Desaparecidos-PolIticos-Reparacao Ou Impunidade J.teles

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    MORTOS E DESAPARECIDOS POLTICOS

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    2 Reparao ou Impunidade?

    Humanitas FFLCH/USP dezembro 2001

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    Reitor: Prof. Dr. Adolpho Jos Melfi

    FACULDADE DE FILOSOFIA,LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik AubertVice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz

    CONSELHO EDITORIAL DA HUMANITAS

    Presidente:Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento (Filosofia)Membros: Profa. Dra.Lourdes Sola (Cincias Sociais)

    Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (Filosofia)Profa. Dra.Sueli Angelo Furlan (Geografia)Prof. Dr. Elias Thom Saliba (Histria)Profa. Dra.Beth Brait (Letras)

    VENDAS

    LIVRARIA HUMANITAS-DISCURSOAv. Prof. Luciano Gualberto, 31505508-900 So Paulo SP BrasilTel.: 3818-3728/3796

    HUMANITAS-DISTRIBUIORua do Lago, 717 Cid. Universitria05508-900 So Paulo SP BrasilTelefax: 3818-4589

    e-mail: [email protected]://www.fflch.usp.br/humanitas

    FFLCH

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    REPARAOOUIMPUNIDADE?

    MORTOS E DESAPARECIDOS POLTICOS:

    Janana Telesorganizadora

    So Paulo, 2001

    ISBN 85-7506-011-2

    2a edio

    UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

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    4 Reparao ou Impunidade?

    Copyright 2001 da Comisso de Familiares de Mortos e Desaparecidos Polticos. proibida a reproduo parcial ou integral,

    sem autorizao prvia dos detentores do copyright.

    Servio de Biblioteca e Documentao da FFLCH/USPFicha catalogrfica: Mrcia Elisa Garcia de Grandi - CRB 3608

    M864 Mortos e desaparecidos polticos: reparao ou impunidade?/orga-nizado por Janana Teles. 2. ed. -- So Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001.386p.

    ISBN 85-7506-011-2

    1. Histria do Brasil 2. Ditadura militar 3. Represso polti-ca 4. Anistia 5. Luta armada 6. Crimes contra liberdade poltica7. Histria da Argentina I. Teles, Janana II. Comisso de Fami-liares de Mortos e Desaparecidos Polticos

    CDD 981

    HUMANITAS FFLCH/USP

    e-mail: [email protected]

    tel.: 3091-4593Editor Responsvel

    Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento

    Coordenao EditorialMaria Helena Gonalves Rodrigues MTb 28.840

    DiagramaoEdson Teles / Selma Ma. Consoli Jacintho MTb 28.839

    CapaLuis Eduardo Guimares Barbosa

    Arte Final da CapaDiana Oliveira dos Santos

    RevisoSimone DAlevedo

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    Sumrio

    Apresentao .................................................................................... 9

    Prefcio 2 edio ......................................................................... 15Janana Teles

    Prefcio ........................................................................................... 23

    Marcelo Ridenti

    Parte I 21 anos de anistia e impunidade

    Crimes sem anistia ......................................................................... 31Dalmo de Abreu Dallari

    tica poltica e honra militar ......................................................... 35Fbio Konder Comparato

    1964: por quem dobram os sinos?................................................. 39Luiz Felipe de Alencastro

    Ns no esquecemos....................................................................... 45Marcelo Rubens Paiva

    Brasil procura superar soluo final .......................................... 51Marcelo Rubens Paiva

    A responsabilidade do Estado brasileiro na questodos desaparecidos durante o regime militar................................... 55Fbio Konder Comparato

    Que fizeste de teu irmo? ............................................................... 65Fbio Konder Comparato

    Os desaparecidos ............................................................................. 69Jos Carlos Dias

    Verdade e reconciliao .................................................................. 73Carlos Alberto Idoeta

    Questo de decncia........................................................................ 77Fbio Konder Comparato

    Anistia no lei do silncio ........................................................... 81Andr Herzog

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    Lei da Anistia e crimes conexos ..................................................... 85Hlio Bicudo

    Do significado da reparao s vtimas do regime militar .............. 89Belisrio dos Santos Jr.

    A verdade histrica ........................................................................ 95Suzana Keniger Lisba

    A ptria no ningum, so todos ................................................. 99Mrio Simas

    Zuzu Angel, a lei e a comisso...................................................... 101Lus Francisco da Silva Carvalho Filho

    Do direito reparao .................................................................. 105Maria Lygia Quartim de Moraes

    A memria militar sobre a tortura .............................................. 109Joo Roberto Martins Filho

    Um episdio esquecido da represso ............................................ 117Kenneth P. Serbin

    Carta aos torturadores.................................................................125Marta Nehring

    Um homem suicidado ................................................................... 129Frei Betto

    A anistia recproca no Brasil ou a artede reconstruir a Histria ............................................................. 131Daniel Aaro Reis Filho

    Flvio Molina e sua morte continuada......................................... 139Gilberto Molina

    Rousseau e Salinas: letras contra seu tempo e sua sociedade ..... 145Edson Luis de Almeida Teles

    Parte II A luta pela reparao

    Mortos e desaparecidos polticos:

    um resgate da memria brasileira ................................................ 157

    Mortos e desaparecidos polticos: reparao necessria ..............199James Louis Cavallaro

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    A Comisso Especial de Reconhecimento dos Mortos

    e Desaparecidos Polticos ............................................................. 205Miguel Reale Jr.

    Parte III Os anos 60 e 70 na mdia

    O Globo reprtersobre a vala de Perus ........................................ 213Caco Barcellos

    Sangue no Araguaia: a fala roubada de Voc decide ................. 227Maria Rita Kehl

    Um certo olhar ............................................................................. 237Maria Aparecida de Aquino

    Lembrar para esquecer ................................................................. 247Ismail Xavier

    Sobre 15 filhos ............................................................................. 259Eugnio Bucci

    Parte IV A busca pelos desaparecidos na Argentina

    O desaparecimento forado de pessoas na Argentina:uma poltica contra-revolucionria..............................................265Osvaldo Coggiola

    La Antropologia Forense como instrumento para el anlisis

    de la violencia poltica.................................................................. 279Luis Fondebrider

    Anexos

    Lei dos Desaparecidos ................................................................... 301

    Relatrio do processo de Carlos Marighella ................................. 317

    Lus Francisco da Silva Carvalho Filho

    Pedido de reconsiderao do processo de Zuzu Angel ................... 345Lus Francisco da Silva Carvalho Filho

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    8 Reparao ou Impunidade?

    Relatrio de admissibilidade da petio das famlias dos

    desaparecidosda Guerrilha do Araguaia na OEA....................... 363

    Programao do seminrio ........................................................... 382

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    Apresentao

    Janana Teles

    E, curiosamente, sua preocupao sobre a questo, quando final-mente emergiu, tinha uma qualidade bem pouco babelesca: uma

    vez, quando um visitante comeou a recitar uma litania de terr-veis casos recentes de violao dos Direitos Humanos, como se

    para enfatizar e reenfatizar as dimenses do horror, Borges o in-terrompeu aps o primeiro, dizendo, Pare... um j demais.1

    Este livro foi organizado valendo-se da transcrio dos debates ecomunicaes do seminrio Mortos e Desaparecidos Polticos: Reparaoou Impunidade?, realizado nos dias 8, 9 e 10 de abril de 1997, no Anfi-teatro de Histria da Universidade de So Paulo, organizado pela Comis-so de Familiares de Mortos e Desaparecidos Polticos e pelo Centro Aca-dmico de Histria da USP, o Cahis. A idia de promover debates comessa temtica surgiu da necessidade de avaliar o processo de implementa-

    o da lei 9.140, a Lei dos Desaparecidos, sancionada pelo presidente1 WESCHLER, L. Um milagre, um universo: o acerto de contas com os torturadores. So Paulo:

    Companhia das Letras, 1990, p. 26.

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    Fernando Henrique Cardoso, em dezembro de 1995 e o trabalho daComisso Especial de Reconhecimento dos Mortos e Desaparecidos Polti-cos, criada com base na lei e em funcionamento desde janeiro de 1996. Alei determinou o reconhecimento da responsabilidade do Estado pela mortede 136 desaparecidos polticos e criou a Comisso Especial para examinaroutras denncias apresentadas por meio de requerimentos de seus fami-liares.

    A Lei dos Desaparecidos havia completado pouco mais de um

    ano e seus desdobramentos trouxeram novas perspectivas de ao e refle-xo sobre o regime instaurado em 1964. Surgiram novas descobertas arespeito das circunstncias das mortes e desaparecimentos, alguns restos mor-tais foram encontrados e, ainda que o nus da prova tenha recado sobreas famlias, parte da sociedade estava acompanhando o trabalho da Co-misso Especial e participando dele. Tais investigaes abriram caminhopara o desmascaramento da maioria das verses oficiais. Entretanto, oslimites da lei permanecem e tm sido explicitados durante todo o proces-

    so de sua elaborao e vigncia. A lei no obrigao Estado a investigar osfatos, a apurar a verdade, a proceder ao resgate dos restos mortais, a iden-tificar os responsveis pelos crimes e a punir os culpados, deixando sfamlias a incumbncia de apresentar as provas dos crimes e os indcios dalocalizao dos corpos dos militantes assassinados. Alm disso, a abran-gncia da lei a mesma da anistia: considera apenas os assassinatos pormotivao poltica ocorridosat agosto de 1979, no permitindo o reco-nhecimento das mortes do perodo transcorrido entre 1979 e 1985.Pro-

    pusemos, neste seminrio, o debate dessas contradies na forma de per-gunta: reparao ou impunidade?

    Ainda no incio do funcionamento da Comisso Especial, em abrilde 1996, o jornal O Globo publicou uma srie de reportagens sobre aGuerrilha do Araguaia, com fotos inditas de guerrilheiros presos ou mor-tos e a localizao de sete cemitrios clandestinos. A partir das informa-es dO Globo e do Relatrio sobre os cemitrios da regio do Araguaia, organi-zado pela Comisso de Familiares, a Comisso Especial promoveu duas

    misses de busca de restos mortais na regio onde ocorrera a Guerrilha doAraguaia a primeira, em maio de 1996, e a segunda, em julho do mes-mo ano. A Equipe Argentina de Antropologia Forense foi responsvel

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    pelo trabalho pericial especializado de busca dos restos mortais dos guer-rilheiros. As ossadas encontradas durante as escavaes realizadas no suldo Par esto na Polcia Civil de Braslia e, at hoje, nenhuma informaosobre sua identificao foi divulgada.

