Upload
giovane-zuanazzi
View
215
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
7/31/2019 Caio Prado Jr. Rebeliao Moral - Florestan Fernandes
1/8
7/31/2019 Caio Prado Jr. Rebeliao Moral - Florestan Fernandes
2/8
2
intransigente proletrio-comunista. Mantendo-se na mesma posio de classe,
inverteu as baterias de seu combate e tornou-se um militante, um poltico de
proa (em 1935 j era vice-presidente da Aliana Nacional Libertadora) e,reiterando a troca de identidade, em 1947 tornou- se deputado por So Paulo
(alis, um deputado inovador e exemplar).
bvio que a ruptura poltica respondia s frustraes provocadas pelo
destino do Partido Democrtico (PD) e pela traio dos "revolucionrios"
de 1930 aos ideais de subverso da ordem. Havia, porm, outra ruptura
paralela, de natureza moral: no a substituio de mores, mas a ressocializao
da pessoa dentro de mores antagnicos. A passagem envolvia um
renascimento para a vida, do qual brotou e cresceu um comunista
confiante na opo, na qual jogara tudo, desde a lealdade de classe at
a relao intelectual com o mundo e o comportamento poltico.
Os cincos anos de Faculdade de Direito tambm no explicam uma
evoluo que converte o radicalismo intelectual em transgresso. A
instituio-chave na seleo e preparao dos guardies civis da ordem
sempre alimenta o aparecimento de um pugilo de filhos prdigos, que
submergem na contestao aos costumes, ao conservadorismo cultural
e ao reacionarismo poltico; e depois renascem, como Fnix, para resguardar
a austeridade dos costumes e a lei como a ltima ratioda defesa da ordem.
O certo que Caio Prado Jnior no poderia escapar desse lapso de
liberdade tolerada. E convm reconhecer que, enquanto ela dura, essaliberdade
seminal. Ela sulca a imaginao, forjando uma insurgncia
compensatria de curta durao. Contudo, ela criadora e deixa
cicatrizes. Estimula muitas leituras e excurses proibidas ou
demolidoras: ainda agora os bacharis contam entre os universitrios que mais
lem, dentro de um campo de irradiao muito vasto.
7/31/2019 Caio Prado Jr. Rebeliao Moral - Florestan Fernandes
3/8
3
Portanto, suponho que o modernismo e a atividade estudantil tiveram seu
peso. Mas estes no parecem decisivos. Dir ia que contaram como
reforo ps ico lgico predispos io arra igadamente or ientadapara o inconformismo moral (a l is , o ano de 1920, passado no
Chelmsford Hall, na Inglaterra, possui o mesmo significado, pelo avesso: como
demonstrao do que uma sociedade civil civilizada).
Se a proposio do enigma est correta, a resposta procede de uma
ruptura moral interior. Ns, no interior do marxismo, sentimos alguma
dificuldade em aceitar uma explicao fundada exclusiva ou
predominantemente em uma ruptura moral. Parece que resvalamos para
uma centralidade idealista, que coloca no mesmo nvel diversas rupturas
convergentes (ideolgicas, sociais, polticas etc.). Todavia, h um
momento de cr ise da personal idade no qual o desabamento de
estruturas mentais se conjuga com a busca de outros contedos, com
uma reorganizao completa de suas bases perceptivas e cognitivas. As
tentativas de uma revoluo dentro de linhas radicais (a participao no PD e
as expectativas relacionadas com a "revoluo liberal") precipitaram o
processo psicolgico e poltico em outra direo, mas congruente,
desvendada pelo Partido Comunista (PCB).
Esse o significado de uma ruptura moral plena, pois ela no
se confina a certos fins circunscritos: desencadeia-se e prossegue. O
paradigma fornecido por Gandhi (mas pode ser inferido de alteraessimilares, experimentadas por revolucionrios marxistas, como Lenin ou
Trotsk i , s i tuados nos l imi tes de suas pos ies de classe de
origem). A vantagem desta interpretao est em que ela permite
entender as razes da consistncia de Caio Prado Jnior, quando confrontado
pelo partido (na desobedincia ao pragmatismo da disciplina e da hierarquia e,
mesmo, no conflito com as concepes nucleares extramarxistas da essncia e
dos rumos da revoluo socialista).
7/31/2019 Caio Prado Jr. Rebeliao Moral - Florestan Fernandes
4/8
4
Portanto, no existe ligao "mecnica" entre as decepes e a
reorientao poltica, o entusiasmo militante inicial e a publicao em
1933 (aos 26 anos de idade) do seu livro mais vibrante e, ao mesmotempo, o que reclama explicitamente o seu carter marxista: A evoluo
poltica do Brasil e outros estudos - Ensaios de interpretao materialista da
histria do Brasil.
