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8/6/2019 Cadornega e o Cristianismo Angolano http://slidepdf.com/reader/full/cadornega-e-o-cristianismo-angolano 1/9 Cadornega e o Cristianismo angolano. Francisco Soares * Resumo Este artigo procura ver, nas entrelinhas das estórias contadas por António de Oliveira Cadornega no século XVII sobre Angola, o fio fino e impreciso dos cruzamentos culturais e das dinâmicas simbólicas através dele negociadas entre os contadores da oralidade. Palavras-chave Crítica literária, cultura angolana, literatura angolana, teoria da criatividade, teoria literária. Proposta Estando eu mais intensamente ligado aos estudos literários, escrever para uma revista de ciên- cias sociais é partilhar reflexões acerca da relação entre literatura e sociedade. Apesar de há muito muitos nos terem antecedido, há um campo vasto de novas e renovadas hipóteses a explorar. Algu- mas delas vieram de Karl Popper, o filósofo “interaccionista” [Espada 2008: 11]. Karl Popper pensou a arte com perspicácia rara 1 e marcou polemicamente as ciências sociais com  A Pobreza do Historicismo [Popper 1957]. Não foi o único filósofo da ciência ou pensador da ciência a fazê-lo (v. o caso de David Bohm, igualmente por aproveitar). Apesar disso, a crítica e a teoria literárias não costumam citá-lo, nem mesmo quando escrevem para uma revista de ciências sociais. Pareceu-me portanto oportuno partir de uma leitura de Popper para este artigo. A proposta que faço aos leitores é a seguinte: em Busca Inacabada: autobiografia intelectual , Karl Popper [2008] * Universidade de Évora e Universidade Agostinho Neto. 1. Ver Popper 2008: 77-82, a propósito do seu interesse inicial pela música e pela arte. 87 87 Revista Angolana de Sociologia Dezembro de 2008, n.º 2, pp. 87-95 © 2008, Sociedade Angolana de Sociologia

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Cadornega e o Cristianismo angolano. 

Francisco Soares*

Resumo

Este artigo procura ver, nas entrelinhas das estórias contadas por António de Oliveira Cadornega no século XVII sobre

Angola, o fio fino e impreciso dos cruzamentos culturais e das dinâmicas simbólicas através dele negociadas entre os

contadores da oralidade.

Palavras-chaveCrítica literária, cultura angolana, literatura angolana, teoria da criatividade, teoria literária.

Proposta 

Estando eu mais intensamente ligado aos estudos literários, escrever para uma revista de ciên-cias sociais é partilhar reflexões acerca da relação entre literatura e sociedade. Apesar de há muito

muitos nos terem antecedido, há um campo vasto de novas e renovadas hipóteses a explorar. Algu-mas delas vieram de Karl Popper, o filósofo “interaccionista” [Espada 2008: 11].

Karl Popper pensou a arte com perspicácia rara1 e marcou polemicamente as ciências sociaiscom   A Pobreza do Historicismo [Popper 1957]. Não foi o único filósofo da ciência ou pensador daciência a fazê-lo (v. o caso de David Bohm, igualmente por aproveitar). Apesar disso, a crítica e ateoria literárias não costumam citá-lo, nem mesmo quando escrevem para uma revista de ciênciassociais. Pareceu-me portanto oportuno partir de uma leitura de Popper para este artigo. A proposta

que faço aos leitores é a seguinte: em Busca Inacabada: autobiografia intelectual , Karl Popper [2008]

* Universidade de Évora e Universidade Agostinho Neto.1. Ver Popper 2008: 77-82, a propósito do seu interesse inicial pela música e pela arte.

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Revista Angolana de Sociologia

Dezembro de 2008, n.º 2, pp. 87-95 

© 2008, Sociedade Angolana de Sociologia

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dá como um dos ambientes propícios à excelência do pensamento criativo e crítico o “choque deculturas”. Podemos fazer uma leitura da história de várias comunidades literárias examinando a suarelação com o “choque de culturas”. Podemos, mesmo, pôr à prova a teoria num limite extremo etentar averiguar a hipótese de o nascimento de uma literatura se realizar também frequentemente

numa ambiência de “choque de culturas”. Num primeiro momento, ficamos logicamente pela primeirahipótese.

