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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Camila Vilela de Holanda Desmundo, de Ana Miranda: A (des)leitura de um Brasil pela voz ficcional da mulher MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA São Paulo 2019

Camila Vilela de Holanda · mando da rainha de Portugal, em um Brasil do ano de 1555, confronta os paradoxos entre a realidade de ter sido educada em um convento português e a selvageria

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Camila Vilela de Holanda

Desmundo, de Ana Miranda:

A (des)leitura de um Brasil pela voz ficcional da mulher

MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

São Paulo

2019

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Camila Vilela de Holanda

Desmundo, de Ana Miranda:

A (des)leitura de um Brasil pela voz ficcional da mulher

Dissertação apresentada à banca examinadora do Programa de Estudos Pós-graduados em Literatura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Literatura e Crítica Literária, sob a orientação da Profª. Dra. Leila Cristina de Melo Darin

São Paulo

2019

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BANCA EXAMINADORA

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Agradeço à CAPES pelo incentivo a esta Pesquisa e pela bolsa de estudos

concedida que me permitiu concluí-la.

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À Celina, minha sobrinha que nasceu e viveu precocemente, com a pressa dos que sabem que a vida é agora, embora haja tantos depois. E tantos

reencontros nesses depois. Que brincou de entrelaçar-se nos tempos de delicadezas, rompeu com a cronologia e, sem dizer nada, me ensinou que uma mulher não desiste nunca. Que a mulher é ânsia pela vida, pelo amor, é volição

de si, é inexplicável e é subversão da lógica. Uma mulher é, sobretudo, coragem. Obrigada, meu Pequeno Milagre, por nos ter deixado a todos nós

íntegros e inteiros na capacidade de amar. Você nunca foi miudinha; sempre foi do tamanho imensurável e desmedido do amor e, portanto, imensa.

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AGRADECIMENTOS

À Deus, por não ter me deixado desistir e me dar certezas nos meus momentos

de dúvida.

À minha mãe, Rosana, a luz dos meus caminhos. Sempre encorajamento,

certeza de amor, apontar de horizontes, exemplo de força, inspiração,

integridade, entusiasmo acadêmico, compromisso com a educação e com o

infinito de possibilidades de uma Pesquisa. A mulher que me ensinou que os

livros são amigos leais e, com isso, escreveu as linhas da minha vida.

A todas as minhas Professoras do Programa de Pós-Graduação em Literatura

e Crítica Literária, pela generosidade e disponibilidade com a qual me

acolheram. Por terem me ajudado a pensar o mundo, a minha gratidão é

irrevogável. Sobretudo, à Leila Darin, por aceitar embarcar nessa nau comigo e

se aventurar por um Brasil (des)conhecido: pela calma, pelo alento, pela

paciência e pela sensibilidade nesse desbravar de oceanos. Vera Bastazin, por

ter me ensinado a ler de um jeito novo, de novo, uma vez mais, uma nova

alfabetização. Por ter me dado Oribela e, com ela, tanto. Muito. Beth Cardoso,

pela insistência de que eu podia ir além da minha zona de conforto, pela

confiança no meu trabalho, por descortinar meus olhos para novas

possibilidades literárias. Por ter feito de mim, um pouco mais. Diana Navas,

pelo carinho de todos os dias, pelas respostas, pelos convites a vivenciar a

literatura na prática, por ter abraçado o meu caos, por ter sorrido em

cumplicidade e ter me dado um pouco mais de forças quando eu achei que o

meu cansaço era maior que a minha vontade.

À Professora Lilian Corrêa que, com imensa ternura e grandeza, abraçou tanto

Pesquisa quanto Pesquisadora. Que me fez acreditar em um mundo de muitos

‘sim’. Que me emocionou profundamente em cada passo de novos caminhos.

Obrigada.

Aos meus colegas da PUC-SP, uns loucos que acreditam em literatura tanto

quanto eu: vocês são enormes, são os maiores presentes que eu recebi neste

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grato processo. Sem vocês, nada seria possível. Meus grandes companheiros

e incentivadores em todos os momentos desse percurso, dessa jornada que

não termina, sobretudo nas madrugadas insones de redação de trabalhos e

nas pausas de corredores e cafés. Vocês foram lindos comigo.

À Ana Miranda que, por meio da Literatura, me devolveu e me ensinou a (re)ler

a minha própria História.

A Paulo Freire, com quem tenho a enorme felicidade de sorrir quando me caem

umas lágrimas bestas no rosto. Por estarmos juntos na crença de uma

educação que liberta. Ele é uma certeza. Obrigada por ainda ser luz. Obrigada

por ecoar na minha vida.

À PUC, que, corajosamente, resiste.

A CAPES, por ter acreditado na minha Pesquisa.

Obrigada.

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Não sou a das águas vista nem a dos homens amada; nem a que sonhava o artista em cujas mãos fui formada. Talvez em pensar que existia vá sendo eu mesmo enganada.

Quando o tempo em seu abraço quebra meu corpo, e tem pena, quanto mais me despedaço mais fico inteira e serena. Por meu dom divino faço tudo a que Deus me condena.

Da virtude de estar quieta componho meu movimento. Por indireta e direta, perturbo estrelas e vento. Sou a passagem da seta e a seta, – em cada momento.

Não digas aos que encontrares que fui conhecida tua. Quando houve nos largos mares desenho certo de rua? E de teres visto luares, que ousarás contar da lua?

(MEIRELES, Cecília. Canção 2).

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HOLANDA, Camila Vilela. Desmundo, de Ana Miranda: A (des)leitura de um Brasil pela voz ficcional da mulher. Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2019, 128p.

RESUMO

A presente pesquisa se propõe a analisar o romance Desmundo (1996), da escritora brasileira Ana Miranda, por meio das vozes das personagens femininas, sobretudo a da protagonista, Oribela. Escrita em forma de diário, a obra traz a narrativa de uma jovem que, recém-desembarcada de uma nau a mando da rainha de Portugal, em um Brasil do ano de 1555, confronta os paradoxos entre a realidade de ter sido educada em um convento português e a selvageria de um país sem identidade, moral e que não era, sequer, uma nação. Esta pesquisa busca refletir de que maneira, ao dar a voz a uma personagem feminina – tradicionalmente excluída dos relatos oficiais da nossa história –, Ana Miranda consegue promover uma leitura crítica da realidade contemporânea sob a ótica do Romance Histórico, como fundamentado por György Lukács, da Metaficção Historiográfica abarcada por Linda Hutcheon e a exposição histórica do papel da mulher no Brasil colonial, perpetrada por Mary Del Priore.

Palavras-Chave: Romance Histórico Contemporâneo, Desmundo, Ana Miranda, Metaficção Historiográfica, Voz Do Excluído.

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HOLANDA, Camila Vilela. DESMUNDO, an Ana Miranda’s novel: The

(dis)reading of Brazil by the fictional voice of a woman. Dissertation of Master degree in the Program of Postgraduate Studies in Literature and Literary Criticism. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brazil, 2019, 128p.

ABSTRACT

The present research aims to analyze the Brazilian writer Ana Miranda’s novel Desmundo (1996), by the means of the female characters’ voices, especially the protagonist’s one – a young woman called Oribela. Written in the form of a diary, the literary work embraces the narrative of a girl who lands in Brazil in 1555, coming from Portugal in a ship, due to the order of the Queen. Oribela faces the paradoxes between the reality of having been educated in a Portuguese convent and the savagery of a country with no identity, morality nor even been a nation. This research proposes to search the ways, on giving voice to a female character – who has traditionally been excluded from the official accounts of our History – Ana Miranda is able to develop a critical reading of the contemporary reality under the lens of the Historical Novel as theoritized by György Lukács, the Linda Hutcheon’s Historiographic Metafiction and Mary Del Priore historical role of women in colonial Brazil.

Keywords: Historical Contemporary Novel ; Desmundo ; Ana Miranda ; Historiographic Metafiction ; Voice of the excluded.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................. 13

CAPÍTULO I - GYÖRGY LUKÁCS E A VOZ NO ROMANCE HISTÓRICO ... 22

1.1. Literatura ou História? Poeta ou historiador? ................................. 22

1.2. György Lukács e a voz no romance histórico ................................ 25

1.3. Desmundo, um romance histórico contemporâneo ........................ 38

CAPÍTULO II - A METAFICÇÃO HISTORIOGRÁFICA E AS VOZES

SUBVERSIVAS ............................................................................................... 45

2.1. A Literatura: Ampliar de narrativas e possibilidades de leituras ..... 45

2.2. A Metaficcção Historiográfica e as vozes subversivas ................... 45

CAPÍTULO III – MULHERES QUE GRITAM .................................................. 67

3.1. Oribela, Oribelas ............................................................................ 67

3.2. Velha, a Sábia ................................................................................ 83

3.3. As mancebas, agouro da nau ........................................................ 91

3.4. Temericô, Pe-maenduar ............................................................... 111

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 120

REFERÊNCIAS ............................................................................................. 125

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Introdução

“(…) Se ficaste prenhe, basta. Não tens freio na língua nem chave na boca. E mais, estás tosquiada? Os cabelos carcomidos. Nem se sabe se és fêmea ou se és macho. E ainda as mãos e o que se pode ver de pele, escarificadas. Não sei por que respeito o filho trouxe uma mulher tal, tão contra o nosso jeito. E vais ficar? Ou te atiça ainda o coração em fugas e grandes pecados? (…) Antes morrer pelejando que consumida pelo tempo pouco a pouco como uma vaca enferma. Sou saloia rebuçada, também trago o meu mantel, mas só tiro a carapuça a quem me tira o chapéu.” (MIRANDA, 1996, p. 192)

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INTRODUÇÃO

Um produto artístico permite sua análise por diversas perspectivas, e,

neste trabalho, o romance Desmundo (1996), de Ana Miranda, é o objeto de

arte a ser analisado pelo prisma que permeia a relação íntima entre História e

Literatura. O discurso histórico tem como principal foco a preocupação com o

real e busca a reconstrução do passado através da leitura de documentos

oficiais. Quando se pensa em discurso literário, entretanto, o comprometimento

é, sobretudo com a ficção e com a arte.

No romance-fonte aqui analisado, é possível perceber um imbricamento

entre esses dois discursos, posto que Ana Miranda fez uma vasta pesquisa nos

documentos oficiais do período colonial brasileiro para reconstrução ficcional

do Brasil, a fim de ambientar a vida de sua protagonista, Oribela.

Escrito em forma de diário, Desmundo, de Ana Miranda, se passa por

volta de 1555, apenas 55 anos depois da data histórica do "descobrimento" do

Brasil.

A obra é aberta por duas epígrafes que trazem o leitor para o mundo da

narradora e exibem a clara aproximação entre um texto literário e um

documento histórico oficial: a primeira é uma reprodução de uma poesia de

Fernando Pessoa, que reflete o destino de quem se lança - ou é lançado pela

força das circunstâncias e arbitrariedades do destino - ao desconhecido dos

mares, ao indefinido das noites largas, às distâncias continentais e ao abstrato;

dá a dimensão do que é ser carregado como uma poeira pelo vento na

imensidão de universos ainda não-percorridos. Aproximam, também, do

imaginário português extremamente ligado às conquistas territoriais. A segunda

epígrafe trata de um trecho da carta do Padre Manoel da Nóbrega, remetida ao

Rei de Portugal, D. João, requisitando o envio de mulheres brancas para a

recente colônia; o objetivo era casá-las com os primeiros colonizadores

portugueses que vieram se aventurar por estas terras (para que estes não

vivessem ‘em pecado’ com as índias, indicando assim mais um dogma tão

religioso quanto cultural e político) e é também um traço que aponta para as

dificuldades de se colonizar o imenso território que hoje se constitui Brasil.

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Ainda no primeiro contato com o livro, chama atenção a escolha da

linguagem. Esta também serve como um elo entre a ficção e a história a ser

tratada: a opção pela escrita em português arcaico e os usos estruturais da

língua no século XVI também servem para situar o leitor no tempo cronológico

da obra.

O diário de Oribela - dividido em 10 partes narradas em primeira pessoa

(A Chegada - 21 relatos, A Terra - 18 relatos, O Casamento - 24 relatos, O

Fogo - 25 relatos, A Fuga - 7 relatos, O Desmundo - 20 relatos, A Guerra - 17

relatos, O Mouro - 27 relatos, O Filho - 15 relatos e O Fim - 5 relatos) traz a

força de uma personagem rebelde e contestadora, que se desconstrói e se

refaz ao longo da sua narrativa. Sua voz ecoa a brutalidade do local para o

qual foi enviada a contragosto, deslugar este no qual os valores morais e

religiosos praticados em Portugal não se aplicavam. O romance é permeado

por um forte discurso cristão, que tem por finalidade demonstrar a coerção

espiritual imposta à personagem através, sobretudo, da ideia de pecado e da

culpa.

A protagonista foi órfã de mãe no parto e de pai de desgosto. Criada sob

a égide moral e religiosa de um mosteiro português, foi obrigada a vir ao Brasil

para casar-se com alguém que jamais vira e que, portanto, não amava. Na

noite de núpcias foi estuprada pelo marido, que lhe tinha imensa posse e a

tratava como um objeto de uso pessoal, impondo-lhe inclusive as mais diversas

formas de castigos. Tentou fugir da casa, do casamento e de uma sina, falhou.

Ateou fogo aos próprios cabelos na mais desesperada tentativa de deixar de

ser quem era para conseguir a vitória através da fuga para outro lugar. Era

constantemente assombrada pelo choque entre tudo que aprendera em terras

além-mar e a nova realidade a que fora submetida; da nudez dos índios aos

abusos físicos e verbais, demonstrando aqui a crise do sujeito a que fora

exposta e a necessidade de se reinventar para sobreviver onde nunca coube,

tanto quanto já não era mais a mesma para caber em seu mundo de origem.

Apaixonou-se por um Mouro - e não por um cristão - e teve com ele um caso

extraconjugal. Presencia o conflito entre marido e amante. Engravida, e seu

filho é também fruto de tensão entre os dois homens.

Entendemos que a trajetória da narradora segue a ideia central de

Lukács de que o romance histórico retrata, sobretudo, a vida do homem de seu

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tempo através de um viés ficcional e também o pensamento de Hutcheon, de

que a metaficção historiográfica propõe uma autorreflexão questionadora das

chamadas “verdades históricas”.

Oribela, a heroína e narradora de Desmundo, é a moça comum de sua

época: não tem direito sobre o próprio destino e, ao perder a figura masculina

que respondia por sua vida, é mandada para um convento para ser criada e,

assim, seguir o ciclo de opressão ao qual a maioria das mulheres era

submetida em seu tempo. Das mãos do pai às do marido. Na ausência de um

ou de outro, a terceira via se apresentava na forma da submissão religiosa.

E é através dos olhos dessa personagem que se compreende e se

enxerga, ao longo do romance de Ana Miranda, um pouco do Brasil

desconhecido; de um período da nossa formação enquanto país que está

excluído dos relatos tradicionais da nossa história, porque é reconstruído

ficcionalmente através da voz de uma mulher pobre e oprimida, e não mais um

eco do homem branco europeu que foi vencedor de guerras, senhor de muitas

conquistas e realizador de grandes feitos (semelhante, por exemplo, ao herói

da epopeia).

Com a narrativa de Oribela, é possível conceber quase que

imageticamente o retrato (para muitos, inédito) da mulher nos primeiros anos

da colonização brasileira. A partir do microcosmo e do destino de uma

personagem fictícia que busca encontrar o seu lugar, seu direito à vida e

exercer o seu papel em um pedaço de mundo sem leis que não a brutalidade

da força física, de noções eurocêntricas civilizatórias ainda em construção, em

que a presença feminina é quase nunca citada quando não-pertencente à

família real e oprimido pelos dogmas morais e religiosos cristãos. Um quadro,

sem dúvida, bastante diferente dos óleo sobre tela reproduzidos nos livros de

história oficiais com os quais fomos pedagogicamente educados e que

construíram - ao menos em tese - realisticamente o que conhecemos de e por

Brasil.

Um romance histórico contemporâneo que retrata uma protagonista

ficcional em 1555 levanta, através da força de seu foco narrativo, uma porção

de problemas reais que muitas das mulheres que conhecemos ainda são

obrigadas a encarar: a perda das escolhas sobre os próprios corpos, a culpa

severa da moral religiosa, os casamentos forçados, o comportamento

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socialmente desejado e esperado, a violência emocional e todo tipo de abusos

físicos está, há algum tempo, esgotado das prateleiras das livrarias do país.

Não é de se espantar, mas de se celebrar: em tempos onde pouco se

reflete sobre o papel social e antropológico da mulher na construção histórica

de um Brasil multi-identitário e todos os problemas que ainda não superamos

desde a nossa formalização enquanto nação, a literatura nos devolve, sob a

voz da narradora Oribela e todos os desafios que esta teve de enfrentar na

Colônia reconstruída ficcionalmente o nosso direito à reflexão. Desafios estes,

aliás, que parecem ainda ecoar em nossa realidade quinhentos anos depois,

alçando assim a literatura ao posto de agente fomentador da discussão e da

desestabilização do discurso oficial da história.

A obra foi recentemente adotada nas maiores provas de ingresso às

universidades nacionais como uma espécie de auxílio na (re)construção

histórica ficcional de um Brasil e da oportunidade de escutar-se (ler-se) uma

voz quase nunca ouvida nos relatos oficiais; a feminina. Isso, que se fique

claro, na mesma década em que foi publicamente criticada a presença da

feminista francesa Simone de Beauvoir em questão do mesmo exame sob o

argumento de que esta era obsoleta, retrógrada e ultrapassada; de que já não

cabia na forma de ‘igualdade de gêneros' que o mundo do novo milênio havia -

supostamente - assumido. Não por acaso, a obra de Beauvoir trata da

construção do feminino. De como esta veio da castração social, e não da

natureza.

A narradora, jovem que foi enviada numa nau junto a outras moças com

destino ao Brasil - ou, aí, Desmundo - pela rainha de Portugal para casarem-se

com os primeiros colonos assina o romance-diário. O matrimônio, tal qual o

envio de mulheres brancas à nova colônia com o objetivo de que os homens

não vivessem em pecado com as índias nativas, foi uma solicitação do Padre

Manoel da Nóbrega prontamente atendida pelo reino; o que se pode entender

como um índice de que o discurso religioso e o poder vigente eram uníssonos

e com interesses mútuos, sendo que um fortalecia ao outro.

Pouca coisa mudou no cenário que se modernizou, como se vê numa

observação atenta da realidade política contemporânea; no país que hoje é

República, padres e pastores são deputados e senadores e, quando não

personificam os cargos, são ecos ouvidos na decisão de quem será. O ideal de

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um Estado Laico é pouco mais que utopia impressa em nossa Constituição

(1988), posto que a lei segue intimamente ligada aos dogmas religiosos e à

ética do discurso cristão.

Diante do exposto, aclaramos da seguinte forma os intentos desta

pesquisa que tem em sua metodologia o cunho qualitativo, bibliográfico e

descritivo, e que se utilizará do método analítico em seu desenvolvimento:

sendo do homem branco e vencedor das batalhas e conquistas - semelhante

ao herói da Epopeia - a voz ouvida no discurso histórico oficial brasileiro, como

Ana Miranda, ao recriar ficcionalmente um Brasil Colonial, subverte, corrompe

e propõe uma (des)leitura desse discurso através da narrativa de uma mulher?

Como a narrativa promove uma releitura do real por meio do discurso ficcional?

Em outras palavras, quais os efeitos de sentido promovidos por esta nova

leitura da História?

Para responder às questões acima expostas, nos valemos dos estudos

de outros pesquisadores que, através de um ou outro olhar, também buscaram

compreender a obra de Ana Miranda. O estado da arte de Desmundo (1996)

pode ser considerado amplo, sobretudo depois da adoção da obra pelo ENEM

e por demais formas de ingresso às Universidades brasileiras. Muitos trabalhos

acerca do romance de Miranda estão voltados à riqueza no detalhamento e no

cuidado com a reconstrução histórica do Brasil colonial pelo viés ficcional, com

estudos da teorização do romance histórico contemporâneo que trazem a voz

da mulher como protagonista e ainda com a adaptação cinematográfica de

Alain Fresnot (2002).

As abordagens das pesquisas são as mais diversas: o foco na

linguagem com alta potência poética da narrativa, a opção pela forma diário, a

importância de estudar o gênero e a presença do feminino. Os trabalhos

apresentam relevância no sentido de que ajudam a elucidar um Brasil que é

pouco conhecido, posto que é narrado por um personagem atípico dentro do

que pode ser considerado como a voz tradicional nos relatos oficiais.

Destacamos aqui, entretanto, dois estudos do campo literário que são

fundamentais na nossa análise de Desmundo (1996): a tese da pesquisadora

Mariléia Gärtner, Mulheres contando história de mulheres: o romance histórico

brasileiro contemporâneo de autoria feminina (2006) e o trabalho do professor

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Antonio R. Esteves, O romance histórico brasileiro no final do século XX: quatro

leituras (2007).

Os trabalhos selecionados auxiliam sobretudo na fundamentação teórica

por sua vasta bibliografia e na discussão histórica desta pesquisa, pois é

possível perceber que há em cada um deles a preocupação de trazer os fatos

oficiais entrelaçados ao discurso literário. Gärtner (2006) discute a importância

da presença feminina e sua ascensão no gênero, além de trazer as teorias que

buscam elucidar os conceitos de romance histórico, romance histórico

contemporâneo e de metaficção historiográfica. Já Esteves (2007), que dedica

seus estudos acadêmicos ao romance histórico contemporâneo brasileiro,

apresenta novas possibilidades de leitura de Desmundo, sem descuidar dos

fatos históricos expostos pelo viés literário.

No campo da pesquisa histórica, entretanto, buscamos referências em

Mary Del Priore, cuja pesquisa apresenta uma rica imagem acerca das

condições da mulher no Brasil Colônia, sobretudo no referente a questões do

corpo e de mentalidade. Ainda que já se tenha discutido amplamente a

relação muitas vezes imbricada entre os discursos histórico e literário, pouco foi

dito sobre a importância de se pensar o viés ficcional como um instrumento

válido de leitura crítica da realidade contemporânea. Ao se refletir

conjuntamente as teorias de György Lukács e Linda Hutcheon com a

perspectiva histórica de Mary Del Priore dentro do romance de Ana Miranda é

possível perceber a importância de se enxergar a mulher como atuante na

construção social desde sempre.

A história oficial comumente relega ao ser feminino um papel de agente

passivo dentro da colonização brasileira, mas, através da proposta desta

pesquisa, pode-se compreender a corrupção e a subversão desse discurso. É

preciso ler o passado com um olhar menos inocente na tentativa de

compreender o lugar que (des)ocupamos hoje. Também pretende-se

significativo para os estudos literários porque, ao pensar as divergências e

convergências teóricas de sua fundamentação, traz a ideia de uma atualização

da leitura de Lukács ao colocar uma mulher enquanto protagonista de um

gênero que, para o crítico, era intrinsecamente ligado ao masculino.

Os nossos objetivos, portanto, são: buscar uma análise da subversão do

discurso da história oficial através dos ecos das vozes femininas ficcionais em

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Desmundo, em especial de sua protagonista, Oribela. Para além, desejamos:

a) verificar, a partir da fundamentação teórica, a subversão do discurso oficial

notada em Desmundo; b) refletir, a partir dos conceitos de György Lukács em

‘Romance Histórico’, e de Linda Hutcheon em ‘Metaficção Historiográfica’, as

construções do feminino no romance de Ana Miranda e, finalmente, c) pensar a

importância da ‘Voz do Excluído’ na reconstrução histórica através da Literatura

como uma forma de ampliar o quadro da história oficial com que fomos

pedagogicamente educados.

Construímos os nossos objetivos a partir da hipótese de que Ana

Miranda propõe a (des)leitura da história oficial por meio da subversão do

discurso ao dar a voz às personagens femininas em sua obra, e de que a

literatura - através da opção pelo viés ficcional do ‘romance histórico’/ ‘romance

histórico contemporâneo’/ ‘romance-diário’ - pode servir como instrumento para

uma leitura crítica da realidade contemporânea ao expor, através do seu

enredo, as condições de vida das personagens mulheres num Brasil que ainda

nos é desconhecido. Através do microcosmo de Oribela, podemos

compreender os desafios enfrentados pelas primeiras mulheres que

desembarcaram no Brasil Colônia e perceber que muitas dessas questões por

elas confrontadas ainda não foram totalmente superadas por nós mesmos.

A demanda dessa pesquisa no sentido de conceituar o romance

histórico, será respondida com a teoria literária de György Lukács na obra O

romance histórico (1936). Com uma visão tanto hegeliana quanto marxista da

importância da história e da influência que esta exerce sobre o comportamento

humano e sobre a formação do sujeito contemporâneo, o pensador húngaro

pontua que somos o resultado direto dos processos históricos a que fomos

submetidos e que eles têm papel fundamental no pensamento do indivíduo.

Na tentativa de compreender como podemos questionar, refletir

criticamente e corromper o discurso oficial através da voz de personagens

fictícios, estaremos respaldados em Linda Hutcheon, com seu conceito de

metaficção historiográfica, presente em sua obra Poética do pós-modernismo:

História, teoria, ficção (1991). Para a pesquisadora, a literatura tem, também,

um compromisso de dar voz àqueles que foram excluídos dos relatos

tradicionais pelas relações de poder estabelecidas no decorrer da história; em

nosso objeto de estudo, essas vozes emergentes são as femininas.

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Para apresentar os retratos históricos das mulheres no Brasil colônia -

sobretudo no concernente ao corpo, às condições femininas e à sexualidade -,

traremos as pesquisas de Mary Del Priore publicadas em Ao sul do corpo

(2009).

Em busca de maior clareza e organização, optamos por estruturar nossa

pesquisa em três capítulos. O primeiro, György Lukács e a voz no romance

histórico, apresenta o conceito de romance histórico com o qual trabalharemos,

bem como a perspectiva do crítico diante do gênero e sua convicção de que a

história é determinante na formação do homem. O segundo, A Metaficção

Historiográfica e as vozes subversivas, expõe a ótica de Linda Hutcheon

acerca do diálogo entre história e literatura e o quanto há de potencial dentro

do campo literário para pluralizar o discurso singular e oficial imposto pela

história, dando, sobretudo, voz a quem foi silenciado. No terceiro capítulo,

Mulheres que gritam, trazemos a análise das personagens femininas do

romance e o que podemos ler na subversão desses discursos. Nos propomos,

através dessas vozes ímpares, aprofundar nossos conhecimentos de

passagens históricas do Brasil Colônia, experimentar os desafios de suas

primeiras habitantes e a fazer uma crítica do que foi constatado ao longo da

redação deste trabalho. Assim, percebemos que as teorias auxiliam para

ampliar a leitura da obra, mas não podem, e não devem, reduzir as

possibilidades da arte. Assim concebemos Oribela: é a moça típica de Lukács,

que, modificada pelas circunstâncias de uma vida que não escolheu, se

transforma na heroína periférica de Hutcheon e, emudecida pelo patriarcalismo

do mundo aonde viveu, encontrou sua voz e sua liberdade no discurso poético

de seu diário. Compreendemos, portanto, a Literatura como um espaço de

liberdade e catarse, como um campo onde é conferida a opção da palavra a

quem foi brutalmente esquecido e excluído das narrativas históricas.

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Capítulo I

Narra Oribela, a moça que, por circunstância e condição histórica perdeu seu direito de ser senhora do próprio destino e que, arbitrariamente, cruzou o Atlântico para desembarcar em um Brasil de degredados, casar-se forçosamente com um colono e assim garantir a propagação da raça branca na Colônia ao mesmo tempo em que fortalece o dogma religioso do sexo somente dentro do casamento:

“(…) As mancebas, nenhuma de nós dormia, de boca fechada, os ouvidos alongados, cada qual a pesar em seu coração que dias viriam, que ventos assoprariam, o que haveria ali, recolhidas aos pensamentos de nossa fortuna, ocupando-os no sentimento das coisas que nos mais doíam, numa quietação de pouco sono e medo das nossas próprias imaginações, as quais nos faziam desejar grandemente a chegada da manhã, porque tudo quanto podíamos estender aos olhos era a pequena ordem com que a desventura nos tinha cortado a vida.”

(MIRANDA, 1996, p. 21).

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CAPÍTULO I

GYÖRGY LUKÁCS E A VOZ NO ROMANCE HISTÓRICO

1.1. Literatura ou História? Poeta ou historiador?

Longo e imbricado é o relacionamento estabelecido entre os campos

histórico e literário, embora tenha havido constante cisão entre eles dado o

surgimento de novas formas de pensar e analisar os estudos humanos. Ainda

que ambos contem, cada qual a seu modo, a história do Homem e os

processos a que foi submetido, e que sejam importantes instrumentos para

uma leitura e compreensão crítica da realidade e do mundo que nos cerca,

essa relação também é permeada por profundas diferenças. Enquanto a

História busca subjetivar o mínimo possível a sua narrativa, a liberdade

ficcional do poeta – como colocada pelo pesquisador Alcmeno Bastos –,

oriunda da Literatura, permite uma nova forma de se ler e, a partir de então,

analisar os fatos. Sem negar que o romance é criado, sobretudo, à luz da

verossimilhança, é essa liberdade de invenção propiciada pela arte a principal

distinção entre esses dois discursos.

