABETE GOMES RAMOS, CSC em comentário..., art. 72.º, p. 847-848, PEDRO CAE-TANO NUNES, Dever de gestão... p. 517-518.

119- FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades…, n.os de margem 2277-2283.

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tado definidor. Delas resulta, portanto, a exigên-cia de cumprimento de um procedimento dili-gente. A escolha que, por mera sorte – e não por decorrência de um procedimento adequado –, fosse acertada, não corresponderia ao cumpri-mento da obrigação de administração ou da obri-gação de vigilância.

No quadro dos pressupostos de responsabili-dade civil dos administradores e fiscalizadores, integra-se, portanto, na delimitação do dever

ser, do espaço de licitude. Para quem, como nós, acompanha a construção de MENEZES CORDEIRO de conjugação da ilicitude, da culpa e do nexo de causalidade no conceito de culpa em sentido amplo (faute), estará então em causa a delimita-ção da faute120.

5. APLICAÇÃO DO QUADRO GERAL À CONTRA-TAÇÃO DE SWAPS: CRITÉRIOS PROCEDIMENTAIS E MATERIAIS

5.1. A preparação da decisão: o dever de ob-tenção de informação sobre os riscos associa-dos aos swaps e o princípio jus-societário da confiança (reliance) na informação recebida

I. Feito este percurso, estamos em condições de analisar a questão a que nos propusemos: a deli-mitação do espaço de dever ser na contratação de swaps (e outros derivados).

Qual o sentido e alcance da discricionariedade do órgão de administração na contratação deste tipo de instrumentos?

Sendo a discricionariedade o reconhecimento de alternativas de ação normativamente admitidas, deve concretizar-se, no caso concreto, a obriga-ção de administração segundo o padrão de dili-gência normativa, nos termos desenvolvidos.

Nessa delimitação, devem considerar-se não só os critérios procedimentais enunciados (que resultam, desde logo e como vimos, dos arts. 64.º/1, a) e 72.º/2), mas também os resultados subalternos identificados no caso concreto (cri-térios de mérito). Comecemos pelos primeiros.

II. A primeira ideia que importa ter presente é de que os administradores devem estar devidamente informados.

Informados, em primeiro lugar, sobre a atividade da sociedade e, nesse contexto, sobre a eventual necessidade ou conveniência da celebração de contratos swap. Está em causa o dever estrutural

de informação, apresentado como “dever de cui-dado” pelo art. 64.º/1, a)121.

Na medida em que o swap contratado se desti-na à cobertura de determinados riscos inerentes à atividade da sociedade, devem os administra-dores conhecer adequadamente esses riscos, só esse conhecimento os habilitando à ponderação dos meios mais adequados à sua gestão.

III. Devem estar informados, em segundo lugar, sobre a concreta decisão em causa, i.e., sobre os termos do contrato de swap. Estamos perante o dever de informação conjuntural positivado no art. 72.º/2, nos termos do qual se exige que o administrador conheça o instrumento em causa, o risco associado ao mesmo e a sua adequação face aos propósitos da sociedade.

Neste contexto, nos casos que têm sido decididos pela nossa jurisprudência, tem sido frequente a afirmação dos administradores de que confia-ram nas informações e nos conselhos prestados pelos bancos com quem contrataram os swaps. São particularmente elucidativas as afirmações

120- Ibidem, n.os de margem 2284-2286.

121- Sobre o sentido dos deveres de cuidado previstos neste artigo, cfr. FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscali-zação de Sociedades..., § 62.5, p. 763 ss.

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A DISCRICIONARIEDADE EMPRESARIAL, A BUSINESS JUDGMENT RULE E A CELEBRAÇÃO DE CONTRATOS DE SWAP : 85

do gerente de uma sociedade por quotas, citadas no acórdão RLx 13-mai.-2013 (M.ª ROSÁRIO MORGADO)122, de que o fecho das operações «[e]ra sempre numa base de confiança», de que as várias aplicações de risco realizadas no passa-do «na/o eram de risco e se gera risco, foi mais “um chaço” que a casa (o banco) me meteu!» e, the last but not the least: «eu assinava tudo de cruz! Aceitava o conselho que o funcionário do banco me dava».

Naturalmente, neste, como noutros casos, é evi-dente o incumprimento da obrigação de diligente administração: a ser verdade quanto foi afirmado neste caso, não foi cumprido o mais básico dever de obtenção de informação sobre a operação em causa.

IV. Pode, porém, questionar-se a legitimidade da confiança depositada pelo gerente ou adminis-trador em informações, conselhos ou opiniões erradas que lhe sejam transmitidas.

Está aqui em causa o princípio jus-societário da confiança (reliance), desenvolvido no sistema norte-americano123 e transposto para os nossos quadros dogmáticos124, de acordo com o qual a confiança do membro de um órgão social na in-formação recebida é legítima quando verificados os seguintes elementos: (i) a razoável convicção do sujeito de que aquele que presta informações, conselhos ou opiniões era fiável e competente;

(ii) a prestação de informação sobre todos os factos relevantes para a emissão do conselho ou opinião, quando estes tenham sido pedidos por quem não tinha acesso direto a essa informação; (iii) a obtenção, pelo sujeito, de informações, conselhos ou opiniões errados; (iv) a não detec-ção do erro pelo sujeito na sua análise crítica das informações, conselhos ou opiniões recebidos; e (v) a atuação do sujeito de acordo com tais infor-mações, conselhos ou opiniões125.

A aferição da “não detecção do erro” pelo su-jeito, na sua análise crítica das informações, con-selhos ou opiniões recebidos, deve ser entendida não em sentido meramente psicológico – tomou

conhecimento ou não do erro –, mas em senti-do ético-normativo – devia ter tomado conheci-

mento ou não do erro. Somente aquele que atua diligentemente pode prevalecer-se da ignorân-cia126.

V. Importa tomar posição sobre se a legitimi dade ou ilegitimidade da confiança depositada nas informações, conselhos ou opiniões recebidos deve ser reconduzida à apreciação da ilicitude da conduta ou da culpa do sujeito.

A propósito do dever dos administradores de apresentação da sociedade à insolvência, o BGH colocou a questão ao nível da culpa, conside-rando que:

122- Processo n.º 309.11.8TVLSB.L1-7, disponível em www.dgsi.pt.

123- Vide, em particular, a sistematização de HAWES e SHERRARD, datada de 1976. Cfr. DOUGLAS W. HAWES e THO-MAS J. SHERRARD, Reliance on advice of counsel as a defense in corporate and securities cases, Virginia Law Review, 62:1, 1976.

124- Cfr. FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades..., § 62.7, p. 779 ss. No direito alemão, cfr. HOLGER FLEISCHER, Vertrauen von Gescha/ftsleitern und Aufsichtsratsmitgliedem auf Informationen Dritter: Konturen eines kapitalgesellschaftsrechtlichen Vertrauensgrundsatzes, Zeitschrift fu/r Wirtschaftsrecht, 30:30, 2009.

125- Cfr. FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades..., n.os de margem 1990 ss.

126- Estabelece-se aqui um paralelo com os desenvolvimentos verificados a propósito da imputação do conhecimento (Wissenszurechnung): a propósito da imputação aos órgãos sociais e, através destes, à pessoa coletiva, do conhecimento ou ignorância de factos que podem influir nos efeitos de um negócio celebrado entre a pessoa coletiva e um terceiro, deve entender-se que o risco da organização interna da pessoa coletiva corre por conta da mesma (princípio da responsabilidade pelo correto tratamento de dados). Cfr., v.g., CAMPOBASSO, L’imputazione di conoscenza..., p. 363-372, 419.

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«um representante orgânico de uma sociedade viola o seu dever de apresentação da socie-dade à insolvência sem culpa quando, não tendo competência para clarificar se a socie-dade está em situação de insolvência, obtém aconselhamento de um profissional indepen-dente e tecnicamente qualificado, a quem informa adequadamente sobre todas as cir-cunstâncias significativas para a apreciação, e depois de um exame de plausibilidade, segue o conselho recebido e não apresenta a socie-dade à insolvência»127.

Contra esta posição, sustenta FLEISCHER não poder ser ignorado o paralelo do § 93(1)2 AktG (relativo à business judgment rule), devendo a questão ser colocada no contexto do dever de di-ligência128 (ou seja, da licitude). De acordo com esta disposição129:

«Não existe violação de dever quando o mem-bro do Vorstand, numa decisão empresarial, podia razoavelmente supor que atuava com base em informação adequada para o bem da sociedade».

Parece-nos que a resposta a esta questão não pode ser dada nestes termos. Como bem refere MENEZES CORDEIRO130, a distinção entre ili-

citude e culpa só releva na medida em que os critérios para aferição de uma e outra não sejam os mesmos.

Ora, quando a “descoberta” da conduta devida integre a própria previsão normativa, a preencher de acordo com a bitola de diligência aplicável, a questão será de ilicitude. Neste caso, não há lugar a um juízo de censurabilidade do sujeito num momento logicamente posterior, na medida em que os critérios de um tal juízo foram já con-sumidos na aferição da licitude da sua conduta.

Quando, pelo contrário, a “descoberta” da con-duta não integre a previsão normativa, então a questão será de culpa. Ou seja, demonstrado o preenchimento da previsão normativa, segue-se o juízo de censurabilidade do sujeito.

Assim, por exemplo, quando estejam em causa condutas enquadráveis nas obrigações gerais dos membros dos órgãos sociais – i.e., a obriga-ção de diligente administração ou de diligente vigilância, consoante o caso –, a confiança nas informações, conselhos e opiniões recebidos deve ser enquadrada na descoberta da conduta devida. Trata-se, portanto, de uma questão de licitude.

127- BGH 14.-mai.- 2007, NZG 2007, 545. Esta posição foi confirmada em BGH 16-jul.-2007, DStR 2007, 1641. No original:«Ein organschaftlicher Vertreter einer Gesellschaft verletzt seine Insolvenzantragspflicht nicht schuldhaft, wenn er bei fehlender eigener Sachkunde zur Klärung des Bestehens der Insolvenzreife der Gesellschaft den Rat eines unabhängigen, fachlich qualifizierten Berufsträgers einholt, diesen über sämtliche für die Beurteilung erheblichen Umstände ordnungs-gemäß informiert und nach eigener Plausibilitätsprüfung der ihm daraufhin erteilten Antwort dem Rat folgt und von der Stellung des Insolvenzantrags absieht».

Esta solução parece aproximar-se daqueloutra do “erro sobre a proibição”, enquanto causa de exclusão da culpabilidade, em Direito penal. Ou seja, se o sujeito não podia vencer ou evitar o seu erro, considera-se ter atuado de modo típico e antijurídico, mas sem culpa. Cfr., por todos, ROXIN, Strafrecht, 1..., § 21, n.º 4.

Segundo FLEISCHER, desta decisão pode deduzir-se, com cautela, um princípio geral de legítima confiança dos membros dos órgãos sociais na informação prestada por terceiros. HOLGER FLEISCHER, Vorstandshaftung und Vertrauen auf anwal-tlichen Rat, Neue Zeitschrift für Gesellschaftsrecht, 13:4, 2010, p. 122, assente nalguns pontos que o autor desenvolve a propósito do aconselhamento jurídico.

128- Cfr. FLEISCHER, Vertrauen... p. 1405.

129- Analisada em FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades..., § 64.3, p. 855 ss.

130- Cfr. MENEZES CORDEIRO, Da responsabilidade civil... p. 459.

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O mesmo vale para o caso abordado pelo refe-rido acórdão do BGH131. A determinação da existência de uma situação de insolvência, para efeitos do cumprimento do dever de apresenta-ção da sociedade à insolvência (arts. 18.º e 19.º CIRE)132, pode não estar ao alcance do adminis-trador, perante a complexidade das circunstân-cias do caso concreto133. Quando assim seja, na

descoberta da conduta devida – apresentação ou não apresentação da sociedade à insolvência –, o administrador pode e deve pedir aconselhamento a um profissional independente e tecnicamente qualificado (maxime, um revisor oficial de con-tas). Verificados os elementos fundamentado-res descritos anteriormente134, o administrador pode legitimamente confiar na opinião do revi-

131- BGH 14.-mai.- 2007, NZG 2007, 545.

132- Sobre este dever, cfr., entre nós, v.g., MANUEL CARNEIRO DA FRADA, A responsabilidade dos administradores na insolvência, Revista da Ordem dos Advogados, 66:2, 2006, p. 699-701, CATARINA SERRA, A falência no quadro da tutela jurisdicional dos direitos de crédito, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 330 ss., MARIA DE FÁTIMA RIBEIRO, A responsabilidade de gerentes e administradores pela actuação na proximidade da insolvência de sociedade comercial, O Direito, 142:1, 2010, p. 123 ss., PEDRO PIDWELL, O processo de insolvência e a recuperação da sociedade comercial de responsabilidade limitada, Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 98 ss. Em geral, sobre os critérios para a definição da situação de insolvência, cfr. LUIS MENEZES LEITÃO, Direito da insolvência, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2012, p. 79 ss.

Note-se que a questão aqui analisada releva ainda, com as necessárias adaptações, para a aferição de responsabilidade civil pela dedução de pedido infundado de declaração de insolvência. Recorde-se que, não obstante o seu teor literal – conside-rado inadequado (cfr. PAULA COSTA E SILVA, A litigância de má fé, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 506-511) –, a doutrina tende a aplicar o art. 22.º CIRE não só aos casos de dolo, mas também, por analogia, aos de negligência grosseira. Cfr. LUIS MENEZES LEITÃO, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – anotado, 6.ª ed., Coimbra: Alme-dina, 2012, p. 71-72, PEDRO DE ALBUQUERQUE, Responsabilidade processual por litigância de má fé, abuso de direito e responsabilidade civil em virtude de actos praticados no processo, Coimbra: Almedina, 2006, p. 157-158, LUIS CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da insolvência e da recuperção de empresas anotado, 1, 2.ª ed., Coimbra: Quid Juris, 2009, p. 144.

Esta perspetiva é criticada por CARNEIRO DA FRADA, de acordo com o qual não existe lacuna a integrar por analogia. Para este autor, a preocupação restritiva do art. 22.º CIRE não é destituída de “algum” sentido, não devendo o mesmo ser reescrito para reconhecer uma ampla responsabilidade por ofensa de interesses patrimoniais puros em casos de mera negli-gência, quando nos movamos ao nível da responsabilidade delitual. Diferentemente, nos casos de responsabilidade obriga-cional, assentes na relação especial de crédito – (i) do credor que apresenta um pedido infundado de insolvência da sociedade devedora ou (ii) da sociedade devedora que causa prejuízos aos seus credores pela apresentação indevida à insolvência – justifica-se uma outra solução. Nestes casos, «podem vigorar perfeitamente parâmetros mais rigorosos de apreciação da conduta do agente para efeito de uma obrigação de indemnizar». Deve aplicar-se o art. 762.º/2 CC, dele resultando deveres de proteção que fundamentam uma redução teleológica do art. 22.º CIRE ao plano delitual. Estes deveres de proteção podem ainda fundamentar responsabilidade pessoal dos administradores por mera culpa perante os sócios e perante os credores, em caso de apresentação infundada à insolvência. Neste caso, porém, é necessário demonstrar que «entre os administradores e os lesados se possa afirmar e justificar, tendo em conta as particularidades do caso concreto, uma relação especial que vinculava os primeiros a um cuidado e diligência para com os interesses patrimoniais dos segundos que vieram a ser afectados (o que é mais fácil ocorrer com respeito a sócios do que a credores)». Cfr. CARNEIRO DA FRADA, A responsabilidade dos admi-nistradores na insolvência..., p. 657-669.

MENEZES CORDEIRO, Manual de direito comercial, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2012, p. 520-525, por seu turno, afirma que a norma resultante do art. 22.º CIRE deve ser conjugada com a do art. 483.º/1 CC, da qual resulta a responsabilidade pelo pedido infundado, por dolo ou mera culpa.

133- Como bem realça CARNEIRO DA FRADA, A responsabilidade dos administradores na insolvência... p. 664-665, sendo a conduta dos administradores avaliada para aferição do cumprimento de deveres de sinal contrário – dever de apresen-tação à insolvência e dever de não apresentação de pedidos infundados – encontram-se os mesmos no “fio de uma navalha”, dadas as incertezas com que se defrontam na prática.

134- A saber: (i) a razoável convicção do sujeito de que aquele que presta informações, conselhos ou opiniões era fiável e competente; (ii) a prestação de informação sobre todos os factos relevantes para a emissão do conselho ou opinião, quando

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sor no sentido da inexistência de uma situação de insol vência. Neste caso, não há violação de dever porque o administrador não conhecia nem

devia conhecer a existência de uma tal situação (cfr. art. 18.º/1 CIRE), na medida em que atuou dili gentemente no sentido do esclarecimento da questão. Não havendo ilicitude, não há lugar a juízo sobre a censurabilidade do sujeito.

Quando, pelo contrário, esteja em causa a afe-rição do cumprimento de deveres específicos estabelecidos na lei, nos estatutos ou nos contra-tos celebrados entre a sociedade e os membros dos seus órgãos sociais, cujo conteúdo o sujeito conheça ou deva conhecer, a questão será de culpa135.

VI. No típico caso em apreço, está em causa a confiança depositada pelo gerente ou administra-dor de uma sociedade cliente nas informações, conselhos e opiniões prestadas por um banco.

Na contraposição das circunstâncias deste caso típico aos critérios da legitimidade da confiança, deve atender-se, em primeiro lugar, à circuns-tância de este, frequentemente, atuar não apenas enquanto intermediário financeiro, mas tam-bém como contraparte no contrato de swap136. Ou seja, não obstante estar sujeito, enquanto intermediário financeiro, a específicos deveres de «protecção dos legítimos interesses dos seus clientes e da eficiência do mercado» (art. 304.º/1 CVM), não pode o cliente ignorar os conflitos de interesses com que este se depara137.

estes tenham sido pedidos a quem não tinha acesso direto a essa informação; (iii) a obtenção, pelo sujeito, de informações, conselhos ou opiniões errados; (iv) a não detecção do erro pelo sujeito na sua análise crítica das informações, conselhos ou opiniões recebidos; e (v) a atuação do sujeito de acordo com tais informações, conselhos ou opiniões.

135- Cfr. FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades..., n.os de margem 2026-2031.

136- Foi o que sucedeu no caso descrito no acórdão RLx 2013-mai.-13 (M.ª Rosário Morgado) já referido. Isto sem prejuízo de, nos termos das alegações de recurso do banco citadas no acórdão, este se apresentar como mera contraparte formal, e não como contraparte material. Segundo essas alegações:

«O Banco CC celebrou contratos simétricos, ou seja, agiu materialmente como mero intermediário financeiro e, como tal, sem beneficiar com a subida ou descida das taxas de juro.(33. Se os contratos entre a Autora e o Banco CC forem resolvi-dos, o Banco CC ainda assim mantém-se obrigado a cumprir os contratos simétricos que celebrou para cobertura do seu próprio risco, pelo que o custo de oportunidade da Autora passa a ser um custo efectivo do Banco CC.(34. Com a resolu-ção, o Banco CC seria forçado a assumir um prejuízo que é consequência de um risco assumido pela Autora, precisamente aquilo que o que o Banco CC pretendia evitar ao agir como mero intermediário».

O Tribunal, porém, assumindo que o risco para o banco Réu, derivado da celebração dos contratos de “swap”, foi coberto por operação paralela, de sinal contrário, com outra entidade financeira, concluiu que

«o Réu interveio nos contratos como verdadeiro contraparte da Autora. É que, como transparece [dos pontos referidos], a causa das operações simétricas de sentido contrário aí referidas residiu, precisamente, na contratação dos swaps e no risco a eles associado (efectuando algo assimilável a um resseguro – o que, no entender do Réu, justificava, aliás, o preço a pagar pela resolução (…), não se podendo, pois, com propriedade, considerar que agiu como mero intermediário financeiro».

Sobre esta questão, explica MARIA CLARA CALHEIROS que o banco pode atuar como simples mediador entre as partes, sem ser ele próprio parte no contrato, recebendo tipicamente, como remuneração, uma comissão de montagem da operação e uma comissão anual. Porém, este é cada vez menos o caso, tendo os bancos passado a assumir novos papéis. São cada vez mais os casos em que os bancos atuam em seu nome e por conta própria, figurando como contraparte. Nesses casos, frequentemente, o banco conclui um segundo contrato de sentido inverso para cobrir o risco que para si decorre do primeiro. No primeiro caso assume-se como parte tanto no sentido jurídico, como económico; no segundo opera como intermediário numa operação assente em dois contratos de swap juridicamente independentes, mas economicamente interligados. Cfr. MA-RIA CLARA CALHEIROS, O contrato de swap, Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 133-135.

Também PEREIRA DE ALMEIDA explica, que historicamente os bancos intervinham abrindo posições (swap brokers), pro-curando uma contraparte e recebendo uma comissão pelo fecho do negócio. Porém, na procura de maiores receitas, transfor-maram-se em swap dealers, intermediando os fluxos financeiros mediante um bid-ask-spread ou atuando como contraparte. Cfr. ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA, Sociedades comerciais …, p. 86.

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O mesmo é dizer que, em princípio, o cliente não poderá deixar de questionar a fiabilidade da-quele que presta as informações, conselhos ou opiniões. Perante os conflitos de interesse que o cliente deve conhecer, intensifica-se o dever do gerente ou administrador de analisar diligente-mente o produto que lhe é proposto, dificil mente se podendo sustentar a razoabilidade da sua

convicção na fiabilidade do prestador de infor-mações, conselhos ou opiniões. Fica assim com-prometido o primeiro pressuposto enunciado para efeitos da legítima invocação da confiança depositada nas informações, conselhos ou opi-niões recebidos.

Só assim não seria se por alguma razão excecio-nal se concluísse, perante as circunstâncias do caso, que não era exigível ao cliente aperceber--se da existência do conflito de interesses.

VII. Em segundo lugar, deve atender-se ao facto de, nos termos dos critérios enunciados, se exigir do sujeito uma análise crítica das informações, conselhos ou opiniões recebidos.

Não é legítima a confiança do sujeito se este adoptou uma conduta em conformidade com as informações recebidas sem verificar se a mesma considerava todos os factos e se era plausível, i.e., se apresentava contradições, se estava devi-damente fundamentada e se as suas conclusões eram equilibradas, de acordo com a sua experi-ência económico-empresarial138.

Neste sentido, andou bem a Relação de Lisboa, quando em RLx 13-mai.-2013 (M.ª ROSÁRIO MORGADO)139 sustentou que:

«O cumprimento dos deveres de comunicação e informação que recaem sobre o predispo-nente não dispensa o outro contratante de adotar um comportamento diligente, visando o seu total esclarecimento.(Por isso, o con-tratante não pode invocar o desconhecimento de cláusulas, vi sando eximir-se ao respectivo cumprimento, quando esse desconhecimento resultou do facto de não ter lido o contrato, antes de o aceitar e assinar, quando o podia ter feito».

Poderá suceder que o gerente ou administra-dor não tenha conhecimentos técnicos suficien-tes para uma tal análise crítica e não esteja em condições de os obter atempadamente. Quando assim seja, das duas uma: ou se conclui que o sujeito incumpriu o seu dever de obtenção da competência técnica adequada às suas funções [art. 64.º/1, a)] ou que o produto é desadequado ao tipo de sociedade em causa. Em qualquer dos casos, não deve admitir-se como lícita a con duta do administrador de contratação, em nome da sociedade, de um produto cujas informações não está em condições de analisar criticamente.

VIII. Em suma, as duas circunstâncias enuncia-das, circunscrevendo a legitimidade da confiança nas informações prestadas pelo banco, limitam

137- Cfr., v.g., a síntese apresentada por PEREIRA DE ALMEIDA, Sociedades comerciais..., p. 127-137. Para uma análise dos conflitos de interesses subjacentes à intermediação financeira e, em particular, o conflito inerente à atuação como con-traparte, cfr. SOFIA LEITE BORGES, “O conflito de interesses na intermediação financeira”, in PAULO CÂMARA (ed.), Conflito de interesses no direito societário e financeiro: um balanço a partir da crise financeira, Coimbra: Almedina, 2010, p. 315-425, em especial, p. 396-407.

138- Cfr. HOLGER FLEISCHER, “Rechtsrat und Organwalterhaftung im Gesellschafts- und Kapitalmarktrecht”, in Fests-chrift fu/r Uwe Hu/ffer zum 70. Geburtstag, München: Beck, 2010, p. 195.

139- Processo n.º 309.11.8TVLSB.L1-7, disponível em www.dgsi.pt. Já antes, em RLx 17-fev.-2011 (LUÍS CORREIA DE MENDONÇA), processo n.º 2408/10.4TVLSB-B.L1-8, disponível em www.dgsi.pt, sublinhara que, sendo os Interest Rate Swap contratos com um forte pendor aleatório, é pacífico que o seu uso deve ser cuidadosamente considerado pelos investi-dores, na medida em que permite grandes alavancagens cujos prejuízos podem exceder largamente o capital investido nestes instrumentos.

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a discricionariedade empresarial dos gerentes ou administradores na contratação dos produtos em causa.

5.2. A fundamentação da decisão: o dever de atuar segundo critérios de racionalidade em-presarial (remissão)

Em estrita articulação com quanto foi dito sobre a análise crítica da informação recebida, deve avaliar-se o cumprimento do dever do gerente ou administrador de atuar segundo critérios de racionalidade empresarial.

Como referimos antes (no ponto 3.1), trata-se de saber se, no iter decisional, foram adequada-mente ponderadas todas as alternativas, os ris-cos inerentes, as vantagens e desvantagens ou se, pelo contrário, a decisão se baseou apenas no instinto ou na intuição do devedor ou se, pior ainda, traduziu a opção que lhe exigia menor es-forço.

Cabe ao administrador demonstrar que a sua op-ção foi adequadamente fundamentada no sentido da promoção dos melhores interesses da socie-dade.

5.3. A licitude material da decisão: a sindi-cância do mérito da contratação de swaps

I. Nos termos já expostos, a obrigação de admi-nistração tem um conteúdo (parcialmente) inde-terminado, mas determinável segundo o padrão de diligência normativa, levando à descoberta de resultados subalternos que permitem a formula-ção de normas de conduta em cada caso concreto.

Tais normas de conduta podem admitir uma ou mais alternativas de ação, deixando uma maior ou menor margem de discricionariedade (Ermessensraum) ao órgão em causa, face à qual

se imponha uma decisão no sentido de atuar ou não atuar e, em caso afirmativo, sobre o sentido da sua atuação.

Assim, independentemente do cumprimento dos deveres procedimentais já analisados, pode con-cluir-se, perante as circunstâncias do caso con-creto, que o sujeito deve escolher “A ou B” ou “A e não B”.

No caso que ora nos ocupa, pode concluir-se, perante as circunstâncias do caso concreto, que o administrador pode celebrar os contratos de swap “A ou B” ou “A e não B”.

Está portanto em causa a sindicância do mérito

de uma determinada opção, de cumprimento ou não cumprimento da obrigação de diligente ad-ministração, a delimitação do espaço de licitude e de ilicitude e, logo, da margem de potencial responsabilização pelos danos eventualmente causados à sociedade.

II. Afirmada a sindicabilidade das opções de mérito, recordamos a já afirmada importância da jurisprudência na progressiva densificação e concretização da obrigação de diligente adminis-tração neste tipo de casos. A partir desta podem identificar-se grupos de casos típicos140, parâme-tros e critérios gerais que orientem o intérprete--aplicador na sua tarefa de aplicação do direito ao caso concreto. A tanto vai dirigido o ponto seguinte.

5.4. Análise crítica de concretizações juris-prudenciais: do “dever de contratar” ao “dever de não contratar” swaps

I. Um bom exemplo desta pretensão de sindicân-cia da atuação da administração na contratação de swaps pode ser encontrado na jurisprudên-cia norte-americana, no caso Brane v. Roth, de

140- Constituindo estes, nas palavras de NUNO TRIGO REIS, Os deveres de lealdade... p. 369, conjuntos de proposições colocados num plano intermédio entre a teoria e o caso decidendo, auxiliam o intérprete aplicador na determinação da obri-gação de vigilância perante o caso concreto.

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1992141, face ao qual se discute a existência de um “dever de contratar”.

Neste caso, o Tribunal considerou civilmente responsáveis os administradores de uma coope-rativa de cereais que não cobriram totalmente os riscos de declínio da cotação dos cereais. Foram celebrados contratos de cobertura do risco no valor de 20 mil dólares, apesar de a exposição potencial da sociedade ascender a 7 milhões de dólares.

Os preços caíram e a pequena cobertura de risco contratada não foi suficiente para proteger a so-ciedade. Os danos a que o caso se reporta ocor-reram em 1980. O Tribunal considerou que os administradores incumpriram o seu duty of care, ao escolher um funcionário sem experiência em cobertura de risco para desempenhar essa função na sociedade, ao não instruir e vigiar adequada-mente esse mesmo funcionário, ao não obterem conhecimentos suficientes sobre cobertura de risco de forma a poderem dirigir as atividades de cobertura de risco na sociedade e supervi-sionar a atuação do funcionário142. Considerou ainda verificado o nexo de causalidade entre a sua conduta e as perdas sofridas pela sociedade. Concluiu que a business judgment rule não era suficiente para os proteger, na medida em que os administradores não cumpriram o seu dever de obter informação adequada para efeitos das deci-sões tomadas.

Este caso ilustra a potencial responsabilidade dos administradores perante a inadequada cober-tura de riscos, mas o seu alcance é mais vasto: dele resulta a necessidade de os administradores desenvolverem, aplicarem, testarem e reverem políticas e procedimentos de gestão de risco.

Poderia afirmar-se que dele resulta que os admi-nistradores podem ser responsabilizados se não se informarem devidamente sobre mecanismos de gestão de riscos, como derivados, para cum-prir o papel que lhes é normativamente impu-tado143. Parece-nos, porém, que o seu alcance é mais vasto, na medida em que os administrado-res devem não apenas informar-se (critério pro-

cedimental), mas também escolher a opção mais adequada de acordo com a informação recolhida (critério de mérito144). Por outras palavras, con-sentâneas com o quadro jus-obrigacional traçado antes, devem escolher uma das (várias) alternati-vas de ação normativamente admissíveis no caso concreto, alternativas estas que compõem a sua margem de discricionariedade.

