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Eixo: Política Educacional
“TERCEIRO SETOR”, EDUCAÇÃO E HEGEMONIA: A AÇÃO
ESTRATÉGICA DO CAPITAL NA IMPOSIÇÃO DO CONSENSO
SOBRE AS REFORMAS NEOLIBERAIS NA EDUCAÇÃO
Marcos Roberto Lima1
Resumo: Em tempos de ofensiva neoliberal, uma miríade de organizações genericamente
denominadas “não-governamentais” passou a ocupar o espaço das políticas publicas no
Brasil, colocando-se em sintonia com o novo modelo de parcerias público-privadas
proposto por Bresser Pereira à frente do Ministério da Administração Federal e Reforma
do Estado (MARE), criado durante o primeiro governo Fernando Henrique Cardoso. O
setor empresarial corporativo capitaneou as reformas educacionais, valendo-se da ação
estratégica do “terceiro setor” para o desenvolvimento de um fértil campo de propagação
do ideário neoliberal. Apesar da proclamada defesa da autonomia das escolas e dos
interesses universais em torno da educação pública estatal, os arautos das reformas
passaram a introduzir nas escolas públicas estratégias de gestão empresarial
características do setor privado. Ao olhar desavisado, as reformas neoliberais se
apresentavam como um recuo do Estado e o avanço da lógica democrática presente na
sociedade civil. Este artigo tem por propósito desmistificar tal caracterização,
entendendo-se o campo nebuloso que se convencionou denominar de “terceiro setor”
como uma forma eficiente de ocultação dos conflitos sociais resultantes das reformas
neoliberais implementadas nas últimas décadas, destacando-se suas implicações no
campo da educação. O artigo apresenta os resultados de nossa pesquisa de mestrado,
fundamentada na análise histórico-crítica da emergência do “terceiro setor” na região
metropolitana de Campinas, tomando como recorte temporal o período que se estende da
ditadura militar, no qual situamos as raízes desse campo de ação estratégica em nosso
país, passando pelo período de redemocratização, culminando nos anos de 1990, com a
ofensiva neoliberal e o que denominamos de reestruturação flexível do trabalho escolar.
A partir do materialismo histórico-dialético, realizamos a crítica à concepção liberal de
Estado e sua crença na possibilidade de harmonização dos conflitos sociais, apresentando
o “terceiro setor” como o espaço privilegiado de todas as virtudes da sociedade civil,
desarticulado dos interesses do mercado e do autoritarismo do Estado. É evidente a
fundamentação gramsciana de nossa análise, tratando-se de uma tentativa de continuidade
do desvelamento de toda a trama do Estado burguês, iniciada pela crítica radical de Marx
à filosofia do direito de Hegel, cuja pretensão de sofisticar as estratégias de consolidação
1 Marcos Roberto Lima – UNICAMP, Campinas - SP – [email protected]
2
do consenso segue na atualidade iluminando aqueles que defendem as estratégias do
“terceiro setor”.
Palavras chave: Estado; Sociedade civil; Educação; “terceiro setor”; hegemonia.
Introdução:
Nos anos de 1990, assistimos à emergência do conceito de organização não
governamental, que rapidamente passou a fazer parte tanto do vocabulário popular,
quanto dos espaços acadêmicos (LANDIN,1998, p.26) . Esses “novos atores” sociais
(GOHN, 2005a, 2005b; SADER, 1998) emergiram em um contexto marcado pela
ofensiva hegemônica neoliberal no Brasil, retirando-se do Estado a responsabilidade pela
oferta de serviços públicos e direitos sociais.
No campo ideológico, observamos a emergência da chamada “pós-modernidade”,
uma concepção fragmentadora da realidade social, destituindo de credibilidade as
análises marxistas fundamentadas na categoria de totalidade. O caráter fragmentário das
reivindicações e a perda da centralidade da luta de classes nas análises acadêmicas
colaboraram para a emergência desse eficiente instrumento de ocultação do conflito
social, conformando-se um verdadeiro “campo de ação estratégica”, cujo efeito é a perda
da perspectiva histórica transformadora dos movimentos sociais populares e o vínculo
orgânico dos intelectuais com a transformação social.
Na primeira parte do artigo, abordaremos as questões teórico-metodológicas que
norteiam nossa análise da emergência do “terceiro setor” no Brasil, buscando evidenciar
a fragilidade das análises que dicotomizam de forma não dialética o processo de
redemocratização a partir dos anos de 1980. Por um lado, Estado passa a ser identificado
com a ditadura militar, enquanto a sociedade civil, por outro, é transformada no espaço
privilegiado de todas as virtudes.
Na segunda parte, destacaremos o vínculo da ação estratégica do “terceiro setor”
com reestruturação capitalista e ofensiva neoliberal, abordando as implicações
pedagógicas da atuação do “terceiro setor”, que não somente educa para o consenso sobre
3
as reformas neoliberais, funcionando como um eficiente instrumento na implementação
do que denominamos de “reestruturação flexível no trabalho escolar”.
1. Fundamentos teórico-metodológicos para a análise histórico-crítica do “terceiro
setor” e suas implicações político-pedagógicas
O conceito de “terceiro setor” passou a ganhar evidência no Brasil, sobretudo, a
partir dos anos de 1990. Para muitos, ele seria o resultado da emergência da sociedade
civil no cenário político, após duas décadas de ditadura militar. O contexto em que ele
emergiu foi acompanhado pela ofensiva hegemônica neoliberal, promovendo a
“satanização” do Estado e a transferência das responsabilidades sociais para o âmbito
privado.
Compreendendo um suposto espaço isento de interesses, seja do mercado, seja do
autoritarismo e a “ineficiência” do Estado (DURIGUETTO & MONTAÑO, 2010, p.
305), o “terceiro setor” passou a canalizar tanto as ações de setores progressistas quanto
dos setores conservadores da sociedade, o que favoreceu a ocultação do antagonismo de
classes. Como observa Montaño:
A articulação das lutas num projeto de classe tende a dificultar a busca
da hegemonia burguesa na sociedade civil. Por outro lado, o isolamento
(mediante a “setorialização” de esferas da sociedade) e a mistificação
de uma sociedade civil (definida como “terceiro setor”), “popular”,
homogênea e sem contradições de classes (que em conjunto buscaria o
“bem-comum”) e em oposição ao Estado (tido como “primeiro setor”,
supostamente burocrático, ineficiente) e ao mercado (“segundo setor”,
orientado pela procura do lucro), contribui para facilitar a hegemonia
do capital na sociedade (MONTAÑO, 2007, p. 15-6).
O fenômeno do “terceiro setor” está inserido no processo de reformulação do
padrão de resposta às sequelas sociais provenientes da reestruturação capitalista, iniciada
nos anos de 1970. Por meio de uma ação bem articulada entre Estado (aparelho
burocrático) e setores da sociedade civil2, as responsabilidades do primeiro, sobretudo no
que se refere aos direitos sociais, foram retiradas, abrindo-se espaço para que o “terceiro
2 Tendencialmente homogeneizada, ocultando a luta de classes que lhe é própria.
4
setor” se tornasse um importante instrumento ideológico na criação do consenso sobre as
reformas neoliberais.
No campo internacional, o conceito de sociedade civil recebeu um grande impulso
com os desdobramentos do Leste Europeu, tornando-se uma eficiente arma ideológica
das forças de oposição ao comunismo. O culto à sociedade civil nada mais é do que um
fenômeno que expressa a preocupação liberal com a limitação e o controle do poder
político, da liberdade de associação e de organização autônoma no interior da sociedade
(WOOD, 2006, p. 209).