Signifcado de «choque de culturas» na expressão popperiana

Parece-me que a expressão usada por Popper não implica a incompatibilidade ou agressividadeentre as culturas em “choque”. A palavra “choque” ali refere uma consequência epistemológica do

contacto e convívio entre culturas. A consequência deriva da competição entre estruturas teóricasopostas. Nós teremos (até nos nossos comportamentos) que decidir (por tentativa e erro) qual amelhor, ou a mais profícua, ou a mais lógica – ou teremos de criar outra.

Para irmos um bocado mais longe, podemos metaforicamente pensar no recontro entre placastectónicas: em alguns pontos não se combinam, chocam-se portanto, procurando o ajustamento eprovocando os tremores de terra. E é mesmo o tremor de terra que vai possibilitar o ajustamento,uma nova adequação, totalidade e estruturação das placas. A metáfora, mais do que ilustrar, inter-preta o caminho da filosofia de Popper para essa linguagem de “choque” e, portanto, visa percebero significado específico da palavra aí.

A consequência do “choque de culturas” é provocar a reestruturação das teorias iniciais e daí aimportância que tem para um pensamento criativo e crítico. Porque surgirão estruturas novas, nãopropriamente por mistura de blocos das anteriores, mas pela conjugada exigência do raciocínio eda experimentação (por exemplo, no dia-a-dia) que as deduzem das anteriores (as anteriores sãovistas então numa globalidade, por vezes paradoxal) sem terem que lhes ser fiéis. A dedução ereestruturação do pensamento após a experiência podem levar-nos a tentativas que ultrapassem o

leque de opções inicial. Os momentos de “choque de culturas” são também momentos de “choquede paradigmas” e de conjuntos de paradigmas. O choque de paradigmas inclui acções e reacçõespor vezes violentas, mas isso faz parte do processo da sua superação, na medida em que gera umatensão criativa. A agressividade com que por vezes se efectuam certas defesas deriva de estraté-gias de insegurança e políticas, que visam ganhar espaço forçando a repetição dos tremoresde terra. No entanto, ela interessa apenas na medida em que traga argumentos ou teorias novose pertinentes, ou na medida em que, de alguma outra maneira, alargue o leque das expectativasteóricas existentes. O significado da palavra “choque” na expressão do filósofo não pode portanto serreduzido à agressividade estratégica dos contendores.

A concepção de Popper assim percebida interessa aos estudos literários e culturais porquedefine o tipo de semiosfera, de ambiente sígnico no qual funcionam frequentemente comunidades

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     [          A       r         t         i       g       o       s     ]

     C    a     d    o    r    n    e    g    a    e    o     C    r     i    s    t     i    a    n     i    s    m    o    a    n    g    o     l    a    n

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literárias criativas. Se quisermos comparar a história de várias literaturas em função da relação entre“choque de culturas” e criatividade, reparamos que os momentos multiculturais e transculturais sãotambém momentos de crise intelectual e artística, ou pelo menos momentos de profunda renova-ção intelectual e artística. Quer isso dizer que dinamizam a criatividade nas comunidades que os

vivem, implicando reestruturações teóricas de vasto alcance.Esta era, a seu modo, uma hipótese de Yuri M. Lotman [1993]: “la vacilación en el campo «homoge-neidad semiótica ‹—› heterogeneidad semiótica» constituye uno de los factores formadores de laevolución histórico-literaria.” De resto, como lembra Irene Machado [s.d.], “a ideia predominante deque os encontros culturais são explosivos, dialógicos e geradores de sistemas de signos novos, foi aprincipal responsável pelo questionamento que levou o semioticista russo a investigar as relaçõesentre sistemas de signos no interior da «semiosfera». Seguindo a orientação daquilo que já foraformulado por Mikhail Bakhtin nos seus estudos sobre o dialogismo, Lotman investiu os seus esforços

para compreender a dinâmica dos encontros culturais, isto é, para compreender como duas2 cultu-ras se encontram, que tipo de diálogo elas travam entre si e como elas criam experiências capazesde reconfigurar o campo das forças culturais.” Por isso nos serve também de orientação o trabalhode Lotman sobre “encontros culturais”, ou a dinâmica da cultura. Tanto mais que ele próprio resultada situação típica estudada e nela se reconhece agradecido: “la conformación de la semiótica dela cultura – disciplina que examina la interacción de sistemas semióticos diversamente estruc-turados, la no uniformidad interna del espacio semiótico, la necesidad del poliglotismo culturaly semiótico – cambió en considerable medida las ideas semióticas tradicionales” [Machado s.d.].Esta adaptação ao objecto e a escolha do critério da diversidade (“pasan a ser objeto de la atenciónprecisamente aquellos aspectos semióticos que divergen de la estructura” [Machado s.d.]) paramelhorar os resultados insere a semiótica da cultura (e, nela, a da literatura) numa lógica depesquisa científica.