II. Neste sentido, cada sociedade deve identificar os riscos inerentes à sua atividade e definir ade-quadas estratégias de gestão dos mesmos145.

Como sublinha HENRY T. HU na sua análise do caso Brane v. Roth, é necessário distinguir en-tre diferentes realidades: diferentes sociedades pode rão reclamar diferentes estratégias de ges-tão de riscos. Assim, por exemplo, a situação das

141- 590 N.E.2d 587 (Ind. Ct. App. 1992).

142- Cfr. ALAN N. RECHTSCHAFFEN, Capital markets, derivatives and the law, 2.ª ed., Oxford: Oxford University Press, 2014, p. 355.

143- Cfr. ROBERT J. SCHWARTZ, CLIFFORD V. SMITH, Derivatives Handbook: Risk Management and Control, New York: John Wiley & Sons, Inc., 1997, p. 84-85.

144- Para densificação dos conceitos de mérito e de controlo de mérito da administração, remetemos para os critérios de economicidade e adequação desenvolvidos em FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades..., § 25.2, p. 318 ss.

145- Numa sociedade anónima, esta é uma tarefa em princípio reservada ao órgão de administração – cfr. arts. 405.º/1 e 373.º/3, tomando por base o modelo tradicional português de estruturação da administração e fiscalização [art. 278.º/1, a) – , sem prejuízo da delegação de poderes legalmente admissível (art. 407.º/1 e 3). Diferentemente, numa sociedade por quotas, os sócios poderão fazer ouvir a sua voz (art. 259.º).

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grandes sociedades abertas, com uma estrutura de acionistas titulares de portfólios de ações di-versificados – e, logo, menos expostos ao risco da sociedade em questão – é diversa daqueloutra das pequenas sociedades fechadas, com acio-nistas com investimentos concentrados e, logo, mais expostos ao risco da sociedade em ques-tão146.

Neste caso, o critério distintivo é a efetiva ou possível diversificação do portfólio dos acionis-tas de cada uma das sociedades, mas outros cri-térios são possíveis. As administrações de duas sociedades, aparentemente idênticas em termos de quadro de riscos a que estão expostas e de base acionista, poderão licitamente prosseguir estratégias opostas em termos de cobertura de risco, desde que o façam no quadro das suas competências legais, de acordo com uma decisão empresarial, tomada com base em informação adequada e devidamente fundamentada segundo critérios de racionalidade empresarial, e dentro da sua margem de discricionariedade147.

Obviamente, não pode admitir-se como lícita a conduta da administração que não cobriu o risco da sociedade, não por entender que a exposição ao mesmo servia os melhores interesses desta, mas por simples omissão de ponderação, incom-patível com o padrão de diligência normativa.

Essencial é também que a administração pros-siga a sua estratégia de risco de forma trans-

parente, permitindo aos seus acionistas tomar as suas decisões de investimento ou desinvesti-mento com base em informação adequada.

Recorde-se a este propósito que, nos termos do art. 66.º/5, h), o relatório anual de gestão deve incluir:

«Os objectivos e as políticas da sociedade em matéria de gestão dos riscos financeiros, incluindo as políticas de cobertura de cada uma das principais categorias de transacções previstas para as quais seja utilizada a con-tabilização de cobertura, e a exposição por parte da sociedade aos riscos de preço, de cré-dito, de liquidez e de fluxos de caixa, quando mate rialmente relevantes para a avaliação dos elementos do activo e do passivo, da posição financeira e dos resultados, em relação com a utilização dos instrumentos financeiros».

Com base em tal informação, os acionistas pode-rão escolher se preferem investir numa socie-dade com maior exposição ao risco, cobrindo a sua posição através de uma diversificação do seu portfólio de participações sociais, ou se preferem uma sociedade com uma administra-ção mais “paternalista”, com uma mais abran-gente estratégia de cobertura de risco ao nível da socie dade148. Dentro de determinados limi-tes, o controlo caberá ao mercado: assegurada a transparência, os investidores alocarão capital no

146- HU, Hedging expectations…, p. 1022-1024.

147- Esta margem é normativamente delimitada, nos termos já referidos, relevando em particular a coerência com a concre-tização ou densificação do interesse social que resulta expressa ou implicitamente das opções sucessivamente tomadas pela administração no desenvolvimento da atividade social, opções estas que se encadeiam umas com as outras, permitindo a sua sindicância por referência às antecedentes.

148- Para ilustrar este ponto, HENRY T. HU apresenta dois exemplos opostos. A Homestake Mining Company declarou publi camente nas suas contas de 1994 que «não cobre o risco da sua produção de ouro, permitindo aos seus acionistas partici-par plenamente nos movimentos ascendentes do preço». Pelo contrário, a Barrick Gold Corporation fez saber, nas suas contas de 1995, que o risco associado à sua produção estava plenamente coberto por um período de dois anos e parcialmente coberto depois desse prazo e até ao fim da década, defendendo que esta estratégia lhe permite «maximizar os proveitos da sua produ-ção, mantendo uma excelente exposição ao preço do outro através de uma porção de reservas não cobertas e da flexibilidade do programa». Ibidem, p. 1035-1036. Cfr. também, nesse sentido, GEORGE CRAWFORD e BIDYUT SEN, Derivatives for decision makers, New York: Wiley, 1996, p. 170.

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A DISCRICIONARIEDADE EMPRESARIAL, A BUSINESS JUDGMENT RULE E A CELEBRAÇÃO DE CONTRATOS DE SWAP : 93

projeto que entenderem mais atrativo na tensão entre o rendimento e o risco149.

III. Neste contexto, deve atender-se ao potencial conflito de interesses entre a sociedade e os seus gestores150.

Na medida em que se entenda que o interesse da sociedade corresponde ao interesse comum dos sócios enquanto sócios (perspectiva contratua-lista), os gestores deveriam atender à específica composição da sua base acionista para determi-nar o nível de risco aceitável e as estratégias de cobertura de risco adequadas.

Nesse contexto, poderá concluir-se que, tendo a sociedade uma base acionista tipicamente titular de investimentos diversificados, a solução mais conforme com o “interesse da sociedade” seria não contratar derivados para cobrir um determi-nado risco. Porém, os gestores poderão ser ten-tados a sobrevalorizar o risco e a necessidade de contratação do derivado para salvaguardar a sua própria posição, em prejuízo da sociedade (en-tendido o interesse da sociedade em função da sua específica base acionista).

Por um lado, os gestores, contrariamente aos seus acionistas, não estão em condições de re-duzir a sua exposição ao risco, diversificando; só podem exercer funções na sociedade em causa, na qual concentram o seu investimento pessoal e financeiro151.

Por outro lado, os gestores sabem que o seu risco reputacional perante a sociedade e o merca-do não é proporcional ao risco financeiro supor-tado pela sociedade. O custo da contratação do

derivado em princípio não afetará a sua reputa-ção; o custo da não contratação – i.e., as perdas que a sociedade sofra fruto da materialização do risco não coberto – terá, em princípio, um refle-xo no seu ativo reputacional.

IV. Outro caso de referência na jurisprudência norte-americana é Drage v. Procter & Gamble, de 1997152, perante o qual se tem discutido a existência de um dever de não contratar swaps.

Neste caso, os autores moveram uma ação social contra os administradores da sociedade, alegan-do que estes tinham permitido que a sociedade contratasse «dangerous derivative leveraged

swaps», dos quais resultou um prejuízo (depois de impostos) de 102 milhões de dólares, no ter-ceiro trimestre de 1994.

Esta ação seguiu-se a um comunicado da socie-dade no qual anunciou que o prejuízo resultava do fecho de dois contratos de swap de taxa de juro, «negativamente afetados pela dramática su-bida nas taxas de juro». Estes contratos, contra-riamente àqueles que a sociedade historicamente celebrou, tinham um efeito de alavancagem, ou seja, eram baseados em complexas fórmulas que multiplicavam o efeito da subida da taxa de juro, contrariando a política da sociedade.

A ação acabou por ser indeferida liminarmente por falta de um pressuposto processual, não tendo o tribunal apreciado o mérito do pedido, mas nem por isso a discussão subjacente dei-xa de ser considerada153, afirmando-se que, em geral, a cele bração deste tipo de contratos se jus-tifica para fins de cobertura de risco, mas já não para fins especulativos.

149- No mesmo sentido, MENEZES CORDEIRO escreve, a propósito da capacidade das sociedades, que o que se exige é transparência dos atos da sociedade, com contas devidamente auditadas e publicitadas; «[a] partir daí, o controlo é feito pelo mercado: automática e implacavelmente». Cfr. MENEZES CORDEIRO, Direito das sociedades, 13..., p. 384.

150- Ibidem, p. 1024-1025.

151- Ibidem, p. 1025

152- 119 Ohio App. 3d 19, 25. (1st Dist. 1997).

153- SCHWARTZ e SMITH, Derivatives Handbook..., p. 85-86.

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V. Esta discussão estende-se ao sistema alemão, no qual o OLG Frankfurt apreciou, na sua deci-são de 22-mar.-2011154, a afirmação dos autores de que os administradores de uma instituição de crédito violaram claramente o seu dever de di-ligência (previsto no § 93 AktG) ao celebrar 52 contratos de derivados (swaps de taxa de juro e forward rate agreements) que não tinham como função a cobertura de risco da sociedade (não eram negócios auxiliares de macro ou micro--hedging)155.

Os réus contestaram esta afirmação sem colocar em causa o critério de licitude, afirmando que os swaps contratados eram negócios auxiliares (Hilfsgeschäfte), cumprindo o critério enunciado pelos autores156.

O tribunal analisou a qualificação dos contratos celebrados como negócios auxiliares de macro ou micro-hedging157, tendo verificado que, de acordo com determinados relatórios de audito-ria, os mesmos cumpriam os requisitos de direi-to bancário aplicáveis158. Não obstante, declarou que se centraria não na questão sobre se os réus violaram ou não os seus deveres ao celebrar os contratos de swap, mas na questão prévia da existência ou inexistência de dano159, tendo con-cluído que os autores não cumpriram o seu ónus da prova sobre a existência do mesmo no con-texto do macro-hedging160.

Em todo o caso, sempre recordou que as insti-tuições devem dispor de meios adequados de gestão, vigilância e controlo de riscos e medi-das adequadas que permitam determinar a sua situação financeira a qualquer momento, com ra-zoável precisão, bem como uma organização de negócios ordenada, procedimentos de controlo interno apropriados e dispositivos de segurança adequados para a utilização de bases de dados electrónicas e assegurar que os registos das tran-sações executadas permitem um controlo perma-nente pela autoridade de supervisão.

Este litígio, centrado no cumprimento de espe-cíficos requisitos legais aplicáveis ao banco em questão, foi retomado pelo BGH, em sede de re-curso, na sua decisão de 17-jan.-2013161. Nesta, o tribunal entendeu que o OLG Frankfurt errou na distribuição do ónus da prova sobre a existência de dano, tendo remetido o processo de novo ao tribunal de apelação para apreciação da questão sobre se a celebração dos referidos contratos era lícita ou ilícita162. Recordando que «um órgão que conduz atividades não cobertas pelo fim da sociedade atua ilicitamente», qualificou os negó-cios especulativos como inadmissíveis.

Esta sequência de decisões é particularmente rele vante para a compreensão do labor judicial na identificação do que seja o fim de uma com-plexa série de contratos e da determinação da sua

154- OLG Frankfurt, 22-mar.-2011, 5 U 29/06, disponível em http://dejure.org/2011,5474 ou em https://beck-online.beck.de, com a referência BeckRS 2011, 06395.

155- Cfr. ponto 14 da decisão.

156- Cfr. ponto 36 da decisão.

157- Cfr. pontos 91 a 94 da decisão.

158- Cfr. ponto 106.

159- Cfr. ponto 123.

160- Cfr. ponto 143 ss.

161- BGH, 15-jan.-2013, II ZR 90/11, disponível em http://dejure.org/2013,2489.

162- Neste contexto, o tribunal recordou que na apreciação da conduta dos réus se deveria atender à business judgment rule, tal como consagrada no sistema alemão. Cfr. pontos 33-35 da decisão.

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licitude por contraposição ao interesse ou fim da sociedade. Demonstram, nessa medida, que é possível e necessário o controlo do mérito das opções de administração.

VI. Em Portugal, destaca-se o acórdão STJ 12-jan.-2012 (A/lvaro Rodrigues), no qual o tri-bunal qualificou as operações cambiais realiza-das pelo réu (forwards), CFO da Samsung Portu-gal, como sendo de mera especulação financeira, considerando estarem claramente excluídas do objecto social da sociedade administrada (em violação dos arts. 6.º/1 e 4), pondo em causa a sua viabilidade. De acordo com o tribunal:

«Tal conduta viola diretamente as obrigações

de qualquer administrador e diretor financei-

ro e constitui uma clara inobservância de dis-

posições legais diretamente concebidas para

defesa dos credores sociais» «In casu, e patente que, no exercício das suas

funções, não teve o Recorrido em conta os

deveres de diligência a que estava adstrito,

uma vez que ficou demonstrado que, enquanto

Administrador da SPEM, deixou de assegurar

a prossecução do interesse social para deli-

beradamente contratar, com fins meramente

especulativos, os forwards em causa, violan-

do grosseiramente os deveres legais que sobre

si impendiam e que se encontram legalmente

consagrados no art. 64.° do CSC.»

Note-se que, partindo do art. 6.º/4, o tribunal apreciou não a simples conformidade da conduta do administrador ao “objeto social” mas, de forma mais ampla, ao “interesse social”, con-cluindo que os contratos meramente espe-culativos são contrários ao mesmo, traduzindo a violação grosseira dos deveres legais dos admi-nistradores previstos no art. 64.º.

6. CONCLUSÕES

I. As decisões analisadas confirmam a perspec-tiva, que hoje se deve dar como consolidada, de que na densificação da obrigação de diligente administração se identifica um dever de organi-zação interna (do próprio órgão) e externa (das estruturas administrativas subordinadas) do ór-gão de administração, nos termos do qual este deve estabelecer procedimentos de gestão de risco adequados às especificidades da sociedade em causa163, incluindo, naturalmente, os riscos associados à contratação de swaps e outros de-rivados.

II. Este dever de organização deve ser articulado com os poderes-deveres de obtenção de informa-ção que permitem aos administradores conhecer a atividade da sociedade [informação estrutural, nos termos exigidos pelo art. 64.º/1, a)] e os ter-mos da questão sujeita a decisão [informação conjuntural, nos termos exigidos pelo art. 72.º/2], de tal forma que o administrador não pode ale-gar o desconhecimento de determinados factos se tal desconhecimento lhe é imputável por não ter tomado as medidas necessárias à criação de fluxos de informação adequados à realidade da sociedade e à obtenção da necessária informação no caso concreto.

III. Os poderes-deveres de obtenção de informa-ção, por sua vez, devem ser conjugados com o dever de obtenção da competência técnica ne-cessária ao cumprimento das suas funções [art. 64.º/1, a)]. Como resulta dos casos analisados, de nada serve a um administrador receber infor-mação se não está em condições de a compre-ender e analisar criticamente. Como referimos antes, se o administrador não tem conhecimen-tos técnicos suficientes para o efeito, das duas

163- Sobre o dever de organização e, em particular, o dever de criação de sistemas de informação, cfr. FERREIRA GOMES, Da Administração à Fiscalização de Sociedades..., n.os de margem 526-541.

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uma: ou se conclui que incumpriu o seu dever de obtenção da competência técnica adequada às suas funções [art. 64.º/1, a)] ou que o produto contratado é desadequado ao tipo de sociedade em causa. Em qualquer dos casos, não deve ad-mitir-se como lícita a conduta do administrador de contratação, em nome da sociedade, de um produto cujas informações não está em condi-ções de analisar criticamente164.

Devem ainda ser articulados com o princípio jus-societário da confiança (reliance), de acor-do com o qual a confiança do administrador na informação recebida só é legítima quando veri-ficados determinados requisitos (enunciados em cima). Por outras palavras, o administrador não deixará de ser responsável pelos prejuízos cau-sados pelo simples facto de ter atuado com base em informação errada ou incompleta – no caso da contratação de swaps, tipicamente prestada por um intermediário financeiro –, exigindo-se um comportamento diligente na análise da in-formação recebida, de acordo com os critérios referidos.

IV. Paralelamente, o administrador deve atuar segundo critérios de racionalidade empresarial (nos termos exigidos pelo art. 72.º/2), exigindo--se cautela na compreensão deste conceito que traduz uma vinculação eminentemente procedi-

mental.

O Direito exige que o administrador, encarregue da gestão de bens alheios, não atue simplesmente com base na sua intuição, devendo cumprir um procedimento apropriado de fundamentação, de acordo com a proposição de que, nas obrigações de meios, o cumprimento só tem lugar quando o resultado é adequadamente tentado. Assim, na contratação de swaps e outros derivados, o admi-

nistrador deve ponderar todas as alternativas, os riscos inerentes e as suas vantagens e desvanta-gens, sendo qualificável como negligente a con-duta do administrador que não logre demonstrar a devida ponderação e fundamentação da sua de-cisão [de acordo com a presunção de culpa (em sentido amplo) do art. 72.º/1165].

V. Mas o administrador não está apenas condi-cionado por critérios de legalidade procedimen-tal. Fruto da concretização da sua obrigação de diligente administração, dirigida à promoção dos melhores interesses da sociedade, as suas opções são normativamente delimitadas, podendo con-cluir-se, perante as circunstâncias do caso con-creto, que o sujeito deve celebrar o contrato “A ou B” ou “A e não B”.

A discricionariedade do administrador é, por-tanto, um resultado normativo; traduz a exis-tência, no caso concreto, de mais do que uma alternativa de ação normativamente admissível. No reverso da medalha, a atuação do adminis-trador é normativamente delimitada: este não é livre para praticar os atos que entenda, sendo a sua conduta sindicável não só internamente, a ní-vel orgânico, mas também externamente, a nível judicial.

Note-se, porém, que esta delimitação resulta da concretização da obrigação de administração de acordo com a bitola de diligência norma-tiva, para a qual assumem particular relevância as progressivas concretizações e densificações juris prudenciais.

Nos termos enunciados, não é suficiente, por-tanto, a afirmação de que o administrador não pode, na sua atuação, exceder o objeto da socie-dade (art. 6.º/4). A cláusula do objeto resume-se

164- O mesmo vale, com as necessárias adaptações para os casos dos administradores que, não tendo estado envolvidos na contratação dos produtos, não tomaram – no contexto da sua obrigação de vigilância – as medidas adequadas para evitar a prática do ato danoso ou para minorar os efeitos danosos. Cfr. ibidem, §§ 19-20, p. 216 ss.

165- Ibidem, nota 3238, p. 899 ss.

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a uma indicação genérica das atividades que os sócios propõem que a sociedade venha a exer-cer (art. 11.º/2). Pela sua abstração, dificilmente constitui padrão de avaliação dos atos praticados pela administração166. São necessários dados adi-cionais para concretizar o padrão de avaliação de forma a torná-lo operacional no caso concreto.

Como vimos, releva a atuação dos diferentes ór-gãos sociais na concretização do que seja o inte-resse ou fim de cada sociedade, no contexto das respetivas competências. O acórdão STJ 12-jan.-2012 (A/lvaro Rodrigues), analisado em cima, confirma a bondade desta nossa construção, ao contrapor a conduta do réu na contratação de de-rivados não apenas ao “objeto social”, mas tam-bém ao “interesse social”, para apreciação do cumprimento dos “deveres legais do art. 64.º”167.

VI. As decisões apontadas esclarecem que, na concretização da vinculação do administrador, tanto se pode identificar um dever de contratar, como um dever de não contratar swaps e outros derivados.

O primeiro traduz a vinculação à contratação de uma adequada cobertura de risco, enqua drada naqueloutra mais vasta de desenvolvimento, apli-cação, teste e revisão de políticas e procedimen-tos de gestão de risco. Tipicamente, a cobertura de risco poderá ser alcançada através de uma de várias alternativas, mas a ponderação das vanta-gens e desvantagens de cada uma destas perante as circunstâncias do caso – segundo critérios de

economicidade e adequação – poderão determi-nar uma necessária preferência pela contratação deste ou daquele swap.

O dever de não contratar poderá impor-se quando as características do produto não sejam ade-quadas às necessidades da sociedade. Como resulta das decisões analisadas, tipicamente, a contratação de swaps e outros derivados justi-fica-se para efeitos de cobertura de risco, tan-to numa perspetiva de micro como de macro- -hedging. A primeira traduz a cobertura de riscos específicos de determinado negócio; a segunda traduz a cobertura de riscos inerentes a portfó-lios, ou de riscos gerais de parte ou da totalidade da atividade da sociedade.

Não pode, porém, tomar-se esta referência em termos absolutos. O desvio mais óbvio centra-se nas sociedades que têm por fim investimentos de risco. Naturalmente, nestes casos, a contratação de instrumentos especulativos não será contrária ao seu fim168.

Menos óbvio é o caso das sociedades que, não tendo tal fim, decidem adoptar estratégias de investimento acessórias para, por exemplo, ren-tabilizar disponibilidades de tesouraria. Nada impede que uma sociedade, ao abrigo da sua autonomia privada, adote estratégias de investi-mento mais arriscadas ou até mesmo puramente especulativas. Este passo, contudo, exige uma articulação das normas de competência orgâ nica com o princípio da tutela do investimento dos

166- Como refere SOVERAL MARTINS, CSC em comentário, 1, art. 6.º, p. 120, grande parte dos atos praticados em nome das sociedade tanto pode servir o objeto social, como constituir uma violação do mesmo.

167- Note-se, contudo, que não concordamos com a qualificação do “dever de diligência” como norma de proteção, para efeitos do art. 78.º/1, nos termos sustentados pelo STJ neste acórdão.

168- Esta questão assume contornos específicos nas empresas públicas, tal como definidas pelo art. 5.º do Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de outubro, designadamente, perante o disposto no art. 14.º, que as sujeita ao direito privado, no n.º 1 do art. 25.º, relativo à autonomia de gestão, segundo o qual, «[n]o quadro definido pelas orientações fixadas nos termos do artigo anterior, os titulares dos órgãos de administração das empresas públicas gozam de autonomia na definição dos métodos, mo-delos e práticas de gestão concretamente aplicáveis ao desenvolvimento da respetiva atividade», nos arts. 37.º e 38.º relativos à função acionista, seu conteúdo e exercício, no art. 43.º relativo ao cumprimento dos objetivos fixados, e no art. 48.º, relativo aos deveres específicos existentes quando esteja em causa a prestação de serviço público ou de interesse geral. Infelizmente não podemos desenvolver aqui este tema, a que esperamos poder voltar num futuro próximo.

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sócios. Na medida em que tal opção contraria a típica concretização do interesse social, en-quanto limite da atuação dos administradores, é suscetível de colocar em causa a confiança legiti-mamente depositada pelos sócios numa atuação de sentido inverso. Não deve portanto admitir-se a competência do órgão de administração para a prática de um tal ato de gestão (seja ao abrigo do art. 259.º, no caso das sociedades por quo-tas, seja nos termos do art. 405.º/1, no caso das

sociedades anónimas), sem o prévio consenti-mento dos sócios169 que, aliás, exclui a respon-sabilidade dos seus membros, nos termos gerais do art. 72.º/5170.

Uma tal solução habilita o órgão de adminis-tração a prosseguir uma estratégia de risco de forma transparente, permitindo aos seus sócios tomar as suas decisões de investimento ou desin-vestimento com base em informação adequada.

169- Sem prejuízo da natural convocação das normas que tutelam os sócios minoritários.

170- Nos termos gerais, a afirmação da necessidade de uma tal deliberação dos sócios não limita os poderes de representação dos administradores (cfr. art. 260.º/1 e 409.º/1).

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1. OBJETO E SEQUÊNCIA

I. A independência é a característica constitutiva e, simultaneamente, distintiva das denominadas entidades administrativas independentes em re-lação a outras pessoas coletivas públicas, delimi-tando, em particular, a natureza, os pressupostos e o parâmetro ex lege de atuação das entidades reguladoras.

A par do consabido enquadramento jusconstitu-cional, a entrada em vigor da Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto – a lei-quadro das entidades administrativas independentes com funções de regulação da atividade económica dos setores privado, público e cooperativo – dos diplomas estatutários das diversas entidades reguladoras2, bem como, apesar de expressamente excluído do âmbito da LQER, da recente revisão da lei orgâ-

nica do Banco de Portugal3, permite-nos atender a uma arquitetura normativa enquadradora da função reguladora económica em Portugal e jus-tificando, por isso, uma atenção renovada sobre este universo de entidades administrativas e so-bre a crítica prossecução de atribuições de natu-reza regulatória no nosso país.

II. Circunscrevendo o escopo da presente aná-lise, necessariamente breve pela natureza da mesma, colocaremos o nosso enfoque na regu-lação e supervisão do setor financeiro e, com o pensamento em Amadeu Ferreira, debruçar--nos-emos, muito em particular, sobre o enqua-dramento jurídico que rege a conduta regulató-ria independente da Comissão do Mercado de Valo res Mobiliários (CMVM), nas suas diversas vertentes e perante outras entidades e múltiplos interesses.

1- Mestre em Direito; docente no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (Universidade de Lisboa). As opiniões expendidas no presente texto são da exclusiva responsabilidade do autor, não vinculando, desde logo, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, onde o autor exerce funções dirigentes.

2- Decreto-Lei n.º 5/2015, de 8 de janeiro – Estatutos da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (ECMVM); Decreto--Lei n.º 1/2015, de 6 de janeiro – Estatutos da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões; Decreto-Lei n.º 125/2014, de 18 de agosto – Estatutos da Autoridade da Concorrência; Decreto-Lei n.º 212/2012, de 25 de setembro, na redação atribuída pelo Decreto-Lei n.º 84/2013, de 25 de junho – Estatutos da Entidade Reguladora de Serviços Energéticos; Decreto-Lei n.º 39/2015, de 16 de março – Estatutos da Autoridade Nacional de Comunicações; Decreto-Lei n.º 40/2015, de 16 de março – Autoridade Nacional de Aviação Civil; Decreto-Lei n.º 78/2014, de 14 de Maio – Estatutos da Autoridade da Mobilidade e dos Transportes; Lei n.º 10/2014, de 6 de março – Estatutos da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos; Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto – Estatutos da Entidade Reguladora da Saúde.

3- Lei n.º 5/98, de 31 de janeiro, na redação atribuída pela Lei n.º 39/2015, de 25 de maio.

A INDEPENDÊNCIA DA CMVM NO CONTEXTO DA ADSTRIÇÃO ADMINISTRATIVA E DA REGULAÇÃO FINANCEIRA EM REDE

GONÇALO CASTILHO DOS SANTOS1

“A informação é o oxigénio para o mercado,

a independência é o oxigénio para o supervisor”Amadeu Ferreira

(in aula de Direito dos Valores Mobiliários, FDUL, 1997)

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Conciliaremos a abordagem estritamente jurídi-ca com os contributos da Ciência da Administra-ção, em particular no que respeita à new public

governance e à sua matriz diagnóstica, desig-nadamente, quanto à problemática em torno da relação entre o nível administrativo-regulatório e o nível político-governamental ou entre a au-toridade de supervisão e regulação e os interve-nientes no mercado supervisionado e regulado, em ambos os casos num contexto de “regulação em rede” (networking) e multinível decisório--administrativo.

III. No presente texto, sequencialmente, siste-matizaremos os termos em que a nossa ordem jurídica concebe e postula a conduta regulatória independente pela CMVM, para depois aprofun-darmos essa descrição eminentemente normativa da independência orgânica, funcional e técnica do regulador mobiliário através da problema-tização do acolhimento pelo legislador de uma novel relação administrativa intersubjetiva com a previsão na LQER da “adstrição administrativa”.

Na senda do nosso propósito revisitante da há muito estudada característica-fundamento da independência das entidades reguladoras do se-tor financeiro, procuraremos ainda recortar, na caracterização – necessariamente esquemática – das modalidades de “regulação financeira em rede” em Portugal, o contributo da praxis admi-nistrativa para um melhor entendimento, preci-samente, da independência da CMVM, dos seus

atributos, oportunidades de melhoria e riscos ín-sitos à atividade do regulador, em contexto de crescente multitematicidade de problemas com-plexos.

Por fim, terminaremos com uma síntese conclu-siva, visando realçar a delimitação densificante da independência da CMVM através da análise operada em relação ao modelo de configuração dos poderes governamentais sobre a CMVM e dos deveres desta para com o Governo e a As-sembleia da República, bem como procurando destacar as dinâmicas de codecisão, coordena-ção mais ou menos vinculativa, negociação e parceria que emergem da “regulação financeira em rede”, considerando até apenas o plano estri-tamente nacional.

2. A CONDUTA REGULATÓRIA INDEPENDENTE DA CMVM

I. O artigo 3.º, n.º 2, da LQER, e o artigo 1.º, n.º 2, dos ECMVM, estabelecem que a CMVM deve desempenhar as suas atribuições de modo independente, dispondo para o efeito de (i) auto-nomia de gestão, administrativa, financeira e pa-trimonial; (ii) independência orgânica, funcional e técnica; (iii) órgãos, serviços, pessoal e patri-mónio próprios; e (iv) poderes de regulação, de regulamentação, de supervisão, de fiscalização e de sanção de infrações4.

A lei5 prossegue no intuito concretizador do que seja a conduta regulatória independente da

4- Embora não ultrapassando o indesejável círculo autodefinitório de “desempenho de atribuições de modo indepen dente” com “requisito” de “possuir independência orgânica, funcional e técnica” (artigo 3.º, n.º 2, da LQER), o artigo 1.º dos ECMVM, ainda assim, parece-nos conseguir melhor instrumentalizar o elenco de poderes-deveres face à necessidade do supervisor mobiliário “desempenhar as suas atribuições de modo independente” e não tanto agregar essas características – poderes instrumentais como “requisitos” (ex vi da LQER). De igual modo, também não poderemos, nesta sede, esmiuçar a vantagem e, porventura, o maior rigor técnico de grande parte dos estatutos que vieram a ser aprovados na esteira da entra-da em vigor da LQER, em se considerar restritivamente o “requisito de independência da entidade reguladora” vertido no “garante da proteção dos direitos e interesses dos consumidores” (artigo 3.º, n.º 2, alínea f), na LQER), pelo que aplaudimos, por exemplo, a omissão no artigo 1.º, n.º 2, dos ECMVM (bem como noutros estatutos, frise-se), sem prejuízo da transversal relevância que é conferida na LQER e diplomas estatutários setoriais à proteção dos investidores, consumidores, utentes ou clientes nos mercados regulados.

