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1 Eixo: Política Educacional “TERCEIRO SETOR”, EDUCAÇÃO E HEGEMONIA: A AÇÃO ESTRATÉGICA DO CAPITAL NA IMPOSIÇÃO DO CONSENSO SOBRE AS REFORMAS NEOLIBERAIS NA EDUCAÇÃO Marcos Roberto Lima 1 Resumo: Em tempos de ofensiva neoliberal, uma miríade de organizações genericamente denominadas “não-governamentais” passou a ocupar o espaço das políticas publicas no Brasil, colocando-se em sintonia com o novo modelo de parcerias público-privadas proposto por Bresser Pereira à frente do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE), criado durante o primeiro governo Fernando Henrique Cardoso. O setor empresarial corporativo capitaneou as reformas educacionais, valendo-se da ação estratégica do “terceiro setor” para o desenvolvimento de um fértil campo de pr opagação do ideário neoliberal. Apesar da proclamada defesa da autonomia das escolas e dos interesses universais em torno da educação pública estatal, os arautos das reformas passaram a introduzir nas escolas públicas estratégias de gestão empresarial características do setor privado. Ao olhar desavisado, as reformas neoliberais se apresentavam como um recuo do Estado e o avanço da lógica democrática presente na sociedade civil. Este artigo tem por propósito desmistificar tal caracterização, entendendo-se o campo nebuloso que se convencionou denominar de “terceiro setor” como uma forma eficiente de ocultação dos conflitos sociais resultantes das reformas neoliberais implementadas nas últimas décadas, destacando-se suas implicações no campo da educação. O artigo apresenta os resultados de nossa pesquisa de mestrado, fundamentada na análise histórico-crítica da emergência do “terceiro setor” na região metropolitana de Campinas, tomando como recorte temporal o período que se estende da ditadura militar, no qual situamos as raízes desse campo de ação estratégica em nosso país, passando pelo período de redemocratização, culminando nos anos de 1990, com a ofensiva neoliberal e o que denominamos de reestruturação flexível do trabalho escolar. A partir do materialismo histórico-dialético, realizamos a crítica à concepção liberal de Estado e sua crença na possibilidade de harmonização dos conflitos sociais, apresentando o “terceiro setor” como o espaço privilegiado de todas as virtudes da sociedade civil, desarticulado dos interesses do mercado e do autoritarismo do Estado. É evidente a fundamentação gramsciana de nossa análise, tratando-se de uma tentativa de continuidade do desvelamento de toda a trama do Estado burguês, iniciada pela crítica radical de Marx à filosofia do direito de Hegel, cuja pretensão de sofisticar as estratégias de consolidação 1 Marcos Roberto Lima UNICAMP, Campinas - SP [email protected]

ESTRATÉGICA DO CAPITAL NA IMPOSIÇÃO DO … · desarticulado dos interesses do mercado e do autoritarismo do Estado. É evidente a fundamentação gramsciana de nossa análise,

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Eixo: Política Educacional

“TERCEIRO SETOR”, EDUCAÇÃO E HEGEMONIA: A AÇÃO

ESTRATÉGICA DO CAPITAL NA IMPOSIÇÃO DO CONSENSO

SOBRE AS REFORMAS NEOLIBERAIS NA EDUCAÇÃO

Marcos Roberto Lima1

Resumo: Em tempos de ofensiva neoliberal, uma miríade de organizações genericamente

denominadas “não-governamentais” passou a ocupar o espaço das políticas publicas no

Brasil, colocando-se em sintonia com o novo modelo de parcerias público-privadas

proposto por Bresser Pereira à frente do Ministério da Administração Federal e Reforma

do Estado (MARE), criado durante o primeiro governo Fernando Henrique Cardoso. O

setor empresarial corporativo capitaneou as reformas educacionais, valendo-se da ação

estratégica do “terceiro setor” para o desenvolvimento de um fértil campo de propagação

do ideário neoliberal. Apesar da proclamada defesa da autonomia das escolas e dos

interesses universais em torno da educação pública estatal, os arautos das reformas

passaram a introduzir nas escolas públicas estratégias de gestão empresarial

características do setor privado. Ao olhar desavisado, as reformas neoliberais se

apresentavam como um recuo do Estado e o avanço da lógica democrática presente na

sociedade civil. Este artigo tem por propósito desmistificar tal caracterização,

entendendo-se o campo nebuloso que se convencionou denominar de “terceiro setor”

como uma forma eficiente de ocultação dos conflitos sociais resultantes das reformas

neoliberais implementadas nas últimas décadas, destacando-se suas implicações no

campo da educação. O artigo apresenta os resultados de nossa pesquisa de mestrado,

fundamentada na análise histórico-crítica da emergência do “terceiro setor” na região

metropolitana de Campinas, tomando como recorte temporal o período que se estende da

ditadura militar, no qual situamos as raízes desse campo de ação estratégica em nosso

país, passando pelo período de redemocratização, culminando nos anos de 1990, com a

ofensiva neoliberal e o que denominamos de reestruturação flexível do trabalho escolar.

A partir do materialismo histórico-dialético, realizamos a crítica à concepção liberal de

Estado e sua crença na possibilidade de harmonização dos conflitos sociais, apresentando

o “terceiro setor” como o espaço privilegiado de todas as virtudes da sociedade civil,

desarticulado dos interesses do mercado e do autoritarismo do Estado. É evidente a

fundamentação gramsciana de nossa análise, tratando-se de uma tentativa de continuidade

do desvelamento de toda a trama do Estado burguês, iniciada pela crítica radical de Marx

à filosofia do direito de Hegel, cuja pretensão de sofisticar as estratégias de consolidação

1 Marcos Roberto Lima – UNICAMP, Campinas - SP – [email protected]

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do consenso segue na atualidade iluminando aqueles que defendem as estratégias do

“terceiro setor”.

Palavras chave: Estado; Sociedade civil; Educação; “terceiro setor”; hegemonia.

Introdução:

Nos anos de 1990, assistimos à emergência do conceito de organização não

governamental, que rapidamente passou a fazer parte tanto do vocabulário popular,

quanto dos espaços acadêmicos (LANDIN,1998, p.26) . Esses “novos atores” sociais

(GOHN, 2005a, 2005b; SADER, 1998) emergiram em um contexto marcado pela

ofensiva hegemônica neoliberal no Brasil, retirando-se do Estado a responsabilidade pela

oferta de serviços públicos e direitos sociais.

No campo ideológico, observamos a emergência da chamada “pós-modernidade”,

uma concepção fragmentadora da realidade social, destituindo de credibilidade as

análises marxistas fundamentadas na categoria de totalidade. O caráter fragmentário das

reivindicações e a perda da centralidade da luta de classes nas análises acadêmicas

colaboraram para a emergência desse eficiente instrumento de ocultação do conflito

social, conformando-se um verdadeiro “campo de ação estratégica”, cujo efeito é a perda

da perspectiva histórica transformadora dos movimentos sociais populares e o vínculo

orgânico dos intelectuais com a transformação social.

Na primeira parte do artigo, abordaremos as questões teórico-metodológicas que

norteiam nossa análise da emergência do “terceiro setor” no Brasil, buscando evidenciar

a fragilidade das análises que dicotomizam de forma não dialética o processo de

redemocratização a partir dos anos de 1980. Por um lado, Estado passa a ser identificado

com a ditadura militar, enquanto a sociedade civil, por outro, é transformada no espaço

privilegiado de todas as virtudes.

Na segunda parte, destacaremos o vínculo da ação estratégica do “terceiro setor”

com reestruturação capitalista e ofensiva neoliberal, abordando as implicações

pedagógicas da atuação do “terceiro setor”, que não somente educa para o consenso sobre

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as reformas neoliberais, funcionando como um eficiente instrumento na implementação

do que denominamos de “reestruturação flexível no trabalho escolar”.

