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6º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais ABRI Perspectivas sobre o poder em um mundo em redefinição 25 a 28 de julho de 2017 Belo Horizonte PUC Minas Área Temática: Economia Política Internacional Hegemonia, Fim de Ciclo e Ordem Mundial Caio Victória Gontijo Belo Horizonte Julho / 2017

Caio Victória Gontijo - 6º Encontro da ABRI · à Pesquisa do Estado de Minas Gerais. E-mail: ... os aparatos hegemônicos que conformam o Estado na concepção “ampliada” gramsciana:

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6º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais – ABRI

Perspectivas sobre o poder em um mundo em redefinição

25 a 28 de julho de 2017

Belo Horizonte – PUC Minas

Área Temática: Economia Política Internacional

Hegemonia, Fim de Ciclo e Ordem Mundial

Caio Victória Gontijo

Belo Horizonte

Julho / 2017

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Hegemonia, Fim de Ciclo e Ordem Mundial

Caio Victória Gontijo1

Resumo

Em 18 de Brumário, Marx aponta um novo desenvolvimento que marcaria a história da luta

de classes - o bonapartismo (ou cesarismo). Quase um século após a descrição de Marx,

Gramsci vai além: identifica o fatídico ano de 1848 como a inflexão entre a luta de classes via

"revolução permanente" para a "fórmula da hegemonia civil". Da mesma forma, define os

cesarismos como "progressistas" ou "regressivos" e estabelece a relação destes com os

períodos de crise orgânica (interregno). Enfim, no presente ano de 2017, experimenta-se uma

conjuntura de profunda crise internacional. Esta que não se manifesta somente na esfera

econômica, mas também o faz "superestruturalmente", no âmbito dos consensos na

sociedade civil, começa a manifestar-se no que se insiste em chamar de "populismos",

manifestações nacionalistas, etc (cesarismos?) em várias "democracias ocidentais". O que

Stephen Gill definira como "Bloco Histórico Transnacional", em clara referência ao capitalismo

"ocidental" (em termos gramscianos), parece agora sofrer alguma deterioração da "couraça

hegemônica" que o reveste. Finalmente, indaga-se: que tipo de “situação” e “conjuntura(s)”

possibilitou os recentes desenvolvimentos “populistas” em grande parte do mundo

“ocidental”? Uma resposta hipotética a esta pergunta é proposta: Em suma, saímos de um em

direção ao outro (ou vivemos uma simbiose dos dois): da conjuntura de interregno para o

momento populista - o acúmulo de forças vai no sentido de quem se articula em direção ao

“povo” (e se distancia, portanto, do "democratismo", ou formalismo liberal).

Palavras-chave: Hegemonia. Fim de Ciclo. Ordem Mundial. Cesarismo. Populismo. Crise

Orgânica. Bloco Histórico Transnacional.

1 Mestrando em Política Internacional pelo Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais da PUC Minas, bacharel em Relações Internacionais pela PUC Minas. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais. E-mail: [email protected].

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Introdução

Nos últimos anos, filósofos, cientistas políticos e analistas internacionais têm

manifestado sua preocupação com a forma que começa a adotar a política internacional

contemporânea. Voltam-se agora os olhares à configuração política doméstica de cada

unidade nacional. Figuras antes marginais se apresentam como alternativa de mudança para

os cargos executivos de seus respectivos governos. Manuel Castells declara, em 2013, que

estávamos nas margens de um mundo que havia chegado ao “limite de sua capacidade de

propiciar aos seres humanos a faculdade de viver juntos e compartilhar sua vida com a

natureza” e que finalmente nos uníamos para encontrarmos “novas formas de sermos nós”.

Passados quatro anos, resta saber se o fizera com demasiado ottimismo della volontà.

Frente aos recentes desenvolvimentos políticos populistas que, apesar de domésticos,

parecem se manifestar globalmente, o pessimismo dell'intelligenza nos demanda, ao presente

ano de 2017, uma análise de conjuntura internacional que também nos situe na história e em

seus movimentos. A história é cíclica sem, contudo, se repetir. Sujeitos históricos, individuais

ou coletivos, fazem a própria história como lhes é natural – mas não a fazem livremente.

Movem-se num equilíbrio delicado entre o abismo niilista de sua liberdade irrestrita e seus

condicionantes materialísticos e históricos.