No Século XIX, o mundo experimentava revoluções e tensões entre as

classes que resultariam em novas organizações sociais, matéria rica para o

campo literário: o romance histórico nascido à época forjou-se no hibridismo

entre romance – ficção, e portanto, criação – e História, passível da verificação

oficial de nomes, eventos, registros, datas e etc.

Para Bastos (2003),

O romance histórico, surgido no século XIX, também combinava matéria de extração histórica e dados estritamente ficcionais, recolocando o problema teórico dos limites entre história e ficção. A modernidade contestou o modelo do romance histórico “clássico”, romântico, especialmente quanto ao triunfalismo e ao distanciamento temporal do narrador (p.11).

O surgimento do romance enquanto gênero acompanha as profundas

mudanças sociais de seu tempo. O Homem já não é, então, um ser coletivo,

posto que a ascensão da sociedade burguesa trouxe consigo o individualismo

e, então, o ser subjetivo que viria a ser o protagonista e, por vezes, narrador

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das obras literárias. Este ser subjetivo que narra – sob a liberdade ficcional do

poeta – as convulsões sociais de sua época, sujeito que não se encaixa no

mundo à sua volta, que se incomoda, que não cabe nos espaços previamente

delimitados de pertencimento, que não consegue ser parte inteira de um todo,

que se inquieta igualmente com movimento e inércia, que ignora o modus

operandi de uma sociedade, que não se encaixa, que está constantemente em

crise e que lança sobre o cosmos uma visão particular dos fatos históricos que

vivencia,

Lukács, na esteira de Hegel, entende que o romance é a epopeia da burguesia, desprovida, porém, da antiga grandeza, pois agora o poeta não mais pode ser o cantor de uma comunidade, já que a sociedade de que faz parte está dividida em classes que se antagonizam a partir de interesses divergentes. (…) Do romance está banido o mito e, por extensão, o maravilhoso. A matéria narrada é restrita ao universo da experiência humana, e isto sem dúvida facilitou o aproveitamento da matéria de extração histórica (BASTOS, 2003, p.14).

Porém, se tanto as relações simbióticas entre História e Literatura,

quanto o modo de analisá-las e apartá-las, foram modificadas ao longo dos

anos, é importante para os estudos literários que se definam conceitos e

teorias sob as quais se embasem as possibilidades de leitura de uma obra

ficcional. Neste estudo, adotamos a reflexão teórica do pesquisador Alcmeno

Bastos, que assim conceitua o romance histórico:

Postular para o romance histórico um conceito ancorado nos seguintes pontos: a) a obrigatoriedade de a matéria narrada ser de extração histórica; b) instauração de um efeito de historicidade, mediante emprego de recursos ficcionais alternativos; c) existência de vínculos de solidariedade entre a trajetória da personagem e a da comunidade de que ela faz parte; d) presença, no nível da textualidade, de marcas registradas de procedência histórica; e) remoticidade da matéria narrada, a despeito da precariedade de sua determinação cronológica; f) presença, explícita ou não, de um epílogo a respeito da matéria narrada (2003, p.24).

Outra característica singular do pensamento de Bastos nos interessa

particularmente nesta pesquisa, que se trata da maneira pela qual ele percebe,

e que é igualmente relevante para a narrativa histórica, o cotidiano do homem

comum – presente, sobretudo, na obra literária – e os grandes e notáveis fatos

repercutidos nos livros de história, além de reiterar sua conceituação de

romance histórico:

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E não apenas as batalhas sangrentas, os lances diplomáticos de envergadura, as calamidades dizimadoras cabem na denominação, mas também a jornada cinzenta e cotidiana do homem comum. (…) Essa ficção histórica nossa contemporânea discrepa do modelo romântico em muitos aspectos, tais como a ausência de triunfalismo, a diferente perspectiva temporal do narrador, a explicitação de sua natureza ficcional e conseqüente caráter autorreflexivo, intertextual. (…) A ficcionalização de personagens históricos com apoio da metaficção e da intertextualidade (BASTOS, 2003, p.19).

Quando refletimos conjuntamente as reflexões de Bastos ao romance-

fonte aqui analisado, é possível notar que Ana Miranda faz uso, em Desmundo

(1996), dos elementos acima apontados pelo crítico, como veremos com mais

profundidade e detalhes nos próximos capítulos.

A narrativa de Oribela, aberta por epígrafes históricas e poéticas, se dá

em paralelo à História do Brasil. E estar-ser esse Brasil desmundo afeta a

personagem de maneira irrevogável – a fim de sobreviver às circunstâncias

impostas por forças maiores que as suas, a protagonista muda sua conduta e

se reconstrói, provando assim que a História é definitiva na construção do

presente e da mentalidade do Homem de seu tempo, sendo este também o

sujeito do romance.

Interessante perceber como Ana Miranda faz uso recorrente, por

exemplo, da ficcionalização de personagens históricos (para citar, por ora, o

Padre Manoel da Nóbrega), e da intertextualidade com outros gêneros

(implicitamente com os contos-de-fadas tradicionais, além do uso explícito da

poesia em prosa) e romances. No que se pode, então, ler o hibridismo como

forte tendência na Literatura contemporânea. Este hibridismo é, também, a

mescla de gêneros que acaba por fugir à regra das teorias clássicas que exclui

o diálogo entre os gêneros literários e os discursos interdisciplinares que são

possíveis entre a Literatura e demais áreas de conhecimento humano.

Atendendo à apropriação do campo literário aos ecos da narrativa

histórica, portanto, pode-se, cada vez mais, propor uma leitura crítica da

realidade e convidar o leitor a uma autorreflexão das questões implícitas na

obra. O romance histórico, como proposto por Bastos, reafirma o potencial de

uma literatura para além da fruição, de uma literatura que cumpre, também,

certa função social. Assim, o entrelaçamento dos discursos histórico e literário

contribui para nossa observação crítica do mundo e toda a leitura que se possa

fazer dele.

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1.2. György Lukács e a voz no romance histórico

Com uma visão tanto hegeliana quanto marxista da importância da

História e sua influência sobre o comportamento humano e a formação do

sujeito contemporâneo, Lukács assegura que

A particularidade dos homens ativos derivar da especificidade histórica de seu tempo. (…) É uma clareza sobre a história como processo, sobre a história como precondição concreta do presente. (…) Assim, criam-se possibilidades concretas para que os homens apreendam sua própria existência como algo historicamente condicionado, vejam na história algo que determina profundamente sua existência cotidiana, algo que lhes diz respeito diretamente (LUKÁCS, 2011, p.33-40).

Para ele, somos o resultado direto dos processos históricos a que fomos

submetidos, os quais têm papel fundamental no pensamento do indivíduo. E,

se é o sujeito do romance a representação literária e ficcional do homem

comum de seu tempo, com este sujeito ficcional não poderia ser diferente. O

crítico acrescenta:

Nessa representação magnificamente realista do presente incluem-se acontecimentos significativos da época que, no enredo, estão ligados aos destinos dos homens figurados. (…) Fielding até possui certa consciência dessa práxis, desse processo de concretização do romance em direção à apreensão da particularidade dos homens e dos eventos figurados. Ele chama a si mesmo, como escritor, de historiador da sociedade burguesa (LUKÁCS, 2011, p.34-35).

Ao discorrer, por exemplo, ao que tange a necessidade de se olhar

para o passado glorioso em busca da compreensão dos motivos que levaram a

sua queda, ele afirma que a representação artística da História, na Alemanha,

era pressuposto para um renascimento cultural de um país em crise. E, que,

por causa disso, foi nesse país que a historização da arte emergiu

pioneiramente e com mais força, antes mesmo do que nos países então mais

estáveis, tanto política quanto economicamente do Ocidente.

Pensando o romance enquanto gênero, sabe-se que uma das suas

principais características é particularizar sensações, sentimentos, visões,

idéias, desejos, volições e a singularização do ser humano enquanto sujeito,

enquanto indivíduo. Se antes a Literatura – sobretudo a Poesia – prezava pela

universalização, com a ascensão da sociedade burguesa – marco do romance

enquanto gênero ascendente –, o foco passou a ser outro: do sujeito coletivo,

com raízes fincadas no pensamento de comunidade, o ser humano passou a

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ser valorizado como unidade singular, como um “eu” distinto de todos os

outros.

Em Lukács, é possível perceber que o modo como cada sujeito

experimenta e vive a história de seu tempo e, sobretudo, a maneira pela qual

este opta por narrá-la, podem determinar a forma do romance histórico:

(…) Para darmos apenas um exemplo, basta ler as memórias juvenis de Heine em O livro de Le Grand, em que ele retrata com vivacidade o modo como a rápida mudança dos governos afetou o menino Heine. Se a essa experiência vem unir-se o reconhecimento de que tais revoluções ocorrem no mundo inteiro, fortalece-se extraordinariamente o sentimento de que existe uma História, de que essa história é um processo ininterrupto de mudanças e, por fim, de que ela interfere diretamente na vida de cada indivíduo (LUKÁCS, 2011, p. 38).

Descartando a idéia de que a História seja um agente passivo na vida do

Homem, o teórico considera que seja de um pensamento extremamente

reacionário não atribuir a ela um papel de caráter transformador. Assim sendo,

as constantes lutas de classes e as rupturas comportamentais propostas pelas

revoluções servem, também, como molas propulsoras para um novo pensar,

como um trampolim para uma nova concepção e o estabelecimento de outros

paradigmas para a humanidade.

Em O romance histórico (1936), o autor realiza um levantamento

detalhado das mudanças nas estruturas sociais que abalaram a Europa —

berço do romance, e, com ele, do romance histórico —, e pontua como de

fundamental importância histórica na formação da consciência da humanidade

as sucessivas guerras e as Revoluções, sobretudo a Francesa e a de 1848

(ano da fuga do Rei Luís Filipe para a Inglaterra, da instauração da República

Francesa, dos conflitos emergentes entre a burguesia e o proletariado, da

polarização política que ganhava cada vez mais força e da publicação do

Manifesto Comunista, de Marx e Engels).

Neste cenário e sob esta argumentação como ponto principal de sua

teoria, ele coloca que o escritor escocês Walter Scott é, sem dúvida, o marco

do romance histórico e de uma nova expressão artística dentro da literatura:

Scott integra o grupo daqueles grandes escritores cuja profundidade se expressa sobretudo em suas personagens, uma profundidade que eles próprios com frequência não compreendem, porque surge do domínio verdadeiramente realista do material, em conflito com suas visões e preconceitos pessoais. (…) E Balzac ressalta, em sua crítica

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a A Cartuxa de Parma, de Stendhal, os novos traços estéticos que o romance de Walter Scott introduziu na literatura épica: o amplo retrato dos costumes e das circunstâncias dos acontecimentos, o caráter dramático da ação e, em estreita relação com isso, o novo e importante papel do diálogo no romance (LUKÁCS, 2011, p. 46-47).

É este, pois, o sujeito do romance e que, a partir da nova estética de

Scott, torna-se observador da realidade histórica em que vive e na qual está

inserido. Um narrador das mudanças do seu tempo que é também, ao mesmo

tempo, o homem comum e mediano.

Complementando os principais traços do romance histórico delineados

por Scott, Lukács (2011) ressalta a ausência da fala do presente, a não-

abordagem direta das questões sociais deste presente (como, por exemplo, a

incisiva luta de classes), a resposta desses conflitos e questões históricas pelo

viés da figuração ficcional, a realidade histórica também através dessa mesma

figuração ficcional e a tendência fundamental da expressão da figuração dessa

ficção no modo como o autor tece a trama e escolhe a personagem principal.

Ana Miranda, em Desmundo (1996), optou por dar voz a uma mulher na

reconstrução ficcional do Brasil Colônia: Oribela, sua protagonista, não oferece

respostas aos conflitos ou julgamentos profundos de valores; ela narra,

simplesmente, o que vê e como o percebe a partir de sua perspectiva singular

– e o que ela enxerga é um Brasil também pouco conhecido. E, por meio de

seus olhos, notamos questões pouco levantadas em nossos livros didáticos

mas muito bem expostas na literatura que elege o romance histórico enquanto

registro escritural de uma obra. Pouco nos foi ensinado em relação ao papel e

os (des)lugares da mulher na Colônia — da índia nativa, da negra escravizada

e da branca degredada. Mas elas sempre estiveram lá. Aqui.

Embora sempre tenham estado aqui, são ilustres desconhecidas da

nossa História. Pouco se discute no ambiente escolar sobre as condições da

mulher — e das mulheres — no Brasil Colônia. Ao sul do corpo (2009), obra da

historiadora Mary Del Priore, contribui em muito com os mais recentes estudos

que buscam reconstruir a imagem que teria tido a mulher — essas mulheres,

plurais e heterogêneas — nos primeiros anos de Brasil, colaborando para que

tenhamos uma dimensão do histórico dentro da ficção de Ana Miranda sob o

aval teórico de Lukács:

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Da mulher indígena herdava-se, neste momento, o espólio de tradições que ela detinha na estrutura tribal. A mulher branca contribuiu com modos de viver e morrer importados com a emigração de Portugal, modos estes, muitas vezes, também trazidos de outras terras, reelaborados na Metrópole e trasladados para o Brasil. As sociedades africanas do tipo sudanês e banto, de onde saiu grande parte do tráfico negreiro, legaram à vida colonial comportamentos e mentalidades características do espaço que a mulher ocupava em seu interior (DEL PRIORE, 2009, p. 21).

No gênero romance, reconhecemos que esteja elucidado que tanto o

narrador quanto a personagem principal ocupam uma posição de prestígio na

obra; é através do microcosmo de um desses olhares que o leitor tende a

enxergar a narrativa (e, possivelmente, a História) por um ou por outro viés,

justamente por esta narrativa que serão despertadas ou atribuídas questões de

empatia, de alteridade, de entendimento, de compreensão e até mesmo de

arrebatamentos.

Mas não é sempre que o herói ou a heroína de uma obra possui

posições claras ou apaixonadas, a favor ou contra as questões sociais que

ambientam o seu tempo. Em Scott, é ressaltado o equilíbrio ideológico de suas

personagens, validando assim a teoria de Lukács de que uma das principais

características do romance histórico é, de fato, a não abordagem pelo discurso

direto desses conflitos sociais através da tomada de posições, e sim pelo viés

ficcional:

Seu entendimento do problema do presente não é profundo o suficiente para resolver essa questão dos processos de marginalização. Por isso, ele desvia da temática e conserva, em sua figuração, a grande objetividade histórica. (…) A grandeza de Scott está em dar vida humana a tipos sociais históricos. Antes de Scott, os traços humanos típicos, que se evidenciavam em grandes correntes históricas, jamais haviam sido figurados com tal grandiosidade, univocidade e concisão. E, acima de tudo, jamais essa tendência da figuração havia sido trazida conscientemente para o centro da representação da realidade. Isso também se aplica a seus heróis medianos (LUKÁCS, 2011, p. 50-51).

Se nas formas mais tradicionais de romance, ou na epopeia, as

personagens apresentam características muito evidentes sobre suas

personalidades e são comumente polarizadas entre “boas” e “más”, além de

donas de grandes feitos, nos romances históricos de Walter Scott analisados

por Lukács isso fica um pouco mais subjetivo.

Por também (re)contar a História e se apropriar dos seus fatos, para

Lukács, o romancista histórico deve tomar o cuidado em não defender posições

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ideológicas ou fazer apologias a esta ou àquela corrente social através de sua

narrativa; logo, suas personagens com frequência assumem um caráter

mediano – justamente pela discrição e ocultamento ideológico – e sempre no

sentido de retratar ficcionalmente o homem comum da época na qual se

ambienta a trama.

Tais traços também podem ser observados em Desmundo: Oribela, a

moça comum de sua época, reparava, assustada, o seu derredor. Vivia o

choque diário entre o que lhe fora ensinado na metrópole e a dura realidade da

colônia. Por anos de sua vida viveu a salvo da barbárie crua das guerras,

reclusa em um convento. Todavia, ao desembarcar no Brasil, testemunhou os

constantes conflitos entre o colonizador português e os índios nativos em suas

tentativas de resistência à colonização:

Queriam os homens das naus levar naturais cativos, para os venderem e fazerem mostra pública, bem adornados, podiam ser fêmeas ou machos. Uns cristãos se metiam em roupeta da Companhia, iam às tribos saltear, diziam aos naturais que os iam levar para a terra do mel, mandavam as mães seus filhos, enganadas, que logo se viam embarcados eram os padres falsos seus senhores e os metiam em porões com algemas no pescoço e os vendiam como escravos. Outros fundeavam suas caravelas e faziam anúncio de que traziam coisas para vender, enchiam as naus de naturais da terra e logo assim vista a nau os metiam em algemas, zarpavam fazendo deles escravos e os vendiam pelas capitanias da costa do Brasil. Tribos faziam guerra entre si ou contra os cristãos e conservavam os prisioneiros dando as mulheres da tribo para que delas se servissem e que os nutrissem (…) (MIRANDA, 1996, p. 49).

Antes de retomar a discussão teórica a qual nos propomos, abrimos aqui

um parêntese e convidamos à leitura de um relato tratando das guerras

intertribais e dos conflitos constantes na Colônia. Assinada por Padre Manoel

da Nóbrega e datada de 10 de agosto de 1549, a narrativa histórica (e,

portanto, oficial) parece ter uma carga de subjetividade maior do que a ficcional

acima transcrita:

Têm guerra uns com os outros, uma geração contra outra geração, a dez, e quinze, e vinte léguas de maneira que todos entre si estão divididos. Se acontece que tomem alguns dos contrários na guerra trazem-nos presos algum tempo e dão-lhes as suas filhas por mulheres e para que os sirvam e guardem, e depois os matam e comem, com grandes festas e com ajuntamento dos vizinhos que vivem ao redor; e se destes tais ficam filhos, também os comem, ainda que sejam seus sobrinhos e irmãos e as vezes as próprias mães e dizem que só o pai tem parte nele e a mãe não tem nada. Esta é a coisa mais abominável que entre esta gente há. Se matam algum na guerra trazem-no em pedaços e poema-no ao fumo e depois o comem com a mesma solenidade e festa, e tudo isto pelo

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ódio estranhável que têm uns aos outros (NÓBREGA apud LEITE, 1955, p.48).

Oribela, todavia, ao narrar o que vê, bem como suas percepções dos

conflitos entre portugueses e índios, não se coloca a favor nem contra

ninguém; se preocupa em apenas relatar a realidade à sua volta, no que se

pode concluir, com a leitura dos excertos acima, uma corroboração com a

teoria de Lukács ao mostrar uma heroína de caráter mediano, retrato ficcional

da mulher comum de seu tempo, que tinha quase nenhuma voz ou poder para

intervir em seu meio, além de pouca liberdade ou acesso ao conhecimento

sistematizado para opinar. O silêncio era uma roupagem constantemente

exigida pela organização social, e a ousadia à mínima demonstração de

sabedoria era freqüentemente paga com castigos impostos pela mesma

sociedade.

Esse emudecimento externo, entretanto, não coibia a nossa protagonista

de um aguçado senso de observação, que era, quase sempre, verbalizado

como um profundo fluxo de consciência nas páginas de seu diário. Na urgência

de relatar o novo mundo do qual agora tomara parte — fosse para absorvê-lo,

fosse pela necessidade humana da palavra — Oribela mergulhava em si para

experimentar tudo que estava fora e que lhe era, então, inédito.

Nas primeiras páginas do romance, por exemplo, é possível perceber

como Ana Miranda faz uso de longas orações, quase sem respiros, pausas ou

pontuações ortográficas, para demonstrar a necessidade latente e imediata do

relato e o estado de ânimos no qual se encontrava Oribela. E, certamente, para

aumentar ainda mais no leitor a sensação de fluxo de consciência.

Usado como recurso literário por diversos autores — James Joyce,

Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Virginia Woolf e Simone de Beauvoir,

para citar alguns — quando quiseram expor ao leitor a melancolia ou a

imprescindibilidade da fala sem interrupções, o fluxo de consciência é,

reconhecidamente, um método ficcional:

Muito ligado ao problema do foco narrativo é a apresentação, na obra ficcional, do chamado fluxo de consciência. (…) Poderíamos definir o método como a apresentação idealmente exata, não analisada, do que se passa na consciência de um ou mais personagens. (…) Para exprimir a continuidade dos processos mentais, cuja representação tem sido buscada por alguns ficcionistas. (…) O leitor é orientado para os fatos externos, para a situação, ao mesmo tempo que é usado um estilo que caracteriza o personagem, apresentando-se a

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sequência não lógica dos seus pensamentos (CARVALHO, 2012, p. 57-62).

No caso de Desmundo, insistimos, sobretudo, na questão da pontuação

ortográfica previamente exposta — ou de sua ausência quase que completa —

e até mesmo da mistura de línguas na fala de Oribela (que vai das estruturas

arcaicas do Português ao Espanhol, passando até mesmo ao Latim) como um

item essencialmente relevante a ser observado neste momento do nosso

trabalho, pois ambos nos mostram o estado emocional no qual se encontrava a

protagonista – a confusão que permeia o seu relato, que, muitas vezes,

demanda uma releitura para ser mais bem compreendido, o medo constante

mesclado à expectativa de uma nova vida e o desconhecer das terras que

seriam, gostasse ela ou não, seu novo lar: o desmundo que se desenhava

como sua realidade. Para além, a necessidade humana da expressão, da fala e

a opção pela verborragia de quem, em contraste, passou toda a sua vida sendo

silenciada.

Em semelhança à narrativa ora emudecida ora verborrágica de Oribela

— sempre em acordo com seus ânimos e pouca tendência ideológica —,

Carvalho oferece breve análise de uma personagem de Tolstói em Guerra e

Paz, que nos ajuda a jogar luz sobre as convergências teóricas entre Lukács e

o foco narrativo que envolve, também, o fluxo de consciência:

Nesse livro, o famoso romancista apresenta uma pequena camponesa que, ao descrever um conselho de guerra, o faz de maneira ingênua, de acordo com a sua mentalidade, sem perceber a verdadeira natureza dos fatos que se passam (CARVALHO, 2012, p.40).

Voltando à teoria do crítico húngaro e à análise ficcional, os conceitos

antagônicos como certo e errado, e bem/bom e mal/mau ganham outras

tonalidades, e a ética da personagem – aqui compreendida como as atitudes

que podem ser esperadas desta ou daquela personagem dentro da sua

construção histórica, respeitando os limites da verossimilhança – passa a ser

muito mais importante do que determinado julgamento do valor moral de

alguma ação que ela venha a cometer no decorrer da obra:

Pois a própria apresentação ampla e multifacetada do ser da época só pode chegar claramente à superfície mediante a figuração da vida cotidiana do povo, das alegrias e das tristezas, das crises e das desorientações dos homens medianos. (…) A genialidade histórica de

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Walter Scott, nunca mais atingida, evidencia pela forma como ele apresenta as qualidades individuais de suas personagens históricas centrais que estas realmente reúnem em si os lados mais marcantes, tanto positivos quanto negativos, de determinado movimento (LUKÁCS, 2011, p.56-57).

Aliás, no romance histórico essa mesma ética da personagem acima

citada é justamente um dos princípios mais respeitados do gênero e dos mais

valorizados dentro da teoria. É inconcebível, para Lukács, que determinado

personagem não aja de acordo como supostamente teria agido um homem real

da época em que o romance se situa. O conjunto de comportamentos e

atitudes esperadas do sujeito é um dos pontos mais fortes a ser observado

dentro da obra – muito mais do que a descrição detalhada ou talvez exaustiva

de cenários e contextos históricos; se esta personagem não materializa essas

ações que são dela esperadas, o romance histórico perde em verossimilhança.

Ora, mas é claro, posto que se o crítico pensa a História como formadora do

caráter – e, logo, da ética – do Homem, ele busca trabalhar essa mesma

questão na ficção através da personagem.

A mentalidade histórica do momento em que vive cada um desses

personagens é determinante para as atitudes que esse há de tomar diante de

uma ou outra circunstância que lhe é imposta dentro do enredo. A postura

dessas personagens diante dos seus dilemas psicológicos confere maior grau

de verossimilhança ao romance histórico do que o detalhamento fidedigno de

fatos históricos (procedentes ou não, o que para Lukács não tem menor

importância). Insistimos, portanto, que é, sobretudo, na personagem que reside

a verdade histórica para o crítico.

Tanto acreditava na potência da voz narrativa no romance que, como

podemos observar nas considerações acerca do romance histórico da

pesquisadora Marilene Weinhardt, Lukács sequer considerava o romance

histórico um desmembramento ou subgênero do romance. Para ele, as

personagens resolviam seus conflitos como no gênero original, inclusive com a

carga subjetiva comumente atribuída ao narrador:

Lukács acentua que o romance histórico não é um gênero ou subgênero, funcionalmente distinto do romance. Sua especificidade, que é a de figurar a grandeza humana na história passada, deve resolver-se nas características gerais da forma romanesca, o que inclui também a possibilidade de apresentar as figuras históricas em momentos historicamente decisivos. A arte do romancista consiste em colocá-las na intriga de modo que essa situação decorra

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da lógica interna das ações. (…) O bom romance histórico resulta da compreensão do relacionamento entre o passado histórico e o tempo presente (WEINHARDT, 1994, p. 51-52).

Pouco nos é ensinado, em termos pedagógicos, sobre o papel da mulher

nos primeiros anos de Brasil. Nos livros escolares, é quase como se ela nunca

tivesse existido ou desempenhado um papel na construção do país se não

fosse nobre ou integrante da família real. Talvez por isso o fascínio pelo relato

de Oribela: a história desafiada, corrompida e (re)contada por outra voz é

subversiva. Se não há espaço no discurso oficial que segue ecoado na voz

uníssona do homem branco, a ideia é acolhida pela Literatura, que abre espaço

aos marginalizados e aos ilustres desconhecidos.

É possível observar isso com certa nitidez quando György Lukács reflete

a respeito dos heróis dos romances de Walter Scott:

Para ele, autenticidade histórica significa a singularidade temporalmente condicionada da vida psicológica, da moral, do heroísmo, da capacidade de sacrifício, da perseverança etc. É isso que, na autenticidade histórica de Walter Scott, é importante, imperecível, e marca época na história da literatura. (…) Scott deixa que as grandes qualidades humanas, assim como os vícios e as limitações de seus heróis, brotem do solo histórico claramente figurado do ser. Ele nos familiariza com as peculiaridades históricas da vida psicológica de sua época não por meio da análise ou da explicação psicológica de seus conteúdos mentais, mas pela ampla figuração de seu ser, pela demonstração de como as idéias, sentimentos e modos de agir crescem a partir desse solo (LUKÁCS, 2011, p.69-80).

É sob o prisma desta teoria, que une a ética da personagem à época na

qual transcorre o romance histórico como principal fonte de atribuição de

verossimilhança à obra, que será pensada a narrativa da trajetória da jovem

Oribela em Desmundo.

Vejamos, então, brevemente: o primeiro poder de sua vida, o pai, atribui

a ela todo tipo de culpa. O segundo poder, o religioso, a oprime espiritual e

fisicamente com a negação de seu corpo e de sua sexualidade. O terceiro, o

poder político, lhe designa uma vida em um mundo que não deseja. O quarto, o

marido que lhe fora imposto, é cruel e atroz nos castigos e abusos físicos

cometidos contra ela. O fator comum entre todos esses poderes é que são

todos são masculinos.

A escolha do diário ficcional como meio literário sob o qual foi elaborado

o romance de Miranda, privilegiando a voz da protagonista, seu entendimento

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do mundo, suas possibilidades diante dos desafios, sua natureza, a psicologia

de uma moça que viveu no Século XVI, seus discursos (histórico, religioso e

poético) imbricados e a potência de sua narrativa reforçam e reiteram a

colocação do crítico:

Para fazer com que tempos há muito desaparecidos possam ser revividos, ele teve de retratar da maneira mais ampla possível essa correlação entre o homem e seu ambiente social. A inclusão do elemento dramático no romance, a concentração dos acontecimentos, a suma importância dos diálogos, isto é, do conflito imediato entre concepções opostas que se manifestam na conversação, têm íntima conexão com o empenho em figurar a realidade histórica tal como de fato ocorreu, de um modo que seja humanamente autêntico e a torne passível de ser vivenciada pelo leitor de uma época posterior. (…) Walter Scott nunca subestimou tais elementos pictóricos e descritivos. (…) Mas, para ele, a caracterização histórica do espaço e do tempo, o ‘aqui e agora’ histórico, é algo muito mais profundo (LUKÁCS, 2011, p.58-59).

Miranda, ao buscar a extensa bibliografia nas páginas finais de seu

romance, dedicou-se a apreender o universo que relatava e as pessoas que ali

estavam, que aqui viveram. É possível compreender e ampliar a nossa própria

visão histórica de um Brasil pelas atitudes das personagens, seus anseios,

seus passados, motivações que as trouxeram até estas terras além-mar e pelo

medo implícito que sentiam do futuro em uma nação que não contava, ainda,

com amanhãs; um Brasil recém-descoberto que dependia inteira e

arbitrariamente dos desejos monárquicos e eclesiásticos impostos por força

física ou coerção espiritual. Lukács, nesse sentido, acredita que a

compreensão do momento histórico na vida humana acaba, também, por forçar

uma concentração dramática da composição épica.