1.1. A concepção liberal de Estado
Desde A República de Platão, a preocupação com o “monstro feroz” da multidão
(PONCE, 1991, p. 59; se destaca, forçando as classes sociais dominantes em diferentes
épocas a elaborarem estratégias de contenção do conflito social e construção da
harmonização das relações sociais (PLATÃO, 1997, p. 130), ainda que as classes sociais
sejam estruturalmente antagônicas.
Buscando interpretar o desenvolvimento histórico dos diferentes tipos de
civilização Gramsci, nos Cadernos do Cárcere, destaca o caráter educativo e formativo
que assume o Estado:
[...] cujo fim é sempre o de criar novos e mais elevados tipos de
civilização, de adequar a “civilização” e a moralidade das mais amplas
massas populares às necessidades do contínuo desenvolvimento do
aparelho econômico de produção e, portanto, de elaborar também
fisicamente tipos novos de humanidade (2007, p. 23).
A grande questão para Gramsci é: “[...] como cada individuo singular conseguirá
incorporar-se no homem coletivo e como ocorrerá a pressão educativa sobre cada um para
obter seu consenso e sua colaboração, transformando em “liberdade” a necessidade e a
“coerção?”. (idem).
Gramsci destaca a eticidade presente no direito como um dos elementos da
revolução burguesa. Através da luta hegemônica, a burguesia constrói uma nova
sociabilidade fundamentada na “vontade de conformismo”, ampliando técnica e
ideologicamente a sua esfera de classe. A burguesia enquanto classe põe-se em
5
movimento como um “organismo vivo”, absorvendo toda a sociedade, que deve ser
assimilada a seu nível econômico e cultural (GRAMSCI, 2007, p. 271).
A burguesia insistentemente persegue tal perfeição, não com vistas a destituir o
Estado de utilidade, mas de aperfeiçoar seus instrumentos de dominação, a ponto de se
tornarem imperceptíveis, desdobrando-se historicamente em recuos e progressos de seu
intuito. Ainda que não abrindo mão da repressão para impedir a ascensão de direitos que
não sejam de seu interesse, a burguesia almeja a eficiência do “conformismo livremente
aceito”. A partir de Hegel (1770-1831), o Estado deixou de ser um modelo ideal, como
até então fora apresentado pelos jusnaturalistas, passando a ser apresentado como o
resultado do desenvolvimento histórico da sociedade capitalista (DURIGUETTO &
MONTAÑO, 2010, p. 31).
Hegel identificou a sociedade civil à burguerliche Gesellschaft (sociedade
burguesa), uma forma social historicamente específica, cuja condição essencial era a
economia moderna. Com esse conceito, preservava-se a liberdade individual e ao mesmo
tempo a universalidade do Estado, o público e o privado. A sociedade civil tornou-se o
espaço de mediação entre a família e o Estado, entre o privado e o universal (WOOD,
2006, p. 207).
Ao contrário da formulação jusnaturalista, a sociedade civil é entendida por Hegel
como a esfera das relações econômicas, jurídicas e administrativas. Assim, o estado de
natureza e a sociedade civil não mais se opunham pela conformação do contrato social.
A construção da “vida ética” pressupõe a articulação dos interesses particulares presentes
na sociedade civil e a instância universalizadora do Estado, entendido como momento
superior da vida social, esfera dos interesses públicos e universais em que as contradições
dos interesses individuais seriam superadas (DURIGUETTO & MONTAÑO, 2010, p.
32).
A moral particular é transformada pela totalidade ética, e diferentemente de
Rousseau, que via nas associações “formas parciais de sociedade”, Hegel entende que as
organizações da sociedade civil teriam suas demandas atendidas caso fossem compatíveis
com o interesse comum. Assim, o Estado funda e materializa a universalização dos
interesses privatistas e particularistas dos interesses presentes na sociedade civil (idem).
6
Ao tratar do conceito de sociedade civil em Hegel, Jorge Luis Acanda, de forma
a introduzir alegoricamente a racionalidade hegeliana, destaca o seguinte diálogo entre
Talleyrand e Napoleão, quando este último buscava ampliar seu domínio por toda a
Europa: “Sir, pode-se fazer muitas coisas com as baionetas, menos sentar-se nelas” (Cf.
ACANDA, 2006, p. 115).
Ou seja, o poder não pode ser exercido somente através da força, é preciso que ele
se apoie na legitimidade outorgada pelo consenso. Consenso este produzido pelo próprio
povo sobre o qual se procura exercer o poder. A expansão do império napoleônico,
realizada por meio das baionetas de seu exército, significava a expansão das relações
sociais burguesas e do liberalismo, através do Código Napoleônico. No entanto, as
instituições impostas pelas armas não seriam eficientes, já que a razão não podia se fundar
apenas na força.
Hegel inaugurou uma nova abordagem da compreensão dos problemas resultantes
da organização liberal da sociedade, assumindo a tarefa histórica de superar a
inorganicidade na interpretação da relação Estado-sociedade, característica do
liberalismo clássico. Até então, Estado e sociedade não se vinculavam organicamente,
não havendo uma visão sistêmica do todo social. A função do Estado era ser avalista de
uma ordem fundada em si mesma, a ordem do mercado. Ao traduzir a civil society como
büguerliche Gesellschaft, Hegel buscou a superação dos limites da interpretação liberal,
cujo exemplo histórico da restauração conservadora após a queda de Napoleão havia
demonstrado suficientemente (idem, p. 124).
Era necessário se desenvolver a “coesão voluntária” dos súditos, superando a
divisão entre a doutrina do direito e a dos deveres, entre legalidade e “moralidade”
(moralität), única forma de se harmonizar as relações sociais e instaurar a
governabilidade, uma vez que: “[...] Os indivíduos só podem aceitar os valores que,
originando-se de sua comunidade e de sua cultura, tenham sido comprovados após um
minucioso exame racional” (idem, p. 124-125).
Hegel introduziu o conceito de “eticidade” (sittlichkeit), única alternativa ao
âmbito da existência não relacionada aos vínculos jurídicos e morais, capaz de servir
como fundamento para a “comunidade”. Não basta a racionalidade e a restrição das
atitudes egoístas pelos próprios indivíduos em benefício da coexistência. É preciso guiar-
7
se pela eticidade, cujo conteúdos são as normas da vida pública. Dessa maneira, Hegel
compreendeu:
[...] que tanto o direito quanto a moralidade têm validade apenas quando
se considera a existência individual do homem; por isso, era preciso
superar a proposta individualista liberal e chegar à fundamentação
teórica do Estado moderno como comunidade política na qual os
indivíduos não buscam somente seus interesses privados, mas também
perseguem seus interesses públicos (ACANDA, 2006, p. 126).
Portanto, o princípio da individualidade para Hegel só pode ser concretizado
através da relação do homem com a vida pública da comunidade, e não se reafirmando
de forma obstinada a individualidade e a privacidade dos homens. A eticidade é a garantia
da harmonia entre os interesses privados dos indivíduos na comunidade, somente possível
por meio do “reconhecimento de si mesmo nos outros” (idem).
Em sua Crítica à filosofia do direito de Hegel, Marx nos apresenta a fórmula
hegeliana, cuja pretensão não é outra senão a superação dos conflitos entre os indivíduos
e os riscos presentes na multidão:
[...] Os indivíduos da multidão, na medida em que contêm, eles
mesmos, naturezas espirituais e, com isso, o dúplice momento, quer
dizer, o extremo da singularidade que sabe e quer para si e o extremo
da universalidade que sabe e quer o substancial e que por isso, só
podem chegar ao direito na medida em que sejam reais como pessoas
privadas e, ao mesmo tempo, como pessoas substanciais – atingem, em
cada esfera, em parte, imediatamente o primeiro extremo e, em parte, o
outro, de maneira que têm a sua autoconsciência essencial nas
instituições como o universal em si existente de seus interesses
particulares e que, em parte, erigem um ofício e uma atividade na
corporação voltados a um fim geral [...] Essas instituições fazem, em
particular, a constituição, isto é, a racionalidade desenvolvida e
realizada e são, por isso, a base firme do Estado, bem como da confiança
e da disposição (Gesinnung) dos indivíduos em relação a ele e aos
pilares fundamentais da liberdade pública, visto que nelas a liberdade
particular se realiza e se racionaliza, de modo que a união da liberdade
e da necessidade venha a existir em si, nelas mesmas (Cf. MARX,
2005a, p. 31).