Um espectro ronda as “democracias ocidentais”. A conjuntura de interregno, do “não

mais” e do “ainda não”, saudada por Castells, reafirma o período de “crise orgânica” no qual

vivemos. Hoje, após o desfecho de algumas eleições nacionais, referendos e destituições, o

acúmulo de forças vai em direção a determinados atores. Donald Trump e Bernie Sanders,

Alt-Righters e Our Revolution, Nigel Farage e Jeremy Corbyn, Brexiters e DiEM25, Alvorada

Dourada e SYRIZA, o francês Front Nationale e o espanhol Podemos, a polarização entre

aqueles para quem a destituição da presidenta Dilma Rousseff representou um golpe

parlamentar e aqueles a quem representou um impeachment constitucional. Em síntese, a

couraça hegemônica que reveste nosso bloco histórico parece ter dificuldade em conter a

pressão de suas contradições internas.

Ouve-se o termo “populista” ser aplicado paradoxalmente de um lado a outro do

espectro político-ideológico, ora positivamente, ora negativamente. Trata-se de um termo tão

ambíguo que, não raro, designa a si e a seu contrário simultaneamente. Barack Obama, em

2016, quando perguntado sobre o populismo do então candidato Donald Trump, ao invés de

criticá-lo por sê-lo, confere elogiosamente o adjetivo a Bernie Sanders, mas não sem antes

acrescentar outro adjetivo: o “verdadeiro” populista. Teria-se, portanto, uma situação bastante

complexa: o populismo de Trump consiste em não ser “verdadeiramente” populista, e o

populismo de Sanders consiste em não ser um “falso” populista. Por serem e não serem, de

alguma maneira igualam-se “quanticamente” em populismo.

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Mas o que o debate sobre populismo e crise orgânica suscita para o campo das

perspectivas críticas das Relações Internacionais? A resposta para esta pergunta conjuga

duas razões. A primeira delas diz respeito à natureza destas teorias. Isto é, trata-se, em

oposição às teorias de problem-solving, de teorias críticas e, portanto, históricas. (COX, 2001).

Isto quer dizer que sua dialética lhes prevê com certo grau de desatualização intrínseca, e a

necessidade da aplicação de suas categorias ao concreto, negando-as se necessário, se

justifica para que não se tornem um esquema sociológico abstrato (GRAMSCI, 13, § 27,

2011), ou seja, não se tornem ideologia. Ainda, de acordo com a 2ª premissa de Cox sobre

teoria crítica: “A teoria crítica é consciente da sua própria relatividade, mas através dessa

consciência, ela pode alcançar uma perspectiva temporal mais ampla e se tornar menos

relativa que teorias problem-solving”. (COX, 2001, p. 97, tradução nossa2).

A segunda delas diz respeito à natureza do objeto. Com efeito, populismo e crise

configuram-se como algumas das questões mais palpitantes de nosso tempo e, embora não

tenhamos a pretensão de responder “que fazer? ”, nossa contribuição é a de trazê-las ao

campo de análise das Relações Internacionais, através da Economia Política Internacional.

Trata-se, na verdade, de uma necessidade. Afinal, tais acontecimentos caracterizam-se como

fórmula replicada isoladamente em cada conjuntura doméstica, sendo assim objeto de análise

somente da ciência política “doméstica”, ou são manifestações globais de uma situação

histórica igualmente global? Nossa perspectiva crítica permite-nos afirmar, em resposta, que

a segunda opção é a mais acertada – segundo Gramsci, afinal, as relações internacionais não

precedem, mas seguem as relações sociais fundamentais. (GRAMSCI, 13, §2, 2011).

Tentemos aqui, com base nessas duas razões, esboçar: 1) uma definição do

fenômeno, como demandado pela primeira razão; e 2) um método para tratá-lo, como

demandado na segunda. Nesta ordem, tratemos de dividir nossa abordagem em duas seções,

tratando respectivamente destes dois pontos.

Hegemonia e Fim de Ciclo: Para uma compreensão histórica do populismo

De um ponto de vista gramsciano, deve-se entender hegemonia como a capacidade

que uma classe ou grupo tem de unificar e de manter unido, através de uma concepção moral

e intelectual de mundo, um bloco social que não é homogêneo, mas marcado por profundas

contradições. Baseia-se na construção ou organização do consenso social – acordos

construídos e legitimados socialmente acerca do todo social – e cumpre a função de legitimar

a dominação – entendida como reprodução das condições sociais de existência – no âmbito

2 Critical theory is conscious of its own relativity but through this consciousness can achieve a broader time-perspective and become less relative than problem-solving theory. (COX, 2001, p. 97).

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da sociedade civil.3 No entanto, numa conjuntura de interregno, segundo Gramsci, a crise

consiste precisamente na “morte” de um velho arranjo social sem, contudo, que um novo

possa “nascer”. Trata-se, sobretudo, de um período de negações em que a classe dirigente

não mais é capaz de organizar o consenso social segundo as formas tradicionais, contudo,

dramaticamente, segue podendo se utilizar de sua posse legitimada da violência até o

desfecho do processo. Neste período de interregno entre ciclos, Gramsci alerta contra os

sintomas mórbidos e formas políticas “monstruosas”. (GRAMSCI, 2011). Se no contexto que

escreve, o filósofo sardo se refere ao fascismo italiano, na hipótese de vivermos hoje sob um

novo interregno, que formas políticas poderão assumir tais sintomas mórbidos?