1. Fundamentos teórico-metodológicos para a análise histórico-crítica do “terceiro

setor” e suas implicações político-pedagógicas

O conceito de “terceiro setor” passou a ganhar evidência no Brasil, sobretudo, a

partir dos anos de 1990. Para muitos, ele seria o resultado da emergência da sociedade

civil no cenário político, após duas décadas de ditadura militar. O contexto em que ele

emergiu foi acompanhado pela ofensiva hegemônica neoliberal, promovendo a

“satanização” do Estado e a transferência das responsabilidades sociais para o âmbito

privado.

Compreendendo um suposto espaço isento de interesses, seja do mercado, seja do

autoritarismo e a “ineficiência” do Estado (DURIGUETTO & MONTAÑO, 2010, p.

305), o “terceiro setor” passou a canalizar tanto as ações de setores progressistas quanto

dos setores conservadores da sociedade, o que favoreceu a ocultação do antagonismo de

classes. Como observa Montaño:

A articulação das lutas num projeto de classe tende a dificultar a busca

da hegemonia burguesa na sociedade civil. Por outro lado, o isolamento

(mediante a “setorialização” de esferas da sociedade) e a mistificação

de uma sociedade civil (definida como “terceiro setor”), “popular”,

homogênea e sem contradições de classes (que em conjunto buscaria o

“bem-comum”) e em oposição ao Estado (tido como “primeiro setor”,

supostamente burocrático, ineficiente) e ao mercado (“segundo setor”,

orientado pela procura do lucro), contribui para facilitar a hegemonia

do capital na sociedade (MONTAÑO, 2007, p. 15-6).

O fenômeno do “terceiro setor” está inserido no processo de reformulação do

padrão de resposta às sequelas sociais provenientes da reestruturação capitalista, iniciada

nos anos de 1970. Por meio de uma ação bem articulada entre Estado (aparelho

burocrático) e setores da sociedade civil2, as responsabilidades do primeiro, sobretudo no

que se refere aos direitos sociais, foram retiradas, abrindo-se espaço para que o “terceiro

2 Tendencialmente homogeneizada, ocultando a luta de classes que lhe é própria.

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setor” se tornasse um importante instrumento ideológico na criação do consenso sobre as

reformas neoliberais.

No campo internacional, o conceito de sociedade civil recebeu um grande impulso

com os desdobramentos do Leste Europeu, tornando-se uma eficiente arma ideológica

das forças de oposição ao comunismo. O culto à sociedade civil nada mais é do que um

fenômeno que expressa a preocupação liberal com a limitação e o controle do poder

político, da liberdade de associação e de organização autônoma no interior da sociedade

(WOOD, 2006, p. 209).

1.1. A concepção liberal de Estado

Desde A República de Platão, a preocupação com o “monstro feroz” da multidão

(PONCE, 1991, p. 59; se destaca, forçando as classes sociais dominantes em diferentes

épocas a elaborarem estratégias de contenção do conflito social e construção da

harmonização das relações sociais (PLATÃO, 1997, p. 130), ainda que as classes sociais

sejam estruturalmente antagônicas.

Buscando interpretar o desenvolvimento histórico dos diferentes tipos de

civilização Gramsci, nos Cadernos do Cárcere, destaca o caráter educativo e formativo

que assume o Estado:

[...] cujo fim é sempre o de criar novos e mais elevados tipos de

civilização, de adequar a “civilização” e a moralidade das mais amplas

massas populares às necessidades do contínuo desenvolvimento do

aparelho econômico de produção e, portanto, de elaborar também

fisicamente tipos novos de humanidade (2007, p. 23).

A grande questão para Gramsci é: “[...] como cada individuo singular conseguirá

incorporar-se no homem coletivo e como ocorrerá a pressão educativa sobre cada um para

obter seu consenso e sua colaboração, transformando em “liberdade” a necessidade e a

“coerção?”. (idem).

Gramsci destaca a eticidade presente no direito como um dos elementos da

revolução burguesa. Através da luta hegemônica, a burguesia constrói uma nova

sociabilidade fundamentada na “vontade de conformismo”, ampliando técnica e

ideologicamente a sua esfera de classe. A burguesia enquanto classe põe-se em

5

movimento como um “organismo vivo”, absorvendo toda a sociedade, que deve ser

assimilada a seu nível econômico e cultural (GRAMSCI, 2007, p. 271).

A burguesia insistentemente persegue tal perfeição, não com vistas a destituir o

Estado de utilidade, mas de aperfeiçoar seus instrumentos de dominação, a ponto de se

tornarem imperceptíveis, desdobrando-se historicamente em recuos e progressos de seu

intuito. Ainda que não abrindo mão da repressão para impedir a ascensão de direitos que

não sejam de seu interesse, a burguesia almeja a eficiência do “conformismo livremente

aceito”. A partir de Hegel (1770-1831), o Estado deixou de ser um modelo ideal, como

até então fora apresentado pelos jusnaturalistas, passando a ser apresentado como o

resultado do desenvolvimento histórico da sociedade capitalista (DURIGUETTO &

MONTAÑO, 2010, p. 31).

Hegel identificou a sociedade civil à burguerliche Gesellschaft (sociedade

burguesa), uma forma social historicamente específica, cuja condição essencial era a

economia moderna. Com esse conceito, preservava-se a liberdade individual e ao mesmo

tempo a universalidade do Estado, o público e o privado. A sociedade civil tornou-se o

espaço de mediação entre a família e o Estado, entre o privado e o universal (WOOD,

2006, p. 207).

Ao contrário da formulação jusnaturalista, a sociedade civil é entendida por Hegel

como a esfera das relações econômicas, jurídicas e administrativas. Assim, o estado de

natureza e a sociedade civil não mais se opunham pela conformação do contrato social.

A construção da “vida ética” pressupõe a articulação dos interesses particulares presentes

na sociedade civil e a instância universalizadora do Estado, entendido como momento

superior da vida social, esfera dos interesses públicos e universais em que as contradições

dos interesses individuais seriam superadas (DURIGUETTO & MONTAÑO, 2010, p.

32).

A moral particular é transformada pela totalidade ética, e diferentemente de

Rousseau, que via nas associações “formas parciais de sociedade”, Hegel entende que as

organizações da sociedade civil teriam suas demandas atendidas caso fossem compatíveis

com o interesse comum. Assim, o Estado funda e materializa a universalização dos

interesses privatistas e particularistas dos interesses presentes na sociedade civil (idem).

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Ao tratar do conceito de sociedade civil em Hegel, Jorge Luis Acanda, de forma

a introduzir alegoricamente a racionalidade hegeliana, destaca o seguinte diálogo entre

Talleyrand e Napoleão, quando este último buscava ampliar seu domínio por toda a

Europa: “Sir, pode-se fazer muitas coisas com as baionetas, menos sentar-se nelas” (Cf.

ACANDA, 2006, p. 115).

Ou seja, o poder não pode ser exercido somente através da força, é preciso que ele

se apoie na legitimidade outorgada pelo consenso. Consenso este produzido pelo próprio

povo sobre o qual se procura exercer o poder. A expansão do império napoleônico,

realizada por meio das baionetas de seu exército, significava a expansão das relações

sociais burguesas e do liberalismo, através do Código Napoleônico. No entanto, as

instituições impostas pelas armas não seriam eficientes, já que a razão não podia se fundar

apenas na força.

Hegel inaugurou uma nova abordagem da compreensão dos problemas resultantes

da organização liberal da sociedade, assumindo a tarefa histórica de superar a

inorganicidade na interpretação da relação Estado-sociedade, característica do

liberalismo clássico. Até então, Estado e sociedade não se vinculavam organicamente,

não havendo uma visão sistêmica do todo social. A função do Estado era ser avalista de

uma ordem fundada em si mesma, a ordem do mercado. Ao traduzir a civil society como

büguerliche Gesellschaft, Hegel buscou a superação dos limites da interpretação liberal,

cujo exemplo histórico da restauração conservadora após a queda de Napoleão havia

demonstrado suficientemente (idem, p. 124).

Era necessário se desenvolver a “coesão voluntária” dos súditos, superando a

divisão entre a doutrina do direito e a dos deveres, entre legalidade e “moralidade”

(moralität), única forma de se harmonizar as relações sociais e instaurar a

governabilidade, uma vez que: “[...] Os indivíduos só podem aceitar os valores que,

originando-se de sua comunidade e de sua cultura, tenham sido comprovados após um

minucioso exame racional” (idem, p. 124-125).

