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F F F L O R E S T A N F E R N A N D E S R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 2 9 ) : 8 6 - 8 8, M A R Ç O / M A I O 1 9 9 6 86 N ada soa mais falso que um político profissional querer passar-se como não sendo “político”. Um curriculum completo faz fé. Alguém que se do- brou à ditadura, prestou-lhe serviços (e foi por ela recompensado), anuiu ao papel de escudeiro de Paulo Salim Maluf e engalanou-se com o seu reconhecimento de valor, fruto do PDS em sua fase de “maior partido do Ocidente” e agente da sua ativida- de, com uma carreira que abrange postos no Legislativo e no Executivo, jamais poderia retratar-se como o avesso do político. Não há memória histórica no Brasil e essa circuns- tância favorece a cir- culação de mentiras nada convencionais. Porém, toda opção im- plica um preço político e ideológico. Realizá- la e negar-se ao crivo da verdade define o pior tipo de oportunismo político, que infelizmen- te grassa em nossa terra como tiririca. Porque repousa em um profissionalismo político tra- dicionalista, o qual confere ao político a liber- dade de prometer tudo, de recorrer ao clientelismo, ao paternalismo, ao mandonismo e, conforme as condições conjunturais, ao populismo e à demagogia – e depois dar o dito por não dito, curvando-se ao reacionarismo, ao conservadorismo, ao culto narcisístico do ego e do poder. Sujeito diligente da reprodu- ção da ordem, da associação entre arcaico e moderno, assim se ca- racteriza o perfil do po- lítico tradicionalista brasileiro, servo de sua F L O R E S T A N F E R N A N D E S O A R D I L D O S P O L Í T I C O S Este texto foi publicado originalmente na Revista USP n o 3, em 1989, pp. 143-4.

Florestan fernandes o ardil dos politicos

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FFF L O R E S T A N F E R N A N D E S

R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 2 9 ) : 8 6 - 8 8, M A R Ç O / M A I O 1 9 9 686

Nada soa mais falso que um político

profissional querer passar-se como

não sendo “político”. Um curriculum

completo faz fé. Alguém que se do-

brou à ditadura, prestou-lhe serviços

(e foi por ela recompensado), anuiu

ao papel de escudeiro de Paulo Salim Maluf

e engalanou-se com o seu reconhecimento de

valor, fruto do PDS em sua fase de “maior

partido do Ocidente” e agente da sua ativida-

de, com uma carreira que abrange postos no

Legislativo e no Executivo, jamais poderia

retratar-se como o avesso do político. Não há

memória histórica no Brasil e essa circuns-

tância favorece a cir-

culação de mentiras

nada convencionais.

Porém, toda opção im-

plica um preço político e ideológico. Realizá-

la e negar-se ao crivo da verdade define o pior

tipo de oportunismo político, que infelizmen-

te grassa em nossa terra como tiririca. Porque

repousa em um profissionalismo político tra-

dicionalista, o qual confere ao político a liber-

dade de prometer tudo, de recorrer ao

clientelismo, ao paternalismo, ao mandonismo

e, conforme as condições conjunturais, ao

populismo e à demagogia – e depois dar o dito

por não dito, curvando-se ao reacionarismo,

ao conservadorismo, ao culto narcisístico do

ego e do poder. Sujeito diligente da reprodu-

ção da ordem, da associação entre arcaico e

moderno, assim se ca-

racteriza o perfil do po-

lítico tradicionalista

brasileiro, servo de sua

F L O R E S T A N F E R N A N D E S

O A R D I L D O S P O L Í T I C O S

Este texto foi publicado originalmentena Revista USP no 3, em 1989, pp. 143-4.

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Em Brasília, 1994,

durante o 9º Encontro

Nacional do PT

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grei e de seus próprios interesses ou alvos pes-soais.