Em 18 de Brumário, Marx comenta que todos os grandes fatos e personagens da

história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. A esta ideia, emprestada de

Hegel, ainda acrescenta: a primeira como tragédia, a segunda como farsa. Frente à volta das

idées Napoléoniennes; do “sobrinho” como o “tio”; da “cabeçada” (coup de tête) de Luís

Bonaparte como o 18 de Brumário de Napoleão Bonaparte, Marx explica:

Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem estar empenhados em transformar a si mesmos e as coisas, em criar algo nunca antes visto, exatamente nessas épocas de crise revolucionária, eles conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem, o seu figurino, a fim de representar, com essa venerável roupagem tradicional e essa linguagem tomada de empréstimo, as novas cenas da história mundial. (MARX, 2011a, p. 25-26).

Na altura que escrevia Marx, os nomes, palavras de ordem e figurinos franceses de

1789-1814 voltavam agora tomados por empréstimo no período de 1848-1851. Na verdade,

a própria tradição revolucionária de 1789-1814 se travestia: ora de República Romana e ora

de cesarismo romano. Igualmente, o fatídico ano de 1848 parodiava, por vezes, aquele de

1789 e, por outras, a tradição de 1793-95. Algo similar, ainda de acordo com Marx, acontecera

também ao povo inglês durante Cromwell no século XVII, a quem eram devotados a

linguagem e o fervor emprestados do Antigo Testamento em favor de sua revolução burguesa.

Com efeito, Marx afirma que as “ressurreições dos mortos” das quais fala cumprem a

função, finalmente, de glorificar novas lutas, exaltar cada momento histórico e não de

3 A formação de Gramsci era em Glotologia, ou seja, Linguística Histórica. Interessava-lhe o estudo de seu idioma, o sardo, além do italiano, do alemão, do russo e do francês. Diz-se que o conceito de hegemonia em Gramsci é em parte debitário do uso do termo na língua alemã, diferente do uso no russo e nas línguas neolatinas, em que aparece como dominação total, como usamos em português. Em alemão este termo carrega um significado complexo ligado à dimensão do consenso. (ARRIGONI, 1988).

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simplesmente parodiar os que a precederam. Enfim, o “cesarismo” ou “bonapartismo” de

Napoleão III cumpria então um papel histórico antitético às conquistas burguesas da revolução

anterior. Era demarcado aqui, portanto, o limite do avanço das conquistas históricas das lutas

de classes via fórmula da “revolução permanente”. O que significava dizer que “revoluções

burguesas como as do século XVIII precipitam-se rapidamente de sucesso em sucesso [...].

Em contrapartida, as revoluções proletárias como as do século XIX encontram-se em

constante autocrítica, interrompem continuamente a sua própria marcha”. (MARX, 2011a, p.

29-30).

O período de 1848-51 na França é, portanto, fundamental para a compreensão da

nova fase na qual desenvolvia-se a luta de classes: de “sucesso em sucesso” a “interrupções

contínuas”. É que o cesarismo de Napoleão III, iniciava um processo de “revolução passiva”

na França, assim como o Risorgimento o fazia na península itálica após as invasões

napoleônicas. O caminho da luta de classes agora parecia se dar mais via “hegemonia civil”

do que por revolução permanente. Gramsci explica, em longa nota a respeito do cesarismo

moderno, que o elemento militar agora perdia relevância frente ao crescimento das

instituições “privadas”4 no âmbito da sociedade civil – os aparatos hegemônicos que

conformam o Estado na concepção “ampliada” gramsciana:

César, Napoleão I, Napoleão III, Cromwell etc. Catalogar os eventos históricos que culminaram em uma grande personalidade “heroica”. Pode-se afirmar que o cesarismo expressa uma situação na qual as forças em luta se equilibram de modo catastrófico, isto é, equilibram-se de tal forma que a continuação da luta só pode terminar com a destruição recíproca. Quando a força progressista A luta contra a força regressiva B, não só pode ocorrer que A vença B ou B vença A, mas também pode suceder que nem A nem B vençam, porém se debilitem mutuamente, e uma terceira força C, intervenha de fora, submetendo o que resta de A e de B [...]. Pode haver um cesarismo progressista e um cesarismo regressivo; e, em última análise, o significado exato de cada forma de cesarismo só pode ser reconstruído a partir da história concreta e não de um esquema sociológico. [...]. Pode ocorrer uma solução cesarista mesmo sem um César, sem uma grande personalidade “heroica” e representativa. Também o sistema parlamentar criou um mecanismo para tais soluções de compromisso. (GRAMSCI, 1999-2003, 13, § 27; 3, 76-79).