Ainda pensando na linguagem e na força do relato de Oribela, aparente

em seus escritos, é perceptível que esta encontra-se continuamente ligada às

mudanças pelas quais a personagem passa até se transformar em um novo

sujeito, em um sujeito que teve de se reinventar para sobreviver: no início da

narrativa – assustada com o novo e temível hoje de sua vida – apresenta um

discurso religioso contundente e, por vezes, intertextualidade com os contos-

de-fadas:

Estava eu com os sapatos de Dona Isobel, uns macios de pele, atados por fitas de veludo preto e os descalcei, levei-os ao homem que abriu o véu, espreitou muito a minha face num segredo de seu pensamento e perguntou se eu era órfã do mosteiro, murmurei que sim e nada mais que isso, cheia de tanto amor próprio e tão sentida feito erva viva que se arrufa e se quebranta com o mesmo ímpeto, sem mais mimos nem afagos. Um pouco menos que ninguém, atada

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nos atamentos de ser um dos famintos do mundo e nem presumia de mim mais que dos outros e seu olhar triste com manseza e dulçura me fez suspirar, nas partes em que se semeia e se granjeia o sentimento, aquentada no meu frio, fartada na minha fome, em frescos jardins. Ordenou ficasse com os sapatos, se me cabiam deviam ser meus e em joelho os meteu aos meus pés. Suas mãos tremiam, fosse embora bravo e destemido na sua maneira, o que lhe fez grande oposição. (…) Deus ia mandar castigos, monções contrárias, pragas, fechar a porta do céu, grande opróbio aos cristãos. Haveria muito de correr sangue, como o cordeiro derramara, ia a gente dali suar gotas de sangue aos vestidos, bater os dentes num choro, estavam em pecado mortal, ia mandar o pai muitas setas de fogo, gemidos, chamas de enxofre que nunca acabam de queimar, tal que o ímpeto de um rio de lágrimas não poderia apagar. Aguardai, aguardai (MIRANDA, 1996, p.28-50).

Após as transformações que sofre ao longo da obra, a mulher emerge

com a quebra da inocência pueril da menina. Mais rebelde e consciente de si,

surge carregada de uma linguagem mais madura: simultaneamente à narrativa

das circunstâncias históricas que a levaram a uma nova vida, Oribela é,

também, modificada por elas, alterando, assim, as suas posturas. A constante

entre as mudanças da personagem, porém, é a presença do discurso poético

que marca toda a obra de Miranda:

Estando todavia a noite deitada em toda a terra, em suas trevas escuras e em todas as vistas as estrelas, as candeias apagadas, as velas assopradas, era que o mundo se dizia mundo, o do suspirar, namorar sonhos, minha alma viajava por nuvens pretas, pelas moradas do zodíaco, meus olhares esvaneciam, as lágrimas saíam, meu espírito mulheril andava pelos chavascais, portos, pelas Índias, casas dos amores, pelos pecados, nas raivas moídas, no querer bem, nos altares, das danças do vento nos campos das oliveiras, a adivinhar no curso das estrelas e nesse escuro dos gritos em silêncio corria a vida de falsidade como de verdade fosse, mais funda se fazia em mim. (...) E disse eu, sem haver em meu coração uma suspeita ou uma dor, como se o quisera ver morto e acabado, mas como se não fosse eu a falar e sim a outra que vivia dentro de mim, a mais entendida do mundo e das verdades, como que um meu anjo a me querer tomar das garras do encantamento, da servidão ao feitiço, de que dava prova a vasta trunfa avermelhada que lhe coroava a cabeça, de má-fé, desatino, um pérfido todo ternura e inconstância, seus olhos de um aveludado que inspiravam torrentes de poesia e lábios de onde pareciam brotar perfumes, que dificilmente se lhe podiam descobrir as manhas e o pacto, a quem não havia leviandade que lhe resistisse, pelos recursos de que se valia. (...) Salve, mulher abençoada, flor e fruto de germe erupit, flor suavíssima emictens odores, fruto saborosíssimo e doce, flor cuja bonitas expellit mesticiam, fruto cuja saciedade plena dá leite, bendita flor que de ti ascende (MIRANDA, 1996, p.105-187).

Como se nota com a leitura dos excertos acima, ao contrário de ferir a

questão da verossimilhança literária e sua relação com o histórico, as palavras

de Oribela reiteram o que se é sabido do papel social da mulher na época: a

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submissão aos poderes políticos, religiosos e masculinos, porém com a

habilidade de perceber e sentir o mundo a sua volta, resistindo como podia e

buscando o seu lugar. Novamente evocamos Del Priore (2009) no tocante à

retratação do real e embasamento de nossa assertiva:

Resistência ou renúncia, fervor e potência mediaram a relação das populações femininas com a Igreja ou com os desígnios do Estado português, explicitando-se em práticas sociais, discursos literários ou reproduções do seu universo. É importante destacar que parte do contigente feminino - a quem tanto o Estado quanto a Igreja ultramarina se dirigiam, recomendando que se casasse e constituísse famílias - chegava aos homens pelo caminho da exploração ou da escravização, acentuando, assim, nas suas desigualdades, as relações de gênero (DEL PRIORE, 2009, p.22).

A presença da forte religiosidade na fala de Oribela e a intertextualidade

que remete aos contos-de-fada iniciais vão sendo corroídos e substituídos por

novos valores que interioriza no desmundo em que agora habita. É esperado,

pela ética da personagem, que ela se choque com a nudez das índias –

chamadas por Miranda de Naturais – mas, aos poucos, quando passa a existir

nessa nova realidade e assimilar esse mundo que lhe foi imposto, começa a

conceber a nudez em menor grau de pudor cristão e com mais naturalidade.

Este é, portanto, mais um índice de leitura de que Oribela está, todo o tempo,

se descontruindo e reconstruindo para ter uma mínima chance de sobreviver

ao destino e às desventuras sobre as quais não tem controle algum. Ela vive,

sobrevive, se desconstrói, se reconstrói e se constrói.

Nos primeiros dias após o desembarque da nau portuguesa e com os

pés em terras brasileiras, ela não se despe sequer para se banhar, e relembra

o valor moral da nudez que absorveu ainda na mais tenra infância:

E quando fomos para as abluções, muito se espantaram as bugras, que nos queriam desnudar e nos meter na água cálida, qui, si, si, mela, mela, qui, hi hi hi, açã, açu, a nos querer tirar as forças ou matar, jogando nossos corpos dentro de um bacio grande e nos pedindo as camisas, paieu? paieu? Meu pai mandava turvar a água do banho com leite para não ver o meu corpo de criança, uma vez alevantei da gameleira e ele me castigou com tantas vergastadas que verti sangue pela boca. Água nas mãos e na fuça, fidalga. Água, no mais, puta (MIRANDA, 1996, p. 43).

Porém, depois da terna amizade e do convívio diário com a índia

Temericó – com quem conversava sobre o seu passado no reino, aprendia a

língua nativa, que lhe tratava as feridas da pele infligidas pelo sol e pelo

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marido, que a ajudou no parto do único filho e que lhe dava ânimo diário e

coragem para atribuir um ângulo mais positivo para a virada de sua vida –, a

narradora passa a perceber a nudez como uma consequência natural do calor

no hemisfério sul, desatrelado inteiramente da culpa cristã imposta ao corpo

feminino:

Aprendi a me desnudar, no quarto, após o banho, que havia um frescor sobre a pele e se entranhando nela, uma luva de vento, um véu de seda fria, que a roupagem abafava e incendiava. E ria ela. E ria. Bom era viver numa casa sem homem a ordenar. (…) Eu pintava o rosto de urucum, comia do prato das naturais e me desnudava nos dias quentes, deixava os chicos chuparem meus peitos, dançava, de modo que dona Branca veio baixar umas regras, antes que virasse eu uma bárbara da selva e me metesse a comer de carne humana (MIRANDA, 1996, p.126-127).

Em Moisés (1997), a importância do olhar desse sujeito para a descrição

do mundo exterior e do seu íntimo é bastante clara:

i i nis a a and na a is a r s i a d ni ers e a r du a is i r s i a n o mais entender, nem reformar, mas conhecer o homem no seu ‘eu su err ne e r urar enri ue er ei r es e u das r prias mazelas (MOISÉS, 1997, p.287).

E assim, pela voz de Oribela, vamos conhecendo mais a fundo a

mentalidade da mulher na Colônia, os desafios enfrentados por nossas

primeiras habitantes, os choques culturais a serem superados e as relações

estabelecidas com o microcosmo onde viviam.

Como já previamente visto em Lukács, a História serve para muito além

de um mero e simples pano de fundo na ambientação temporal de um

romance; ela assume o papel de um quase protagonista, tão influente quanto

onipresente na vida e nas decisões dos outros personagens na trama da qual é

parte indissociável:

A história é muito mais que roupagem e decoração; é ela que determina de fato a vida, o pensamento, o modo de sentir e agir das personagens. (…) Sem abandonar o quadro completo do espaço e do tempo, da psicologia condicionada pela época e pelas classes (LUKÁCS, 2011, p.91-93).

Ao se refletir sobre a teoria de Lukács em conjunto com a pesquisa

histórica de Del Priore, joga-se uma luz e sugere-se uma nova possibilidade de

leitura do romance de Miranda: é possível conceber uma crítica à realidade

contemporânea vinda, justamente, através do discurso ficcional. A Literatura

cumpre, assim, um papel muitas vezes delegado à História, mas que acaba por

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perder-se em termos críticos por oferecer somente uma voz, a mesma de quem

sempre contou oficialmente a única versão dos fatos e que acaba por excluir

todos os outros personagens que também a viveram e foram dela parte.

Pois, se somos mesmo – em concordância com a estética hegeliana-

marxista adotada por György Lukács e os apontamentos da pesquisa de Mary

Del Priore – o resultado direto dos processos históricos aos quais fomos

submetidos e aos quais sobrevivemos, pode-se inferir então que, quinhentos

anos depois, a narrativa ficcional de Oribela (que reconstruiu historicamente um

Desmundo chamado Brasil) ainda espelha a realidade de muitas brasileiras

contemporâneas em suas sagas reais e lutas diárias por um lugar ao sol.

1.3. Desmundo, um romance histórico contemporâneo

Publicado em 1996 pela Companhia das Letras, o romance estruturado

como narrativa epistolar, de 213 páginas, da escritora brasileira Ana Miranda, é

rico em símbolos e referências históricas. E é, também, forte em discursos,

ainda que não diga nada abertamente a quem faz uma leitura inocente das

suas linhas: a riqueza da obra está, sobretudo, nas múltiplas interpretações e

imagens que ela é capaz de oferecer a quem o lê, para saborear algo mais que

fruição. Ela está sendo contada no silêncio das margens e entrelinhas, a quem

o percebe para além da estória contada. A quem pode ler ali a História. A

nossa. Uma que desconhecemos. E uma que precisamos descobrir para que

nos ajude a apreender fatos que nos auxiliem a nos entender enquanto nação,

as raízes da nossa identidade e a construção que Del Priore (2009) classifica

como um longo processo de domesticação e de adestramento das mulheres

coloniais e que culminou com os abusos e violências cometidos

indiscriminadamente até hoje.

Embora a teoria de Lukács seja de extrema importância tanto para a

compreensão quanto para a conceituação de romance histórico aqui discutido

– e de modo algum este trabalho tratará sua visão da importância da história na

formação do Homem como algo ultrapassado –, gostaríamos de agregar a esta

visão principal alguns novos conceitos que vêm sendo utilizados na tentativa de

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melhor ler, entender e abarcar as exigências e particularidades dos romances

históricos produzidos no Século XX e XXI, como é o caso de Desmundo.

Se não uma revisão teórica do crítico, ousamos propor um acréscimo: o

reconhecimento da autoria feminina. Em A teoria do romance (1962), Lukács é

contundente ao tratar do romance como um gênero literário intrinsecamente

ligado ao masculino, à virilidade. Para ele, homens o escreviam. Em seu

estudo sobre o gênero, não cita obras de escritoras, mesmo que algumas

delas, à sua época, já fossem clássicas. E, assim, acaba por cometer a

injustiça histórica de negar a voz da mulher, que, como sabemos, é excluída

dos relatos. Uma das funções do romance histórico que aqui tratamos é a de,

justamente, contrapor e reparar a surdez para outras narrativas além das do

homem branco – vencedor das batalhas e conquistas – e a universalização de

sua ótica dos fatos.

Doutora em literatura, a pesquisadora Mariléia Gärtner, aprofunda a

discussão ao afirmar:

Portanto, avaliando o romance histórico de mulheres publicado atualmente no Brasil, percebe-se que esse subgênero parece permitir a autonomia da narrativa feminina, sendo responsável por rupturas significativas quando possibilita que o olhar da mulher passe do espaço privado ao público, do seu limite familiar em direção ao acesso ao trabalho, aos estudos, à informação. Ou seja, sustenta a liberação da representação feminina, valendo- se de um discurso histórico universal mais aberto e, finalmente, mais dialógico (GÄRTNER, 2006, p.71).

Reconhecemos que somos um país miscigenado. Recebemos, em

nossa formação identitária, múltiplas informações genéticas e

comportamentais. Somos o resultado direto de diferentes povos que aqui se

encontraram. De sociedades que tinham visões distintas e que habitavam

continentes diversos. É no mínimo um contrassenso – um delírio, para ir além –

propor uma visão totalizadora, vinda de um único ponto de vista, para

compreender a pluralidade da nossa colonização. É reconfortante pensar, mais

uma vez, que a Literatura desponta como um meio – que de outra forma nos

continua a ser negado – para ampliar o nosso conhecimento do mundo e a

nossa leitura crítica da realidade contemporânea enquanto fruto semeado pelos

processos da história.

Gärtner discute, em sua tese defendida há pouco mais de dez anos, a

necessidade de ampliar os horizontes característicos do romance histórico, e

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busca no pesquisador Mario Miguel González (2005) o embasamento teórico

para aprofundar suas ideias. Dessa forma, para eles, o romance histórico

ultrapassa a encenação inocente do passado e o uso da História meramente

como pano de fundo. Uma obra, quando escrita sob este viés, se abre para a

possibilidade de uma leitura analítica do processo histórico em si, por meio do

imbricamento dos planos históricos e ficcionais, embora sem deixar de lado a

proposta de György Lukács sobre a importância do protagonista e do ser

humano tanto na literatura quanto na história:

Nos romances atuais, isso continua acontecendo, mas com uma especificidade histórica muito mais abrangente: questionamentos e reajustes conceituais como os de centralização, verdade, originalidade, em vez da mera recuperação de um momento histórico. O romance contemporâneo não é simplesmente a revificação do passado, como algo imobilizado pela história, mas uma revisitação que usa trajes e idéias do presente, pois, como diz Mário Miguel González (2005), ‘o romance histórico é o gênero mais próximo de fazer da literatura narrativa a história-não-oficial dos povos, particularmente dos vencidos a quem a história habitualmente negou voz (GÄRTNER, 2006, p.31).

A reflexão de Mariléia Gärtner, portanto, permite que Oribela, ainda que

represente ficcional da moça típica do seu tempo, traga em si, também, a voz

dissonante do questionamento em detrimento do silenciar histórico, e o fogo

que lhe arde, rebelde e inconformista. Que seja da moça calada e excluída dos

relatos tradicionais o grito que precisa ser ouvido para compreender os ecos do

passado e romper com as verdades absolutas das nossas heranças. Sobre

isso, a pesquisadora Maria Cristina Vieira (2000) pondera que:

O passado torna-se, então, não uma fonte de inspiração para uma agradável evasão, mas pelo contrário, um tempo hetorodoxamente revisitado, com um certo caráter perturbador, uma vez que se duvida da possibilidade de acesso à verdade, pois a história é concebida como um conjunto de verdades ou versões que se degladiam, sendo a história oficial a versão vencedora sobre múltiplas outras que poderiam ser tomadas em consideração (VIEIRA, 2000, p.127).

Aqui, Ana Miranda – ao dar a voz de um romance histórico

contemporâneo a uma narradora – aponta importantes reflexões sobretudo no

que escreveu nas entrelinhas: a opressão da mulher na construção de um

Brasil que ainda não tinha tomado a forma de nação, e a possibilidade de que

essas questões não tenham sido superadas na contemporaneidade, posto que

é factível que o leitor reconheça na trajetória de Oribela fatos ainda atuais,

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reiterando, assim, György Lukács e sua visão hegeliana-marxista da função da

história na formação humana:

Entre divagar sobre o poder de Deus, do rei, do papa, sendo cada um soberano, um da alma, um do corpo, um da fé, seus sacerdotes e seus círios, fiquei. Que governavam nosso espírito em trabalho de agonia, só na reverência havia salvação, uma triste hora antes que anoitecesse tão pasmada estava eu, com tanto medo de ser castigada, que que me atrevera a declarar com palavras mais nada enquanto pensava no poder que movia meu ser infeliz, a alma em despedaços e quem é que fazia a justiça desse mundo, se Deus tinha orelhas tão grandes assim para meu ínfimo murmúrio. Fora eu roubada de tudo quanto levava (…). E afinal viria a pena, conforme requerimento de que se provavam alguns ruins indícios em minha alma, que em minha defesa se contrariava coisa alguma, para que com o castigo público emendasse minha vida. (…) Que gente somos? Como andamos destarte? (…) Passara a ler um livro inteiro que trouxera num baú, explicando a compreensão, história que se compunha em verso, desculpando em ser a leitura tanta que pudesse causar fastio e já a conhecia eu de longe pela voz, que fizera passar o tempo, sem entender o sentido dos versos, mas acalentada pelo cantar, pelo tratado das coisas de que eu não entenderia, da compreensão das estrelas, do fim do oceano, do abismo, da língua dos padres, como uma cega levada pelo vento (MIRANDA, 1996, p.86).

Mais que isso, a autora usa a fala de Oribela para implicar um diálogo

silencioso com os poderes patriarcais e religiosos vigentes em sua época.

Miranda dá a voz à Oribela mas, por meio da protagonista, se ouvem também

os discursos de opressores e oprimidos que reconstroem – ficcionalmente – a

história brasileira. A estudiosa aponta ainda outros fatores que vão abrindo

espaço para novas propostas e teorias crítico-literárias do conceito de romance

histórico contemporâneo, formuladas e repensadas a partir do romance

histórico de Lukács.

Alguns dos traços ressaltados pela pesquisadora são: a subordinação da

reprodução mimética do período histórico à apresentação de idéias filosóficas,

a impossibilidade de conhecer tanto a verdade histórica quanto a realidade, a

distorção consciente da história - por omissões, anacronismos ou exageros –, a

ficcionalização de personagens históricos conhecidos, a presença da

metaficção ou de comentários do narrador, o uso da intertextualidade, a

variedade – dos temas abordados, das personagens e das formas –, e que a

obra traga uma ação que aconteceu numa época anterior ao seu autor, sendo

que a distância cronológica é dos itens que merece considerável atenção,

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negando, assim, à narrativa testemunhal, um caráter histórico (GÄRTNER,

2006).

Das características acima elencadas por Gärtner, nesta pesquisa, nos

ateremos à questão da ficcionalização de personagens históricos conhecidos,

da presença da metaficção e do uso da intertextualidade, fatores esses que

interessam particularmente à nossa análise, posto que Desmundo faz uso de

boa parte deles ao longo de toda a sua narrativa, sobretudo pela presença de

ilustres figuras históricas, pelo diálogo constante com a História, ou pelos

intertextos que remetem aos contos-de-fadas tradicionais ou mesmo a outras

obras literárias e religiosas.

Tomemos como exemplo este relato altamente imagético do romance,

no qual Oribela descreve o choque da chegada, insinuando o tratamento

recebido pelas mulheres objetificadas como alvo de desejo sexual ao retratar o

olhar invasivo dos homens e usar de metáfora para tratar dos órgãos sexuais,

trazendo, também, referências históricas à chegada dos degredados para

construção da Colônia e a confrontação com os índios:

A beber da água fria da fonte, em suas pedrarias a refrescar os que vinham ao desembarcadouro das gentes dos navios, à sombra das árvores e dos nossos véus pretos ficamos, que o sol parecia morar neste país, tanto que logo se fazia o primeiro raio da manhã já se via a roda vermelha de seus mistérios, avistara eu do convés ao nos acordar a Velha para o leite da cabra que tinha levado à nau um morador da cidade. As conversações nunca tinham fim, no que se ajuntaram pouco a pouco umas gentes do lugar, mal podia eu repousar da vigília sobre nós, os homens seus olhos lançavam, fôramos cargas de uma azêmola, boceta de marmelada, alguidar de mel sendo eles pontas de arnelas, canas agudas, flechas de arcos, espadas de pau tostado, lanças de arremesso, ferrões, açoites, feros animais, uma cutilada, uma estocada, tomando a cosso para nos possuir, o que lhes nascia de sua cobiça. Em suas mulas com poucos alforjes e borsoletes, suspiravam mais por carne branca de cristãs do que lobos por cordeiros. Gente natural da terra e do reino, num quieto rumor de quem se ajunta, muito atentos, fêmeas, machos, os da terra de cor vermelha, em camisas e sem barba segurando seus machados de ferro ou ferramentas da lavoura ou remos, de pestanas raspadas, cafres machos ou fêmeas, os machos armados de dar temor e os demais portugueses, barbados, bragas, camisas rotas, uns de botas, barretes, braguilhas sujas de tinta vermelha. Diziam que eram aquela gente tanoeiros, carvoeiros, caldeireiros, cavaqueiros, soldados, sangradores, pedreiros, ferreiros, calheiros, pescadores, lavradores, eiros, ores, ores e tudo o mais necessário para se fazer do mato uma cidade (MIRANDA, 1996, p.25).

Dessa forma, é possível perceber que o emprego na obra dos elementos

literários acima citados conduz o leitor atento a uma percepção mais crítica, a

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um questionamento e, a partir daí, à subversão da ótica histórica que

apreendemos ao longo da formação escolar que omite a mulher de suas

passagens e dela pouco ou nada cita. Novamente, a Literatura se faz

instrumento para propagar uma versão mais ampla dos fatos, conferindo o som

da palavra escrita aos que não puderam se expressar pela crueza muda da

História.

O conceito de romance histórico contemporâneo como proposto por

Gärtner – após revisão cuidadosa na teoria de Lukács – mostra, também,

profundas ligações com o que Linda Hutcheon chamou de Metaficção

Historiográfica, como veremos a seguir e de maneira mais detalhada.

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Capítulo II

Relata o silêncio de Oribela, no ardor dos seus desejos e

no fogo de sua rebeldia:

“(…) Disse Francisco de Albuquerque. Desterra da tua mente teus segredos. A franqueza é nobre e a amizade é a capa dos desamparados, mulher desassossegada. Diz logo. Que fogo é este que te arça? Se tens amor deixado em outras terras diz agora. E disse eu. Meu silêncio te dirá o que meu coração em si cala. (...) Tentada dos espíritos dos ventos, dos cabelos desgrenhados, dos lírios de orvalho. Porque Deus, com seus juízos ocultos, ordena as coisas muito suavemente. E o esperei, com a faca na mão.”

(MIRANDA, 1996, p. 74-170)

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CAPÍTULO II

A METAFICÇÃO HISTORIOGRÁFICA E AS VOZES SUBVERSIVAS

2.1. A Literatura: ampliar de narrativas e possibilidades de leituras

Como já exposto anteriormente neste trabalho, o compromisso literário é

com a ficção, e não com uma recriação exata e detalhada de passagens e

cenários históricos.

Privilegiando a singularidade e a subjetividade do olhar de cada

personagem, a arte pode propor uma nova leitura do mundo, ou de velhos

fatos, que, repetidos à exaustão, entraram para os anais da História como

verdades absolutas, quando, na verdade, são também narrativas passíveis de

análises e questionamentos.

O discurso poético, entretanto, com a liberdade de criação e as doses de

imaginação que lhe são inatas, joga luz sobre outras possibilidades e

sensibiliza para os ecos de novas vozes.

Neste capítulo, propomos uma reflexão da teoria da pesquisadora Linda

Hutcheon, que, ao pensar a simbiótica estabelecida entre as narrativas

históricas e literárias mostra, também, como a segunda pode desestabilizar a

primeira ao compartilhar com o leitor as vozes subversivas esquecidas —

ignoradas? — pelos discursos oficiais.

2.2. A Metaficção Historiográfica e as vozes subversivas

Por muito tempo pertencentes à mesma árvore de conhecimentos

científicos, História e Literatura, em dado momento, foram separadas em ramos

distintos. Para Linda Hutcheon, entretanto, as duas áreas conservam

semelhanças entre si:

E as recentes leituras críticas da história e da ficção têm se concentrado mais naquilo que as duas formas de escrita têm em comum do que em suas diferenças. Considera-se que as duas obtêm suas forças a partir da verossimilhança, mais do que a partir de

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qualquer verdade objetiva; as duas são identificadas como construtos lingüísticos, altamente convencionalizadas em suas formas narrativas, e nada transparentes em termos de linguagem ou de estrutura; e parecem ser igualmente intertextuais, desenvolvendo os textos do passado com sua própria textualidade complexa. Mas esses também são os ensinamentos implícitos da metaficção historiográfica (HUTCHEON, 1991, p.141).

Se o discurso histórico é praticamente o eco uníssono do homem

branco, a quem coube narrá-lo, o literário, por sua vez, dá ao autor a opção de

ampliar seu leque para dar voz àqueles que não foram ouvidos: os que foram

silenciados pelos poderes, pelos interesses, pela vida, pela religião ou por

circunstâncias diversas.

A Literatura ressoa para, talvez, reparar os erros surdos e mudos da

História, para nos apresentar um novo ponto de vista ao trazer novas vozes

aos fatos, para deixar falar os que foram calados. Ela se coloca como um

instrumento que permite aos excluídos contarem a sua versão. No caso do

Brasil, os negros africanos escravizados, os índios nativos destemidos e as

mulheres – negras, índias e brancas – oprimidas pela força brutal do processo

de colonização. Mas eles, todos eles, estavam lá. Aqui. E fomos privados dos

seus olhares e do som das suas palavras escritas.

Tomamos por oficial e real um discurso eufônico e, entretanto, sabemos

da impossibilidade do conhecimento da verdade absoluta na História. Temos a

noção precisa de que é, portanto, impossível verificar os fatos já passados.

Como, então, não questioná-los?

Voltando a sua análise para a relação simbiótica entre as duas

disciplinas – História e Literatura –, Hutcheon usa a obra Shame (1983), do

autor britânico de origem indiana Salman Rushdie, para discutir essa questão:

Mesmo assim, o paradoxo subsiste: em Shame, ficamos sabendo que, quando o Paquistão foi formado, a história da Índia teve de ser escrita a partir do passado paquistanês. Mas, quem realizou esse trabalho? A história foi reescrita por imigrantes, em urdu e inglês, as línguas importadas. Como diz o narrador, ele é forçado - pela história - a escrever em inglês (HUTCHEON, 1991, p.145).

Particularidades acerca das colonizações à parte, é significativa a sua

reflexão porque podemos, a partir dela, pensar as próprias idiossincrasias na

narração de nossa história. Aquela, excludente, que nos foi ensinada como

uma verdade incontestável, como fato que não admite argumentos. Talvez as

principais semelhanças entre as narrativas históricas destas nações sejam,

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justamente, o narrador e a língua européia na qual foi contada: em ambas ecoa

a voz do homem eurocêntrico, conquistador, vencedor das batalhas, que

sobreviveu à seleção natural e, portanto, dominou o discurso no idioma que lhe

convinha. Assim, insistimos: sendo ele o colonizador, sua verdade emergiria

sobre todas as outras e, então, o eco da singularidade em que está desenhada

a História.

Mas há, em nosso caso, também uma bonita subversão da própria

disciplina. Mary Del Priore, historiadora, focou os seus estudos na mulher; em

sua ampla pesquisa, buscou e encontrou respostas menos cômodas quanto às

condições que permeavam o feminino na época do Brasil colonial, e, com isso,

expôs um retrato pouco conhecido sobre as nossas primeiras habitantes e o

imaginário que as cercava. Em seu trabalho, ela apresenta índices científicos

de que a mulher veio para cumprir um papel designado – esposa e mãe – e

para vestir as carapuças da Igreja e do Estado, em suas relações

continuamente simbióticas e retroalimentares de fortalecimento de poderes.

Se ao patriarcalismo do colonizador interessava um calar de vozes

dissonantes e um uníssono quanto ao discurso que seria acatado e

reproduzido como oficial, Del Priore (2009) o desnuda e nos convida a ler uma

nova narrativa que, a rigor acadêmico, é, também, oficial:

Quero sublinhar que a condição feminina fabricava-se, então, marcada pelo caráter exploratório da empresa portuguesa no Brasil, do século XVI ao XVIII. O modelo escravista de exportação vincava as relações de gênero. (…) Os objetivos da empreitada colonial estimulavam os homens - padres, governantes, cientistas - a estabelecerem um papel identificado com o esforço de colonização para todas as mulheres indiscriminadamente. Este papel deveria não só refletir a participação feminina na conquista ultramarina, mas também a sua atividade na defesa do catolicismo contra a difusão da Reforma protestante. Mais ainda, deveria espelhar a presença feminina na consolidação de um projeto demográfico que preenchesse os vazios da terra recém-descoberta (DEL PRIORE, 2009, p. 22).