O Estado que almeja fazer-se sociedade civil, por meio de uma sofisticada trama
na qual o “estamento médio” adquire o papel de “pilar fundamental”, encarregado de
estabelecer a relação com os “círculos particulares”, nos quais encontramos as
8
associações e seus interesses corporativos. A burocracia tem a tarefa de proteger a
“universalidade imaginária” do interesse particular, para que ao rebaixar a corporação a
uma aparência, essa aparência não somente exista, mas creia em sua própria existência
(idem, p. 65).
Em um contexto histórico marcado pelos efeitos econômicos, políticos e sociais
das Revoluções Industrial e Francesa e a emergência do proletariado e da burguesia como
sujeitos históricos coletivos, cujos interesses são estruturalmente antagônicos, Hegel
observou que somente em um Estado racional que expresse em suas instituições práticas
ideias e normas reconhecidas pelos cidadãos, e que lhes possibilitasse nelas se
identificarem, seria possível a superação dos antagonismos presentes na modernidade. A
superação do conflito somente se daria em uma instância separada da sociedade civil e
que pudesse dar substância à “eticidade”. Tal instância não seria outra, senão o Estado.
Tocqueville e a democracia na América: a sociabilidade americana como
fundamento para as estratégias do “terceiro setor”
Os efeitos políticos e sociais da situação de miséria à qual fora lançada a classe
trabalhadora durante o processo de acumulação primitiva do capital, organização do
sistema fabril de produção e expansão do capitalismo, descritos com riqueza de detalhes
em obras do século XIX, como O Capital, de Karl Marx (sobretudo no capítulo XIV) e A
situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de Friedrich Engels, e que no campo
literário se expressaram em obras como Os miseráveis, de Victor Hugo, e Germinal, de
Emile Zola, amedrontavam homens como Alexis de Tocqueville (1805-1859),
preocupado em controlar os riscos da inexorável busca pela igualdade.
Tocqueville recuperou o mito da “tirania da maioria”, presente em Platão e
Aristóteles, renovado por ele na análise do ambiente industrial e revolucionário da Europa
ocidental. Porém, diferentemente dos defensores do anacrônico Estado absolutista, este
pensador liberal-conservador não se apoiou na repressão para conter os perigos das
“paixões populares”, dirigindo sua crítica à “apatia política”. Daí a clareza quanto à
necessidade do cultivo de pequenas liberdades e a descentralização político-
administrativa, inspiradas nas bem sucedidas iniciativas estadunidenses dos anos de 1830,
9
destacando-se o livre associativismo (GROPPO & MARTINS, 2010, p. 49), que
Tocqueville descreveu com riqueza de detalhes nos dois volumes de A democracia na
América, publicada em 1935 (volume I) e 1940 (volume II).
A igualdade de condições era um elemento que distinguia os EUA,
proporcionando à opinião pública uma direção definida e uma tendência certa às leis.
Tocqueville reconhecia que em nações onde o direito de dominar é transmitido através da
propriedade e da herança de uma geração a outra: “[...] os homens têm apenas um meio
de agir em relação aos outros: a força [...]” (TOCQUEVILLE, 1987, p. 11).
Vivendo em um contexto marcado por revoluções e contra-revoluções, resultando
na morte dos avós e a prisão dos pais durante a Revolução Francesa, de 1789, Tocqueville
temia as revoluções por entendê-las como fenômenos que só ocorriam em nações onde
os cidadãos fossem incapazes de conduzir a democracia com liberdade (MONTAÑO,
2007, p. 64).
Tocqueville observou que a superação das relações feudais e o advento da
modernidade proporcionaram desenvolvimento em todas as áreas, tornando mais
complexas a sociedade e as relações sociais. O desenvolvimento nas ciências e nas artes
fez com que os exercícios de inteligência se tornassem fonte de riqueza e poder, “germes
de poder” ao alcance do povo, consubstanciando gradativamente a democracia e a
igualdade. A igualdade era algo inexorável, uma revolução irreversível, um “movimento
social” tão antigo que nenhuma geração seria capaz de detê-lo. Assim, era preciso:
Educar a democracia, reanimar, se possível, as suas crenças, purificar
os seus costumes, regular os seus movimentos, pouco a pouco substituir
a inexperiência pelo conhecimento dos negócios de Estado, os seus
instintos cegos pela consciência dos seus verdadeiros interesses;
adaptar o seu governo às condições de tempo e lugar; modificá-lo
conforme as circunstâncias e os homens – tal é o primeiro dos deveres
impostos hoje em dia àqueles que dirigem a sociedade. Precisamos de
uma nova ciência política, para um mundo inteiramente novo
(TOCQUEVILLE, 1987, p. 14).
O destaque a esse autor francês se deve ao fato de que seu corolário expressa uma
prática social há muito desenvolvida nos EUA, o “associativismo”, que como observa
Tocqueville, representa uma garantia necessária contra a “tirania da maioria” (idem, p.
10
149). Em termos metodológicos, foi louvável seu intento, buscando no mais desenvolvido
a chave heurística para compreender a realidade e intervir em sua época, ainda que o tenha
feito com o intuito de conservá-la.
Atualmente, o conceito de sociedade civil passou a celebrar a diferença e a
diversidade, distanciando-se do antagonismo de classe, propugnado pelo marxismo como
seu caráter fundamental. Lutas “sensíveis às dimensões da experiência humana”
emergem, abarcando uma ampla gama de ativismos, tais como o feminismo, a ecologia,
a paz etc., ocultando-se o caráter de totalidade sistêmica do capitalismo, fundamentado
na dinâmica da acumulação e auto-expansão do capital, em cuja base encontra-se a
exploração de classe (WOOD, 2006, p. 211). As relações de classe passaram a ser tratadas
como simples “identidade” pessoal, abarcando o conceito de sociedade civil uma ampla
gama de aspirações emancipadoras. A sociedade civil transformou-se numa expressão
mágica, adaptável a todas as situações da esquerda, ao custo da perda da centralidade das
relações de classe. Desse processo originou-se um emaranhado de múltiplas realidades
sociais que compõem uma estrutura social pluralista baseada no associativismo,
fundamentada na ordem discursiva, ou dialógica.
Recorremos à tradição marxista para desmistificarmos esse nebuloso espaço de
virtudes no qual se transformou a sociedade civil, atentos à advertência de Acanda, que
afirma não haver espaço na obra de Marx para uma redução economicista da ideia de
sociedade civil (ACANDA, 2006, p. 136).
1.2. A tradição marxista e a crítica à concepção burguesa de Estado e sociedade civil
Em A ideologia alemã, Marx e Engels asseveram que:
A forma de intercâmbio, condicionada pelas forças de produção
existentes em todos os estágios históricos precedentes e que, por seu
turno, as condiciona, é a sociedade civil, esta [...] tem por pressuposto
e fundamento a família simples e a família composta, a assim chamada
tribo [...] essa sociedade civil é o verdadeiro foco e cenário de toda a
história, e quão absurda é a concepção histórica anterior que descuidava
das relações reais, limitando-se às pomposas ações dos príncipes e dos
Estados (MARX & ENGELS, 2007, p. 39).
11
É a partir da sociedade civil e sua dinâmica que podemos compreender não
somente a conformação do Estado e toda a sua superestrutura ideológica – incluindo-se
nela o “terceiro setor” –, como também o próprio desenvolvimento histórico.