Fontes e contextos de Cadornega

As reflexões feitas até aqui orientam uma leitura das estratégias sígnicas e simbólicas que sepodem perceber lendo as estórias que António O. Cadornega publica na História General das Guerras

 Angolanas3.

É reconhecida por vários escritores a posição intermédia (socialmente) e inicial (cronologica-mente) de Cadornega na literatura angolana. Justamente o critério dominante nessa avaliação éo da diversidade face à norma. Em várias direcções ela se desenvolve: face à norma linguística do

2. Porquê só duas?3. Uso General , em obediência ao manuscrito que se julga ser o original e se encontra na Academia das Ciências de Lisboa, junto com outros, que

também consultei. O tempo da formação de Cadornega foi (em grande parte) o da união das duas coroas ibéricas e há por isso muitos espanholismosno texto, incluindo o do título.

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português da época; à norma cultural que gerava a expectativa de um relato unívoco; à normapolítica e social de elogio uníssono da classe dominante, a que se pertence; etc. O que nos interessaaqui é, no entanto, o próprio desvio como tendência do raciocínio e critério de selecção do escritor.Porque ele abre caminho a uma semiosfera de interacções. Não são apenas linguagens oriundas de

culturas diversas que ali se misturam e digladiam; são também, dentro da mesma cultura, lingua-gens de disciplinas ou géneros diferentes e, entre culturas, a luta pela valoração narrativa de cono-tações afectas a culturas diferentes. Vemos por exemplo aí oralidades e escritas tentando fixar-sena visibilidade do livro; vemos também toda uma mitologia cruzada, mista, a sair da oralidade parareinterpretar as mitologias anteriores; estratégias narrativas típicas de culturas diferentes ocupandoalternativamente o palco. O processo semiótico recorrente ali obriga-nos a reflectir, ao mesmo tempo,com os aparelhos dos estudos literários ou artísticos e com os das ciências sociais nos termos expostosacima.

Seleccionei portanto passagens que me parecem artisticamente relevantes, mas onde intera-gem (para responder a uma preocupação estética) posturas, gestos, insinuações e estratégias cujosobjectivos estão para lá da própria linguagem, na realidade social quotidiana.

Faço recurso ainda a Lotman [1993] para justificar a escolha, porque ele exprime com nitidezo que eu quero dizer: “la ulterior dinámica de los textos artísticos, por una parte, está orientada aaumentar la unidad interna y la clausura inmanente de los mismos, a subrayar la importancia delas fronteras del texto, y, por otra, a incrementar la heterogeneidad, la contradictoriedad semióticainterna de la obra, el desarrollo dentro de ésta de subtextos estructuralmente contrastantes quetienden a una autonomía cada vez mayor.” Aí, onde se agita a instabilidade do sistema, está mesmopor isso a sua vida.

A diversidade estrutural potencia a diferenciação das leituras. Por isso não interessa tanto consi-derar uma intenção mais específica do autor, na medida em que a percepção do leitor não temde concordar com ela. Dou um exemplo: a mesma tensão entre caos e ordem pode levar o autor aimaginar os três volumes da História General como um só livro de História; mas apresentam-se-noscomo divergentes desse critério as estórias que também nos vai contando (percebe-se que respon-

dendo a uma preocupação literária). A maioria delas tem uma parte do livro e um volume do livropara se manifestar (o III). Podemos, portanto, percebê-las como diferentes e autónomas – emborao seu português não deixe de ser o mesmo e a preocupação de relatar também não deixe de existir,bem como um plano macro-estrutural para dar unidade ao conjunto. Ao arranjar desta maneira otexto completo, Cadornega obedece a um cânone de época (a unidade do livro), mas liberta leiturasautónomas de cada parte (como também acontecia na época e pela mesma razão que hoje: porqueessa libertação atinge mais públicos e mantém a atenção dos leitores, ocupando-os mais). A legi-timidade das leituras autónomas não precisa de autorização nem é arbitrária: resulta naturalmenteda própria estrutura artística da obra.