5- Artigo 1.º, n.º 5, dos ECMVM, bem como artigo 45.º, n.º 2, da LQER.

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A INDEPENDÊNCIA DA CMVM NO CONTEXTO DA ADSTRIÇÃO ADMINISTRATIVA E DA REGULAÇÃO FINANCEIRA EM REDE : 101

CMVM ao estabelecer que os membros do con-selho de administração dessa Comissão não po-dem, no exercício das suas funções e nos termos da lei, receber ou solicitar orientações ou deter-minações do Governo ou de qualquer outra enti-dade, nem ser destituídos fora das circunstâncias expressamente previstas na lei.

Os vários sentidos de independência, legalmente explicitados, com graus diversos de concreti-zação normativa é certo, permitem, todos eles, vincar a necessidade de conduta regulatória in-dependente da CMVM quer em relação ao poder político, quer em relação ao poder económico, privado ou pessoal, particularmente aquele que é destinatário da atividade de regulação e super-visão.

II. Especificamente na delimitação dos contor-nos, manifestações se quisermos, da indepen-dência da CMVM, atenhamo-nos ao sentido or-gânico, funcional e técnico dessa independência ex lege 6. Enquanto a independência em sentido orgâ nico pressupõe a existência de regras claras relativas à designação, à cessação e às condições de exercício do mandato por parte dos órgãos esta-tutários, traduzindo, designada mente, regime de incompatibilidades, mandato fixo e inamovibili-dade no decurso do mesmo7, já a independência em sentido funcional reconduz-nos a condições que acautelem, como já vimos, a inexistência de ordens, de instruções ou orientações externas em relação à conduta regulatória prosseguida pela CMVM, imunizando-a de considerações ou inte-resses de outra ordem que não aqueles ínsitos na prossecução das atribuições legalmente cometi-das à entidade reguladora e de supervisão8. Já o

sentido técnico do desempenho independente da CMVM remete-nos para a capa citação autóno-ma dos recursos afetos à atividade da CMVM que assegurem a não sujeição à determinação jurídico-económica (ou de outra índole) prove-niente de outro órgão, enti dade ou pessoa ex-terna à CMVM que condicione a capa cidade de fundamentação e orientação do supervisor mo-biliário na explicitação técnica das suas atribui-ções de supervisão, regulação, regulamentação ou sancionamento. Entendemos, por fim, que o perfil legalmente estabelecido para os indivíduos que venham a ser designados pelo Governo para ocupar cargo no conselho de administração da CMVM – artigo 10.º, n.º 2, dos ECMVM – explicita, simultaneamente, a ver tente de inde-pendência técnica e o sentido orgânico da condu-ta regulatória independente, porventura até com maior conexão à primeira área de densificação da independência9.

Pensamos, assim, – compulsando a concretiza-ção legal dos mesmos – que estes três sentidos legalmente consagrados de independência da CMVM podem ser aglutinados em torno do que denominaríamos independência institucional, abarcando, portanto, além do que já explicitá-mos, os vetores traduzidos na lei a propósito do elenco de poderes que devem estar disponíveis junto da entidade reguladora e que, no caso da CMVM, são referidos no artigo 1.º, n.º 2, alínea d), dos ECMVM e, subsequentemente, detalha-dos no diploma estatutário.

III. A lei confere igualmente particular destaque à vertente da autonomia da entidade reguladora, no caso da CMVM à luz do artigo 1.º, n.º 2, alí-

6- Cf., a este propósito, Moreira e Maçãs (2003: 25 e ss.) que referem um “sentido orgânico (estrutural)” e um “sentido fun-cional (quanto à atividade)”.

7- Cf., respetivamente, no que respeita aos membros do conselho de administração da CMVM, artigos 16.º e 18.º dos ECMVM.

8- Cf. o já citado artigo 1.º, n.º 5, dos ECMVM.

9- Com efeito, o artigo 10.º, n.º 2, bem como o artigo 17.º, n.º 2, da LQER, estabelecem que os membros do conselho de administração da CMVM “são escolhidos de entre indivíduos com reconhecida idoneidade, competência técnica, aptidão, experiência profissional e formação adequadas ao exercício das respetivas funções”.

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nea a), dos ECMVM, enxertando-a no âmago, precisamente, do que venha a ser uma conduta regulatória independente.

O que denominaríamos como independência au-

tonómica pressupõe, com efeito, um sentido da conduta independente da CMVM relacio nado com a autonomia de gestão, administrativa, fi-nanceira e patrimonial, bem como a existência de serviços, pessoal e património próprios. Deste modo, a independência do ponto de vista orça-mental e, ou, financeiro consiste na efetivação da capacidade de autonomamente a entidade regu-ladora decidir sobre a dimensão e execução do seu orçamento, incluindo a capacidade de atrair profissionais qualificados e outros recursos de natureza operacional ou tecnológica, por exem-plo, como objetivo de evitar assimetrias entre as possibilidade de desempenho dos agentes super-visionados e do supervisor, sob pena de se fragi-lizar ou corromper a qualidade do desempenho regulatório, ou seja, a própria independência em sentido institucional, desde logo nas vertentes funcional e técnicas.

Particularmente na sempre crítica dimensão or-çamental e financeira da denominada indepen-

dência autonómica na gestão dos recursos afetos à entidade reguladora, sublinhamos a preocupa-ção da lei em estabelecer a inaplicabilidade às entidades reguladoras das regras de contabili-dade pública e do regime dos fundos e serviços autónomos, nomeadamente as normas relativas à autorização de despesas, à transição e utilização dos resultados líquidos e às cativações de verbas. Ressalvadas ex lege (artigo 33.º, n.º 3, da LQER) as situações em que a entidade reguladora be-neficia de verbas provenientes da utilização de bens e do domínio público ou que dependam de dotações do Orçamento do Estado10, estamos, pois, perante um regime especial e qualificado de autonomia orçamental e financeira que vin-

cula o aplicador e o intérprete a uma concate-nação normativa entre este recorte excecional do re gime orçamental e financeiro aplicado à CMVM (e outras entidades reguladoras em si-tuação similar de exclusividade de receitas pró-prias, por exemplo) e o enquadramento legal que rege a exe cução do Orçamento do Estado, desde logo.

IV. O quadro normativo nacional a propósito da independência regulatória que temos vindo a deta lhar analiticamente deve ser perspetivado também segundo o enquadramento internacional e comunitário a este propósito.

Sem querer ter a pretensão de exaustividade, permitimo-nos realçar, nesse sentido, a Carta dos “Objectives and Principles of Securities

Regu lation”, aprovada pela OICV/IOSCO, com, vocação universal e à escala global, em que se refere expressamente que “The regulator should

be operationally independent from external poli-

tical or commercial interference in the exercise

of its functions and powers and accountable in

the use of its powers and resources”. De igual modo, o Fundo Monetário Internacional, atra-vés do seu Working Paper sobre Regulatory and

Supervisory Independence and Financial Sta-

bility (IMF WP/02/46) sublinha a necessidade dos supervisores financeiros disporem de uma “substancial degree of independence” de modo a “enabling them to speak and take action without

fear of dismissal by the government of the day”.

Igualmente de modo enfático, encontramos di-versos exemplos no Direito Europeu de consa-gração do poder-dever da independência regu-latória na esfera de atuação dos supervisores do setor financeiro, ou seja, em particular das entidades reguladoras com responsabilidades na supervisão e regulação dos mercados de ins-trumentos financeiros. Desde a seminal Diretiva

10- Caso em que a referida inaplicabilidade normativa dá lugar à aplicação das regras gerais do regime orçamental e financeiro dos serviços e fundos autónomos, não se verificando no caso concreto da realidade da CMVM.

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A INDEPENDÊNCIA DA CMVM NO CONTEXTO DA ADSTRIÇÃO ADMINISTRATIVA E DA REGULAÇÃO FINANCEIRA EM REDE : 103

n.º 2003/6/CE, do Parlamento e do Conselho, sobre abuso do mercado, passando posterior-mente pelas Diretivas e Regulamentos relaciona-dos com regulação de mercados e instrumentos financeiros, supervisão de sociedades de notação de risco, supervisão da atividade de auditoria financeira, encontramos muitas manifestações de que deve ser garantido um estatuto de inde-pendência orgânica e funcional, bem como de adequação dos meios alocados à atividade do regulador.

Por fim, completamos este excurso esquemá-tico com a referência ao Regulamento (UE) n.º 1095/2010, que estabelece o estatuto da Eu-

ropean Securities and Markets Authority e que, além da ênfase na independência desta auto-ridade europeia, estabelecem pressupostos de conduta regulatória independente à escala dos Estados-Membros, colocando essa confirmação como prioritária no sistema de peer reviews e monitorização regular do enquadramento nor-mativo e da praxis efetiva na envolvente regula-tória nacional.

V. A independência da CMVM tal como a te-mos vindo a captar no acquis normativo traz ínsita a necessidade de perspetivarmos o limite--fundamento dessa mesma conduta regulatória independente. Com efeito, como atividade admi-nistrativa, o exercício de poderes regulatórios tem de ser enquadrado politicamente, como ex-pressão de legitimação democrática do exercício de poderes públicos pela Administração, em que se insere a CMVM e restantes entidades regula-doras.

Releva, assim, a identificação do elenco de pode-res e deveres que se estabelecem entre as ins-tâncias políticas – Governo e Parlamento – e as autoridades administrativas independentes com funções regulatórias económicas (ex vi da LQER).

Nos termos legais, há um conjunto significativo de poderes governamentais na designação dos órgãos de direção, de fiscalização e de consulta das entidades reguladoras, incluindo do Banco de Portugal, na parte que aqui releva. Especifi-camente para a CMVM, já o anotáramos, atente--se nos poderes do Governo, articulados com audições parlamentares e pareceres obrigatórios, para a designação do conselho de administração da CMVM, bem como poderes ministeriais para a nomeação da Comissão de Fiscalização, dos presidentes do Conselho Consultivo e da Comis-são de Deontologia, bem como da Comissão de Vencimentos da CMVM11. Por sua vez, no elen-co das causas legais para a cessação de funções dos membros do conselho de administração da CMVM encontramos também, o envolvi mento do Governo, juntamente com a Assembleia da República, na concretização dessa situação ex-cecional de dissolução do conselho de adminis-tração por “motivo justificado”, nos termos res-tritivos do n.º 3 do artigo 18.º dos ECMVM.

A lei consagra ainda um segundo grupo de po-deres do Governo relativamente à atividade da CMVM, intersectando especificamente o uni-verso de dimensões que agregámos em torno da denominada independência autonómica, essen cialmente no plano da gestão dos recursos humanos, financeiros e patrimoniais da CMVM. O artigo 45.º da LQER estabelece o essencial dessa composição de poderes atribuídos, no caso da CMVM, essencialmente ao membro do Governo responsável pela área das finanças, estando em causa (i) o poder de solicitar infor-mações ao conselho de administração da CMVM sobre a execução dos planos de atividades, bem como dos orçamentos e respetivos planos plu-rianuais, (ii) o poder de aprovar os orçamen-tos e respetivos planos plurianuais, o balanço e as contas, bem como (iii) o poder de autorizar

11- Respetivamente, cf. artigos 17.º, 28.º e 26.º, todos da LQER, bem como artigos 20.º, 23.º e 29.º, todos dos ECMVM.

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previamente a aceitação pela CMVM de doa-ções, heranças ou legados ou ainda a aquisição ou alienação de bens imóveis pela CMVM; (iv) o poder de autorizar previamente o recurso ao crédito pela CMVM; (v) o poder de aprovar a portaria que estabelece as taxas de supervisão a cobrar pela CMVM junto das entidades e sujei-tos à sua atividade de supervisão e regulação12.

Por fim, identificamos um terceiro grupo de deve-res da CMVM perante o Governo e a Assembleia da República que, não traduzindo, mais uma vez, qualquer cercear da sua independência institu-cional ou autonómica, permitem-nos delimitar e densificar os termos do exercício da referida conduta regulatória independente. Referimo-nos a diversos deveres de informação, de reporte, em suma, de accountability. Assim, além do dever de submissão ao Governo dos planos de ativi-dades, anuais e plurianuais, a CMVM deve, nos termos do artigo 40.º dos ECMVM, no primeiro trimestre de cada ano de atividade, apresentar na Comissão de Orçamento, Finanças e Admi-nistração Pública o respetivo plano de atividades e a programação do seu desenvolvi mento, bem como, anualmente, um relatório detalhado so-bre a sua atividade e funcionamento no ano an-tecedente. Ainda nos termos do artigo 34.º dos ECMVM, anote-se o dever da CMVM assegurar, através da respetiva Comissão de Fiscalização, uma avaliação anual dos resultados obtidos pela CMVM em função dos meios disponíveis, repor-tando essas conclusões ao membro do Governo responsável pela área das finanças.

VI. A independência, apesar de abundantemen-te invocada e esgrimida no contexto do tráfego jurídico, é, assim, um conceito polissémico e de

recorte negativo13 face a outras entidades públi-cas ou privadas, externas por definição em rela-ção à entidade titular do poder-dever do desem-penho independente das respetivas atribuições, mas também face a quaisquer interesses, de natu reza pública ou privada, internos ou exter-nos à referida entidade, que não se reconduzam, afinal, ao interesse público ou interesse geral14.

Neste contexto, reputamos como importante o esforço de densificação das diversas envolventes e concretizações do que seja a conduta regulató-ria independente, diferenciando concetualmen-te, mas interligando-os, sempre que justificado, para irmos deduzindo um sistema coerente que envolve e fundamenta axiologicamente a própria independência como instância de decisão, de gestão e prossecução do bem geral.

Procurámos, igualmente, delimitar o campo le-galmente tipificado de poderes de natureza polí-tico-governamental que estabelecem o perímetro desse exercício independente das atribuições come tidas à CMVM, aparentando cerceá-lo, é certo, mas afinal legitimando-o democratica-mente, em particular através de deveres de accountability, transparência, rigor e funda-mentação na utilização dos recursos afetos ao regulador, etc.

3. A ADSTRIÇÃO ADMINISTRATIVA E A ADMINIS-TRAÇÃO INDEPENDENTE

I. O artigo 9.º da LQER15 inova no panorama ju-rídico-administrativo nacional ao acolher como tipo de relação funcional intersubjetiva a adstri-

ção administrativa, estabelecida entre a entidade reguladora e “um ministério responsável”, neste caso com menção na lei orgânica a essa “ligação”

12- Sucessivamente, cf. n.º 3, n.º 4 e n.º 8 do artigo 45.º da LQER, bem como n.º 5 do artigo 32.º dos ECMVM.

13- Vide Passaro (1996).

14- Artigo 3.º, n.º 1, LQER.

15- Especificamente para a CMVM, cf. n.º 4 do artigo 1.º dos ECMVM, com referência à “adstrição ao membro do Governo responsável pela área das finanças”.

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A INDEPENDÊNCIA DA CMVM NO CONTEXTO DA ADSTRIÇÃO ADMINISTRATIVA E DA REGULAÇÃO FINANCEIRA EM REDE : 105

a membro do Governo com poderes específicos que lhe são legalmente cometidos16.

A evolução legislativa é ainda mais impressiva se atendermos ao facto de muitos dos anteriores diplomas estatutários das entidades reguladoras sujeitas agora à referida LQER referirem expres-samente a tutela administrativa como enquadra-mento relacional entre aquelas e o Governo. Era o caso, precisamente, do disposto no anterior Estatuto da CMVM17, no respetivo artigo 2.º, n.º 2. Confirmando esta rutura legislativa com o paradigma tradicional da recondução da relação intersubjetiva administrativa típica à superinten-dência ou tutela governamental, aí está o n.º 1 do artigo 45.º da LQER a sublinhar a não sujeição das entidades reguladoras a essa tipologia jus--relacional.

Naturalmente, a tipificação legal, anteriormente explicitada, dos poderes governamentais em rela ção às entidades reguladoras latu sensu (Banco de Portugal incluído para o efeito que aqui releva, como constatámos) densifica o conteúdo da relação adstritiva, combinada com o rol de deveres destas entidades para como o Governo (adstrição direta) e a Assembleia da República (adstrição indireta), mas parece-nos que a revogação desses regimes normativos, com a assunção da regra-padrão em torno da adstri-

ção recomenda, pois, uma análise mais detalha-

da do conteúdo desta relação adstritiva, especial-mente posicionada pelo legislador no âmago das dinâmicas de governança pública da regulação económica em Portugal.

II. Terminologicamente, o adjetivo “adstrito” remonta ao latino “adstrictus”, do verbo “ads-tringere” que significa “ligar”, “fazer depender”. Não deve ser confundido, em particular, com o vocábulo “adstringido”, este adjetivo, por sua vez, relacionado com a característica da adstrin-gência que nos remete antes para a “contração, limitação, estreitamente” (comummente empre-gue em contexto medicinal ou biológico). A raiz comum, todavia, é precisamente o vocábulo “adstringere” e, por isso, precisamos de comple-mentar essa aproximação histórico-etimológica com contributos adicionais de outros ramos do conhecimento científico.

Embora emergindo das fontes clássicas etimo-lógicas, a adstrição não fora, até agora, empre-gue, entre nós, como conceito juridicamente operativo. A própria Constituição da República Portuguesa, nos artigos 199.º, alínea d), e 267.º, n.º 2, refere apenas os poderes de direção (para a Administração Direta), de superintendência (para a Administração Indireta) e de tutela (para a Administrações Indireta e Autónoma), não o de adstrição18. Não é pois de estranhar que, ao nível doutrinário, seja conceito absolutamente

16- No caso da lei orgânica do Banco de Portugal é certo que não encontramos referência expressa a esta relação de adstrição administrativa, mas os poderes cometidos ao Ministro das Finanças de propor a designação do governador e restante conse-lho de administração (n.º 2 e 3 do artigo 27.º da referida Lei Orgânica), bem como de exonerar os membros do conselho de administração do Banco de Portugal (n.º 3 do artigo 33.º), de designar o conselho de auditoria do Banco de Portugal (n.º 1 do artigo 41.º), de presidir à respetiva comissão de vencimentos (alínea a) do artigo 40.º) ou ainda de aprovar o relatório, o ba-lanço e as contas anuais de gerência (n.º 1 do artigo 54.º) não nos suscitam dúvidas quanto à “relação administrativa adstritiva” estabelecida entre o Banco de Portugal e o membro do Governo responsável pela área das finanças.

17- Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 473/99, de 8 de novembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 232/2000, de 25 de setembro, e pelo Decreto-Lei n.º 183/2003, de 19 de agosto, e alterado republicado pelo Decreto-Lei n.º 169/2008, de 26 de agosto.

18- O artigo 199.º, alínea d), da Constituição da República Portuguesa, estabelece a superintendência como relação adminis-trativa típica entre o Estado e a Administração Indireta, reservando a tutela administrativa para o enquadramento da relação que se estabelece entre o Estado e a Administração Autónoma. No essencial, na diferenciação entre Administração Indireta e Administração Autónoma (Moreira, 1997) podemos sistematizar duas diferenças essenciais: (i) a Administração Autónoma, contrariamente à Administração Indireta, tem capacidade de autodefinição da orientação político-administrativa, ou seja, de autogoverno; (ii) por isso, o Governo não pode impor à Administração Autónoma orientações ou diretivas, como normalmente

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omisso dos manuais de Direito Administrativo, quer dos mestres da escola de Coimbra, quer nos meios académicos de Lisboa. Como é sabido, a doutrina esgrime argumentos e procura siste-matizar dogmaticamente (apenas) em torno das três formas clássicas de relação administrativa interorgânica: a hierarquia (externa), a superin-tendência e a tutela19. Este panorama é replicado ao nível jurisprudencial nacional, sem vestígio, portanto, de uma novel adstrição administrativa como relação permanente intersubjetiva.

Deparámo-nos, é certo, com uma menção iso-lada em Vital Moreira (1997: 346) a “institutos públicos adstritos a uma entidade pública terri-torial”, mas para fazer contraponto, afinal, con-forme sustentado pelo Autor, precisamente em relação às autoridades administrativas indepen-dentes, não nos permitindo, assim, avançar na delimitação do conceito, antes redobrar, agora com laivos de perplexidade, o ensejo de prosse-guirmos com a nossa investigação.

III. Vejamos, assim, se nos podemos socorrer do Direito Comparado e de alguma fonte normati-va internacional que tenha servido de inspiração jus-administrativa ao legislador nacional, no em-prego da relação de adstrição entre as entidades reguladoras e o Governo.

O cenário comparatista junto de outras ordens jurídicas e Administrações Públicas é também ele grosso modo omisso ou mesmo equívoco. Com efeito, nas ordens jurídicas de matriz con-tinental, com exceção de Espanha, como vere-mos, não descortinamos o reconhecimento da relação administrativa adstritiva, antes pelo con-

trário: em França, o órgão “rattaché”, na Alema-nha, a relação de “zuschreibung” ou ainda, em Itália, o ente administrativo “attacato”, como “ente anexado ou subordinado”, todos traduzí-veis diretamente por “adstrito” ou “dependente”, remetem-nos afinal para a Administração Indi-reta tradicional e, portanto, para o vínculo típico da superintendência ou tutela que se estabelece entre os institutos públicos e o Estado, “como administração-mãe”. Como habitualmente acon-tece na consulta à tradição jurídica anglo-saxó-nica, o conceito jus-administrativo de “attached” também não nos permite prosseguir com sucesso nesta senda, reconduzindo-nos, desta feita, a um modelo de dependência funcional e de subordi-nação a diretrizes gestionárias e de natureza ad-ministrativa que não se coaduna com a natureza das entidades reguladoras como entidades admi-nistrativas independentes.

É, todavia, no panorama legislativo e doutriná-rio espanhol (Palasí, 1994; Pastor, 1988), bem como, por osmose, no espaço ibero-americano de língua castelhana (Urbina, 2015), que encon-tramos uma evidência mais marcada da rele-vância da adstrição administrativa, pois é usual o emprego do conceito de “adscripción”, tradu-zindo a relação entre o ente “adscrito” e o ente “adscritor”. Não obstante, apesar do paralelismo promissor, uma análise mais aprofundada per-mite-nos concluir que a expressão é empregue indiferenciadamente quer para, por exemplo, se referir a entes administrativos com e sem perso-nalidade jurí dica, quer a entidades administrati-vas ora da Administração Direta, ora das Admi-nistrações Indi reta, Autónoma (autarquias) ou

acontece na Administração Indireta, nos termos do poder de superintendência, o qual inclui o poder de orientação, de emissão de diretivas ou ainda de controlo da conformidade da atuação do ente superintendido com a orientação político-administrativa estabelecida pelo Estado-superintendente. Permitimo-nos, nesta altura, este ponto de ordem, pois, já adiante, necessitaremos de cruzar estes conceitos com o de delimitação entre, por um lado, Administração Indireta, Administração Autónoma e Admi-nistração Independente e, claro, por outro lado, da própria adstrição administrativa.

19- Freitas do Amaral (1993: 276-277) enuncia os denominados “organismos dependentes”, exemplificando com o Banco de Portugal, mas reconduzindo-os, inclusive o Banco Central, à sujeição à tutela e superintendência do Governo, o que, atualmente, em particular no que respeita à superintendência, não tem adesão ao enquadramento normativo e de praxis de governança pública vigente.

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A INDEPENDÊNCIA DA CMVM NO CONTEXTO DA ADSTRIÇÃO ADMINISTRATIVA E DA REGULAÇÃO FINANCEIRA EM REDE : 107

Indepen dente (Banco Central ou Tribunais, por exemplo), quer ainda para traduzir uma “vin-culatividade vertical” inter-orgãos, quer afinal para abarcar casos de “mera arrumação funcio-nal e institucional” de determinado órgão junto de outro órgão ou entidade20.

Assim, como vimos, entre a omissão, o equívoco ou a amálgama indiferenciada de emprego dís-par do conceito, consideramos que devemos dar mais um passo em frente e buscar noutras para-gens e campo científico, ainda que complemen-tar, as respostas que ambicionamos.

IV. Consideramos, precisamente, que a Ciência da Administração, com o enfoque na nova gover-nança pública, tendo por base os traços essenciais do fenómeno abraçado pela nova gestão pública de agencificação, pode facultar-nos o contributo derradeiro para explicitarmos o conceito da ads-trição administrativa e, com isso, passarmos a utilizá-lo simultaneamente como chave sistema-tizadora da Administração Independente em ge-ral, e das entidades reguladoras económicas em particular.

A adstrição administrativa evidencia, com efeito, um relacionamento dual entre o nível admi-nistrativo, das entidades reguladoras, e o nível político, do Governo e, ou, do Parlamento. Por um lado, o legislador pretende “ligar”, “asso-ciar” cada entidade reguladora a um membro do Governo específico, responsável no “órgão su-perior da Administração Pública” (artigo 182.º da Constituição da República Portuguesa) por promover, individual ou colegialmente, um con-junto legislativamente delimitado e tipificado de atos de natureza administrativo-política em rela-ção às entidades reguladoras, conforme tivemos oportunidade de sistematizar antes a propósito da CMVM. Por outro lado, é patente o reforço estatutário de independência destas entidades

em relação às instâncias políticas, pois a osten-siva omissão quanto aos poderes de tutela admi-nistrativa (quando antes proliferavam nos nor-mativos entretanto revogados que disciplinavam o regime destes entes reguladores), substituídos por uma relação e poderes tipificados de adstri-ção administrativa, inculca necessariamente no intérprete e aplicador da lei um dever de buscar respostas num novo patamar de enquadramento da governança pública destas entidades.

Atente-se, com efeito, que a Lei-quadro não afronta a Constituição da República Portu guesa, como poderia resultar de uma leitura mais apres-sada do n.º 2 do artigo 267.º da Lei Fundamen-tal, ao acrescentar uma nova modalidade de po-deres administrativos entre órgãos e entidades da Admi nistração Pública. Na nossa opinião, o legis lador ordinário conduziu, antes, habil mente, um exercício de recorte mais fino do tipo de po-deres que se pretende acolher nos dinamismos que se estabelecem ao nível da relação entre poder político e poder administrativo-regulador, potenciando a abertura que o texto constitucio-nal parece consentir ao autonomizar as entidades administrativas independentes no n.º 3 do pre-ceito constitucional em causa, em conjugação e contraponto com o disposto no também já men-cionado comando normativo constante da alínea d) do artigo 199.º da Constituição da República Portuguesa. A tese da eventual recondução li-near das entidades administrativas independen-tes à Administração Indireta, e necessariamente à também linear aplicação da dogmática em tor-no da tutela administrativa, não permitiria com-preender a vontade do legislador constitucional em autonomizar a Administração Independente no n.º 3 do artigo 267.º, nem seria compaginá-vel com o acervo abundante de diplomas legais que norteiam, estatutariamente, a atividade de entidades administrativas independentes que

20- Em V. Moreira e F. Maçãs (2003), constatamos, na parte com descritivo institucional de autoridades administrativas inde-pendentes em Espanha, a tradução direta de “adscripción” para “adstrição”.

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“funcionam junto” da Assembleia da Repú-blica (p.ex. Comissão Nacional de Eleições ou a Comis são Nacional de Proteção de Dados) ou do Governo (p.ex. Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública) e agora também das entidades reguladoras económicas através da referida Lei-quadro.

V. De qualquer modo, estaremos, por certo, pe-rante uma fase de transição e de confirmação, ou não, destas tendências na intersecção entre a Ciência Jurídica e a Ciência da Administrativa, não resultando ainda claro se a inovatória ads-trição administrativa tem uma efetiva vocação expansiva e agregadora das soluções de gover-nança pública que vamos encontrando nas diver-sas entidades administrativas independentes ou antes permanecerá acantonada no sub-universo das entidades reguladoras e com o futuro incerto dependendo da construção científica vindoura da doutrina e jurisprudência administrativistas.

A este propósito, com particular atualidade, im-portará seguir de perto o desenlace do processo legislativo relacionado com a revisão dos Esta-tutos da Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública, cuja Proposta de Lei (n.º 333/XII) parece ir no sentido de manter a fórmula de entidade independente que “funciona junto do membro do Governo responsável pela Administração Pública”, não aderindo à solução da adstrição administrativa, por um lado, e man-tendo, por outro lado, esta entidade indepen dente “junto do Governo”, quando o sentido da revisão estatutária pretende assumidamente reforçar os deveres de accountability e “ligação” ao Par-lamento e, afinal, esta entidade administrativa independente ser, atualmente, a única entidade independente a “funcionar junto do Governo”, já que as outras entidades administrativas inde-pendentes ou “funcionam junto da Assembleia da República” ou têm regime estatutário omisso nesse ponto (Entidade Reguladora da Comunica-ção Social) ou ainda, como vimos, encontram-se “adstritas ao Governo”, com um grau muitíssimo elevado de independência e autonomia funcio-nais e institucionais.

VI. Completaremos este breve excurso em tor-no do novo conceito de adstrição administra-tiva, com uma anotação adicional relativamente ao posicionamento das entidades reguladoras, como entidades administrativas independentes, no contexto mais amplo das tipologias institu-cionais no seio da Administração Pública, ape-nas porque tal esclarecimento redobra a relevân-cia do estudo da Ciência da Administração em relação à fenomenologia associada à atividade destes entes administrativos e respetiva gover-nança pública.

É pacífico na doutrina administrativista nacio-nal que a Administração Pública Indireta traduz a prossecução de atribuições administrativas do Estado através de outros entes que não o Es tado propriamente dito. Esses organismos criados pelo Estado para prosseguirem certos interesses estaduais constituem a Administração Indireta (Moreira, 1997). Reconhecendo Marcello Cae-tano (1973) ou Freitas do Amaral (1994) a multi-configuração da administração indireta, quer, por exemplo, respetivamente, no reconheci mento de “outras administrações indiretas ao lado da admi nistração indireta do Estado” ou de “sub-institutos públicos”, é um facto que esses entes ou organismos públicos evidenciam uma natu-reza instrumental, de subordinação ao Es tado, enquanto pessoa coletiva de Direito Público, que emite diretivas (não ordens, é certo, como acontece na Administração Direta, segundo o paradigma hierárquico) sobre as linhas gerais de prossecução das atribuições da pessoa cole-tiva integrada na Administração Indireta. Como ensina Freitas do Amaral, por exemplo, os dois principais tipos organizativos da Administração Indireta são os institutos públicos e as empresas públicas, entes com personalidade, património e pessoal próprio, praticando atos próprios, mas reconduzindo-se, afinal, ainda à administração estadual, sujeitas à superintendência do Estado.