E não foi isso que fez Ana Miranda em sua obra? Ainda que aclare que o

seu compromisso é, sobretudo, com o discurso poético, a autora cria seu

enredo baseada em extensa pesquisa histórica – que pode ser encontrada no

próprio livro – que, literariamente, se entrelaça ao discurso de Del Priore acima

transposto. Oribela, expatriada de sua terra pelo poder político, desembarcou

no Brasil para se casar – servindo aos sacramentos e dogmas católicos –, parir

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filhos brancos no povoamento do Brasil e reforçar as posturas importadas das

civilizações europeias:

Em seu propósito, o bispo nos abençoou com as mãos e nos fez dizer promessa de fidelidade, salvou-nos com uma cruz, com mostras e sinais de fé. Mandou cada mulher dar a mão a seu homem. Os esposos têm poder sobre as esposas e suas filhas, mas que não tenham para si que lhes pertençam as filhas como mulheres, nem as mulheres dos vizinhos como suas e nunca usar delas, a terem respeito às filhas das vizinhas e às filhas das filhas, que as chamem todas de filhas e nessa conta as tenham e não pecar de luxúria, nem os pecados conhecidos. Ali todos eram filhos de Deus, fiéis cordeiros do papa debaixo de cujos pés estavam submetidas todas as coroas que governavam a terra, acima dele só Deus, que lhe dera sagrado cetro de papismo e os reis infiéis seriam esmagados nas trilhas de seu calcanhar, que os vassalos não ousassem boquejar nem alevantar as vozes para nenhum padre de Deus, as insígnias em suas mãos significavam justiça e misericórdia, o que devia reinar naquele canto. Que ajuntassem os da mão direita com as da mão esquerda, fossem em suas vidas, jaezados de caridade, pasmados da majestade do matrimônio divino. A fazer filhos abençoados de alvura na pele (MIRANDA, 1996, p. 73).

Após a leitura do excerto transcrito, retomamos a reflexão de Hutcheon,

ao afirmar que a ficção e a História também se encontram nos intertextos do

romance e depois deixam indefinidas as linhas de separação entre uma e

outra.

Vemos isso a todo tempo em Desmundo: sabemos, claramente, tratar-se

de uma obra literária – e, portanto, ficcional – mas é impossível escapar às

referências históricas lidas, muitas vezes, nas entrelinhas; outras, quando do

uso de personagens reais – o Bispo Sardinha, por exemplo – são notáveis e

explícitas. Não há em Ana Miranda, evidentemente, a vontade de reescrever a

história brasileira, mas sim de oferecer uma narrativa sob outro ponto de vista.

Como bem coloca Hutcheon (1991), um desmarginalizar literário por meio da

confrontação com o histórico. A ideia implícita de que cabe à Literatura acatar

outras vozes porque o seu compromisso é, sobretudo, com a arte e as

diferentes perspectivas, abrindo, dessa forma, o leque do discurso e ampliando

as possibilidades de uma leitura crítica (ficcional ou da própria realidade). Ouvir

novos sons não exclui o valor primordial da verossimilhança do romance, que

tem no realismo a sua raiz (WATT, 2010).

Outro estudioso que acata a visão hegeliana-marxista do poder da

História e seus resultados na formação humana é o romancista e crítico literário

Umberto Eco. Também citado por Hutcheon, o autor aponta que os romances

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históricos são capazes de identificar no passado as causas para o presente e

igualmente aptos a investigar o processo pelo qual essas causas,

gradualmente, produziram seus efeitos. Dessa forma, o crítico literário acaba

por conferir mais um exemplo da relação entre estas disciplinas. E, nestas

relações, muitas vezes repousa a dificuldade em separá-las, posto que são

tênues os seus limites.

Mais uma vez, pode-se observar na colocação de Eco uma sintonia com

a obra de Ana Miranda de que aqui tratamos. Buscando embasamento em Del

Priore (2009):

Juíza da sexualidade masculina, a mulher era ainda estigmatizada com a pecha da insaciabilidade. Seu sexo assemelhava-se a uma voragem, um rodamoinho a sugar desejos e fraquezas masculinas. Unindo, portanto, o horrendo e o fascinante, a atitude ameaçadora da mulher obrigava o homem a adestrá-la. Seria impossível conviver impunemente com tanto perigo, com tal demônio em forma de gente. Considerada também um ‘diabo doméstico’, ela fora pintada na literatura da época clássica como um poço de vícios digno dos filhos das trevas: enganadora, melíflua, concupiscente, fétida, infecta, gastadora, desbocada, esta mulher sem qualidades foi cantada em prosa e verso no período sobre o qual discorre este trabalho (DEL PRIORE, 2009, p. 33).

É constante esta mesma realidade, porém, agora, enredada na ficção de

Desmundo: narrada por uma mulher a quem fora designado o silêncio histórico

– a voz que a literatura empreendeu. Logo nas primeiras páginas do romance,

a presença de mulheres embarcadas em uma nau era um claro sinônimo de

mau agouro, como descrito por Oribela:

Na Senhora Inês, de velas rotas, muitas avarias, lançados os ferros a canalha de marinheiros não esperou, tirou seus barretes e ao chão no convés os perros gritaram desatinados, uns muito para rir, outros em doidas lágrimas, com as mãos para o céu louvaram a Deus chegar vivos, que não esperavam, em naus, mulheres são mau agouro, em oceanos, fêmeas são baús cheios de pedras muito grandes e pesados, sem serventia nem a ratos a não ser turbar as vistas, nausear as tripas, alevantar as mãos em súplicas e trombetear por causa alguma, só pelo prazer, feito os demos. E fôramos sete mancebas, umas sete sombras negras alembrando os sete pecados. Qué? (MIRANDA, 1996, p.14).

Em seu decorrer, o romance nos expõe a culpa das brancas sobre seus

corpos em oposição às índias, que lidavam com a nudez de outra maneira.

Entretanto, como toda nudez tende a ser castigada, essas mesmas índias eram

vítimas dos frequentes abusos sexuais dos homens brancos que se serviam

delas e dos que, da mesma tribo, as vendiam como escravas. Em um primeiro

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momento, são as índias – não-cristãs – que trazem os chifres metafóricos

desses diabos encarnados em corpos femininos. Observemos mais uma

passagem do diário de Oribela:

Bugres da terra vendiam suas fêmeas nuas, mas assim que veio um padre da Companhia na rua as esconderam, não dos outros padres. Por meus brios e horrores, não despreguei os olhares das naturais, sem defeitos de natureza que lhes pudessem pôr e os cabelos da cabeça como se forrados de martas, não pude deixar de levar o olhar a suas vergonhas em cima, como embaixo, sabendo ser assim também eu, era como fora eu a desnudada, a ver em um espelho. Nunca fora dito haver mulheres assim, nem pudera inventar em minhas ignorâncias. Que nunca houvera mulher nenhuma nesta terra. Quem então há de parir naquelas terras? Os machos, por ordem de Deus. (…) E se as havia, mulheres naturais, até eram graciosas em seus despudores, florescidas, feito aves, de pés embicados para dentro como duas naus a abalroar e fedendo igualmente aos machos, por um tipo de óleo que se esfregavam, semelhando a podre, a estrume, a gruta e de quem diziam dar uma febre muito maligna se as fodessem nos dias de lua, quando lhes havia sob os cabelos uns cornos pequenos. E vi um extravagante dentre eles, a se encostar numa libidinosa que lhe fez inchar a parte, tanto que parecia um bruto (MIRANDA, 1996, p. 39).

A propósito do que se pode ler nas entrelinhas de Desmundo e que se

assemelha à passagem acima transcrita – tendo suas diferenças baseadas

sobretudo no subjetivismo de cada um dos narradores –, trazemos um excerto

de uma carta do Padre Manoel da Nóbrega (datada de agosto de 1549). A

carta foi escrita e enviada a Portugal no primeiro ano dos jesuítas entre os

povos nativos brasileiros, em seu trabalho de catequese:

E promete-lhes larga vida, e que as velhas se hão-de tornar moças, e as filhas que as dêem a quem quiserem; e outras coisas semelhantes lhes diz e promete com que os engana. De maneira que crêem haver dentro da cabaça alguma coisa santa e divina, que lhes diz aquelas coisas as quais crêem.De maneira que crêem haver dentro da cabaça alguma coisa santa e divina, que lhes diz aquelas coisas as quais crêem. E acabando de falar o feiticeiro, começam a tremer, principalmente as mulheres, com grandes tremores em seu corpo, que parecem endemoninhadas, como de certo o são, deitando-se em terra e escumando pelas bocas; e nisto lhes persuade o feiticeiro, que então lhes entra a santidade, e a quem isto não faz, têm-lho o mal. E depois lhes oferecem muitas coisas (NÓBREGA apud LEITE, 1955, p.62).

Triste é, pois, perceber que segue igualmente contemporâneo tanto o

retrato histórico de Del Priore quanto a ficção de Miranda – além, é claro, do

preconceito religioso explícito de Nóbrega –, tratando da condição da mulher

na Colônia. Ainda que mudem as personagens e se estendam os anos, somos

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todos resultados de processos históricos aparentemente inacabáveis. Contudo,

cíclicos.

Ao expor seu pensamento acerca da metaficção historiográfica enquanto

método de leitura crítica em Poética do pós-modernismo, Linda Hutcheon

retoma o romance histórico pensado por György Lukács – e já previamente

exposto – no sentido de compará-los e estabelecer as três principais diferenças

entre as duas teorias, a saber: a atenção dada aos detalhes, a dimensão

atribuída por cada corrente às figuras históricas presentes no romance, e o

protagonista vivificado como um tipo para um e como o excêntrico periférico

para a outra. É este último traço distintivo que será o foco da presente

pesquisa, posto que o que interessa em nossa análise é o sujeito. Dessa

forma, Hutchenon afirma:

Portanto, o protagonista deveria ser um tipo, uma síntese do geral e do particular, de 'todas as determinantes essenciais em termos sociais e humanos'. A partir dessa definição, fica claro que os protagonistas da metaficção historiográfica podem ser tudo, menos tipos propriamente ditos: são os excêntricos, os marginalizados, as figuras periféricas da história ficcional. (…) A metaficção historiográfica adota uma ideologia pós-moderna de pluralidade e reconhecimento da diferença; o 'tipo' tem poucas funções, exceto como algo a ser atacado com ironia. Não existe nenhuma noção de universalidade cultural (HUTCHEON, 1991, p.151).

As distinções teóricas entre Lukács e Hutcheon, no caso de Desmundo,

convergem e se complementam se observarmos a trajetória da protagonista

com um olhar mais meticuloso e cuidadoso, buscando indícios literários que

respaldem a nossa hipótese: Oribela é, como já discutido, tanto a moça típica

de seu tempo quanto um sujeito pertencente ao grupo singular dos

marginalizados pela História.

Vejamos: ao chegar ao Brasil, era o medo que nela fazia morada. O

silêncio imposto e acatado. A prática da coerção espiritual e da ignorância

científica como dogma eclesiástico era por nossa heroína respeitada. O horror

ao desconjuro, à excomunhão, ao pecado e a tudo o mais que não fosse

cristão. A moça pobre e comum de sua época, como todas as outras,

igualmente sujeita às forças patriarcais. O tipo mediano de Lukács. O romance

transcorre e Oribela já quebra o primeiro paradigma ao recusar o casamento,

cuspindo no rosto daquele que era o seu noivo destinado. O tempo jamais lhe é

generoso e, através dele, no transcorrer do romance, percebemos que o

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desmundo desconstruiu Oribela: a rebeldia diante do casamento forçado, a

paixão pelo Mouro, a sexualidade revelada, a nudez não mais castigada, a

crueldade dos dias e o calor das noites a transformaram na protagonista que se

evidencia na teoria de Hutcheon.

Para reforçar nossa ideia, retomemos a passagem de seu casamento.

Quando, sem opção diante da arbitrariedade de ser arrancada de seu país e

expatriada para o Brasil para casar e povoar a Colônia com seus filhos brancos

– afinal, uma mulher não podia querer para si a autonomia diante da própria

vida –, ela encarna o tipo comum e mediano de Lukács. Ao desembarcar,

recusa o casamento. Como primeiro ato, cospe no rosto do noivo. Já pela

descrição do padre, se nota a rebeldia – o fogo recorrente – de Oribela, que

tem opiniões e, mais grave do que a recusa a um marido que não escolheu, era

a negação ao sobrinho do governador. Além, do valor de sua virgindade e de

que sua beleza valia o trabalho de domesticá-la. Sua suavidade mulheril. Por

sua transgressão, os castigos verbais e físicos impostos pelo padre, e a

retomada da ideia de que a mulher não podia ser uma coisa da feitura de Deus:

Pondo três vezes o joelho no chão rezou a Deus e agradeceu as mulheres que chegavam nesta terra para ajudar nos trabalhos, para fecundar, parir, assim como cristãs e guardar todo o cabedal. A saudação fora até formosa nas palavras mas não sei se falsas. (…) Qué? Vou-me. Aquele era sobrinho da mulher do governador, feito fosse o sobrinho do irmão do rei, feito fosse fidalgo, quem só se aconselha só se depena. Um senhor nesse ermo estrangeiro. Disse o padre ser eu pura e virgem donzela criada em mosteiro de freiras, à luz da absconsa, que podia passar a papinhas de pão relado, leite fresco coado e uns alfinetinhos, de pele rosa bela e olhos madressilva, ainda a florescer o corpo, de alma que se podia amansar como se faz a um cavalo, se era defeituosa, deixasse a pão e água que me ia alimpar, como me houvera ferrado para vender por moura e ferro no pé. Valeria esta em ouro seu peso, que a pele desliza, descem acetinados os cachos. E que não fazia mal ser eu tão cheia de diversas opiniões e bravezas, minhas vistas eram tão admiráveis quanto as estrelas do céu e saberia ele se fazer obedecer com reverência e acatamento à sua humilde pessoa. (…) Reparasse o homem na formosura de minha feição, na suavidade mulheril e esquecesse da rebeldia, tudo o mais era infalível. O homem me veio a mirar e no rosto lhe cuspi. Oh como és parva. Uma perdida! Decho que praga, tão bom homem parece ele e tu uma frouxa, rabugenta, pé-de-ferro, regateira baça, demoninhada, pardeus, forte birra é esta que tomas contigo, ora vai-te, eramá, como te amofinas, mexeriqueira e sonsa, que rosto de mau pesar para casarem contigo, tinhosa, que cheiras a raposa, rasto de burra, torta defumada. E d'arrancada deu com uma vara. Disse de mim o padre tantos males que hei vergonha de os pensar em altas vozes, que eu era sem palavra, sem promessa e sem coração. No sacrário me fez em joelhos rezar por perdão de minha rebeldia, me deu pancadas nas mãos até ver sangue, que não doeu tanto e foi murmurar mais castigos com outros padres. Tornei à

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cela, fosse a uma cova para ser enterrada viva não estaria eu tão cara de coruja, com nojo muito verdadeiro e suspiros verdadeiros. (…) Pensava eu estar indo prisioneira por cuspir no rosto de um principal, era de chorar, mas antes queria ser presa e açoitada do que casar com aquele (MIRANDA, 1996, p. 55-58).

Após a passagem acima transcrita, à revelia, Oribela é convencida a

aceitar o destino, pela Velha e por outra personagem que representava o poder

político igualmente opressor: a mulher do governador, Dona Brites de

Albuquerque (irmã de sua futura sogra, Dona Branca). Assim se vê uma

convergência entre as teorias de Lukács e Hutcheon em Desmundo. Para

além, pode-se perceber, também, uma protagonista em crise: ela é o que tem

que ser, mas também o que é de fato. E essa alteridade é perceptível ao longo

de toda a obra. Oribela é de difícil definição porque é muitas. Porque se

desdobra, multifacetada.

Voltando ao romance, já casada, recusa-se à entrega total de si à

relação com Francisco de Albuquerque e à vida que não fora por ela planejada.

Ao contrário, personifica o inimaginável à mulher de seu tempo: foge. Por

várias vezes. E, em uma delas, comete o desatino de ir contra a sua formação

cristã: ao apaixonar-se por Ximeno Dias – um mouro – torna-se adúltera.

Pecados, muitos deles. Na ruptura dos padrões, torna-se a marginalizada

teorizada por Hutcheon; e essa postura dissonante é recorrente e facilmente

lida em sua trajetória. Muito interessante é observar como Oribela, em sua

jornada e crescimento pessoal, personifica literariamente duas correntes a

princípio divergentes. Mas a grandeza artística da literatura extrapola a teoria, e

Desmundo nos apresenta isso.

Chegamos, então, a um ponto de nosso estudo que se revela dos mais

desafiadores. Se em Lukács o romance histórico narrava o microcosmo do

homem típico de seu tempo sem içar bandeiras ideológicas, em Hutcheon

observamos um contraponto: ela sugere a autorreflexividade e a

conscientização da necessidade latente de questionar as versões assumidas

como verdadeiras pela História. As pesquisadoras Mirele Jacomel e Marisa

Silva, da Universidade Estadual de Maringá, assim expõem seu entendimento

da teoria de Linda Hutcheon:

O conceito de metaficção historiográfica, conforme discute Linda Hutcheon (1991), tem por característica apropriar-se de personagens e/ou acontecimentos históricos sob a ordem da problematização dos

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fatos concebidos como 'verdadeiros'. Isto é, o que diferencia a metaficção historiográfica de um romance histórico é a auto- reflexão causada pelo questionamento das 'verdades históricas’. A literatura, nessa perspectiva problematizadora da história, possui, sem dúvidas, um esquema de referências ao passado. O resgate de um acontecimento feito através da obra de arte sempre gera polêmica, pois nessa ‘visita' ao passado podem-se descobrir 'verdades' até então não reveladas, devido às relações de interesse e poder de ‘grupos’ conservadores (JACOMEL e SILVA, 2009, p.740).

A partir dessa reflexão, podemos aprofundar a elaboração da nossa: no

discurso oficial, não nos é aclarado que papel coube à mulher. É como se ela

não tivesse sido parte integrante e indissociável do período histórico a que aqui

nos referimos. A explicação passada é de que a mulher veio até terras

brasileiras sabe-se lá como ou porquê, e que teve aqui uma vida serena e sem

transtornos, personificadas na imagem de seres plácidos. Não conhecemos as

motivações e princípios desse deslocamento transatlântico da mulher branca;

como ela foi usada pela Igreja e pelo Estado para reafirmar seus poderes

eclesiásticos e sua expansão mercantil, na busca pela colonização da pele

branca em um Brasil originalmente de índios e, posteriormente, de negros

escravizados.

A partir do momento em que Oribela inicia a narrativa literária de sua

trajetória, somos confrontados com verdades históricas tão dolorosas quanto

possíveis: a mulher a quem foram negados os arreios do próprio destino se

torna, sobretudo, instrumento dos poderes patriarcais de seu tempo para

fortalecer dogmas religiosos e cumprir o papel de mãe e esposa. Arrancada de

seu lugar de origem e onde gostaria de ter permanecido, a personagem é

obrigada a viver uma vida que jamais escolheu: uma existência que significava

cumprir papéis que ela não escreveu.

O discurso histórico oficial, insistimos, atenua o sangue derramado e

retrata um processo de colonização relativamente tranquilo; mas, por meio da

leitura de Desmundo, somos alertados para a constante guerra entre brancos –

que recebiam armas poderosas enviadas pelo rei – e índios, que resistiam

como podiam ao aos saques e às apropriações, aos ataques a suas tribos e à

captura de sua gente. Esses mesmos livros oficiais excluem o discurso

feminino ou a presença da mulher como agente ativo na construção da nossa

história. A Literatura de Ana Miranda subverte e corrompe este discurso ao

romper o silêncio da mulher em face à narrativa de Oribela – e é sob este olhar

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microscópico que se pode fazer a (des)leitura do discurso histórico oficial. Com

a corrupção literária do tradicionalismo narrativo histórico, podemos repensar e

conhecer um pouco do papel social ocupado pela mulher em um Brasil que

ainda não tinha identidade de nação.

De certo modo, pelo mesmo viés ficcional, podemos compreender um

pouco mais da (des)construção feminina neste Brasil contemporâneo: ao

observar a trajetória de Oribela, pode-se percebê-la muitas vezes como um

espelho do passado na mulher do presente, em suas dores e desafios.

Se fomos – todos nós – privados dessa narrativa histórica, temos a

possibilidade de nos voltar à Literatura para conhecê-la. Tendo em vista os

relatos ficcionais de Oribela, encontramos afinidades com a pesquisa posterior

de Del Priore – igualmente excluída dos livros de História a que tivemos acesso

em nossa vida escolar – e podemos questionar a leitura simplista da história

com a qual fomos pedagogicamente educados. Ressaltamos aqui, entretanto,

que ainda que seja simplista na exposição do que traz como fatos, essa leitura

foi bem pensada para servir a um fim e, por isso mesmo, omite o que não lhe

interessa, propositadamente. É plausível a percepção dos espaços e

(des)lugares que (des)ocupamos como realidades e consequências do próprio

processo de colonização a que fomos submetidos. Esta colocação de Del

Priore (2009) é parte imprescindível da reflexão que nos cabe discutir nesse

trabalho:

O território do feminino, como aqui será visto, sempre esteve longe de ser um quadro de serenidade e mesmice, e mostrou-se ele também, ao longo do período colonial, borbulhante de conflitos, diferenças e complementaridades. Será, portanto, à luz deste múltiplo caráter colonial, feito de heranças interculturais, das marcas do escravismo e, sobretudo, do projeto normatizador da Metrópole, que irei abordar a condição feminina (DEL PRIORE, 2009, p. 23).

Ao se fazer a leitura da página 142 de Desmundo, podemos observar

que esta é uma das únicas passagens em que se faz referência ao escravismo

da mulher negra. Em sua narrativa, Oribela pouco cita, aliás, a escravidão

africana de modo geral, posto que a prática havia começado recentemente e

não era grande o contingente de negros. A preocupação é mais voltada à

relação que estabeleceu com as índias. É interessante pensar que, à primeira

vista, não havia um confronto histórico a ser explorado com as negras porque

estas já vieram para a Colônia na condição da submissão escravista, enquanto

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que com as índias essa tensão poderia ser iminente, já que os índios se

rebelaram antes pela condição de libertos embora, evidentemente, muitos

tenham sido capturados e escravizados à semelhança dos negros.

A leitura do relato acima citado de Oribela suscita, portanto, o

questionamento de como podem ter se dado os primeiros contatos entre as

mulheres brancas e as índias, já que pelos livros de História oficiais essas

relações são estabelecidas como se só existisse o gênero masculino: o branco

opressor, o negro escravizado e o índio injustiçado. As relações femininas

expostas pelos relatos oficiais eram as estabelecidas entre as brancas e as

negras e, ainda assim, superficialmente, posto que as citações se referem

basicamente a suas condições de senhoras e mucamas, não havendo,

portanto, o aprofundamento necessário para um retrato histórico acurado.

Apontamos também que as índias – mulheres – foram igualmente excluídas

desses relatos oficiais, aumentando, então, a nossa ignorância quanto à vida

feminina na Colônia.

É importante lembrar que, em Hutcheon, a metaficção historiográfica

enquanto procedimento estabelece uma ordem totalizante para, em seguida,

contestá-la com sua provisoriedade, intertextualidade e fragmentação radicais.

Isto posto, não é nada absurdo afirmar que esse método de leitura pode ser

usado para ampliar as possibilidades de entendimento de Desmundo.

Ao primeiro contato, parece um romance de difícil compreensão pela

escolha da linguagem, que traz os usos arcaicos da língua portuguesa; depois,

a pluralidade de vozes transcritas em diário parecem questionar a própria

forma. O uso constante de intertextualidades, de ideias esquecidas

propositadamente nas entrelinhas e as referências históricas requerem, sem

dúvida, um olhar mais atento de quem o lê. Quando compreendido, ao menos

parcialmente, a autorreflexão é inevitável.

A esse respeito, o poeta e crítico literário Ezra Pound (2006) fez uma

interessante análise: para ele, o autor dispõe de três recursos para

potencializar a linguagem: a fanopeia, a melopeia e a logopeia. A primeira

refere-se à projeção do objeto – fixo ou em movimento – na imaginação visual.

Na melopeia, há a produção de correlações emocionais pelo som e pelo ritmo

da fala (bastante observada, por exemplo, na poesia). E, por fim, o que aqui

nos interessa, a logopeia, que é compreendida como a produção dos efeitos

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combinados da fanopeia e da melopeia e que acaba por estimular associações

intelectuais e emocionais que permanecem na consciência do receptor pelas

palavras e grupos de palavras quando bem empregados. Em nosso caso, a

reflexão que deixa o romance e que nos leva a contestar as “verdades

absolutas” da História – e o incômodo latente que pouco ou nada conhecemos

das nossas primeiras habitantes.

Para Hutcheon (1991):

Os romances pós-modernos levantam (…) diversas questões específicas que merecem um estudo mais detalhado: questões que giram em torno da natureza da identidade e da subjetividade: a questão da referência e da representação; a natureza intertextual do passado; e as implicações ideológicas do ato de escrever sobre a história. (…) As metaficções historiográficas parecem privilegiar duas formas de narração, que problematizam toda a noção de subjetividade: os múltiplos pontos de vista ou um narrador declaradamente onipotente. No entanto, não encontramos em nenhuma dessas formas um indivíduo confiante em sua capacidade de conhecer o passado com um mínimo de certeza. Isso não é uma transcendência em relação à história, mas sim uma inserção problematizada da subjetividade na história (HUTCHEON, 1991, p.156).

A citação acima é bastante significativa no sentido de que, através dela,

podemos afirmar que Desmundo se apresenta em ambas as formas: ainda que

tenha Oribela como narradora onipotente – por tratar-se, afinal, de um

romance-diário – por meio de sua narrativa encontramos múltiplas vozes e,

com elas, os pontos de vista tão plurais acerca de um mesmo fato histórico (o

que não se pode, todavia, ser lido como polifonia, posto que essas vozes não

são igualmente protagonistas ou trazem a mesma força – a de Oribela,

invariavelmente, se sobressai entre as demais).

Por se tratar declaradamente de um sujeito, estamos, evidentemente,

lidando com a subjetividade: ela, aqui, é precisamente o que diferencia a

narrativa ficcional do discurso histórico oficial, embora a suposta imparcialidade

do segundo seja tão amplamente questionável quanto discutível.

Na colocação de Hutcheon, é possível, da mesma maneira, ler um

indicativo de convergência teórica com Gärtner (2006), quando esta numerou

em sua tese de doutorado alguns dos elementos literários do romance histórico

contemporâneo, os quais apresentamos no capítulo I do presente trabalho e

agora retomamos para embasar a nossa análise.

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Na afinidade teórica entre as duas pesquisadoras, cujas propostas

dialogam, se sobressaem como recursos os intertextos, os quais, usados ao

longo do romance, intercalam os discursos ficcionais e históricos com objetivo

de incorporar o passado no texto contemporâneo. Para exemplificar

literariamente seu pensamento, Hutcheon pensa na obra A Maggot (1985), de

John Fowles. Em sua opinião, o romance britânico expõe diversas referências

e alusões ao drama do século XVIII e uma mistura constante entre real e

ficcional. Essa alternância e mescla entre os discursos históricos e literários é

um elemento destacado na teoria de Hutcheon.

Trazendo essa reflexão para Desmundo, podemos notar, além das

claras referências a textos históricos, um diálogo implícito com os contos-de-

fadas – indicando, assim, a sobreposição de gêneros como parte da proposta

dos romances contemporâneos –, com o discurso religioso em forma de

parábolas bíblicas e nas personagens do clero e, com menos frequência, com

a própria Literatura: o poético da autora se entrelaça a todos esses outros

elementos.

Tornemos como exemplo a intertextualidade com os contos-de-fadas: o

uso recorrente das personagens do imaginário das histórias infantis (o rei, a

rainha, a bruxa, o feiticeiro, a Princesa Mar etc.) e o uso da palavra reino,

designando algo além da nomenclatura histórica de Portugal, mas o ambiente

onde se desenvolvem muitos desses contos.

Gostaríamos, então, de propor a leitura de um dos excertos do romance,

no qual Oribela descreve Dona Branca de Albuquerque, mãe de Francisco, e

personagem subversiva a seu modo. A sogra era por ela vista como uma

Bruxa, sugerindo assim mais uma personagem dos contos infantis tradicionais

e, ao mesmo tempo, o reforçar da imagem negativa associada à mulher –

conhecedora dos mistérios, além do estigma da sensualidade como lascívia –

pelo dogma católico:

Acabadas as conversações fomos a uma mesa alumiada com círio de igreja, onde havia uma mulher, os cabelos feito tições com a alvura das cinzas, de mais idade que o rei, que no aspecto e na gravidade de sua pessoa mostrava bem ser quem era, a qual vendo da maneira que estava eu pasmada me mandou tomar lugar e disse. Comei vossoutros. Partiu das comidas e serviu, mulher fria como se de neve fora feita e assim mesmo alva, de olhos longos por nós, trespassada. (…) Que de mim diziam, sem contento, que de mim arrazoavam em sins e nãos, mais em nãos que em sins da parte dela, dona Branca,

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que seu rosto gelado asseverou. (…) Tinha ela muitos olhos, de mãe, de abadessa, de falcão, os olhos de inquirir o mais fundo, em seu calado modo via por dentro das almas, como fosse uma sibila e devia de saber ver nas panelas de água, nas pedras de cristal. Sabia feitiços? Que lhe fora outorgado um poder do céu e da terra e podia olhar para os raios do sol sem cegar suas vistas, sua alma se desfazia do corpo e avoava pelos céus até a cidade, cada noite, a visitar a irmã, ou até o reino, onde bailava nas festas ou via do lado da rainha os autos e sabia do que se passava nas câmaras do rei, onde se decidiam as guerras e as moedas, os destinos das armadas e tudo o mais. Sabia ela fazer partos, rezas, sabia cuidar das deleitações do corpo, sabia dizer quando era anjo que se tornou carne, ou diabo em corpo de mulher, que a ouvisse eu, era de bom entendimento, bom conhecimento do evangelho, sabia prosar com as cegonhas e com as vacas tinha parte, tirar as quenturas do estômago de mulher e tirar de mulher a sensualidade (MIRANDA, 1996, p.97-99).