O subttulo continha uma confisso para "escandalizar", um testemunho
de que a ruptura avanara to longe que no evocava uma "ovelha
negra" convencional, mas um pensador revolucionrio, com quem a
sociedade burguesa teria de se haver. Uma "exploso juvenil" que precisa
ser compreendida no contexto histrico, em termos da concepo de si
prprio e da histria sustentada vivamente pelo autor. O livro resvala
por lapsos lgicos, descritivos e interpretativos, que mereceriam reparos de
marxistas experimentados. Mas quem poderia ser, dentro de nosso cosmos
cultural, mais marxista? Ainda carregamos limitaes que somente uma
dura e longa experincia no manejo do materialismo histrico convidaria a
ultrapassar. As contradies no so situadas ao fundo e no lanam luz
sobre o "inferno" da vida nos trpicos e nas determinaes recprocas que
vinculavam a opresso senhorial dinmica da opresso escravista, de
escravos e "homens livres pobres". O "Estado escravista" continuou de
p, dent ro da t ica dos que o viam como um Estado
constitucional, parlamentar e democrtico.No entanto, A evoluo poltica do Brasil um rebento maduro e
correspondia, como obra marxista, aos intentos de Caio Prado Jnior. No
patamar incipiente e mais puro de sua ruptura, ele desenha a verso do
Brasil que animaria suas investigaes ulteriores e d sua resposta aos
membros da classe soc ia l dominante e ao PCB, no qual
ingressara. queles, para quedescobrissem que construam e
reproduziam, cotidianamente, a cadeia dentro da qual prenderam e
7/31/2019 Caio Prado Jr. Rebeliao Moral - Florestan Fernandes
5/8
5
degradaram a sua conscincia social, a condio humana e a
ausncia de sadas histricas dentro de falsos padres de democracia. Ao
ltimo, para afirmar-se em toda a plenitude como um intelectualrevoluc ionr io l iv re, pronto a avanar na conquis ta da revoluo
social e na emancipao dos excludos, dotado, porm, de uma faculdade
prpria de submeter-se disciplina e s orientaes partidrias. Compartilhava
de sua estratgia: reformar, primeiro; e destruir mais tarde aquele gigantesco
presdio, designado como Estado "moderno".
No obstante, no se prestaria a servir de peo a qualquer
conciliacionismo ou oportunismo "tticos". O livro pe em evidncia,
principalmente no ensaio primordial, qual o sentido que carrega e os
desdobramentos que exige do autor para que a construo de uma nova
sociedade possibilitasse a criao de um Estado realmente democrtico
e aberto aos aper feioamentos vindos de baixo.
A obra seguinte, aparec ida nove anos depois ( Formao do
Brasil contemporneo - Colnia), adere a out ro hor izonte
intelectual e pol t ico. Mais depurado, como marxista e histor iador,
prope-se uma ambio ciclpica: uma devassa em quatro volumes da
formao e evoluo do Brasil, do regime colonial escravocrata
contemporaneidade. Como historiador, Caio Prado Jnior preocupava-se
em cobrir as lacunas da histria descritiva da maioria dos cultores da
matria, e em corrigir as armadilhas das obras de sntese histrica, algumasde alta qualidade, que prevaleciam naquele instante. Como marxista, pretendia
forjar uma obra-mestra, que servisse de fundamento para que as correntes
socialistas e democrticas (especialmente o PCB) pudessem formular uma
representao slida das debilidades, do trajeto e dos objetivos especficos da
revoluo brasileira.
Saiu apenas o primeiro volume, que evidencia uma solidez na
reconstruo emprica e uma firmeza nos delineamentos tericos a que
7/31/2019 Caio Prado Jr. Rebeliao Moral - Florestan Fernandes
6/8
6
no chega o livro anterior. Ento, tivera tempo de absorver rebentos da
transplantao cultural, mediada pela Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras,
os quais aproveitou inteligentemente, em particular nas reas da geografia eda histr ia. Foi pena que no fizesse o mesmo com referncia
sociologia, pois a que refluem as conseqncias negativas das
omisses ou vacilaes mais graves. O talento para combinar vrias
disciplinas, entretanto, enriquece o questionamento histrico e toma a
contribuio mais compreensiva e esclarecedora.