Penso que é impossível interpretar a posiçãodo sr. Fernando Collor de Mello de outra manei-ra, de uma perspectiva psicossociológica. Opoliticismo cansou o povo, repugna os cidadãosrevoltados contra a manipulação do poder esta-tal. O candidato assumiu o antipoliticismo e lan-çou-se à arena eleitoral como ferrenho adversá-rio do politicismo, ignorando sua longa e com-provada vocação politicista. Combater Sarneynão é, nos dias que correm, a única virtude – nemmesmo a principal virtude – de um candidato àPresidência que deva merecer uma escolha re-fletida. Nenhum político autêntico pode deixarsem resposta o que significa o Estado de transi-ção prolongada (e isso importa em condenar umgoverno desacreditado e seu chefe nominal). Noentanto, o sr. José Sarney Costa e o sr. FernandoCollor de Mello não são apenas “farinha domesmo saco”. Ambos estão congenitamentepresos a um provincianismo constrangedor e apa-recem, apesar das animosidades recíprocas, comoirmãos siameses na arte da política tradicionalis-ta. Não que um revele, hoje, o que o outro seráamanhã. O dilema é mais grave. Ambos sãoportadores de uma mentalidade política análogae refletem um molde comum, do qual jamaispoderia nascer um estadista e que tem infestadoo Brasil como uma praga devastadora. Desseângulo, um se contrapõe ao outro no estilo dosdesentendimentos provincianos e da ordem dasbicadas: o espaço histórico não comporta os dois,enquanto seus objetivos forem divergentes. De-pois... Ora, depois, pior para nós!

É trágico que semelhante figura seja fisgadapara a produção em massa da imagem do candi-dato ideal à Presidência. Ficamos de novo ata-dos aos arcaísmos do passado remoto e recente.Se a farsa continuar e conseguir êxito, perdere-mos mais uns dez ou vinte anos de nossa história,sem falar que a transição lenta, gradual e segurapermanecerá garantida em suas bases político-administrativas indefinidamente. Não haverá asonhada ruptura com o estado de coisas existen-te e tampouco a necessária revolução democrá-tica se instaurará com a rapidez indispensável.Continuaremos no mais ou menos, nas ilusõesde mudanças iminentes, que sempre serão pro-teladas, para “garantir a paz social”. Em suma,através desses espécimes de pró-homens impro-visados as elites das classes dominantes fazemfria e calculadamente o seu jogo, como se fos-sem capazes de criar história. Quando o povodescobrir o engodo, será tarde e as mesmas arti-manhas serão reativadas sob outros artifícios mais

atraentes, agora graças à modernização e à “cul-tura da comunicação em massa”. Será tudo tãosimples? O povo nunca passará de bigorna a ma-lho? E quando isso transcorrer, que cabeças ro-larão, que interesses de classes terão de ser soter-rados, que mundo social acabará destruído? Ouso e o abuso de técnicas sociais ultrapassadasenvolvem riscos insondáveis, em um certo mo-mento, e as forças sociais que constroem a his-tória de uma nação com desenvolvimento capi-talista desigual não estão à venda nem podem sercontroladas a partir de um centro inviolável depoder. Se fosse assim, não haveria RevoluçãoRussa, Revolução Chinesa ou Revolução Cuba-na. “Se arrependimento matasse”, as elites cegase paralíticas diante dos enigmas históricos en-frentados por seus estamentos ou por suas clas-ses e por suas nações ainda exerceriam o mono-pólio do poder, da riqueza e da cultura...

Voltemos ao tema deste artigo. É cedo paradizer quem sairá vencedor nas próximas elei-ções presidenciais. Porém, não possuímos a cul-tura cívica e a estabilidade política dos EstadosUnidos e do Canadá para “pré-fabricar” presi-dentes ou primeiros-ministros, como se fossemsabonetes, perfumes ou roupas da moda. “Fabri-car um presidente”, nas condições concretas doBrasil atual, constitui uma ação irresponsável etemerária. Dadas as minhas convicções políti-cas, deveria escrever exatamente o inverso. Mas,por que provocar riscos prematuros e explosi-vos, que não servirão para nada, a não ser paraconter os ritmos de nosso desenvolvimento eco-nômico, tecnológico e cultural? Para que fomen-tar saídas ilusórias, que aumentarão o desesperodos de baixo e sua exasperação, decuplicando odesamor ao País e o ódio à política, em troca denada? Não é ainda certo que a forjicação de umcandidato pré-fabricado prepondere. Todavia,para se instaurar uma democracia com dois póloscontraditórios ativos, um burguês e outro operá-rio, temos de apagar páginas amargas e demolirhábitos e técnicas de dominação política ou dehegemonia cultural que são por si mesmosdestrutivos (e, ainda mais, aniquiladores por seusefeitos e continuidade). Nada tenho pessoalmen-te contra o sr. Fernando Collor de Mello. Entre-tanto, desde criança aprendi pela experiência oque significa sua prática e sua fraseologia vazia“antipoliticistas”. Temos de enveredar por cami-nhos novos – desafiar o presente e o futuro. Asambigüidades e as astúcias dos políticos que pre-tendem pairar “acima das classes” bloqueiam taiscaminhos e nos condenam ao caldeirão fervente deuma ordem social fechada dentro do mundo semhumanidade de sua imensidão de iniqüidades.