    Durante os meses que antecederam o reconhecimento da respon-sabilidade do Estado pelas mortes de Carlos Lamarca e Carlos Marighella,em setembro de 1996, intenso debate se desenvolveu a respeito das mor-tes em supostos tiroteios que tiveram lugar em espaos pblicos, como

    ruas ou casas particulares. A lei estabelece a responsabilidade do Estadoem relao s mortes em dependncias policiais ou assemelhadas.Adiscusso sobre a interpretao do conceito de dependncias assemelha-das envolveu parlamentares, advogados, juristas, intelectuais e ativistasdos movimentos de defesa dos Direitos Humanos. A imprensa trouxenovos elementos s investigaes promovidas por familiares e advogados obteve acesso, por exemplo, ao laudo e s fotos originais da autpsia deLamarca, fornecidos pela Polcia Federal. Por fim, prevaleceu a interpreta-

    o de que se os militantes assassinados estivessem na esfera de domniodos agentes da represso poltica, independentemente do espao fsico emque se encontravam, seriam contemplados pela Lei dos Desaparecidos.

    Foi essa atmosfera que envolveu a deciso de organizar o semin-rio. Era fundamental debater o significado de elaboraro passado no mo-mento em que uma reparao e a construo da memria coletiva estavamem curso. Preocupava-nos compreender em que medida o direito verdadeestava sendo respeitado, pois o crime de desaparecimento de uma pessoa

    perdura enquanto as circunstncias de seu desaparecimento e morte noso esclarecidas e os seus restos mortais no forem entregues famlia.Assim, persiste o crime e a impossibilidade de realizar o trabalho de lutoto necessrio ao prosseguimento da vida. Interessava-nos entender comoa verdade histrica poderia ser inscrita na memria, no mbito pblico,diante de um continuado processo de construo do esquecimento.

    A imposio do esquecimento iniciou-se ainda em abril de 1964,quando os primeiros assassinatos promovidos pelo regime civil-militar

    apareceram mascarados pela verso de suicdio; e principalmente a partirde 1973, quando aumenta o nmero de desaparecidos: no mais havia anotcia da morte, um corpo, atestados de bito essas pessoas perderam

    Apresentao

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    seus nomes, perderam a possibilidade de ligao com seu passado, tor-nando penosa a inscrio dessa experincia na memria social. Sinistraconstruo do esquecimento esta orquestrada por meio do terror do desa-

    parecimento de opositores polticos, porque deixa viva a morte dessas pesso-as por intermdio da tortura que a ausncia de informaes e de seuscorpos. Aos seus familiares s permitido lembrar sempre a ausncia,reacendendo permanentemente o desejo de libertar-se de um passado que,no entanto, permanece vivo.

    A eficincia da ditadura iniciada em 1964 possibilitou sua perma-nncia durante 21 anos e o controle da prolongada transio democracia.Com diferentes intensidades e formas, o regime seqestrou, prendeu, ma-tou e promoveu o desaparecimento de seus opositores durante toda sua dura-o, ainda que estas prticas tenham se concentrado entre 1969 e 1976. Oaparato repressivo centralizado produziu um nmero menor de mortes edesaparies, se comparado ao dos demais pases da Amrica Latina. NoBrasil, o Dossi dos mortos e desaparecidos polticos a partir de 1964 registra 357

    mortes durante o regime civil-militar. Se somarmos a este nmero as 17pessoas registradas nos processos oriundos de denncias novas aprovadaspela Comisso Especial at a 26 reunio, realizada em 5 de maio de 1998,so 374 os mortos e desaparecidospolticos. Considerando somente os proces-sos aprovados pela Comisso Especial, esse nmero reduzido a 280 pessoasassassinadas por causa de suas atividades polticas.

    A preocupao do regime em manter a aparncia de legalidade criando um corpo de leis que inclua at a lei de pena de morte, sem que

    jamais a tenha utilizado para matar seus opositores , a represso poltica,seletiva, a censura imprensa e a Lei da Anistia possibilitaram a constru-o do esquecimento. Permitiram, por exemplo, que o massacre dos guer-rilheiros do Araguaia, ocorrido entre 1972 e 1974, ainda hoje no sejareconhecido pelo Exrcito, mesmo aps a divulgao de um relatrio se-creto das Foras Armadas, em 1993, com informaes a respeito dascircunstncias das mortes de guerrilheiros. A Lei dos Desaparecidos man-tm os limites da Lei da Anistia, na medida em que deixa pouco espao

    para a investigao do passado, ainda que tenha promovido alguma repa-rao, trazido a pblico novas informaes e ampliado o alcance do debatesobre esse passado.

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    A questo da distncia que separa aquele passado recente da socie-dade brasileira dos dias de hoje e a forma como a construo da memriatem sido elaborada pela imprensa, especialmente pela TV, foram propostastambm, pois nos interessava debater como a sociedade civil e a universida-de vm produzindo anlises sobre esse perodo da histria e de que formaessa produo tem influenciado tal processo. Programas como o Globo repr-tersobre a vala de Perus, apresentado cinco anos aps a edio da reporta-gem, as minissriesAnos douradoseAnos rebeldes, o episdio do programa Voc

    decide intitulado Sangue no Araguaia e outros com grande repercussotornaram-se objeto de anlise dos convidados do seminrio.Acrescentamos, no incio do livro, textos de familiares de mortos

    e desaparecidospolticos, advogados, intelectuais e militantes publicadosna imprensa paulista, recuperando, assim, um pouco do debate que en-volveu a elaborao da Lei dos Desaparecidos e seus vnculos com a Lei daAnistia. Uma maneira que encontramos de colaborar para a reflexo acer-ca dos 21 anos de anistia no Brasil e participar dela. Em anexo segue o

    voto do relator do processo de reconhecimento da responsabilidade doEstado pela morte de Carlos Marighella, Lus Francisco da Silva CarvalhoFilho, autor tambm do pedido de reconsiderao do processo sobre amorte de Zuleika Angel Jones. A publicao desses dois pareceres tem afuno de divulgar os mtodos e procedimentos da Comisso Especial deReconhecimento dos Mortos e Desaparecidos Polticos.

    Os textos publicados trs anos aps a realizao do seminrio noperderam atualidade nem importncia crtica. Unir intelectuais e mili-

    tantes para debater o direito verdade e a construo do esquecimento arespeito dos mortos e desaparecidospolticos no Brasil continua sendo umaimportante experincia intelectual e poltica. A publicao deste livro noano em que a abertura da vala de Perus completa dez anos sem que aspesquisas para a identificao das 1.049 ossadas, sob a custdia da Unicamp,tenham chegado ao fim evidencia sua pertinncia. Pretendemos, dessemodo, manter aberto o debate, divulgando os diversos pontos de vistados autores que generosamente revisaram seus textos, cedendo-os para

    publicao.Scrates, que preferiu a legalidade (ainda que precria) ausncia

    de leis, representou a voz dos que sempre procuraram corrigir mediante a

    Apresentao

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    persuaso, isto , o dilogo, as imperfeies das leis. nessa perspectiva quenos inclumos, ns que pelo debate buscamos persuadir de que a democra-cia no estar ameaada ao permitira abertura dos arquivos das Foras Ar-madas e do aparato repressivo, possibilitando sociedade conhecer seu pas-sado de violncia poltica. A democracia est ameaada quando a sociedadeomite-se, mantendo-se no silncio e sob a impunidade.

    abril/2000

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    Prefcio 2 edio

    Janana Teles*

    Novos acontecimentos nos ajudam a responder questo Mor-tos e Desaparecidos Polticos: Reparao ou Impunidade?, e a compreen-der o predomnio da impunidade quando se trata dos crimes cometidosdurante o regime civil-militar no Brasil. Quase um ano aps a publicaodessa coletnea de textos, a memria continua a questionar o passado e opresente, mantendo aberto o debate em torno da demanda por justia dosfamiliares de mortos e desaparecidos polticos. A descoberta de documen-tos secretos do Exrcito indica a permanncia de prticas e princpios se-

    melhantes aos do perodo ditatorial e nos faz refletir sobre as rupturas econtinuidades do processo de construo da democracia no Brasil.Em julho de 2001, depoimentos de moradores, de camponeses

    sobreviventes da Guerrilha do Araguaia e de colaboradores do Exrcitoajudaram a elucidar as circunstncias das mortes de guerrilheiros desapa-recidos no sul do Par e forneceram indcios para a localizao de seusrestos mortais. Esses depoimentos trouxeram para a atualidade os eventos

    * Bacharel em Histria pela Universidade So Paulo, co-autora do Dossi dos mortos e desapare-cidos polticos a partir de 1964(Imprensa Oficial, 1996) e membro da Comisso de Familiaresde Mortos e Desaparecidos Polticos. Esteve presa com a famlia no DOI-Codi/SP, em 1972, aoscinco anos de idade, quando foi assassinado Carlos Nicolau Danielli. sobrinha de AndrGrabois, desaparecidona Guerrilha do Araguaia, em outubro de 1973.

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    relacionados Guerrilha e revelaram a presena de um escritrio secretodo Exrcito, o que possibilitou a apreenso de documentos oficiais querelatam como a ao clandestina de agentes do Exrcito no Par e nopas. A operao Anjo da Guarda mantm sob vigilncia moradores queguiaram os soldados nas buscas aos militantes do PC do B, entre 1972 e1974. Tal operao possui um atualizado cadastro de antigos colaborado-res, distribui mensalmente alimentos, proporciona assistncia mdica eat revlveres com o intuito de coibi-los a no falar a respeito das mortes

    e locais de sepultamento clandestino de guerrilheiros.Desde 1999, o Ministrio Pblico Federal iniciou inqurito civil

    para apurar o encaminhamento das investigaes das ossadas da vala clan-destina do Cemitrio de Perus na Unicamp, pois a universidade, respon-svel pelas ossadas desde 1990, no apresentou relatrio conclusivo sobreas pesquisas. Em janeiro de 2001, o Instituto Mdico Legal de So Pauloassumiu a investigao dessas ossadas como decorrncia das negociaesefetuadas com a abertura do inqurito civil n.6/99. Em agosto, Daniel

    Munhoz, mdico legista responsvel pela investigao, apresentou o pri-meiro relatrio de avaliao do estado atual das ossadas, indicando os ca-minhos adotados para a continuidade dos trabalhos.

    Uma ossada, cujas caractersticas indicam ser de um guerrilhei-ro desaparecido na Guerrilha do Araguaia, encontrada em 1991, estguardada com as do Cemitrio de Perus. Assim, o Ministrio Pblicoiniciou trs inquritos civis para investigar essa ossada e a possibilidade

    de encontrar outros restos mortais de guerrilheiros desaparecidos. Osprocuradores Marlon Weichert, Guilherme Schelb, Felcio Pontes Jr. eUbiratan Cazetta iniciaram os inquritos em So Paulo, Braslia e Par.O Ministrio Pblico Federal, portanto, assumiu a responsabilidade,que de fato do Estado seus poderes, rgos e agentes , de investigaras circunstncias das mortes e a localizao dos restos mortais das pes-soas assassinadas devido ao estatal. a primeira vez que o poderpblico assume as investigaes na sua plenitude e a questo dos desa-

    parecidos polticos atinge a dimenso pblica que possui. A inverso donus da prova imposta pela Lei dos Desaparecidos manteve essa questona dimenso do privado, restrita s famlias de mortos e desaparecidos

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    polticos. A postura assumida pelo Ministrio Pblico combate a impu-nidade, avana na luta por reparao e fortalece as bases institucionais epolticas do regime democrtico.