Com menos frequência, porém sob a demanda de uma leitura atenta,

Desmundo traz uma intertextualidade com a própria ficção literária na narrativa

de Oribela. Exemplo do imbricamento contínuo dos discursos intertextuais

proposto por Hutcheon se dá quando a protagonista está sendo estuprada por

Estevão, um dos marinheiros que prometeu levá-la de volta a Portugal, em uma

de suas tentativas de fuga. Em seu desespero, ela clama por Santa Joana

Valdez, personagem usada pelo dramaturgo Gil Vicente em sua alegoria

dramática Auto da Barca do Inferno (1531):

Alembra? Trato feito, trato cumprido, que somos de honra e honestos no fazer. Confiei em ti e aqui estou. Trouxe vossa mercê o ouro, senhora? Estendi as moedas roubadas, mas meio, pois minhas eram de direito, em parte, que sou esposa e as dei. Não soube por que ele fez sinal. Senti uns passos e atrás na areia vinham dois marujos, com seus barretes, em um modo de arremeter e saltei, corri com toda a ligeireza de minhas pernas, mas logo me alcançaram, na areia rasgaram a minha camisa e se lançaram sobre mim, se servindo um como esposo, outro me agarrando as mãos. Por amor de Deus, não me faças mal, eu pobre mulher te peço com lágrimas prostrada, que não arranques tua força contra minha fraqueza porque sou mulher que não me sei defender, nem sei mais que chorar diante de Deus a sem razão, que há de castigar com justiça e com potência tão espantosa os maus e te peço e te rogo, de minhas entranhas te suplico, de que me serviu só que tapassem a boca com mãos areadas, que eu mordia sem poder e todas as forças de meu assombro e revolta se faziam poucas em frente ao poder deles, que o segundo veio querer trabalhar sobre mim, cães, perros, malditos cains, aieramá, santa Joana de Valdez (MIRANDA, 1996, p.111).

A passagem da página 121 também sugere referência ao clássico

americano A Letra Escarlate (1850), de Nathaniel Hawthorne: a inserção de

personagens indígenas, a constante opressão religiosa, o adultério, a

paternidade incerta de seu filho, a possível perda da guarda desse filho, a

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solidariedade a outras mulheres e a marca da humilhação pública que

carregava uma mulher que tinha sua moral questionada pela vivência plena de

sua sexualidade, ou que fazia dela mercado.

A presença figurativa do Bispo Sardinha e a epígrafe de abertura da

obra trazem mais dois personagens igualmente reais – Padre Manoel da

Nóbrega e o Rei Dom João - e, por isso, apresentam-se como melhor exemplo

para ilustrar tanto a teoria de Lukács quanto a de Hutcheon sobre a

necessidade de figuras históricas para conferir verossimilhança a esse tipo de

romance, ainda que elas não protagonizem a obra. Aqui, também, são peças

no entrelaçamento entre as narrativas históricas e ficcionais.

Hutcheon (1991) continua a focar na importância do emprego da

intertextualidade em uma obra que pretende ser lida por meio da metaficção

historiográfica. Para tanto, considera:

A intertextualidade pós-moderna é uma manifestação formal de um desejo de reduzir a distância entre o passado e o presente do leitor e também de um desejo de reescrever o passado dentro de um novo contexto. (…) Não é uma tentativa de esvaziar ou de evitar a história. Em vez disso, ele confronta diretamente o passado da literatura - e da historiografia, pois ela também se origina de outros textos (documentos). Ele usa e abusa desses ecos intertextuais, inserindo as poderosas alusões de tais ecos e depois subvertendo esse poder por meio de ironia (HUTCHEON, 1991, p.157).

O uso desse recurso nos ajuda, portanto, a compreender a dimensão da

História dentro da ficção. Trazê-la para o nosso contexto presente e, assim,

experimentá-la de modo mais íntimo e pessoal a partir da perspectiva de uma

personagem, e fazendo-se, então, mais interessante ainda pela capacidade

subversiva de seu discurso. Em nosso caso, a autora Ana Miranda subverte os

ecos históricos ao conferir o poder de sua narrativa a uma protagonista mulher.

Em vista disso, nos chega de maneira muito clara o questionamento das

“verdades absolutas” textualizadas pela história e, também, a possibilidade de

inquirir quanto ao axioma de neutralidade do narrador histórico.

Este questionamento e tomada de consciência resulta, pois, da

autorreflexividade enquanto fruto da inserção material de uma informação, o

repensar desta e, posteriormente, sua subversão (HUTCHEON, 1991).

Entretanto, é preciso que se diga: não há uma negação da verdade histórica,

apenas uma nova maneira de percebê-la e vivenciá-la ao nos submeter a um

novo olhar sobre a leitura, a uma voz subversiva. O questionamento sugerido

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pela leitura ficcional é, então, uma marca imprescindível da metaficção

historiográfica. Assim, a pesquisadora segue seu raciocínio:

Mas a ideologia do pós-modernismo é paradoxal, pois depende daquilo a que contesta e daí obtém seu poder. Ela não é verdadeiramente radical, nem verdadeiramente oposicional. Mas isso não significa que deixe de ter um peso crítico (HUTCHEON, 1991, p.159).

A ideia acima transcrita é essencial para compreendermos que um dos

principais valores que se pode atribuir à narrativa metaficcional historiográfica –

diferentemente ao romance histórico – é, justamente, seu viés crítico. Não pelo

radicalismo, mas porque traz em si a força contestadora em sua natureza

literária e, assim sendo, recusa-se a servir de mera representação ou

reprodução ad infinitum do discurso histórico.

Em Desmundo, por exemplo, a voz subversiva da mulher enquanto

narradora oferece um novo ponto de vista que corrompe o discurso histórico

oficial e deixa, na mente do leitor, questionamentos e levantamentos críticos

não respondidos integralmente nos textos oficiais reproduzidos nos livros

didáticos de História. Permite e abrange a reflexão acerca do nosso próprio

passado, ao dar a voz narrativa a quem esteve tradicionalmente excluído.

Apresenta novos personagens: a índia, por exemplo, que pouco foi ouvida pelo

homem branco, o qual teceu as linhas da história colonizadora ganha, no

romance, uma voz e um retrato. Subversão e resistência.

Para Hutcheon (1991), os principais índices literários que caracterizam

as obras metaficcionais historiográficas por ela analisadas são: subjetividade,

intertextualidade, referência e ideologia. É de nosso interesse, nesse estudo,

perceber como Ana Miranda trabalhou esses traços dentro de Desmundo.

Dessa forma, acreditamos que todos eles estão presentes na narradora,

Oribela, como expusemos pela reprodução dos excertos da obra ao longo

desse capítulo.

A narrativa literária, aliás, é trabalhada minuciosamente por Linda

Hutcheon; para a pesquisadora, vários teóricos espelham-se na narrativa como

principal meio de ligação entre os elementos literários por ela expostos e

analisados, sendo essa mesma voz narratológica um método primordial para a

compreensão humana e coerência dos fatos. Um traduzir, um explicar da

História dentro da ficção, uma conferência de sentido e verossimilhança. Em

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sua dimensão, portanto, a narrativa contestadora é capaz de enfraquecer as

noções estruturadoras impostas pela História, sendo igualmente estabelecidas

e subvertidas:

A metaficção historiográfica não consegue deixar de lidar com o problema do status de seus ‘fatos' e da natureza de suas evidências, seus documentos. E, obviamente, a questão que com isso se relaciona é a de saber como se desenvolvem essas fontes documentais: será que podem ser narradas com objetividade e neutralidade? Ou será que a interpretação começa inevitavelmente ao mesmo tempo que a narrativização? (…) E afirma, em termos vigorosos, a especificidade e a particularidade do acontecimento passado individual (HUTCHEON, 1991, p.161).

Então podemos ler que a narrativa é tão importante que, ainda que se

restrinja ao olhar do narrador, condiciona à atribuição de sentido. Mais do que

isso, ela é capaz de corroer e desestruturar noções por nós apreendidas como

“verdades absolutas”. É esta narrativa, pois, que confere o caráter contestador

à metaficção de Linda Hutcheon. Ainda que sejam distintos os meios de análise

e observação entre esta e György Lukács, encontramos aqui mais um ponto de

convergência teórica: o poder inquestionável do narrador na inferência de

verossimilhança ao romance. Mesmo que aí se levantem questionamentos

quanto à subjetividade do narrador, aquele que lê um romance sabe tratar-se

de um discurso literário e, portanto, a ideologia – recusada por Lukács – é

irrelevante, visto ser o sujeito do romance, por excelência, um ser subjetivo,

intrinsecamente ligado às crises possíveis da natureza humana. E sob sua

ótica, ele irá narrá-la.

Em nossa protagonista, pode-se observar a crise do sujeito expatriado, o

medo do abandono do marido em oposição ao desejo veemente de livrar-se

dele (sendo o tipo comum de sua época, a moça reconhece a necessidade da

vida masculina para validar a sua no ambiente em que vive), a contradição

entre o que foi criada para ser e o que era de verdade em sua natureza íntima,

a dificuldade intangível de submeter-se e encaixar-se a uma vida que lhe fora

designada (é a excêntrica periférica da História personificada literariamente,

afinal), o não-pertencimento ao Brasil versus o não mais caber em Portugal

(modificada irrevogavelmente que fora pelo desmundo), a cristã que foge ao

dogma dos sacramentos eclesiásticos por si própria juramentados, o

reconhecimento de sua “fragilidade mulheril” e as constantes desobediências

que acarretavam castigos, a vulnerabilidade implícita e a rebeldia.

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Compartilhamos a seguinte passagem retirada da Parte 3, O casamento,

para embasar alguns dos dados que expusemos acima:

E me deu uma tristeza funda, repetida, sem remédio, feito doença incurável, uma pobre à míngua. Não podia eu entender a fortuna? Deus fora bom para mim, me salvava das garras da liberdade, que era órfã largada no mundo, sem asas e agora coberta da caridade do Senhor e seu amor aos pobres, tinha esposo, amparo, não entendia, embora houvesse no fundo alguém em mim que entendesse, sempre houvera em meu ser um outro ser, que eu nem via direito, mas sentia e sempre o velara, como se apenas meu e mais entendedor, que não queria eu competições e invejas de minhas compreensões, o que se podia ver contra a Velha, não que pudesse eu me dizer como ela, uma estrelada pelos conheceres do mundo, suposta na religião, capaz de falar aos mais mestrados dos homens, acercada dos livros e quem a houvesse de venerar tinha certeza, pelo benefício da criação dos frutos que nela se produz a sabedoria. Não era eu tal alteza, tal estatura, tal cabeça trilhada de luzes. Mas nem era eu a que me mostrava dia após noite, nem sabia muito eu mesma nem havia de saber ninguém mais. Nem que me tornassem pelo avesso. Que meu vencimento no mundo era ser mistério. Vivia eu metida dentro de mim para saber o fundo e para onde endereçavam meus pensamentos e por que entradas vinham as palavras alheias, as boas e as impuras, que rotas tomavam, alcançar minha verdade, meus remansos, alturas, abrigos, saber como não entrarem em mim e me descobrirem (MIRANDA, 1996, p.74).

À página 105, que está em O fogo – parte seguinte a O casamento na

organização cronológica de seu diário –, Oribela não reconhece como

verdadeira a vida que vem levando no Brasil, o simulacro de vida que lhe foi

imposto. Tampouco Portugal, seu lugar de origem, que, nas linhas de seu

diário, virou desrumo e lembranças de um “falso lume”.

Se o uso constante da oposição pode ser lido como instauração de crise

no sujeito, Ana Miranda apresenta uma gama de personagens femininas que

não cabem nos padrões. Ao contrário, subvertem-nos.

É justamente em O fogo que mais podemos ouvir as vozes subversivas

das personagens femininas – mais precisamente, onde a maioria das mulheres

são apresentadas enquanto personagens com passados e histórias de vida. E

não é por acaso. Nada, em Literatura, sabemos, é por acaso. A arte é sempre

intencional, mesmo quando o real deixa de ser. Isto posto, não causa espanto

a percepção de leitura de que todas as mulheres do romance, a seu modo,

subvertem a ordem que o ser feminino deveria seguir: a moça cristã criada em

convento que se rebela diante do seu destino e se apaixona por um mouro; a

freira que engravida do nobre e é degredada para não ser morta; a índia que

quer ser tão virgem quanto católica; a moça de família judia que acaba por ser

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criada sob preceitos cristãos; a mãe que tem uma filha com o filho; a

homossexual forçada à prostituição pelo marido; e a mulher que foge do

convento para se casar e acaba por ser assassinada.

Nenhuma mulher, nesta obra, apresenta o comportamento desejável

socialmente para os paradigmas do Brasil Colônia. Segundo Del Priore (2009,

p.24), estes padrões foram estabelecidos por meio das decisões tomadas pela

Igreja, formando, assim, um discurso normatizador quanto às funções do corpo,

dos gestos e dos hábitos. As prerrogativas desse discurso serviriam, pois,

como modelos de condutas individuais, sendo os comportamentos femininos

ligados a tabus e autoconstrangimentos jamais experimentados nem mesmo na

Idade Média. Esse adestramento feminino era parte do plano civilizatório e foi

feito a serviço da colonização portuguesa, que encontrou outro pilar no

discurso normativo médico, este reforçando o dogmatismo católico ao reafirmar

que a função do corpo da mulher era a procriação; a todo o resto, a danação

da luxúria e do pecado.

Retomando o romance, reiteramos, nenhuma das personagens seguiu

os conselhos de Dona Brites de Albuquerque ao descrever o bom

comportamento, tanto desejável quanto cabível à boa esposa:

Ora ouvi, filhas minhas. Aquela que chamar de vadio seu homem deve jurar que o disse em um acesso de cólera, nunca mais deixar os cabelos soltos, mas atados, seja em turvante, seja trançado, não morder o beiço, que é sinal de cólera, nem fungar com força, que é desconfiança, nem afilar o nariz, que é desdém e nem encher as bochechas de vento como a si dando realeza, nem alevantar os ombros em indiferença e nem olhar para o céu que é recordação, nem punho cerrado, que ameaça. Tampouco a mão torcer, que é despeito. Nem pá pá pá nem lati lará. Nem lengalengas nem conversa com vizinho, seja ele quem for, ou cigano, nem jogos nem danças de rua, nem olhar cão preto que pode ser o chifrudo, Deus te chame lá que ninguém te chama cá, temperar legume com sal, não apagar luz que alumia morto nem deitar as águas fora que é de judaísmo, não pedir favores nem pôr os olhos no vizinho nem o corpo na cama de outro, tem o esposo direito de acusar, para provar inocência a esposa deve lavrar a mão num ferro de arado em brasa. Açoite e língua furada àquela que arrenegar. Os esposos devem dar panos às mulheres, mas só nas festas reais, se lhes oferecer o mercador um bom preço, que eles não façam obra alguma desde o sol posto até o sol saído e dia de domingo e a viver, segundo o capricho dos homens. Aqui do rei. E disse eu. Ora, hei, hei, não é melhor morrer a ferro que viver com tantas cautelas? Ai, como sou, olhasse a minha imperfeição, olhasse meu lugar, sem eira nem beira nem folha de figueira (MIRANDA, 1996, p.67).

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Para além dos usos literários, propomos o fogo como um poderoso

símbolo de libertação. Uma liberdade tão negada a Oribela, sucessivas vezes.

Em uma delas, Francisco de Albuquerque compara o mau uso da liberdade na

mulher como a espada na mão de uma criança (MIRANDA, 1996, p. 113). É na

busca de sua liberdade em suas tentativas de fuga, que é mais severamente

castigada quando cativa. Mas se das cinzas ressurgiu a fênix, do fogo

renasceu Oribela. Ao fogo atirou os cabelos cortados como os de homem para

tornar-se outra, uma nova, a que foge desesperadamente do estereótipo da

moça típica de seu tempo para transformar-se na voz dissonante da História.

Ao acordar surpresa com a partida do marido, Oribela ordena que seja ateado

fogo em tudo que lhe aprisionou por tanto tempo. Do fogo, novamente, o fim.

Para renascer, mais uma vez.

A simbologia é notória sobretudo porque do incêndio salva-se nada

senão a miniatura de uma caravela esculpida por Ximeno Dias que outrora a

depositara em suas mãos. A água. Outra vez mais, a imensidão infinita dos

mares. O cruzar de oceanos impossíveis. A lonjura de dois mundos paradoxais.

A distância abismal de suas possibilidades. O meio que a levaria de volta ao

seu reino, ao seu conto-de-fadas, ao Mendo Curvo onde se via princesa. A

porta aberta do infinito, mas, também, dos mistérios: o mar como a rota de fuga

e única opção de retorno à expansão de Portugal. Entretanto, depois do

casamento, Oribela é obrigada a seguir para sua nova casa, mais embrenhada

em terra e se distanciando cada vez mais do oceano (que aqui representa,

também, a sua antiga vida – no Brasil, a terra, a desterra, as raízes de uma

nova vida, o estar presa ao chão, o estar presa simplesmente).

Na próxima etapa deste trabalho, então, sob o fogo que arde,

convidamos à leitura da nossa análise literária da heroína Oribela, da Velha,

das mancebas embarcadas na nau e de Temericô.

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Capítulo III

O diário de Oribela: pluralidade discursiva, espaço da

fala ininterrupta ou do direito sagrado ao silêncio, ao

mistério do ser muitas, à reflexão, à catarse, mulheres

que gritam e ecoam, e a liberdade de estar só consigo

mesma.

“(…) Não era eu tal alteza, tal estatura, tal cabeça trilhada de luzes. Mas nem era eu a que me mostrava dia após noite, nem sabia muito eu mesma nem havia de saber ninguém mais. Nem que me tornassem pelo avesso. Que meu vencimento no mundo era ser mistério. Vivia eu metida dentro de mim para saber o fundo e para onde endereçavam meus pensamentos e por que entradas vinham as palavras alheias, as boas e as impuras, que rotas tomavam, alcançar minha verdade, meus remansos, alturas, abrigos, saber como não entrarem em mim e me descobrirem." (MIRANDA, 1996, p. 74)

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CAPÍTULO III

MULHERES QUE GRITAM

No romance de Ana Miranda, falam as mulheres. E, ao calar, seguem

falando. Silêncio, em Literatura, às vezes é grito. É grito quando deixa

transparecer nas entrelinhas, sutis e dolorosas, as fissuras da História: os

abusos, o medo intermitente, as doutrinações, o escravismo, as

instrumentalizações e usos políticos e religiosos de seus corpos, os

apagamentos de seus desejos e o emergir de um ruído uníssono que fere ao

excluir tudo que discorda e foge à narrativa considerada oficial.

Assim é com as mulheres, de idéias tão diversas quanto suas etnias, na

História do Brasil. Para muitos, um mistério tanto quanto um incômodo. Em

Desmundo (1996), nota-se uma tentativa da autora de mostrar como seres

heterogêneos foram tratados como um bloco único – como se suas diferenças

não fossem, também, o próprio grito – pelo discurso oficial que apreendemos

nos nossos anos de formação escolar.

Nos ítens seguintes que compõem este capítulo, buscamos aprofundar a

nossa análise literária da protagonista, Oribela, e das personagens que

compõem seu mundo, pluralizam sua existência e ampliam os horizontes de

leitura em suas narrativas singulares. E nessas falas ficcionais urgentes

reconhecemos, também, traços de nossa História.

3.1. Oribela, Oribelas

Na epígrafe que elegemos para abrir este capítulo, lê-se um trecho do

diário literário de Oribela, na qual ela deixava claro que o seu vencimento no

mundo era ser mistério. E era. Com as palavras que imprimiu em seu diário e

em sua história, a protagonista decretou que ninguém a conheceria em sua

plenitude ou nas camadas impenetráveis de sua personalidade ora heróica, ora

dúbia.

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Nosso esforço, nesta etapa do trabalho, é para conhecê-la no limite do

possível, respeitando seus mistérios poéticos e seus traços multifacetados de

mulher que luta, durante toda a sua trajetória, pela própria sobrevivência. E por

isso, muitas vezes, como a lua de fases, se esconde entre nuvens e no escuro

do céu. E lá, inatingível. E lá, desconhecida. E lá, longe do olhar de quem lê e,

teimosamente, se atreve a desvendar.

Antagonicamente, além do direito à voz da vida, Oribela buscou o

privilégio de silenciar ao mundo as próprias sensações e a verborragia consigo

mesma em seu calar ruidoso. Paralelos onde se lêem histórias abafadas e

narrativas que não foram varridas pela erosão bruta do tempo e seu passar

estrondoso dos anos.

De difícil leitura, a moça portuguesa que começou a miscigenar o que é

hoje o Brasil, é densa. É o equivalente literário à mulher que, ceifadas as

escolhas, busca possibilidades onde ninguém mais as enxerga. É a oprimida

que se enche de uma coragem até então desconhecida para arrebatar os

desafios da vida. De uma existência que, aliás, os poderes patriarcais que

regiam o mundo à sua volta nem permitiam que fosse inteiramente sua.

E é nesse desbravar de caminhos que se descobre a mulher. E que se

percebem faces de camaleão da personagem que queria ser todo mistério. O

discurso da moça acuada pelas armadilhas ganha ares de bravata. A culpa

com o corpo, tracejada pela fé cristã, vai desenhando novas curvas, quase que

mesmo pecaminosas, e os desvios do casamento forçado que a entregam à

paixão adúltera. O adultério, sim, a escolha. A sexualidade. A maternidade. Os

cabelos outrora esvoaçados por ventos e mares e tempestades foram atirados

ao fogo para forjar a liberdade.

Nas (entre) linhas de seu diário, Oribela revela e omite o que é e o que

talvez não seja. Ela se disfarça em multitudes e ecoa falas que tampouco são

suas. Muitas vezes, não compactua ou sequer age com o comportamento

atribuído à moça recatada que julgáramos que fosse. A menina criada em

conventos. Noutras vezes é ela tangente. É margem. É danação. E, em outras,

a oprimida é opressora: a ré é juíza, a “es ra a”, “es ra iza”, e ressoa o

mesmo discurso que a aprisiona.

A historiadora Mary Del Priore, previamente citada nesta pesquisa,

classifica como conflituosa as relações estabelecidas entre as mulheres de

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diferentes etnias nos primeiros anos de Brasil. E através de Oribela, passando

necessariamente pela personagem, podemos observar exatamente isso: seu

relacionamento com as brancas portuguesas junto a ela embarcadas – à

exceção da judia Urraca – é descrito como um relacionamento entre iguais,

entre semelhantes, que se encontram na mesma posição de opressão e

análogas condições na dor de não terem nas mãos as rédeas dos próprios

destinos. Cabe aqui, entretanto, destacar apenas a distinção do tratamento

com a Velha, posto que esta personificava a figura até certo ponto maternal

pelo cuidado com as moças, e de autoridade por seu cargo no clero.

Com olhar mais atento, todavia, se nos propomos a uma análise das

relações entre Oribela e Temericô, por exemplo, lê-se uma protagonista que

tanto se coloca quanto se sente superior à índia. Ainda que lhe fosse a nativa

certo eixo de alívio em um Brasil de cruezas, Oribela por vezes a destrata e a

compara a um cachorro a seus pés (como veremos no ítem 3.4. deste

capítulo).

Já com às negras – que aparecem em apenas três referências em todo

o romance – que lhe abrigaram e acolheram em uma de suas tentativas de

fuga do marido1, a protagonista demonstra ter vínculos distantes muito

provavelmente ocasionados pelas diferenças raciais e sociais, que podem ser

observadas até hoje. Para uma sociedade que se reconhece como

miscigenada, ainda mantemos separados os papéis atribuídos a cada etnia

num retrato histórico fiel de nossa colonização.

Por meio de Oribela, em suas narrativas pontuadas ou fluxos de

consciência urgentes, se percebe que mulheres, em todas as suas

particularidades, eram tratadas apenas como uma massa de seres

homogêneos. Mulheres, iguais. Mas que, entre si, gritavam suas singularidades

e espelhavam a atuação do homem opressor ao estabelecer as suas relações

de poder. A protagonista, portanto, em suas oscilações, foge ao rigor da

personagem de um único comportamento eternamente heróico e irrepreensível.

Oribela é dúbia. É dúvida. Nada nela é óbvio ou infinitamente transparente.

1 Reiterando assim Mary Del Priore, para quem as mulheres se uniam e abafavam seus

conflitos quando confrontadas com questões ligadas majoritariamente à elas - tais quais a maternidade ou abusos variados - e na ausência equacional do homem.

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Nesse sentido ambíguo e variável, ela assume, em certo grau, distintos

papéis: a passiva vaca que fora criada para ser, tanto quanto a parva,

transformada a gosto do mundo, que se rebela contra os abusos perpetuados

do silêncio.

Em um primeiro momento, quando assiste e repete as ações do homem

opressor diante das índias e das negras, é a vaca. A que automatiza padrões,

a que não se reflete na outra. A que acata. A que não sabe quem é. A que

segue rumos traçados por outros para ela. Talvez porque assuma a faceta da

moça típica de seu tempo, como proposto por Lukács, ao se crer racionalmente

e religiosamente superior ante outras etnias. Talvez porque sua capacidade de

alteridade seja pouco abrangente e esbarre na aceitação somente do que lhe é

conhecido: ela pode apenas se colocar no lugar da branca cristã degredada

para se perceber enquanto sujeito e experimentar a dor alheia – em parte, sua

–, mas não consegue ou não se permite se colocar na pele da índia ou negra,

ambas seres inferiores à idéia eurocêntrica de “h e / mulher das

i i izações” com a qual fora educada.

Em outro instante, metamorfosea-se em parva. E aí, questiona e rompe

com os padrões restritivos, acolhe sob qualquer pena a outras pecadoras

(como descritos nos ítens 3.2. e 3.3. deste trabalho), se reconhece na

indiscrição alheia, perdoa demais heresias e profanações, e acata a

naturalidade do erro. É não mais sagrada, mas humana. E assim sendo, está,

portanto, à margem da conduta esperada.

Logo, ao mesmo tempo em que celebramos uma mulher colonial que

luta para explodir as jaulas que tanto a aprisionam quanto reduzem, capaz de

personificar um ser destemido, lamentamos a repetição do comportamento

masculino diante das outras; ação essa que espelha a realidade

contemporânea de muitas brasileiras.

Mas no diário ficcional de Oribela, não estão expostas unicamente as

relações complexas entre as mulheres que deram início a formação identitária

do Brasil. Em suas palavras, lê-se, também, a descoberta mística das paixões

e da sexualidade, e nossa protagonista, que tanto quis horizontes, encontrou o

amor na busca incansável pela liberdade. Naquele que, com ela, sonhou viver

sem amarras. Ele, que já tinha desbravado mundos e estrelas, que conhecia os

mistérios da noite e dos mares. Ele, que depositou em seu corpo muitos

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encantos, em seu ventre um filho e, em suas mãos, a simbólica caravela que

acalentava e encorajava o maior dos seus desejos: o de ser. O de ser livre. O

de perder-se e encontrar-se além-mar. Diferente da poeira de Fernando

Pessoa na epígrafe que abre romance – que era levada ao sabor do vento –,

Oribela queria direcionar em si a vida que lhe foi tão sonegada.

No relacionamento de Oribela e Ximeno Dias, o Mouro, é significativo

que ele a tenha amado por sua sede de liberdade. Quanto mais Francisco de

Albuquerque a aprisionava e insistia na dominação, mais Ximeno Dias a

exaltava pela vontade de ser livre. Quando a encontrou na confusão das matas

fechadas, ela já não ostentava os cabelos longos que atraíam olhares e

cobiças tão próprias do “padrão de beleza” da mulher à época. Ao contrário, ela

estava fraca, suja, maltrapilha e machucada pelos obstáculos da fuga noturna.

Mas era o fogo da coragem o que ele vira em seus olhos. Ele, tampouco, anda

de acordo com os padrões do homem de seu tempo: apaixona-se não pela

promessa de dotes e seduções físicas, mas porque se deu conta da sua fuça

curiosa como a de um gato2 - quando era condenável o desejo de mais saber

na mulher – e a força de sua volição de ir além. De ir além das imposições, do

conformismo, da passividade e da falta de contestação (ainda que, muitas

vezes, fossem silenciosas as suas oralizações de revolta).

O encontro do Mouro com Oribela é um encontro de pedaços que não se

encaixaram totalmente em seu tempo, nos dias passados de sua época: ele,

por gosto, correu o mundo. Ela, por circunstância, desembarcou no desmundo.

E, no Brasil, a terra (des)encontrada “por acaso”, se acharam. Eles, também,

"por acaso”. Primeiro nos sapatinhos encantados de Dona Isobel, a morta que,

“por acaso” tinha os pés do mesmo tamanho que Oribela. E, depois, “por

acaso”, em seu intento de fuga, quando a amparou da vilania do (des)mundo.