A concepção de história advogada por Marx e Engels tem por foco o processo real
de produção material da vida imediata dos indivíduos. A forma de intercâmbio que se
conecta a esse modo de produção, e que por ele é gerada, constitui-se na sociedade civil,
fundamento de toda a história. A sociedade civil não só atua como Estado como é o
fundamento das diferentes criações teóricas e formas de consciência (religião, filosofia,
moral etc.) que incidem sobre seu processo de criação, tratando-se de uma ação recíproca
entre seus diferentes aspectos3 (idem, p. 42).
No prefácio à sua obra Para a Crítica da Economia Política, escrita no período
entre agosto de 1858 e janeiro de 1859, Marx parte do conceito de sociedade civil
hegeliano para afirmar que a Economia Política é a anatomia da sociedade civil burguesa.
Assevera Marx:
Minha investigação desembocou no seguinte resultado: relações
jurídicas, tais como formas de Estado, não podem ser compreendidas
nem a partir de si mesmas, nem a partir do chamado desenvolvimento
geral do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se enraízam nas
relações materiais de vida, cuja totalidade foi assumida por Hegel sob
o nome de “sociedade civil” (bürguerliche Gesellschaft), seguindo os
ingleses e franceses do século XVIII; mas que a anatomia da sociedade
burguesa (bürguerliche Gesellschaft), deve ser procurada na Economia
Política (MARX, 1996, p. 51).
Marx apreende o que o tratamento da sociedade civil de Hegel tem de original
quando incorpora o pensamento de Adam Smith e o marco referencial da Economia
Política, fundamentando esse conceito no mundo das necessidades e do trabalho,
atribuindo-lhe, no entanto, um conteúdo que até então era ético-político (ACANDA,
2006, p. 136).
3 Em Para além do capital, Mészáros aborda essa questão a partir do que ele define como o “circulo
institucional do capital”, no qual se inserem as totalizações reciprocas da sociedade civil e do Estado
político, interpenetrando-se profundamente, de maneira que ambos se encontram mutuamente apoiados
(2011, p. 793).
12
Na Introdução à mesma obra, Marx criticou o jusnaturalismo e seu caráter a-
histórico, fundamento do pensamento liberal, tanto de David Ricardo, quanto de Adam
Smith:
Os profetas do século XVIII, sobre cujos ombros se apoiam
inteiramente Smith e Ricardo, imaginam esse indivíduo do século
XVIII – produto por um lado, da decomposição das formas feudais de
sociedade e, por outro, das novas forças de produção que se
desenvolvem a partir do século XVI – como um ideal, que teria existido
no passado. Veem-no não como um resultado histórico, mas como
ponto de partida da História, porque o consideravam um indivíduo
conforme a natureza humana – que não se originou historicamente, mas
foi posto como tal pela natureza. Essa ilusão tem sido partilhada por
todas as novas épocas, até o presente (MARX, 1996, p. 26).
Diferentemente de Hegel que buscava legitimar o Estado prussiano, para ele a
materialização da Razão, Marx tinha por objetivo criticar o caráter alienante do Estado
burguês e do Estado em geral. Ao partir da recusa hegeliana em apreender – como o fazia
o jusnaturalismo – os interesses individuais atomizados como fundamento da ordem
política, Marx não para nesse percurso, avançando na crítica ao Estado.
Para Acanda, Marx realiza uma radicalização democrática do pensamento liberal,
o que significa afirmar que sua relação:
[...] com o liberalismo não foi de simples negação niilista, mas de crítica
e superação democrática (no sentido hegeliano de aufheben) dos
momentos de liberdades negativas individuais e de limitação do poder
do Estado. A diferença radical entre essas concepções reside em que,
para o liberalismo, a sociedade civil é impensável sem o Estado e deve
manter-se separada dele (justamente porque é concebida como
sociedade civil burguesa, baseada na exploração), enquanto para Marx
a desalienação da sociedade civil deve levar à extinção do Estado,
extinção que é entendida como recuperação pela sociedade dos poderes
alienados por aquele (ACANDA, 2006, p. 138).
Marx reconheceu que Hegel havia avançado ao considerar o Estado um
“organismo vivo”, porém, sua concepção idealista e especulativa o impedia de conceituá-
lo como uma totalidade. O intuito dialético de Hegel foi resgatado por Marx, que
buscando nos sujeitos reais e suas relações sociais o fundamento do Estado lhe restituiu
o caráter sistêmico. Assim, para entender as instituições políticas não bastavam
13
considerações gerais e abstratas, era necessário analisar seu vínculo com as relações
sociais (idem, p. 140).
Em A questão judaica, Marx criticou a separação entre o homme, considerado o
verdadeiro homem, em sua existência sensível e individual, e o citoyen, considerado
homem abstrato, artificial, alegórico, moral. A emancipação política proposta pela
filosofia alemã reduzira o homem, por um lado, a membro da sociedade burguesa,
indivíduo egoísta e independente, e por outro, a cidadão do Estado, pessoa moral:
Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão
abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em
seu trabalho individual e em suas relações individuais, somente quando
o homem tenha reconhecido e organizado suas “forces propres” como
forças sociais e quando, portanto já não separa de si a força social sob
a forma de força política, somente então se processa a emancipação
humana (MARX, 2005b, p. 42).
Esse é um elemento fulcral da crítica de Marx à filosofia alemã, que somente era
capaz de reconhecer o indivíduo segundo a imagem do burguês, isolado no caráter
privado da produção na sociedade burguesa.
Ao apresentar o Estado como a expressão da igualdade e da liberdade, única forma
de superação da atomização que caracteriza a sociedade civil, Hegel perde de vista que o
cidadão só faz sentido na sociedade civil burguesa como abstração de suas determinações
sociais concretas (ACANDA, 2006, p. 144). Ao contrário de Hegel, Marx estava
convencido de que a liberdade só seria possível quando o Estado fosse subordinado à
sociedade, perdendo seu caráter de órgão acima das relações sociais. Com isso, Marx
advogava a supressão do Estado e sua gradual e progressiva extinção, não se tratando de
construir um novo Estado, mas de transferir o poder alienado ao Estado a uma sociedade
na qual a relação civil entre seus membros esteja livre da alienação.
Gramsci assumiu a tarefa de enfrentamento do desafio teórico-prático que tal
empreitada colocava. Mergulhado profundamente na experiência da luta de classes em
sua época, fez de conceitos como sociedade civil e hegemonia importantes instrumentos
teórico-metodológicos para a compreensão das estratégias liberais de imposição do
consenso, para além do contexto de sua abreviada vida.
14
As contribuições de Gramsci para a crítica das estratégias educativas do “terceiro
setor” e suas implicações político-pedagógicas
Na melhor tradição marxista, sublinha-se a singularidade de Gramsci, cuja obra
especializa-se no estudo e observação dos fenômenos superestruturais, tais como a
política, a cultura e o sistema de valores no contexto da ordem capitalista. Seu aporte
teórico-metodológico mantem-se firmemente vinculado ao materialismo histórico-
dialético, tendo em vista que, assim como Lênin, a base para a compreensão desses
fenômenos são as transformações materiais, cujo resultado foi o advento do capitalismo
maduro do final do século XIX, ao qual Lênin denominou de sua “fase superior”, e que
para Gramsci culminaria em um novo tipo de sociedade de tipo ocidental, baseado na
imposição do consenso mais que meramente na coerção (GRUPPI, 1980, p. 81).