    Durante os dias 2 e 23 de julho, participei da viagem de investi-gao promovida pelo Ministrio Pblico Federal ao sul do Par, comCrimia de Almeida, ex-guerrilheira e viva de Andr Grabois, desapare-cido na Guerrilha do Araguaia, e Laura Petit, irm de Maria Lcia, Lcioe Jaime Petit da Silva, tambm desaparecidos na Guerrilha. Nessa inves-

    tigao, o Ministrio Pblico colheu cinqenta depoimentos de morado-res das cidades de Marab, So Domingos do Araguaia, Palestina, BrejoGrande, So Geraldo e Xambio.

    Muitos moradores da regio de So Domingos, e, sobretudo, dePalestina, falaram da violncia utilizada pelas Foras Armadas entre os anos1972 e 1974. Quase a totalidade da populao masculina foi presa e tortu-rada, muitos perderam suas terras e criao de animais e, at hoje, noreceberam nenhuma reparao material ou moral em funo dos danos so-

    fridos. No ano de 1973, antes de iniciada a terceira campanha contra aGuerrilha, muitos foram presos e suas casas e plantaes queimadas paraimpedir que os camponeses colaborassem com os guerrilheiros dando-lhescomida ou abrigo. Os primeiros a serem presos durante essa fase da Guerri-lha foram os comerciantes das cidades, depois, os moradores mais afastadosdos vilarejos. A populao tambm passou fome, pois as rvores frutferas eparte da floresta foram destrudas pelos militares e madeireiras.

    Durante os meses transcorridos entre outubro de 1972 e outubro

    de 1973, as Foras Armadas realizaram atividades de informao com ho-mens paisana transitando pela regio e os guerrilheiros se reuniam perio-dicamente com os moradores. Assim, quando se iniciou a terceira campa-nha, em outubro de 1973, vrias famlias foram com os guerrilheiros paradentro das matas. Os homens formavam grupos dirigidos por guerrilheirosque circulavam pelas regies onde a floresta era mais densa, enquanto asmulheres construam acampamentos improvisados em reas mais prximasde suas antigas moradias. Impossibilitados de caar ou utilizar fogo, parano chamar a ateno dos helicpteros e equipes de militares, se locomovendolentamente, preocupados em no deixar rastros e com poucas armas, sobre-viveram na floresta com muitas dificuldades, durante a poca das chuvas.

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    Em pouco tempo, as mulheres e crianas foram para as cidades sem estrutu-ra alguma, pois haviam perdido suas terras e plantaes. Os homens, emseguida, desistiram tambm, a Guerrilha no tinha como sustentar a adesodos moradores da regio. Tampouco foi possvel apurar a dimenso dessaadeso, pois o medo e as relaes ainda hoje existentes com os militaresno permitem que os relatos sejam muito detalhados. Poucos falaramcomo era o cotidiano da Guerrilha dentro da floresta.

    Alguns homens permaneceram na mata 22 dias, outros um ms

    e meio, e quando desistiram de combater, voltaram para as cidades embusca de suas famlias. Foram presos, como a maioria dos homens daregio, e ao serem torturados confessaram a adeso Guerrilha e foramobrigados a servir de guias para os militares. Alguns moradores classifi-cam os guias em duas categorias, os guias fortes e os fracos. Geralmente,os que colaboraram com os guerrilheiros antes de serem presos eramchamados de guias fracos e os chamados de fortes eram aqueles queaderiram rapidamente aos militares e aceitaram as terras oferecidas de-

    pois do fim da Guerrilha, prximas estrada chamada OP3. s mar-gens dessa estrada ainda hoje moram diversos colaboradores das ForasArmadas do tempo da Guerrilha. Entre 1972 e 1973, as estradas OP1,OP2 e OP3 foram construdas de modo que formassem um tringuloque cerca a rea onde se concentraram os guerrilheiros depois do inciodo conflito.

    Outros estiveram mais tempo na mata, como Jos Vieira, o filhode Luis Vieira, campons que aderiu Guerrilha e foi morto na mata.

    Depois da morte de seu pai, desistiu de participar da Guerrilha e voltoua So Domingos com a ajuda de Piau (Antnio de Pdua Costa), omilitante do PC do B. Ao chegarem casa de um tio de Zzinho, prxi-ma de So Domingos, foram delatados e levados presos para Bacaba,principal base militar da regio norte dos conflitos, localizada no km 68da Rodovia Transamaznica. Alm de Piau e Jos Vieira, os relatosmencionam a priso de diversos guerrilheiros.1 Eles foram vistos vivos

    1 Obtivemos informaes sobre a priso de Edinho (Hlio Luiz Navarro de Magalhes), Duda(Luis Ren Silveira e Silva), Rosinha (Maria Clia Corra), Nunes (Divino Ferreira de Souza),Beto (Lcio Petit da Silva), Valdir (Uirassu de Assis Batista), Simo (Cilon da Cunha Brun),Josias (Tobias Pereira Jnior), Valquria (Walkria Afonso Costa), urea (urea Eliza Pereira

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    por guias ou moradores da regio nas duas principais bases militares,Bacaba e Xambio, esta localizada ao sul da rea onde ocorreu a Guerri-lha. Ftima, cujo nome era Helenira Rezende de Souza Nazareth, teriasido carregada, ferida na perna, para a base militar chamada Oito Barra-cas. Piau, o guerrilheiro, tambm foi visto vivo na base localizada pr-xima a So Raimundo e reserva indgena Soror. Mariadina (DinaelzaSoares Santana Coqueiro) teria sido presa e morta nas terras de ArlindoPiau, o mesmo guia que matou Osvaldo (Osvaldo Orlando da Costa).

    No foi possvel distinguir um padro nas prticas das equipesque percorriam a floresta em busca dos guerrilheiros. Por que algunsforam presos quando gravemente feridos, enquanto outros, sumaria-mente mortos mesmo desarmados? As equipes eram formadas de 8 a 12homens acompanhados de mais de um guia. Estes grupos se revezavame percorriam sempre a mesma regio, permitindo aos guias voltaremperiodicamente para casa. Alguns guias nos relataram a morte de guer-rilheiros na mata,2 cujos corpos teriam sido deixados insepultos ou en-

    terrados em covas rasas no local onde morreram. Os militares sempremantinham guias e equipes vigiando os corpos deixados na mata du-rante trs dias, na esperana de que guerrilheiros sobreviventes voltas-sem para resgatar seus corpos, documentos ou armas.

    Um guia, Sinsio, tentou nos ajudar a localizar o lugar ondeJaime Petit da Silva fora enterrado e, por vrios dias, tentamos encon-trar outro guia, Pedro Galego, que estivera com ele no dia da morte deJaime. Ele poderia ajudar-nos, pois muito difcil reconhecer os lugaresatualmente, por causa do grande desmatamento ocorrido na regio.Sinsio nos contou que Jaime fora decapitado.3 Depois de dias de bus-ca, descobrimos que Pedro Galego recebeu, h alguns anos, um revl-ver de um membro do Exrcito e recomendaes para no falar sobre a

    Valado), Antnio (Antnio Ferreira Pinto), Batista (campons que ainda no havia sido citadoe cujo nome completo no descobrimos), Joo Araguaia (Dermeval da Silva Pereira), Dina(Dinalva Oliveira Pereira) e Pedro Carretel (campons chamado Pedro Matias de Oliveira).

    2

    Os relatos contam sobre a morte de Chico (Adriano Fonseca Fernandes Filho), Cristina (JanaMoroni Barroso), Snia (Lcia Maria de Sousa), Luis Vieira (campons), Zebo (Joo GualbertoCalatroni), Alfredo (campons de nome Antnio Alfredo de Lima) e Z Carlos (Andr Grabois).

    3 Sinsio e outros nos falaram que Ari (Arildo Valado), Mundico (Rosalino Souza) e Manoel(Rodolfo de Carvalho Troiano) tambm foram decapitados.

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    Guerrilha. Esta orientao foi reforada apenas um ms antes de nossaviagem ao Par. O Ministrio Pblico apreendeu sua arma e colheu seudepoimento. Em Brejo Grande, outro guia, Jos Veloso de Andrade,falou aos procuradores que recebia regularmente cestas bsicas de mili-tares vindos de Marab. Assim, o Ministrio Pblico realizou investiga-es em Marab e descobriu o escritrio do Exrcito, onde encontroudocumentos secretos amplamente divulgados na imprensa.

    Em documentos e apostilas de cursos, a sociedade soube que a

    espionagem oficial trabalha base de subornos, chamados de gratifica-es e recompensas, e chantagem sexual. Os movimentos sociais, taiscomo a CUT e o MST, so tratados como foras adversas, seus militan-tes podem vir a ser eliminados e admite-se arranhar direitos dos ci-dados em nome da preservao da ordem pblica. A rede de espiona-gem do Exrcito estende-se por todo o pas e envolve 541 pessoas, ain-da que representantes do governo afirmem ser este um problema re-sidual e localizado no Par. O Exrcito conta hoje com sete Companhi-

    as de Inteligncia localizadas em Porto Alegre, Rio de Janeiro, SoPaulo, Manaus, Recife, Campo Grande e Braslia. Cada companhia con-ta com 22 subsidirias, chamadas de grupos destacados. Depois dadivulgao dos documentos encontrados em Marab, o Exrcito instau-rou um Inqurito Policial Militar para apurar possveis irregularidadescometidas pelo grupo de procuradores que tentam encontrar os restosmortais dos guerrilheiros. A Advocacia Geral da Unio tambm fez umpedido para investigar os procuradores.

    Os limites da Lei dos Desaparecidos (lei 9.140/95) que inver-teu o nus da prova, deixando s famlias a responsabilidade de apontaros indcios sobre as circunstncias das mortes e sobre a localizao decemitrios clandestinos onde estariam enterrados os militantes mortos restringiram a ao da Comisso Especial de Reconhecimento dosMortos e Desaparecidos do Ministrio da Justia. Ainda assim, a Comis-so promoveu buscas de restos mortais de guerrilheiros no sul do Par,em 1996, e no Paran, em agosto de 2001. Entretanto, esses esforos

    so insuficientes para alcanarmos a principal reparao aos DireitosHumanos continuamente desrespeitados desde o desaparecimento des-ses militantes o direito verdade. Assim se pronunciou Antnio

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    Augusto Canado Trindade, juiz da Corte Interamericana de DireitosHumanos, em voto na Sentena do Caso Bmaca Velsquez, em no-vembro de 2000:

    En efecto, la prevalencia del derecho a la verdad configrase como

    una conditio sine qua non para hacer efectivos el derecho a las

    garantas judiciales (artculo 8 de la Convencin Americana) y el

    derecho a la proteccin judicial (artculo 25 de la Convencin),

    reforzndose todos mutuamente, en benefcio de los familiares

    inmediatos de la persona desaparecida. El derecho a la verdade sereviste, as, de dimensiones tanto individual como colectiva.