Se, face ao exposto, parece ser pacífica a não recon dução das autoridades administrativas inde-pendentes à esfera da Administração Indireta, já

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resulta maior dificuldade da delimitação tipoló-gica entre Administração Autónoma e Adminis-tração Independente. Este ponto é, por exemplo, relevante atendendo ao referido enquadramento constitucional para a sujeição da Administração Autónoma aos poderes de tutela, os quais, atento o princípio incontestado da tipicidade legal da tutela administrativa (não existe tutela se não existir previsão legal nesse sentido), só seriam aplicáveis às autoridades administrativas inde-pendentes se estas estivessem comprimidas na Administração Autónoma.

Aqui chegados, não sendo esta a sede para nos espraiarmos em considerações jurídicas sobre a natureza aprofundada das diversas Adminis-trações que coabitam no seio da Administração Pública Portuguesa, seguiremos os Mestres que, doutamente, se têm debruçado sobre esta temá-tica.

Não acompanhamos, com efeito, por exemplo, Vieira de Almeida (2011) que sustenta a recon-dução das entidades reguladoras ao um universo (atípico) de “Administração Indireta Indepen-dente”, pois consideramos que tal revela-se to-talmente incompatível com o elenco de poderes admitidos pela lei para o Governo ou Parlamento em relação a este tipo de entidades, desde logo a superintendência ou mesmo a tutela, que dei-xou de ser prevista pela lei para regular as rela-ções administrativas destas entidades regulado-ras com as instâncias políticas, antes remetendo agora para a tal adstrição administrativa. O pró-prio douto Autor acaba por reconhecer, de certa forma, a dificuldade ínsita à sua opção pois re-ferencia, para estes casos “uma forma ténue ou oblíqua, à tutela ou, pelo menos, à influência do Governo” (Vieira de Almeida, 2011: 94).

Aderimos antes ao pensamento de Vital Mo reira (1997: 126) que, sobre este ponto específico, ensina que “designa-se por administração inde-pendente toda a administração infra-estadual prosseguida por instâncias administrativas não integradas na administração direta do Estado e livres da orientação e da tutela estadual, sem to-

davia corresponderem à auto-administração de quaisquer interesses organizados”, como acon-tece na Administração Autónoma, permitimo--nos nós acrescentar, designadamente com as autarquias, certas ordens profissionais ou asso-ciações públicas de regime legal qualificado.

Consideramos, assim, que, no atual enquadra-mento legal, as entidades reguladoras integram a Administração Independente, reproduzindo as características de autonomia, independência e imunidade tutelar governamental de mérito e mesmo de legalidade, nos moldes tradicionais, se atendermos a que o controlo de legalidade é prima facie de natureza jurisdicional e não- -governamental (artigo 46.º da LQER e artigos 38.º e 39.º dos ECMVM). No limite, afinal, e no que respeita a este ponto nevrálgico, emancipan-do-se até face ao enquadramento constitucional da clássica tutela governamental de legalidade para as autarquias locais (como expoente má-ximo da Administração Autónoma) – artigo 242.º, n.º 1, da Constituição da República Por-tuguesa.

4. A GOVERNANÇA PÚBLICA DA REGULAÇÃO FINANCEIRA EM REDE

I. O enquadramento normativo que rege a natu-reza, a missão e a atividade da CMVM não deixa, assim, margem de dúvidas quanto ao reafirmar do estatuto de independência formal e material das entidades reguladoras financeiras nacionais, pressupondo um princípio jurídico-formal de separação rígida entre a esfera de atuação do conselho de administração e o envolvimento do Governo ou do Parlamento na esfera de poderes e competências da CMVM, Banco de Portugal e da ASF, o qual é, por sua vez, densificado com-plementarmente através de normas de circuns-crição tipificada dos termos e perfis associados à designação dos membros dos órgãos de admi-nistração, respetiva inamovibilidade ou modo e âmbito de definição do seu estatuto funcional e remuneratório.

A matriz segregacionista entre os planos admi-nistrativo-regulatório e o político – eloquente-

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mente ilustrado pela inovadora adoção no nosso panorama jus-administrativista da relação de adstrição, por certo mais ténue e difusa do que a até agora empregue tutela administrativa – é também replicada nos cuidados colocados pela lei na delimitação das relações de consulta, aus-cultação, arbitragem e no dirimir de conflitos, gestão de reclamações de investidores e compo-sição de interesses a cargo da entidade regula-dora para com os regulados e supervisionados, afinal, para com o mercado propriamente dito.

II. Devemos, no entanto, aprofundar esta aná-lise de cariz normativista, combinando-a com a praxis que é possível testemunhar na relação ins-titucional entre (i) as três entidades reguladoras financeiras, (ii) destas com o Governo e ainda (iii) entre os reguladores e o mercado regulado e supervisionado. Com efeito, uma análise com-plementar ao enquadramento jurídico, mais fina no recorte do tipo de relações e equilíbrios de poder e influência, mais ou menos instituciona-lizados, afigura-se-nos útil e importante para, no final, podermos sistematizar, a partir desse le-vantamento documental-empírico, se quisermos, uma síntese das principais características do atual perfil de governança pública da regulação financeira em Portugal.

Primeiramente, de entre o universo dos habituais instrumentos ativos de coordenação e negocia-ção horizontal inter-institucional, destaca-se o denominado Conselho Nacional de Superviso-res Financeiros (CNSF), constituído a partir de 2000, com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 228/2000, de 23 de Setembro, e no qual têm assento as três entidades reguladoras financeiras. O CNSF exerce funções de coordenação entre as autoridades de supervisão do sistema finan-ceiro no exercício das respetivas competências de regulação e supervisão das entidades, bem como assume funções consultivas no âmbito da política macroprudencial nacional. A lei confere direito de voto aos membros do CNSF, pelo que não se trata de órgão que delibere unicamente por consenso, atestando uma natureza atípica de

órgão de coordenação vinculativa já que uma minoria no CNSF pode ainda assim ficar vin-culada por deliberação deste Conselho contra o sentido do seu voto.

Este tipo de coordenação, excecionalmente vin-culante para os membros do CNSF mediante deli beração por maioria, redobra na sua atipici-dade se atendermos ao facto de, na composição deste Conselho, o Banco de Portugal assumir sempre a presidência do mesmo, bem como a maioria deliberativa neste órgão, já que, além do Governador e presidentes da ASF e da CMVM, também tem assento no CNSF o membro do conselho de administração do Banco de Portugal com o pelouro da supervisão das instituições de crédito e das sociedades financeiras e, como é sabido, no silêncio da lei especial (como é o caso do CNSF), o presidente do órgão colegial tem voto de qualidade.

III. Num segundo plano, na relação entre as entidades reguladoras financeiras e o Governo, destacamos dois exemplos de configuração da governança pública do setor da regulação finan-ceira em torno, por um lado, de um formato de paridade entre o Governo e as entidades regula-doras e, por outro, de uma natureza diretiva miti-

gada por parte do Governo, ambas distintas entre si, naturalmente, mas complementares no con-tributo para a identificação da chave diagnóstica dos atuais instrumentos ativos de gover nança em

rede da regulação financeira em Portugal.

Por um lado, atendamos ao denominado Co-mité Nacional para a Estabilidade Financeira (CNEF), criado em 2007 com o objetivo de pro-mover mecanismos de cooperação para o re forço da estabilidade financeira a nível nacional, a par-tir de um memorando de entendimento entre o Ministério das Finanças e as três entidades regu-ladoras financeiras portuguesas, visando, desig-nadamente, facilitar a prevenção e a gestão de situações de crise no setor financeiro. Embora intermitentemente ativo ao longo dos anos, em particular arredado do contexto de gravosa cir-cunstância de crise para a estabilidade do sis-

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tema bancário e financeiro nacional, deteta-se, recentemente, eventual reposicionamento deste Comité sui generis no panorama de parceria, em rede, entre Governo e entidades reguladoras, ao depararmos com a Resolução da Assembleia da República n.º 72/2015, de 2 de julho de 2015, e respetivas recomendações ao Governo no sen-tido de serem promovidas e garantidas “a imple-mentação de medidas para uma eficiente colabo-ração e articulação entre as várias entidades de supervisão financeira”, designadamente através de maior centralidade do papel do CNEF, com alargamento de representatividade institucional do mesmo.

Por outro lado, destacamos a centralidade da atividade de coordenação dos gabinetes gover-namentais do Ministério das Finanças em rela-ção à atividade das três entidades reguladoras financeiras no âmbito dos mandatos conferidos gover namentalmente ao Banco de Portugal, ASF e CMVM para assessorar o Governo, por exemplo, na preparação de projetos legislativos na área da regulação financeira setorial. Apesar de se tratar de uma relação de subordinação for-mal do nível técnico veiculado pelos reguladores em relação ao nível político representado pelo membro do Governo ou pelo staff do gabinete governamental, o certo é que o quase-monopólio de facto dos recursos técnicos e conhecimento especializado em certa área da regulação finan-ceira por parte das entidades reguladoras finan-ceiras acaba depois por reequilibrar a relação formal baseada na supremacia do nível político, mitigando afinal a condução diretiva dos traba-lhos e da atividade inter-institucional a partir do gabinete governamental em causa.

IV. Por fim, num terceiro plano, necessariamente combinável com estes dois últimos para perce-cionarmos em pleno as dinâmicas da governança regulatória financeira, importa notar os termos da relação que se estabelece entre as entidades reguladoras e o mercado regulado propriamente dito.

Neste caso, não estão em causa mecanismos, mais ou menos institucionalizados, de coordena-ção ou cooperação interinstitucional, mas antes instrumentos de consulta e de reportabilidade e fundamentação (accountability) junto do mer-cado das soluções e opções regulatórias assumi-das pela entidade reguladora. Assente-se, por-tanto, neste enfoque participativo e de instância de controlo de facto da qualidade da regulação e supervisão por parte do mercado e seus agentes.

No caso das três entidades reguladoras finan-ceiras nacionais, constata-se, no plano legal--estatutário, que todas estas autoridades estão vinculadas a dever de consulta prévia e de funda-mentação das suas propostas regulatórias, bem como de qualquer medida com eficácia externa, devendo ser proporcionada a intervenção de en-tidades destinatárias da atividade da entidade reguladora, das associações de utentes, investi-dores ou consumidores relevantes e do público em geral.

A natureza obrigatória dos conselhos consulti-vos no Banco de Portugal, na ASF e na CMVM, com tipificação da representatividade pretendi-da ex lege nestes órgãos de consulta imperativa pelos conselhos de administração das entidades reguladoras financeiras, reconfirma a relação de consultatividade entre reguladores e regulados, não se descortinando um plano de suposta coor-denação interinstitucional, como detetámos nos outros dois planos anteriores, nem sequer entre entidades reguladoras e associações representa-tivas de interesses económicos e financeiros ou ainda de consumidores ou investidores financei-ros. A incipiência (inexistência?) de autopoderes regulatórios dessas associações representativas – porventura, apenas com a exceção da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas – justifica esta rela-ção assimétrica, quase periférica no plano das relações institucionais e formais, do mer cado para com as entidades reguladoras financeiras (Coglianese e Mendelson, 2010).

V. Ao pontuarmos a nossa análise com exemplos díspares de procedimentos e de modos de arti-

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culação, concertação, negociação e coordenação estabelecidos, legal ou voluntariamente, entre as entidades reguladoras financeiras nacionais e destas para com o Governo, estamos em condi-ções de sistematizar o panorama de gover nança pública da regulação financeira em Portugal, essencialmente em rede (networking), em inte-rações mais ou menos institucionalizadas entre reguladores, instância política com relação de adstrição administrativa e, mais desarticulada-mente, com o mercado regulado.

Detetamos, afinal, a subsunção das modalida-des de coordenação inter-institucional (CNSF, CNEF, task forces e grupos de trabalho ou in-tervenção via gabinetes governamentais), bem como do fenómeno participativo do mercado através da dinâmica da consulta pública regu-latória obrigatória, através de diversos graus de vinculatividade / consensualidade decisória e correlação / segregação institucional, conforme exposto.

Também este enfoque de governança pública da regulação em rede assume, assim, relevância na compreensão mais plena da independência das entidades reguladoras, em particular da CMVM, no relacionamento com as outras entidades re-guladoras financeiras, com o Governo e com o mercado supervisionado e regulado.

5. SÍNTESE CONCLUSIVA

I. Sob o pano de fundo de um incontornável “capi talismo regulatório” (Levi-Faur, 2005; Braithwaite, 2008) e, portanto, já no século XXI, numa fase de amadurecimento do “Estado-Regu-lador” (Majone, 1999), deparamos com um fenó-meno à escala global de criação e, subsequente e gradual, reforço de entidades reguladoras inde-pendentes (independent regulatory agencies), ou seja, entes públicos, especializados tecnicamente na regulação e supervisão de determinado setor com relevância sócio-económica, que não estão sujeitos às modalidades clássicas de controlo po-lítico-administrativo por parte do Go verno como instância de cúpula da Administração Pública (hierarquia, superintendência ou tutela).

A expansão deste tipo de entidades administra-tivas tem suscitado crescente interesse junto da doutrina que vem investigando na Ciência da Administração já que se trata de fenómeno glo-balizado e, para mais, com manifesta criticidade para efeitos de (re)legitimação e accountability da atuação pública estadual prosseguida devo-lutivamente através destas entidades regulado-ras independentes (Braithwaite, 1999; Jordana, Levi-Faur e Fernandez, 2011).

II. A realidade institucional e procedimental da governança pública da regulação não se pode recon duzir, simplisticamente, a uma rede homo-génea de laços institucionais de coordenação e de cooperação, tendencialmente horizontalizados e paritários por entre a teia agencificada de entes autónomos e tecnicamente auto-suficientes.

Com efeito, o enfoque escolhido neste texto so-bre o panorama das entidades reguladoras em Portugal permite vislumbrar a realidade com-plexa – e dinamicamente complexificante – da governança pública regulatória, muito provavel-mente extrapolável além-fronteiras e além-seto-rial atendendo ao facto de se tratar de realidade impulsionada e concetualizada, na Europa, a par-tir do Direito Comunitário ou, globalmente, de práticas de mercado e de regulação dos centros económicos e financeiros “mais sofisticados” e exportadores de dinâmicas de benchmarking e de uniformização.

Esta “nova complexidade” (Christensen, 2006) é multipolar, quer institucionalmente porque o paradigma da nova gestão pública postula a espe cialização e a proximidade institucional às dinâmicas de mercado concretamente destinatá-rias da ação pública (regulatória), quer procedi-mentalmente porque os eixos da coordenação, negociação e interação em “rede”, que a nova governança pública tanto sublinha, são multi-facetados e convivem com núcleos de poder e de influência variáveis conforme os temas e os interesses-conjunturas em causa.

III. A lei portuguesa (LQER, diplomas estatu-tários) consagra abundantes referências à inde-

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pendência regulatória, em particular no respeita à prossecução pela CMVM das atribuições que lhe são cometidas pela lei.

A partir das diversas dimensões ou sentidos da conduta regulatória independente, legalmente suportados, sustentamos a agregação da inde-pendência regulatória em torno de dois grandes eixos: a independência institucional e a indepen-dência autonómica.

O Direito Europeu e o melhor benchmarking in-ternacional oferecem-nos múltiplas indicações que suportam a bondade da opção do legislador nacional em privilegiar o estatuto de indepen-dência das entidades reguladoras em Portugal, em particular aquelas que operam no setor finan-ceiro, conforme anotámos à luz do direito comu-nitário dos valores mobiliários, OICV/IOSCO e Fundo Monetário Internacional.

Além do carácter polissémico, a independência traduz sempre uma contraposição, por afirma-ção, em relação a outra fonte de interesse ou de conduta que com ela se interseta e que pode res-tringir o exercício independente dos poderes pú-blicos que lhe são confiados ex lege. A lei é, por isso, bastante parcimoniosa na tipificação dos poderes governamentais em relação à atividade da CMVM, complementando essa abordagem muito restritiva e excecionalizante quanto à esfe-ra de atuação do Governo em relação à entidade reguladora, com deveres também tipificados de accountability da CMVM em relação às institui-ções parlamentar e governamental.

IV. Na confluência desta dinâmica agencifica-dora, irmanada no debate da boa governança pú-blica, ao serviço da independência regulatória, mas também da accountability e transparência da atuação das entidades reguladoras económi-cas, deparamos com um contributo inovador do lado da legiferação nacional, precisamente atra-vés da Lei-quadro das entidades reguladoras, ao consagrar uma novíssima modalidade de relação administrativa interorgânica, a par das há muito conhecidas hierarquia, superintendência e tutela: a adstrição administrativa.

A relação ou vínculo adstritivo das entidades reguladoras para com o Governo remete-nos, precisamente, para as especificidades que são reconhecidas à denominada Administração Inde pendente, no seu recorte, jusconstitucional e doutrinário, face à Administração Indireta e mesmo em relação à Administração Autónoma.

Importará, por sua vez, acompanhar de perto, sob o olhar atento das Ciências Jurídica e da Administração, o percurso deste novel conceito da “adstrição administrativa”, nomeadamente se extravasará, pela mão do legislador, o âmbito estrito das entidades reguladoras, como subespé-cie das entidades administrativas independentes, nomeadamente se enquadrará também, a prazo, o estatuto vincadamente parlamentarista de ou-tras entidades administrativas independentes que funcionam “junto do Parlamento” ou ainda de outras que estão a consolidar e aprimorar o rigor do respetivo estatuto (como é o caso da Entidade de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública).

V. O debate centra-se, assim, na nova governança pública, neste caso com o enfoque na regulação como instrumento privilegiado de composição dos interesses de mercado e do macro inte resse democraticamente legitimado e legitimador do iter do tráfego jurídico, económico, em suma social.

Os mecanismos de salvaguarda da boa gover-

nança pública – com a independência orgânica, funcional e técnica à cabeça – na prossecução do interesse público e da prevenção e mitigação do risco de captura particularista e clientelar no plano da regulação – especialmente exacerbado no contexto financeiro-económico – estão pois indissoluvelmente ligados às dinâmicas de code-cisão, coordenação e negociação inter-organiza-cional, devendo estas continuar a ser estudadas e enquadradas segundo as Ciências Jurídica e da Administração, de modo a perspetivarmos as suas potencialidades e mais-valias para o alme-jado bem comum e tentarmos, por sua vez, pre-venir os riscos inerentes às suas fragilidades e

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autobloqueios nos processos de gestão e gover-nança.

Trata-se, afinal, de adotarmos, a vantagem do posicionamento da meta-governança (Jessop, 2002) como instância reguladora da qualida-de dos instrumentos e das dinâmicas adminis-trativas, assumindo-se como resultado e justi-

ficação de validação democrática da estrutura administrativa regulatória em rede, cada vez mais adstrita, enquanto expressão também de enquadramento de uma conduta independen-te do regulador, e, portanto, mais fragilmente complexa, é certo, mas, simultaneamente, me-lhor preparada para enfrentar novos e exigentes desafios.

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A INDEPENDÊNCIA DA CMVM NO CONTEXTO DA ADSTRIÇÃO ADMINISTRATIVA E DA REGULAÇÃO FINANCEIRA EM REDE : 115

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CONTRIBUTO PARA O DEBATE SOBRE O(S) REGIME(S) JURÍDICO(S) APLICÁVEL(EIS) AQUANDO E APÓS A MEDIDA DE RESOLUÇÃO APLICADA AO BES

MARIA LUÍSA AZEVEDO*

do enquadramento europeu para a recuperação e a resolução de instituições de crédito e de empre-sas de investimento.

I. A RESOLUÇÃO DO BES

É pública e notória a deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal to mada em reunião extraordinária daquele órgão, pelas 20h00m, do dia 3 de agosto de 2014, onde, pela primeira vez e com carácter de urgência, na sua qualidade de autoridade de resolução, o banco central determinou, ao abrigo do disposto na alí-nea b) do n.º 1 do Artigo 145.º-C do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Finan-ceiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro (RGICSF), conforme vigente à data, a aplicação de medida de resolução a uma instituição de crédito nacional (o Banco Espírito Santo, S.A.), consubstanciada na criação de um banco de transição (o Novo Banco, S.A.) e na transferência parcial de ativos, passivos, elemen-tos extrapatrimoniais e ativos sob gestão daquele para este.

Àquela deliberação do Banco de Portugal se-guiram-se outras tantas deliberações e comuni-cados, ora tendentes a complementar, retificar e/ou a clarificar os termos ou alcance daquela deliberação de 3 de agosto de 2014, ora a emitir recomendações ao banco de transição1.

*- Jurista, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.As opiniões expressas neste texto são as do autor, e não necessariamente as da CMVM.

1- Umas e outros encontram disponíveis em https://www.bportugal.pt/pt-PT/OBancoeoEurosistema/Esclarecimentos publicos/Paginas/infobes.aspx

NOTA PRÉVIA

A vigência, no nosso ordenamento jurídico, das disposições da Diretiva 2014/59/UE, do Parla-mento Europeu e do Conselho de 15 de maio de 2014, que estabelece um enquadramento para a recuperação e a resolução de instituições de cré-dito e de empresas de investimento, com a con-sequente consagração de um leque mais vasto de poderes do Banco de Portugal não significa, for-çosamente, a possibilidade do seu exercício no âmbito da medida de resolução do BES.

Se bem que, através da Lei n.º 23-A/2015, de 26 de março, que procedeu à transposição daquela diretiva, se esclarecem alguns aspetos e até dis-sipam algumas das dúvidas que terão surgido aquando da aplicação, pelo Banco de Portugal ao BES, de medida de resolução, a complexida-de da realidade e a experiência do caso concreto, constatados, desde 3 de agosto de 2014, e ainda vividos em Portugal, constituem terreno fértil para a busca e demonstração da bondade das so-luções gizadas pelo direito e das opções tomadas ou ainda a tomar pelo destinatário das normas.

São muitos os aspetos do regime jurídico da resolução que abrem palco a um debate que se advinha profícuo e do qual, esperamos, Portugal venha a contribuir positivamente para a desejável clarificação, aperfeiçoamento e uniformização de regimes e entendimentos sobre o recém-cria-

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120 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

Desde então até aos dias de hoje, o tema da reso-lução bancária e seus efeitos tem suscitado as mais variadas reflexões, reações, debates e dú-vidas a que não escapam as relativas à aprecia-ção da constitucionalidade e/ou legalidade da me dida2, à definição dos poderes da autoridade de resolução a ela associados e as relativas ao regime a que ficam sujeitos os instrumentos fi-nanceiros emitidos pela entidade objeto de reso-lução e, por essa via, os seus titulares, detentores ou beneficiários.

Aquelas reflexões, reações, debates e dúvidas sobre o regime da resolução e suas implicações intensificam-se quando a instituição de crédito objeto de uma concreta medida de resolução seja também intermediário financeiro, membro de mercado regulamentado ou de sistema de negociação multilateral e/ou emitente de instru-mentos financeiros admitidos à negociação em mercado regulamentado ou sistema de negocia-ção multilateral – como sucedia com o BES – o que, só por si, pressupõe e requer a devida inter-ligação entre a autoridade de resolução e as en-tidades reguladoras e supervisoras da respetiva atividade (entre as quais se encontra a CMVM e a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fun-dos de Pensões) e também entre tis autoridades e outras entidades, sujeitas à sua supervisão (de que são exemplo, no caso da CMVM, as enti-dades gestoras de mercados regulamentados, de sistemas de negociação multilateral, de sistemas de compensação e de liquidação de operações realizadas nesses mercados ou sistemas e com as entidades gestoras de sistemas centralizados onde os instrumentos financeiros se encontrem inseridos).

Ora, a aferição da constitucionalidade e legali-dade de qualquer ato administrativo e dos seus efeitos pressupõe a clarificação e interpretação

da lei aplicável definidora não apenas das exi-gências prévias (de necessidade, adequação e proporcionalidade), como dos poderes que, an-tes dela e a cada momento, assistem à entidade que a delibera.

No caso da resolução do BES, estas foram e continuam a ser tarefas que assumem redobrada complexidade, porquanto é incontornável o facto de aquela deliberação do Banco de Portugal ter sido tomada já em período de vigência da Dire-tiva 2014/59/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio – que estabelece um enquadramento para a recuperação e a resolução de instituições de crédito e de empresas de inves-timento e altera a Diretiva 82/891/CEE do Con-selho e as Diretivas 2001/24/CE, 2002/47/CE, 2004/25/CE, 2005/56/CE, 2007/36/CE, 2011/ /35/CE, 2012/30/EU e 2013/36/EU e os Regula-mentos (UE) n.º 1093/2010 e (UE) n.º 648/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho (dora-vante, abreviadamente Diretiva da Recupera-ção e Resolução Bancária ou DRRB) – e assu-midamente com base em disposições alteradas do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto--Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro (RGICSF) que visaram transpor, ainda que parcialmente, aquela diretiva.

Com efeito, a DRRB entrou em vigor no vigé-simo dia seguinte ao da sua publicação no Jornal

Oficial da União Europeia. Tendo esta publi-cação ocorrido no dia 12 de junho de 2014, a entrada em vigor da diretiva ocorreu no dia 2 de julho de 2014.

O Artigo 31.º da DRRB, estabelece a obrigação dos Estados-Membros adotarem e publicarem, até 31 de dezembro de 2014, as disposições legislativas, regulamentares e administrativas

2- Vd. Professor Doutor LUÍZ CABRAL de MONCADA, “ Os poderes de resolução do Banco de Portugal e o Banco Espí-rito Santo”, JURISMAT, Portimão, n.º 6, pp. 99-124.

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CONTRIBUTO PARA O DEBATE SOBRE O(S) REGIME(S) JURÍDICO(S) APLICÁVEL(EIS) APLICADA AO BES : 121

necessárias para dar cumprimento à diretiva, obrigando-os, ainda, a aplicar essas disposições a partir de 1 de janeiro de 2015.

No plano do ordenamento jurídico nacional, o Decreto-Lei n.º 31-A/2012, de 10 de fevereiro, havia já instituído uma nova disciplina legal – substitutiva do regime de saneamento então pre-visto no Título VIII do RGICSF – caracteriza-da pela existência de três fases de intervenção distintas: intervenção corretiva, administração provisória e resolução. Nessa sede, a fase dita de resolução compreendia a possibilidade de aplicação de dois tipos de “medidas de último

recurso”, destinadas a defender interesses essen-ciais como os da estabilidade financeira e o da continuidade de funcionamento de sistemas de pagamento, o primeiro dos quais correspondia à alienação total ou parcial da atividade de uma instituição de crédito a outra ou ouras institui-ções a operar no mercado, e o segundo tipo, por seu turno, correspondia à transferência de ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais ou ativos sob gestão para um banco de transição criado para o efeito.

Qualquer uma das medidas estava reservada para a eventualidade extrema de uma instituição de crédito se encontrar em risco sério de não cum-prir os requisitos para a manutenção da autori-zação para o exercício da sua atividade e não ser previsível que a mesma consiga, num prazo apropriado, executar as ações necessárias para regressar a condições adequadas de solidez e de cumprimento dos rácios prudenciais. A sua apli-cação dependia ainda de tais medidas se mostra-rem necessárias para evitar o contágio sisté mico ou eventuais impactos negativos no plano da esta bilidade financeira, para minimizar os cus-

tos para o erário público3 ou para salvaguardar a confiança dos depositantes.

Por outro lado, e já nesse contexto, o legislador determinava que a sua aplicação devia pro curar assegurar que os acionistas da instituição de crédito, bem como os credores, assumem prio-ritariamente os seus prejuízos, de acordo com a respetiva hierarquia e em condições de igualdade dentro de cada classe de credores.

Com este diploma como pano de fundo, no final de julho de 2014, o Conselho de Ministros apro-vou um outro (Decreto-Lei n.º 114-A/2014, de 1 de agosto, que entrou em vigor no dia seguinte), contendo alterações pontuais ao referido Título VIII do RGICSF,“[c]om o intuito de clarificar e

aperfeiçoar o enquadramento legal aplicável ao

regime da resolução de instituições de crédito,

… por forma a promover as clarificações e os

aperfeiçoamentos necessários e a transpor par-

cialmente para a ordem jurídica interna a Dire-

tiva n.º 2014/59/UE, do Parlamento Europeu e

do Conselho, de 15 de maio de 2014, …”.

Assim, determinadas disposições do Título VIII do RGICSF, com a redação vigente a partir de 2 de agosto de 2014, já foram invocadas na deli-beração do Banco de Portugal, de 3 de agosto de 2014, que ditou a resolução do Banco Espírito Santo, S.A. (BES). Nelas se incluem os Artigos 145.º-B, 145.º-I e 145.º -H do RGICSF, então vi-gente.

A 4 de agosto de 2014, e tendo em conta o regi-me da DRRB, foi publicado um outro diploma – o Decreto-Lei n.º 114-B/2014, de 4 de agosto – que igualmente procedeu a alterações ao Título VIII do RGICSF, modificando a redação de dois artigos (145.º-G e 145.º I), assim alterando o re-gime aplicável aos bancos de transição.

3- Refira-se que sobre esta matéria, a DRRB é expressa ao afirmar num dos seus Considerandos: “Tendo em conta as con-sequências que a situação de insolvência de uma instituição poderá ter no sistema financeiro e na economia de um Estado--Membro, bem como a eventual necessidade de utilização de fundos públicos para a resolução de uma crise, os Ministérios das Finanças ou outros ministérios relevantes dos estados-Membros devem estar estreitamente envolvidos, desde o início, no processo de gestão de crises e de resolução – Vd. Considerando 16) da DRRB.