Em brevíssimo resumo, três categorias são fundamentais para a compreensão desta

nota em sua versão completa. Quais sejam: cesarismo (nas suas variações “com” e “sem” um

4 “Privadas” em Gramsci não significa propriedade particular, privada, em oposição à coletiva ou pública ou estatal; “privadas” aqui são aquelas organizações que surgem na sociedade civil, isto é, fora do âmbito do Estado restrito, como expressão da complexificação das relações sociais. Assim, trata-se na maioria das vezes, de algo coletivo e não “privado”, no sentido corriqueiro – vai desde uma associação de bairro, um coletivo político, uma federação sindical, um diretório acadêmico, um jornal, uma organização social a uma entidade empresarial, uma ONG, um partido político e até a certas interseções com a “sociedade política”, como o Parlamento, lugar privilegiado da construção da hegemonia nas democracias contemporâneas.

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César e “progressista” ou “regressivo”); transformismo (processo de cooptação molecular-

individual ou “orgânico” de grandes grupos, partidos, etc. a ser interpretado à luz da correlação

de forças em cada conjuntura); e revolução passiva (solução orgânica possível para épocas

de “crise orgânica” – a solução “pelo alto”, pacto consensual a partir da classe dirigente em

direção à classe dirigida após incorporação de algumas de suas demandas). Não raro, estas

categorias se apresentam em articulação histórica.

Uma digressão também se mostra necessária no que diz respeito à relação entre

cesarismo e a noção de crise orgânica, como definida na nota Observações sobre alguns

aspectos da estrutura dos partidos políticos nos períodos de crise orgânica (GRAMSCI, 13,

§23, 2011]: “O processo é diferente em cada país, embora o conteúdo seja o mesmo. [...]

Fala-se em “crise de autoridade”: e isto é precisamente a crise de hegemonia [...]. Quando a

crise não encontra esta solução orgânica, mas sim a do chefe carismático, isto significa que

existe um equilíbrio estático [...]”. Tal equilíbrio, em alternativa àquele “catastrófico”, ainda de

acordo com Gramsci, deverá possuir fatores variados – mais relevantemente a imaturidade,

a falta de acúmulo de forças, quer sejam progressistas ou conservadoras para vencer –

culminando na necessidade de um “senhor”, “condutor”, “condottiere”, etc. etc.

Carlos Nelson Coutinho (2011), elenca as diversas revoluções passivas na história

política brasileira e faz uma diferença “no espírito” de Gramsci, ainda que alerte que esta não

explicitamente se encontre neste. A saber, de que a distinção estabelecida entre cesarismo

progressista e regressivo poderia então valer para o fenômeno de revolução passiva em

função do peso relativo do processo de transformação ou de conservação contido neles. Com

efeito, Coutinho afirma a possibilidade de se identificar, na profunda relação (de possível

continuidade) entre revolução passiva e cesarismo: revoluções passivas progressistas, em

que são preponderantes elementos de transformação, e aquelas regressivas, onde os serão

aqueles da conservação.

De fato, parece haver algum consenso com relação à identificação do momento

histórico contemporâneo, com uma situação de crise orgânica. No Brasil, por exemplo, Álvaro

Bianchi (2015) aponta que “se quisermos compreender a situação presente, o conceito de

crise orgânica será mais produtivo”. Similarmente o faz Semeraro (2017), ao apontar que não

se trata de um fenômeno conjuntural, mas da derrocada do arranjo “bonapartista de esquerda”

dos últimos anos – leitura também muito próxima àquela de Abu-El-Haj (2016) em resposta à

análise poulantzasiana de Boito & Saad Filho (2016) da suposta disputa entre duas

burguesias. Pode-se igualmente citar a tese da crise de direção na conjuntura do

impeachment, de André Singer (2016). Por fim, semelhantemente, Pablo Iglesias (2016),

também parte da crise orgânica, para sugerir um “momento populista”, na Espanha

contemporânea. É que de acordo com as Observações: “o processo é diferente em cada país,

embora o conteúdo seja o mesmo”. (GRAMSCI, 13, §23, 2001).