    A proteo dos Direitos Humanos ocupa hoje posio centralna agenda internacional, e os tratados e instrumentos de proteo des-ses direitos tm sido reivindicados por familiares de mortos e desapare-cidos polticos de toda a Amrica Latina, com especial destaque para osdo Chile e Argentina. No Brasil, esses instrumentos e rgos de super-

    viso internacional dos Direitos Humanos, como a Corte Interamericanade Direitos Humanos, foram muito utilizados durante os anos 70, in-clusive para a manuteno da vida de presos polticos. Entretanto, emjunho de 1995, os familiares de desaparecidos polticos voltaram a uti-lizar essas instncias de proteo dos Direitos Humanos ao apresenta-rem petio Comisso Interamericana de Direitos Humanos da OEAsolicitando ao governo brasileiro as informaes a respeito dos desapare-cidos da Guerrilha do Araguaia. Em maro desse ano, a Comisso

    Interamericana divulgou seu Relatrio de Admissibilidade sobre a pe-tio dos familiares da Guerrilha do Araguaia e passou a analisar o m-rito dessa solicitao. Em funo da importncia assumida pela normativainternacional de proteo dos Direitos Humanos e da influncia quepode exercer no ordenamento jurdico nacional, inclu nos anexos dessacoletnea o Relatrio de Admissibilidade da petio das famlias dedesaparecidos da Guerrilha do Araguaia da Comisso Interamericanade Direitos Humanos da OEA.

    Acrescentei, tambm, dois textos importantes para a recupera-o do debate sobre o projeto de lei que originou a Lei dos Desapareci-dos e seus vnculos com a Lei da Anistia. Na presente edio, podemos

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    ampliar nossa viso a esse respeito com a incluso dos textos de Belisriodos Santos Jr., advogado e defensor dos Direitos Humanos desde 1968,e de Carlos Alberto Idoeta, militante da Anistia Internacional, entidadefundamental na denncia do desrespeito aos Direitos Humanos no Bra-sil. Pretendi, ao organizar esta coletnea, contribuir para que o esqueci-mento no prevalea, buscando na memria a possibilidade de constru-o de uma experincia do passado e de crtica do presente.4

    novembro/2001

    4 CARDOSO, Irene. Para uma crtica do presente. So Paulo: Ed. 34, 2001.

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    Marcelo Ridenti*

    Amplos setores da sociedade brasileira e no s das elites foram coniventes com a ditadura. Eis uma constatao necessria, quetalvez sirva como ponto de partida para explicar a dificuldade de reflexosobre o tema dos crimes cometidos a partir do Golpe de 1964. Guardadasas devidas propores, isso lembra os problemas dos alemes no acerto decontas com o passado de barbaridades nazistas. Da, em parte, as tentati-vas de esquecer o assunto, em nome da reconciliao. Ou de tratar o tema

    como se fosse algo que ficou ultrapassado com o fim da ditadura, algo queestaria por merecer um ponto final.

    As vicissitudes das lutas polticas do presente, por vezes, levam atmesmo os que no compactuaram com o regime civil-militar a silenciarsobre aspectos embaraosos da histria recente, em parte porque algunsdeles se aliaram posteriormente a setores significativos dos antigos donos dopoder, enquanto muitos daqueles que se mantm na oposio no queremou no se sentem fortes o suficiente para enfrentar politicamente os antigos

    * Marcelo Ridenti professor livre-docente do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas daUnicamp. Autor de diversos livros, como Em busca do povo brasileiro(Record, 2000) e Ofantasma da revoluo brasileira(Ed. Unesp, 1993).

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    algozes, talvez temerosos de cutucar a ona com vara curta, desencadean-do uma reao supostamente ameaadora democracia.

    Resultado: sobra a cobrana da dvida poltica da ditadura parasetores restritos, vistos como um punhado de quixotes radicais. Estes,contudo, no lutam contra moinhos de vento. As garras de seus inimi-gos continuam afiadas, prontas para dar o bote, se necessrio. Por isso,tambm, o esclarecimento das circunstncias histricas em que forampresos, torturados ou mortos os inimigos do regime civil-militar ser

    essencial para a construo de um presente e futuro de democracia so-cial e poltica.Como bem mostra o artigo do historiador Luiz Felipe Alencastro,

    relembrar as vtimas da ditadura e a memria dos desaparecidosno lutomal resolvido dos sobreviventes, mas uma necessidade para garantir osdireitos numa ainda frgil democracia, constantemente ameaada peloautoritarismo de uma parte substancial das elites. um argumentoretomado por Suzana Lisba, que se rebela contra a transformao de uma

    questo de interesse histrico, indispensvel para a construo da demo-cracia, num problema apenas humanitrio, restrito aos familiares dos de-saparecidos e ao governo.

    Nesse sentido, este livro tem especial relevncia, ao reunir artigosque com variaes de forma e alcance contribuem, cada um a seumodo, para a reflexo sobre os mistrios de nossa histria recente.

    O lanamento do livro particularmente oportuno neste mo-mento em que est no poder uma aliana de foras polticas e sociais que

    outrora estiveram em campos opostos, a favor ou contra a ditadura queacabou, mas logrou seu objetivo da transio democracia lenta, gradu-al e segura para os donos do poder, e que no essencial continuam osmesmos de ento. Nessas circunstncias, para os antigos oposicionistasque passaram a dividir o trono com seus velhos ocupantes, o mximopoliticamente possvel seria uma lei de indenizao aos familiares dos de-saparecidos, a partir do reconhecimento da responsabilidade do Estadopelos crimes.

    Alcances e limites dessa lei tm suscitado debates e posies pol-ticas distintas entre os herdeiros da luta contra a ditadura, que aparecemem vrios dos artigos da coletnea. Por exemplo, o escritor Marcelo Ru-

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    bens Paiva, num artigo de maio de 1995, revelava sua indignao com osilncio das autoridades sobre os desaparecidos e os torturadores impunes;em julho daquele ano, Paiva reiterava sua crtica soluo final adotadapela ditadura e se posicionava a favor do prosseguimento do projeto dogoverno de indenizao aos familiares dos desaparecidos, que ento seiniciava comenta-se que os argumentos de seu primeiro artigo, publica-do originalmente na revista Veja, teriam sido decisivos para o governoefetivar seu projeto. A sociloga Maria Lygia Quartim de Moraes escreveu

    em apoio iniciativa governamental, mas ressaltou a necessidade de apu-rar tambm as circunstncias das mortes, alm de outras reparaes. Ojurista Fbio Comparato cobrava o dever fundamental do Estado de iralm das indenizaes: apurar a verdade dos fatos e punir os criminosos,posio refutada pelo advogado e posteriormente ministro da Justia, JosCarlos Dias, que recebeu uma rplica de Comparato. Depois Hlio Bicu-do tambm colocaria sua colher nesse debate.

    Esses artigos esto entre os que abordam aspectos jurdicos rele-

    vantes do tema do livro. Especialmente Dalmo Dallari e Fbio Comparatoapresentam argumentos para defender a tese de que haveria at hoje basejurdica para julgar os torturadores homicidas, apesar da Lei da Anistia.James Louis Cavallaro, da Human Rights Watch, discute a reparao necess-riaaos familiares dos mortos e desaparecidos luz do direito internacionale dos Direitos Humanos, que continuaram sendo desrespeitados no Brasilaps o final da ditadura, especialmente no mbito da represso aos popu-lares suspeitos de serem criminosos.

    Independentemente de consideraes jurdicas, Andr Herzogreivindica que seja restabelecida a verdade histrica; no pede punies,mas apenas que ex-torturadores sejam afastados de cargos pblicos. Nessesentido, Fbio Comparato denuncia o embrutecimento moral em quedecaiu o pas, em 1993, quando o ento presidente Collor condecorouum notrio oficial torturador.

    Muitos artigos aqui reproduzidos foram publicados em rgos deimprensa, especialmente na Folha de S. Paulo, de 1992 a 1997, tratando

    da responsabilidade do Estado pelos mortos e desaparecidos polticos du-rante a ditadura. Alm dos citados, vale destacar os de Mrio Simas, quetrata da execuo dos guerrilheiros Marighella e Lamarca, enquanto

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    Lus Francisco Carvalho Filho relata consensos e divergncias na interpre-tao da lei 9.140/95, no interior da Comisso Especial de Mortos e Desa-parecidos, encarregada de definir a responsabilidade do Estado por mor-tes no naturais em dependncias policiais ou assemelhadas. A partir dainterpretao da lei, a Comisso indeferiu o caso de Zuzu Angel, por faltade provas. Mais tarde, com o aparecimento de novas evidncias, o pedidoseria deferido, como indica o texto anexo do prprio Carvalho Filho. MiguelReale Jr. tambm d seu depoimento como membro da Comisso.

    Mortos e desaparecidos polticos: um resgate da memria brasi-leira o ttulo do extenso artigo produzido por grupos de defesa dosDireitos Humanos, o qual recupera as lutas de oposio radical ditadurae detalha os esforos para desvendar o destino dos mortos e desaparecidospolticos, apresentando, inclusive, quadros reveladores, que relacionam,por exemplo, 148 processos sobre mortos aprovados pela Comisso Espe-cial para receber indenizao. Alm dos processos acerca dos mortos, obalano refere-se aos 133 desaparecidos, sobre cujas mortes o Estado reco-

    nheceu sua responsabilidade, listados no texto da lei 9.140/95, tambmanexo.

    O livro ainda agrega escritos apresentados em seminrios realiza-dos na Universidade de So Paulo, como o de Joo Roberto Martins Filho,que analisa as diferentes posies de altos oficiais das Foras Armadas so-bre a tortura, das justificativas em nome do combate ao comunismo at asque a condenam. Independentemente de sua avaliao sobre o assunto,quase todos os militares hoje reconhecem o fato histrico da tortura, ne-

    gada pelos governos da poca.Num artigo instigante, Daniel Aaro Reis fala sobre o movimen-

    to pela anistia e questiona a reconstruo histrica, que apresenta os guer-rilheiros como artfices de uma resistncia democrtica. Para ele, o projetoseria ofensivo, em busca da ruptura com o capitalismo e da construo dosocialismo, no uma mera luta pelo retorno democracia, verso que seriacmoda para uma sociedade pronta a esquivar-se de sua cumplicidadecom a ditadura, por razes que ele explicita no artigo. Parece importante

    no texto de Reis o alerta para evitar a vitimizao dos que foram persegui-dos: essa postura diminuiria suas lutas contra a ditadura, por uma organi-zao social, poltica e econmica mais justa, no limite, socialista.