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122 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

Por fim, a 23 de janeiro de 2015, a Assembleia da República aprovou a Lei n.º 23-A/2015, de 26 de março, transpondo, assim, para o ordenamen-to jurídico interno, a DRRB e a Diretiva 2014/ /49/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril, relativa aos sistemas de garantia de depósitos. Do diploma não consta menção à prévia, ainda que parcial, transposição daquela diretiva ocorrida em 2014 – cfr. Artigo 1.º da Lei n.º 23-A/2015, de 26 de março.

Esta lei de transposição da DRRB para a ordem jurídica interna, ditou alterações não apenas ao RGICSF4, mas também a diversos outros diplo-mas, entre os quais:

i) a Lei Orgânica do Banco de Portugal, aprovada pela Lei n.º 5/98, de 31 de ja-neiro, conforme alterada5;

ii) o Decreto-Lei n.º 345/98, de 9 de no-vembro, conforme alterado, que regula o funcionamento do Fundo de Garantia de Crédito Agrícola Mútuo6;

iii) o Código dos Valores Mobiliários, apro-vado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de novembro, conforme alterado7;

iv) o Decreto-Lei n.º 199/2006, que regula a liquidação de instituições de crédito e sociedades financeiras com sede em Portugal e suas sucursais criadas noutro Estado membro, alterado pelo Decreto--Lei n.º 31-A/2012, de 10 de fevereiro8;

v) a Lei n.º 63-A/2008, de 24 de novembro, que estabelece medidas de reforço de so-lidez financeira das instituições de crédito no âmbito da iniciativa para o reforço da estabilidade financeira e da disponibiliza-

ção de liquidez nos mercados financeiros, conforme alterada9.

Em suma, aquando da aplicação da medida de resolução ao BES somos confrontados com a circunstância de não se encontrar integralmente transposta a DRRB, facto que, entretanto veio a ocorrer, tendo passado a vigorar, em pleno, por exemplo, os poderes nela previstos para as auto-ridades de resolução, parte dos quais haviam já sido consagrados no direito interno através do Decreto-Lei n.º 31-A/2012, de 10 de fevereiro, sendo que outros tantos, porém, apenas surgem por força da Lei n.º 23-A/2015, de 26 de março, em vigor desde 31 de março de 2015.

A atual vigência dessas disposições e conse-quente consagração de um leque mais vasto de poderes do Banco de Portugal não significa, pois, forçosamente, a possibilidade do seu exer-cício no âmbito da medida de resolução do BES.

Este é um dos muitos aspetos do regime jurí-dico da resolução que abrem palco a um debate que se advinha profícuo e do qual, esperamos, Portugal venha a contribuir positivamente para a desejável clarificação, aperfeiçoamento e uni-formização de regimes e entendimentos sobre o recém-criado enquadramento europeu para a recuperação e a resolução de instituições de cré-dito e de empresas de investimento.

II. OS NOVOS PODERES DO BANCO DE PORTUGAL DE REDUÇÃO OU DE CONVERSÃO DE INSTRUMEN-TOS DE FUNDOS PRÓPRIOS

De entre os novos poderes que, no exercício das suas funções de autoridade de resolução e para

4- Vd. Artigos 2.º a 4 da Lei n.º 23-A/2015, de 26 de março.

5- Vd. Artigo 5.º da Lei n.º 23-A/2015, de 26 de março.

6- Vd. Artigos 6.º e 7.º da Lei n.º 23-A/2015, de 26 de março.

7- Vd. Artigo 8.º da Lei n.º 23-A/2015, de 26 de março.

8- Vd. Artigo 9.º da Lei n.º 23-A/2015, de 26 de março.

9- Vd. Artigos 10.º a 12.º da Lei n.º 23-A/2015, de 26 de março.

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CONTRIBUTO PARA O DEBATE SOBRE O(S) REGIME(S) JURÍDICO(S) APLICÁVEL(EIS) APLICADA AO BES : 123

efeitos da redução ou eliminação de uma insu-ficiência de fundos próprios, isoladamente ou conjuntamente com a aplicação de uma medida de resolução, o Banco de Portugal passa, por força Lei n.º 23-A/2015, de 26 de março, a exer-cer, constam os seguintes:

a) Redução do capital social por amortização ou por redução do valor nominal das ações ou títulos representativos do capital social de uma instituição de crédito;

b) Supressão do valor nominal das ações re-presentativas do capital social de uma insti-tuição de crédito;

c) Redução do valor nominal dos créditos resul tantes da titularidade dos restantes instrumentos financeiros ou contratos que sejam, ou tenham sido em algum momento, elegíveis para os fundos próprios da insti-tuição de crédito de acordo com a legisla-ção e a regulamentação aplicáveis;

d) Aumento do capital social por conversão dos créditos referidos na alínea anterior mediante a emissão de ações ordinárias ou títulos representativos do capital social da instituição de crédito.

De acordo com o Artigo 145.º-I do RGICSF, n.º 2, com a redação alterada por aquele di ploma, aqueles poderes são exercidos em relação a quaisquer instrumentos financeiros ou contratos que sejam, ou tenham sido em algum momento, elegíveis para os fundos próprios da instituição de crédito de acordo com a legislação e regu-lamentação aplicáveis, sempre que se verifique alguma das situações previstas nas als. a) a d) desse mesmo n.º 2, entre as quais destacamos a de o Banco de Portugal, no exercício das suas funções de autoridade de supervisão ou de reso-

lução, tiver determinado que os requisitos para a aplicação de medidas de resolução previstos no n.º 2 do Artigo 145.º-E estão preenchidos e, destacamos, “não tiver sido ainda aplicada uma

medida de resolução.” (vd. al. a) do n.º 2 do Ar-tigo 145.º-I do RGICSF).

Acrescenta o Artigo 145.º-L, n.º 3 do RGICSF, na sua redação atual, que “[s]e da aplicação de uma medida de resolução resultarem prejuízos a suportar pelos credores ou a conversão dos seus créditos, o Banco de Portugal exerce os poderes previstos no Artigo 145.º-I (Poderes de redução ou de conversão de instrumentos de fundos pró-prios), imediatamente antes ou em conjunto com a aplicação da medida de resolução10.

Este é um exemplo paradigmático sobre a im-portância do timing de aplicação da medida de resolução para aferição da possibilidade legal de exercício de determinados poderes por parte do Banco de Portugal.

III. OS NOVOS PODERES DO BANCO DE PORTUGAL ASSOCIADOS À NEGOCIAÇÃO EM MERCADO REGU-LAMENTADO OU SISTEMA DE NEGOCIAÇÃO MULTI-LATERAL

Com a transposição da DRRB, foi igualmente consagrado no ordenamento jurídico nacional o poder de o Banco de Portugal solicitar à CMVM que ordene à entidade gestora de mercado regu-lamentado ou de sistema de negociação multi-lateral que proceda à suspensão ou exclusão de instrumentos financeiros da negociação – Vd. Artigo 214.º, n.º 5 do Código dos Valores Mobi-liários, conjugado com o Artigo 145.º-J, n.º 13, al. b) do RGICSF, ambos com a redação dada pela Lei n.º 23-A/2015, de 26 de março.

10- Refira-se que o Artigo 59.º n.º 3, al. a) tem a seguinte redação (destaques nosso): “Os Estados-Membros exigem que as autoridades de resolução exerçam o poder de redução ou de conversão, nos termos do artigo 60.º e sem demora, no que res-peita aos instrumentos de capital relevantes emitidos pelas instituições …, desde que se verifique uma ou mais das seguintes circunstâncias: a) Foi determinado que as condições de resolução especificadas nos artigos 32.º e 33.º se encontram preen-chidas, antes de terem sido tomadas medidas de resolução”.

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124 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

A esse poder de requerer a suspensão e exclu-são da negociação de instrumentos financeiros, acresce o de solicitar à CMVM que ordene à entidade relevante a admissão à negociação em mercado regulamentado ou em sistema de ne-gociação multilateral de novas ações ou títulos representativos do capital social da instituição de crédito objeto de resolução ou de qualquer instrumento de dívida cujo valor nominal tenha sido reduzido sem necessidade de divulgação de um prospeto aprovado nos termos do Código dos Valores Mobiliários.

O exercício desses poderes:

i) não depende do consentimento dos titu-lares de instrumentos de fundos próprios, das partes em contratos relacionados com direitos e obrigações da instituição de crédito nem de quaisquer terceiros, não podendo constituir fundamento para o exercício de direitos de vencimento an-tecipado, resolução, denúncia, oposição à renovação ou alteração de condições estipulados em quaisquer termos e condi-ções aplicáveis à instituição de crédito ou a uma entidade que com ela se encontre em relação de grupo, ou para a execução de garantias por estas prestadas relativa-mente ao cumprimento de qualquer obri-gação prevista naqueles termos e condi-ções;

ii) também não carece de deliberação da assembleia geral, nem de qualquer outro procedimento legal ou estatutariamente exigido;

iii) nem depende de prévio cumprimento dos requisitos legais relacionados com o re-gisto comercial e demais procedimentos previstos na lei, sem prejuízo do posterior cumprimento dos mesmos no mais breve prazo possível;

iv) produz efeitos independentemente de qualquer disposição legal ou contratual em contrário, nomeadamente a eventual existência de direitos de preferência dos acionistas,

v) sendo título bastante para o cumprimen-to de qualquer formalidade legal relacio-nada com o exercício daqueles poderes

(vd. Artigo 145.º-J, n.ºs 13 a 16 do RGICSF, com a redação dada pela Lei n.º 23-A/2015, de 26 de março).

Estes poderes de intervenção que o Banco de Portugal passou a ter em matéria de admissão, readmissão, suspensão ou exclusão da negocia-ção em mercado regulamentado ou sistema de negociação multilateral de instrumentos finan-ceiros associam-se, desde logo, àqueloutros de redução ou conversão de instrumentos de fundos próprios.

Poderá, no entanto, levantar-se a dúvida sobre se tais poderes relativos à negociação em mer-cado regulamentado ou sistema de negociação multilateral podem ser exercidos sem mais pelo Banco de Portugal, i.e., enquanto não associados ao exercício de determinados poderes gerais de resolução, designadamente os mencionados nas als. e) a k) do n.º 1 do Artigo 63.º da DRRB que, sintética e respetivamente, se traduzem nos se-guintes:

i) Poder para reduzir, até zero, o montante de capital ou o montante em dívida cor-respondente aos passivos elegíveis de uma instituição objeto de resolução;

ii) Poder para converter passivos elegíveis de uma instituição objeto de resolução em ações ordinárias ou outros instrumen-tos de propriedade dessa instituição ou de uma instituição de transição para a qual são transferidos ativos, direitos ou passi-vos da instituição de crédito;

iii) Poder para extinguir os instrumentos de dívida emitidos por uma instituição ob-jeto de resolução, com exceção dos pas-sivos garantidos sujeitos ao disposto no artigo 44.º, n.º 2 da DRRB;

iv) Poder para exigir que uma instituição ob-jeto de resolução ou uma instituição mãe relevante emita novas ações, ou outros

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CONTRIBUTO PARA O DEBATE SOBRE O(S) REGIME(S) JURÍDICO(S) APLICÁVEL(EIS) APLICADA AO BES : 125

instrumentos de propriedade, ou outros instrumentos de capital, incluindo ações preferenciais e instrumentos convertíveis contingentes;

v) Poder para modificar ou alterar a data de vencimento de instrumentos de dívi-da e outros passivos elegíveis emitidos por uma instituição objeto de resolução ou para modificar o montante dos juros devidos ao abrigo de tais instrumentos e de outros passivos elegíveis, ou a data de vencimento dos juros, nomeadamente através da suspensão temporária de paga-mentos, com exceção dos passivos garan-tidos sujeitos ao disposto no artigo 44.º, n.º 2 da DRRB;

vi) Poder para liquidar e rescindir contratos financeiros ou contratos de derivados para efeitos da aplicação do Artigo 49.º (Derivados) da DRRB.

Tendemos a concluir pelo carácter indissociável do exercício, pela autoridade de resolução, de poderes de determinação da suspensão, exclu-são, admissão ou readmissão de instrumentos fi-nanceiros a mercado regulamentado ou a sistema de negociação multilateral do exercício dos refe-ridos poderes de resolução, não apenas porque a DRRB consagra e apelida os primeiros como “Poderes complementares” (vd. epígrafe do Ar-tigo 64.º da referida diretiva), como determina que os Estados-Membros devem assegurar que as autoridades de resolução deles disponham “no

exercício dos seus poderes de resolução” (vd. n.º 1 do mesmo preceito da DRRB).

Nesse sentido parece apontar também o disposto no Artigo 145.º-J, n.ºs 1 e 13, quando conjugados com o Artigo 145.º-I do RGICSF e com o Artigo 214.º, n.º 5 do Código dos Valores Mobiliários,

conforme alterados pela Lei n.º 23-A/2015, de 26 de março.

IV. A SITUAÇÃO DOS ACIONISTAS E OBRIGACIONIS-TAS SUBORDINADOS

De acordo com o Artigo 145.º-B do RGICSF, com a redação vigente à data da deliberação de resolução do BES, e nessa medida, en quanto princípio orientador da medida adotada pelo Banco de Portugal11, na aplicação de medidas resolução, procura assegurar-se que:

a) Os acionistas da instituição de crédito assu-mem prioritariamente os prejuízos da insti-tuição em causa;

b) Os credores da instituição de crédito assu-mem de seguida, e em condições equitati-vas, os restantes prejuízos da instituição em causa, de acordo com a hierarquia de prio-ridade das várias classes de credores;

c) Nenhum credor da instituição de crédito pode assumir um prejuízo maior do que aquele que assumiria caso essa instituição tivesse entrado em liquidação.

Conforme referido já, a medida de resolução aplicada ao BES consistiu na criação de um banco de transição (o Novo Banco, S.A.) e na transferência parcial de ativos, passivos, elemen-tos extrapatrimoniais e ativos sob gestão daquele para este.

Para estes casos, a lei estabelece que a revogação da autorização da instituição de crédito objeto de resolução é obrigatória (vd. Artigo 145.º-L, n.º 2 do RGICSF, com a redação atual), e deve ocorrer num prazo adequado, tendo em conta o disposto no Artigo 145.º-AP12, seguindo-se o regime de liquidação previsto na lei aplicável.

11- Vd. Considerandos 18 e 19 da Deliberação tomada em reunião extraordinária do Conselho de Administração do Banco de Portugal, a 3 de agosto de 2015, pelas 20h00m.

12- Este preceito estabelece os deveres gerais das instituições de crédito objeto de resolução.

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126 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

Assim, a lei admite que essa revogação não seja simultânea nem ocorra em momento imediata-mente posterior à aplicação da medida em causa.

Por ser assim, a título de clarificação legislativa, pedida pelo Banco de Portugal, o Governo veio recentemente, através Decreto-Lei n.º 140/2015, de 31 de julho, determinar que o cumprimento das obrigações que não tenham sido transferidas para um adquirente ou para uma instituição de transição não é exigível à instituição objeto de resolução, com exceção daquelas que o Banco de Portugal determine ser indispensável para a preservação e valorização do seu ativo.

Desta feita, presentemente, os titulares de ações e de obrigações subordinadas do BES são, res-petivamente, acionistas e detentores de dívida subordinada emitida por instituição de crédito, objeto de medida de resolução, desprovida de grande parte dos seus ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão, e, também por isso, fortemente limitada na sua atividade en-quanto instituição de crédito, com limitações de cumprimento das suas obrigações e em fase de

pré-liquidação, fortemente desprovidos os acio-nistas dos seus direitos em termos de designação dos respetivos órgãos de administração e fisca-lização. Sucede que aquelas ações e obrigações não deixam, porém, de ser valores mobiliários e, como tal, sujeitos aos correspondentes custos de custódia.

Este último aspeto – custos de manutenção em carteira de ações e obrigações de reduzido va-lor de mercado – associado a eventuais direitos de indemnização que o futuro possa reservar aos acionistas e credores subordinados (assim seja demonstrado que sofreram prejuízos maiores do que teriam sofrido em caso de liquidação do banco ao abrigo os processos normais de insol-vência), são matérias que sendo de índole di-versa, têm contudo em comum o facto de serem consequências diretas da adoção de uma medida de resolução, como a aplicada no caso do BES, devendo, por isso, merecer a devida atenção e tratamento, em defesa de legítimos interesses dos respetivos titulares, em suma, em derradeira proteção dos investidores.

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ABSTRACT

This article discusses the informational content conveyed by the disclosure of the results of stress tests conducted by financial supervisors. We ana-lyze the impact of the announcements of two dif-ferent stress tests results by EBA (2010 and 2011 stress tests) on stock prices and CDS spreads. Our findings support the idea that these events influence the prices of financial instruments. In effect, after the announcement we observe an increase in stock prices and a decrease of CDS rates in banks that pass the tests. Notwithstand-ing, we also find distinctive responses: the 2010 announcement was followed by positive abnor-mal returns for stocks of stress tested banks and also for stocks of banks not subjected to the tests; contrariwise, in 2011 only the stocks of banks that pass the tests outperform the market. Equivalent findings are obtained in the analysis of the CDS market. The major implication of our findings is that the disclosure of stress test results matters to market participants, and thereby it helps enhanc-ing the informational efficiency of prices.

1. INTRODUCTION

In the aftermath of the financial crisis, European regulators and policy makers feared that large and complex bank holding companies did not have enough capital to face adverse economic conditions. As such, stress testing examinations

on major financial institutions were implement-ed to gauge their resilience to extreme negative shocks and capital adequacy. In general, these tests allow banking regulators to better monitor the banking system and to intervene in view of taking correcting actions (e.g. bank recapitaliza-tion). Importantly, negative results on the assess-ments could imply that financial companies lack sufficient capital to absorb losses resulting from adverse economic conditions, so that capital ra-tio reinforcement would be mandatory, either by raising more capital or by limiting capital distri-butions. One advantage of stress test exercises over other regulators’ examinations is that the former are typically forward looking and concen-trate on left-tail risks. In effect, stress tests seek to project future losses, and to see whether those losses are absorbed by today’s capital. Alongside, all banks are tackled with a common set of sce-narios, which allows bank-by-bank comparisons.

The idea underneath these tests is that the banking sector is inherently opaque. It has been argued that banks take on too many risks, which are not sup-ported by sufficient capital. Besides helping regu-lators to unveiling the risk-taking behavior of the banking sector, disclosing stress test results could improve market discipline by informing outsid-ers of the risks taken by banks, and by helping investors to ascertain whether risks are correctly

THE INFORMATION CONTENT OF BANKING STRESS TESTS RESULTS

CARLOS ALVES*VICTOR MENDES**PAULO PEREIRA DA SILVA***

*- Economista, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e CEF.UP (Faculdade de Economia da Universidade do Porto).As opiniões expressas neste texto são as do autor, e não necessariamente as da CMVM.

**- Economista, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e CEFAGE-UE (Universidade de Évora).As opiniões expressas neste texto são as do autor, e não necessariamente as da CMVM.

****- Economista, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.As opiniões expressas neste texto são as do autor, e não necessariamente as da CMVM.

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128 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

perceived and priced by the markets. Such market discipline would then deter insiders from taking an ex ante risk taking behavior (Goldstein and Sapra, 2013). The underlying idea is that when a bank takes on excessive risks it may become in-solvent in the near future. The stock prices and the debt claims prices on the bank will decline if investors perceive such risks, and the bank will be able to raise fewer funds. This market pressure would limit the damage imposed by the bank’s actions, and thus insiders would have more dif-ficulty in taking excessive risk.

An interesting and controversial debate regard-ing this issue is whether the nature and design of the stress tests and corresponding results should be disclosed to the general public. For instance, should the results from the tests be publicly re-leased? Should they be disclosed individually for each bank or solely for the whole banking sector? Based on the aforementioned reasoning, public disclosure of stress tests results allows market participants to make informed decisions about the bank and such informed decisions, in turn, would discipline the bank’s actions. The other flip of the coin is that the disclosure of the stress test results could actually create more panic and have negative consequences on the financial sys-tem. For instance, Goldstein and Sapra (2013) argue that it may limit the risk-sharing compo-nent of interbank money markets. Not least im-portant, there is also the risk that stress test re-sults do not reveal any new information about a bank’s financial condition to market participants. The act of disclosure could impact the credibility of the tests and the supervisors’ reputation.

This article aims to contribute to this debate by examining the incremental informational content of the results of stress tests on European banks conducted by financial authorities. To that end, we address the effects of the announcement of the first two stress tests results carried out by the European Banking Authority (EBA, hereinafter), namely the ones conducted in 2010 and 2011. EBA selected a sample of 91 European banks

from 21 countries, corresponding approximately to 65% of the total assets of all European banks, and performed stress tests with the aim of assess-ing capital needs and capacity to absorb adverse shocks, including in scenarios of asset devalua-tion. The results of the stress tests were released, respectively, on July 23th, 2010 and July 15th, 2011. The disclosure of the stress test results aimed to increase the transparency in the Euro-pean banking sector, and thereby raising inves-tors’ and depositors’ confidence in the financial system. This article shows that the disclosure of stress test results conveys new information, able to spur significant price reaction in the stock and the CDS markets. However, the ability of each market to anticipate and incorporate this infor-mation is dissimilar, which may derive from the fact that in the equity market a larger fraction of retail investors does exist, these being more prone to be influenced by waves of sentiment. All in all, we conclude that stress tests may re-veal unique information about financial institu-tions permitting both bank supervisors and mar-ket participants to monitor banks’ behavior.

This paper adds to the growing literature that investigates the information value of stress test disclosure. In that regard, it extends previous research on the information value of govern-ment bank assessments as Berger et al. (2000), Jordan et al. (2000), Flannery and Houston (1999), Berger and Davies (1998) and Gunther and Moore (2003), and contributes to the debate on bank opacity as Morgan (2002) and Flannery et al. (2004). Morgan et al. (2014), Petrella and Resti (2013), Candelon and Sy (2015), Blundell-Wignall and Slovik (2010), Beltratti and Stulz (2015), Cardinali and Nordmark (2011) and Neretina et al. (2014) are other recent studies that closely parallel with our investigation. Re-garding the US market, Morgan et al. (2014) show that in the US the 2009 stress test produced effects on prices using standard event study methods and comparing the recapitalization gaps expected by the market with actual stress test re-sults. Nonetheless, they also stress that the mar-

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THE INFORMATION CONTENT OF BANKING STRESS TESTS RESULTS 129

ket had already anticipated which banks would have capital gaps prior to the publication of the stress test results. Neretina et al. (2014) find little evidence that stress tests affect equity returns of large US banks in most years. In contrast, CDS spreads declined in response to the disclosure of stress test results in 2009 and in 2012–13. Banks’ systematic risk, as measured by betas, declined in some years after the publication of stress test results. Candelon and Sy (2015) show that stress tests influence markets’ valuation of stressed banks. In four out of six exercises since 2009, the publication of stress test results had a significant positive impact on stressed banks’ stock returns whereas they hardly have any im-pact on nonstressed banks’ stock returns.

Regarding the EU stress test exercises, Alves et al. (2015) conclude that the stress tests conveyed new information and that the outcomes were not anticipated by the stock market but were par-tially anticipated by the CDS market. MoreFur-thermoreover, the disclosurepublication of the outcomes of the sstress tests results had a stron-ger impact on the stock prices of riskier financial institutions. A similar pattern is reportedevident in the CDS market, albeit narrowed to one of the stress tests and amid the financial institutions with higher perceived credit risk. Petrella and Resti (2013) find that stress tests produce ma-terial information for market participants while assessing the impact of the 2011 EU-wide stress test announcement, consistent with the idea that they may be useful in reducing bank opaqueness. Cardinali and Nordmark (2011) show that the 2010 EU stress test results were relatively unin-formative to investors, whereas the 2011 results triggered negative CAR for stress-tested banks while non-tested institutions were roughly unaf-fected. Beltratti and Stulz (2015) examine the 2011 EU stress test and show that they provided material information to the market since their main outcome (i.e., the capital shortfall associ-ated with individual banks) could not be fore-

casted by combining variables that were already known to investors. Blundell-Wignall and Slovik (2010) investigate the 2010 EU stress test with a special focus on the treatment of sovereign debt. They claim that the 2010 simulation failed to reassure the market because government bonds were subject to a haircut only when held in the trading portfolio, but not when held in the bank’s book (indeed, 83% of the sovereign debt held by EU banks at the end of 2009 was recorded in the bank’s book). On balance, the results of our study are in line with those of Alves et al. (2015), Petrella and Resti (2013) and Beltratti and Stulz (2015), but contradict the ones of Cardinali and Nordmark (2011).

The remainder of the paper is organized as fol-lows. Section 2 presents the methodology and the data used in the empirical research. Results are presented and discussed in section 3, where-as section 4 displays the conclusions.

2. METHODOLOGY AND DATA

Two different financial instruments are analyzed: stocks and CDS contracts. We measure the im-pact of the announcement of stress test results (the “announcement”) by evaluating its effects on the prices of the two instruments. A reaction to the announcement evidences that stress test results contain new information that affects the equili-brium price of stocks and CDS contracts. Putting it differently, it conveys incremental infor mation not yet impounded into prices. In that sense, the announcement may increase the informational content of the prices of such ins truments.

In the case of stocks, returns are computed as the log-difference between prices in two consecutive trading sessions. For CDS contracts, the impact of the announcement is measured on the returns of a pseudo-bond, structured as the sum of a long position on a 5-year maturity riskless floating-rate-note and a short position on a 5-year matu-rity CDS:

(1)

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130 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

We employ an event study methodology to inves-tigate the impact of the announcement on syn-thetic bond and stock prices. In both cases, the estimation of the expected returns is conducted using the standard market model. The estimation window covers 120 trading sessions, and ranges between [ ; ],, where denotes the announcement date

(2)

where represents the return on security i in t and is the market return in t.

Abnormal returns are computed as the difference between raw and expected returns. In the case of stocks, market returns are proxied by the returns of the main domestic stock index for the market wherein the stock is domiciled. Such an index does not exist for CDS contracts; thus, in this case market returns are proxied by the iTraxx European Corporate Index returns.

In terms of equity markets, the sample consists of 171 listed financial stocks of Western Europe, in which 50 (51) are listed financial institutions that were stress tested in 2010 (2011). The remain-ing 121 (120) stocks were not subjected to the stress test. With regard to the CDS markets, our sample consists of 104 banks, 35 of them were stress tested in 2010 and in 2011. The remain-ing 69 institutions were not subject to the stress tests. Stock prices and CDS spreads and respec-tive national benchmark prices are obtained from Bloomberg, while the stress test results are col-lected from the EBA’s website.

3. ANNOUNCEMENT OF THE STRESS TESTS RE-SULTS: THE STOCK MARKET

Figure 1 exhibits the cumulative abnormal re-turns (CAR) curve of different portfolios. For instance, corresponds to the CAR of a portfolio in the window that ranges from to. The curve is shown for five different portfolios. The first portfolio [All Sample] comprises all financial stocks in our sample in each test. Two additional portfolios are defined by partitioning the sample

between stocks (of banks) subjected to the test and stocks (of banks) not subjected to the test. The two remaining portfolios include the stocks of banks that ‘clearly pass’ the test and those who ‘nearly pass’ the test.

FIGURE 1 – The impact of the announcement on stock prices

Panel A – 2010 Stress test

Panel B – 2011 Stress test

Figure 1 – Panel A exhibits the impact of the 2010 announcement. The CAR is close to 0 in the five portfolios in the pre-announcement win-dow, up to the announcement day. There is then a price jump for the five portfolios, meaning that the stock market immediately assimilated the information conveyed by the disclosure of the stress test results. All the five portfolios exhibit positive CAR after the announcement, but the impact is higher for the portfolio of banks that clearly pass the test ( equal to 4.00%). The performance of banks that nearly pass the test is lower than the performance of those not subjected to the stress test.

-3,00%

-2,00%

-1,00%

0,00%

1,00%

2,00%

3,00%

4,00%

5,00%

-9 -8 -7 -6 -5 -4 -3 -2 -1 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

All Sample Banks Subjected to the TestsBanks not Subjected to the Tests PassNear Pass

-5,00%

-4,00%-3,00%

-2,00%

-1,00%0,00%

1,00%

2,00%3,00%

4,00%

-9 -8 -7 -6 -5 -4 -3 -2 -1 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

All Sample Banks Subjected to the TestsBanks not Subjected to the Tests PassNear Pass

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THE INFORMATION CONTENT OF BANKING STRESS TESTS RESULTS 131

Panel B – 2011 Stress test

We posit that banks that pass the test with lower Core Tier One ratios would be the ones with bet-ter performance in the post-announcement win-dow. Figure 2 appears to confirm this idea. In both Panels, the of the bottom Core Tier One banks is more than twice the of their peers, thus suggesting that the perfor-mance of stocks in the post-announcement win-dow may be explained by the fact that the stress test results have implications on the evaluation of the future capital needs for some banks.

Figure 3 displays the volatility of the five dif-ferent portfolios. The volatility is estimated us-ing an exponentially-weighted moving average (EWMA, hereinafter) and a decay factor equal to 0.9. The idea here is to provide more relevance to current observations than to past observa-tions, i.e., concurrent volatility shocks become more evident and less smooth than when using standard volatility metrics. Regarding the 2010 announcement, near pass stocks already display higher levels of volatility prior to the event date. All the five portfolios exhibit a volatility spike in the announcement date, which is followed by decreasing volatility. As for the 2011 announce-ment, stress tested banks exhibit a significant volatility rise even prior to the announcement, whereas the non-stress tested banks’ volatility curve remains almost flat.

In the case of the 2011 event, all stocks, in gen-eral, exhibit a negative drift in the pre-announce-ment window. After the announcement, there is a reversal of stock prices, which is larger for the banks that clearly pass the test. Banks not sub-jected to the exercise and banks that nearly pass the test exhibit similar price patterns, although with higher volatility in the latter case.

In order to better understand the impact of the announcement on the prices of stocks that clear-ly pass the tests, we split banks into four quar-tiles according to the level of the Core Tier One capital ratio displayed before the announcement. Here, the first (fourth) quartile is assigned to the portfolio of stocks with lower (higher) Core Tier One ratio. Intuitively, banks with lower Core Tier One ratios are more vulnerable to external shocks. Consequently, they have higher a priori chances of failing the stress test. One should also keep in mind that the results of the test were also important to determine the potential capital needs of banks. Failing or even nearly passing the test suggests that the bank would likely in-crease its capital in a short time frame.