É secular, aliás, o encontro de nações no Brasil; a nossa História e o

nosso povo, desde sempre, foram formados pelo encontro de pessoas que

convergem a um mesmo centro. Que traçam suas rotas de fuga das pestes e

das guerras. Curioso, todavia, é pensar que, ainda que caibam todos aqui,

neste imenso território brasileiro, a intolerância gerada por esses encontros de

diferentes etnias mais parecem choques e até hoje estão desenhados em

2 Para ler relato completo, ir à página 173 de Desmundo (1996).

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nossas peles e em nossas convicções. Tristemente, em nossas enormes

dificuldades de conviver com o outro.

Mais um dado interessante e facilmente observado no diário de Oribela é

que o Mouro e o Filho, tão responsáveis pela transformação da personagem

em mulher – no concernente a suas condições de sexualidade e,

posteriormente, de maternidade – são os únicos homens a ganhar capítulos

assim intitulados em sua narrativa íntima. Isso é ainda mais relevante porque,

nesse sentido, o próprio marido foi ignorado. Assim, é possível interpretar que

Francisco de Albuquerque significava menos para ela na sua construção de ser

mulher; ele não era, nunca fora, uma escolha sua. Era uma imposição ainda

herdada de seu mundo de menina, quando não era, internamente, senhora de

si e de seus desejos. Quando era a moça conformada de Lukács, e não a

heroína insurgente de Hutcheon.

Para além da figuração de Francisco enquanto homem em Oribela fica

claro que, em meio à incerteza do leitor diante da ambiguidade sobre a

paternidade de seu filho – ela o via com os cabelos cor de mel, o marido o

enxergava ruivo (também uma referência à possibilidade do filho ser do Mouro)

– ela, não parecia se importar: Oribela sabia que o filho era dela e isso lhe

bastava. Quando quis decididamente feri-la em seu íntimo e marcá-la de

maneira irrevogável por sua indiferença, Francisco lhe rouba o bebê, mesmo

acreditando não ser ele o pai biológico.

Na relação com o Mouro, também a subversão da cristã Oribela. Não foi

um adultério apenas de sacramento, foi, também, uma traição religiosa. Entre

todos possíveis, foi a um mouro – e não a um cristão – a quem direcionou o

olhar e os caprichos do coração.

Eles estão, religiosamente, em pólos opostos. Ela é, agora, mais que

uma mulher adúltera. O termo infiel, aqui, assume duas posições. Para além,

ela sabia do ódio do marido aos mouros em geral. Teria sido, por isso, o seu

dúbio contentamento ao revelar sua traição e o nome do homem que lhe

escondera da selvageria do mundo e da fúria de Francisco? Ou, na contramão,

ela assume a infidelidade com certa resignação – novamente a opacidade em

Oribela – porque via nisto a expiação do pecado que cometera ao ceder à

tentação? Na fé cristã, pela confissão, a expiação.

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Seja qual for a interpretação de suas intenções, a justificativa explícita

para tê-lo feito foi a de salvar a Velha das ameaças de castigos e abusos. De

um novo inferno em terra. Logo em seguida, entretanto, a culpa pela confissão

ao marido que, ela temia, seria paga com a vida do Mouro, e a marca

incontestável da gravidez:

Ah, Deus, que esculpiste meu destino numa tora em brasa, que mais me pode esperar por ser eu tão má e desconcertadora das vidas alheias? Não pude eu sair do leito sentindo as penas do meu pecado em meu ventre, num tipo de mal lunático, que vinha quando saía a lua, a ver eu candeinhas diante dos olhos, parecendo enferma, a só ter no escuro de dentro de mim a visão do Ximeno e o desejo dele (…) um grande pecado, tão mau que devia eu de dar suplício ao corpo, minhas unhas afiei na parede e raspei a minha pele dela tirando sangue numas trilhas infernais, sem lágrimas ou gemidos, a pagar com minha dor a dele (…) ilusão da língua, toques de mão, união de corações, a nos saírem pela boca resplendores de fogo e vivia eu disso, sacramentada ao Ximeno (MIRANDA, 1996, p. 187).

Todavia, cabe aqui uma observação: desde a página 167 de Desmundo

(1996), Oribela passa a referir-se ao amante pelo nome, Ximeno. Talvez tenha

abandonado a alcunha de ‘Mouro' por esta ser uma espécie de elo de ligação

ao julgamento moral e ao pecado com os quais os católicos tratavam àqueles

que não comungavam de sua fé. Entretanto, aqui, ele é quem que se apieda de

Oribela e a ela destina dignidade. É justamente Ximeno, seu companheiro

escolhido, o único personagem do romance que a reconhece como uma

pessoa merecedora de direitos e desejos, e não apenas como alguém que

existe para cumprir os papéis de esposa e mãe.

Com ele, a protagonista descobre uma parte importante de ser mulher e

se apodera de sua sexualidade. Vai deixando para trás, encrostradas de

passado, as idéias tão tolas quanto rasas de menina e apreende

conhecimentos que, com ela, ele compartilha. Seus sonhos de futuros

enquanto luta pela sobrevivência em um presente. Ela, então, questiona seus

próprios saberes, se reconhece ignorante e, ao fazê-lo, cria-se um espaço para

que se transforme e renasça aos olhos do leitor. Despedaça-se e reinventa-se.

Depois de viver com Ximeno e ser novamente cativa pela maldade do

marido, Oribela é desesperança. Vai cumprindo seu destino, crescendo

enquanto personagem e vivendo em desventura. Observa o desmundo

desmanchar suas frágeis construções de utopias. E, ao fim, quando se vê em

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desgraça e até mesmo cogita o suicídio motivada pelos infortúnios de uma vida

pouco venturosa, é na memória do Mouro que Oribela encontra abrigo. Sua

narrativa retoma a intertextualidade com os contos-de-fadas, a alegria do

sonhar, usa as palavras sol e fogo para simbolizar a esperança presente nas

últimas páginas do romance e as atribui a pessoa de Ximeno; quase como uma

possibilidade de final feliz idêntica a de Princesas em histórias infantis, que

vencem os desatinos dos vilões e são, finalmente, recompensadas:

Fácil era sair daqui, um cortezinho no punho, um deitar na água, um pular do galho alto, cortar o vessadre que se põe ao açor, fio de seda da memória, correia que fazem de couro de animalha morta (…) Que esta é a nossa ventura neste mundo, estamos aqui para purgar a alma, feito as corujas que matam as cobras, a nos fazer lanhar pelas tristezas. Uxtix, uxte, xulo, cá! Por que me mandou Deus para tal fim? Todo o meu mundo esvaneceu, estava eu endoidando, dormindo, sonhando? Ouvi o choro de meu filho, virei e na porta, atravessado pelos raios derradeiros do sol, os cabelos em fogo puro, estava o Ximeno com uma trouxa de criança no colo. Hou ha (MIRANDA, 1996, p. 213).

Ainda que parte da jornada de Oribela no descobrir-se e assumir-se para

si como um ser esteja terminantemente traçada ao encontro com Ximeno Dias

e às vivências que experimentou no cotidiano com outras mulheres,

gostaríamos de ir além e de propor que era ela também outras. Múltiplas.

Plurais. Do infinito dos mares, da libertação do fogo, da vastidão das terras.

Das águas veio e para onde quis voltar. Do ardor renasceu. Na terra cresceu e,

ainda que a contragosto, criou raízes.

Nossa protagonista foi filha sem pais, mãe apartada do filho, instrumento

da Igreja e do Estado, e, enfim, amante. Oribela foi mulher; e mulher de muitas

faces que vão se delineando pouco a pouco. Em Desmundo (1996) a vemos

Parva tanto quanto Vaca. Coragem e medo. Palavras e silêncio. Opacidade.

Contrastes. Curvas e retas. Oposta. Frente, verso e avesso. Feitora e escrava

de si. Oribela era muitas. E, em cada uma destas únicas Oribelas, havia as

faces do estar e as faces do esconder.

Ao longo de toda a obra, Oribela narra, diversas vezes, que há outra

dentro dela. Uma mais sábia das coisas do mundo. Uma que não sente medo.

Uma louca que tem coragem de falar o que quer e as coisas da maneira clara

como vê. E fala, destemida, porque sabe-se louca, e, considerada mentalmente

incapaz, não há crédito nas palavras. Não há punição explícita por dizê-las. E é

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ela, justamente ela, que, irascível e verborrágica, expõe os abusos cometidos

pelas diferenças abismais de gênero na (re)construção ficcional da Colônia.

Quando Oribela é a Parva, ela é a protagonista de Hutcheon. É a voz

dissonante3, a heroína marginalizada, a excêntrica. É a Parva que se veste de

homem e grita desaforos à moças de “bons costumes” e tradicionalismos afins:

(…) Cha cha cha, disse a Velha, depressa, lavar na água salgada as panelas, tirar os panos do secador, lançar a ourina pelo bordo, trançar o cabelo, o que fosse necessário (…) Que o Diabo estava solto, o padre girava a chave, batia palmas, logo, já já, para dentro, descansai pois descansarão. Fizemos tudo trigosas, fomos avante, tornamos atrás, fugindo de Satanás, correndo da língua da Parva que sempre nos avistava e gritava. Almas enganadas, mancebas de danados apetites, putinhas contritas, lá vai a macha, lá vai a velha parida, lá vai a freira fodida, lá vai a virgem destapada, vão açoitar com vosso amor os cornos desse país e mais coisas de tal tormento, aquela entre os lobos. Blasfema das mulheres, dos padres, da Virgem Maria e de Deus. E gritou o padre. Vade retro! Arrenego! Deus perdoe tua boca esmerdada e te meta arreios (MIRANDA, 1996, p. 14).

É a Parva, cujo nome não aparece enumerado na contagem das sete

mancebas embarcadas na nau, que está atrelada à Oribela, indissociável do

que ela é. É a Parva, desacreditada e demonizada, que, ao longo do romance,

fala das arbitrariedades patriarcais e da dor de ser mulher em um mundo criado

por e para homens e apenas coadjuvado pelo feminino. Paradoxalmente, só

fala sem medo de ser escutada porque está travestida em trajes masculinos. E

soa indigna da verdade aos ouvidos da sociedade do lugarejo porque é,

segundo a quem cabe julgá-la, tão louca quanto possuída:

Deitei sem poder dormir, despertada, desentendida, tentando enxergar minha alma, tendo para mim que daquela vez não escaparia. (…) Devia escapar, ir pelas brenhas até sei lá onde a buscar uma nau que me acolhesse ou viver selvaticamente da caça do mato, de algum manioque, de uns frutos até ir à vila dos ilhéus de onde embarcasse no modo como estava eu em traje de homem, viver nestes trajes, não era a Parva homem que vestia de mulher? (MIRANDA, 1996, p.169).

Também é significativa a transcrição da passagem abaixo, na voz da

Parva, porque ela é a primeira a dizer as coisas que, posteriormente, Oribela

negou para si. Contra as quais Oribela se rebelou. O estar no desmundo. A

vida que não escolheu. O casamento que nunca quis. O cuspe no rosto de

3 Narra Oribela, à página 51 de Desmundo (1996): “(…) Havia umas vozes dentro de mim, que

eu não queria ouvir”.

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Francisco dentro do sagrado da igreja. A dúvida sobre a própria sanidade,

retomada no fim da obra. A Parva narrou um destino que a outra face de

Oribela sabia ser imposição. E tampouco desejou para si e, contra ele,

personificou o resistir:

(…) De noite escutei a voz da Parva na rua. Estúpida, hideputa can, que te mandem arrancar as ameIas, rota e triste, uma serpe por mulher, puta nascida de mosca encharcada no mais imundo monturo que se pode encontrar em pântanos e em masmorras, quem te deu atrevimento para cuspir nas coisas de noivado e de Deus? E vens com afrontas. Toque nos ouvidos de teu esposo a blasfêmia de tua soberba, fiques maldita da terra que te sustentará e sem filho, amém. Que o diabo haveis de ver. Língua ardida. Parecia que falava de mim. Pouco fez, pouco faz. Nem quero mesmo filhos daqui. Que vida era a tua? Que fazes acá, porquera? Que não quisera se casar? Não tens padre ó madre e te deram de improviso uma vida, queres uma desastrada vida, uma mulher tal bela como pura? O que quer, a tristura? Tu estás fora de ti (MIRANDA, 1996, p.62).

Como já dito ao longo deste trabalho, o romance é rico em simbolismos,

alegorias e metáforas. Um constante exemplo de metáfora na narrativa é a

vaca. O animal aparece como sereno, triste, indefeso, resignado com as

certezas imutáveis do mundo, impassível, inalterado diante das circunstâncias,

e, sobretudo, como posse irrevogável dos donos dos pastos aonde se

alimentam. A vaca, como a mulher, nascia, vivia e morria para cumprir papéis a

ela previamente designados pelo homem. Nutrir de leite e de carne, parir,

acolher e calar:

Da casa se avistava o curral, as vacas deitadas ou tangidas para distante das reses, os machos longe das fêmeas, os doentes longe dos sãos, um mugir triste vindo daqueles lados, após o rio, uma ponte de paus muito rude, que antes do romper da luz iam vacas das ilhas tocadas por vaqueiros pela trilha servir leite às portas das vivendas na cidade e nas fazendas dos caminhos e no paço do governador. Se ficava velha uma vaca, sua gente a levava à cidade e a matavam e se vendia pedaço por pedaço de carne ao que viesse comprar, escolhendo o que queria, ficando uma ossada repugnante que vinham umas aves rapinar, aos restos vinham pobres lazarentos tomar caldos dessas podridões (MIRANDA, 1996, p.101).

Sua sogra, Dona Branca de Albuquerque, em dado momento do

romance, dizia que nome de vaca tinha Oribela. Francisco de Albuquerque, seu

marido, era vaqueiro. Vaqueiro, adicionava o Mouro, “em casa de fêmeas”. E

tratava como suas as mulheres ao redor; fossem da sua família portuguesa (a

mãe com quem teve uma filha), a mulher com quem – por intermédio da

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esposa do governador, sua tia, sutilmente representando a força política –

forçou o matrimônio, ou as índias nativas de quem “se servia".

Não é inocente a metáfora, tampouco a colocação implícita do que ela

significa. Também não é estranho que se use essa palavra até hoje como uma

palavra de carga negativa para designar uma mulher de quem não se gosta ou

por quem não se tem respeito. Uma mulher que, sem verbos e opiniões, é

chamada de ‘vaca de Presépio’. É ela somente figuração, não tem peso nos

dias ou personifica a indiferença. Eterna coadjuvante da própria vida, quase

nunca sua. Pouco sabedora de si.

Quando a narradora compara a si mesma e as mancebas ao estado

passivo e vitimado das vacas, é ela, então, a moça típica de seu tempo e a

protagonista de Lukács:

(…) Tinham as vacas os mais tristes olhares, eram tão boas que se contentavam com ervas naturais, até umas ramas espinhentas e das pessoas se afeiçoavam, feito cães, mesmo dos que lhes cortavam os chifres para fazer botões e se deixavam levar. Eram aquelas vacas e touros pacífico gado do Cabo. As fêmeas vacas davam bezerros todos os anos, desde novilhas e mesmo as velhas seguiam parindo até a morte, umas pretas e lisas que pareciam vidradas no resplendor e brandura e outras de muita virtude, que eram leves e duras, vacas como que umas órfãs da rainha, oh que trabalhos tinham aqui por nossos pecados, obrigadas a mísera vida cumprindo uma sentença, vacas do céu, desconfiadas, cada uma a penar por si, sem tempo, cha cha cha, samicas doudejais vós? cha cha cha demoninhadas, de olhos tão marejados, senhoras, que cada momento de hora são mil anos de tristura (MIRANDA, 1996, p.101).

E se o mundo cerceou sua liberdade única de existir, aonde Oribela

encontrou espaço para ser, como vamos insistindo, tão plural? No campo da

Literatura temos a resposta: em seu diário.

Embora não seja objetivo desta pesquisa uma análise profunda do diário

enquanto gênero literário, pensamos que seja relevante e enriquecedor pensá-

lo. E o é porque, não a toa, foi a forma de escrita criativa escolhida pela autora,

Ana Miranda, para dar voz a sua Oribela. Moça silenciada pelo discurso

religioso da igreja, pelos desejos arbitrários da monarquia portuguesa e pela

moral patriarcal vigente em seu tempo, a protagonista encontra na escrita de si

um campo de liberdade: ali, ecoa a profusão de vozes e silêncios ao seu redor,

o desmundo que explora a cada dia, as suas sensações diante do novo e os

seus pensamentos e desejos mais íntimos, sem a censura onipresente nos

seus dias pelos poderes que ditavam as regras condicionais de sua existência.

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No diário, privilegia-se a voz de quem escreve. A personagem não é

apresentada por outro narrador – também ele construído e embasado com

julgamentos e preceitos internos na hora de falar sobre o outro – mas por si

mesma. Na escrita de si e no fluxo de consciência, a necessidade vital de

verbalizar e expor sem interrupções ou dissonância de uma voz contrária ou

externa. Em seu diário, Oribela podia falar por si – para si, em si, ouvir-se –

sem a opressão de quem regia o mundo como ela o conhecia. O diário é,

portanto, o espaço de si mesmo.

Mas o diário é, também, o direito ao silêncio, ao recolhimento em si, ao

estar só consigo mesmo, ao exercício da reflexão e à solidão das próprias

hipóteses. Oribela, para o mundo fora dela mesma, era mistério. Ainda que

tentassem lhe arrancar as palavras – muitas vezes sob penas físicas, como

Francisco de Albuquerque –, ela escolheu estar em si. No pacto ficcional

(LEJEUNE, 2008) que trava com o leitor, ela permite, pouco a pouco, página a

página, desconfiada e arisca, a desfolhagem e as descobertas:

(…) Mas nem dobrou minha alma em joelhos, nem desvendou meu coração em seus traços. Guarda tuas misérias como secretas, do que te não arrependerás. Mais língua, mais dor. Tudo vem em seu tempo e os nabos pelo Advento. Nem és dom Diniz, que fez tudo o quanto quis. E me fez beijar uma cruz. (…) Fui calada. Ruim do calar é que mais se pensa, mais se alembra e mais se ouve o outro e não a si (MIRANDA, 1996, p.59-85).

Para além do mistério de ser, esta escrita implica a possibilidade de uma

voz dissonante que, ao oferecer à História um novo ponto de vista, corrompe e

subverte os ecos absolutos; passa à margem do discurso oficial já que não tem

compromisso com a suposta imparcialidade histórica. Uma escrita

fundamentalmente formada pelas impressões da protagonista e que não busca

necessariamente retratar fatos com precisão e acuidade. Busca, sim, a riqueza

da visão íntima e pessoal das lentes com as quais Oribela enxergava e

apreendia os desafios do microcosmo que habitava. Ela é, por excelência, tão

subjetiva quanto o próprio romance; gênero este que se apropria de todos os

outros e torna-se tão híbrido quanto o desejo do autor direciona a criação.

Como forte característica da forma, entretanto, a redação de um diário

está ligada à cronologia, ao tempo, aos dias, ao cotidiano, e ao que queremos

guardar dele. A duração de um diário pessoal é imprecisa e varia de acordo

com a vontade de seu autor em escrever, contudo, no diário-romance, ela pode

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vir explícita ou oculta por elementos que deixam pistas e que instigam o leitor a

descobri-la.

O diário de Oribela aparece desse segundo modo; porém, pode-se

concluir que, pela data histórica do naufrágio da nau que levava o Bispo

Sardinha de volta ao reino – e, dentro dela, tanto a Velha degredada quanto

Francisco de Albuquerque, marido e algoz de nossa heroína –, sabe-se que o

romance tem uma média de duração de um ano: Oribela desembarca em 1555,

e a nau fracassa no intento de retorno à Metrópole em 16 de junho de 1556,

nos mares do hoje estado de Alagoas. Vale lembrar que tanto o Bispo Dom

Pedro Fernandes de Sardinha quanto os outros 90 viajantes embarcados na

nau foram devorados pelos índios Caeté, no que, posteriormente, se tornou o

Manifesto Antropofágico.

Dividido em 10 capítulos narrados em primeira pessoa (A Chegada - 21

relatos, A Terra - 18 relatos, O Casamento - 24 relatos, O Fogo - 25 relatos, A

Fuga - 7 relatos, O Desmundo - 20 relatos, A Guerra - 17 relatos, O Mouro - 27

relatos, O Filho - 15 relatos e O Fim - 5 relatos) e com um total de 213 páginas,

o diário traz narrativas que se supõem tão cronológicas quanto

complementares. O título de cada um desses capítulos já dá uma idéia – ou um

brevíssimo resumo – do que nele será exposto, além de terem ilustração da

mesma autora da obra, Ana Miranda. Os desenhos são híbridos de seres

mitológicos com as transformações pelas quais passa Oribela.

Primeiro, cruzando os mares, chega sereia. Sedutora, com sua pele

branca que contrastava na remota e tupiniquim paisagem, dos homens. Em A

Fuga, a sereia ganha asas para voar ao longe. Já em A Guerra, percebe-se um

cruzamento entre uma vaca e um bode, a metáfora da mulher que tem a

demonização feminina preconizada pela Igreja; não por acaso, é aqui que

Oribela tem a sua fuga mais significativa. Em O Mouro, um ser que igualmente

atravessou os mares e cruzou os céus do mundo com sua cauda de sereia,

sexual, sedutor e alado. As asas da liberdade do homem, o amor que libertou

Oribela. Em O Filho, vemos uma sereia com chifres de bode e tetas de vaca,

ambas metáforas poderosas ao longo do romance e, muito provavelmente,

simbolizando o adultério e a paternidade da criança4. Ao fim, torna-se a árvore

4 Como acusara (previra?) Dona Branca de Albuquerque na página 198 de Desmundo (1996): (…) E que

o filho que trazia eu era um bastardo chifrudo que ia nascer com os cabelos ruços.

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da vida e as raízes fincadas na terra do desmundo observando tudo ao seu

redor. Essas ilustrações, inclusive, ganham respaldo histórico. Segundo Del

Priore:

(…) Textos bíblicos e jurídicos davam caução à menoridade da mulher, e a Igreja valia-se da eloqüência dos sermões - meios eficazes de cristianização - para difundir a idéia da mulher-sereia, da mulher-diaba, da mulher perigosa. A piedade mariológica, que tivera penetrante alcance na vida colonial, colaborava para esvaziar ainda mais qualquer conteúdo de sedução que se quisesse enxergar nas mulheres. O modelo de feminilidade que vicejava era ditado pela devoção a Nossa Senhora e correspondia a comportamentos ascéticos, castos, pudibundos e severos (DEL PRIORE, 2009, p.33).

O diário de Oribela é a narrativa de seus dias no pedaço de terra que lhe

coube (des)ocupar. Desenhada e descrita com a liberdade que nos permite a

arte, muitas vezes maior que as possibilidades – reduzidas – da própria vida.

Em sua obra O livro por vir (1959), o ensaísta e escritor Maurice

Blanchot sugere que o diário é quase que um espaço catártico para quem o

assina:

(…) O interesse do diário é sua insignificância. Essa é sua inclinação, sua lei. Escrever cada dia, sob a garantia desse dia e para lembrá-lo a si mesmo, é uma maneira cômoda de escapar ao silêncio, como ao que há de extremo na fala. Cada dia nos diz alguma coisa. Cada dia anotado é um dia preservado. Dupla e vantajosa operação. Assim, vivemos duas vezes. Assim, protegemo-nos do esquecimento e do desespero de não ter nada a dizer. (…) Tenha se sentido de certa maneira obrigada a voltar para junto de si, num diário tagarela em que o 'Eu' se derrama e se consola, isso é significativo e perturbador. O diário aparece aqui como uma proteção contra a loucura. (…) O diário é a âncora que raspa o fundo do cotidiano e se agarra às asperezas da vaidade. (…) O pequeno recurso contra a solidão que ele garante (BLANCHOT, 2005, p.273-274).

E era justamente em seus escritos que se desvelava, para nós, Oribela.

As muitas Oribelas. Complexas, singulares, particulares, multifacetada. Em sua

palavra escrita, conhecíamos a personagem que não queria esquecer-se de

quem era, que narrava a Temericô seus dias passados em Portugal, o mundo

como antes conhecera – melhor dizendo, como lhe fora apresentado – as

vozes que transcrevia, a pluralidade dos discursos, o estar sozinha em terras

de ninguém, o derramamento de si e o transbordar de impressões.

A narrativa permite, ainda, que se perceba um sujeito em crise, um ‘eu'

que não pertence mais a nenhum dos mundos que conheceu. Não cabe em

sua origem e renega o seu ancorar em uma vida que veio por imposição, nunca

por escolha. Ali, a narradora se desnuda e expõe o prazer da sexualidade, as

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desilusões com o fracasso sucessivo das suas fugas, as marcas e traumas

pelos abusos que a vitimaram, o inconformismo com o próprio destino, suas

desventuras e fantasias de menina, seus medos e descobertas de mulher. São

linhas que tratam das diferenças abismais entre a criação que recebeu no reino

português e a realidade brutal do pedaço de desterro no qual desembarcou.

Por meio dos seus relatos, se enxerga uma Oribela que sofre, que cresce, que

luta, e que não arrefece. Que insiste e, ainda que ferida, não esmorece.

O diário retoma, aqui, a função primeira que conhecemos ainda em

nossa infância: o cúmplice de segredos envolto pela magia do mistério, do

secreto, do que está inteiro em nosso íntimo e a salvo da curiosidade alheia. O

que pertence somente a nós mesmos, o nosso espaço indivisível e inabitado

com o outro. O diário de Oribela é o seu lugar no (des)lugar do Brasil. É nele

que ela se lembra de quem é e reflete sobre a pessoa em que está se tornando

devido às circunstâncias. Novamente citamos Blanchot (1959) e transcrevemos

aqui a bonita ponderação que fez a respeito do diário:

O diário íntimo, que parece tão livre de forma, tão dócil aos movimentos da vida e capaz de todas as liberdades já que pensamentos, sonhos, ficções, comentários de si mesmo, acontecimentos importantes, insignificantes, tudo lhe convém, na ordem e na desordem que se quiser, é submetido a urna cláusula aparentemente leve, mas perigosa: deve respeitar o calendário. Esse é o pacto que ele assina. (…) Escrever um diário íntimo é colocar-se momentaneamente sob a proteção dos dias comuns, colocar a escrita sob essa proteção, e é também proteger-se da escrita, submetendo-a à regularidade feliz que nos comprometemos a não ameaçar. O que se escreve se enraíza então, quer se queira, quer não, no cotidiano e na perspectiva que o cotidiano delimita (BLANCHOT, 2005, p.270).

Blanchot (1959) vai além e considera que escrever um diário é salvar a

si mesmo da maldade alheia e do sufocar lento perpetrado pelos dias. Uma

maneira de manter-se vivo na passagem maçante das horas.

Conhecido estudioso de Maurice Blanchot, Michel Foucault (1974),

segue a mesma linha e trata das escritas de si em dois formatos: os diários e

as cartas. Em notável passagem, o filósofo coloca que escrever em um diário

é, também, uma forma de cuidado de si, de proteger a si mesmo, do recolher-

se em si, do atingir a si mesmo, do viver consigo mesmo, do bastar-se a si

mesmo. E de quê mais precisava nossa heroína senão de toda proteção que

lhe pudesse ser dedicada? Inclusive a de si mesma.

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E, assim, podemos acompanhá-la em suas vivências, seus medos e

desejos, em seus ciclos tão íntimos – da menina que casou forçosamente ao

descobrir-se sexualmente mulher com um outro parceiro – e, posteriormente,

mãe. Uma Oribela que busca a si. E que descobre muitas de si mesma, criadas

e renascidas ao sabor dos ventos que tantas vezes foram furacões em sua

vida.

Depois de leituras atentas ao dito, ao não-dito e ao desdito nas linhas e

entrelinhas da obra, pode-se concluir que é difícil ser Oribela. Não pela prática

da alteridade através do literário, esta bastante palpável, mas pelo lugar que

(des)ocupa enquanto personagem central da nossa História. Oribela como

mulher, relegada a agente passivo na formação de um país, quando tão

ativamente atuou. Oribela como um ser de tantas faces, entre outros seres

também multifacetados, aonde repousam nossos primórdios. Através das ricas

descrições de seu desmundo – um Brasil-desterro tão virgem quanto cru – e

das suas desventuras, vamos tirando o véu uniforme das mulheres que

chegaram para construir, pioneiras, o que hoje chamamos de nação. Vamos

conhecendo suas impossibilidades e suas determinações.

É difícil ser Oribela, e não é. O é porque experimentamos a sua dor e

podemos nos reconhecer nela, nos apropriamos de sua trajetória porque

somos capazes de ler na sua narrativa ficcional situações recorrentes na vida

real; Oribela é contemporânea porque, em si, é o retrato de ontem travestido de

hojes e amanhãs. E, ao mesmo passo, não dói porque, com olhos

acostumados, talvez um pouco cínicos e muitas vezes resilientes, sabemos ser

essa a realidade assoladora e banalizada de muitas mulheres nesses Brasis de

aindas. Ainda é. Ainda é difícil. E não parece ser assim tão mais fácil com a

passagem cronológica do tempo que modifica espaços; ao contrário, quanto

mais se toma consciência das condições históricas as quais foram submetidas

essas mulheres, mais árduo e dolorido parece sê-las e ocupar os seus papéis.

É tão mais penoso colocar histórias em seus rostos. Muito mais por

reconhecimento dessa dor do que por aceitação.