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    Kenneth Serbin relata um episdio esquecido da represso: ob-serva que jornalistas e historiadores costumam destacar os protestos p-blicos aps o assassinato do jornalista Vladimir Herzog em 1975, masesquecem que a retomada das manifestaes comeara em 1973, numamissa na Catedral da S, em So Paulo, com a presena de cerca de trs milpessoas, em homenagem ao estudante da USP, Alexandre Vannucchi Leme,morto na priso aos 22 anos. Por sua vez, Edson Lus de Almeida Telescomenta textos do filsofo Rousseau e do professor de filosofia da USP,

    Luiz Roberto Salinas Fortes, j falecido, que contou sua experincia depriso e tortura no livro Retrato calado.Um dos pontos mais altos do livro o conjunto de artigos que

    destaca o tratamento dado pelos meios de comunicao s lutas contra aditadura. O reprter Caco Barcellos faz um relato detalhado de como reali-zou a matria do Globo reprter sobre a vala clandestina do Cemitrio dePerus, em So Paulo, onde alguns ex-guerrilheiros desaparecidos foram jo-gados. Maria Rita Kehl comenta o discurso da teledramaturgia, especial-

    mente da Rede Globo, sobre as lutas polticas durante os anos de chum-bo, para as quais daria uma verso apaziguadora, anuladora das diferen-as. Maria Aparecida de Aquino aborda aspectos diferenciados do trata-mento da mdia acerca de temas proibidos durante a ditadura, destacando aimportncia da recuperao da memria. Ismail Xavier trata da questo domelodrama e de que modo se pode despolitiz-lo, comentando especial-mente a minissrie televisivaAnos rebeldes, mostrando a necessidade da TVcriar um consenso nacional que inclui a oposio, mas lanando mo de

    recursos que mantm sob controle essa incluso. J Eugnio Bucci enfoca aproduo de um vdeo alternativo, fora do eixo da produo empresarial:um documentrio criado por filhas de perseguidos pela ditadura, que mos-tra depoimentos atuais de filhos dos militantes de esquerda da dcada de1960. Compe-se, assim, uma srie inventiva e interessante de artigos quediscutem o tratamento ficcional e documental, nos meios de comunicao,das lutas polticas passadas durante a ditadura.

    Alguns textos da coletnea expressam o inconformismo de fami-

    liares e amigos de desaparecidos, como a Carta ao torturadores, em queMarta Nehring expe a infmia de gente como o delator cabo Anselmo.Ou ainda as palavras emocionadas e indignadas de Gilberto Molina, que

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    perdeu o irmo Flvio, desaparecido. J frei Betto lembra os 25 anos domartrio de frei Tito, que se suicidaria no exlio francs.

    O livro rene, tambm, artigos sobre a represso na Argentina,permitindo ao leitor uma viso comparativa com o Brasil. Oswaldo Coggiolareconstitui as coordenadas de tempo e espao em que se deu o esmaga-mento da esquerda argentina de 1974 a 1983. Lus Fondebrider relata ahistria da Equipe Argentina de Antropologia Forense, criada em 1984para colaborar com recursos cientficos na busca de restos de desapareci-

    dos polticos. A seriedade e a competncia da equipe levaram-na a desen-volver trabalhos em 25 pases cuja histria recente tenha sido marcadapor desaparecimentos de adversrios polticos dos governos.

    Em suma, o livro faz um bom apanhado de diversas vises sobreo tema maldito dos mortos e desaparecidos polticos. Ao organizar essacoletnea, a Comisso dos Familiares e, particularmente, a historiadora emilitante Janana Teles oferecem sua contribuio para a narrativa de nos-sa histria recente a contrapelo, na luta contra o esquecimento.

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    Parte I

    21 anos de anistia e impunidade

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    Crimes sem anistia1

    Dalmo de Abreu Dallari*

    A concesso de anistia para quem tiver cometido crimes, desdeque ocorra na forma legalmente prevista, d aos criminosos o direito deno serem punidos. Por se tratar de um favor excepcional, criando uma

    categoria de privilegiados, a interpretao e aplicao da Lei da Anistiadeve ser rigorosa, no comportando a extenso para casos e situaes queno se enquadrem rigorosamente nas previses legais.

    O fato de haver uma Lei da Anistia j contm a idia de queexiste um sistema de normas jurdicas regulando as relaes sociais. E,no Estado moderno, todo sistema jurdico tem como fundamento uma

    1 Publicado na Folha de S. Paulo, So Paulo, 18 dez. 1992. p. 3.

    * Advogado e professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo. Foisecretrio dos Negcios Jurdicos da Prefeitura de So Paulo, durante o governo de LuizaErundina, presidente da Comisso Justia e Paz (SP) e autor dos livros Constituio e consti-tuinte(Saraiva, 1985), O que so direitos da pessoa(Brasiliense, 1994) e Direitos Humanose cidadania(Moderna, 1998), entre outros.

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    Constituio, qual todas as leis e todos os atos jurdicos devem obe-dincia. Por esse motivo, indispensvel que a Lei da Anistia seja elabora-da e posta em vigor obedecendo s regras constitucionais sobre a compe-tncia para conceder esse benefcio, bem como sobre os casos e os limitesem que a anistia pode ser concedida.

    Tudo isso est ganhando excepcional importncia no Brasil. Co-meam agora a ser identificados muitos agentes da represso violenta earbitrria implantada e protegida pelos governos militares, que promove-

    ram e estimularam a agresso aos Direitos Humanos, a partir do Golpe de1964. Sob pretexto de interesse da segurana nacional, praticou-se a tor-tura mais covarde e desumana, escondendo-se os torturadores sob msca-ras e apelidos, smbolos denunciadores de seu medo e de sua covardia.

    Vtimas absolutamente indefesas foram entregues a torturadoresprofissionais, que agiam superprotegidos por homens armados e pelomascaramento de sua identidade, alm de gozarem da proteo de milita-res, polticos e agentes pblicos intolerantes e sem barreiras morais. Em-

    presrios sem escrpulos enriqueceram o cenrio, fornecendo dinheiropara que fossem comprados os mais sofisticados instrumentos de tortura.Interpretando todo esse apoio como garantia de impunidade, alguns tor-turadores foram mais longe e mataram suas vtimas.

    Agora vivemos numa situao nova. Esto recuperadas no Brasil aliberdade de expresso e a possibilidade de responsabilizar juridicamentetodos os criminosos. E comea a ser revelada a identidade dos torturado-res. tempo de considerar a validade e o alcance da anistia concedida em

    1979, que vem sendo invocada como obstculo para sua punio.Um ponto, desde logo, pode ser deixado absolutamente claro: os

    torturadores homicidas, aqueles que mataram suas vtimas, nunca foramanistiados, no podendo se esconder atrs da Lei da Anistia para fugir punio. A prpria Constituio impedia que eles fossem anistiados.

    Com efeito, a Lei da Anistia, lei n. 6.683, de 28 de agosto de1979, foi editada quando vigorava no Brasil, formalmente, a Constitui-o de 1967, com a nova redao que lhe deu a chamada Emenda Cons-

    titucional n. 1, de 1969. Essa Constituio estabelecia expressamente, noartigo 153, que os crimes dolosos, intencionais, contra a vida seriam jul-gados pelo Tribunal do Jri.

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    ponto pacfico, entre os doutrinadores e na jurisprudncia dostribunais, que no tem validade jurdica uma disposio de lei que con-trarie a Constituio. A anistia de 1979 foi concedida por meio de leiordinria, segundo a qual no seriam punidos os que tivessem cometidocrimes polticos ou conexos com este.

    Sem necessidade de maiores consideraes ou de anlise aprofundada,pode-se afirmar, desde logo, que os dispositivos da Lei da Anistia no podemprevalecer contra a Constituio. Como existia norma constitucional determi-

    nando que os crimes dolosos contra a vida fossem submetidos ao Tribunal doJri, uma lei ordinria no poderia tirar desse Tribunal a competncia para ojulgamento desses crimes.

    Os torturadores que mataram suas vtimas cometeram homic-dio, que crime doloso contra a vida. Eles no foram obrigados a tortu-rar e, muitas vezes, por vontade prpria, impuseram s vtimas um so-frimento que, por sua natureza e intensidade, levaria morte qualquerpessoa normal. Alm disso, os torturadores eram servidores pblicos

    civis ou militares que agiam profissionalmente, mediante remunerao,no podendo alegar objetivos polticos. O crime por eles praticado autnomo em relao ao crime poltico praticado pelos dirigentes. Sealgum deles quiser sustentar que agiu sob coao dever esclarecer quemdeu a ordem para que torturassem, e o Tribunal do Jri decidir se aprova dessa alegao convincente.

    Os torturadores homicidas, e possivelmente outros, nunca foramanistiados. Agora existem condies para que eles sejam submetidos a

    julgamento pblico e imparcial, com a garantia de que no sero tortura-dos para confessar e de que tero plenamente assegurado o direito dedefesa. hora de fazer justia.

    Crimes sem anistia

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    tica poltica e honra militar1

    Fbio Konder Comparato*

    Em 16 de abril de 1971, o operrio metalrgico Joaquim Alencarde Seixas foi preso numa rua de So Paulo, juntamente com seu filhoIvan, de 16 anos. Na 37 Delegacia de Polcia, foram espancados no pr-

    prio ptio de estacionamento, enquanto aguardavam uma troca de viatu-ras, sendo em seguida conduzidos sede do famigerado DOI-Codi, entoconhecido como Operao Bandeirante (Oban). No ptio de manobrasdesse recinto militar, as sevcias recomearam com tal furor que a algemaque encadeava o pai ao filho se rompeu.

    Vencidas essas preliminares, ambos foram levados incontinenti sala de torturas, onde passaram a ser interrogados um em frente do outro:

    1 Publicado na Folha de S. Paulo, So Paulo, 8 jul. 1993. p. 3.

    * Advogado, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, doutor pelaUniversidade de Paris, autor dos livros Para viver a democracia(Brasiliense, 1989) e

    A afirmao histrica dos Direitos Humanos(Saraiva, 1999), fundador e diretor da Escola deGoverno.

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    o pai no trono do drago, espcie de cadeira eltrica rudimentar, e ofilho no pau-de-arara, ou seja, pendurado num pau, com os ps e asmos amarrados.

    No mesmo dia 16 de abril, os chamados rgos de seguranaprenderam a esposa de Joaquim Seixas e suas duas filhas, levando-as tam-bm para a Oban.