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A noção de populismo ocupa lugar de relevância em nossa conjuntura. A mesma

situação (o processo), se constrói sempre nacionalmente. Caso se fale de populismo para a

“solução de compromisso” (revolução passiva) do problema contemporâneo, Iglesias (2016)

explica que a “articulação em direção ao povo” se constrói sempre com elementos histórico-

nacionais. Contudo, populismo e bonapartismo, por mais imbricados que possam parecer,

não são necessariamente a mesma coisa. Diversas formas bonapartistas restauradoras foram

ao mesmo tempo populistas. É justo dizer que populista é a construção do político a ser usada

pela figura bonapartista, a depender do momento. Basta elencarmos: Napoleão III, o fascismo

(de maneira geral), e até experiências cesaristas progressistas como o lulismo “ornitorrinco”

– da combinação dos opostos, segundo Chico de Oliveira (2003), etc. No entanto, diversas

formas revolucionárias também o foram: Iglesias (2016) pergunta, em alusão a Lenin, afinal:

“Será que alguma vez houve um momento mais populista do que aquele em que, há 99 anos,

alguém disse paz e pão? ”

Antes de uma definição mais sistemática da noção de populismo, Chantal Mouffe

(2000) se propõe a entender esta ambiguidade. Em síntese, em nossa atual democracia

representativa, se encontrariam mesclados, de maneira “contingente”, elementos de duas

tradições históricas distintas e opostas – a liberal-formalista e a democrática. Do que se deriva,

típica-idealmente, que um governo totalmente liberal-formalista se caracterizaria pela gestão

do Estado a partir de uma tecnocracia específica, instituições específicas – enfim, de um

aparato burocrático pretensamente apolítico. Por outro lado, a manifestação totalmente

democrática de um governo se daria sob a forma populista – como política “nua”, sem

roupagens diplomáticas, identificação direta entre representante e representados, etc.

Em sua descrição sobre o fenômeno populista, Laclau (2013) fala sobre a disputa no

âmbito dos consensos pela articulação de “significantes vazios” em direção ao “povo” (o povo

“de verdade”, em exclusão a um “outro”, como a “white american working class” contra os,

pejorativamente adjetivados, imigrantes ilegais) como categoria supostamente unitária –

sobretudo em épocas em que os consensos no âmbito da sociedade civil são fortemente

disputados (somente “democraticamente”, portanto sob forma de exclusão, pois rejeita-se o

elemento formalista-liberal dos direitos humanos, etc.). Em suma, trata-se de “momentos

populistas” que não definem as opções políticas, mas somente a estratégia política que em

grande parte delimita o discurso na disputa por ou construção de consensos sociais.

Finalmente, há que se definir o que se quer dizer com “ocidental”. Em Gramsci,

defende Carlos Nelson Coutinho (2014), a distinção entre oriente e ocidente não pode ser

estática. Caso assim fosse, não se poderia hoje aplicar a teoria ampliada do Estado ao Brasil,

o que se mostraria incoerente com a complexificação da sua sociedade civil no último século,

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demonstrada por Coutinho.5 Ele então argumenta que “Gramsci não se limita a registrar a

presença sincrônica de formações de tipo “oriental” ou “ocidental”, mas indica também os

processos histórico-sociais, diacrônicos, que fazem com que uma formação social se torne

ocidental”. (COUTINHO, 2014, p. 209). Haveria de se discutir, para articular populismo e

ordem mundial, a natureza da conexão entre o nacional “ocidental” e ordem mundial – ou, na

verdade, o que significa o nacional dentro da totalidade. Haveria de se discutir sobre a noção

de “bloco histórico transnacional” proposta por Gill (1993), em contraposição a de “bloco

histórico internacional” de Cox. Buscamos estabelecer uma relação dialética com o princípio

de que:

A partir de sua perspectiva italiana, Gramsci teve uma aguçada percepção daquilo que agora chamamos de dependência. [...] grandes potências têm relativa liberdade para determinar suas políticas externas; potências menores têm menos autonomia. A vida econômica das nações subordinadas é penetrada e entrelaçada com a das nações poderosas. (COX, 2001, p. 134, tradução nossa6).

A questão seria entender como a substituição de “internacional” por “transnacional”,

proposta por Gill, influencia na compreensão da manifestação de fenômenos políticos no

mundo ocidental. Caso contrário, cairíamos numa mecânica, presente em Cox, segundo a

qual, a partir das grandes potências, “instituições econômicas e sociais, a cultura, a tecnologia

associada a essa hegemonia nacional tornam-se o padrão de emulação no exterior. Tal

hegemonia expansiva se apresenta nas nações mais periféricas como revolução passiva. ”

(COX, 2001, p. 137, tradução nossa7). Trata-se de uma afirmação bastante complexa,

enquanto pode-se perceber esta mesma mecânica para aquilo que Joseph Nye chamou de

soft power, o conteúdo da categoria “hegemonia” é bastante mais amplo e sua alegada

“apresentação como revolução passiva” teria implicações das mais diversas: pediria uma

definição bastante ampliada de revolução passiva, ou um condicionamento de cada revolução

passiva na periferia a um input hegemônico externo.