Há uma identidade entre a reflexão gramsciana e a leninista, sobretudo no que se
refere à luta hegemônica travada pela classe trabalhadora, em Estados capitalistas
avançados. Nestes, a sociedade civil teria se transformado numa estrutura complexa e
resistente às “irrupções” catastróficas do elemento econômico imediato, funcionando suas
superestruturas como “o sistema de trincheiras na guerra moderna”:
No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e
gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma
justa relação, e ao oscilar o Estado, podia-se reconhecer uma robusta
estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira
avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e
casamatas; em medida diversa de Estado para Estado, é claro, mas
exatamente isto exigia um acurado reconhecimento de caráter nacional
(GRAMSCI, 2007, p. 262).
É evidente a preocupação de Gramsci com o desvelamento das trincheiras na
superestrutura da sociedade civil, sendo imprescindível uma análise histórico-concreta de
elementos como a cultura, instituições, valores sociais, por ele compreendidos como
partes constituintes do poder, e sua relação com o aparelho do Estado. Seguindo a
angulação desenvolvida por Lênin, Gramsci privilegia uma formação social concreta,
postulando formular um planejamento estratégico-tático que viabilize a expansão da força
política e social da classe operária em direção ao poder.
Em Sobre a dualidade de poderes, contrapondo-se à tomada inconsequente do
poder, afirmara Lênin:
15
[...] os operários conscientes são pelo poder único dos Sovietes de
deputados operários, assalariados agrícolas, camponeses e soldados,
pelo poder único preparado pelo esclarecimento da consciência
proletária e pela sua libertação da influência da burguesia, e não por
meio de aventuras (LENINE, 1988, p. 19).
Para tanto, era necessário tornar consciente o processo de disputa entre as classes
sociais na sociedade civil. A partir desse passo, a classe subalterna deveria procurar a
separação de determinados aparatos ideológicos da aderência do Estado, tornando-os
agências privadas sob sua direção. Era preciso interpretar na realidade concreta aquilo
que se constitui na “sedimentação da ordem burguesa”4, ao mesmo tempo buscando as
fissuras que representam a superação de tal ordem.
Apoiando-se no acúmulo teórico-prático da tradição marxista, Gramsci realizou a
análise concreta de sua época. O resultado foi uma concepção original de Estado e
sociedade civil. À semelhança de Marx e Engels que reconhecem o equívoco de suas
expectativas quanto ao processo revolucionário europeu de meados do século XIX5,
também Gramsci, a partir do resultado do biênio vermelho 1919-1920, assim como dos
desdobramentos da Revolução alemã, de 1923, concluiu que a sociedade civil como
espaço de luta hegemônica deveria ser melhor compreendida.
Até então, Gramsci entendia que a revolução era possível, dada a impotência
política do Estado liberal, expressão da impotência econômica da burguesia, incapaz de
assegurar o desenvolvimento das forças produtivas. É fundamentado nesta compreensão
da realidade histórica da Itália de sua época que Gramsci havia formulado a hipótese
conselhista. Já nos Cadernos, reformula sua hipótese, tornando-se o fordismo um “contra-
modelo” para sua estratégia do Estado de Conselhos. Gramsci já enxergava aí a
“reestruturação capitalista” em sua fase monopolista, o que o leva a desenvolver a análise
sobre o papel das superestruturas, a guerra de posição e o Estado (BUCI-
GLUCKUSMANN, 1980, p. 401).
4 Preocupação evidente em Hegel, que reconhecia a legitimidade das associações da sociedade civil caso
tivessem a força moral para universalizarem seus interesses através do Estado. 5 Na Introdução Engels à obra de Marx As lutas de classe na França de 1848 a 1850, afirma Engels: “Mas
a história nos desmentiu revelando que era uma ilusão nosso ponto de vista daquela época. Ela ainda foi
mais longe: não somente dissipou nosso erro de então, mas, igualmente, subverteu totalmente as condições
nas quais o proletariado deve combater” (ENGELS, s/d, p. 97).
16
A participação direta dos indivíduos tornou-se uma necessidade vital para os
Estados democráticos ocidentais, colocando-se como tarefa fundamental a construção do
“conformismo” às regras sociais. A civilização e a moralidade das massas deveria se
adequar ás necessidades do desenvolvimento econômico, forjando “novos tipos de
humanidade”. Cada indivíduo incorpora-se ao “homem coletivo” por meio da pressão
educativa, mascarando-se assim a coerção e a necessidade, transformadas em “liberdade”
(GRAMSCI, 2007, p. 23).
Gramsci propôs a superação do conceito de “revolução permanente”, fórmula
jacobina fundamentada na tomada do poder de assalto, própria do período em que ainda
não haviam sido forjados partidos de massa e grandes sindicatos, caracterizando-se a
sociedade por um atraso no campo e monopólio quase que completo da eficiência
político-estatal em raríssimas cidades, como Paris por exemplo. O conceito de revolução
permanente havia vigorado em um período em que o aparelho de Estado era ainda pouco
desenvolvido. Gramsci o supera através do conceito de “hegemonia civil”:
A estrutura maciça das democracias modernas, seja como organizações
estatais, seja como conjunto de associações na vida civil, constitui para
a arte política algo similar às “trincheiras” e às fortificações
permanentes da frente de combate na guerra de posição: faz com que
seja apenas “parcial” o elemento do movimento que antes constituía
“toda” a guerra, etc. (GRAMSCI, 2007, p. 24).
Gramsci formulou, então, uma “concepção integral de Estado”, para a qual a
sociedade civil tornou-se um “aparelho privado de hegemonia”, fundamentando-se no
“consenso ativo” dos indivíduos, identificando-se, assim, com o próprio Estado. Assim
sendo, a ação do Estado articula momentos de “força” e de “consentimento”, de
“autoridade” e de “hegemonia”, de “violência” e de “civilidade”, “momento individual”
e “momento universal” (GRAMSCI, 2007, p. 33).
E avançando na tarefa de crítica à filosofia do direito de Hegel realizada por Marx,
Gramsci escancara a relação entre o Estado e os indivíduos na concepção hegeliana, que
levada à perfeição implica na caracterização dos indivíduos como “funcionários do
Estado”, uma vez que, ao aderirem à direção traçada pelo Estado-Governo, atuam
ativamente na vida social (idem, p. 200).
17
A conformação dos indivíduos a um novo “bloco histórico”6, ou a sua
manutenção, é o objetivo deste que Gramsci denominou de Estado Ético, o que
corresponde a elevar a grande massa popular a um nível cultural e moral que corresponda
ao desenvolvimento das forças produtivas e do interesse das classes dominantes.
Juntamente com o direito, a escola se tornou uma das atividades estatais mais importantes
para a consolidação da hegemonia burguesa, em uma época em que a concepção
hegeliana de Estado, apoiada no desenvolvimento extensivo da burguesia, aparentemente
ilimitado, apresentava a eticidade e a universalidade dessa classe como fundamento do
gênero humano (GRAMSCI, 2007, p. 284).
O que certamente não ocorrerá sem conflitos, uma vez que em sua expansão as
classes dominantes acabam por se chocar com os interesses corporativos dos grupos
subordinados. Em tais momentos, ideologias criadas em países mais desenvolvidos
passam a orientar países menos desenvolvidos, fornecendo-lhes, inclusive, seus
intelectuais para a mediação de conflitos que possam causar desequilíbrios (GRAMSCI,
2007, p. 42).
Gramsci faz uso da expressão “sociedade civil” em uma dupla acepção. Vertendo
para o italiano o termo bürguerliche Gesellschaft, utiliza a expressão “sociedade
burguesa”, retomando o conceito marxiano de sociedade civil como “verdadeiro lar e
teatro da história”, organização social que se desenvolve a partir da produção e do
intercâmbio de suas forças, formando em todos os tempos a base do Estado e da restante
superestrutura idealista7. Marx teria visto a conexão entre a sociedade civil e o Estado,
separadas pelo pensamento liberal. O Estado, ou sociedade política é a expressão da
sociedade civil, isto é, das relações de produção que nela se instalaram (GRUPPI, 1980,
p. 26).