    Na manh do dia seguinte, os jornais j anunciavam a morte dooperrio em tiroteio com a polcia. Mas Joaquim Seixas continuou a ser

    barbaramente torturado durante todo o dia, vindo a sucumbir somente noitinha.Dirigiu essa valorosa operao militar, participando pessoalmente

    das sesses de tortura, o ento capito de artilharia Dalmo Lcio MunizCyrillo, subcomandante da Oban.

    Dos arquivos do projeto Brasil: Nunca Mais, pesquisa realizadasob patrocnio da Arquidiocese de So Paulo junto a auditorias militares,constam mais quatro mortes sob torturas imputadas ao mesmo oficial do

    Exrcito: as do jornalista Carlos Nicolau Danielli, do estudante HiroakiTorigoe, do professor Jos Jlio de Arajo e do operrio Virglio Gomesda Silva. Com este ltimo foram presos, tambm, sua esposa e trs filhos:dois meninos, de oito e seis anos de idade, e um beb de quatro meses.Aos dois meninos, os militares diziam todos os dias que os pais os haviamabandonado e que eles seriam separados; de medo, eles dormiam agarra-dos debaixo do bero da irm.

    Pois bem, por decreto de 18 de junho de 1993, publicado no

    Dirio Oficialdo dia 21 seguinte, o presidente da Repblica, na qualidadede gro-mestre da Ordem do Mrito das Foras Armadas, resolveu admi-tir, no grau de cavaleiro, em razo dos relevantes servios prestados na-o e s Foras Armadas, o hoje coronel R/1, Dalmo Lcio Muniz Cyrillo.

    Poderia concluir essas linhas por aqui, dispensando-me de co-mentrios. Diante de horror, toda palavra suprflua. Mas o embruteci-mento moral em que decaiu o pas exige algo mais do que o simplesregistro dos fatos, por mais eloqentes que sejam.

    Tudo comeou com o abjeto acordo, firmado entre as lideranaspartidrias e os chefes militares, para incluir clandestinamente na Lei daAnistia poltica os policiais e militares que, bem antes da Constituio de

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    1988, haviam inaugurado a categoria dos crimes hediondos, ao tortura-rem, estuprarem e trucidarem presos polticos.

    Logo aps a libertao da Frana, em 1944, o general De Gaulle,que demonstrou saber por aes e no apenas com palavras o que ahonra nacional e a honra militar, rejeitou uma proposta de anistia para osque haviam colaborado com os nazistas invasores. Apagar tantos crimese abusos, justificou ele, teria sido deixar um monstruoso abscesso infectarpara sempre o pas. Entre ns, porm, preferiu-se deixar intato esse abs-

    cesso, que veio intensificar, por fora da crnica amnsia nacional, umareconhecida fraqueza de carter.Houve um tempo, porm, mesmo neste Brasil, em que a cons-

    cincia militar teria rejeitado com horror a hiptese de um oficial gradua-do torturar e matar inimigos inermes; uma poca digna, em que ocampo de honra designava, efetivamente, um campo de batalha aberta,em defesa da ptria, e no uma masmorra onde se enfurnam prisioneiroscivis, reduzidos condio de molambos humanos.

    O presidente da Repblica e seu ministro do Exrcito no podemignorar que a administrao pblica est submetida ao princpio damoralidade, expressamente inscrito em nossa Constituio (art. 37), e quea moralidade administrativa comea com o respeito escrupuloso vida e integridade pessoal dos administrados.

    Eles no podem ignorar que o Brasil signatrio da convenointernacional contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruis, desu-manos ou degradantes (decreto n. 40, de 15.2.1991), e que condecorar

    algum acusado de tortura e assassnio de presos, ainda que beneficiadopor anistia, um ato frontalmente contrrio ao esprito dessa conveno eafrontoso dignidade internacional do pas.

    O presidente da Repblica e seu ministro do Exrcito no podemignorar que o comportamento incompatvel com a dignidade, a honra e odecoro do cargo previsto na lei n. 1.079, de 1950, como crime de respon-sabilidade no tem apenas um significado patrimonial, mas abrange,tambm, necessariamente, os atos de aprovao ou apologia de crimes, pas-

    sados ou presentes.O povo brasileiro, enfim, no tem o direito de ignorar que uma

    Lei da Anistia sobretudo votada nas condies equvocas em que foi a

    tica poltica e honra militar

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    lei n. 6.683, de 31.10.1979 no absolve ningum no plano tico nemautoriza governante algum a injuriar a memria das vtimas e a tripudiarsobre a dor de seus parentes e amigos.

    A tica poltica e a honra militar no sero preservadas desse mons-truoso abscesso, enquanto no nos for dada, publicamente, a devida ex-plicao pelo decreto presidencial de 18 de junho.

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    1964: por quem dobram os sinos?1

    Luiz Felipe de Alencastro*

    Um equvoco se introduziu no balano geralmente estabeleci-do a respeito do Golpe de 1964. Quando aparece gente to rara quan-to os micos-lees lembrando as atrocidades cometidas pela ditadura,

    surge um mal-estar que toca at democratas tarimbados. Quase sempre,os rememoracionistas so informados de que a transio no incorporoueste tipo de cobrana, que os responsveis pelo regime militar so, hoje,autnticos liberais. Como si acontecer entre ns, estes eventos dram-ticos teriam perdido seu nexo histrico. No aviltam, nem preocupammais a nao.

    Transformaram-se apenas em culto domstico das famlias dasvtimas. Quem quiser tratar do assunto que o faa literariamente. Que

    1 Publicado na Folha de S. Paulo, So Paulo, 20 mai. 1994. p. 3.

    * Historiador, professor catedrtico de Histria do Brasil na Universidade de Paris 4 (Sorbonne)e autor de O trato dos viventes: formao do Brasil no Atlntico Sul (Companhia das Letras).

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    escreva um desses romances de formao, meio autobiogrficos. E estamosconversados. Ainda assim, com recursos de escrevinhador e assumindo orisco de ser inconveniente, possvel insistir. Para alm do revanchismo,deve haver espao para uma anlise das conseqncias atuais da tiraniaque se abateu sobre o pas trinta anos atrs.

    Paradoxalmente, o Golpe de 1964 trouxe no bojo um elementorevolucionrio: rompeu as cadeias de solidariedade de classe, de estatuto,de educao, de profisso, tecidas entre as camadas privilegiadas. Durante

    um sculo e meio, estas cadeias de solidariedade pairavam acima dos con-flitos que atravessavam a nao. Decerto, foram sangrentos os choquesinteroligrquicos pelo controle dos Estados. Na ditadura varguista, sur-giu um patamar mais avanado no processo repressivo, porm predomi-navam as operaes de polcia, sem envolvimento direto do Exrcito. Ope-raes que no chegavam a se generalizar. Alguns interventores protege-ram parte da esquerda. Impediram que os setores dissidentes da oligar-quia fossem alcanados pela polcia do Estado Novo.

    O ano de 1964 quebra o ascenso da esquerda, mas tambmesfrangalha a conciliao das elites. No foi um processo simples. Foi pre-ciso primeiro novidade que a ditadura internacionalizasse os conflitosbrasileiros. Para isso contou com as mudanas da conjuntura mundial.Havana empurrava a Amrica Latina para a Guerra Fria. Washingtonalterava suas alianas no Terceiro Mundo. Aqui e alhures, a direita tradici-onal era ultrapassada por eventos que escapavam s relaes de foras in-ternas. Perpetrado o Golpe, o guerrilheirismo ganha espao esquerda,

    trazendo gua para o moinho dos autoritrios. De fora e de dentro, inter-vinham fatores ou extremavam as anlises.

    Existia, claro, a aposta militarista cubana fornecendo aberranteapoio luta armada, mas o radicalismo de esquerda se alimentava aindados interditos internos censura de imprensa, prises, cassaes, fraudes impostos constituio de uma frente eleitoral contrria ao regime mi-litar.

    No estava inscrito no mapa astral brasileiro que os aconteci-

    mentos devessem tomar este rumo sinistro. A resposta inicial dos EstadosUnidos s teses castristas sobre a Amrica Latina fora uma proposta dereformas sociais, a Aliana para o progresso. Algo similar (a Operao

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    pan-americana) tinha sido formulado por Juscelino. Havia campo parauma aliana reformista de conteno ao castrismo. Por razes difceis deresumir, entre as quais pesou o extremismo dos neoconservadores brasi-leiros, emplacou a aliana autoritria.

    A primeira vtima importante da radicalizao foi, justamente,Juscelino. De comeo, JK se acumpliciou com a ruptura constitucional.Acreditou nos dirigentes que lhe garantiam ser o Golpe uma ao pre-ventiva para firmar as presidenciais de 1965. Falhou a tal perspiccia

    mineira e o Brasil amargou o resto. Como no ver, retrospectivamente,que Jango constitua apenas o alvo inicial mas secundrio dos golpistas?Como esquecer a artilharia montada para atingir JK, o alvo principal?Nessa altura, a direita autoritria j tinha rifado a direita moderada. Indoem frente, extinguiu os partidos polticos, derrubou JK, candidato imba-tvel nas eleies previstas para 1965. Saltando para fora dos parmetrosconservadores, o putschvirou ditadura.

    Texto meditado, o AI-5 se apresenta, por si s, como um des-

    mentido s interpretaes visando a descarregar a responsabilidade pelosexcessos do regime nas costas de subalternos. Veio do vrtice do Estado(de uma reunio solene do Conselho de Segurana Nacional compostopelos principais ministros e pela hierarquia militar) a cobertura poltica elegal para afrontar as liberdades pblicas, os direitos individuais. Da mes-ma forma, no se deve atribuir a concepo do AI-5 a alguns coronisnordestinos e a outros tantos coronis do Exrcito. Veio do centro-suleconomicamente avanado o estmulo e a sustentao deriva autoritria.

    Dois membros do establishmentpaulista, dois civis, catedrticos da USP,tiveram um papel crucial na implementao do texto mais celerado dahistria brasileira: o ex-reitor Gama e Silva, ministro da Justia, que au-lou a crise e urdiu o contedo do Ato Institucional, e Delfim Netto,ministro da Fazenda. Foi o sr. Delfim Netto que trouxe a um Costa e Silvaainda hesitante a garantia de que o AI-5 no encontraria oposio entre oempresariado, podendo ser o Ato editado tranquilamente (testemunhodo general Portella, citado por Zuenir Ventura). Com sua habitual luci-

    dez, o ento ministro da Fazenda fez juzo certo. Comprometidos pelasbenesses estatais e pela pusilanimidade cvica fatores caractersticos denosso capitalismo postio as organizaes patronais aprovaram a guina-

    1964: por quem dobram os sinos?