A sociedade colonial e o modo de produo escravista encontram,
finalmente, o intrprete que iria consider-las como uma totalidade in statu
nascendi e no seu vir-a-ser. Ela no seduziu s os leitores eruditos e
obrigatrios. Impregnou a imaginao histrica de Caio Prado Jnior,
convertendo-o em inventor e propagador de uma viso prpria da histria do
Brasil. Essa viso estava contida no primeiro livro. Todavia, na segunda
obra que ela se expande como a fonte de suas grandes descobertas e a
objetivao de seus amplos limites.
No conjunto, aproxima-se mais da histria "positiva" que em outras de
suas realizaes. O que no impede que elucide, por vezes de modo
definitivo, a problemtica especfica do nossomundo colonial. A comear pelo
sentido da colonizao e do desmascaramento dos interesses da Metrpole,
dos senhores e da grande explorao mercantil, at o embrutecimento
do escravo como coisa e dos mestios e brancos "pobres" comoexcludos e ral. Por isso, a se acham os andaimes de seus estudos
sobre a questo agrria e o capitalismo mercantil, assuntos que o
atrairiam sem cessar, embora no possam ser devidamente explorados aqui.
O espao tambm no comporta uma discusso, sumria que seja, de
sua Histria econmica do Brasil (1945), que o compeliu a observar o
vasto painel de longa durao como foco de referncia de problemas
7/31/2019 Caio Prado Jr. Rebeliao Moral - Florestan Fernandes
7/8
7
concretos. Se se impuseram algumas correes, estas no tiveram,
contudo, porte para impor uma da concepo global.
O seu livro de maior repercusso foi divulgado em 1966, A revoluobrasileirae possui uma importncia poltica excepcional. Contm um desafio
ousado ditadura. Mas constitui uma reflexo desafiadora e um repdio
ao mecanicismo "marxista", reviso significativa forjado depois da
ascenso de Stalin ao poder e da influncia manietadora da III Internacional.
Nessa obra, Caio Prado Jnior procede a uma crtica severa dos desvios
de rota da revoluo socialista, programados e impostos como deformao do
marxismo; o uso invertido e ditatorial do centralismo democrtico; a
simplificao grosseira da teoria e das prticas marxistas da luta de classes e
da revoluo em escala mundial. Os pases dependentes, coloniais e
neocoloniais tinham sido metidos em um mesmo saco e em mesma
camisa-de-fora, que pressupunham que a revoluo pudesse ser
"unvoca", monoltica, dirigida segundo uma frmula nica, a partir das diretrizes
da III Internacional e da Unio Sovitica.
Desse ngulo, o livro retoma o marxismo como processo, que nasce e
cresce por dentro das classes trabalhadoras e na busca de sua auto-
emancipao coletiva, atravs da construo de uma sociedade nova.
O ncleo de referncia vem a ser o Brasil do momento da
ditadura mili tar e do auge da Guerra Fria. O que impele Caio
Prado Jnior a retomar os temas de suas invest igaes,dissertando sobre os marcos coloniais da dominao econmica, cultural e
poltica da burguesia, a debilidade dessa burguesia em termos de sua situao
histrica, associada e dependente, e os parmetros da conquista da cidadania
e da democracia como requisitos da reforma agrria e de outras
transformaes sociais. Ele fica exposto a vrias crticas tericas e prticas,
inclusive a da via reformista, gradualista e por etapas da implantao do
socialismo. No obstante, recupera o entendimento de Marx e Engels a
7/31/2019 Caio Prado Jr. Rebeliao Moral - Florestan Fernandes
8/8
8
respeito da revoluo permanente, segundo o qual ela produto da luta
de classes, no de utopias melhoristas ou humanitrias.
Nessa ocasio, Caio Prado Jnior atingiu o clmax de sua grandezacomo marxista, cientista social e agente histrico. Marchando contra a
corrente, realizou urna sntese da evoluo do Brasil e uma reviso
em profundidade de questes concretas, intrnsecas a certos dilemas
pol t i cos , como a reforma agrr ia . Buscou o alargamento do
marxismo para adequ-lo s condies histricas variveis da periferia,
da Amrica Latiria e do Brasil. E demonstrou como o intelectual,
desempenhando seus papis e sem transcend-los pela eficcia de
partidos, pode alcanar o cume da militncia exigente e criativa.
No carecemos estar de acordo com ele em tudo para realar o seu
perfil marxista. Basta que enxerguemos a sua coragem de enfrentar sozinho os
riscos de errar e a represso poltica brutal, para admir-lo ainda mais
dent ro e acima de sua produo como his tor iador ,
gegra fo ,economista, cultor da lgica e da teoria da cincia, homem de ao
e poltico representativo.