6 Para Gramsci, a estrutura e a superestrutura formam um bloco histórico, sendo o conjunto complexo e
contraditório das superestruturas o reflexo do conjunto das relações sociais de produção (GRAMSCI, 2006,
p. 250). 7 Segundo Marx e Engels: A forma de intercâmbio, condicionada pelas forças de produção existentes em
todos os estágios históricos precedentes e que, por seu turno, as condiciona, é a sociedade civil, esta [...]
tem por pressuposto e fundamento a família simples e a família composta, a assim chamada tribo [...] essa
sociedade civil é o verdadeiro foco e cenário de toda a história, e quão absurda é a concepção histórica
anterior que descuidava das relações reais, limitando-se às pomposas ações dos principes e dos Estados [...]
(2007, p. 39).
18
Porém, Gramsci fala também da sociedade civil como “esfera superestrutural
nova”, formando juntamente com o Estado, em sentido estrito, a forma contemporânea
do Estado, realizando uma superação dialética do conceito marxiano de Estado (In.
NEVES, 2005, p. 22, rodapé n. 2). Segundo Gruppi, Gramsci se dá conta de que esta é
uma distinção de método, não orgânica, e que na realidade esses dois elementos estão
estritamente ligados.
Chegamos a um ponto crucial da análise gramsciana do Estado e da sociedade
civil e sua pertinência para a compreensão desta “zona nebulosa” em que se constituiu o
“terceiro setor”. É importante destacar que não há uma ruptura entre a análise marxiana,
ponto de partida para Gramsci, e seu conceito de Estado integral. O que Gramsci faz,
seguindo o método desenvolvido por Marx no Prefácio de Para a Crítica da Economia
Política, de 18598 (MARX, 1996), é perceber as transformações ocorridas na
conformação do Estado ocidental, a partir da “formação social” que observara em sua
época. Alguns autores têm se apropriado indebitamente do legado teórico metodológico
de Gramsci para afirmar existir uma cisão entre Estado, Mercado e o “terceiro setor”. É
o que faz um dos mais divulgados interpretes de Gramsci, Norberto Bobbio (MARTINS,
2008).
Para Bobbio, o conceito gramsciano de sociedade civil é superestrutural, situando-
se na intermediação entre base econômica e a sociedade política, o que fundamentaria a
setorialização do social operada pelos autores que advogam o “terceiro setor”
(MONTAÑO, 2007, p. 121).
No entanto, Gramsci não esgota a superestrutura na sociedade civil. O Estado lato
sensu corresponde à sociedade política mais a sociedade civil. A primeira corresponde ao
“Estado-coerção” desenvolvendo funções de ditadura, coerção e dominação – “aparelhos
coercitivos e repressivos” – enquanto a sociedade civil, o “Estado ético”, corresponde às
8 Luciano Gruppi afirma que nesta obra Marx faz avançar seu conceito de “forma social”, apresentado na
Ideologia Alemã, passando a utilizar o conceito “formação social”, caracterizando uma fase do
desenvolvimento da sociedade que se distingue das demais pela estrutura econômica predominante, ou seja,
pelas relações de produção e de troca que caracterizam essa fase do desenvolvimento (GRUPPI, 1978, p
19).
19
funções de hegemonia, consenso e direção – mediante “aparelhos ‘privados’ de
hegemonia”. Eis a concepção de Estado integral gramsciana:
Estamos sempre no terreno da identificação de Estado e Governo,
identificação que é, precisamente, uma reapresentação da forma
corporativo-econômica, isto é, da confusão entre sociedade civil e
sociedade política, uma vez que se deve notar que na noção geral de
Estado entram elementos que devem ser remetidos à noção de
sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que Estado =
sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de
coerção). Numa doutrina do Estado que conceba este como
tendencialmente capaz de esgotamento e de dissolução na sociedade
regulada, o tema é fundamental. Pode-se imaginar o elemento Estado-
coerção em processo de esgotamento à medida que se afirmam
elementos cada vez mais conspícuos de sociedade regulada (ou Estado
ético ou sociedade civil) (GRAMSCI, 2007, p. 244).
Este par conceitual, segundo Coutinho, marca uma “unidade na diversidade” (Cf.,
MONTAÑO, 2007, pp. 124-125). Conclui-se, portanto, que, diferentemente do que
supõem os autores do “terceiro setor”, não há uma divisão tripartite e setorialista no
modelo teórico gramsciano, prevalecendo a visão marxiana de totalidade.
No Brasil pós-1985, encontramos, segundo Coutinho, dois projetos de
“ocidentalização” em disputa. Um modelo “liberal-corporativo” (típico dos EUA) e um
modelo de “democracia de massas” (típico dos Welfere europeus). Neste período,
observa-se uma tentativa das classes dominantes, orientadas pelo ideário neoliberal,
conquistarem a hegemonia através da desregulamentação social, “mercantilizando” a
sociedade civil (idem, p. 128). Durante esse processo, por outro lado, se dá a organização
de projetos de uma sociedade democrática, o que publicizaria a sociedade civil. Nos
dizeres de Evelina Dagnino, ocorreu uma “confluência perversa” entre esses diferentes
projetos (DAGNINO, 2002, p. 288).
Baseando-se na análise de Coutinho, Montaño recorre ao passado recente de
ditadura militar para analisar o deslocamento temporal realizado pelos autores do
“terceiro setor”. Em determinado momento da ditadura militar brasileira a sociedade civil
organizada conseguiu reunir, em oposição ao poder militar concentrado no Estado, o
conjunto das forças “democráticas”, provenientes de diversas classes, posturas
ideopolíticas, movimentos sociais e partidos. Havia uma visível divisão entre o Estado
militarizado e uma sociedade civil moderna (“ocidentalizada”). Essa dicotomia foi
20
marcada por uma ênfase maniqueísta, onde tudo que provinha da sociedade civil era visto
como positivo enquanto o Estado passava a ser “satanizado” (MONTAÑO, 2007, p. 132).
Estaria então a fração da “esquerda” que absorve e incorpora o discurso do
“terceiro setor”, permeada por dois vícios:
a) primeiramente, o vício da falsa oposição militar/civil, onde
estimulados pela situação pós-64, o Estado é visto como o Leviatã,
militarizado e absolutista e a sociedade civil como único espaço de
participação cidadã; b) em segundo lugar, o “vício da falsa oposição
Estado/sociedade civil”, onde a esfera estatal é considerada como
controlada irremediavelmente pelo capital e pelo status quo, e onde a
oposição, de setores sociais progressistas e trabalhistas, apenas deve
estar presente na sociedade civil (idem, p. 132-133).
Após a apresentação dos fundamentos teórico metodológicos que nos orientaram
na compreensão da emergência do “terceiro setor”, aceitando o desafio propugnado por
Gramsci, segundo o qual para se desenvolver a luta de classes nos Estados de tipo
ocidental é preciso reconhecer a “robusta cadeia de fortalezas e casamatas” que se
escondem por trás da trincheira avançada do Estado, exigindo-se para tanto “um acurado
reconhecimento de caráter nacional”, apresentaremos a seguir alguns elementos que
sustentam a tese de que no Brasil a dicotomia ditadura/redemocratização oculta o caráter
conservador dessa ação estratégica que tem por objetivo a instrumentalização das
iniciativas populares, cuja perspectiva histórica transformadora se esvazia em ações
preventivas do conflito social, impedindo a percepção do antagonismo de classes.