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    da autoritria. O AI-5 derruba o padro poltico evolutivo plantado desdea Independncia pelos herdeiros do despotismo ilustrado pombalino. Estepadro pressupunha um espraiamento progressivo das liberdades reserva-das burocracia do Imprio e s oligarquias. Instituies embrionariamentedemocrticas iriam ampliando seu escopo, medida que a populao fos-se civilizada pelas elites. Doravante, a regra no tinha mais validade. Aevoluo civilizadora foi rompida por elites que enveredavam pelabarbrie.

    Medrou ento um mostrengo nunca visto nas paragens. Umadireita capaz de atropelar as oligarquias, centralizar o poder, comprome-ter as Foras Armadas. Um regime apto, enfim, a nacionalizar a represso.Status, gales, apadrinhamentos, tudo ia para o espao quando a subver-so entrava em linha de conta. Tal o cerne do problema histrico que secriou. Sem medo de ser feliz, uma parte substancial das elites decidiubancar a ditadura. Como fica tudo isso hoje, s vsperas de uma difcileleio presidencial?

    Embora a prtica constitucional tenha ascendido a um nvel in-dito, no se pode dizer que os neoconservadores estejam definitivamentecomprometidos com o jogo democrtico. Impossvel dissimular: o assaltode Fernando Collor e seus bandoleiros aos cofres pblicos ousada opera-o de pirataria montada para destruir nosso pas viabilizou-se por causado apoio que os partidos conservadores, o patronato e a Rede Globo pro-porcionaram ao grotesco caador de marajs.

    Do lado oposto, a candidatura de Lula, portadora de um progra-

    ma de reformas, deflagra de novo a parania neoconservadora. Parte dadireo petista aumenta a tenso ao propugnar a vitria no primeiro turno.Desconsiderar as alianas polticas em favor da aritmtica eleitoral constitui,de fato, um erro grosseiro. Matematicamente concebvel, eleitoralmentepossvel, a vitria de Lula no primeiro turno seria politicamente desastrosa.Dispensado de debater a fundo seu programa e seu ministrio, desprovidode alianas de centro no Congresso e nos Estados, o governo do PT aladopela primeira vez administrao extramunicipal estaria entregue sua

    prpria sorte.Todas as condies se alinhariam para tornar o governo federal

    refm do presidencialismo mais primitivo, mais vulnervel ao Golpe.

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    Desde logo, parece legtimo formular algumas questes. Existe,nos crculos do poder, a percepo de que a guerrilha dos anos 70 acaboude vez, no pelo terror da Oban e dos DOI-Codi, mas por causa da revo-luo eleitoral desencadeada em 1974 pela acachapante vitria do MDBde Ulysses Guimares? Est bem aceite que foi esta mesma vitria quelevou a ditadura breca? Sem a carga negativa irradiada do plo externosovieto-cubano, o plo interno da direita autoritria definhar? A socie-dade civil impediria hoje um ministro da Fazenda de garantir a um even-

    tual ditador que um texto como o AI-5 pudesse ser tranquilamente edi-tado? Pode ser que sim. Na circunstncia, a memria dos desapareci-dos ficaria de fato circunscrita ao luto mal resolvido dos sobreviventes.

    Outra hiptese merece, entretanto, ser considerada. Talvez omostrengo ainda se remexa. Talvez, a direita nacional sempre ruim devoto estiolasse suas redes eleitorais no vaivm entre o autoritarismo e oscandidatos aventureiros, a exemplo de Jnio e Collor. Talvez, ao declararque haver golpe se Lula vencer, o sr. Antonio Carlos Magalhes no este-

    ja blefando. Nesse caso, a memria dos desaparecidos extravasa o cultofamiliar, avilta a nao, ganha lancinante atualidade. Nesse caso, os sinosno dobram apenas pelos corpos sem nome amortalhados nas guas daGuanabara, nas ribanceiras do Araguaia, nos stios de tortura. Dobramtambm por ns, pobres coitados, cidados de um pas onde a democracia contingente, e os direitos civis, transitrios. Onde o passado no passa.

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    Ns no esquecemos1

    Marcelo Rubens Paiva*

    extremamente decepcionante. Com estas palavras o secret-rio-geral da Anistia Internacional, Pierre San, descreveu o encontro queteve com o presidente Fernando Henrique Cardoso, quando foi discutidaa situao das famlias dos 144 desaparecidos sob o regime militar. Santeria escutado que um passado complicado de remexer, que incomodamuitos setores. A assessoria de imprensa do Palcio do Planalto divulgouque o presidente acredita que ao se exprimir em lngua estrangeira nofoi entendido pelo senhor San, ou que, mesmo entendendo a lngua, osecretrio-geral da Anistia no tenha entendido suas colocaes.

    J se passou um ms desse mal-entendido e continuamos aguar-dando a posio oficial da Presidncia da Repblica quanto falta de

    1 Publicado na Veja, So Paulo, 10 mai. 1995. p. 106-7.

    * Jornalista, escritor e dramaturgo, filho do ex-deputado Rubens Beirodt Paiva, desaparecidodesde 20.1.1971. Autor dos livros Feliz ano velho(Mandarim, 1996) e No s tu, Brasil(Mandarim, 1996), entre outros.

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    empenho em dar resposta s famlias dos desaparecidos. O presidente pre-cisa esclarecer quais setores se sentiriam incomodados com essa ques-to.

    O Brasil ultrapassou sem grandes turbulncias o processo de tran-sio. Anistiados foram indenizados, recuperaram seus cargos e algunsexperimentaram e experimentam o poder, como o caso do atual presi-dente. Os familiares dos mortos pela ditadura que tiveram os corpos de-volvidos puderam requerer indenizaes. No entanto, restam 144 fam-

    lias de desaparecidos presas a uma espcie de limbo da histria.H 25 anos, a famlia Rubens Paiva est engasgada: 25 anos!!!At hoje, temos dificuldades em tocar os negcios da famlia, j que oestado civil de Eunice Paiva, minha me, incerto. A quem interessaprolongar esse estado de incerteza? Que tipo de democracia essa quemaquila seu passado? No possvel que um regime consolidado tenhamedo de olhar para trs.

    Depois de cassado pelo Golpe Militar de 1964, quando foi fora-

    do a se exilar do pas, Rubens Paiva voltou ao Brasil e procurou, suamaneira, resistir pacificamente ditadura, enviando para o exterior infor-maes sobre tortura, escondendo antigos polticos de esquerda e ajudan-do estudantes perseguidos a fugir do pas. Talvez por isso tenha sido pre-so, em janeiro de 1971, torturado e, ao que tudo indica, morto.

    No processo de habeas-corpusimpetrado pela famlia, os chefes mi-litares general Alberto Cabral Ribeiro, general Sylvio Frota, brigadeiroJoo Paulo Burnier e general Luiz da Frana Oliveira informaram oficial-

    mente que Rubens Paiva no estava preso.Alguns amigos, entre eles o professor Fernando Henrique Cardo-

    so, procuraram obter informaes junto ao governo americano, ento pre-sidido por Nixon. Contataram o senador Ted Kennedy, que interpeloudiretamente o assessor da Casa Branca, Henry Kissinger, para obter infor-maes sobre o desaparecimento de Rubens Paiva. Foi informado de queo ex-deputado havia sido morto por um grupo de investigadores milita-res. Revoltado, Ted Kennedy fez um discurso no Congresso americano

    pedindo a punio dos culpados.Para ns da famlia Rubens Paiva, nunca houve a confirmao da

    morte. O que tnhamos eram boatos. Mas, em 1986, o oficial-mdico

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    Amilcar Lobo declarou a Vejaque havia visto o ex-deputado Rubens Paivaensangentado e arrebentado no DOI-Codi do Rio de Janeiro.

    Por fora dos depoimentos de Amilcar Lobo, foi instaurado em1987 um processo penal na Primeira Auditoria Militar do Rio de Janeiro.O ento procurador-geral da Justia Militar, Francisco Leite Chaves, apoiadoem depoimentos de outras testemunhas, chegou a responsabilizar cincomilitares do Exrcito e da PM, ex-integrantes do DOI-Codi do Rio, pelatortura, morte e sepultamento ilegal do deputado Rubens Paiva. So eles:

    coronel Ronaldo Jos da Mota Batista Leo, capito Joo Cmara GomesCarneiro, subtenente Ariedisse Barbosa Torres, sargento Eduardo RibeiroNunes e major Rescala Corbage. O processo foi arquivado, pois os autosda sindicncia feita no I Exrcito foram destrudos.

    Temos tentado de tudo. Depois de vagar por duas dcadas embusca de informaes, entramos, em 1991, com uma ao ordinria deindenizao por danos morais e patrimoniais contra a Unio. Entre osdanos patrimoniais, est o valor de um seguro de vida que no pode ser

    recebido pois no h prova da morte. H mais de dois anos, o juiz da 2Vara da Justia Federal do Rio de Janeiro, Raldlio Bonifcio Costa, estpara concluir a sentena. No julga a ao (processo n. 91.00208-9,protocolado em 3 de janeiro de 1991). Talvez no a julgue por estarsendo pressionado por foras ocultas, ou por acreditar que um passadocomplicado de remexer. Tentamos os amigos, os polticos, a Justia econtinuamos no limbo da histria.

    Solidariedade e justiaNo ltimo ms, a imprensa tem acompanhado a onda de teste-

    munhos de militares argentinos arrependidos por suas aes durante aguerra suja, perodo que resultou na tortura e no desaparecimento demilhares de oponentes do regime militar instaurado em 1976. O ex-capito-de-corveta Adolfo Scilingo revelou em detalhes como jogava, deum avio, centenas de presos polticos no mar. O chefe do Exrcito, gene-ral Martin Balza, foi a pblico declarar que o Exrcito esteve equivocado

    ao optar, em 1976, por desviar-se da lei na represso contra a guerrilha.H uma semana, o presidente Carlos Menem disse que as confisses p-blicas do chefe do Exrcito aliviam o pas inteiro.

    Ns no esquecemos

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    Como filho de um desaparecido, tenho mil motivos para ficarindignado com o silncio das autoridades brasileiras. Como cidado, eume pergunto se j no chegou o dia de os militares brasileiros, atores dealguns momentos cruciais da nossa histria como a Proclamaoda Repblica, o Tenentismo, a Revoluo de 30 e a queda da ditadura deGetlio , imitarem seus colegas argentinos, abrirem os arquivos, exclu-rem os antigos torturadores e apontarem aqueles que sujam o nome dacorporao. Eu me pergunto como a nova gerao de oficiais consegue

    conviver com a mancha de um passado to sombrio. At quando militarbrasileiro ser sinnimo de torturador?Muitos amigos de Rubens Paiva voltaram ao poder a partir da

    redemocratizao. Foram eleitos para o Congresso ou escolhidos para umministrio. Dentre os amigos, dois chegaram Presidncia: Jos Sarney eFernando Henrique. Mesmo com amigos to influentes, a elucidao docaso no ocorreu. Foi o senegals Pierre San que veio ao Brasil, cobrou doatual presidente uma definio e lembrou que o governo tem de esclare-

    cer a situao para que os responsveis sejam levados Justia e os fami-liares das vtimas recebam indenizao.