Hegel introduziu o conceito de “eticidade” (sittlichkeit), única alternativa ao

âmbito da existência não relacionada aos vínculos jurídicos e morais, capaz de servir

como fundamento para a “comunidade”. Não basta a racionalidade e a restrição das

atitudes egoístas pelos próprios indivíduos em benefício da coexistência. É preciso guiar-

7

se pela eticidade, cujo conteúdos são as normas da vida pública. Dessa maneira, Hegel

compreendeu:

[...] que tanto o direito quanto a moralidade têm validade apenas quando

se considera a existência individual do homem; por isso, era preciso

superar a proposta individualista liberal e chegar à fundamentação

teórica do Estado moderno como comunidade política na qual os

indivíduos não buscam somente seus interesses privados, mas também

perseguem seus interesses públicos (ACANDA, 2006, p. 126).

Portanto, o princípio da individualidade para Hegel só pode ser concretizado

através da relação do homem com a vida pública da comunidade, e não se reafirmando

de forma obstinada a individualidade e a privacidade dos homens. A eticidade é a garantia

da harmonia entre os interesses privados dos indivíduos na comunidade, somente possível

por meio do “reconhecimento de si mesmo nos outros” (idem).

Em sua Crítica à filosofia do direito de Hegel, Marx nos apresenta a fórmula

hegeliana, cuja pretensão não é outra senão a superação dos conflitos entre os indivíduos

e os riscos presentes na multidão:

[...] Os indivíduos da multidão, na medida em que contêm, eles

mesmos, naturezas espirituais e, com isso, o dúplice momento, quer

dizer, o extremo da singularidade que sabe e quer para si e o extremo

da universalidade que sabe e quer o substancial e que por isso, só

podem chegar ao direito na medida em que sejam reais como pessoas

privadas e, ao mesmo tempo, como pessoas substanciais – atingem, em

cada esfera, em parte, imediatamente o primeiro extremo e, em parte, o

outro, de maneira que têm a sua autoconsciência essencial nas

instituições como o universal em si existente de seus interesses

particulares e que, em parte, erigem um ofício e uma atividade na

corporação voltados a um fim geral [...] Essas instituições fazem, em

particular, a constituição, isto é, a racionalidade desenvolvida e

realizada e são, por isso, a base firme do Estado, bem como da confiança

e da disposição (Gesinnung) dos indivíduos em relação a ele e aos

pilares fundamentais da liberdade pública, visto que nelas a liberdade

particular se realiza e se racionaliza, de modo que a união da liberdade

e da necessidade venha a existir em si, nelas mesmas (Cf. MARX,

2005a, p. 31).

O Estado que almeja fazer-se sociedade civil, por meio de uma sofisticada trama

na qual o “estamento médio” adquire o papel de “pilar fundamental”, encarregado de

estabelecer a relação com os “círculos particulares”, nos quais encontramos as

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associações e seus interesses corporativos. A burocracia tem a tarefa de proteger a

“universalidade imaginária” do interesse particular, para que ao rebaixar a corporação a

uma aparência, essa aparência não somente exista, mas creia em sua própria existência

(idem, p. 65).

Em um contexto histórico marcado pelos efeitos econômicos, políticos e sociais

das Revoluções Industrial e Francesa e a emergência do proletariado e da burguesia como

sujeitos históricos coletivos, cujos interesses são estruturalmente antagônicos, Hegel

observou que somente em um Estado racional que expresse em suas instituições práticas

ideias e normas reconhecidas pelos cidadãos, e que lhes possibilitasse nelas se

identificarem, seria possível a superação dos antagonismos presentes na modernidade. A

superação do conflito somente se daria em uma instância separada da sociedade civil e

que pudesse dar substância à “eticidade”. Tal instância não seria outra, senão o Estado.

Tocqueville e a democracia na América: a sociabilidade americana como

fundamento para as estratégias do “terceiro setor”

Os efeitos políticos e sociais da situação de miséria à qual fora lançada a classe

trabalhadora durante o processo de acumulação primitiva do capital, organização do

sistema fabril de produção e expansão do capitalismo, descritos com riqueza de detalhes

em obras do século XIX, como O Capital, de Karl Marx (sobretudo no capítulo XIV) e A

situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de Friedrich Engels, e que no campo

literário se expressaram em obras como Os miseráveis, de Victor Hugo, e Germinal, de

Emile Zola, amedrontavam homens como Alexis de Tocqueville (1805-1859),

preocupado em controlar os riscos da inexorável busca pela igualdade.

Tocqueville recuperou o mito da “tirania da maioria”, presente em Platão e

Aristóteles, renovado por ele na análise do ambiente industrial e revolucionário da Europa

ocidental. Porém, diferentemente dos defensores do anacrônico Estado absolutista, este

pensador liberal-conservador não se apoiou na repressão para conter os perigos das

“paixões populares”, dirigindo sua crítica à “apatia política”. Daí a clareza quanto à

necessidade do cultivo de pequenas liberdades e a descentralização político-

administrativa, inspiradas nas bem sucedidas iniciativas estadunidenses dos anos de 1830,

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destacando-se o livre associativismo (GROPPO & MARTINS, 2010, p. 49), que

Tocqueville descreveu com riqueza de detalhes nos dois volumes de A democracia na

América, publicada em 1935 (volume I) e 1940 (volume II).

A igualdade de condições era um elemento que distinguia os EUA,

proporcionando à opinião pública uma direção definida e uma tendência certa às leis.

Tocqueville reconhecia que em nações onde o direito de dominar é transmitido através da

propriedade e da herança de uma geração a outra: “[...] os homens têm apenas um meio

de agir em relação aos outros: a força [...]” (TOCQUEVILLE, 1987, p. 11).

Vivendo em um contexto marcado por revoluções e contra-revoluções, resultando

na morte dos avós e a prisão dos pais durante a Revolução Francesa, de 1789, Tocqueville

temia as revoluções por entendê-las como fenômenos que só ocorriam em nações onde

os cidadãos fossem incapazes de conduzir a democracia com liberdade (MONTAÑO,

2007, p. 64).

Tocqueville observou que a superação das relações feudais e o advento da

modernidade proporcionaram desenvolvimento em todas as áreas, tornando mais

complexas a sociedade e as relações sociais. O desenvolvimento nas ciências e nas artes

fez com que os exercícios de inteligência se tornassem fonte de riqueza e poder, “germes

de poder” ao alcance do povo, consubstanciando gradativamente a democracia e a

igualdade. A igualdade era algo inexorável, uma revolução irreversível, um “movimento

social” tão antigo que nenhuma geração seria capaz de detê-lo. Assim, era preciso:

Educar a democracia, reanimar, se possível, as suas crenças, purificar

os seus costumes, regular os seus movimentos, pouco a pouco substituir

a inexperiência pelo conhecimento dos negócios de Estado, os seus

instintos cegos pela consciência dos seus verdadeiros interesses;

adaptar o seu governo às condições de tempo e lugar; modificá-lo

conforme as circunstâncias e os homens – tal é o primeiro dos deveres

impostos hoje em dia àqueles que dirigem a sociedade. Precisamos de

uma nova ciência política, para um mundo inteiramente novo

(TOCQUEVILLE, 1987, p. 14).

O destaque a esse autor francês se deve ao fato de que seu corolário expressa uma

prática social há muito desenvolvida nos EUA, o “associativismo”, que como observa

Tocqueville, representa uma garantia necessária contra a “tirania da maioria” (idem, p.

10

149). Em termos metodológicos, foi louvável seu intento, buscando no mais desenvolvido

a chave heurística para compreender a realidade e intervir em sua época, ainda que o tenha

feito com o intuito de conservá-la.