Pensei, portanto, nessas estórias as tensões dinâmicas de que se alimenta a significação. Começopor contextualizá-las: as fontes de Cadornega eram, sobretudo, orais – ainda que se perceba que

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o velho capitão tenha frequentado leituras eruditas, tentando o estatuto de cronista de Angola[Cadornega 1972, III: 109-110]. É também importante recordar que a oralidade não era uma ora-lidade a preto e branco, ou melhor, a preto, pardo e branco como num antigo selo de povoamento.Era, ao invés, uma complexa e pouco ordenada amálgama onde se cruzavam, com formas e ritmos

instáveis, uma miríade de origens étnico-linguísticas, assim como culturais e económico-sociais.A própria oralidade que o autor apanhara na infância e no início da adolescência (partiu paraAngola aos 15 anos) também não era monolítica. No Alentejo ainda havia pessoas a contar casos ecoisas que “diziam os Mouros”.

O legado africano em terras portuguesas era renovado pela presença de escravos e genteforra. Exemplo disso é contado na própria História General das Guerras Angolanas. Diz-se que emVila Viçosa houve em certa altura um leão, oferecido ao Duque de Bragança. A única pessoa queo leão respeitava era um negro, por sinal chamado Nicolau de Bragança. Que estórias contaria

este negro quando falavam com ele por causa do leão? Dessas, quantas a oralidade portuguesanão terá levado em algum momento para fora de Portugal outra vez? Por outro lado, a colocaçãodo negro na estória (o único respeitado por um leão) conota-o com o quê? Essa conotaçãopermitia ao cronista encontrar algumas pontes já estabelecidas para a colocação do negro nasestórias africanas que nos recontava. Por esse motivo talvez, a conotação do negro-selvagemcom animais ferozes é comum. Mas tem essa característica, surpreendente para o leitor europeu,de as feras lhe obedecerem. A característica nos dá sinal de outras oralidades e vai reaparecerao longo das estórias.

No local, as fontes orais eram, para além das citadas, igualmente de proveniências várias, umadelas sendo os “fidalgos Muxicongos daquele reino”, assim como as “sovas” ou os “sobas” de outros“potentados”, mesmo serviçais e escravos, enfim, todos os que os “portugueses” por algum motivocontactavam quotidianamente. A oralidade bantu angolana também não guardava só memória doque se passava ou passou ali [cf. Cadornega 1972, III : 152]. Os “Dongos”, que chamavamkalunga aomar porque lhes lembrava a morte, sabiam que na costa oriental andavam navios portugueses.O conhecimento que tinham da situação não se reduzia, portanto, ao espaço local.

As fontes orais até aqui mencionadas derivam de indicações explícitas. Algumas vezes indi-cava-se a fonte muito especificamente, sobretudo quando a estória se transcrevia da boca de umdos protagonistas [cf. Cadornega 1972, III: 75-76]. As estórias assistidas, participadas ou contadaspor padres, militares e negociantes ali, passando-se no território, acabavam por atravessar tambémos diversos estratos populacionais, acolhendo elementos e intrigas das mais variadas origens.Lembremo-nos, por exemplo, de que muitos padres eram filhos da terra, alguns filhos de sobas eda nobreza local, o que os tornava especialmente hábeis como tradutores culturais.

Um desses pólos de mistura que proporcionava a transmissão transversal de casos era o dasromarias, como a que foi feita pelos moradores de Massangano à Senhora da Muxima. Ali , em certaocasião, “celebrou-se (um certo) dito com muito festejo, como gente que vinha de romaria quebuscam e inventam cousas de gosto, para ter que rir” [Cadornega 1972, III: 111].

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Mas outras vezes ainda a fonte não é especificada o suficiente, parecendo à mesma permeável.Uma das estórias começa escrevendo-se: “hum sucesso galante se contou…”, mas não se referequem ou entre quem se contou o sucesso. Na página 90 do volume III podemos ler: “contavam osantigos…” sem especificar quem eram esses antigos. Conhecemos apenas o canal, o da oralidade,

mas não propriamente o narrador ou o transmissor cultural. A mesma elisão se dá mais adiante.Trata-se do combate entre “o nosso Jaga Casagi” e “o poderoso de Muzumbo a Kalunga”. A verdadeirafonte é o mujimbo: “andando algum tempo se soube…” [Cadornega 1972, III: 177]. De novo, maisadiante encontramos mencionado o rumor: “do que dizem há notícia destas cousas na Ilha de SãoTomé” [Cadornega 1972, III: 188]. Mas, quem diz isto? Onde é que o diz? AHistória não nos diz.