2. Terceiro setor, educação e hegemonia: o Estado educador e o aperfeiçoamento
das estratégias de imposição do consenso
Como vimos anteriormente, a popularização das ações do “terceiro setor” se deu a partir
do contexto de redemocratização, apresentando-se como um campo de atuação
democrática, isento dos interesses do mercado e do autoritarismo do Estado. O colapso
do chamado “milagre econômico” e a mobilização social em favor da democracia foram
utilizadas ideologicamente, construindo-se a imagem da sociedade civil como espaço de
todas as virtudes. O contexto internacional, marcado pela derrocada do regime soviético,
colaborou fortemente para que essa apressada caracterização ganhasse sustentação,
tornando-se hegemônica.
21
Um olhar mais atento, no entanto, nos revela uma construção hegemônica que
extrapola os limites cronológicos estabelecidos pela dicotomia ditadura/democracia. O
capital monopólico internacional, associado a setores da burguesia nacional e do exército,
impôs-se pela força, através do golpe civil-militar de 1964. Porém, os anos da ditadura
civil-militar foram marcados não somente pela violência, destacando-se a elaboração de
estratégias de conformação da sociedade brasileira, caracterizada nesse contexto histórico
pela efervescência nacional-desenvolvimentista, ao novo bloco histórico. Por um lado,
tratava-se de estrangular as iniciativas populares que almejavam emancipar os
trabalhadores, destacando-se as iniciativas de educação popular e da cultura popular,
controlando as expectativas de uma “educação do povo, pelo povo e para o povo”, por
outro, tornar a classe trabalhadora nacional submissa às necessidades do capital
monopólico em sua expansão. Assim, a ação articulada da burguesia nacional e
internacional buscou ser eficiente, não se limitando apenas à pura coerção (LIMA, 2012,
p. 75).
2.1. Raízes do “terceiro setor” no Brasil: para além da dicotomia
ditadura/redemocratização
Durante os anos de 1960, a estratégia imperialista estadunidense de dominação
culminou na consolidação de programas como a Aliança para o Progresso e o Corpo da
Paz. O primeiro atuaria na promoção do desenvolvimento econômico, através da
“colaboração” técnica e financeira, enquanto o segundo se constituía numa agência
governamental para a atuação nos países do “Terceiro Mundo”, combatendo a “ameaça
comunista”. Empresas norte-americanas como a Ford, Rockfeller e Carnigie vinham
atuando desde o contexto do pós-guerra como eficientes instrumentos de ocultação do
financiamento de programas secretos de ação que afetavam grupos de jovens, sindicatos
de trabalhadores, universidades, editoras etc. (SAUNDERS, apud FALLEIROS;
PRONKO; OLIVEIRA, 2010, p. 46).
Experiências preventivas do conflito social passaram a ser desenvolvidas,
disputando com os tradicionais setores da esquerda (comunistas, socialistas, anarquistas,
juntamente com setores da igreja popular, destacando-se a Pastoral Operária e as CEBs)
22
a hegemonia junto às comunidades e organizações populares. Sua ação estratégica tinha
por objetivo introduzir métodos eficientes de controle social e construção do
conformismo ativo dos indivíduos, destacando-se as estratégias associativistas que
consolidariam o “terceiro setor” como o espaço de implementação do “novo padrão de
intervenção social”, durante o processo tutelado de redemocratização.
O modelo americano de controle social orientou as ações de setores da sociedade
civil, articulando as ações de empresários e intelectuais médios que gozavam de prestigio
junto aos militares9, que em conjunto passaram a combater a ideologia nacional-
desenvolvimentista, assim como, as experiências de educação popular e cultura popular,
nela inspiradas10.
Como vimos anteriormente, as estratégias de controle social nos EUA são
descritas por Alex de Tocqueville em sua obra A democracia na América (1987).
Tocqueville influenciou autores como Jacques Maritain, cujos fundamentos
comunitaristas nortearam intelectuais que atuaram diretamente na elaboração da ação
estratégia que culminou na emergência do “terceiro setor” no Brasil, destacando-se nosso
objeto de pesquisa de mestrado, a Federação das Entidades Assistenciais de Campinas
(FEAC). Para Maritain (1966, p. 71-2), tratava-se da criação do que ele denominou de
“meios de edificação orgânica”, levando o povo à participação ativa, o que se revelou um
eficiente instrumento de sedimentação social compactuado pelos diferentes setores
conservadores articulados através do golpe militar (LIMA, 2012, p. 150).
Tais elementos colaboram para a desmistificação do “terceiro setor” como o
espaço privilegiado da democracia, em contraposição à falta de liberdade de participação
que caracteriza o Estado, sobretudo em sua fase ditatorial. Como já nos alertara Gramsci,
o governo militar nada mais é do que um parêntese entre dois governos constitucionais,
uma “reserva permanente da ordem e da conservação” (2007, p. 66).
No próximo item, procuramos evidenciar a funcionalidade da ação estratégica do
“terceiro setor” á reestruturação produtiva do capital e a ofensiva neoliberal, destacando
9 Para a compreensão de toda a trama civil-militar que resultou no golpe de 1964 nos foi de grande valia a
obra de René Dreifuss, 1964: a conquista do Estado – ação política, poder e golpe de classe (DREIFUSS,
1981). 10 Sobre tais experiências recomendamos a leitura de História da Educação Popular no Brasil – educação
popular e educação de adultos de Vanilda Paiva (2003).
23
alguns fundamentos pedagógicos adequados à tentativa de conformação de uma nova
sociabilidade, funcional à superação das crises capitalistas, sobretudo, a partir da crise
econômica mundial, instaurada nos anos de 1970.
2.2. Reestruturação capitalista e “terceiro setor”: a reestruturação flexível do
trabalho escolar
O capital busca incessantemente controlar suas crises e é este fator que deve nortear nossa
compreensão das transformações produtivas hodiernas. Ao desmoronarem as
possibilidades do modelo keynesiano, fundamentado em políticas estatais de geração de
emprego e de crescimento, um novo padrão produtivo baseado na “acumulação de tipo
flexível” passou a ser implementado, o chamado toyotismo.
Por meio do modelo toyotista, o capital busca uma maior eficiência nos
mecanismos de controle da produção fabril, tonando mais eficientes os instrumentos de
controle dos trabalhadores, neutralizando o papel dos sindicatos e do Estado. Se a
hegemonia nasce na fábrica como afirma Gramsci, as transformações no espaço fabril
foram acompanhadas por um processo de reorganização no sistema político-ideológico
de dominação do capital. Segundo Ricardo Antunes:
Como resposta à sua crise, iniciou-se um processo de reorganização do
capital e de seu sistema ideológico e político de dominação, cujos
contornos mais evidentes foram o advento do neoliberalismo, com a
privatização do Estado, a desregulamentação dos direitos do trabalho e
a desmontagem do setor produtivo estatal, da qual a era Tatcher-Reagan
foi a expressão mais forte; a isso se seguiu também um intenso processo
de reestruturação da produção e do trabalho, com vistas a dotar o
capital do instrumental necessário para tentar repor os patamares de
expansão anteriores (ANTUNES, 2005, p. 31).
O capital procurou não somente sofisticar suas formas de gerenciamento do
processo produtivo, como também reorganizar suas formas de dominação societal,
gestando um projeto de recuperação de sua hegemonia sobre as diferentes esferas da
sociabilidade.
A estratégia comunitarista mostrou-se funcional à adequação dos trabalhadores à
nova ordem, consistindo em dois eixos: um eixo filantrópico, cujo objetivo era amenizar
os efeitos sociais da reestruturação produtiva, marcada pelo desemprego e achatamento
24
salarial; e um eixo pedagógico, colaborando para o desenvolvimento de um novo tipo de
sociabilidade, compatível com os interesses do capital. Este último eixo tem por
desdobramento a adequação do “terceiro setor” como instrumento das reformas
neoliberais do Estado brasileiro, sobretudo no campo da educação, tornando-se a
transferência das escolas públicas para a gestão de organizações não governamentais uma
eficiente modalidade de privatização dos serviços públicos.