5 Segundo Coutinho: “Apesar de tudo, porém, a sociedade civil – embora por vezes duramente reprimida – sempre conservou uma margem de autonomia real. Mais que isso: cresceu e se diversificou a partir de meados dos anos 70, quando um forte movimento no sentido de auto-organização envolveu os operários, os camponeses, as mulheres, os jovens, as camadas médias, os intelectuais e até mesmo setores da burguesia. O movimento de massas (ocorrido em 1984) em favor da eleição direta para a Presidência da República, que desempenhou um papel decisivo na derrota definitiva da ditadura militar, foi a culminação desse processo de fortalecimento da sociedade civil, que assumiu dimensões até então inéditas na história do Brasil. ” (COUTINHO, 2014, p. 215). 6 From his Italian perspective, Gramsci had a keen sense of we would now call dependency. […] great powers have relative freedom to determine their foreign policies in response to domestic interests; smaller powers have less autonomy. The economic life of subordinate nations is penetrated by and intertwined with that of powerful nations. (COX, 2001, p. 134). 7 The economic and social institutions, the culture, the technology associated with this national hegemony become patterns for emulation abroad. Such an expansive hegemony impinges on the more peripheral countries as a passive revolution. (COX, 2001, p. 137).

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Para uma crítica da Ordem Mundial

Eagleton (1997) nota que palavras terminadas em “-logia” apresentam uma

peculiaridade. Significariam a ciência ou estudo de algum fenômeno, contudo, parecem haver

passado por um processo de inversão de seu significado. A saber, as palavras assim

terminadas passaram a significar o próprio fenômeno estudado, ao invés de um conhecimento

sistemático sobre o próprio fenômeno. Desta forma, “metodologia”, que significa o estudo do

método, somente é utilizada, nos mais diversos meios, para referir-se ao próprio método. A

escolha de uma metodologia para a crítica da ordem mundial significa a escolha de um

método. A escolha de um método não pode ser concebida de maneira dissociada do marco

teórico: uma teoria, afinal pressupõe um método. Desta forma, explicitamos os princípios que

nos guiam dentro do método da economia política (que explicaremos a seguir). De acordo

com Gramsci:

É necessário mover-se no âmbito de dois princípios: 1) o de que nenhuma sociedade se põe tarefas para cuja solução ainda não existam as condições necessárias e suficientes, ou que pelo menos não estejam em vias de aparecer e se desenvolver; 2) e o de que nenhuma sociedade se dissolve e pode ser substituída antes que se tenham desenvolvido todas as formas de vida implícitas em suas relações [...]. Todavia, no estudo de uma estrutura, devem-se distinguir os movimentos orgânicos (relativamente permanentes) dos movimentos que podem ser chamados de conjuntura (e que se apresentam como ocasionais, imediatos, quase acidentais). Também os fenômenos de conjuntura dependem, certamente, de movimentos orgânicos, mas seu significado não tem um amplo alcance histórico: eles dão lugar a uma crítica política miúda, do dia a dia, que envolve os pequenos grupos dirigentes e as personalidades imediatamente responsáveis pelo poder. Os fenômenos orgânicos dão lugar à crítica histórico-social, que envolve os grandes agrupamentos para além das pessoas imediatamente responsáveis e do pessoal dirigente. (GRAMSCI, 1999-2003, 13, § 17; 3, 36-46).

Desta forma, são distinguidos movimentos orgânicos daqueles puramente conjunturais

em cada unidade nacional. “Escândalos nacionais” como aqueles ligados à Operação Lava

Jato e as reações dos diversos setores sociais no Brasil, ou dos cartões coorporativos e etc.

na Espanha, ou os exemplos quase diários envolvendo Donald Trump e as consequentes

reações populares a cada, compõem o quadro conjuntural de cada unidade; enquanto

movimentos orgânicos estarão vinculados à condição de escassez e desvalorização ligadas

a crise orgânica que se prolonga em grande parte das democracias “ocidentais”.

Há ainda que se notar, em termos de método, que as categorias populismo, crise

orgânica, fim de ciclo e ordem mundial são certamente “multidimensionais”, e não se inserem

somente em um dos debates: político, ideológico ou econômico. Ainda assim, estuda-se algo

“em especial”, uma parte, para referir-se a algo que se sobrepõe ao específico, a saber, o

todo. Nos Grundrisse, Marx (2011b) trabalha com as categorias da economia política, mas

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criticando-as de um ponto de vista ontológico. Isto significa que ele mostra como estas

categorias ligam-se à totalidade do social e ao mesmo tempo ligam-se à história (entendendo,

portanto, que estas categorias não vêm na natureza, sendo o capitalismo finalmente

entendido como forma histórica). A partir disso, tem-se uma “totalidade”, na qual há uma

relação entre produção, distribuição, consumo e circulação. Marx, sobre o método da

economia política, percebe algo fundamental:

O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da representação. Na primeira via, a representação plena foi volatilizada em uma determinação abstrata; na segunda, as determinações abstratas levam à reprodução do concreto por meio do pensamento. Por isso, Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que sintetiza-se em si, aprofunda-se em si e movimenta-se a partir de si mesmo, enquanto o método de ascender do abstrato ao concreto é somente o modo do pensamento de apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um concreto mental. Mas de forma alguma é o processo de gênese do próprio concreto. P. ex., a categoria econômica mais simples, digamos, o valor de troca, supõe a população, população produzindo em relações determinadas; [supõe] também um certo tipo de família – ou comunidade – ou de Estado etc. Não pode jamais existir, exceto como relação abstrata, unilateral, de um todo vivente, concreto, já dado. (MARX, 2011b, p. 54-55).

Segundo Marx, pode-se afirmar sem validade um método que assume suas próprias

categorias abstratamente. Partir, por exemplo, da escolha intuitiva da “população” como

categoria relevante na análise político-econômica de uma nação deixa de fora, a análise das

classes das quais é constituída. Mas classes, por sua vez, também são conceito vazio se se

desconhece os elementos nos quais se baseiam, etc. etc. Chega-se, enfim, numa contradição

básica, por assim dizer, qual seja aquela referente ao valor, a saber – capital e trabalho. No

entanto, em seguida à primeira via descendente do abstrato ao concreto, “teria de dar início

à viagem de retorno até que finalmente chegasse de novo à população, mas desta vez não

como a representação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas

determinações e relações.”. (MARX, 2011b, p. 54). A referência que fazemos à totalidade

cumpre finalmente a função de se compreender estruturalmente e historicamente elementos

constitutivos de nossas categorias.

Mas a totalidade não poderá ser somente econômica, ou (infra)estrutural, como

algumas interpretações do marxismo poderiam alegar. A partir da perspectiva teórica

referenciada, a saber, a partir de Gramsci, afirmamos que embora Marx (2011b, p. 48) aponte

nos Grundrisse a produção como “momento predominante” (übergreifende moment) na

totalidade, não há determinação mecânica, mas uma profunda relação entre estrutura e

superestrutura, em síntese: “Não é verdade que a filosofia da práxis ‘destaque’ a estrutura

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das superestruturas; ao contrário, ela concebe o desenvolvimento das mesmas como

intimamente relacionado e necessariamente inter-relativo e recíproco” (GRAMSCI, 10, §41,

2011)8. Tal ponto, alertamos, deverá ser melhor explorado: sujeitos tomam consciência de

determinada estrutura via superestrutura (ideologia) até ascenderem de volta ao concreto

através de uma subjetividade revolucionária (em Gramsci, uma reforma moral e intelectual),

etc. etc.

O fundamental, entretanto, é perceber que elementos que se encontram no âmbito dos

consensos (crise de hegemonia) ou, em outras palavras, que se expressem através de uma

subjetividade ou ideologia, por sua natureza somente parcial em relação ao todo, refletem

como contrário de si mesmos, uma totalidade. Exemplifiquemos com a reflexão de Eagleton

sobre ideologia e totalidade em Lukács:

Lukács toma de aspectos da Segunda Internacional o sentido positivo e não pejorativo da palavra ideologia, escrevendo desembaraçadamente a favor do marxismo como “a expressão ideológica do proletariado”, e isto é, pelo menos, uma razão para considerar simplesmente equivocada a visão largamente difundida de que, para ele, ideologia é sinônimo de falsa consciência. Mas, ao mesmo tempo, ele conserva todo o aparato conceptual da crítica de Marx do fetichismo da mercadoria e, assim, mantém vivo um sentido mais crítico do termo. O “outro” ou oposto da ideologia nesse sentido negativo deixa, porém, de ser primariamente a “ciência marxista”, mas o conceito de totalidade, e uma das funções desse conceito em sua obra é permitir que rejeite a idéia de uma ciência social desinteressada sem com isso ser presa do relativismo histórico. (EAGLETON, 1997, p. 90-91).

Movemo-nos aqui no âmbito dos princípios propostos por Gramsci, mais

relevantemente o de que “nenhuma sociedade se põe tarefas para cuja solução ainda não

existam as condições necessárias e suficientes”, associadamente à noção de totalidade

marxista, tomada por empréstimo por Lukács e Eagleton. A síntese destas considerações nos

informa que cada situação histórica contém dialeticamente, além de si mesma (sob forma

“imediata”, em Gramsci: conjuntura), elementos que a violam e que são parte imanente de si

(elementos do futuro no presente). É precisamente neste sentido que Zizek estabelece que:

“No autêntico marxismo, a totalidade não é um ideal, mas um conceito crítico; situar um

fenômeno em sua totalidade não significa ver a harmonia secreta do Todo, mas incluir em um

sistema todos seus “sintomas”, considerar seus antagonismos e inconsistências como suas

partes integrais”. (ZIZEK, 2012, p. 166, tradução nossa9).