Funções estratégicas

Com menor ou maior consciência, as oralidades instáveis que suportavam as narrativas actuavamsobre a língua veicular com as suas cargas semânticas e simbólicas, procurando assegurar aos “seus”elementos as funções decisivas e positivas. Podemos ver esse jogo a desenrolar-se em pelo menosdois níveis complementares: o do uso das novas formas literárias para, ainda aí, marcar posiçõesestratégicas; o da adaptação das técnicas e dos conteúdos narrativos às expectativas dos ouvintesou leitores – que levava à procura de recursos de conexão, que fossem conhecidos e usados emvários contextos (por exemplo, o oral e o escrito; dentro do oral: em português ou numa línguabantu).

Quando Cadornega tira doutrina recordando que o peixe grande come o pequeno, está a cruzarreferências de uma forma estratégica, pois a lição ensina a obedecer aos poderosos e isso é um reca-do para dentro do seu meio, tanto quanto para fora do seu meio e da sua classe. Ele está igualmentea usar um recurso típico das oralidades, portanto da portuguesa e da bantu, que é o dosexempla tão bem conhecido pelos pregadores.

Em outro momento se conta o caso de um lagarto do Tombo. Aí observamos também comentá-

rios moralizantes que visam confirmar as posições estratégicas: o capitão vai matar o lagarto “comoquem estava obrigado em razão do seu cargo a compor e aquietar as cousas da sua jurisdição”[Cadornega 1972, III: 62]. Ainda na mesma estória, o cronista envia uma espécie de recado paradentro, em nome do respeito pela hierarquia: “vendo não havia de ter respeito a ser seu capitão mor,que como esta casta [dos crocodilos] não milita debaixo de bandeira, não sabe ter cortesia devidaaos oficiais maiores” [Cadornega 1972, III: 63]. Numa outra, pouco mais adiante, um filho resgataum pai ao ventre de um “lagarto” e é fortemente elogiado por isso, com novos recados para dentro:“que não era daqueles que pretendem herdar morgados nem heranças” [Cadornega 1972, III: 71].

A disputa por um lugar estratégico torna-se mais subtil em estórias em que a feitiçaria acabapor desempenhar um papel menos negativo. Não há dúvida de que a feitiçaria representava, para ovelho colono, a mais evidente face do demónio. A demonização é comummente sofrida pelas mais

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     [          A       r         t         i       g       o       s     ]

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variadas culturas submetidas à pressão ou à ocupação colonial, mas o Diabo de Cadornega não eralivresco. Era vivo, tinha rostos concretos e ferozes, além disso locais; operava extraordinários prodí-gios e, dado que lutávamos com ele, era também mais próximo4. Essa vivacidade e convivialidade,alicerçadas na permanência local, traziam rostos diferentes e próprios ao Diabo, com o qual em

algum momento será necessário estabelecer uma cumplicidade. É o que as estórias, principalmenteas do III vol., nos contam.O animal biblicamente associado ao demónio (a serpente) está presente, claro, embora com tal

grandura e disformidade que assusta muito mais. Moralmente é um diabo típico: bicho astucioso emau, que “enganou a nossos primeiros Pais, em o Paraíso terreal” [Cadornega 1972, III: 79]. Mas emAngola a serpente é maior e mais perigosa. Por isso mais diabólica.

O tigre é outro animal diabolizado. Numa estória ele é o próprio Diabo disfarçado [Cadornega1972, III: 144-146], pois não podia aparecer onde apareceu só por si. A luta contra o demónio,

como se vê por aí, era mesmo física: não podendo matar a sua origem, iam-no matando nas suasaparições. O mais comum dos rostos do demónio é no entanto, a maioria das vezes, o “lagarto”, ouseja, o crocodilo ou jacaré. O disforme bicho ameaçava ou mesmo impedia o comércio ao longo dosrios, comendo qualquer espécie de gente sem o menor pudor. Tendo vítimas em todas as classessociais, era odiado por todos, desde os escravos aos senhores. Podia portanto representar um papelconsensual. Cadornega percebeu isso e, ao estabelecer uma hierarquia no reino animal, coloca ocrocodilo na base da pirâmide: o mais violento, o menos inteligente e o mais sanguinário. Apesarde não lhe reconhecer inteligência, Cadornega percebe que o “alcaide das sacas” é “manhoso”, talcomo a cobra do paraíso.