Atualmente, o conceito de sociedade civil passou a celebrar a diferença e a

diversidade, distanciando-se do antagonismo de classe, propugnado pelo marxismo como

seu caráter fundamental. Lutas “sensíveis às dimensões da experiência humana”

emergem, abarcando uma ampla gama de ativismos, tais como o feminismo, a ecologia,

a paz etc., ocultando-se o caráter de totalidade sistêmica do capitalismo, fundamentado

na dinâmica da acumulação e auto-expansão do capital, em cuja base encontra-se a

exploração de classe (WOOD, 2006, p. 211). As relações de classe passaram a ser tratadas

como simples “identidade” pessoal, abarcando o conceito de sociedade civil uma ampla

gama de aspirações emancipadoras. A sociedade civil transformou-se numa expressão

mágica, adaptável a todas as situações da esquerda, ao custo da perda da centralidade das

relações de classe. Desse processo originou-se um emaranhado de múltiplas realidades

sociais que compõem uma estrutura social pluralista baseada no associativismo,

fundamentada na ordem discursiva, ou dialógica.

Recorremos à tradição marxista para desmistificarmos esse nebuloso espaço de

virtudes no qual se transformou a sociedade civil, atentos à advertência de Acanda, que

afirma não haver espaço na obra de Marx para uma redução economicista da ideia de

sociedade civil (ACANDA, 2006, p. 136).

1.2. A tradição marxista e a crítica à concepção burguesa de Estado e sociedade civil

Em A ideologia alemã, Marx e Engels asseveram que:

A forma de intercâmbio, condicionada pelas forças de produção

existentes em todos os estágios históricos precedentes e que, por seu

turno, as condiciona, é a sociedade civil, esta [...] tem por pressuposto

e fundamento a família simples e a família composta, a assim chamada

tribo [...] essa sociedade civil é o verdadeiro foco e cenário de toda a

história, e quão absurda é a concepção histórica anterior que descuidava

das relações reais, limitando-se às pomposas ações dos príncipes e dos

Estados (MARX & ENGELS, 2007, p. 39).

11

É a partir da sociedade civil e sua dinâmica que podemos compreender não

somente a conformação do Estado e toda a sua superestrutura ideológica – incluindo-se

nela o “terceiro setor” –, como também o próprio desenvolvimento histórico.

A concepção de história advogada por Marx e Engels tem por foco o processo real

de produção material da vida imediata dos indivíduos. A forma de intercâmbio que se

conecta a esse modo de produção, e que por ele é gerada, constitui-se na sociedade civil,

fundamento de toda a história. A sociedade civil não só atua como Estado como é o

fundamento das diferentes criações teóricas e formas de consciência (religião, filosofia,

moral etc.) que incidem sobre seu processo de criação, tratando-se de uma ação recíproca

entre seus diferentes aspectos3 (idem, p. 42).

No prefácio à sua obra Para a Crítica da Economia Política, escrita no período

entre agosto de 1858 e janeiro de 1859, Marx parte do conceito de sociedade civil

hegeliano para afirmar que a Economia Política é a anatomia da sociedade civil burguesa.

Assevera Marx:

Minha investigação desembocou no seguinte resultado: relações

jurídicas, tais como formas de Estado, não podem ser compreendidas

nem a partir de si mesmas, nem a partir do chamado desenvolvimento

geral do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se enraízam nas

relações materiais de vida, cuja totalidade foi assumida por Hegel sob

o nome de “sociedade civil” (bürguerliche Gesellschaft), seguindo os

ingleses e franceses do século XVIII; mas que a anatomia da sociedade

burguesa (bürguerliche Gesellschaft), deve ser procurada na Economia

Política (MARX, 1996, p. 51).

Marx apreende o que o tratamento da sociedade civil de Hegel tem de original

quando incorpora o pensamento de Adam Smith e o marco referencial da Economia

Política, fundamentando esse conceito no mundo das necessidades e do trabalho,

atribuindo-lhe, no entanto, um conteúdo que até então era ético-político (ACANDA,

2006, p. 136).

3 Em Para além do capital, Mészáros aborda essa questão a partir do que ele define como o “circulo

institucional do capital”, no qual se inserem as totalizações reciprocas da sociedade civil e do Estado

político, interpenetrando-se profundamente, de maneira que ambos se encontram mutuamente apoiados

(2011, p. 793).

12

Na Introdução à mesma obra, Marx criticou o jusnaturalismo e seu caráter a-

histórico, fundamento do pensamento liberal, tanto de David Ricardo, quanto de Adam

Smith:

Os profetas do século XVIII, sobre cujos ombros se apoiam

inteiramente Smith e Ricardo, imaginam esse indivíduo do século

XVIII – produto por um lado, da decomposição das formas feudais de

sociedade e, por outro, das novas forças de produção que se

desenvolvem a partir do século XVI – como um ideal, que teria existido

no passado. Veem-no não como um resultado histórico, mas como

ponto de partida da História, porque o consideravam um indivíduo

conforme a natureza humana – que não se originou historicamente, mas

foi posto como tal pela natureza. Essa ilusão tem sido partilhada por

todas as novas épocas, até o presente (MARX, 1996, p. 26).

Diferentemente de Hegel que buscava legitimar o Estado prussiano, para ele a

materialização da Razão, Marx tinha por objetivo criticar o caráter alienante do Estado

burguês e do Estado em geral. Ao partir da recusa hegeliana em apreender – como o fazia

o jusnaturalismo – os interesses individuais atomizados como fundamento da ordem

política, Marx não para nesse percurso, avançando na crítica ao Estado.

Para Acanda, Marx realiza uma radicalização democrática do pensamento liberal,

o que significa afirmar que sua relação:

[...] com o liberalismo não foi de simples negação niilista, mas de crítica

e superação democrática (no sentido hegeliano de aufheben) dos

momentos de liberdades negativas individuais e de limitação do poder

do Estado. A diferença radical entre essas concepções reside em que,

para o liberalismo, a sociedade civil é impensável sem o Estado e deve

manter-se separada dele (justamente porque é concebida como

sociedade civil burguesa, baseada na exploração), enquanto para Marx

a desalienação da sociedade civil deve levar à extinção do Estado,

extinção que é entendida como recuperação pela sociedade dos poderes

alienados por aquele (ACANDA, 2006, p. 138).

Marx reconheceu que Hegel havia avançado ao considerar o Estado um

“organismo vivo”, porém, sua concepção idealista e especulativa o impedia de conceituá-

lo como uma totalidade. O intuito dialético de Hegel foi resgatado por Marx, que

buscando nos sujeitos reais e suas relações sociais o fundamento do Estado lhe restituiu

o caráter sistêmico. Assim, para entender as instituições políticas não bastavam

13

considerações gerais e abstratas, era necessário analisar seu vínculo com as relações

sociais (idem, p. 140).

Em A questão judaica, Marx criticou a separação entre o homme, considerado o

verdadeiro homem, em sua existência sensível e individual, e o citoyen, considerado

homem abstrato, artificial, alegórico, moral. A emancipação política proposta pela

filosofia alemã reduzira o homem, por um lado, a membro da sociedade burguesa,

indivíduo egoísta e independente, e por outro, a cidadão do Estado, pessoa moral:

Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão

abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em

seu trabalho individual e em suas relações individuais, somente quando

o homem tenha reconhecido e organizado suas “forces propres” como

forças sociais e quando, portanto já não separa de si a força social sob

a forma de força política, somente então se processa a emancipação

humana (MARX, 2005b, p. 42).

Esse é um elemento fulcral da crítica de Marx à filosofia alemã, que somente era

capaz de reconhecer o indivíduo segundo a imagem do burguês, isolado no caráter

privado da produção na sociedade burguesa.

Ao apresentar o Estado como a expressão da igualdade e da liberdade, única forma

de superação da atomização que caracteriza a sociedade civil, Hegel perde de vista que o

cidadão só faz sentido na sociedade civil burguesa como abstração de suas determinações

sociais concretas (ACANDA, 2006, p. 144). Ao contrário de Hegel, Marx estava

convencido de que a liberdade só seria possível quando o Estado fosse subordinado à

sociedade, perdendo seu caráter de órgão acima das relações sociais. Com isso, Marx

advogava a supressão do Estado e sua gradual e progressiva extinção, não se tratando de

construir um novo Estado, mas de transferir o poder alienado ao Estado a uma sociedade

na qual a relação civil entre seus membros esteja livre da alienação.