Em meados do século XX, já eram esboçados nas montanhas de Mont Pèlerin, na
Suíça, os fundamentos de um “novo liberalismo”. Hayek destacou-se como um de seus
principais ideólogos, declarando em O caminho da servidão uma verdadeira guerra ao
Estado de Bem estar social e ao que ele chamou de totalitarismo dos diferentes tipos de
coletivismo, defendendo uma “sociedade menos regulada”, fundamentada na
concorrência (HAYEK, 1977, p. 35).
Nos anos de 1970, o ciclo de crescimento do pós-guerra, marcado pelo apogeu do
fordismo e do keynesianismo, caracterizado pelo pleno emprego, salários elevados e
sindicatos fortalecidos, chegou ao fim. A Europa entrava em um complexo quadro de
crise estrutural do capital, desmoronando os mecanismos de regulação anteriores.
Iniciava-se um período de reorganização do sistema político, econômico e ideológico,
momento em que as ideias defendidas em Mont Pèlerin ganharam força como resposta
aos efeitos da crise.
Em 1989, liderados por organismos representantes do capital internacional, como
o FMI e o Banco Mundial, economistas de instituições financeiras de Washington
elaboraram um conjunto de exigências de austeridade fiscal e ajustamento estrutural da
economia, destacando-se dentre as regras básicas a proposta de privatização de empresas
estatais. As diretrizes traçadas tornaram-se conhecidas como “Consenso de Washington”.
Pouco a pouco, o senso comum tecnocrático avançou sobre o campo da educação, o que
para Gentile nos permite afirmar a existência de um Consenso de Washington no campo
das políticas educacionais (GENTILE, 1998, p. 15).
Não tardou para que os fundamentos neoliberais passassem a orientar a reforma
do Estado brasileiro, a partir de meados dos anos de 1990. Criticando a Constituição de
1988 como um retrocesso, Bresser Pereira sintetiza bem com seu Plano Diretor do
25
Aparelho da Reforma do Estado o “novo paradigma gerencial” que irá orientar o que
denominamos de “reestruturação flexível do trabalho escolar”:
O paradigma gerencial contemporâneo, fundamentado nos princípios
da confiança e da descentralização da decisão, exige formas flexíveis de
gestão, horizontalização de estruturas, descentralização de funções,
incentivos à criatividade. Contrapõe-se à ideologia do formalismo e do
rigor técnico da burocracia tradicional. À avaliação sistemática, à
recompensa pelo desempenho, e à capacitação permanente, que já eram
características da boa administração burocrática, acrescentam-se os
princípios da orientação para o cidadão-cliente, do controle por
resultados, e da competição administrada (BRASIL, 1995, p. 17 – grifo
nosso).
Antecipando-se ao Plano Diretor de Bresser Pereira, Guiomar Namo de Mello foi
quem melhor traduziu as orientações neoliberais para o campo da educação, o que a autora
arrisca caracterizar como uma verdadeira “revolução copernicana em educação”
(MELLO, 2000). Por trás da defesa da “autonomia” e fortalecimento da unidade escolar
que faz Mello, esconde-se uma sofisticada estratégia de gestão, transferindo-se a
responsabilidade pelo fracasso da educação às escolas. O que se evidencia na afirmação
de que:
[...] o fortalecimento da unidade escolar deverá deslocar para esta
última a responsabilidade pelos resultados da aprendizagem de seus
alunos, tornando-as responsáveis pela prestação de contas de suas
atividades, respondendo não mais a controles prévios, formais e
burocráticos e sim mediante seu desempenho (MELLO, 2000, p. 81).
A equipe escolar é chamada a firmar um “contrato” com os usuários e as centrais
de avaliação, definindo-se as metas a ser cumpridas, implicando na contínua prestação de
contas. O Plano de Desenvolvimento da Escola se torna o instrumento de mediação desse
contrato, possibilitando localmente o estabelecimento de metas e a avaliação de
resultados, mediante as quais passam a ser realocados os recursos11. Para o cumprimento
do “compromisso”, a escola pode contar com a assistência de escolas privada,
11 Trata-se de uma lógica nefasta segundo a qual o direcionamento de recursos está condicionado à melhora
dos índices de produtividade. Aumentar os recursos financeiros das escolas antes dos resultados quebraria
tal lógica, já que para se “institucionalizar” a reforma gerencial é preciso se “naturalizar” a ideia de que a
baixa qualidade do ensino se deve à “ineficiência” da gestão e do trabalho escolar e não à falta de recursos.
26
organizações não-governamentais, havendo “autonomia orçamentária” para a compra de
assessorias externas de instituições especializadas (MELLO, 2000, p. 99).
A “organização flexível” implica na diferenciação salarial entre as diferentes
unidades e professores, alterando-se as carreiras docentes de forma a “premiar” escolas e
professores pelo “mérito”. Esse “novo padrão de gestão de recursos humanos” deve ser
“negociado” com os sindicatos de professores, desenvolvendo-se uma verdadeira “cultura
avaliativa” no âmbito da educação.
Aos poucos, os discursos educativos oficiais e a produção teórica da área da
educação substituíram a expressão “administração da escola ou da educação”, pelo
conceito de “gestão escolar” ou “gestão da educação”, assemelhando-se aos novos
conceitos utilizados na administração empresarial. Também a expressão “novos padrões
de gestão educacional” vem sendo utilizada para representar mecanismos aplicados a
escolas e sistemas educacionais de “sucesso”, ou “eficazes” (ADRIÃO, 2006, p. 24).
Representantes do setor empresarial corporativo como a Fundação Lemann e a
Falconi passaram a desenvolver consultoria às escolas da rede pública de ensino,
preparando o campo para o processo de implementação do novo padrão de gestão
empresarial dos serviços públicos, destacando-se sua atuação junto à implementação das
reformas educacionais.
À guisa de conclusão
No momento em que concluíamos nossa pesquisa sobre o “terceiro setor” e suas
implicações político pedagógicas, ao final do ano de 2011, a ex-Secretária de Educação
dos EUA, Diane Ravitch, publicou o seu livro Vida e morte do grande sistema escolar
americano, reconhecendo que as reformas educacionais que ajudou a implementar
estavam vinculadas às mudanças estruturais e a responsabilização das escolas, por meio
de testes padronizados e o modelo de mercado, em nada relacionando-se com a substância
do aprendizado (RAVITCH, 2011, p. 32).
Enquanto nossa pesquisa evidenciava a implementação do modelo empresarial
corporativo de gestão nas escolas públicas brasileiras, desmoronava de maneira
vergonhosa o “grande sistema escolar americano”, no qual se inspiravam os arautos das
reformas neoliberais no Brasil. Como vimos, organizações que atuam no âmbito do
27
“terceiro setor” tem colaborado para que as reformas sejam palatáveis, parecendo
corresponder aos anseios democráticos da sociedade, ocultando, no entanto, o avanço dos
interesses capitalistas sobre a educação. O que não ocorre sem resistência, como o
demonstra o movimento das escolas ocupadas contra a reorganização das escolas
paulistas.
Concluímos reiterando que o modelo associativista norte americano, assim como
o seu modelo empresarial corporativo de gestão das escolas públicas, constituem-se numa
importante chave heurística para a compreensão da emergência da ação estratégica do
“terceiro setor” no Brasil e suas implicações político-pedagógicas.
Bibliografia referenciada
ACANDA, Jorge Luis. Sciedade civil e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006.
ADRIÃO, Thereza. Educação e produtividade: a reforma do ensino paulista e a desobrigação do
Estado. São Paulo: Xamã, 2006.
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho. 7ª reimpressão, São Paulo: Boitempo, 2005.
BRASIL. MARE. Plano Diretor do Aparelho da Reforma do Estado. Brasília: 1995.
BUCI-GLUCKSMANN, Christinne. Gramsci e o Estado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
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