FIGURE 2 – The impact of the announcement on the stock prices of banks that clearly

pass the test and Core Tier One ratio

Panel A – 2010 Stress test

-4,00%

-2,00%

0,00%

2,00%

4,00%

6,00%

8,00%

10,00%

-9 -8 -7 -6 -5 -4 -3 -2 -1 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

1st Q 2nd Q 3rd Q 4th Q

-6,00%

-4,00%

-2,00%

0,00%

2,00%

4,00%

6,00%

8,00%

10,00%

-9 -8 -7 -6 -5 -4 -3 -2 -1 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

1st Q 2nd Q 3rd Q 4th Q

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132 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

also on the remaining stocks. A similar impact seems to have existed, although smaller in mag-nitude, on the synchronicity between the returns of the stocks that pass the test and the returns of the stocks that nearly pass the test: the correla-tion jumps from 0.6 to 0.8.

FIGURE 4 – The impact of the announcement on the correlation of returns

Panel A – 2010 Stress test

Panel B – 2011 Stress test

Figure 4 – Panel B also shows higher synchron-icity of returns for the stocks that pass the 2011 test and the stocks that nearly pass the test af-ter the announcement, with a spike near the an-nouncement date.

All in all, our findings support the hypothesis that stress tests results convey informational value not yet contained in the prices of stocks, and that the disclosure of this “private” infor-mation increases the informational efficiency of stock prices.

FIGURE 3 – The impact of the announcement

on volatility

Panel A – 2010 Stress test

Panel B – 2011 Stress test

Finally, we examine the impact of the announce-ment on the correlation between the returns of the banks not subjected to the stress test and the returns of the banks scrutinized by EBA. Here-in, the correlation is also computed employing an EWMA metrics and a decay factor of 0.9. A first look at Figure 4 – Panel A suggests that the correlation between the two groups of stocks is time-varying, and usually mean reverts after a shock. Three weeks before the 2010 announce-ment, the correlation between the returns of stocks subjected to the test and the returns of the remaining stocks witnesses a slow but continu-ous decay, approaching zero. It increases from 0.1 to 0.8 after the announcement, suggesting that the announcement raises the synchronicity between the returns of the two groups of stocks. Putting it differently, these results confirm that the announcement did have an impact not only on the stocks of banks subjected to the test, but

0%2%4%6%8%

10%12%14%16%18%20%

-120

-115

-110

-105

-100 -9

5-9

0-8

5-8

0-7

5-7

0-6

5-6

0-5

5-5

0-4

5-4

0-3

5-3

0-2

5-2

0-1

5-1

0 -5 0 5 10

All Sample Banks Subjected to the TestsBanks not Subjected to the Tests PassNear Pass

-40%

-20%

0%

20%

40%

60%

80%

100%

-120

-115

-110

-105

-100 -95

-90

-85

-80

-75

-70

-65

-60

-55

-50

-45

-40

-35

-30

-25

-20

-15

-10 -5 0 5 10

Subjected to the Tests vs. Non-Subjected to the Tests Pass vs. Non-Pass

0%

5%

10%

15%

20%

25%

-120

-115

-110

-105

-100 -9

5-9

0-8

5-8

0-7

5-7

0-6

5-6

0-5

5-5

0-4

5-4

0-3

5-3

0-2

5-2

0-1

5-1

0 -5 0 5 10

All Sample Banks Subjected to the TestsBanks not Subjected to the Tests PassNear Pass

-10%

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

80%

90%

-120

-115

-110

-105

-100 -95

-90

-85

-80

-75

-70

-65

-60

-55

-50

-45

-40

-35

-30

-25

-20

-15

-10 -5 0 5 10

Subjected to the Tests vs. Non-Subjected to the Tests Pass vs. Non-Pass

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THE INFORMATION CONTENT OF BANKING STRESS TESTS RESULTS 133

4. ANNOUNCEMENT OF THE STRESS TESTS RESULTS: SYNTHETIC BOND PRICES

This section analysis the impact of the announce-ments on the CDS market. As mentioned earlier, we evaluate the impact on the CDS market by examining whether it produces effects in port-folios of synthetic bonds. Regarding the 2010 event, Figure 5 allows identifying a positive post- announcement CAR drift in all the five portfo-lios. The synthetic bonds of banks that were sub-jected to the stress test and, in particular, those that pass the test exhibit better performance be-fore and after the announcement.

The 2011 stress test exercise tells a different story: cumulative abnormal returns are negative after the announcement. The portfolios that com-prise the banks subjected to the test, and in par-ticular those who nearly pass, underperform the remaining portfolios in the post-announcement window. Moreover, the announcement is eco-nomically neutral for obligors not covered by the stress test, in contrast to the 2010 announcement which apparently benefitted the entire sample of banks.

FIGURE 5 – The impact of the announcement on synthetic bond prices

Panel A – 2010 Stress test

Panel B – 2011 Stress test

We next sort the subsample of banks that clear-ly pass the tests according to their CDS rates prior to the announcement and form four dif-ferent quartiles. We assign the rating D to the banks included in the top quartile, and the rating A to the banks included in the bottom quartile. Ratings B and C correspond to the banks included in the third and the second quartiles, respectively. Figure 6 displays the CAR curve for these portfolios. Indeed, the results reinforce our earlier conclusions: the portfolios of banks with higher credit risk evidence better perfor-mance in the 2010 exercise ( equal to 5.5%). Contrariwise, these obligors record the worst performance amid the banks that pass the test in 2011.

FIGURE 6 – The impact of the announcement on synthetic bond prices of banks that clearly

pass the test and Tier One ratio

Panel A – 2010 Stress test

0,00%

0,50%

1,00%

1,50%

2,00%

2,50%

3,00%

3,50%

-9 -8 -7 -6 -5 -4 -3 -2 -1 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

All Sample Banks Subjected to the TestsBanks not Subjected to the Tests PassNear Pass

-4,50%-4,00%-3,50%-3,00%-2,50%-2,00%-1,50%-1,00%-0,50%0,00%0,50%1,00%

-9 -8 -7 -6 -5 -4 -3 -2 -1 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

All Sample Banks Subjected to the TestsBanks not Subjected to the Tests PassNear Pass

0,00%

1,00%

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5,00%

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-9 -8 -7 -6 -5 -4 -3 -2 -1 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10Rating A Rating B Rating C Rating D

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134 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

Panel B – 2011 Stress test

Figure 7 shows the pattern of volatility in the windows surrounding the announcements. Obli-gators that nearly pass the stress test(s) exhibit higher volatility, and the portfolio of obligors not covered by the test(s) show lower volatility. Fur-thermore, the volatility of the returns of the obli-gors in the near pass portfolio evolves differently in the two post-announcement windows. We also identify a volatility spike in this portfolio after the 2011 announcement, in contrast with a mod-erate increase after the 2010 announcement.

FIGURE 7 – The impact of the announcement on volatility

Panel A – 2010 Stress test

-4,00%

-3,50%

-3,00%

-2,50%

-2,00%

-1,50%

-1,00%

-0,50%

0,00%

0,50%

1,00%

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Rating A Rating B Rating C Rating D

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0-7

5-7

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5-2

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5-1

0 -5 0 5 10

All Sample Banks Subjected to the TestsBanks not Subjected to the Tests PassNear Pass

Panel B – 2011 Stress test

Finally, we analyze the impact of the announce-ments on the correlation of the portfolio returns of obligors covered and not covered by the stress tests. The correlation is higher in 2010 (than in 2011), and it did not change significantly in the post-announcement window. However, in 2011 the correlation is unstable. Thus, while the first announcement did not have a significant im-pact on the synchronicity between the returns of those portfolios, that is not the case in the second announcement. In other words, our findings sug-gest that the 2011 announcement impacted dif-ferently the performance of banks subjected to the test vis-a-vis the performance of other banks.

FIGURE 8 – The impact of the announcement on the correlation of returns

Panel A – 2010 Stress test

0%1%2%3%4%5%6%7%8%9%

-120

-115

-110

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-100 -9

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5-3

0-2

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All Sample Banks Subjected to the TestsBanks not Subjected to the Tests PassNear Pass

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Subjected to the Tests vs. Non-Subjected to the Tests Pass vs. Non-Pass

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THE INFORMATION CONTENT OF BANKING STRESS TESTS RESULTS 135

Panel B – 2011 Stress test

Similar conclusion are drawn when assessing the synchronicity between the returns of the banks that pass the tests and the returns of those that nearly pass the tests. This corroborates the idea that CDS market participants show different re-actions in the two stress test exercises, in that banks that nearly pass are apparently punished in the 2011 exercise. It is clear that, in contrast to the 2010 stress test, CDS market participants did not extrapolate the results of stress tested banks to the whole universe of banks. In effect, this re-sult may relate with the fact that the 2011 EU stress test had a higher capital adequacy thresh-old and disclosed much more bank-by-bank data than the EU 2010 stress test. While the EU 2010 stress test only revealed a few key figures for each bank, the 2011 EU stress test was signifi-cantly more comprehensive, as it furnished up to 3,400 data items for each bank; this included a breakdown of sovereign bonds and other credit

exposures by country and duration bands. This data availability allowed investors to do their own math in the 2011 EU stress test.

5. CONCLUSION

We find that the disclosure of stress test results in Europe in 2010 and 2011 conveyed new in-formation and that it spurred significant price reactions in the stock and the CDS markets. The CDS and the stock markets display similar pat-terns before and after the disclosure of the 2010 stress test outcomes, but that did not occur con-cerning the 2011 exercise. This means that the ability of each market to anticipate and incorpo-rate information is dissimilar, which may derive from the fact that in the equity market a larger fraction of retail investors does exist, these being more prone to be influenced by waves of sen-timent. Moreover, CDS prices reflect the credit risk of the reference entity, or the probability of this entity going bankrupt or suffering a major restructuring process due to the likelihood of an upcoming credit event, whilst prices in the stock market reflect the value of the company. As such, if it is concluded that a bank needs capital to ful-fill its Core Tier One obligations, but if the capi-tal needs do not compromise the long term credit risk of the institution, then the bank stock price adjusts but the CDS price needs not to adjust, thus giving support to different price reactions in both markets.

-60%

-40%

-20%

0%

20%

40%

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Subjected to the Tests vs. Non-Subjected to the Tests Pass vs. Non-Pass

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136 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

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SUMÁRIO:A Amadeu Ferreira: in memoriam 1. O tema e a sua relevância actual. 2. A evolução da proi-bição de reformatio in peius no processo penal português. 3. A solução alemã no domínio das contraordenações. 4. O regime da reformatio in

peius e o processo de contraordenação: a solu-ção de 1982, a reforma de 1995 e os regimes es-peciais. 5. Conteúdo processual da proibição de reformatio in peius. 6. A proibição de reformatio

in peius: uma garantia constitucional implícita ou uma simples garantia processual? 7. A ina-dequação da proibição da reformatio in peius à impugnação judicial da decisão administrativa no processo de contraordenação. 8. A inconstitu-cionalidade da proibição de reformatio in peius na impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa. 9. Síntese final

A AMADEU FERREIRA: IN MEMORIAM

Dedico este modesto estudo à memória do Ama-deu Ferreira, com quem ao longo de 25 anos par-tilhei muitos e muitos momentos na Faculdade (primeiro na Clássica, depois na Nova) e, em es-pecial, na CMVM. Procurando ambos, num caso e noutro, em situações diferentes, ajudar a cons-truir instituições sólidas, credíveis e respeitáveis. Com projectos, com alegria, com tristezas, com amizade e com zangas, com vitórias e com der-rotas, por vezes com entusiasmo, por vezes no meio do desânimo, em sintonia ou em divergên-cia, mas sempre desbravando caminhos e apon-tando soluções. Olhando para trás, muita coisa

foi feita e de muita coisa nos podemos orgulhar. Até sempre Amadeu.

1. O TEMA E A SUA RELEVÂNCIA ACTUAL

1. O Direito de Mera Ordenação Social teve nos últimos 20 anos uma expansão sem paralelo em qualquer outro ramo do direito. Mas esse cres-cimento nem sempre se tem revelado completa-mente congruente, pelo contrário: movido por impulsos conjunturais, identificam-se nas várias linhas de evolução deste ramo do direito tendên-cias diferenciadas, por vezes contraditórias entre si, como acontece com o tema da proibição de reformatio in peius. A sucessão de regimes opos-tos neste domínio documenta de forma expres-siva o que se afirmou.

O Regime Geral das Contraordenações e Coi-mas, de 1982, assumiu uma opção muito clara nesta matéria: ao contrário do que acontecia em processo penal, no processo de contraordenação tal proibição não vigorava, nem na fase de im-pugnação judicial, nem na fase de recurso para a Relação. Em 1995, o legislador fez a opção exactamente oposta e consagrou no Regime Geral a proibição de reformatio in peius, para todos os casos, em todas as situações e em todas as instâncias de recurso. A partir de 2003, con-tudo, diversos regimes sectoriais foram criando regras opostas à solução de 1995 e, em conse-quência, contemplaram a possibilidade de, em fase de impugnação e de recurso, o Tribunal agravar a responsabilidade do arguido, regres-

A PROIBIÇÃO DE REFORMATIO IN PEIUS E O PROCESSO DE CONTRAORDENAÇÃO

FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO*

*- Assessor na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários. Professor na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. As opiniões assumidas no texto são pessoais, não podendo ser atribuídas à CMVM.

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138 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

sando assim o modelo original de 1982, mas agora limitado ao sector em causa.

A doutrina maioritária, por seu turno, criticou a intervenção legislativa de 1995 (que consagrou a proibição de reformatio in peius na lei geral das contraordenações) e foi apoiando as excepções que foram surgindo nos domínios sectoriais. Mas sempre com vozes divergentes que, em nome das garantias processuais do arguido refor-çadas em 1995, viam nas excepções dos regimes sectoriais um retrocesso inaceitável.

2. Recentemente, a questão foi ressuscitada ao nível judicial e ao nível legislativo, ao serem equacionadas dúvidas sobre a constitucionali-dade do regime de impugnação e recurso nos sec-tores em que a proibição de reformatio in peius foi eliminada (designadamente, na apreciação da parlamentar da Proposta de Lei n.º 326/XII, 4.ª, sobre o regime de acesso e exercício da activi-dade seguradora, apresentada pelo Governo).

Tudo justifica, portanto, o tratamento da matéria neste momento. Mas o seu estudo não pode ser realizado apenas à luz do sistema de garantias adoptado para o processo de contraordenação. A questão é mais profunda e complexa: radica na própria natureza do processo de contraorde-nação e na articulação constitucional entre as autoridades administrativas e os tribunais com competência para conhecer a impugnação e o re-curso. Confirma-o, aliás, a história (nada linear) da proibição da reformatio in peius no processo penal entre nós. Por isso mesmo, reduzir o pro-blema a uma questão de garantias do arguido é demasiado simplista, pois traduz-se em ignorar as dimensões mais problemáticas que o envolvem.

É este o tema deste estudo e a perspectiva que subjaz ao seu tratamento. Qual a solução que se revela mais adequada ao processo de contra-ordenação: a proibição de reformatio in peius ou a sua admissibilidade? E que interesses pro ces-suais e que valores constitucionais estão em cau-sa numa e noutra solução?

2. A EVOLUÇÃO DA PROIBIÇÃO DE REFORMATIO IN PEIUS NO PROCESSO PENAL PORTUGUÊS

Se existem figuras jurídicas marcadas pelo es-tigma da divergência no domínio do processo penal o regime da reformatio in peius é segura-mente uma delas. Quer a possibilidade de o Tribu-nal de recurso agravar a decisão recorrida em pre-juízo do arguido, quer a proibição de o fazer têm tido defensores e críticos ao longo dos tempos. A história deste problema no processo penal português confirma esta ideia e permite com-preender melhor a figura, o seu alcance e os seus limites.

a) Ausência e afirmação da proibição de reforma-tio in peius no sistema penal português até 1968

Não existe notícia de que o direito penal portu-guês anterior ao século XIX organizasse o sis-tema de recursos contemplando uma proibição de reformatio in peius.1 O problema não encon-tra eco no final do século XVIII em Melo Freire,2 nem, já no início do século XIX, em Pereira e Sousa.3 O que se pode dever, designadamente, ao facto de o antigo sistema judicial não contemplar um recurso isolado do réu, já que o juiz tinha de submeter oficiosamente a sua decisão ao Tri-bunal superior para confirmação, sem limitações decisórias.4

1- CÂMARA CORPORATIVA, Parecer n.º 13/IX, de 24 de Outubro de 1968, Relator José Manso Preto, in BMJ, n.º 180 (1968), p. 107 (pp. 103-155), onde o tema foi analisado com informação e profundidade pela primeira vez entre nós.

2- PASCOAL DE MELO FREIRE, Institutiones Juris Criminalis Lusitani, Liber singularis, Olisipone: Ex Typographia Regalis Academiae, 1794, Tit. XXI.

3- JOAQUIM JOSÉ CAETANO PEREIRA E SOUSA, Primeiras linhas sobre o processo criminal, segunda edição emen-dada, e acrescentada, Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1800, Cap. XXXVII, p. 154 e ss.

4- ANTÓNIO PEDRO BARBAS HOMEM, Judex perfectus. Função jurisdicional e estatuto judicial em Portugal 1640-1820, Coimbra: Almedina, 2003, p. 260 e ss. Na síntese de CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de Processo Penal,

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A PROIBIÇÃO DE REFORMATIO IN PEIUS E O PROCESSO DE CONTRAORDENAÇÃO 139

O século XIX foi fermentando perspectivas di-vergentes e soluções contraditórias5. Por isso, no início da vigência do Código de Processo Penal de 1929, apesar de o diploma nada referir sobre a matéria, o problema já era apresentado como uma questão controvertida, na qual Luís Osório assumia uma posição categórica: a norma rela-tiva à legitimidade para o recurso (o artigo 647.º) não permitia concluir – ao contrário do que sus-tentava alguma jurisprudência – que o Tribunal superior estivesse limitado pela decisão do Tri-bunal recorrido, mesmo quando o recurso tivesse sido interposto exclusivamente pelo réu.6

O facto de Luis Osório ter sentido necessidade de afirmar expressamente uma posição contrá-ria à proibição de reformatio in peius constitui expressão da intensidade das divergências que se foram instalando no sistema judicial sobre a matéria.7 Tais divergências acabaram por moti-var a subida da questão ao plenário do Su premo Tribunal de Justiça, por existirem decisões con-traditórias relativamente aos poderes decisórios do Tribunal ad quem em caso de recurso inter-posto exclusivamente pelo arguido: o Ac. do STJ de 18 de Abril de 1933 tinha afirmado a proibi-ção de reformatio in peius em tal situação, en-quanto o Ac. do STJ de 23 de Março de 1949 havia admitido a possibilidade de agravação da

responsabilidade em prejuízo do arguido mesmo em re curso interposto exclusivamente por este. A questão foi (temporariamente) resolvida pelo Assento do STJ, de 4 de Maio de 1950, que fixou a seguinte doutrina:

«Em recurso penal, embora só interposto pelo réu, pode o Tribunal agravar a pena».

A solução que vingou (por 9 votos a favor e 4 votos de vencido) baseou-se na ausência de re-gulação da matéria no CPP como uma solução legislativa a respeitar; na natureza pública do processo penal e nas suas diferenças em relação ao processo civil; e na necessidade de reconhe-cer amplos poderes de cognição ao Tribunal ad quem em nome da articulação e coerência dos vários regimes e princípios acolhidos no Código de Processo Penal de 1929, designadamente o dever de o Tribunal superior ter em conta a rein-cidência e a sucessão como agravantes mesmo que não fossem alegadas.8

A doutrina na década de 50 parece ter-se confor-mado com a configuração dos poderes decisórios do Tribunal de recurso e a possibilidade de refor-matio in peius: recenseados os textos académi-cos, nota-se que Cavaleiro de Ferreira não debate o tema nas suas lições9 e Eduardo Correia refere--se à inexistência de proibição de reformatio in

volume 2.º, Lisboa: Danúbio, 1986, p. 280 e ss, «o juiz era obrigado a apelar «por parte da justiça», de seu ofício, quer tivesse havido querela de parte, quer a acusação tivesse sido da própria justiça». O sistema de recurso obrigatório era na verdade necessário por diversas razões: em alguns casos em função do estatuto social do réu, pois algumas sentenças que visavam fidalgos não podia ser executadas sem autorização régia; noutros casos para fazer funcionar os mecanismos da graça; final-mente, para controlo superior das absolvições proferidas em primeira instância. Ilustrativos, PASCOAL DE MELO FREIRE, Institutiones Juris Criminalis (cit. nt. 2), Tit. XX e XXI, e PEREIRA E SOUSA, Primeiras linhas (cit. nt 3), Cap. XXXVII, § 273 e ss e notas.

5- Sobre os problemas associados à ausência de previsão expressa da proibição da reformatio in peius no sistema liberal oitocentista de recursos penais, o seu significado e possível alcance, JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, O caso julgado parcial, Porto: PUC, 2002, p. 222 e ss e notas.

6- LUIS OSÓRIO, Comentário ao Código do Processo Penal Português, 6.º volume, Coimbra: Coimbra Editora, 1934, artigo 647.º, anotação X, p. 315.

7- Como o Autor documenta com as correntes jurisprudenciais opostas do Supremo Tribunal de Justiça e da Relação de Coimbra (op. cit., p. 315, nota 1).

8- Veja-se, Ac. do STJ, de 4 de Abril de 1950, Relator: António de Magalhães Barros, disponível em www.dgsi.pt.

9- CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de processo penal, em 3 volumes, Lisboa: Gomes e Rodrigues Lda, 1955, sendo possível que a matéria viesse a ser tratada a propósito da tramitação dos recursos (como mais tarde se verificou no Curso de

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140 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

peius no processo penal apenas como factor dis-tintivo em relação ao processo civil.10

Esta situação não subsistiu, contudo, por muito mais tempo: em 1967, Castanheira Neves afas-tava-se da solução fixada pelo Assento do STJ de 4 de Maio de 1950, admitindo a probição de reformatio in peius como uma implicação da estrutura acusatória e uma forma de realizar a justiça por via da liberdade de interposição de recurso do réu. Um regime que, sublinhava, di-zia respeito exclusivamente à questão da pena, caso o recurso fosse interposto exclusiva mente pelo réu, e não à questão da culpabilidade.11 Em 1968 iniciava-se um debate institucional a partir de uma proposta legislativa de alteração do CPP, que contemplava a proibição expressa da reformatio in peius em alguns recursos inter-postos exclusivamente pelo arguido ou no seu interesse.

b) A revisão de 1969: a posição da Câmara

Corporativa e o regime acolhido no artigo 667.º

do CPP de 1929

O debate institucional sobre a consagração e os limites de uma proibição de reformatio in peius em processo penal foi iniciado com a apresen-tação de um projecto de Lei (n.º 4/IX) por três depu tados à Assembleia Nacional visando alte-rar o artigo 667.º do Código de Processo Penal. O projecto formulava uma proibição condicio-nada de reformatio in peius, caso o recurso fosse interposto exclusivamente pelo réu ou pelo Mi-nistério Público no interesse daquele, comple-tada por três excepções: alteração da qualifica-ção jurídica (o «título da incriminação»), dupla

conforme condenatória em recurso de revisão e existência de recurso subordinado da acusação.

A Câmara Corporativa analisou pormenorizada-mente a proposta e, a partir de um amplo enqua-dramento de direito comparado, sugeriu algumas alterações ao regime avançado pelos deputados: aceitou a consagração expressa da proibição de reformatio in peius em recurso ordinário in-terposto exclusivamente pelo réu ou no seu in-teresse, mas limitou a proibição à modificação da pena em prejuízo deste (afastando do âmbi-to da proibição modificações reflexas por via da revogação de normas favoráveis e a matéria das medidas de segurança), excluindo ainda da proibição em causa a alteração da qualificação jurídica e os casos em que o visto inicial do MP no Tribunal superior fosse acompanhado de um pedido de agravação da pena.12

O critério jurídico subjacente à análise e às propostas da Câmara Corporativa consistia em aceitar de forma condicionada a proibição de re-

formatio in peius se o recurso interposto fosse exclusivamente favorável ao arguido recorrente e se estivessem em causa (na decisão do Tribunal superior) critérios discricionários de apreciação da gravidade dos factos e das penas a aplicar. De fora ficariam assim todas as situações em que a agravação decorresse da correcta ou automá-tica aplicação da lei pelo Tribunal superior (como a alteração da qualificação jurídica e as consequências sancionatórias legalmente impe-rativas) e o regime das medidas de segurança que, contemplando outro pressupostos e outros objectivos, distintos das penas, exigiria uma re-forma especial.13

Processo Penal, volume 2.º, Lisboa: Danúbio, 1986, p. 289), mas o 3.º volume (que inclui a marcha do processo) termina na instrução contraditória.

10- EDUARDO CORREIA, Processo Criminal, Lições dactilografadas, Coimbra, 1954, p. 78-79.

11- ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES, Sumários de processo criminal (1967-1968), policopiado, Coimbra, 1968, p. 36-37.

12- Parecer n.º 13/IX, Projecto de Lei n.º 4/IX, Alteração do artigo 667.º do Código de Processo Penal, «Reformatio in peius», in BMJ n.º 180 (1968), p. 103 a 155, citado na nota 1.

13- CÂMARA CORPORATIVA, (cit. nota 1) BMJ n.º 180 (1968), p. 132 e ss.

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A PROIBIÇÃO DE REFORMATIO IN PEIUS E O PROCESSO DE CONTRAORDENAÇÃO 141

A versão final adoptada para o artigo 667.º do CPP foi mais longe do que o proposto pela Câ-mara Corporativa na delimitação da proibição de reformatio in peius em tal situação, estendendo--a de forma expressa à modificação e agravação da pena, à revogação do benefício da suspensão de execução da pena e aos mecanismos de subs-tituição e às penas acessórias facultativas, man-tendo no essencial as excepções acima referidas.

Ainda assim, o regime adoptado na revisão do CPP de 1969 mereceu algumas objeções da dou-trina. Por exemplo, Jorge de Figueiredo Dias cri-ticou especialmente a exclusão das medidas de segurança do âmbito da proibição de reformatio

in peius e a possibilidade de o regime ser afasta-do por simples parecer do MP junto do Tribunal de recurso no sentido da agravação.14 Diversa-mente, Manuel Maia Gonçalves entendia subsis-tirem razões (relacionadas com a diferente ex-periência dos magistrados colocados na 1.ª e na 2.ª instância) para fazer prevalecer a opinião do superior hierárquico do Ministério Publico com funções no Tribunal ad quem e, de igual modo, a diferente natureza e finalidade das medidas de segurança deveriam permitir a sua determinação de acordo com critérios de perigosidade à data da decisão, estando por isso a possibilidade de agravação de medidas de segurança excluída do regime de proibição de reformatio in peius.15

Nas vésperas de entrada em vigor do novo Có-digo de Processo Penal de 1987 o regime da proibição de reformatio in peius nos recursos penais continuava a fomentar divergências, não tanto sobre a sua aceitação (limitada), mas antes sobre o seu alcance e excepções.

c) A situação actual no domínio do processo

penal

O Código de Processo Penal de 1987 manteve no seu artigo 409.º uma versão normativa mente simplificada de proibição de reformatio in peius, em caso de recurso interposto no exclusivo inte-resse do arguido. Mas na versão inicial estabe-leceu no seu n.º 2 duas excepções expressas: a agravação da pena de multa por alteração fa-vorável da situação económica e financeira do arguido e a aplicação de medidas de segurança de internamento. A reforma de 1998 revogou a segunda excepção, fazendo com que as medidas de segurança ficassem todas sujeitas ao regime de proibição de reformatio in peius; e a reforma de 2007 alterou a primeira excepção, passando a permitir apenas a agravação do montante diá-rio da pena de multa e não o número de dias de multa.

A consagração deste regime no domínio dos recursos penais parece ser actualmente pací-fica entre a doutrina e tem sido inclusivamente reforçada, em casos mais duvidosos, pela juris-prudência do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional: afirmando, por exem-plo, o limite da proibição de reformatio in peius por referência à pena concretamente aplicada na decisão do Tribunal recorrido em caso de altera-ção da qualificação jurídica para um crime mais grave no Tribunal superior;16 considerando que a proibição abrange a revogação de um perdão de pena aplicada em primeira instância;17 ou sus-tentando que em caso de reenvio e repetição de julgamento a nova decisão da primeira instân-cia não pode aplicar penas mais graves do que

14- JORGE FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Coimbra: Coimbra Editora, 1974, p. 259-262.

15- MANUEL MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal, 6.ª edição, revista e actualizada, Coimbra: Almedina, 1984, ano tações ao artigo 667.º, p. 695 e 694, respectivamente.

16- Ac. do STJ, de 6.02.2014 (António Oliveira Mendes) acessível em www.dgsi.pt.

17- Ac. Tribunal Constitucional, n.º 499/1997, de 10 de Julho (Maria Fernanda Palma), disponível em www.tribunalconsti-tucional.pt.

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aquelas que haviam sido aplicadas no primeiro julgamento.18

Discutíveis são apenas os fundamentos, desig-nadamente constitucionais, desta figura19 e a sua exacta extensão.20 E, obviamente, a extensão do regime ao processo de contraordenação, como veremos de seguida.

3. A SOLUÇÃO ALEMÃ NO DOMÍNIO DAS CONTRA-ORDENAÇÕES

É sabido que o regime português das contraor-denações foi directamente inspirado na lei ale-mã sobre a mesma matéria. Importa por isso co-nhecer o regime da Ordnungswidrigkeitengesetz (OWiG) sobre o tema da reformatio in peius.