    Seria um gesto de solidariedade, reconhecimento e justia dar aosfamiliares um atestado de morte de seus desaparecidos para que pudessemser indenizados. A contribuio dos que morreram durante a ditadurano tem recebido a ateno que merece, mas foi por meio do sacrifcio deRubens Paiva e de muitos outros que vivemos, hoje, numa democracia. Obrasileiro pode-se orgulhar e dizer, com o queixo erguido, que no co-

    varde, que muitos resistiram contra os que atentaram contra a nossa liber-dade. O Brasil est em dvida para com seus mortos. A sociedade brasilei-ra deve s famlias dos desaparecidos esse gesto de solidariedade.

    Amigo, professor e socilogoO riso franco de Rubens Paiva, sua bonomia, seu modo de ser

    generoso e de ajudar a mudana das coisas vivem, hoje, apenas na mem-ria dos que o conheceram. Mas vivero enquanto vivermos. E ajudaro a

    impedir que haja esquecimento. Com essas palavras o socilogo, entosuplente de senador, Fernando Henrique Cardoso encerrou um artigo emmaro de 1981 intitulado Sem esquecimento, em que est escrito so-

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    mos sobreviventes e temos uma responsabilidade: assegurar que nada dis-so se repita.

    O cidado brasileiro no pode estar seguro de que nada disso serepita, j que o autor deste texto, ao chegar Presidncia, ocupando ocargo de comandante-supremo das Foras Armadas, indica que teme me-xer com setores comprometidos com a tortura e o desaparecimento depolticos.

    O Estado no uma entidade monoltica, no nosso inimigo.

    uma arena pblica de debates e decises. Manter a sua autonomia precondio de um regime democrtico. O Estado somos ns. O que es-peramos que o atual presidente se inspire no passado e nas idias doamigo, professor e socilogo Fernando Henrique Cardoso.

    Ns no esquecemos

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    Brasil procura superar soluo final1

    Marcelo Rubens Paiva

    Um projeto de lei est para ser enviado pelo Ministrio da Justiaao Congresso, reconhecendo a morte dos desaparecidos e estabelecendoindenizao aos seus familiares. Mas uma pergunta tem sido evitada: por

    que, afinal, existem desaparecidos polticos no Brasil?Durante o regime militar, os exilados, no exterior, faziam barulho; a

    imagem do pas poderia ser prejudicada, atrapalhando o andamento do Mi-lagre Brasileiro, que dependia da entrada de capital estrangeiro.

    No Brasil, o Exrcito perdia o combate contra a guerrilha: assal-tos (expropriaes) a bancos, bombas em quartis, e cinco guerrilheiroscomandados pelo ex-capito Carlos Lamarca rompem o cerco de 1.700soldados comandados pelo coronel Erasmo Dias, no Vale do Ribeira. Esta-

    va claro que, para combater a chamada subverso, o governo deveria

    1 Publicado na Folha de S. Paulo, So Paulo, 29 jul. 1995. p. 8.

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    organizar um aparelho repressivo paralelo, com total liberdade de ao. criado o DOI-Codi.

    Jornalistas, compositores, estudantes, professores, atrizes, simpa-tizantes e guerrilheiros so presos. Muitos torturados. Passa a ser funda-mental para a sobrevivncia das prprias organizaes de guerrilha soltarcompanheiros ou simpatizantes presos. A partir de 1969, comeam osseqestros de diplomatas. O embaixador norte-americano trocado por15 companheiros presos. O cnsul japons de So Paulo trocado

    por cinco. O embaixador alemo rende quarenta libertados. Depois, avtima o embaixador suo: setenta presos so pedidos em troca dele.Um preso solto podia contatar organizaes de outros pases,

    relatar o que acontecia nas prises brasileiras, ou at mesmo voltar paracombater o regime; o ex-deputado Jos Dirceu e o ex-sargento OnofrePinto, na lista dos desaparecidos, chegaram a sair do pas e voltar clandes-tinamente.

    Lamarca justifica, numa entrevista publicada no Chile: Os se-

    qestros continuaro. Enquanto o governo se utiliza da tortura, osseqestros sero realizados por ser, no momento, a nica forma de liberaros companheiros. Se a tortura uma instituio que a represso no podeprescindir, o seqestro tambm o ser. Os diplomatas estrangeiros socapazes de conviver com o governo que tortura, portanto podem conviverconosco apenas alguns dias.

    Para os agentes da represso, passam a ser prioritrios a eliminaoe o desaparecimento de presos. O ato consciente: um extermnio. Encon-

    traram a soluo final para os opositores do regime, largamente utilizadapelas ditaduras chilena, a partir de 1973, e argentina, a partir de 1976; oBrasil foi um dos primeiros pases a sofrer um golpe militar inspirado nasregras estabelecidas pela Guerra Fria, e uma passada de olho na lista dedesaparecidos brasileiros revela que a maioria desaparece a partir de 1970.

    Se no Brasil a idia da soluo final tivesse sido aventada antes,no seriam apenas 150 pessoas, mas, como no Chile e na Argentina, milha-res. E os considerados inimigos do regime, como Caetano Veloso, Gilber-

    to Gil, Chico Buarque, Paulo Francis, a redao do Pasquim, as atrizes BeteMendes e Dina Sfat e o atual presidente da Repblica pode-riam ter sidoeliminados, assim como seus colegas chilenos e argentinos o foram.

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    O tema, portanto, no est restrito a uma centena de famlias.Quando leio na edio de O Globo da ltima quarta-feira que uma fontemilitar de alta patente diz que os ministros no vo se opor ao projeto daUnio, mas temem que essa medida desencadeie um processo pernicioso nao, me pergunto se os danos j no foram causados nos anos 70.

    Existem desaparecidos e desaparecidos, dos que combateram noAraguaia aos que morreram nos pores da Rua Tutia e da Baro deMesquita, dos que pegaram em armas aos que apenas faziam oposio,

    como meu pai, que no era filiado a qualquer organizao, preso em 1971.Cada corpo tem uma histria: uns foram enterrados numa vala comumdo Cemitrio de Perus, outros foram deixados na floresta amaznica, unsdecapitados, outros jogados no mar.

    O projeto do governo justo, e pode no satisfazer a todos. Fa-lando em nome da famlia Rubens Paiva, toro para que esse projeto sejaaprovado, agradeo a disposio do governo Fernando Henrique em re-colher os desaparecidos, peo pacincia aos descontentes e sugiro aos mi-

    nistros militares que pesquisem seus arquivos, discutam o tema e se sin-tam convidados a ajudar a nao a superar este trauma.

    Brasil procura superar soluo final

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    A responsabilidade do Estado brasileirona questo dos desaparecidos

    durante o regime militar1

    Fbio Konder Comparato

    1. O Governo Federal tomou a auspiciosa iniciativa de reabrir ocaso dos desaparecidos polticos durante o regime militar, cuidando deelaborar projeto de lei a respeito. No obstante o tempo decorrido desde

    a ocorrncia desses fatos criminosos e a reinstaurao do Estado de Direitono Pas, ou talvez, por isso mesmo, parece de elementar prudncia que osrgos estatais brasileiros, ao decidirem sobre o assunto, tenham em men-te a evoluo do direito internacional a respeito da matria, a fim de ava-liarem corretamente a extenso das obrigaes internacionais assumidaspelo Brasil no que concerne proteo dos Direitos Humanos.

    2. Em 18 de dezembro de 1992, em sua 9 sesso plenria, aAssemblia Geral das Naes Unidas aprovou a resoluo 47/133,

    concernente proteo de todas as pessoas contra os desaparecimentos

    1 Texto encaminhado Comisso de Justia e Paz em 9.8.1995 e publicado no boletim n. 21 doGrupo Tortura Nunca Mais/RJ, dez. 1995.

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    forados. O art. 1 dessa resoluo declara que todo ato de desapareci-mento forado constitui um ultraje dignidade humana e deve ser con-denado como uma negao dos objetivos da Carta das Naes Unidas ecomo uma violao grave e manifesta dos Direitos Humanos e das liber-dades fundamentais, pr-desenvolvidos em outros instrumentos interna-cionais pertinentes.

    Todo ato de desaparecimento forado ser considerado, de con-formidade com o direito penal, delito passvel de penas apropriadas que

    levem em conta sua extrema gravidade (art. 4o

    , 1). Ademais das sanespenais aplicveis, os desaparecimentos forados devero acarretar a res-ponsabilidade civil de seus autores e a responsabilidade civil do Estado oudas autoridades do Estado que hajam organizado, consentido ou toleradotais desaparecimentos, sem prejuzo da responsabilidade internacional desseEstado conforme os princpios do direito internacional (art. 5o).

    No concernente aos remdios jurdicos cabveis contra tais prti-cas, a mesma resoluo declara que o direito a um recurso judicial rpido

    e eficaz, como meio para determinar o paradeiro das pessoas privadas deliberdade ou seu estado de sade, ou de individualizar a autoridade queordenou a privao de liberdade ou a tornou efetiva, necessrio paraprevenir os desaparecimentos forados em todas as circunstncias (art.9o, 1).

    De acordo com o estabelecido no art. 13, os Estados asseguraroa toda pessoa que disponha de informao ou tenha um interesse legtimoe sustente que uma pessoa foi vtima de desaparecimento forado o direito

    de denunciar tais fatos perante uma autoridade estatal competente e inde-pendente, a qual proceder de imediato a uma investigao exaustiva eimparcial. Toda vez que existam motivos para crer que uma pessoa foivtima de desaparecimento forado, o Estado entregar sem demora oassunto dita autoridade para que inicie uma investigao, ainda quandono se tenha apresentado nenhuma denncia formal, investigao essaque no poder ser limitada ou entravada de maneira alguma. Os auto-res presumidos de atos de desaparecimento forado em um Estado, quan-

    do as concluses de uma investigao oficial o justifiquem e salvo quandotenham sido extraditados a outro Estado que exera sua jurisdio deconformidade com as convenes internacionais vigentes na matria, de-

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    vero ser entregues s autoridades civis competentes do primeiro Estado afim de serem processados e julgados. Os Estados devero tomar as medi-das jurdicas apropriadas que tenham sua disposio a fim de que todoautor presumido de um ato de desaparecimento forado, que se encontresob a sua jurisdio ou sob seu controle, seja julgado (art.14).

    Dispe ainda o art. 17 que todo ato de desaparecimento foradoser considerado delito permanente, enquanto seus autores continuemocultando o destino e o paradeiro da pessoa desaparecida e enquanto no

    s