8 Embora seja provável que Gramsci não houvesse tido contato com os Grundrisse, por terem tido suas primeiras publicações somente em 1939, isto é, após sua morte, certamente lhe era familiar a “segunda via”, a obra “pronta”, isto é, O Capital (ou todos eles). 9 En el auténtico marxismo, la totalidad no es un ideal, sino un concepto crítico; situar un fenómeno en su totalidad no significa ver la secreta armonía del Todo, sino incluir en un sistema todos sus «síntomas», considerar sus antagonismos e inconsistencias como sus partes integrales.

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Teríamos aqui, finalmente, algum modelo analítico10, a conexão entre ordem mundial

e populismo “via” crise orgânica. Nota bene, isto equivaleria a dizer “do populismo à crise

orgânica, da crise orgânica à ordem mundial”. Trata-se, é claro, de um percurso metodológico,

e não de um esquema causal de determinações. Deve-se também reagir totalmente à

vinculação destas três categorias às tradicionais três “imagens” das relações internacionais.

A saber, como se assim fosse: o homem (populista), o Estado (em crise orgânica) e a guerra

(ordem mundial). Em resposta, populista sequer é o homem, mas o momento; a crise não está

confinada “dentro” do Estado, apesar de ser “do” Estado, em sua concepção ampliada; e, por

fim, ordem mundial não deverá pressupor menos que a sua conformação histórica, e é maior,

portanto, que sua apresentação como categoria “natural”, ou como sinônimo de qualquer

ordenamento na política internacional. Numa palavra, enquanto este último delimita-se pela

mera soma das partes, a ordem mundial deverá significar o todo mais suas inerentes

distorções, isto é, para as Relações Internacionais, a totalidade.

Considerações finais

As considerações aqui elencadas certamente não esgotam o assunto. Uma leitura de

mais fôlego acerca do objeto, deverá contemplar variáveis das mais amplas. Há aqueles, por

exemplo, como Zanatta (2008), que propõe uma história da política da América Latina como

a história do populismo. Este, como se articula com elementos histórico-nacionais, associou-

se a elementos religiosos herdados da colonização ibérica. Sendo assim, haveria certa

totalização do populismo na política latino-americana. Zanatta chega a afirmar que mesmo as

figuras mais próximas de algo formal-liberal na América Latina, e dá o exemplo de Fernando

Collor, constantemente se constroem populisticamente, isto é, em direção ao “povo” enquanto

construção unitária em relação a um outro: Collor como o “caçador de marajás”. Portanto, há

de se considerar, no momento da investigação, a possibilidade de que, na América Latina, o

evento não encontre conexões somente com uma possível situação de crise orgânica.

No entanto, a partir de uma totalidade que ‘penetra e entrelaça’ – para usar um

vocabulário coxiano – os eventos do capitalismo global, arriscamos uma leitura de que a

alternativa populista resulte dos acontecimentos que assumem o nome de crise e que se

prolongam de 2008 até hoje. Esses acontecimentos, na verdade, são um processo que tem

muitas manifestações e no qual causas e efeitos se interligam e se sobrepõem. A negação ao

consenso neoliberal poderá inclusive produzir o seu contrário, isto é, resultar em mais

10 É importante dizer, de acordo com José Paulo Netto (2016), que apesar da apresentação das categorias no modelo analítico, estas deverão ser revisadas na execução da pesquisa. Afinal, elas não podem vir da aparência, no momento da hipótese, descer ao concreto, no momento do estudo, e ascender ao abstrato como representação do movimento do real, exatamente como inicialmente se suspeitava, se conceituava, etc. Caso contrário, a pesquisa não seria necessária, a aparência seria igual ao real, método de investigação e método de exposição seriam um só, etc.

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neoliberalismo. Via revolução passiva, a solução tem sido uma solução de compromisso – na

qual disputa-se apenas a forma, uma vez que o conteúdo já fora dado. O populismo é a mera

forma da disputa de figuras bonapartistas, representantes dessa solução de compromisso,

num cenário marcado pela imaturidade das forças sociais progressistas ou conservadoras. O

processo é diferente em cada unidade nacional, embora o conteúdo seja o mesmo. E o

conteúdo é precisamente a crise de hegemonia, ou crise do Estado em seu conjunto –

sociedade política e civil.

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