O direito germânico adopta no processo de con-traordenação um modelo dualista quanto à pos-sibilidade de reformatio in peius:

Se a impugnação judicial der lugar a uma au-diência de julgamento não vigora a proibição de reformatio in peius, podendo o Tribunal agravar as sanções e devendo essa informação contar da decisão condenatória proferida pela autoridade administrativa (§ 66, (II), 1, b), da OWiG); di-versamente, se o Tribunal decidir por despacho escrito (sem audiência) está limitado pela proi-bição de reformatio in peius (Verschlechterungs-verbot), não podendo em tal caso afastar-se da decisão sancionatória da autoridade administra-tiva agravando as sanções (§ 72, (III), segunda parte, da OWiG).21

Esta solução, ao contrário do que aconteceu com a reforma de 1995 entre nós, desconsidera o facto de em ambos os casos existir impugnação apenas pelo arguido e no interesse deste, suge-rindo portanto que não reside nesse aspecto a razão de ser da proibição de reformatio in peius. Relevante na lei alemã é, no fundo, o facto de se realizar uma audiência de julgamento e isso exi-gir, designadamente pela produção de prova, a liberdade decisória do Tribunal. De igual modo, o facto de vigorar a proibição de reformatio in

peius nos casos de decisão por despacho pode constituir um factor de aceitação pelo arguido desta forma mais expedita de decisão.

4. O REGIME DA REFORMATIO IN PEIUS E O PRO-CESSO DE CONTRAORDENAÇÃO: A SOLUÇÃO DE 1982, A REFORMA DE 1995 E OS REGIMES ESPE-CIAIS

a) A solução acolhida no Regime Geral de 1982

O acolhimento da proibição da reformatio in

peius no processo de contraordenação em 1995 constituiu uma inesperada surpresa.

Na configuração inicial do processo de contra-ordenação (1982) não constava a proibição de reformatio in peius: quer o Tribunal de primei-ra instância, quer o Tribunal da Relação podiam (em relação à decisão inicial da autoridade admi-nistrativa, no primeiro caso, e em relação à de-cisão da 1.ª instância, no segundo caso) agravar a coima ou as sanções acessórias anteriormente

18- Ac. Tribunal Constitucional, n.º 236/2007, de 30 de Março (Mário Torres), e n.º 502/2007, de 10 de Outubro (Maria Lúcia Amaral), em www.tribunalconstitucional.pt. Antecedentes importantes sobre este alcance da proibição encontram-se no voto de vencido de António Henriques Gaspar no Ac. do STJ de 03.04.2003 (Borges de Pinho). E quanto ao problema do reenvio e dos cúmulos sucessivos, Ac. do STJ, de 14.09.2011 (Armindo Monteiro), acessível em www.dgsi.pt.

19- Uma boa síntese em GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Processual Penal Português, vol. III, Lisboa; UCE, 2014, p. 321-322. Desenvolvimentos em JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, O caso julgado parcial (cit. nt 5), p. 224 e ss.

20- Em pormenor PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª edição, Lisboa: UCE, 2011, artigo 409.º, anotações 3 e ss, p. 1074 e ss.

21- Sobre este regime, ERICH GÖHLER, Ordnungswidrigkeitengesetz, 11. Neubearbeitete Auflage, Beck, München, 1995, vor § 67, anotação 5, § 72, anotação 56 e ss; GÜNTER ROSENKÖTTER, Das Recht der Ordnungswidrigkeiten, 4. Auflage, Stuttgart: Boorberg Verlag, 1995, p. 239, 241; LOTHAR SENGE, in Karlsruher Kommentar zum Gesetz über Ordnungs-widrigkeiten, München: Beck, 1989, § 72, anotação 59.

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aplicadas. O regime relativo aos requisitos da de-cisão confirmava-o, pelo menos para a fase de impugnação judicial, ao exigir que da decisão administrativa constasse a indicação de que não vigorava tal proibição (artigo 58.º, n.º 2, alínea c), do RGCords). Este regime constituía um tra-ço distintivo do processo de contraordenação em relação ao processo criminal ou, usando a termi-nologia de Jorge de Figueiredo Dias, um factor da «autonomia processual» do Direito de Mera Ordenação Social.

Tal particularidade não se devia apenas à menor densidade ética dos factos envolvidos na apre-ciação judicial ou à menor gravidade das sanções do sistema contraordenacional, por comparação com o Direito Penal. Tratava-se, bem vistas as coisas, de um regime exigido pela distinta na-tureza das fases organicamente administrativa e organicamente judicial do processo de contraor-denação.

A fase organicamente administrativa do proces-so de contraordenação poderia terminar com uma decisão definitiva. Mas caso tal decisão fos-se judicialmente impugnada seria, no seu conte-údo, convolada normativa e funcionalmente em acusação, desde que o MP apresentasse os autos a julgamento (nos termos e para os efeitos do artigo 62.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra--ordenações). A decisão da autoridade adminis-trativa deixava de produzir os seus efeitos san-cionatórios com a impugnação judicial e, findo o julgamento, seria substituída por uma decisão judicial.22

O Tribunal de julgamento, por seu turno, ao re-ceber o processo marcava a data de julga mento e a audiência dava verdadeiramente início a uma outra fase processual. Uma nova fase onde, ape-

sar de o Tribunal estar tematicamente vin culado pela factualidade que constava da acusação (ante-rior decisão da autoridade administrativa), se iria produzir prova se tal fosse requerido ou necessário, alguma dela ex novo, com todas as vicissitudes inerentes a um verdadeiro julga-mento. Apesar de o Tribunal poder e dever usar a prova reunida nos autos que vinham da fase organicamente administrativa, teria agora de a valorar em conjunto com a prova produzida em audiência, em especial a prova por declarações de testemunhas ou dos arguidos ou a nova pro-va documental obtida nessa fase, incluindo toda a prova produzida, para – em nome da verdade material – responder às dúvidas pertinentes sus-citadas por qualquer sujeito processual durante a audiência de julgamento.

Seguro era (e é, note-se) a natureza desta impug-nação: não se tratava de um contencioso de mera legalidade, mas sim de um contencioso de juris-

dição plena, único compatível com a natureza judicial da audiência e a liberdade de prova que nela vigoraria.23 Com a particularidade acrescida de a competência jurisdicional do Tribunal lhe permitir, à luz da sua própria valoração sobre os elementos carreados nos autos e da prova produ-zida em audiência, agravar o título de responsa-bilidade do arguido. Nesse sentido se afirmava que em processo de contraordenação não vigora-va a proibição da reformatio in peius. O que cor-respondia a uma formulação normativa intencio-nal, pois como se referiu o legislador exigia que tal informação constasse da decisão final da au-toridade administrativa comunicada ao arguido (artigo 58.º, n.º 2, al. c), do Regime Geral das Contraordenações, antes da reforma de 1995).

O regime de 1982 que permitia a reformatio in

peius era assim o corolário lógico de duas reali-

22- FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, «Direito de audição e direito de defesa em processo de contraordenação: conteúdo, alcance e conformidade constitucional», RPCC 23 (2013), p. 75.

23- Sobre a importância deste aspecto, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Regime Geral das Contra--ordenações, Lisboa: UCP, 2011, nota prévia ao artigo 1.º, anotações 23 e 24, p. 13-14.

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dades jurídicas: por um lado, a impugnação da decisão da autoridade administrativa acabava por fazer com que o processo tramitasse por duas entidades de natureza diferente (administrativa e judicial), sendo necessário garantir a indepen-dência do poder judicial em relação ao poder da autoridade administrativa; por outro lado, a di-nâmica da audiência, marcada pelo princípio da liberdade de prova, pela descoberta da verdade material e pela possibilidade de surgirem novos elementos a valorar pelo Tribunal (apresentados pelos interessados ou promovidos pelo Tribunal ao abrigo dos seus poderes autónomos de inves-tigação), exigia uma jurisdição plena, não espar-tilhada pela proibição de reformatio in peius.

É este ainda no essencial o regime vigente da impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, com excepção da proibição de reformatio in peius introduzida no Regime Geral em 1995.

b) A opção pela proibição da reformatio in peius na reforma de 1995

A reforma de 1995 não teve em conta todos estes aspectos da reorganização do processo de con-traordenação e perspectivou a possibilidade de reformatio in peius apenas como um problema atinente às garantias do arguido. Nada menos exacto.

É certo que se aumentaram as garantias do argui-do ao proibir o Tribunal que conhece a impugna-ção de agravar a responsabilidade anteriormente atribuída. Mas essa é apenas uma das dimen-sões do problema,24 nos termos atrás expostos: subsiste a questão da relação entre entidade de

natureza diferente e o problema dos poderes de cognição do tribunal no contexto do julgamen-to que realizou. Mas mesmo do ponto de vista das garantias do arguido a questão merecia uma outra ponderação: ao ser acolhida a proibição de reformatio in peius todo e qualquer recurso passa a ser essencialmente indutor da prescrição porque o arguido nada tem a perder com o pro-longamento do processo: o julgamento ou vai desagravar as sanções aplicadas ou, alternativa ou cumulativamente, vai induzir a prescrição do procedimento contraordenacional.25

Note-se, para além disso, que a solução foi ins-pirada no regime vigente no processo penal (cfr. artigo 409.º do CPP). Contudo, o legislador nunca justificou materialmente a importação da solução do processo penal para o processo de contraordenação. E, em especial, nunca justi-ficou por que razão adoptava no processo de con-traordenação uma limitação ainda mais intensa do que aquela que vigorava no processo penal: é que a solução de 1995 proibiu a reformatio in

peius em todos os casos, enquanto essa proibição no processo penal é limitada a algumas situações, como adiante se verá. Uma justificação para essa opção deveria assim ter sido apresentada, mas não foi. Se o legislador tivesse reflectido nas di-ferenças estruturais e axiológicas entre os dois sectores do sistema jurídico (o Direito Penal e o Direito de Mera Ordenação Social) facilmente se aperceberia que não se justificava importar tal regime (rectius, seria inadmissível importar tal regime) e muito menos limitar de forma absoluta os poderes decisórios do Tribunal de recurso. Em síntese: a reforma de 1995 sobrevalorizou o problema das garantias de defesa do arguido e

24- Com inteira razão, sublinha o Tribunal Constitucional, no seu Ac. n.º 499/1997 (Maria Fernanda Palma), referindo-se ao processo penal, que «a conformação da proibição de reformatio in peius, numa perspectiva jurídica que pondere globalmente todos os fins do sistema não deve, na realidade, considerar apenas uma perspetiva de interesse do arguido, devendo, por isso, o âmbito da proibição ser delimitado na conexão entre as garantias de defesa e a realização da justiça» (www.tribunalcons-titucional.pt, p. 7)

25- Como tive ocasião de sublinhar na altura: cfr. «O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade da intervenção penal», RPCC 7 (1997), p. 86-87. Um panorama doutrinário muito crítico sobre o tema encon-tra-se em PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do RGCords (cit. nt. 23), artigo 72.º-A, anotação 1, p. 294.

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ignorou tudo o resto, com nefastas consequên-cias para o funcionamento deste sector do siste-ma jurídico nacional.

Nestes termos, uma primeira e elementar veri-ficação se deve fazer a propósito da questão das garantias e da consagração da proibição da re-

formatio in peius: tratou-se da consagração de uma solução importada do Código de Processo Penal, que ganhou contornos ainda mais rígidos no processo de contraordenação, e que alterou qualitativamente o sistema do Direito de Mera Ordenação Social, subvertendo o seu espírito e adulterando o seu regime, sem que – e este é ou-

tro aspecto decisivo – ninguém verdadeiramente a reclamasse. Nem as autoridades administra-tivas com competências sancionatórias, nem o Ministério Público, nem os Tribunais, nem os arguidos e seus defensores defenderam publica-mente ou em qualquer fonte susceptível de ser cientificamente controlada que fosse essencial ou sequer importante consagrar a proibição de reformatio in peius para garantir ou preservar o direito de defesa dos arguidos em processo de contraordenação. Foi, por assim dizer, deste ponto de vista uma alteração desnecessária à lei vigente.

c) A posição da doutrina e o surgimento dos re-

gimes especiais

A doutrina reagiu criticamente à adopção da proibição geral de reformatio in peius introdu-

zida no processo de contraordenação na reforma de 1995 e a partir de 2006 começaram a surgir excepções expressas nos diversos regimes san-cionatórios sectoriais.

A solução de 1995 de proibir a reformatio in

peius no processo de contraordenação, em quase todos os casos (desde a impugnação judicial ao recurso) foi profundamente criticada pela dou-trina maioritária.26 Sirva de exemplo a posição assumida (logo em 1997) por Germano Marques da Silva que, de forma acutilante, considerou que ao consagrar a proibição de reformatio in peius o legislador «se convida à interposição indiscrimi-nada de recursos, por uma parte, pode também determinar na prática que a autoridade adminis-trativa decidente seja tentada a subir o limite da sanção aplicada, em prejuízo da justiça», sendo incompreensível que o processo de contraor-denação adotasse mais garantias (pelo menos formais) do que o processo criminal, acolhendo simultaneamente um regime que acabava por as remeter para a fase de impugnação judicial.27 Pouco tempo depois (em 2001), Américo Taipa de Carvalho resumia exemplarmente a crítica à solução de 1995 afirmando que a transposição do regime do processo penal para o processo de contraordenação era «acrítica, injustificável e pode ter efeitos perversos».28

A partir daí, o legislador iniciou uma tendência oposta e, sem revogar a solução consagrada no

26- Um bom apanhado das posições críticas encontra-se em PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do RGCords (cit. nt. 23), art. 72.º-A, anotação 1, p. 294.

27- GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, volume I, Lisboa: Verbo, 1997, p. 141-142.

28- AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal, Parte Geral, 2.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 139-140, posição que remonta à primeira edição da obra datada de 2001: entre os vários efeitos indesejáveis aponta igualmente o recurso mesmo quando o arguido considera a sanção justa, com sacrifícios de celeridade processual, a transferência acrítica das garantas processuais da fase administrativa para a fase judicial ou mesmo o agravamento das sanções na fase administra-tiva. CARLOS ADÉRITO TEIXEIRA, «Direito de Mera Ordenação Social: o ambiente como espaço da sua afirmação», RMP n.º 85 (2001), p. 89, compreende a vertente de garantia da solução, mas identifica também efeitos indesejáveis como o aumento das impugnações e das pendencias judiciais e o desincentivo ao pagamento voluntário da coima. Tive igualmente ocasião de formular críticas semelhantes, sublinhando a banalização do direito ao recurso e o aumento injustificado das impugnações e prescrições (cfr. RPCC 7 (1997), p. 86-87. Acolhendo estas reservas, PEDRO CAEIRO e MIGUEL ÂNGELO LEMOS, Administrative Sanctions [Portuguese Report], texto policopiado, p. 26, nota 57. Mais tarde, em parecer não publicado enviado à PGR e ao Governo, defendi – tal como faço no presente texto – a inconstitucionalidade da figura da proibição de

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artigo 72.º-A do RGCords, passou a criar regi-mes excepcionais, fazendo com que em certos sectores deixasse de vigorar proibição de refor-

matio in peius nos processos de contraordena-ção. Assim, tal regime especial vigora actual-mente no mercado de valores mobiliários (artigo 416.º, n.º 8, do Código dos Valores Mobiliários), nas contraordenações ambientais (artigo 75.º da Lei Quadro das Contraordenações Ambientais), no sector bancário (artigos 222.º, n.º 2, alínea d), e 230.º, n.º 3, do Regime Geral das Instituições de Crédito), no âmbito do direito da concorrên-cia (artigo 88.º da Lei da Concorrência) e foi este ano proposta a sua adopção no domínio dos seguros (Proposta de Lei n.º 326/XII, 4.ª, sobre o regime de acesso e exercício da actividade se-guradora, apresentada na presente legislatura ao Parlamento).

O resultado passou a ser um sistema em que o mesmo tipo de processo segue dois regimes di-ferentes em matéria de reformatio in peius: no regime geral vigora uma proibição genérica, enquanto nos regimes especiais vale a solução oposta.

5. CONTEÚDO PROCESSUAL DA PROIBIÇÃO DE REFORMATIO IN PEIUS

Qual é o conteúdo e alcance prático da proibição de reformatio in peius no processo de contraor-denação? Ou seja, a que casos é que se se aplica e que limites decisórios decorrem de tal proibi-ção para o Tribunal que aprecia a impugnação ou o recurso?

É, desde logo, inequívoco que a proibição de re-

formatio in peius se aplica quer na impugação

da decisão da autoridade administrativa junto do Tribunal de primeira instância, quer no re-curso da decisão deste para o Tribunal da Rela-ção. A solução poderia (e deveria) ser diferente, mas esta foi uma opção do legislador de 1995. A letra do artigo 72.º-A do RGCords confirma--o plenamente ao prever expressamente as duas situações. Menos clara é a resposta a alguns dos casos que adiante se analisam.

a) Decisões abrangidas pela proibição de refor-matio in peius

A primeira questão controvertida que se coloca consiste em saber se essa proibição é aplicável a todas as decisões da autoridade administrativa ou só à decisão final.

Na fase organicamente administrativa do proces-so de contraordenação podem ser judicialmente impugnadas as decisões interlocutórias, ao abri-go do artigo 55.º do RGCords, e as decisões fi-nais que apliquem coimas e sanções acessórias, por referência aos artigos 58.º e 59.º do RGCor-ds. Para Paulo Pinto de Albuquerque a proibição de reformatio in peius contida no artigo 72.º-A do RGCords vale para ambas.29 Mas, salvo me-lhor opinião, isso não parece possível sem algu-ma argumentação adicional, porque as decisões interlocutórias não aplicam coimas nem sanções acessórias e o regime do artigo 72.º-A só proíbe o agravamento da sanção. Assim, se a decisão interlocutória impugnada disser por exemplo respeito a um prazo concedido pela autoridade administrativa, à admissão parcial de uma dili-gência de prova ou a uma medida cautelar não estão em causa sanções e como tal não se pode

reformatio in peius no processo de contraordenação («Divulgação das decisões condenatórias e reformatio in peius em pro-cesso de contraordenação», (Parecer), 2003, p. 31-49). Sobre o tema, mais recentemente, TIAGO LOPES DE AZEVEDO, Da subsidiariedade no direito das contra-ordenações, Coimbra: Coimbra editora, 2011, p. 164-169, criticando a aplicação da proibição na fase de impugnação judicial, aceitando-a contudo na fase de recurso para a Relação. Também ALEXANDRA VILELA, O Direito de Mera Ordenação Social, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 481 e ss, considerando, por seu turno, que o princípio da proibição de reformatio in peius não se deveria aplicar quando o Tribunal decida o caso em audiência (por considerar que a sucessão de controlo pela autoridade administrativa, pelo MP e pelo Tribunal, sem que tenha havido retirada da acusação, fazem com que a proibição careça de sentido) (p. 485).

29- PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do RGCords (cit. nt. 23), art. 72.º-A, anotação 3, p. 295.

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aplicar literalmente o regime do artigo 72.º-A do RGCords. A norma só proíbe modificar as san-ções em prejuízo dos arguidos e não modificar prazos, recusar diligências de prova ou agravar medidas cautelares em desfavor do arguido. Só aplicando por analogia o regime da proibi-ção da reformatio in peius ao agravamento da posição jurídica do arguido é que se obteria o mesmo resultado. Mas tal não parece igualmente possível porque, por um lado, não é evidente que exista uma lacuna (pressuposto essencial para se recorrer à analogia) e, por outro, o princípio da legalidade processual (artigo 43.º do RGCords) impede a criação doutrinária ou judicial de so-luções processuais sem um mínimo de apoio no texto da lei.

Numa palavra: a solução do artigo 72.º-A do RGCords não se aplica à impugnação das deci-sões interlocutórias da autoridade administrativa por as mesmas não aplicarem sanções.

b) Conteúdo e limites das modificações proibidas

Uma segunda questão consiste em saber quando é que a sanção se considera modificada em pre-juízo do arguido? Em alguns casos a resposta é linear, mas noutros poderá ser menos evidente.

É pacífico que o agravamento quantitativo do va-lor da coima ou da sanção acessória aplicada pela autoridade administrativa estão proibidos por força do artigo 72.º-A do RGCords.30 De igual modo, a proibição de reformatio in peius impede a aplicação de uma sanção acessória quando ne-nhuma sanção desta natureza tenha sido aplicada pela autoridade administrativa.

Questão mais controversa será a de saber se é possível ao Tribunal substituir uma sanção aces-sória por outra legalmente prevista mas não apli-cada pela autoridade administrativa. Uma deci-são desta natureza implicará sempre a revogação da sanção acessória aplicada e a aplicação de uma nova sanção. Por isso, apesar de não ser um caso manifesto de agravação, é possível afirmar que a nova sanção constitui uma agravação su-cessiva perante a revogação da sanção acessória que vinha da fase administrativa.

Tão pouco parece possível o Tribunal de julga-mento agravar a coima por ter revogado a sanção acessória.31 Ao contrário do que sugere Göhler, documentando uma tendência da jurisprudência alemã, que permite a agravação da coima quan-do é revogada a interdição temporária de con-dução,32 a proibição de reformatio in peius tem de ser ponderada autonomamente em relação a sanções de distinta natureza e não podem ser consideradas em conjunto para esse efeito.

A perda das vantagens obtidas com a prática do ilícito não constitui uma sanção a determinar pelo Tribunal, mas sim uma consequência legal imperativa perante um facto determinado. Os montantes em causa também não fazem parte do objecto do processo, como foi já sublinhado pelo Tribunal Constitucional,33 razão pela qual podem variar (se tal tiver fundamentação nos au-tos) sem estarem condicionados pela exigência de estabilidade do objecto do processo. Por isso, está fora da solução acolhida no artigo 72.º-A do RGCords, sendo como tal permitida, a deter-minação em recurso de montante mais elevado

30- Esta limitação deixa de existir se situação económica do arguido tiver melhorado de forma sensível, como decorre do n.º 2 do artigo 72.º-A. Sobre o tema, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do RGCords (cit. nt. 23), art. 72.º-A, anotação 4, p. 295.

31- Neste sentido, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do RGCords (cit. nt 23), art. 72.º-A, anotação 4, p. 295.

32- GÖHLER, Ordungswidrigkeitengesetz (cit. nt. 21), § 72, n.º 58, p. 679.

33- Neste sentido, o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 336/2006, de 18 de Maio (Benjamim Rodrigues), n.º 10, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.

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obtido com a prática do ilícito a ser perdido a favor do Estado ou de um sistema público equi-valente, desde que fundamentado por referência aos autos.

c) Alteração da qualificação jurídica e proibi-

ção de reformatio in peius

Tem sido igualmente sublinhado que a altera-ção da qualificação jurídica pelo Tribunal que conhece a impugnação não implica violação da proibição de reformatio in peius, pelo menos nos casos em que a sanção aplicada não for quanti-tativamente agravada.34 O que a contrario sensu autoriza que se discuta se uma alteração da qua-lificação jurídica poderá violar a proibição de re-

formatio in peius por implicar um agravamento quantitativo da sanção aplicada.

Na tradição jurídica portuguesa este era um caso excluído da proibição de reformatio in peius, porque se entendia que as exigências de legali-dade e justiça prevaleciam sobre as garantias de defesa, não se podendo negar ao Tribunal supe-rior a possibilidade de corrigir erros de qualifi-cação jurídica dos tribunais inferiores, pois essa seria em parte a sua razão de ser.35 Significava isto que a possibilidade de alteração da qualifi-cação jurídica não estava limitada pela gravidade da sanção da nova qualificação comparando com

aquela que constava da decisão recorrida. Entre a reposição da legalidade e a tutela da posição jurídica do arguido prevalecia a primeira.36 Parece ser esta ainda a posição assumida pelos Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça no domínio do processo penal, desde que seja res-salvado o contraditório. 37

No quadro actual, não existindo excepção ex-pressa ao âmbito do artigo 72.º-A do RGCords, parece que a solução que melhor se adequa ao regime vigente consiste em permitir a alteração da qualificação jurídica (seguindo o regime do artigo 358.º, n.º 3, do CPP) mesmo que a san-ção abstracta seja mais grave (coima ou sanções acessórias), mas sem permitir ultrapassar o li-mite concreto da sanção que consta da decisão recorrida.38

Se, por outro lado, a alteração da qualificação jurí dica for num sentido favorável ao argui-do (por exemplo, passagem de uma imputação dolosa a negligente) mas o Tribunal mantiver a concreta sanção aplicada anteriormente não existe violação da proibição da reformatio in

peius, pois esta consiste na proibição de modi-ficar a sanção no sentido prejudicial ao arguido e não obriga o Tribunal a desagravar a sanção concreta por mutação da qualificação jurídica.39

34- Cfr. Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 20-03-2013 (Eduarda Lobo), disponível em www.dgsi.pt. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do RGCords, artigo 72.º-A, anotação 5, p. 296, considera que a proibição de agravação vigora mesmo quando se modifica a qualificação jurídica. Também GÖHLER, Ordnungswidrigkeitengesetz (cit. nt. 21), § 72, n.º 59, p. 679, mas sem referir o limite da sanção.

35- CÂMARA CORPORATIVA (cit. nt. 1), BMJ n.º 180 (1968), p. 138 e ss.

36- Sobre estas tensões, JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, O caso julgado parcial (cit. nt 5), p. 230 e ss, bem como a informação em notas 242 e ss, e p. 436 e ss.

37- ANTÓNIO PEREIRA MADEIRA, in ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR et al., Código de Processo Penal Comentado, Coimbra: Almedina, 2014, artigo 409.º, anotação 7, p. 1346.

38- Neste sentido, o Ac. do STJ, de 06.02.2014 (Oliveira Mendes), no domínio do direito penal. Na doutrina, JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, O caso julgado parcial (cit. nt. 5), p. 234 e notas, e p. 438, onde se expressam as dúvidas e críticas ao regime legal e à compreensão dominante do mesmo. Note-se que podem contudo existir outros efeitos reflexos desfavoráveis, como por exemplo o aumento dos prazos legais de prescrição em função das novas sanções abstractas aplicadas com a nova qua-lificação jurídica dos factos.

39- Em sentido oposto, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do RGCords (cit. nt. 23), artigo 72.º-A, anotação 6, p. 296, considerando que tal caso viola a proibição de reformatio in peius.

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A PROIBIÇÃO DE REFORMATIO IN PEIUS E O PROCESSO DE CONTRAORDENAÇÃO 149

Ou seja, o Tribunal está proibido de agravar a sanção para além do limite previamente fixado, não está obrigado a diminuir a sanção por alte-rar a qualificação jurídica dos factos. Tal só seria possível com lei expressa, o que não acontece entre nós.

O problema reduz-se neste caso ao dever de fun-damentação: se o Tribunal tiver elementos para fundamentar a manutenção da sanção apesar da alteração da imputação de facto doloso para facto negligente a nova decisão é válida. Se tal não acontecer o vício dirá respeito ao dever de fundamentação e não à violação da proibição de reformatio in peius.

No fundo, nos sectores onde vigore tal proibição os efeitos jurídico-sancionatórios de uma altera-ção da qualificação jurídica feita em julgamento estão limitados pelo valor máximo das sanções aplicadas na fase organicamente administrativa do processo, apesar disso ter acontecido com uma qualificação jurídica distinta.

d) A agravação de sanções em caso de concurso

de contraordenações

Suscita-se ainda o problema de saber se em caso de concurso de contraordenações o Tribu-nal pode ou não agravar as sanções parcelares (as sanções concretas que cabem a cada uma das infracções) desde que não agrave a sanção única que resulta do cúmulo jurídico.

Os tribunais portugueses têm considerado que a proibição de reformatio in peius apenas impede nas situações de concurso efectivo a agravação da pena única, mas não a agravação das sanções parcelares.40 Tal não parece contudo possível porque, como notam Roxin e Schünemann, as sanções parcelares podem ser ressuscitadas se

for alterada ou posta em causa a pena única.41 O que pode acontecer, por exemplo, se em rela-ção a uma das infracções em concurso for decla-rada a prescrição do procedimento ou nos casos de concurso superveniente. Neste caso, terá que ser formada nova «pena única» a partir das «pe-nas parcelares» (artigo 19.º do RGCords e artigos 77.º e 78.º do Código Penal), o que implicará que passa a ter relevância a agravação quantitativa de uma das penas parcelares entretanto modificada.

e) Revogação da decisão por ilegalidade com

um resultado desfavorável ao arguido

Uma questão mais complexa consiste em saber se a proibição de reformatio in peius impede ou não a revogação de uma decisão que tenha ile-galmente atribuído uma vantagem sancionatória ao arguido. Por exemplo, se o Tribunal superior revogar uma decisão que tenha aplicado errone-amente uma norma favorável, como uma lei de amnistia fora dos seus pressupostos legais, que tenha aplicado ilegalmente um perdão de pena (total ou parcial) ou que tenha declarado por erro e ilegalmente a prescrição do procedimento. O problema pode ainda ser alargado à aplicação de outras normas favoráveis como as causas de exclusão do dolo por erro relevante, causas de justificação, causas de desculpa ou causas de não punibilidade ou mesmo a declarações de nuli-dade de actos processuais e inadmissibilidade de provas proibidas.

O Tribunal Constitucional já ponderou um in-teressante caso desta natureza, num processo por abuso de confiança e falsificação agravada: considerou que permitir a revogação do perdão de pena parcial pelo Tribunal superior em caso de recurso interposto exclusivamente pelo argui-do, por se considerar o caso não abrangido pela

40- Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (Brízida Martins), de 04-10-2006, in www.dgsi.pt, concluindo que o respeito pela proibição de reformatio in peius se afere «pelo quantitativo único e não pelas penas parcelares».

41- ROXIN/SCHÜNEMANN, Strafverfahrensrecht, 26. Auflage, München: Beck, 2009, p. 413. Com a mesma conclusão, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do RGCords (cit. nt. 23), artigo 72.ºA, anotação 6, p. 296.

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proibição de reformatio in peius do artigo 409.º, n.º 1, do CPP, seria inconstitucional, por viola-ção do artigo 32.º, n.º 1, e nº 5, da Constituição.

Na construção argumentativa do Tribunal Cons-titucional assumiu um particular relevo o facto de a reposição da legalidade pelo Tribunal su-perior ser feita à custa do princípio do contra-ditório, já que o arguido não tinha oportunidade de se pronunciar sobre tal decisão do Tribunal superior.42 Ou seja, de acordo com esta perspec-tiva a proibição de reformatio in peius abran-gerá – pelo menos no processo penal – o efeito

desfavorável reflexo resultante da revogação de uma decisão que aplique uma norma favorável ilegalmente, caso o recurso tenha sido interposto exclusivamente pelo arguido.