Gramsci assumiu a tarefa de enfrentamento do desafio teórico-prático que tal

empreitada colocava. Mergulhado profundamente na experiência da luta de classes em

sua época, fez de conceitos como sociedade civil e hegemonia importantes instrumentos

teórico-metodológicos para a compreensão das estratégias liberais de imposição do

consenso, para além do contexto de sua abreviada vida.

14

As contribuições de Gramsci para a crítica das estratégias educativas do “terceiro

setor” e suas implicações político-pedagógicas

Na melhor tradição marxista, sublinha-se a singularidade de Gramsci, cuja obra

especializa-se no estudo e observação dos fenômenos superestruturais, tais como a

política, a cultura e o sistema de valores no contexto da ordem capitalista. Seu aporte

teórico-metodológico mantem-se firmemente vinculado ao materialismo histórico-

dialético, tendo em vista que, assim como Lênin, a base para a compreensão desses

fenômenos são as transformações materiais, cujo resultado foi o advento do capitalismo

maduro do final do século XIX, ao qual Lênin denominou de sua “fase superior”, e que

para Gramsci culminaria em um novo tipo de sociedade de tipo ocidental, baseado na

imposição do consenso mais que meramente na coerção (GRUPPI, 1980, p. 81).

Há uma identidade entre a reflexão gramsciana e a leninista, sobretudo no que se

refere à luta hegemônica travada pela classe trabalhadora, em Estados capitalistas

avançados. Nestes, a sociedade civil teria se transformado numa estrutura complexa e

resistente às “irrupções” catastróficas do elemento econômico imediato, funcionando suas

superestruturas como “o sistema de trincheiras na guerra moderna”:

No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e

gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma

justa relação, e ao oscilar o Estado, podia-se reconhecer uma robusta

estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira

avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e

casamatas; em medida diversa de Estado para Estado, é claro, mas

exatamente isto exigia um acurado reconhecimento de caráter nacional

(GRAMSCI, 2007, p. 262).

É evidente a preocupação de Gramsci com o desvelamento das trincheiras na

superestrutura da sociedade civil, sendo imprescindível uma análise histórico-concreta de

elementos como a cultura, instituições, valores sociais, por ele compreendidos como

partes constituintes do poder, e sua relação com o aparelho do Estado. Seguindo a

angulação desenvolvida por Lênin, Gramsci privilegia uma formação social concreta,

postulando formular um planejamento estratégico-tático que viabilize a expansão da força

política e social da classe operária em direção ao poder.

Em Sobre a dualidade de poderes, contrapondo-se à tomada inconsequente do

poder, afirmara Lênin:

15

[...] os operários conscientes são pelo poder único dos Sovietes de

deputados operários, assalariados agrícolas, camponeses e soldados,

pelo poder único preparado pelo esclarecimento da consciência

proletária e pela sua libertação da influência da burguesia, e não por

meio de aventuras (LENINE, 1988, p. 19).

Para tanto, era necessário tornar consciente o processo de disputa entre as classes

sociais na sociedade civil. A partir desse passo, a classe subalterna deveria procurar a

separação de determinados aparatos ideológicos da aderência do Estado, tornando-os

agências privadas sob sua direção. Era preciso interpretar na realidade concreta aquilo

que se constitui na “sedimentação da ordem burguesa”4, ao mesmo tempo buscando as

fissuras que representam a superação de tal ordem.

Apoiando-se no acúmulo teórico-prático da tradição marxista, Gramsci realizou a

análise concreta de sua época. O resultado foi uma concepção original de Estado e

sociedade civil. À semelhança de Marx e Engels que reconhecem o equívoco de suas

expectativas quanto ao processo revolucionário europeu de meados do século XIX5,

também Gramsci, a partir do resultado do biênio vermelho 1919-1920, assim como dos

desdobramentos da Revolução alemã, de 1923, concluiu que a sociedade civil como

espaço de luta hegemônica deveria ser melhor compreendida.

Até então, Gramsci entendia que a revolução era possível, dada a impotência

política do Estado liberal, expressão da impotência econômica da burguesia, incapaz de

assegurar o desenvolvimento das forças produtivas. É fundamentado nesta compreensão

da realidade histórica da Itália de sua época que Gramsci havia formulado a hipótese

conselhista. Já nos Cadernos, reformula sua hipótese, tornando-se o fordismo um “contra-

modelo” para sua estratégia do Estado de Conselhos. Gramsci já enxergava aí a

“reestruturação capitalista” em sua fase monopolista, o que o leva a desenvolver a análise

sobre o papel das superestruturas, a guerra de posição e o Estado (BUCI-

GLUCKUSMANN, 1980, p. 401).

4 Preocupação evidente em Hegel, que reconhecia a legitimidade das associações da sociedade civil caso

tivessem a força moral para universalizarem seus interesses através do Estado. 5 Na Introdução Engels à obra de Marx As lutas de classe na França de 1848 a 1850, afirma Engels: “Mas

a história nos desmentiu revelando que era uma ilusão nosso ponto de vista daquela época. Ela ainda foi

mais longe: não somente dissipou nosso erro de então, mas, igualmente, subverteu totalmente as condições

nas quais o proletariado deve combater” (ENGELS, s/d, p. 97).

16

A participação direta dos indivíduos tornou-se uma necessidade vital para os

Estados democráticos ocidentais, colocando-se como tarefa fundamental a construção do

“conformismo” às regras sociais. A civilização e a moralidade das massas deveria se

adequar ás necessidades do desenvolvimento econômico, forjando “novos tipos de

humanidade”. Cada indivíduo incorpora-se ao “homem coletivo” por meio da pressão

educativa, mascarando-se assim a coerção e a necessidade, transformadas em “liberdade”

(GRAMSCI, 2007, p. 23).

Gramsci propôs a superação do conceito de “revolução permanente”, fórmula

jacobina fundamentada na tomada do poder de assalto, própria do período em que ainda

não haviam sido forjados partidos de massa e grandes sindicatos, caracterizando-se a

sociedade por um atraso no campo e monopólio quase que completo da eficiência

político-estatal em raríssimas cidades, como Paris por exemplo. O conceito de revolução

permanente havia vigorado em um período em que o aparelho de Estado era ainda pouco

desenvolvido. Gramsci o supera através do conceito de “hegemonia civil”:

A estrutura maciça das democracias modernas, seja como organizações

estatais, seja como conjunto de associações na vida civil, constitui para

a arte política algo similar às “trincheiras” e às fortificações

permanentes da frente de combate na guerra de posição: faz com que

seja apenas “parcial” o elemento do movimento que antes constituía

“toda” a guerra, etc. (GRAMSCI, 2007, p. 24).

Gramsci formulou, então, uma “concepção integral de Estado”, para a qual a

sociedade civil tornou-se um “aparelho privado de hegemonia”, fundamentando-se no

“consenso ativo” dos indivíduos, identificando-se, assim, com o próprio Estado. Assim

sendo, a ação do Estado articula momentos de “força” e de “consentimento”, de

“autoridade” e de “hegemonia”, de “violência” e de “civilidade”, “momento individual”

e “momento universal” (GRAMSCI, 2007, p. 33).

E avançando na tarefa de crítica à filosofia do direito de Hegel realizada por Marx,

Gramsci escancara a relação entre o Estado e os indivíduos na concepção hegeliana, que

levada à perfeição implica na caracterização dos indivíduos como “funcionários do

Estado”, uma vez que, ao aderirem à direção traçada pelo Estado-Governo, atuam

ativamente na vida social (idem, p. 200).

17

A conformação dos indivíduos a um novo “bloco histórico”6, ou a sua

manutenção, é o objetivo deste que Gramsci denominou de Estado Ético, o que

corresponde a elevar a grande massa popular a um nível cultural e moral que corresponda

ao desenvolvimento das forças produtivas e do interesse das classes dominantes.