Insistimos, é difícil ser Oribela. É difícil se reconhecer e se encontrar na

multiplicidade de si, aonde nos percebemos tantas e tão frágeis, tão capazes e

tão vulneráveis; aonde precisamos identificar ou mesmo discorrer sobre os

nossos comportamentos variáveis, que ora são oprimidos e ora são

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opressores. Em um mundo que impõe singularidade, homogeneidade,

normativas e diretrizes de atuação social, é crise ser plural. E, entretanto,

assim o somos.

Se Oribela – impossibilitada de ser uma só pelas circunstâncias – foi

tantas, Desmundo, o romance que narra a sua vida é, sobretudo, desencaixe:

foge à leitura hermética e claustrofóbica de uma só corrente teórica, convida a

uma infinidade de interpretações e análises, desafia a crítica que busca

fórmulas prontas para compreender a totalidade de uma obra. Romance

contemporâneo que trata das nossas origens, diário histórico que parece

centrado em temas atuais, apresentando fechamento em aberto tracejando as

linhas da vida real (a leitura permite igualmente um final melancólico tanto

quanto um feliz), brincando com o hibridismo das formas e procedimentos

literários. E evoca ainda intertextos e metaficções, trata do passado temporal

falando no presente verbal e salta aos olhos para corromper e despertar as

vistas cansadas que enxergam, na dimensão brutal da História, somente os

óleo sobre tela reproduzidos exaustivamente nos livros pedagógicos que

acompanham nossos anos de formação.

3.2. Velha, a sábia

Além de serem ecos dos discursos um do outro e assim se fortalecerem

mutuamente, a Igreja e o Estado também construíram ao longo dos anos

relações profanas e bastante distantes do sagrado que propagavam. Talvez o

caso mais conhecido desse entrelaçamento literalmente íntimo que permeia a

nossa história seja o da freira portuguesa Paula Teresa da Silva e Almeida, a

Madre Paula. Nascida em 1718, decidiu ingressar no Convento de Odivelas

aos dezessete anos de idade e foi a mais famosa amante da nobreza: foi, a

seu tempo, paixão vitalícia de Dom João V e, anteriormente, de D. Francisco

de Portugal e Castro, conde de Vimioso. A relação entre o rei e a soror era tão

conhecida que quando alguém necessitava de algum favor do monarca,

recorria à religiosa como intermediadora. Para além, o nobre a cercou de luxos

dentro do próprio convento – o que acabou por gerar o Sumário de Vária

História (1872), documento de Ribeiro Guimarães que expôs como vivia a

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Madre em seus aposentos cercada por suas nove criadas – e foi pai de um

filho seu: José, conhecido como ‘Menino de Palhav ’ e, mais tarde, inquisidor

geral. As indiscrições do rei escandalizavam igualmente sua corte e seus

súditos, mas jamais fora repreendido por um ou por outro. Madre Paula morreu

trinta e cinco anos após o nobre - aos sessenta e sete anos de idade –, vivendo

durante todos este tempo no exílio do Convento das Odivelas e recebendo

herança do rei, porém mantendo relações com os fidalgos que ainda se

aproximavam dela.

É sabido que nem sempre os motivos que faziam muitas mulheres se

enclausurarem em conventos e demais estâncias religiosas se tratavam de um

chamamento ou aptidão para exercer e perpetuar a palavra de Deus na terra.

Às vezes era a única maneira de sobreviver à imposição da família, à pobreza

– pois, à época, só os filhos homens tinham direito à herança –, à solidão de

quem não se casou e constituiu família e, em aspecto menos visado

atualmente, a busca por liberdade. Sim, a antítese é verdadeira: inúmeras

mulheres portuguesas – sobretudo a partir de 1700 – buscaram na clausura

religiosa a liberdade que a vida lhes negou. Mais ainda porque, à época, os

conventos gozavam da falta de observância moral dos dogmas católicos e

estavam à mercê das vontades e libertinagem sexuais da nobreza, ainda mais

em se tratando do já citado Dom João V.

Os conventos eram tão liberados na época desse reinado (tratamos aqui

do século XVIII), que a fuga da fidalga D. Mariana Josefa, filha dos condes de

Tarouca, virou notória: em 1728 a moça escapou da severa vigilância dos pais

e, protegida pelo conde de Alvor e pelo próprio rei, fugiu no meio da noite para

o mosteiro das carmelitas calçadas de Carnide.

Trazendo a voz ficcional feminina ao retrato histórico do dogmatismo

religioso que se estendeu por anos em Portugal e eclodiu no escândalo de

freiras grávidas no século XVII, Ana Miranda assim descreve a vida prévia da

Velha, personagem que habitava um convento, era tida como sábia por Oribela

e que veio ao Brasil para pagar por seus pecados ao acompanhar as

mancebas na nau e prepará-las para a vida na Colônia:

Era esposa de Deus. (…) Mas não no convento. Ali era o do melhor. (…) Pois vinham homens provar das mesas de doces, maçapão, folhado de amêndoas e de sais (…) Enviavam às irmãs, em troca de favores do corpo e da alma, que se deleitavam elas ali em liberdades

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de tudo o que houvesse, de amor, de poesia, vinho, uva, veludo, espírito, uma sala de livros recoberta, onde se achava escrita toda a sabedoria do mundo, em palavras e iluminuras, quadros de beleza, de cenas, de países, de céus e infernos e música, umas violas, pandeiros de fitas e fora mesmo um dia lá o rei a se banquetear no convento, para ver um auto levado pelas noviças de rosto d'alfeni e doces vozes, a comer Sua Alteza umas lebres, pernas de veados, congos, lampreias, filhós de manteiga, frutas de urzes e ordenar de seu dinheiro roupas de seda para as freiras e perfumadas águas da Alimania e de mais longe, filtros de amor, arminhos aos regaços e luzes para a noite completa, quantas luzes se quisessem nas celas, nas salas, nos passadiços e escuros desvãos por se assim querer, para encontros de homens e mulheres, conversas sem hora, sem assunto, com a gente mais sabida e a mais lustrada, de tudo que já se soube neste mundo, as mais estranhas lendas, a abismar, a assombrar. (…) Olhos desvendados para se ver no mundo o que se queira, os quebrantos, os jogos, as profecias, o prazer de saber um pouco mais e mais e mais, do que se quiser, até mesmo a saber a cor do Diabo, as crenças de Finisterra, as origens da vida e da morte. Que tudo se pode averiguar (MIRANDA, 1996, p.87-88).

Não à toa, é justamente neste mesmo século XVII, anterior à fuga das

fidalgas, que se observa um enorme número de freiras grávidas, tanto em

Portugal quanto no resto da Europa, como exposto acima. Diziam elas,

comumente, estarem grávidas de Deus; a Inquisição, entretanto, ao tomar

conhecimento do fato, não perdoava e as queimava na fogueira, seguindo a

sua prática de perseguição. E assim, novamente, observamos a narrativa –

permeada de culpa no concernente ao próprio corpo e resiliência completa

diante dos castigos – de nossa personagem ao descobrir-se ela mesma

grávida:

(…) Com várias astúcias conseguira a Velha iludir a barriga, mas o suposto crescera tanto que viera a abadessa num exame rigoroso, descobrindo ser a verdade o que de mal se pensava. Seria filho de Deus? Negara a Velha, por honesta, que pudera inventar ser como Maria, mãe de Deus, mas o pecado seria maior. A sentença dissera que, por mostrar arrependimento de suas culpas e não constar em o sobredito pecado coisa que ajudasse o demônio, nem que com ele tivesse pacto, tácito ou expresso, a condenaram à privação de cargo, de voz ativa ou passiva, para que perpetuamente não pudesse mais servir à religião. Que lhe tirassem o seu véu preto e que fosse ela encerrada em cárcere num convento dos arrabaldes, para cumprir penitências, jejuns e prostrações. Ficara sem permissão de comungar e que não fosse àgrade ou à portaria nem escrevesse cartas nem mandasse recados nem os recebesse e que os sobejos de sua comida se não pudessem misturar com os das outras freiras. Dissera eu. Mas que severidade, se outras irmãs pariram e vivem em tantos conventos? E dissera ela. Foi a mulher do pai que assim ordenou e era aquela mulher uma sombra poderosa. A Velha cumpria a penitência com humildade quando o que fora causa da maternidade, pai, dela se compadecera e a livrara das penas, desde que fosse embora do reino. (…) Mesmo em tanta idade, de quase quarenta anos, velha nos confins da vida, teria que enfrentar uma travessia, desde que não morresse. Mereço eu, dissera. A honra a Deus devida,

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dera ela às coisas terrais e mais a seu corpo, que menos merecia, com pouca reverência estava nos santos lugares e tantas vezes tomara o nome em vão, despendera dias em prazeres, o corpo obrara a fazer o que se não defende (MIRANDA, 1996, p.88-89).

Um dos que se basearam na emergência dessas informações históricas

para construir parte de seu enredo literário foi José Saramago. Em Memorial do

Convento (1982), o escritor expõe de forma bastante irônica a perpetuação

dessas relações pouco sagradas entre as freiras e seus donos – que se viam

Deus na terra –, os reis:

(…) E também em pessoa os infantes meus manos e senhores vossos, ajoelhai, ajoelhai lá, porque vai passando a custódia e eu vou passando, Cristo vai dentro dela, dentro de mim a graça de ser rei na terra, ganhará qual dos dois, o que for de carne para sentir, eu, rei e varrasco, bem sabeis como as monjas são esposas do Senhor, é uma verdade santa, pois a mim como a Senhor me recebem nas suas camas, e é por ser eu o Senhor que gozam e suspiram segurando na mão o rosário, carne mística, misturada, confundida, enquanto os santos no oratório apuram o ouvido às ardentes palavras que debaixo do sobrecéu murmuram, sobrecéu que sobre o céu está, este é o céu e não há melhor, e o Crucificado deixa pender a cabeça para o ombro, coitado, talvez dorido dos tormentos, talvez para melhor poder ver Paula quando se despe, talvez ciumento de se ver roubado desta esposa, flor de claustro perfumada de incenso, carne gloriosa, mas enfim, depois eu saio e lá lhe fica, se emprenhou, o filho é meu, não vale a pena anunciar outra vez, vêm aí atrás os cantores entoando motetes e hinos sacros, e isso me está fazendo nascer uma ideia, não há como os reis para as terem, as ideias, senão como reinariam, virem as freiras de Odivelas cantar o Bendito ao quarto de Paula quando estivermos deitados, antes, durante e depois, amen (SARAMAGO, 2013, p.173).

Não se pode aqui asseverar que Miranda se valeu de mais uma

referência literária para construir sua personagem – posto que o romance

histórico de Saramago se situa no início do século XVIII e o dela em 1555 –

mas a autora certamente sabia dessas verdades históricas que tratavam da

corrupção religiosa e que se fizeram conhecer mais pela literatura do que pelo

discurso histórico oficial, posto que este esteve sempre preocupado em velar

as verdades mais inconvenientes que pudessem corroer sua narrativa heróica

ou jogar sombra de dúvida nas certezas que se diziam superiores a quaisquer

suspeitas. E, portanto, há, presente no romance, o diálogo entre o real e o

ficcional tão importante para Linda Hutcheon em sua teoria.

Fato é – a personagem de Desmundo que aqui estamos tratando, a

Velha, aparece pela primeira vez na página 24 e vai contando sua história

pelas linhas de Oribela. Torna-se então conhecido que ela habitava o mosteiro,

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se relacionou com homens e que veio ao Brasil degredada por ter engravidado

de um nobre. Ela pode ser considerada, portanto, como mais um índice literário

da mulher oprimida pelos poderes patriarcais de seu tempo por ter subvertido

uma ordem e rompido com o que era esperado.

Outro papel que assume a personagem é o de retratar o que acontecia a

mulheres consideradas ‘sábias' para além dos padrões desejáveis pelo

universo eclesiástico, ainda que ela própria fosse parte integrante desse

cosmos religioso. Há sempre uma espécie de crise permeando a Velha;

também ela não cabe em lugar algum, também ela é um sujeito expatriado que

está no limiar entre o que é de verdade e aquilo que foi educada para ser.

Subversiva por excelência, encontramos nela a freira que engravida –

não fica claro se as relações sexuais com o nobre (pai biológico da criança)

foram consensuais ou impostas – e é também a religiosa que, por ser sábia,

necessita ser exorcizada. Mulher inteligente não podia ser coisa de Deus. E, só

aí, transcendeu os dogmas desejáveis a uma cristã, mesmo sendo ela mesma

parte do sistema clerical.

Sobretudo, também nela se encontra a convergência teórica entre o que

antes parecia díspar: é o tipo de Lukács e a periférica de Hutcheon em uma

trajetória – guardadas as devidas particularidades – como a de Oribela. Não

está exposto, reiteramos, se a relação estabelecida com o nobre foi forçosa ou

voluntária, porém é evidente que ela foi enviada ao Brasil porque não tinha

como – por sua posição socialmente inferior – lutar contra a nobreza e

permanecer em seu país a contragosto do poder do Estado. Uma freira,

grávida. Nada menos que de um nobre. Toda a construção da personagem de

Ana Miranda é a contradição em si. Toda ela é a danação do pecado e da

sabedoria em uma mulher, a possuída pela malignidade como exposto por Del

Priore anteriormente, embora fosse também um eco da perpetuação da voz

divina. Todo paradoxo de pertencer a um sistema, ser dele sumariamente

excluída e viver, ainda, sob seu dogma: o castigo por saber, e que fosse

retirado à força – ou por coerção espiritual – essa sabedoria.

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No excerto abaixo5, pode-se ler indícios importantes para o nosso

estudo, tais como o amordaçamento da Velha por longos períodos por 'saber

demais’, a mordida da cobra – simbolismo cristão da serpente que remete à

tentação do conhecer –, a picada justamente na Velha e daí, por isso, ser

necessário um exorcismo (o tirar o demônio, o veneno do conhecimento que se

instaurava na carne, o calar para sobreviver). As mulheres que buscavam e

encontravam alívios umas nas outras e em suas conversações, as índias

sequer batizadas na religião católica que eram consideradas pela Velha mais

próximas de Deus e com maior entendimento dos preceitos cristãos do que os

padres, o sofrer e a dor que deveriam ser também em silêncio para não

perturbar o sossego dos religiosos. E, não menos importante, a mensagem

implícita de que a personagem fora amordaçada justamente por relatar os

abusos de poder dos homens (novamente o Bispo e o Governador

representando as opressões religiosas e políticas):

(…) Em vez de a ver reinando em suas glórias merecidas de letrada, em vez de a saber sobre livros ou a arrazoar entre os mais ouvidos, estava ela assentada num canto do chão com a boca amarrada em uma mordaça e uma inchação no rosto, como um castigo de ser mais que os outros e quedei a pensar, mas fui ao desembarcadouro. Que pode um prisioneiro fazer por outro? (…) E se eu queria um rico presente, daria, uma pele, uma pedra preciosa, bastava dizer, pois estava mansa e assim pedi e me soltou o pé do catre cortando a corda. Queria mais uma outra coisa, que seria de grande serventia à alma, ir ver a Velha, na cidade e travar conversações, ressentia eu de nossa amizade. O que permitiu Francisco de Albuquerque, fosse com ele num domingo, para a missa. Vivia a Velha ainda na casa de gentias, mas fora mandada tapar a boca com a mordaça, que o conhecer numa mulher é coisa do Demo e só a podia tirar para a confissão ou à ceia, andara dizendo umas coisas da terra, do bispo vil, do governador (…) ficavam as pessoas atônitas daquilo que ela falava e de querer fazer sua própria justiça, enquanto a Parva podia gritar nas ruas todas as verdades. Mas deu o padre licença para que a Velha pudesse falar e sem mordaça me beijou. De uma mordida de cobra foram suas maiores penas, estivera para morrer, de rosto cheio e a sair um caldo de inferno, sem trégua, um espírito maléfico entrado por ali, traindo com a desordem, dentes serrilhando, sem gritos para não aborrir os padres que demais já se sentiam aborridos com as intrigas. Viera um cirurgião, com umas águas de ervas, fervedouros, unturas, estopadas, a ensalmar, de nada servindo, depois um natural selvagem lhe viera com uns chocalhos, cantorias, archote queimado e um físico, com uma talha de vinho, cinza de palha, alho pisado e pólvora, a fazer a Velha vestir uma camisa de homem pelo avesso para beijar a cruz, a reverter, depois fizera rezas de feitiços do achaque, como um anjo custódio, dizendo que para si passasse o

5 Entretanto, para clareza completa do leitor acerca da personagem e das circunstâncias às

quais estava submetida, recomendamos a leitura íntegra dos relatos no Diário de Oribela às páginas 110, 132 e 133.

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mal e ficando ao fim deitado numa cama feito morto, espumara tanto na boca que dali saíra o espírito maligno da Velha, ficando esta boa de um dia ao outro. (…) E que mais lhe queriam tapar a boca por defender que amancebadas pudessem entrar na igreja e ver missa, mesmo as nuas. E disse ela. Eu ladrarei quanto puder. Escrevia cartas e mandava ao rei, que jamais respondera. Tornasse à cidade o padre Gago

6, teria ela suas penas suspensas (MIRANDA, 1996,

p.110-133).

É interessante observar como muitas vezes é difícil fazer uma leitura

totalizante e concisa das personagens femininas em Desmundo, posto que são

elas cheias de nuanças e complexidade em suas muitas fragmentações e

condutas. A Velha, entretanto, tão sábia e letrada das coisas do mundo, tão

capaz de enxergar os abusos (dos homens, da religião e do Estado), tão séria

e destemida na luta dessas defesas e direitos, muitas vezes é a primeira a

aconselhar Oribela a abaixar a cabeça aos poderes e acatar seu destino com

resignação e submissão à ordem, embora ela própria não o tenha feito em

alguns momentos de sua trajetória. Talvez por que ela mesma tenha sido

vítima de inúmeros sofrimentos por suas contradições, por sua inteligência e

por seu descaber nos lugares reservados a si, aconselhou à sua protegida um

modus operandi diferente do dela. Era fonte de carinho e sabedoria constantes

à Oribela e, indo de encontro às escolhas que fez na vida – pode ser que, por

isso mesmo, pelo vivenciar os castigos na pele – recomendava que nossa

protagonista acatasse os desígnios do destino e, com isso, parasse de lutar

contra as forças que tanto a sufocavam:

Num ímpeto falei de minhas desventuras, do que disse a Velha não ser eu tão infeliz assim, de boa índole era meu esposo, que me conformasse e parisse crias. Do que disse eu, assim por dizer, nunca querer parir de tal aventureiro e dei notícia dele nos confins do Oriente, entre mafamedes e homens que serviam de mulher em pecados abomináveis, devia ele de ser tocado pelos maus sopros daquelas bandas, comera carne de caíres, fossem mouros e tinha Francisco de Albuquerque, em sua carne, carne moura. Assim como no engolir o pão sagrado tem a nossa carne a carne de Deus. Da mãe, tivesse eu por ela respeito, sendo mãe de meu esposo lhe devia eu reverência por ser de mais posto e que a filha frutificada do filho com a mãe, se assim fosse, eu a tomasse por minha menina e a amasse como fruto meu. E tantos mais menininhos de sangue misturado, tudo aquilo queria dizer filho e mais filho, que Francisco de Albuquerque era de apetite bravo de touro nas mulheres. E disse ela. Mais melhor para ti. Que te deleitarás se souberes. (…) Depois de

6 O padre Manoel da Nóbrega era conhecido como ‘o Gago’ nos hospitais onde instaurou a

prática de exorcismo. Chegou ao Brasil em 29 de março de 1549 - após a recusa de Simão Rodrigues, que preferiu ficar em Portugal - depois de quase dois meses de viagem em uma comitiva de seis navios e mil pessoas. Ele nunca mais retornou à Europa.

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estar um grande espaço pensativa, a Velha disse. Deves deixar os moimentos da alma e aceitar teu destino à sombra de teu esposo e se desenfadar. Mas os sonhos não são males. São desejos (MIRANDA, 1996, p.133-136).

Ao longo do romance, nota-se também nos discursos da Velha outro

paradoxo com aquilo que a personagem aparenta ser; ou que, pelo menos,

acreditamos que ela seja e formamos opinião a respeito dessa personagem

pela narrativa de Oribela: destacamos aqui a marcante passagem da página

135, em que a Velha acaba por ecoar paradigmas presentes até hoje, como

por exemplo, o valor da mulher estar atrelado à juventude e à beleza, a

desimportância da mulher enquanto ser social e o papel que a mulher de fato

deveria ocupar na sociedade – de esposa e de mãe, arrazoando assim os

estudos de Del Priore. Ao passo que mostra-se uma rebelde, lê-se, também,

um amargor e certa desilusão com a própria práxis. Insistimos, portanto, nas

antíteses e nos usos constantes da oposição como recurso criativo das

personagens femininas dessa obra.

Também podemos, através dela, fazer mais uma intertextualidade com

os contos-de-fadas e atribuí-la o papel da Fada Madrinha, ser que povoa o

imaginário dos contos infantis ao ajudar as Princesas com conselhos, apoio,

carinho, alertas, sabedoria ou vestidos. Observemos a passagem do

casamento de Oribela:

Tirou a Velha de uma saca um véu de renda delicada com nata e um livro de rezas cristãs, tudo com a brancura da virgindade, de que todas as noivas se arregalaram em exclamações, cobiças e disse a Velha. Era para casar a mais abençoada, que era eu e pegasse os presentes de meu bom noivo. E me cobriu as tranças a ninfêutria com o véu alvo como as nuvens mais limpas e mais altas, pelo que ouvi muitos ahs e ohs de admiração e foram buscar o espelho da Velha, que me visse eu e vi, como nunca fora, me quebrando um pouco o coração. (…) Se não há conhecimento não pode haver entendimento. Disse a Velha. Que esperem. Ainda haverão de muito ganhar. Não sei se falou de ironia, querendo dizer açoite e castigo, ou se falava de adorno (MIRANDA, 1996, p.68).

É nela também – na Fada Madrinha subversiva que ironiza, ao fim de

seu discurso, no preparar as moças para o casório, e fala em conhecimento e

entendimento das coisas – que nossa heroína encontra alento e conforto. Nos

seus momentos de exaspero, é com ela que quer falar. Quando pede um

presente ao marido, é o de vê-la. E quando Francisco não conseguiu arrancar

do modo costumeiro a informação que queria de Oribela – quem havia lhe dado

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abrigo em sua fuga? – ameaçou castigar a Velha se não obtivesse sua

resposta:

(…) Quis ele saber onde estivera eu neste tempo agasalhada e disse eu que estivera perdida na mata, que não, dissesse eu a verdade e me negando a dizer quis ele dar castigo à Velha por suas culpas acusando-a de me ter feito mal, como fugida e que se bastava olhar a boa circunstância de minhas carnes, que se houvera estado eu perdida na mata teria a apresentação de um mau-trato e a aparência de um soçobrado, quis meter em tormentos para que confessasse seu crime quando em joelhos lhe pedi misericórdia, que não fora minha amiga a dar agasalho, quem fora, que dera? E disse eu, sem haver em meu coração uma suspeita ou uma dor (…) foi o mouro (MIRANDA, 1996, p.186).

E então Oribela lhe contou. Não podia ela com a dor da amiga, embora

pudesse suportar o castigo ao amante talvez por que se o culpasse pelo

adultério e pela luxúria. A mulher solidária a outra mulher nos desterros de um

Brasil. A mulher amparo da outra nas solidões e silêncios impostos pelos

homens. A mulher que sacrifica o ideal de amor pelo leal da amizade. A mulher

que se vê liberta na ausência masculina e na presença da confidente, ideia

continuamente exposta na obra.

E a Velha, degredada para não ser morta, morre na nau naufragada do

Bispo Sardinha que retornava ao reino. Sua morte, por si só, já deixa claro

mais um índice literário de oposição: embarca na nau para sobreviver e se

afoga na ânsia por libertar-se, posto que agora julgara ter-se já expiado da

indiscrição de seu pecado. Todavia, a sua culpa maior era ser mulher; por isso,

o castigo perpétuo e sem salvação.

3.3. As mancebas, agouro da nau

Sete era o número de mancebas embarcadas na nau Senhora Inês que

tiveram seus destinos entrelaçados aos desejos arbitrários da monarquia

portuguesa e do discurso católico, e desembarcaram no Brasil para gerar os

filhos brancos demandados tanto pela ordem dogmática e pela metrópole:

(…) Na Senhora Inês, de velas rotas, muitas avarias, lançados os ferros a canalha de marinheiros não esperou, tirou seus barretes e ao chão no convés os perros gritaram desatinados, uns muito para rir, outros em doidas lágrimas, com as mãos para o céu louvaram a Deus chegar vivos, que não esperavam, em naus, mulheres são mau agouro, em oceanos, fêmeas são baús cheios de pedras muito grandes e pesados, sem serventia nem a ratos a não ser turbar as vistas, nausear as tripas, alevantar as mãos em súplicas e trombetear

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por causa alguma, só pelo prazer, feito os demos. E fôramos sete mancebas, umas sete sombras negras alembrando os sete pecados. Qué? Sempre um dia chega o verão, com suas flores e rosetas. (…) Que o Diabo estava solto, o padre girava a chave, batia palmas, logo, já já, para dentro, descansai pois descansarão. Fizemos tudo trigosas, fomos avante, tornamos atrás, fugindo de Satanás. (…) Almas enganadas, mancebas de danados apetites, putinhas contritas, lá vai a macha, lá vai a velha parida, lá vai a freira fodida, lá vai a virgem destapada, vão açoitar com vosso amor os cornos desse país e mais coisas de tal tormento, aquela entre os lobos. Blasfema das mulheres, dos padres, da Virgem Maria e de Deus. E gritou o padre. Vade retro! Arrenego! Deus perdoe tua boca esmerdada e te meta arreios (MIRANDA, 1996, p.14).

Sete, número simbólico da fé cristã: em seis dias Deus criou o mundo,

descansou no sétimo. Sete braços tem o candelabro, em sete anos Salomão

construiu o templo, sete sacerdotes com sete trombetas deveriam dar sete

vezes a volta na cidade no sétimo dia após a tomada de Jericó, sete foram os

espirros de Eliseu antes de a criança ressuscitar, sete mergulhos no Jordão dá

o enfermo antes de se curar, sete são as quedas do justo até levantar-se

perdoado, sete são os animais puros de cada espécie que foram salvos do

dilúvio por Noé em sua Arca e são sete vacas gordas e sete vacas magras

para os sete anos de fartura e sete anos de miséria da profecia que José

sonhou.

Sete7, número místico do fechamento de um ciclo e da renovação que

traz o próximo; numeral do desconhecido e das mudanças vindouras. Sete dias

da semana, sete esferas celestes, sete pecados capitais, sete graus de

perfeição, sete são os planetas astrológicos, sete ramos da árvore cósmica,

sete são os espíritos do Olimpo grego, sete são as pétalas das rosas, sete são

os mares, sete são as virtudes divinas, sete são os arcanjos, sete são as

maravilhas do mundo. Sétimo céu, são sete as hierarquias dos anjos, os

conjuntos perfeitos, o dia do encerramento dos ciclos. O sete das ordens

planetárias, das moradas celestes, das energias, das ordens espirituais e

morais, do período lunar (que remete a uma nova fase depois da que se

encerra). Sete são as cores do arco-íris, as notas musicais, o número da

dinâmica e do movimento.

Em Literatura, sabemos, nenhum elemento foi deixado ao acaso – ou

por distração esquecida de quem escreve – nas linhas de um romance, ainda

7 Para o pensador grego Hipócrates, o sete era um número virtuoso, que mantém a vida em

movimento e influencia os anjos.

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mais quando se trata de obra tão rica em simbolismos quanto é Desmundo.

Não se pode fazer uma leitura inocente do que costumam chamar de

coincidência: sete é também o número atribuído ao Apocalipse bíblico (sete

são as igrejas, as estrelas, as trombetas, os espíritos de deus, os trovões e a

besta de sete cabeças), além de ser mencionado setenta e sete vezes no

Velho Testamento.

Sete mancebas que chegaram, em 1555 (1+5+5+5=16 - 1+6=7), para

iniciar o ciclo da procriação branca no Brasil que encerrava o seu ciclo

miscigenado apenas por índias e negras; moças que vieram – atendendo à

demanda do Padre Manoel da Nóbrega – para encerrar o ciclo de pecado no

qual viviam os primeiros colonos. Em excertos de cartas históricas remetidas

ao rei datadas de 1549 e 1550 e aqui transcritos, assim se expressava o

religioso ao pedir roupas para cobrir os corpos desnudos das índias e brancas

para gerar filhos:

(…) Também peça V. R. algum petitório para roupa, para, entretanto cubrirmos estes novos convertidos, ao menos huma camisa a cada molher, polla honestidade da religião christã, porque vem todos a esta Cidade à missa aos domingos e festas, que faz muita devação, e vem rezando as orações que lhes ensinamos, e nom parece honesto estarem nuas entre os christãos na igreja, e quando as ensinamos. (…) Muitos cristãos, por serem pobres, se casaram com as mulheres negras da terra, mas bastantes outros voltarão para o nosso Reino por não os querermos absolver, ainda que tenham filhos, por serem casados em Portugal; e nas pregações muito os repreendemos. Se El – Rei determina povoar mais esta terra, é necessário que venham muitas mulheres órfãs e de toda a qualidade até meretrizes, porque há aqui várias qualidades de homens; e os bons e os ricos casarão com as órfãs; e deste modo se evitarão pecados e aumentará a população no serviço de Deus (NÓBREGA apud LEITE, 1955, p.39-79).