Os animais faziam a ‘ponte’ entre o Demónio, os humanos e, de entre estes, os humanos que lheeram associados. Nas suas diatribes contra o animismo chega a associar o lagarto, a feitiçaria e alíngua na qual ela se exercia. Aliás, os rituais animistas são directamente associados ao Diabo [cf.Cadornega 1972, III: 75-76]. As pp. 65-66 do vol. III, ao referir uma mulemba no Penedo do Bruto,Cadornega diz que “os gentios” nela têm “grande erronia … por antigamente se fazerem ali muitasfeitiçarias e sacrifícios ao Diabo e a seus ídolos e vir-lhe, conforme dizem, a falar-lhes”, fazendo-lhes

oráculos na sua língua.Portanto, não há dúvidas sobre a diabolização da feitiçaria e das línguas nas quais ela é praticada

– pelo que é mais surpreendente, ainda que ela se ponha ao serviço de Deus. Mas a negociaçãosubtil de que fazem uso muitos narradores tradicionais podia alterar o lugar que lhe estava reser-vado à partida. E Cadornega era também um narrador tradicional, a seu modo um griot . Vejamosalguns casos.

Numa das estórias, um “negro” fala com o “lagarto, fiado em suas ruins habilidades e encantos(…) pela sua língua da terra” e o “feroz lagarto” obedece-lhe: “foi cousa que espantou e admirou amuitos que o viram, obedecer aquele lagarto aos esconjuros diabólicos daquele negro”. Cadornega

4. V., por ex., a estória contida em Cadornega 1972, III: 77-78.

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afiança a verdade do caso e a geral admiração confirma-a. A conotação entre a “língua da terra”, o“negro” e o jacaré é evidente, colocando o “negro” no lado mau da estória. Mas também demonstrao poder que lhe dá o ser dali, pois até consegue fazer com que os terríveis animais lhe obedeçam,transformando-se em senhor e não súbdito do Diabo. Isso torna-se mais curioso ainda no contexto

imediato, visto que os “esconjuros diabólicos” estavam a salvar um escravo do padre João da Costa[Cadornega 1972, III: 129-130]. Por outras palavras, o demónio esteve ao serviço da Igreja, porintermédio de filhos da terra e da sua língua e tal serviço era tacitamente aceite, por sua eficácia.Isto melhora a posição das tradições locais e dos seus representantes na arquitectura simbólica daestória.

Num caso contado logo em seguida [Cadornega 1972, III: 131-132], agenciou-se uma formade cooperação sui generis. Um “negro de fama” consegue, pelas “suas cerimónias e conjuros”, que ocorpo de uma escrava seja devolvido depois de morta pelo jacaré, “ou outro revestido na sua pele”.

O interessante é que a “senhora” católica da escrava, a quem era muito afeiçoada, queria que lhefizessem esse milagre para poder, ao menos, dar-lhe “sepultura eclesiástica”. A feitiçaria serve, pormomentos, um desígnio cristão, colocando-se no lugar do milagre. Aliados contra-natura?

Ainda uma outra vez ela será justa quando um prisioneiro negro se transforma em leão paracaçar animais com que matar a fome à comitiva, honrando assim um compromisso. Esse, então,não era “manhoso”, mas tinha o mesmo pacto com o demónio que permitiu salvar vidas cristãs.O que o recoloca também melhor na hierarquia simbólica da estória, onde passa ao mesmo tempopor salvador e pecaminoso. A feitiçaria é outra beneficiada, pois torna-se admissível se tiver umfim benéfico. Sem querer, muito provavelmente sem querer, os verdadeiros autores e transmissoresdestas estórias, os seus verdadeiros heróis, estavam a criar um Cristianismo angolano...

Reerências bibliográfcas

CADORNEGA, António de Oliveira de1972: História Geral das Guerras Angolanas. Lisboa: Agência Geral do Ultramar (3 vol.).

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MACHADO, Irenes.d.: “Semiosfera: um novo domínio de ideias científicas para o estudo da cultura”, http://www.pluricom.com.br/fo-

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POPPER, Karl

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Recepção do manuscrito: 11/Maio/2008Envio para apreciação: 31/Outubro/2008Recepção da apreciação: 8 e 11/Novembro/2008 Aceite para publicação: 12/Novembro/2008

Abstract

With this article, the author wants to see in the space between lines of counted stories for António de Oliveira

Cadornega, in XVII century, in Angola, the fine and inexact wire of the cultural crossings and the symbolic dynamic

among the accountants of the orality.

Key words

Angolan culture, Angolan literature, literary criticism, literary theory, creativity.