Juntamente com o direito, a escola se tornou uma das atividades estatais mais importantes

para a consolidação da hegemonia burguesa, em uma época em que a concepção

hegeliana de Estado, apoiada no desenvolvimento extensivo da burguesia, aparentemente

ilimitado, apresentava a eticidade e a universalidade dessa classe como fundamento do

gênero humano (GRAMSCI, 2007, p. 284).

O que certamente não ocorrerá sem conflitos, uma vez que em sua expansão as

classes dominantes acabam por se chocar com os interesses corporativos dos grupos

subordinados. Em tais momentos, ideologias criadas em países mais desenvolvidos

passam a orientar países menos desenvolvidos, fornecendo-lhes, inclusive, seus

intelectuais para a mediação de conflitos que possam causar desequilíbrios (GRAMSCI,

2007, p. 42).

Gramsci faz uso da expressão “sociedade civil” em uma dupla acepção. Vertendo

para o italiano o termo bürguerliche Gesellschaft, utiliza a expressão “sociedade

burguesa”, retomando o conceito marxiano de sociedade civil como “verdadeiro lar e

teatro da história”, organização social que se desenvolve a partir da produção e do

intercâmbio de suas forças, formando em todos os tempos a base do Estado e da restante

superestrutura idealista7. Marx teria visto a conexão entre a sociedade civil e o Estado,

separadas pelo pensamento liberal. O Estado, ou sociedade política é a expressão da

sociedade civil, isto é, das relações de produção que nela se instalaram (GRUPPI, 1980,

p. 26).

6 Para Gramsci, a estrutura e a superestrutura formam um bloco histórico, sendo o conjunto complexo e

contraditório das superestruturas o reflexo do conjunto das relações sociais de produção (GRAMSCI, 2006,

p. 250). 7 Segundo Marx e Engels: A forma de intercâmbio, condicionada pelas forças de produção existentes em

todos os estágios históricos precedentes e que, por seu turno, as condiciona, é a sociedade civil, esta [...]

tem por pressuposto e fundamento a família simples e a família composta, a assim chamada tribo [...] essa

sociedade civil é o verdadeiro foco e cenário de toda a história, e quão absurda é a concepção histórica

anterior que descuidava das relações reais, limitando-se às pomposas ações dos principes e dos Estados [...]

(2007, p. 39).

18

Porém, Gramsci fala também da sociedade civil como “esfera superestrutural

nova”, formando juntamente com o Estado, em sentido estrito, a forma contemporânea

do Estado, realizando uma superação dialética do conceito marxiano de Estado (In.

NEVES, 2005, p. 22, rodapé n. 2). Segundo Gruppi, Gramsci se dá conta de que esta é

uma distinção de método, não orgânica, e que na realidade esses dois elementos estão

estritamente ligados.

Chegamos a um ponto crucial da análise gramsciana do Estado e da sociedade

civil e sua pertinência para a compreensão desta “zona nebulosa” em que se constituiu o

“terceiro setor”. É importante destacar que não há uma ruptura entre a análise marxiana,

ponto de partida para Gramsci, e seu conceito de Estado integral. O que Gramsci faz,

seguindo o método desenvolvido por Marx no Prefácio de Para a Crítica da Economia

Política, de 18598 (MARX, 1996), é perceber as transformações ocorridas na

conformação do Estado ocidental, a partir da “formação social” que observara em sua

época. Alguns autores têm se apropriado indebitamente do legado teórico metodológico

de Gramsci para afirmar existir uma cisão entre Estado, Mercado e o “terceiro setor”. É

o que faz um dos mais divulgados interpretes de Gramsci, Norberto Bobbio (MARTINS,

2008).

Para Bobbio, o conceito gramsciano de sociedade civil é superestrutural, situando-

se na intermediação entre base econômica e a sociedade política, o que fundamentaria a

setorialização do social operada pelos autores que advogam o “terceiro setor”

(MONTAÑO, 2007, p. 121).

No entanto, Gramsci não esgota a superestrutura na sociedade civil. O Estado lato

sensu corresponde à sociedade política mais a sociedade civil. A primeira corresponde ao

“Estado-coerção” desenvolvendo funções de ditadura, coerção e dominação – “aparelhos

coercitivos e repressivos” – enquanto a sociedade civil, o “Estado ético”, corresponde às

8 Luciano Gruppi afirma que nesta obra Marx faz avançar seu conceito de “forma social”, apresentado na

Ideologia Alemã, passando a utilizar o conceito “formação social”, caracterizando uma fase do

desenvolvimento da sociedade que se distingue das demais pela estrutura econômica predominante, ou seja,

pelas relações de produção e de troca que caracterizam essa fase do desenvolvimento (GRUPPI, 1978, p

19).

19

funções de hegemonia, consenso e direção – mediante “aparelhos ‘privados’ de

hegemonia”. Eis a concepção de Estado integral gramsciana:

Estamos sempre no terreno da identificação de Estado e Governo,

identificação que é, precisamente, uma reapresentação da forma

corporativo-econômica, isto é, da confusão entre sociedade civil e

sociedade política, uma vez que se deve notar que na noção geral de

Estado entram elementos que devem ser remetidos à noção de

sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que Estado =

sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de

coerção). Numa doutrina do Estado que conceba este como

tendencialmente capaz de esgotamento e de dissolução na sociedade

regulada, o tema é fundamental. Pode-se imaginar o elemento Estado-

coerção em processo de esgotamento à medida que se afirmam

elementos cada vez mais conspícuos de sociedade regulada (ou Estado

ético ou sociedade civil) (GRAMSCI, 2007, p. 244).

Este par conceitual, segundo Coutinho, marca uma “unidade na diversidade” (Cf.,

MONTAÑO, 2007, pp. 124-125). Conclui-se, portanto, que, diferentemente do que

supõem os autores do “terceiro setor”, não há uma divisão tripartite e setorialista no

modelo teórico gramsciano, prevalecendo a visão marxiana de totalidade.

No Brasil pós-1985, encontramos, segundo Coutinho, dois projetos de

“ocidentalização” em disputa. Um modelo “liberal-corporativo” (típico dos EUA) e um

modelo de “democracia de massas” (típico dos Welfere europeus). Neste período,

observa-se uma tentativa das classes dominantes, orientadas pelo ideário neoliberal,

conquistarem a hegemonia através da desregulamentação social, “mercantilizando” a

sociedade civil (idem, p. 128). Durante esse processo, por outro lado, se dá a organização

de projetos de uma sociedade democrática, o que publicizaria a sociedade civil. Nos

dizeres de Evelina Dagnino, ocorreu uma “confluência perversa” entre esses diferentes

projetos (DAGNINO, 2002, p. 288).

Baseando-se na análise de Coutinho, Montaño recorre ao passado recente de

ditadura militar para analisar o deslocamento temporal realizado pelos autores do

“terceiro setor”. Em determinado momento da ditadura militar brasileira a sociedade civil

organizada conseguiu reunir, em oposição ao poder militar concentrado no Estado, o

conjunto das forças “democráticas”, provenientes de diversas classes, posturas

ideopolíticas, movimentos sociais e partidos. Havia uma visível divisão entre o Estado

militarizado e uma sociedade civil moderna (“ocidentalizada”). Essa dicotomia foi

20

marcada por uma ênfase maniqueísta, onde tudo que provinha da sociedade civil era visto

como positivo enquanto o Estado passava a ser “satanizado” (MONTAÑO, 2007, p. 132).

Estaria então a fração da “esquerda” que absorve e incorpora o discurso do

“terceiro setor”, permeada por dois vícios:

a) primeiramente, o vício da falsa oposição militar/civil, onde

estimulados pela situação pós-64, o Estado é visto como o Leviatã,

militarizado e absolutista e a sociedade civil como único espaço de

participação cidadã; b) em segundo lugar, o “vício da falsa oposição

Estado/sociedade civil”, onde a esfera estatal é considerada como

controlada irremediavelmente pelo capital e pelo status quo, e onde a

oposição, de setores sociais progressistas e trabalhistas, apenas deve

estar presente na sociedade civil (idem, p. 132-133).