O entendimento apontado pelo Tribunal Cons-titucional é compreensível à luz dos princípios constitucionais invocados, em especial perante o direito do arguido ao contraditório. Mas a in-vocação deste princípio é igualmente indiciador da fraca fundamentação oferecida ao regime da proibição da reformatio in peius pelo argumento da tutela do direito de defesa ou do direito ao recurso e motiva, em si mesmo, outras dúvidas: caso o tribunal superior em tal situação cumpra o disposto no (actual) artigo 424.º, n.º 3, do Có-digo de Processo Penal, ou o MP suscite a ques-tão no momento em que o processo vai a vistas (artigo 416.º e 417.º, n.º 2), garantindo-se desse modo o contraditório para alterar uma qualifica-ção jurídica com efeito reflexo desfavorável ao arguido, a solução já seria válida?

Se o aspecto decisivo for o respeito pelo contra-ditório, caso este seja cumprido não haverá uma decisão ilegal; diversamente, se se considerar que, apesar de garantido o contraditório, sub-siste uma violação do regime constitucional que fundamenta a proibição de reformatio in peius isso apontará necessariamente para outro funda-mento constitucional dessa garantia.

A questão transcende o objecto deste estudo. Mas a análise realizada sugere que a reposição da legalidade com respeito pelo contraditório (em especial nas questões de conhecimento ofi-cioso, como nulidades insanáveis e provas proi-bidas) não está inequivocamente proibida pelo regime legal da proibição de reformatio in peius.

6. A PROIBIÇÃO DE REFORMATIO IN PEIUS: UMA GARANTIA CONSTITUCIONAL IMPLÍCITA OU UMA SIMPLES GARANTIA PROCESSUAL?

Analisados os regimes da proibição de reforma-

tio in peius e da sua ausência, tal como o con-teúdo normativo da primeira solução, importa agora enfrentar outro problema aflorado repe-tidas vezes e relevante para a aferição da cons-titucionalidade do regime geral e dos regimes especiais. Qual o estatuto constitucional da proi-bição da reformatio in peius? De forma mais es-pecífica: a proibição de reformatio in peius será uma garantia constitucional incluída no acervo das garantias do processo penal? E deve vigo-rar igualmente por imperativo constitucional nos processos sancionatórios de direito público? Ou, diversamente, corresponderá a uma mode-lação traçada pela lei ordinária (uma opção de política legislativa, manifestação da liberdade de conformação do legislador) sem acolhimento constitucional inequívoco?

1. Pode com segurança afirmar-se que a proibi-ção de reformatio in peius em direito sanciona-tório público (direito penal, direito das contraor-denações e direito disciplinar da função pública) não é uma garantia constitucional explícita. A história da afirmação desta figura entre nós e nos ordenamentos jurídicos estrangeiros confir-ma-o inequivocamente. Ao contrário de algumas garantias fundamentais claramente enunciadas – como o direito de defesa, a estrutura acusató-ria, a presunção de inocência, o direito ao con-traditório, o juiz natural ou o ne bis in idem – a proibição de reformatio in peius não tem acolhi-

42- Ac. do Tribunal Constitucional n.º 499/1997, de 10 de Julho (Maria Fernanda Palma), em especial nº 11 a 14 da decisão.

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mento expresso em qualquer norma constitucio-nal. Portanto, a sua dimensão constitucional só pode ser identificada por via argumentativa, por referência a princípios ou regimes, na exacta me-dida em que a interpretação de algumas normas constitucionais possa comportar a exigência de proibição de reformatio in peius.

Em si mesmo, este facto dificulta qualquer argui-ção de inconstitucionalidade dos regimes que não contemplem a proibição de reformatio in peius: se o texto constitucional não lhe deu acolhimen-to explícito, isso pode significar que se trata de matéria da livre conformação do legislador ordi-nário dentro dos demais limites constitucionais e não uma imposição decorrente dos princípios acolhidos na «Constituição penal».43 Não é, por isso, evidente e completamente segura a relevân-cia constitucional da garantia de proibição de re-

formatio in peius que, na melhor das hipóteses, poderá estar associada por mera interpretação doutrinária ao reforço da dimensão normativa de outros princípios constitucionais explícitos. O que constituirá sempre um apoio demasiado incerto para fundar um juízo categórico de in-constitucionalidade. A história legislativa da fi-gura entre nós e a sua modelação no âmbito da alteração de 1969 ao Código de Processo Penal de 1929 pode, aliás, corroborar a ausência de re-levância constitucional desta garantia associada à interposição do recurso apenas pelo arguido.

2. Acresce que o enquadramento constitucional da proibição de reformatio in peius ensaiado pela

doutrina portuguesa contemporânea no domínio do processo penal também não é completamen-te coincidente: uma primeira linha de orienta-ção considera que se trata de uma garantia do direito ao recurso e, portanto, de uma garantia de de fesa; uma outra linha de compreensão do instituto, identifica-o como uma garantia proces-sual associada à estrutura acusatória do proces-so penal. Vejamos, primeiro, em que termos tal acontece no domínio do processo penal e, depois (n.º 3), se tal enquadramento é ou não igualmen-te pertinente no direito das contraordenações.

a) Na primeira perspectiva, a relação entre a proibição de reformatio in peius e a garantia constitucional do direito de defesa é mais line-ar. Numa formulação tradicional, a proibição de reformatio in peius seria uma condição de livre interposição do recurso.44 E, nesse sentido, se-ria uma garantia reclamada «pela plenitude das garantias de defesa» vigentes no processo penal no sentido usado pelo Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 499/1997, acima citado. Em causa estaria portanto o conteúdo normativo do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, o direito ao recurso em nome da plenitude das garantias de defesa.

A explicação apesar de comum é contudo algo insuficiente, pois se assim fosse sempre que o arguido recorresse deveria ter a garantia de proibição de reformatio in peius, independente-mente do recurso ser igualmente interposto pelo Ministério Público.45 O que não acontece e por

43- Coincidente quanto a esta incerteza, JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, O caso julgado parcial (cit. nt. 5), p. 224 e ss: «Porém – como ora iremos demonstrar –, é difícil, à luz das soluções do direito nacional, retirar uma qualquer conclusão inequívoca num ou noutro sentido» (p. 229). Como veremos adiante, o Autor ultrapassa estas dúvidas e associa a proibição da reformatio in peius ao significado e alcance do princípio da acusação num processo penal com estrutura acusatória.

44- PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição, Lisboa: UCE, 2011, artigo 409.º, anotação 1, p 1074; PEREIRA MADEIRA, in Henriques Gaspar et al., Código de Processo Penal Comentado, Coimbra: Almedina, 2014, artigo 409.º, anotação 1, p. 1344. Na Alemanha, ROXIN/SCHÜNEMANN, Straverfahrensrecht (cit. nt 41), p. 412. Sobre o significado e contradições da função de reforço da proibição de reformatio in peius em relação ao direito de defesa, JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, O caso julgado parcial (cit. n.t 5), p. 229 e ss.

45- Com um outro alcance e profundidade, afirma JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, O caso julgado parcial (cit. nt 5), p. 227, que a proibição de reformatio in peius não uma garantia ou, pelo menos, não constituiu uma garantia autónoma, porque é o próprio processo que é a garantia.

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ninguém é defendido. O que existe então de ca-racterístico na proibição de reformatio in peius associada à interposição do recurso no exclusivo interesse do arguido é o facto de se poder lesar o direito ao contraditório com a nova decisão pro-ferida pelo Tribunal ad quem. Ao agravar a res-ponsabilidade do arguido recorrente, em sentido contrário à sua pretensão, o Tribunal superior estaria a proferir uma decisão de surpresa, mais grave, sem que tal hipótese tivesse sido colocada no horizonte do processo pelo recurso de outro sujeito processual, sem ouvir o arguido quanto a tal hipótese e sem lhe oferecer, em alguns casos, direito de recurso dessa dimensão sancionatória contrária aos interesses do recorrente.

Entre nós, vai neste sentido o entendimento do próprio Tribunal Constitucional que parte da in-vocação das garantias de defesa, mas acabar por articular tal fundamento com a necessidade de salvaguarda do princípio do contraditório. No Acórdão n.º 499/97, de 10 de Julho (relatora Ma-ria Fernanda Palma), o Tribunal Constitucional considera que a proibição de reformatio in peius em caso de recurso penal interposto exclusiva-mente pelo arguido é reclamada pela plenitude das garantias de defesa em processo penal (p. 7) e, de forma mais específica, como salvaguarda do princípio do contraditório, previsto no n.º 5 do artigo 32.º da Constituição (p. 8-9).

b) Uma outra linha de fundamentação associa a garantia de proibição de reformatio in peius à es-trutura acusatória do processo penal. Esta orien-tação remonta a Castanheira Neves, foi assumida e clarificada por Figueiredo Dias e, em data mais recente, foi densificada por Damião da Cunha.

Para Castanheira Neves a proibição de reforma-

tio in peius constitui uma implicação do princí-pio do acusatório46 e para Figueiredo Dias ela é

apresentada não só como uma consequência do princípio da acusação, mas como um autêntico reforço de toda a estrutura acusatória.47 Na cons-trução de Damião da Cunha, que partilha este horizonte amplo dos problemas, o princípio da proibição da reformatio in peius não deve ser visto como uma garantia autónoma em relação ao processo, mas sim como uma consequência do princípio da acusação num processo penal de estrutura acusatória. Se bem sintetizo o seu pen-samento, ao não recorrer da decisão do Tribunal o Ministério Público confirma que a mesma é conforme à pretensão acusatória, sendo esta que limita os poderes decisórios do Tribunal (de jul-gamento e de recurso) num modelo de processo penal com uma estrutura acusatória. Numa pala-vra, a proibição de reformatio in pejus constituirá uma limitação à liberdade decisória do Tribunal por respeito para com o princípio da acusação.48

3. Em minha opinião, estas explicações originá-rias do processo penal não justificam a vigência da proibição de reformatio in peius na impugna-ção judicial da decisão da autoridade administra-tiva em processo de contraordenação.

A história das garantias constitucionais em pro-cesso de contraordenação confirma que o legis-lador não quis importar para esta modalidade de processo todas as garantias do processo penal, tendo sido intencionalmente cauteloso neste domínio. E, por isso mesmo, a formulação nor-mativa é distinta: enquanto o processo criminal assegura constitucionalmente «todas as garantias de defesa» (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição), no processo de contraordenação «são assegura-dos ao arguido os direitos de audiência e defe-sa» de forma explícita. Em suma, mesmo que se possam identificar outras garantias para além da audição e defesa, é certo que em processo de

46- CASTANHEIRA NEVES, Sumário de processo criminal (1968) (cit. nt. 11), p 36-37.

47- FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal (1974) (cit. nt. 14), p. 259.

48- JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, O caso julgado parcial (cit. nt. 5), p. 656-660, em ligação com o que escreve a p. 222 e ss.

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contraordenação não vale o princípio da pleni-tude das garantias de defesa.49

Tão pouco se pode justificar o regime de proi-bição de reformatio in peius no momento da impugnação judicial da decisão administrativa por referência ao princípio do contraditório. O contraditório está plenamente garantido pelo conteúdo da impugnação judicial, pela participa-ção activa do arguido e da sua defesa no julga-mento, na produção de prova e na resolução das questões de direito, pelas alegações finais e pelo direito de recurso da decisão judicial. Ao con-trário do que acontece nos recursos interpostos apenas pelo arguido em processo penal, no pro-cesso de contraordenação, depois de apresentada a impugnação judicial, o arguido tem direito a um contraditório extenso e pleno, que lhe permi-te influenciar e questionar todo o julgamento e a nova decisão judicial que vai substituir a decisão administrativa impugnada.50

De igual modo, pouco se consegue do ponto de vista da densificação racional dos regimes cons-titucionais invocar genericamente as garantias do processo equitativo51 ou a tutela jurisdicional efectiva.52 Estas matrizes não comportam neces-sariamente a proibição de reformatio in peius, enquanto patamar constitucional de preservação das garantias de defesa e, por isso, não podem ser usadas para decidir sobre a inconstitucionali-dade de um regime que excepcione tal proibição. A tutela jurisdicional efectiva exige a possibi-lidade de acesso aos tribunais, mas não impõe um certo modelo de processo ou um certo regi-me de recursos, matéria que se situa na margem de liberdade de conformação do legislador.53 Para além da natureza vaga e imprecisa da ga-rantia do processo equitativo, é significativo que na sua densificação a doutrina constitucional não inclua a proibição de reformatio in peius.54 Per-cebe-se a razão: na matéria da proibição de refor-

49- Por isso mesmo, não são procedentes as críticas de NUNO SALAZAR CASANOVA e CLÁUDIO MONTEIRO, «Comen-tários à Lei-Quadro das Contra-ordenações ambientais», Actualidad Jurídica Uría Menéndez, 16 (2007), p. 72, dirigidas ao regime especial que vigora em matéria ambiental, porque tais críticas se traduzem na aplicação directa dos considerandos que o Tribunal Constitucional faz para o processo penal ao processo de contraordenação, onde não vigora o princípio da plenitude das garantias de defesa do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição. A extensão das garantias penais ao processo de contraordenação também não é possível com base numa «analogia material dos problemas e soluções», como propõem JOSÉ LOBO MOUTINHO e PEDRO GARCIA MARQUES, in AAVV, Lei da Concorrência, Comentário Conimbricense, Coimbra: Almedina, 2013, p. 846-847, pois tal metodologia implica um construtivismo doutrinário, casuístico e incerto, que pelos riscos de subjectivismo e imprevisibilidade derroga as matrizes essenciais da legalidade e estabilidade do processo. Deve ser o legislador a estabelecer a equiparação ou extensão de garantias nos processos sancionatórios e não a doutrina fazê-lo por transposição, sempre discutível, das garantias penais. Sobre a fundamentação e consequências desta diferenciação em relação à plenitude das garantias de defesa em processo penal, ANTÓNIO LEONES DANTAS, «Os direitos de audição e de defesa nos processos de contra-ordenações», Revista do CEJ n.º 14 (2010), p. 293 e ss; e FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO (cit. nt. 22) RPCC 23 (2013), p. 86 e ss, p. 100-108, e elementos históricos da nota 52.

50- Em termos semelhantes, TIAGO LOPES DE AZEVEDO, Da subsidiariedade no direito das contra-ordenações (cit. nt. 28), p. 164 e ss, para a fase de impugnação judicial (e, por isso mesmo, defende que só quando não exista direito a recorrer para a Relação é que será equitativo proibir a reformatio in peius, mas não nos demais casos na fase de impugnação). Já na fase de recurso para a Relação entende que deve vigorar a proibição de forma plena (p. 156 e ss).

51- TIAGO LOPES DE AZEVEDO, Da subsidiariedade no direito das contra-ordenações (cit. nt 28), p. 158, por referência ao pensamento de António Henriques Gaspar, expresso no voto de vencido ao Ac. STJ de 03.04.2003 (Borges de Pinho).

52- LUIS GUILHERME CATARINO, Regulação e Supervisão dos Mercados de Instrumentos Financeiros, Coimbra: Almedina, 2010, p. 764. Criticamente, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do RGCords (cit. nt. 23), art. 72.º-A, anotação 1, p. 295.

53- Assim, RUI MEDEIROS, in Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, 2.ª edição, Coimbra; Coimbra Editora, 2010, artigo 20.º, p. 451, fora dos domínios específicos com que densifica o direito de acesso aos tribunais.

54- Veja-se, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4.ª edição revista, Coimbra: Coimbra Editora, artigo 20.º, anotação X e XI, p. 414-416; RUI MEDEIROS, in Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, cit. nt. 53, artigo 20.º, anotações respectivas.

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matio in pejus o princípio do processo equitativo não determina por si só uma certa solução, pois carece de ser articulado com outras explicações (como o princípio da acusação, a estrutura acusa-tória e a falta de interesse do MP em alterar uma situação jurídica consagrada numa sentença).55

Finalmente, a estrutura acusatória surge como uma exigência constitucional para o processo penal, mas não para o processo de contraordena-ção, que tem uma estrutura, sujeitos, organiza-ção e valores distintos. Sendo possível em nome do princípio da acusação e da estrutura acusa-tória limitar os poderes decisórios do Tribunal em processo penal, um tal quadro de análise e valoração já não e transponível para o processo de contraordenação por envolver uma decisão de uma autoridade administrativa proferida noutra fase do processo.56 A inexistência de uma exi-gência constitucional relativa à estrutura acusa-tória do processo de contraordenação impede que seja este referente constitucional a determinar a vigência da proibição de reformatio in peius na impugnação judicial da decisão administrativa.

Em síntese, nenhum dos fundamentos usados pela doutrina e jurisprudência actuais para le-gitimar constitucionalmente a proibição de re-

formatio in peius em processo penal é válido para a impugnação judicial da decisão admi-nistrativa no processo de contraordenação. Isto mesmo acabou por ser reconhecido no (recen-tíssimo) Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 373/2015 (João Cura Mariano) ao considerar que o artigo 418.º, n.º 8, do CdVM, não viola di-reito à tutela jurisdicional efetiva, nem o direito de defesa, nem o princípio da igualdade.

7. A INADEQUAÇÃO DA PROIBIÇÃO DA REFORMA-TIO IN PEIUS À IMPUGNAÇÃO JUDICIAL DA DECISÃO ADMINISTRATIVA NO PROCESSO DE CONTRAORDE-NAÇÃO

A consagração da proibição de reformatio in peius na fase de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa é ainda juridica mente inadequada e revela-se mesmo um corpo estra-nho nesta fase processual. Contra tal opção do legislador podem apontar-se diversas objeções:

Em primeiro lugar, tal solução relaciona deci-sões de entidades diferentes: uma autoridade administrativa e uma autoridade judicial. O que, por si só, deveria suscitar reservas à limitação da competência do Tribunal por via da decisão de uma autoridade administrativa em nome da au-tonomia do poder judicial.

Em segundo lugar, a proibição de reformatio é incompatível com a realização de um julga-mento em que a decisão judicial substituirá a de-cisão administrativa. Não se consegue entender como é que o Tribunal realiza um julgamento pleno, com a participação do arguido e da sua defesa, que pode incluir produção de nova prova não contemplada na fase organicamente admi-nistrativa do processo, e ainda assim a decisão substituída consegue limitar a decisão judicial que a substitui.

Em terceiro lugar, a proibição de reformatio in

peius foi acolhida no processo de contraordena-ção numa situação em que os pressupostos de actuação dos sujeitos processuais e o momento de vigência da garantia são substancialmente dife rentes do que acontece nos casos em que tal solução vigora no processo penal.

55- O que se torna particularmente evidente, por exemplo, na declaração de voto de Henriques Gaspar, ao Ac. do STJ de 03.04.2003 (Borges de Pinho), onde articula o princípio do processo equitativo com outros princípios fundamentais do pro-cesso penal de forma a concluir pela aplicabilidade da proibição de reformatio in peius à reformatio indirecta.

56- Em sentido diverso, transpondo a argumentação da estrutura acusatória do âmbito do processo penal para o regime do processo de contraordenação, JOSÉ LOBO MOUTINHO e PEDRO GARCIA MARQUES, in AAVV, Lei da Concorrência, Comentário Conimbricense (cit. nt. 49), p. 844 e ss.

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No processo penal a proibição de reformatio in peius vigora nos casos em que, tendo todos os sujeitos processuais possibilidades de recor-rer da decisão judicial, apenas o arguido o faz. Portanto, nestes casos o recurso é interposto no exclusivo interesse do arguido e nenhum sujei-to processual assume pretensão oposta podendo fazê-lo (artigo 409.º, n.º 1, do CPP). Ora, tal não se verifica na impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa em que o direito de impugnar a decisão é apenas reconhecido ao ar-guido. Por si só, este aspeto já deveria ter obsta-do à importação do regime do direito processual penal para o processo de contraordenação.

Ademais, o facto de só o arguido poder impug-nar a decisão não significa que a impugnação da decisão administrativa que apresenta não seja controvertida. A autoridade administrativa pode em alguns casos responder à impugnação apresentada pelo arguido e o Ministério Público apresentará depois disso os autos a julgamento valendo tal acto como acusação pública (artigo 62.º do RGCords). Relevante para aferir a po-sição processual da autoridade administrativa e do Ministério Público no caso do processo de contraordenação é antes o facto de, apesar do contraditório e do controlo judicial, não ser re-vogada a decisão (artigo 62.º, n.º 2, do RGords), nem retirada a acusação como a lei permite (ar-tigo 65.º-A, do RGCords).57

Assim, enquanto no processo penal a proibição de reformatio in peius vigora para alguns re-cursos interpostos exclusivamente pelo arguido (ou pelo Ministério Público no interesse do ar-guido) depois de proferida a decisão do Tribunal, no processo de contraordenação diversamente o legislador de 1995 consagrou tal garantia para

um momento anterior à intervenção acusató-ria do Ministério Público, um momento ante-rior ao julgamento e à própria decisão judicial. Em suma, tratou-se de uma importação deslo-cada da garantia penal do recurso perante uma sentença proferida depois do julgamento para um momento anterior ao próprio julgamento no processo de contraordenação.

Finalmente, o regime de proibição de reforma-tio in peius acolhido no processo de contraorde-nação da forma ampla que o foi em 1995 acaba por banalizar o direito de impugnação judicial e favorecer a litigância artificial por parte dos ar-guidos com maior capacidade de organização de meios judiciais de defesa.

8. A INCONSTITUCIONALIDADE DA PROIBIÇÃO DE REFORMATIO IN PEIUS NA IMPUGNAÇÃO JUDICIAL DA DECISÃO DA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA

A solução de proibir genericamente a reformatio in peius logo na impugnação judicial da decisão administratativa é, na minha modesta opinião, para além de desnecessária, inconveniente e estra-nha ao Direito de Mera Ordenação Social, clara-mente inconstitucional em si mesma.58 Esta afir-mação apoia-se em três linhas de argumentação.

a) A natureza da impugnação judicial e o prin-cípio da separação de poderes

Introduzir a proibição da reformatio in peius no processo de contraordenação implica aceitar uma solução que se traduz no facto de os poderes de cognição do Tribunal (que conhece a impugna-ção e realiza o julgamento) serem limitados pelo conteúdo da decisão de uma autoridade adminis-trativa. O que, por seu turno, inutiliza os poderes autónomos de investigação do Tribunal (artigo 340.º do CPP), pois a descoberta da verdade

57- Sublinhando este último aspecto, ALEXANDRA VILELA, Direito de Mera Ordenação Social (cit. nt. 29), p. 485. Também por estas razões não se pode, sem mais, argumentar que se trata de um excesso de punição imposto pelo Tribunal sem qualquer impulso de outro sujeito processual, como fazem JOSÉ LOBO MOUTINHO e PEDRO GARCIA MARQUES, in AAVV, Lei da Concorrência, Comentário Conimbricense (cit. nt. 49), p. 848.

58- Posição que remonta a um parecer de minha autoria elaborado em 2003 «Divulgação das decisões condenatórias e refor-matio in peius em processo de contraordenação (Parecer)» (não publicado), depois reafirmada em RPCC 23 (2013), p. 76.

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mate rial acaba por estar subalternizada em rela-ção aos limites decisórios do Tribunal. De forma peculiar, podemos mesmo afirmar que vigorando a proibição de reformatio in peius em processo de contraordenação o Tribunal tem o dever le-gal de investigar e descobrir a verdade material (ar tigo 340.º do CPP), mas não pode decidir de acordo com o que identificou e apreciou: terá que deci dir de acordo o limite que resulta da decisão administrativa. Por isso Paulo Pinto de Albuquer-que59, seguindo a opinião de Göhler, afirma com razão que o regime da proibição da reformatio in peius é contrário à natureza da impugnação judi-cial que implica «uma transferência da questão do domínio da administração para o juiz». Tendo em conta que entre nós vigora um regime de se-paração de poderes, a proibição de reformatio in peius na impugnação judicial da decisão da auto-ridade administrativa é materialmente contrária ao artigo 111.º, n.º 1, da Constituição, já que por força de tal regime o poder judicial é condicio-nado pelo poder de autoridades administrativas.

b) O sacrifício da autonomia dos tribunais de julgamento

Com a proibição da reformatio in peius em processo de contraordenação, por outro lado, o poder judicial, apesar de realizar um julgamen-to sobre os factos que vai conhecer, não pode valorar esses elementos livremente aplicando a lei – porque está, exactamente, limitado pela decisão duma autoridade administrativa. Mais grave ainda: está limitado pela decisão prévia duma autoridade administrativa que pela sua natureza é provisória60 e a que a lei, na fase or-ganicamente judicial, apenas atribui um valor funcional de acusação (artigo 62.º do Regime Geral das Contraordenações). A sanção aplicada pela autoridade administrativa nessa decisão não produz qualquer efeito sobre o arguido uma vez impugnada a decisão final, mas ressurge de for-

ma fantasmagórica para produzir efeitos sobre a competência decisória do Tribunal. Portanto, a reforma de 1995 passou a tratar a decisão da autoridade administrativa de uma forma juridi-camente esquizofrénica: para algumas coisas a sanção deixa de existir e produzir efeitos, para outras continua a produzir efeitos apesar de com a impugnação judicial a decisão ser normativa-mente convertida em acusação. O regime atinge a sua contradição máxima quando no fundo a juris dição do tribunal está materialmente limi-tada pela decisão duma autoridade administra-tiva que não apreciou a prova que se produziu apenas em audiência e que o Tribunal deve valo-rar para proferir o Direito aplicável ao caso con-creto. Desta forma, é também violado o disposto no artigo 203.º da Constituição, pois o regime descrito lesa a autonomia do poder judicial e a sua estrita vinculação à lei.

c) A prevalência da decisão administrativa so-bre a decisão judicial

Finalmente, perante as consequências apre-sentadas não é difícil reconhecer que se inver-te igualmente a axiologia constitucional num ponto muito sensível: a decisão da autoridade administrativa acaba por prevalecer sobre os po-deres decisórios do Tribunal após a valoração da prova produzida perante este. Este resultado é o oposto do estipulado no artigo 205.º, n.º 2, da Constituição que determina que as decisões dos tribunais «(...) prevalecem sobre as de quaisquer entidades». A proibição de reformatio in peius em processo de contraordenação gera a solução oposta: quanto à determinação da responsabili-dade do arguido a decisão da autoridade admi-nistrativa prevalece sobre a decisão do Tribunal.

d) Conclusão

A consagração da proibição da reformatio in peius em processo de contraordenação no

59- PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do RGCords (cit. nt. 23), art. 72.º-A, anotação 1, p. 295.

60- Como sublinha de forma exacta PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do RGCords (cit. nt. 23), art. 72.ºA, anotação 1, p. 295.

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A PROIBIÇÃO DE REFORMATIO IN PEIUS E O PROCESSO DE CONTRAORDENAÇÃO 157

Regime Geral das Contraordenações em 1995 é contrária ao princípio da separação de poderes (artigo 111.º, n.º 1, da Constituição), inutiliza os poderes autónomos de investigação do Tribunal e viola o princípio da autonomia dos tribunais (artigo 203.º da Constituição) e subverte o prin-cípio da prevalência das decisões dos tribunais sobre as decisões das demais entidades (artigo 205.º, n.º 2, da Constituição).

Isto bastaria a qualquer legislador para revogar a proibição da reformatio in peius em processo de contraordenação, pelo menos na fase da impugna-ção judicial da decisão da autoridade administra-tiva. Por isso mesmo, a solução que se revela con-forme à Constituição é exactamente aquela que foi acolhida nos regimes especiais: na impugna-ção judicial do processo de contraordenação não deve vigorar a proibição de reformatio in peius.

9. SÍNTESE FINAL

A consagração genérica da proibição de reforma-tio in peius no processo de contraordenação no Regime Geral das Contra-ordenações em 1995 constituiu uma importação acrítica de um aspecto do regime dos recursos penais que não teve em conta a estrutura e organização do processo de contraordenação, os intervenientes e a sequência de actos e fases processuais que têm lugar a partir da impugnação judicial apresen tada pelo arguido.

Podendo ser aceitável no recurso exclusivamente interposto pelo arguido da decisão judicial pro-ferida pela 1.ª instância para o Tribunal da Rela-ção, designadamente pelo facto de todos os su-jeitos processuais poderem interpor recurso e o Tribunal ad quem só conhecer de direito, a proi-bição de reformatio in peius é uma figura com-pletamente inadequada e inconstitucional na fase de impugnação judicial da decisão da autori dade administrativa. Entre outros aspectos, é uma ga-rantia criada pelo legislador para vigorar num momento anterior ao julgamento requerido e à sentença judicial a proferir e não num momento posterior à sentença, em função da posição assu-mida pelos sujeitos processuais, como acontece no processo penal.

A limitação decisória da competência do Tri-bunal pelo conteúdo da decisão administrativa impugnada viola o princípio da separação de poderes (artigo 111.º, n.º 1, da Constituição), inutiliza os poderes autónomos de investigação do Tribunal e derroga o princípio da autonomia dos Tribunais (artigo 203.º da Constituição) e, finalmente, subverte de forma incompreensível o princípio da prevalência das decisões dos tri-bunais sobre as decisões das demais entidades (artigo 205.º, n.º 2, da Constituição).

Os vários regimes sectoriais que excepcionam a proibição de reformatio in peius não podem ver a sua validade aferida à luz da densidade nor-mativa das garantias constitucionais do pro cesso penal (v.g. plenitude das garantias de defesa e princípio da acusação na estrutura acusatória), mas apenas e só à luz das exigências constitu-cionais no domínio do Direito de Mera Ordena-ção Social. E nesta matéria a Constituição não exige um específico modelo de processo ou de recursos, antes deixa tais matérias à liberdade de conformação do legislador.

O facto de a proibição geral da reformatio in peius em processo de contraordenação ser em si mesma inconstitucional significa também que os regimes sectoriais que a excepcionam são imu-nes a tais críticas e articulam de forma mais ade-quada a fase organicamente administrativa do processo com a fase de impugnação judicial da decisão proferida.

Em suma, a proibição de reformatio in peius não pode ser vista como um princípio geral das impugnações, porque tal amplitude conferida à figura não tem apoio no sistema legal, transcen-de a sua vocação e ignora vários problemas jurí-dico-constitucionais. Trata-se apenas do regime de alguns recursos em processo penal, em nome dos interesses que os motivam e do contraditó-rio, no quadro dum processo penal marcado pelo princípio da acusação, que pode ser transposto para alguns recursos no direito sancionatório público, mas não para todas as impugnações de actos processuais.

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