Após a apresentação dos fundamentos teórico metodológicos que nos orientaram

na compreensão da emergência do “terceiro setor”, aceitando o desafio propugnado por

Gramsci, segundo o qual para se desenvolver a luta de classes nos Estados de tipo

ocidental é preciso reconhecer a “robusta cadeia de fortalezas e casamatas” que se

escondem por trás da trincheira avançada do Estado, exigindo-se para tanto “um acurado

reconhecimento de caráter nacional”, apresentaremos a seguir alguns elementos que

sustentam a tese de que no Brasil a dicotomia ditadura/redemocratização oculta o caráter

conservador dessa ação estratégica que tem por objetivo a instrumentalização das

iniciativas populares, cuja perspectiva histórica transformadora se esvazia em ações

preventivas do conflito social, impedindo a percepção do antagonismo de classes.

2. Terceiro setor, educação e hegemonia: o Estado educador e o aperfeiçoamento

das estratégias de imposição do consenso

Como vimos anteriormente, a popularização das ações do “terceiro setor” se deu a partir

do contexto de redemocratização, apresentando-se como um campo de atuação

democrática, isento dos interesses do mercado e do autoritarismo do Estado. O colapso

do chamado “milagre econômico” e a mobilização social em favor da democracia foram

utilizadas ideologicamente, construindo-se a imagem da sociedade civil como espaço de

todas as virtudes. O contexto internacional, marcado pela derrocada do regime soviético,

colaborou fortemente para que essa apressada caracterização ganhasse sustentação,

tornando-se hegemônica.

21

Um olhar mais atento, no entanto, nos revela uma construção hegemônica que

extrapola os limites cronológicos estabelecidos pela dicotomia ditadura/democracia. O

capital monopólico internacional, associado a setores da burguesia nacional e do exército,

impôs-se pela força, através do golpe civil-militar de 1964. Porém, os anos da ditadura

civil-militar foram marcados não somente pela violência, destacando-se a elaboração de

estratégias de conformação da sociedade brasileira, caracterizada nesse contexto histórico

pela efervescência nacional-desenvolvimentista, ao novo bloco histórico. Por um lado,

tratava-se de estrangular as iniciativas populares que almejavam emancipar os

trabalhadores, destacando-se as iniciativas de educação popular e da cultura popular,

controlando as expectativas de uma “educação do povo, pelo povo e para o povo”, por

outro, tornar a classe trabalhadora nacional submissa às necessidades do capital

monopólico em sua expansão. Assim, a ação articulada da burguesia nacional e

internacional buscou ser eficiente, não se limitando apenas à pura coerção (LIMA, 2012,

p. 75).

2.1. Raízes do “terceiro setor” no Brasil: para além da dicotomia

ditadura/redemocratização

Durante os anos de 1960, a estratégia imperialista estadunidense de dominação

culminou na consolidação de programas como a Aliança para o Progresso e o Corpo da

Paz. O primeiro atuaria na promoção do desenvolvimento econômico, através da

“colaboração” técnica e financeira, enquanto o segundo se constituía numa agência

governamental para a atuação nos países do “Terceiro Mundo”, combatendo a “ameaça

comunista”. Empresas norte-americanas como a Ford, Rockfeller e Carnigie vinham

atuando desde o contexto do pós-guerra como eficientes instrumentos de ocultação do

financiamento de programas secretos de ação que afetavam grupos de jovens, sindicatos

de trabalhadores, universidades, editoras etc. (SAUNDERS, apud FALLEIROS;

PRONKO; OLIVEIRA, 2010, p. 46).

Experiências preventivas do conflito social passaram a ser desenvolvidas,

disputando com os tradicionais setores da esquerda (comunistas, socialistas, anarquistas,

juntamente com setores da igreja popular, destacando-se a Pastoral Operária e as CEBs)

22

a hegemonia junto às comunidades e organizações populares. Sua ação estratégica tinha

por objetivo introduzir métodos eficientes de controle social e construção do

conformismo ativo dos indivíduos, destacando-se as estratégias associativistas que

consolidariam o “terceiro setor” como o espaço de implementação do “novo padrão de

intervenção social”, durante o processo tutelado de redemocratização.

O modelo americano de controle social orientou as ações de setores da sociedade

civil, articulando as ações de empresários e intelectuais médios que gozavam de prestigio

junto aos militares9, que em conjunto passaram a combater a ideologia nacional-

desenvolvimentista, assim como, as experiências de educação popular e cultura popular,

nela inspiradas10.

Como vimos anteriormente, as estratégias de controle social nos EUA são

descritas por Alex de Tocqueville em sua obra A democracia na América (1987).

Tocqueville influenciou autores como Jacques Maritain, cujos fundamentos

comunitaristas nortearam intelectuais que atuaram diretamente na elaboração da ação

estratégia que culminou na emergência do “terceiro setor” no Brasil, destacando-se nosso

objeto de pesquisa de mestrado, a Federação das Entidades Assistenciais de Campinas

(FEAC). Para Maritain (1966, p. 71-2), tratava-se da criação do que ele denominou de

“meios de edificação orgânica”, levando o povo à participação ativa, o que se revelou um

eficiente instrumento de sedimentação social compactuado pelos diferentes setores

conservadores articulados através do golpe militar (LIMA, 2012, p. 150).

Tais elementos colaboram para a desmistificação do “terceiro setor” como o

espaço privilegiado da democracia, em contraposição à falta de liberdade de participação

que caracteriza o Estado, sobretudo em sua fase ditatorial. Como já nos alertara Gramsci,

o governo militar nada mais é do que um parêntese entre dois governos constitucionais,

uma “reserva permanente da ordem e da conservação” (2007, p. 66).

No próximo item, procuramos evidenciar a funcionalidade da ação estratégica do

“terceiro setor” á reestruturação produtiva do capital e a ofensiva neoliberal, destacando

9 Para a compreensão de toda a trama civil-militar que resultou no golpe de 1964 nos foi de grande valia a

obra de René Dreifuss, 1964: a conquista do Estado – ação política, poder e golpe de classe (DREIFUSS,

1981). 10 Sobre tais experiências recomendamos a leitura de História da Educação Popular no Brasil – educação

popular e educação de adultos de Vanilda Paiva (2003).

23

alguns fundamentos pedagógicos adequados à tentativa de conformação de uma nova

sociabilidade, funcional à superação das crises capitalistas, sobretudo, a partir da crise

econômica mundial, instaurada nos anos de 1970.

2.2. Reestruturação capitalista e “terceiro setor”: a reestruturação flexível do

trabalho escolar

O capital busca incessantemente controlar suas crises e é este fator que deve nortear nossa

compreensão das transformações produtivas hodiernas. Ao desmoronarem as

possibilidades do modelo keynesiano, fundamentado em políticas estatais de geração de

emprego e de crescimento, um novo padrão produtivo baseado na “acumulação de tipo

flexível” passou a ser implementado, o chamado toyotismo.

Por meio do modelo toyotista, o capital busca uma maior eficiência nos

mecanismos de controle da produção fabril, tonando mais eficientes os instrumentos de

controle dos trabalhadores, neutralizando o papel dos sindicatos e do Estado. Se a

hegemonia nasce na fábrica como afirma Gramsci, as transformações no espaço fabril

foram acompanhadas por um processo de reorganização no sistema político-ideológico

de dominação do capital. Segundo Ricardo Antunes:

Como resposta à sua crise, iniciou-se um processo de reorganização do

capital e de seu sistema ideológico e político de dominação, cujos

contornos mais evidentes foram o advento do neoliberalismo, com a

privatização do Estado, a desregulamentação dos direitos do trabalho e

a desmontagem do setor produtivo estatal, da qual a era Tatcher-Reagan

foi a expressão mais forte; a isso se seguiu também um intenso processo

de reestruturação da produção e do trabalho, com vistas a dotar o

capital do instrumental necessário para tentar repor os patamares de

expansão anteriores (ANTUNES, 2005, p. 31).

O capital procurou não somente sofisticar suas formas de gerenciamento do

processo produtivo, como também reorganizar suas formas de dominação societal,

gestando um projeto de recuperação de sua hegemonia sobre as diferentes esferas da

sociabilidade.

A estratégia comunitarista mostrou-se funcional à adequação dos trabalhadores à

nova ordem, consistindo em dois eixos: um eixo filantrópico, cujo objetivo era amenizar

os efeitos sociais da reestruturação produtiva, marcada pelo desemprego e achatamento

24

salarial; e um eixo pedagógico, colaborando para o desenvolvimento de um novo tipo de

sociabilidade, compatível com os interesses do capital. Este último eixo tem por

desdobramento a adequação do “terceiro setor” como instrumento das reformas

neoliberais do Estado brasileiro, sobretudo no campo da educação, tornando-se a

transferência das escolas públicas para a gestão de organizações não governamentais uma

eficiente modalidade de privatização dos serviços públicos.

Em meados do século XX, já eram esboçados nas montanhas de Mont Pèlerin, na

Suíça, os fundamentos de um “novo liberalismo”. Hayek destacou-se como um de seus

principais ideólogos, declarando em O caminho da servidão uma verdadeira guerra ao

Estado de Bem estar social e ao que ele chamou de totalitarismo dos diferentes tipos de

coletivismo, defendendo uma “sociedade menos regulada”, fundamentada na

concorrência (HAYEK, 1977, p. 35).

Nos anos de 1970, o ciclo de crescimento do pós-guerra, marcado pelo apogeu do

fordismo e do keynesianismo, caracterizado pelo pleno emprego, salários elevados e

sindicatos fortalecidos, chegou ao fim. A Europa entrava em um complexo quadro de

crise estrutural do capital, desmoronando os mecanismos de regulação anteriores.

Iniciava-se um período de reorganização do sistema político, econômico e ideológico,

momento em que as ideias defendidas em Mont Pèlerin ganharam força como resposta

aos efeitos da crise.

Em 1989, liderados por organismos representantes do capital internacional, como

o FMI e o Banco Mundial, economistas de instituições financeiras de Washington

elaboraram um conjunto de exigências de austeridade fiscal e ajustamento estrutural da

economia, destacando-se dentre as regras básicas a proposta de privatização de empresas

estatais. As diretrizes traçadas tornaram-se conhecidas como “Consenso de Washington”.

Pouco a pouco, o senso comum tecnocrático avançou sobre o campo da educação, o que

para Gentile nos permite afirmar a existência de um Consenso de Washington no campo

das políticas educacionais (GENTILE, 1998, p. 15).

Não tardou para que os fundamentos neoliberais passassem a orientar a reforma

do Estado brasileiro, a partir de meados dos anos de 1990. Criticando a Constituição de

1988 como um retrocesso, Bresser Pereira sintetiza bem com seu Plano Diretor do

25

Aparelho da Reforma do Estado o “novo paradigma gerencial” que irá orientar o que

denominamos de “reestruturação flexível do trabalho escolar”:

O paradigma gerencial contemporâneo, fundamentado nos princípios

da confiança e da descentralização da decisão, exige formas flexíveis de

gestão, horizontalização de estruturas, descentralização de funções,

incentivos à criatividade. Contrapõe-se à ideologia do formalismo e do

rigor técnico da burocracia tradicional. À avaliação sistemática, à

recompensa pelo desempenho, e à capacitação permanente, que já eram

características da boa administração burocrática, acrescentam-se os

princípios da orientação para o cidadão-cliente, do controle por

resultados, e da competição administrada (BRASIL, 1995, p. 17 – grifo

nosso).

Antecipando-se ao Plano Diretor de Bresser Pereira, Guiomar Namo de Mello foi

quem melhor traduziu as orientações neoliberais para o campo da educação, o que a autora

arrisca caracterizar como uma verdadeira “revolução copernicana em educação”

(MELLO, 2000). Por trás da defesa da “autonomia” e fortalecimento da unidade escolar

que faz Mello, esconde-se uma sofisticada estratégia de gestão, transferindo-se a

responsabilidade pelo fracasso da educação às escolas. O que se evidencia na afirmação

de que:

[...] o fortalecimento da unidade escolar deverá deslocar para esta

última a responsabilidade pelos resultados da aprendizagem de seus

alunos, tornando-as responsáveis pela prestação de contas de suas

atividades, respondendo não mais a controles prévios, formais e

burocráticos e sim mediante seu desempenho (MELLO, 2000, p. 81).

A equipe escolar é chamada a firmar um “contrato” com os usuários e as centrais

de avaliação, definindo-se as metas a ser cumpridas, implicando na contínua prestação de

contas. O Plano de Desenvolvimento da Escola se torna o instrumento de mediação desse

contrato, possibilitando localmente o estabelecimento de metas e a avaliação de

resultados, mediante as quais passam a ser realocados os recursos11. Para o cumprimento

do “compromisso”, a escola pode contar com a assistência de escolas privada,

11 Trata-se de uma lógica nefasta segundo a qual o direcionamento de recursos está condicionado à melhora

dos índices de produtividade. Aumentar os recursos financeiros das escolas antes dos resultados quebraria

tal lógica, já que para se “institucionalizar” a reforma gerencial é preciso se “naturalizar” a ideia de que a

baixa qualidade do ensino se deve à “ineficiência” da gestão e do trabalho escolar e não à falta de recursos.

26

organizações não-governamentais, havendo “autonomia orçamentária” para a compra de

assessorias externas de instituições especializadas (MELLO, 2000, p. 99).

A “organização flexível” implica na diferenciação salarial entre as diferentes

unidades e professores, alterando-se as carreiras docentes de forma a “premiar” escolas e

professores pelo “mérito”. Esse “novo padrão de gestão de recursos humanos” deve ser

“negociado” com os sindicatos de professores, desenvolvendo-se uma verdadeira “cultura

avaliativa” no âmbito da educação.

Aos poucos, os discursos educativos oficiais e a produção teórica da área da

educação substituíram a expressão “administração da escola ou da educação”, pelo

conceito de “gestão escolar” ou “gestão da educação”, assemelhando-se aos novos

conceitos utilizados na administração empresarial. Também a expressão “novos padrões

de gestão educacional” vem sendo utilizada para representar mecanismos aplicados a

escolas e sistemas educacionais de “sucesso”, ou “eficazes” (ADRIÃO, 2006, p. 24).

Representantes do setor empresarial corporativo como a Fundação Lemann e a

Falconi passaram a desenvolver consultoria às escolas da rede pública de ensino,

preparando o campo para o processo de implementação do novo padrão de gestão

empresarial dos serviços públicos, destacando-se sua atuação junto à implementação das

reformas educacionais.

À guisa de conclusão

No momento em que concluíamos nossa pesquisa sobre o “terceiro setor” e suas

implicações político pedagógicas, ao final do ano de 2011, a ex-Secretária de Educação

dos EUA, Diane Ravitch, publicou o seu livro Vida e morte do grande sistema escolar

americano, reconhecendo que as reformas educacionais que ajudou a implementar

estavam vinculadas às mudanças estruturais e a responsabilização das escolas, por meio

de testes padronizados e o modelo de mercado, em nada relacionando-se com a substância

do aprendizado (RAVITCH, 2011, p. 32).

Enquanto nossa pesquisa evidenciava a implementação do modelo empresarial

corporativo de gestão nas escolas públicas brasileiras, desmoronava de maneira

vergonhosa o “grande sistema escolar americano”, no qual se inspiravam os arautos das

reformas neoliberais no Brasil. Como vimos, organizações que atuam no âmbito do

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“terceiro setor” tem colaborado para que as reformas sejam palatáveis, parecendo

corresponder aos anseios democráticos da sociedade, ocultando, no entanto, o avanço dos

interesses capitalistas sobre a educação. O que não ocorre sem resistência, como o

demonstra o movimento das escolas ocupadas contra a reorganização das escolas

paulistas.

Concluímos reiterando que o modelo associativista norte americano, assim como

o seu modelo empresarial corporativo de gestão das escolas públicas, constituem-se numa

importante chave heurística para a compreensão da emergência da ação estratégica do

“terceiro setor” no Brasil e suas implicações político-pedagógicas.

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