São estas mulheres que aqui desembarcaram pelas linhas ficcionais do

diário de Oribela. Elas, que em sua terra nada tinham e viviam sob a égide da

moral cristã, mas que no desmundo eram a materialização do desejo e da

luxúria dos homens, ainda que tenham vindo para cumprir o sacramento. Lê-

se, portanto, mais um paradoxo nas entrelinhas do romance no concernente às

mulheres: arestas congênitas – ainda que se tente – que não se aparam, linhas

paralelas que não convergem entre o que foram criadas para ser e o que são

de fato. Mais subversão, pois são elas as representantes da igreja que trazem

no corpo os desejos pecaminosos, que despertam a gula dos homens, a

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raridade da mulher branca na Colônia equivalendo à flor no deserto, o nada ter,

o pouco ser e o muito valer no que se refere à objetificação da sua carne:

(…) E nos mandaram em joelhos rezar, que fazíamos pouco de nossos ímpetos mulheris dados ao demônio que devíamos temer e vigiar, vivia o Mau dentro de nossas almas negras, para não sermos arrebatadas pelo espírito do maligno e que depois nos fôssemos confessar em joelhos. Filhas dos demos, mas os olhos que se punham em nós destarte, neste país, não eram mais vazios, avistavam curiosos e as gentes até queriam saber nossos nomes, feito agora fôssemos de carne e alma, humanas, talvez com um desprezo por sermos fracas moças mal vestidas, mas não mais aquele não ver as nossas pequenezas, nem parecia que pensavam no que nossas mãos podiam, manter acesos fornos e lumes, lavar roupas nos lavadouros, levar água ou girar as colheres nas panelas, lidar aos teares ou às agulhas e nossos corpos aos deleites da carne, não, nem mais despidas pelo silêncio que a cor de nossa pele branca e o nosso ar de cristãs, mancebas donzelas, era dote. De pobres, éramos ricas, de um tipo de cabedal nascido de nossa própria natureza, feito uma terra boa para plantar, ou uma mulher feia de alma boa. Celebrei em segredo a cegueira daqueles homens tão precisados, por dentro de mim sentia uma ninfa, falada no pregão feito fidalga, bofé, adeus à condição pesada e dura, um altivo coração me vinha, a eu ser um aljôfar que nas conchas nasce, meu orgulho despejado, que havia dentro de cada uma de nós, desfeita que fosse, um coração que lhe no peito não cabia e se há fogo no coração, há água nos olhos. Apenas mulheres, órfãs, pobres, mas tratadas como as italianas, as de pura pele e claros olhos e sem buços, que cheiravam como flores e brilhavam como o raio do sol, rainhas do purgatório, deusas dos infernos, cassandras

8 dos desterros, flores de

desertos (MIRANDA, 1996, p.41-42).

Os sete nomes das sete moças (dona Isobel, dona Pollonia, dona

Urraca, as irmãs dona Tareja e dona Bernardinha, além, é claro, de Oribela)

vão sendo apresentados ao longo do romance, mas é em O fogo que

conhecemos seus passados, nos tornamos mais íntimos de algumas delas e

das suas respectivas representações literárias. Indício interessante e que

reforça nossa ideia da alteridade entre Oribela e a Parva (exposta no item 3.1.

deste capítulo), é que nossa protagonista não revela o nome da sétima

manceba ao longo de todo o seu diário: sabemos que dona Giralda (também

8 Na mitologia grega, Cassandra e seu irmão Heleno tiveram seus ouvidos lambidos por

serpentes quando crianças enquanto brincavam no Templo de Apolo e, por causa disso, podiam escutar as vozes dos deuses. Já crescida, Apolo apaixonou-se por ela e lhe ensinou os dons da profecia. Cassandra, porém, se recusou a dormir com ele. Sua negação em ser amante de Apolo resultou em vingança e ele a amaldiçoou, fazendo com que ninguém acreditasse nas previsões por ela proferidas. Ela prevê a destruição de Tróia pela guerra e avisa a família e a população, mas é considerada louca por todos. Aqui, lê-se também uma intertextualidade com Ilíada, de Homero e nota-se mais um índice simbólico da serpente do conhecimento. Para além, o significado bíblico do nome é da mulher que auxilia, protege e brilha sobre os homens.

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irmã de dona Bernardinha e de dona Tareja) e dona Sabina (irmã de dona

Urraca) morreram ainda em Portugal, e os dois únicos nomes citados na nau –

além dos cinco acima conhecidos – são o da Parva e o da Velha.

Ora, se é óbvio que a Velha não era uma das mancebas – tampouco

veio para casar e ter filhos – resta somente a Parva a figurar como o sétimo

nome, reiterando assim a nossa ideia já exposta anteriormente da alteridade

desta com a própria Oribela, já que ela mesma considerava que havia uma

outra dentro dela (inclusive de maneira tão forte e latente, que chegava a fazer

parte dessa contagem cabalística das moças embarcadas).

Isto posto, retomamos aqui a nossa proposta feita ao final deste capítulo

de refletir literariamente a subversão em cada uma destas enviadas da coroa

para cumprir as desventuras impostas pela igreja.

Morta durante a travessia do oceano, dona Isobel é presumivelmente a

moça que era aguardada pelo Mouro e de quem Oribela herdou os sapatinhos.

Posteriormente, nossa protagonista também terá um caso com aquele que faz

a intertextualidade com os contos-de-fadas, sendo ora príncipe encantado ora

feiticeiro, e que esperava pela princesa Isobel que nunca chegou para viver a

própria história. Fora ela lançada ao mar – não fica clara a causa mortis – antes

de cumprir os desígnios dos poderes patriarcais de seu tempo e, volta e meia,

surgia em pensamento para relembrar a Oribela de tudo que era dela e do

nada que era seu:

(…) O chão maltratava os pés das órfãs, as pedras cortavam, não os meus que tinha eu sapatos, fossem malditos, quase roubados, mas eram meus, dera o destino por serem meus pés iguais aos da manceba que morrera. (…) Rezava eu, era melhor que estar morta no fundo do mar, queria me livrar da minha alma criada entre os tigres do deserto e alimentada com o leite das víboras e aceitar meu destino, aceitar o noivo que me davam a rainha e a governadora. (…) Te aquieta em teu destino, Oribela, que estás no céu e não sabes. De noite, quando fechava as vistas para dormir, via o rosto pálido mas sereno e desassombrado de dona Isobel que em mim estava hóspede e a mim chamava ao fundo do mar, assim assim, sem dizer palavras, só com as mãos feito puxando a minha alma (MIRANDA, 1996, p.23-65).

Pouco citada em Desmundo, dona Pollonia afigura mais como uma

espécie de complemento para o número total de sete do que como voz ativa no

romance. Encontra-se apenas duas passagens da personagem: a primeira

durante preparação para o casamento – quando ganha uma pedra verde a ser

ainda incrustada em alguma espécie de jóia – e a segunda quando a Velha dá

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notícias à Oribela dos destinos das mancebas e de como vivia cada uma

depois do casamento: Pollonia, que agora estava grávida, aceitara sua sina de

de bom grado e estivera sempre a juntar cabedais, ou seja, a acumular

riquezas e bens materiais.

A ambição da personagem pode ser justificada pelo medo da escassez –

que estivera presente durante toda a sua vida no reino – ou tenha sido usada

como característica por Ana Miranda como um signo de contraponto e

comparação para aumentar, na visão do leitor, a desgraça das outras moças.

Ela fora recompensada pelos homens do poder pelo seu silêncio. Também

nela, consta a possibilidade do paradoxo entre ser criada sob o preceito cristão

da humildade e agora, fora do mosteiro e em mundo aberto, personificar o

pecado capital da avareza9.

Sabemos que há vezes em que personagens, sem sequer uma única

fala na obra, despertam índices de leitura igualmente importantes para sua

compreensão. Portanto, aqui propomos uma suspensão temporária da ordem

em que citamos os nomes das mancebas logo acima e, antes de seguir com a

nossa análise das moças que desembarcaram no desterro e estiveram

presentes em momentos-chave do romance, gostaríamos de relembrar as

companheiras de Oribela que nem chegaram a embarcar na famigerada nau.

A primeira delas que inserimos nesse contexto é Sabina, que morreu ao

ser estuprada por salteadores na fuga que arquitetou do mosteiro, para buscar

um rico casamento. Nela, podemos ler novamente a necessidade do

matrimônio para validar a existência da mulher desamparada pelas

circunstâncias da vida e a violência a que essa mesma mulher era exposta ao

correr mundo para realizar o que acreditava ser seu desejo. Sabina, moça

judia, subvertia a lógica por viver sob uma religião diferente da que nascera e

por renegá-la posteriormente com a fuga. Irmã de dona Urraca, sua morte

impactou a trajetória da personagem, sendo Urraca a primeira escolhida para

vir ao Brasil e, com isso, levantando a suspeita de que a viagem além-mar era

o castigo do degredo ao invés da promessa de final feliz.

9 Por embasar-se somente em possibilidades, é considerado o mais tolo e fútil dos pecados.

Sua principal característica é o apego excessivo aos bens materiais e ao dinheiro, o que acaba por afastar o pecador avaro do convívio com Deus.

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A próxima personagem que gostaríamos de trazer no sentido da

omissão de fala direta e presença meramente figurativa é Giralda, que foi

supostamente morta por impetigo. Todavia, ela não salta aos olhos da leitura

analítica por algum feito de vida, e sim com a causa de sua morte: tanto o

impetigo – mal declarado por Oribela em seu desconhecimento médico como

sendo o responsável por ter ceifado a existência da menina – quanto a sífilis

possuem características físicas semelhantes10, sendo que a primeira atinge

principalmente crianças de dois a cinco anos (não fica claro quantos anos

Giralda tinha quando morreu, embora ainda urinasse na própria cama e a irmã

mais velha, dona Bernardinha, já tivesse com treze anos), e a segunda é uma

doença sexualmente transmissível a qualquer idade.

O impetigo é uma doença altamente contagiosa e que obriga o infectado

a ficar em quarentena nas primeiras quarenta e oito horas, sob risco de infectar

qualquer um que entre em contato com as feridas cutâneas do doente. Oribela,

no entanto, não relata o isolamento da personagem tampouco o contágio e

posterior morte de nenhuma outra moça que vivia no mosteiro. Ninguém, além

de Giralda, é retratada como fisicamente sintomática, o que é no mínimo

incoerente dado o alto grau de contágio da doença como já exposto acima.

Outro dado importante sobre a alegada causa da morte da personagem

é que o impetigo não mata. A sua forma mais severa, entretanto, pode evoluir

para um quadro de glomerulonefrite, uma forma de debilitação dos rins que

altera a cor da urina e atribui a ela uma coloração rosada e escura (indiciando,

assim, a presença de sangue no excremento). Atentamos novamente para o

fato de que Oribela, ao narrar que a moça ainda urinava na cama, não

identifica mudança de cor na urina11. Ora, é de se esperar que uma

anormalidade que indique sangue em uma cama de convento chamasse a

atenção das outras moças tanto quanto das religiosas responsáveis pela ordem

da estância.

A sífilis, por sua vez, é também conhecida como “a grande mascarada” e

“a grande imitadora" por apresentar as mais variadas lesões cutâneas que

podem ser facilmente confundidas com distúrbios mais simples da epiderme,

10

As mais comuns são manchas, bolhas e feridas sobre a pele, além de ambas serem causadas por bactérias. 11

Para leitura do relato 10, ir à página 90 de Desmundo.

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como o já citado impetigo12. Não é difícil, portanto, após uma leitura crítica das

entrelinhas e um conhecimento prévio de história, concluir e propor que a

personagem possa ter morrido desta patologia – dada a libertinagem sexual

dos mosteiros previamente exposta neste trabalho – que assolava

repentinamente a Europa do século XVI e condenava à morte ao menor sinal

de contágio.13 Além disso, insistimos, o impetigo não mata e, ainda que o

doente não se trate, a infecção normalmente desaparece espontaneamente em

mais ou menos três semanas.

Propomos a leitura da seguinte passagem do romance para demonstrar

as relações carnais pouquíssimo sagradas que foram estabelecidas entre os

então bastiões do clero e as moças internas em mosteiros. Embasamos, assim,

a nossa assertiva da plausibilidade de uma morte distinta da que foi alegada e

que vitimou a jovem Giralda muito antes do embarque:

(…) A pele maltratada das órfãs e seus perfumes de cabelo, seus piolhos, as sufocações de dona Pollonia e as perguntas de dona Urraca, os silêncios da Velha, a voz esganiçada de dona Tareja que ataviava sem parar, os soluços meus, as faias do padre, sua piedade, suas turbações, seus beijos em meus lábios na confissão, para o perdão dos meus pecados, o cheiro de vinho e vômito em sua boca, as missas no convés, as longas e perseverantes vigílias de noite, a escuridade das coisas (MIRANDA, 1996, p.16).

Com a invocação da figura silenciosa – porém rica em signos literários

críticos – de Giralda, emergem duas companheiras da travessia transatlântica

de Oribela e tão interessantes quanto essenciais no enredo do romance: suas

irmãs Tareja e Bernardinha.

A primeira, dona Tareja, era acusada pelas demais moças do mosteiro

de não ser mais virgem. Essa ideia, aliás, é retomada outras vezes nas

entrelinhas do diário de Oribela, que descrevia a jovem como vaidosa, fingida,

gulosa, hipócrita e pouco discreta nos seus modos e recatos.

Tareja se faz, aí, a subversão do comportamento que se espera de uma

moça criada sob a égide moral religiosa, e traça, assim, um paralelo bastante

claro com a voz proposta por Hutcheon (1988). Entretanto, se pensarmos mais

12

A principal forma de transmissão deste mal está ligado ao contato direto com as feridas e à falta de higiene. É importante que se reitere, portanto, que não aparece no romance nenhuma outra personagem que tenha padecido da doença, descartando, assim, o contágio por toque direto ou por ambiente. 13

À época, ainda não havia nenhuma forma de resistência à doença. Os primeiros tratamentos surgiram apenas no século XX.

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criticamente que o convívio social nas estâncias religiosas poderia ser algo

extremamente profano – como já ficou implicado em outras passagens de

Desmundo –, ela é exatamente o resultado de uma educação pouco sagrada.

E então, de novo, Lukács (1936) aparece na representação da personagem

como sendo fruto do processo histórico e do meio a que está submetida.

Observemos a crítica explícita – porém em censura velada reservada à

intimidade seu diário – de Oribela à Tareja em três momentos. Um quando

compara a si mesma e às outras mancebas a aves enjauladas e privadas de

suas liberdades. A este, seguimos com a passagem de quando a Velha Fada-

Madrinha dá a cada moça uma prenda em ocasião de seus casamentos, e

mais um, quando a Velha a informa dos destinos das suas companheiras de

viagem depois de seus respectivos matrimônios:

(…) Dizia meu pai. Que besta tu és e de asas, feito uma galinha que quer avoar e não pode. Assim eram as mancebas, fossem umas aves. Seria a dona Tareja uma ema, porque o corpo é grande e pesado, seria eu um açor bravo que tem que comer as coisas ruins do mundo, seria a Velha um galo que anuncia a luz e as outras órfãs umas pombas, que vão onde mandam, haja sombra, em suas desvairadas propriedades, que em lugar de cantar gemem e têm a alma fiel e simples, sem amargura nem sanha nem queixume e se beijam muito amiúde, gostam de estar juntas feito pombas e se eriçam aos falcões, enquanto eu, como açor bravo, dou meu coração a comer. (…) Uma pequena roda engastada em um brinco de ouro e um anel de prata fina que não cabia em dedo nenhum de Tareja, que o pendurou ao pescoço num cordel. (…) De Tareja, que hipócrita se fazia de santa em rebuços negros e rezas em joelhos, em nome de toda virtude (MIRANDA, 1996, p.57-134).

Os excertos transcritos acima são significativos porque colaboram com a

nossa ambição de compreender a personalidade da personagem e quais

índices podemos ler em cada um deles. Seguindo-se a dona Pollonia, à dona

Tareja pode-se, então, atribuir os pecados capitais da gula, da vaidade14 e da

luxúria, posto que Oribela recorrentemente a acusa dos excessos de comida e

de sua falta de castidade e modéstia.

Neste ponto de nossa pesquisa, propomos que se perceba a riqueza

que se pode notar em cada personagem feminina em Desmundo e o esmero

com que Ana Miranda trabalha cada uma delas. Por mais figurativas que sejam

as suas presenças, há sempre um propósito para estarem ali; seja para indicar

14

Também conhecido como o pecado capital da soberba. Para São Tomás de Aquino, era um pecado tão grande que deveria ser tratado em separado de todos os outros e, por isso, merecer vigilância especial.

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a pluralidade de personalidades que a história oficial tenta superficialmente

homogeneizar, seja para engrandecer a narrativa ao estabelecer elos

comparativos entre uma e outra ou ainda para ampliar os horizontes do nosso

entendimento do romance ao retratar mulheres tão diferentes que foram

obrigadas a viver sob uma mesma circunstância.

O açoite verbal à irmã, proferido pelas demais moças, entretanto,

enfurecia dona Bernardinha, que sempre se sentira responsável pelo cuidado

das duas irmãs presumivelmente mais jovens. Assim Oribela narra o passado

anterior à vida no mosteiro das três irmãs e sua relação mais íntima com uma

delas:

A secar as panelas no mosteiro encontrava eu com a dona Bernardinha, irmã de Tareja e Giralda, a morta, filhas de pai rico em Coimbra e sempre vestidas, arraiadas, adoradas e servidas, todas delgadas de narizes, sem lombrigas, com tal fortuna viveram anos, em jardins, músicas de boas falas, louça do Japão, chá verde, em morada com capela e altar, mas um dia lhes morreram os pais, por cair ao rio o carro que os levava e sendo a mãe prima de uma tia de uma dama da rainha foram as meninas levadas ao mosteiro. (…) Soubera de seus cabedais sendo cuidados por tutor cobiçoso que sem freio passava a si os proveitos, quisera ela viver com uma tia e não pudera por ser casada com fidalgo de muitos ciúmes ofendido, assim ficara ela no mosteiro, pobre dona Bernardinha, de mãos delicadas, que mostrava feridas na água suja, marchetadas de dores, que nunca servira ela com as mãos e nos primeiros tempos padecera grandes aflições, mas era da força de um varão, aceitando as dores sem soluços nem urros, que logo a chamaram de macha, ela negava mostrando dois peitos grandes, suaves, redondos, de fêmea. Ela se agastava em defender suas irmãs mais novas, guardava seus biscoitos para a fome de Tareja, fazia ameaças a quem murmurasse contra Giralda, de ourinar na cama e Tareja de não ser donzela, que diziam, tanto chumbo há no mundo, todo o esta menina comeu, um dia morreu Giralda de impetigo, quase danada ficou dona Bernardinha, mas assossegava das alterações em mim, que dizia ser eu sua fonte de beber água pura, que se havia neste mundo pessoa a quem amasse feito sua mãe, era eu, estávamos sempre segredando nossas fantasias, ela me beijava a mão com um cuspe frio de que eu tinha assombro, até que madre Jacinta lhe deu uma áspera disciplina em nos separar, que não mais falasse ela a mim e nem eu dela nada ouvisse, nem a visse, que devia ela dormir na cabana dos porcos. E não nos vimos mais, até o dia da partida (MIRANDA, 1996, p.90).

Ambas – Giralda e Tareja – auxiliam na construção de Bernardinha: ao

expor as fragilidades das irmãs, Ana Miranda fortalece a imagem dessa

personagem essencial no decorrer da obra e que agora propomos analisar. No

relato de nossa protagonista há pouco transcrito; podemos, no entanto,

perceber elementos para além do exposto em uma leitura óbvia e apressada.

Notamos que mais uma vez há uma crítica quanto ao fato contundente de que

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a mulher não tinha direito à herança e padecia da míngua. Como opção de

sobrevivência, novamente o claustro religioso, que acabava por desligá-las dos

seus direitos tanto físicos quanto cívicos e, assim, reiterava as relações

retroalimentares entre a igreja católica e o Estado português. As três irmãs

foram lesadas por seu tutor e, como consequência, experimentaram o dissabor

da submissão.

Também em Bernardinha, a exploração do trabalho que lastimava suas

mãos, o abuso no isolamento no chiqueiro como castigo e a prática recorrente

da tentativa de feri-la em seu íntimo quanto ao questionamento de sua

sexualidade, posto que existem dados literários referindo-se a opção sexual da

personagem. Como já exposto por Oribela e pelo senso comum das freiras do

mosteiro onde viviam, Bernardinha é uma das personagens que mais sofreu ao

longo do romance. Fosse por capricho do destino e pelos acasos da vida, fosse

pela arbitrariedade dos poderes de seu tempo, a personagem experimentou

diversas formas de provações e humilhações no deglutir e digerir os chumbos

do mundo que lhe eram servidos.

As mais graves violências a que fora submetida estavam no cerne de

sua sexualidade15. Sempre apontada como macha por sua força física e

capacidade de resiliência, a personagem – claramente homossexual nos

relatos de Oribela e na possível paixão que sente pela protagonista ao roubar-

lhe beijos continuamente – é estuprada por homens de forma brutal e

sucessiva. Mais – é prostituída pelo próprio marido, que aparece como um

homem violento e bêbado:

(…) Felizes as esposas, sendo diversa a dona Bernardinha, quebrava seus ossos aquele que a devia acariciar e bêbado a desnudava, lançava pela porta fora, desgraçando a pobre com seus brutos intentos de esposo e em altas vozes, sua mulher lhe parecia macha, querendo mostrar que era a ela forçado a amar e com ela vivia contra ciência, não sendo nem por feitiços vencido, que recitava aos berros de cabra. Sabistisanto, Coronguena Santa Cruz de Madalena, Jeque

15

Nosso trabalho propõe uma ligação entre a personagem desse romance e Felipa de Sousa, portuguesa que veio ao Brasil depois de ter enviuvado no Algarve. Aqui, em 1591, foi denunciada e condenada pela Inquisição Portuguesa do Santo Ofício a Salvador por ‘práticas nefandas’, confessou seu lesbianismo e teve mais seis mulheres envolvidas em seu caso. Com ela, sete. Por sua transgressão, em 1592 foi punida com a severidade do açoite e do degredo perpétuo. Ouviu sua sentença na Igreja da Sé com uma vela acesa nas mãos enquanto vestia uma roupa de linho cru, marca pública dos hereges. Depois foi atada ao pelourinho, chicoteada e expulsa da então capitania. Para conhecer mais a fundo o caso de Felipa de Sousa, sugerimos a leitura da pesquisa do antropólogo Luiz Mott (O Lesbianismo no Brasil. Porto Alegre; Mercado Aberto, 1987).

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Domenada do mais do nunca do nada, Sabistisanto, anto, anto16

e mais cantos a se lavar com cebolas. As órfãs tinham seus destinos selados e me doía de dona Bernardinha, que gostava de afetos e de roubar uns brincos e as bocas das moças em beijos. Espreitavam muitas armadilhas a nós. (…) Quis eu saber de que vinha uma grita de machos na porta da casa de dona Bernardinha. O perro do esposo dela fazia servir sua mulher por dinheiro, que se fez uma espera na frente da vivenda e dela se ouviam os gritos, deles os risos, uns davam por isso uma moeda, outros um pedaço de uma qualquer coisa, não havendo ali um padre que pusesse fim a tal desmando. (…) Entrando eu, estava ela em um quarto muito feio e sujo, sem nada que fosse para deitar que não umas esteiras de naturais, ela nua da cinta para baixo, a camisa salpicada de sangue, com uma ladainha muito sentida a maldizer seus cruéis algozes, que a rigorosa justiça de Deus se fora nas águas, nos ventos e disse eu, não maldizer de Deus que era pecado com castigo de raio, de trovão, de morte e aquela miserável padecente com assaz de lágrimas me abraçou, aquele tempo todo estivera como morta. Consola-me a vista de tua presença. Se requeria eu justiça lhe fizera meu esposo, em não sendo o dela e que marcava vingança perpétua, ainda se havia de ver. Sempre farto de vinho nas noites cometia ele a ela com seu membro viril que entrava no vaso traseiro dela e instigado da carne tinha ali polução, contra a vontade dela, a qual com medo consentia. Com isso encostou a cabeça no meu colo sem mais nenhuma palavra, sinalou uma pouca d'água e a tomou. Disse querer ir embora deste país e tornar ao seu (MIRANDA, 1996, p. 134-152).

Ao consternar-se com a situação na qual vivia a amiga e interceder por

ela por intermédio do marido17, Oribela a consola com a ideia de fugir para

Portugal. Embora sem a clareza exata de como procederiam, propõe que as

duas se transfigurem em homens18 para escapar das crueldades a que eram

constantemente submetidas, cada uma a seu modo: voltar à imensidão dos

mares e à tudo que o infinito dos horizontes oceânicos representavam em seus

imaginários trouxe alívio momentâneo às personagens. Era um algo de buscar

forças no futuro e nas lembranças do passado para suportar as dores e sinas

do presente.

16

Segundo as crenças portuguesas, essas palavras eram usadas como formas de vencer os espíritos que traziam perturbações e patologias diversas. Elas conferiam poder de cura do bem sobre o mal por ser costume acreditar que nem todas as doenças tinham causas naturais e algumas se tratavam de possessão por espíritos maléficos. A terapêutica contra as moléstias e enfermidades consistiam, à época, tanto em fórmulas alopáticas quanto na oralização e oração dessas palavras, que eram proferidas contra as bruxas na ilha de São Miguel para suprimir seus poderes malignos. Novamente, então, a ideia da mulher feiticeira e da necessidade do exorcismo. 17

Um dos raros momentos em que Oribela sente algo próximo de ternura pelo marido, foi quando este atendeu a seu pedido de intervir pela amiga e salvá-la momentaneamente da loucura do esposo. 18

Para Oribela e Bernardinha, a única maneira de que fossem respeitadas e conseguissem embarcar na nau de retorno ao reino, era se disfarçadas de homens: cabelos curtos, roupas, chapéus e botas. (MIRANDA, 1996, p. 152).

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Essa ideia de solidariedade entre as mulheres para sobreviver aos

desvarios dos homens – que se observa ao longo do romance – e voltar o olhar

para a possibilidade de futuro regressando ao passado segue no relato 17 de

seu diário, quando Oribela busca na imagem da amiga uma espécie de ânimo

para não esmorecer fisicamente, não ceder ao medo do desconhecido na

escuridão profunda da noite e não desistir de sua mais ousada - e até então

mais bem-sucedida – fuga da casa do marido. Ela busca a lembrança da vida

em Portugal e a mirada cúmplice da amiga para saciar-se da coragem de

validar os seus anseios:

Fui procurando o rumo da cidade, na noite tão escura, pelo vôo das aves, que iam para o mar e pelo cheiro de sal, pelo vento fresco que assoprava, os olhos de dentro meus na nau fundeada na baía e em dona Bernardinha, vergadalta, âncoras a pique, pardeus, velas mareadas, para perder o medo dos galhos ásperos da mata, das unhas dos falcões, dos dentes dos morcegos e das cobras que andavam pelas árvores e as caninanas dos côncavos dos paus podres e as dos formigueiros e dos bugios que saíam das covas à noite e dos gatos de rapina cujos olhos via eu luzirem no mato espreitando, eu com o ânimo de uma galinha branca. Temor dos chiados, rugidos, assovios, restolhares, crepitações, todo tipo de ameaça. Não me dava por segura dos lagartos, porque eram tantos os uivos, os assopros, os roncos e os rinchos dos cavalos marinhos, as paradas das alimárias de fogo, o rufar das raposas de gelo, que nem me atrevia eu a abrir os olhos. Feito cego no cavalo, sempre em frente (MIRANDA, 1996, p.157).

Nossa protagonista não esquece a promessa que fez a Bernardinha e,

quando escondida na casa do Mouro, pede notícias da amiga. Ele, então, lhe

informa que a moça matou o marido e que estava vivendo sob punição e vigília

pública pelo crime. Ela submete-se ao risco de ser novamente capturada pelo

marido e sai em busca da moça. Encontrou-a nas trevas da noite, literalmente

presa em gaiola, retomando a metáfora anterior de Oribela que destinou uma

ave cativa a cada manceba19 jamais liberta. Assim, como antes lhe houvera

prometido, disfarçou-se de homem e foi ao socorro da companheira:

(…) Dona Bernardinha havia morto seu esposo com umas punhaladas, de noite, ao lhe ter dado de beber umas águas ardentes e por ele não ter deixado escapar vestida feito homem (…) A dona Bernardinha puseram numa gaiola no terreiro, a pele marcada pelas pedras lançadas, de apedrejamentos que lhe fizeram (…) Muito pasmada ela se fez, nos espantos de meus trajes e riu, numa demência, que estiveram os miolos da sua cabeça cozinhando ao sol e à chuva, a estupidez se alastrava em seu rosto, o espírito da desrazão habitava em seus olhares de raio e seu cuspe, em sua língua suja e obscena, repugnantes palavras de ódio, maldizendo a Deus, aos santos, à Virgem, sua pele se marcava de rodas,

19

Desmundo (1996), página 57.

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apedrejada, seu rosto em dessemelhança de carne se fazia, até os pés, seus peitos feridos com tão admirável crueza que a toda a gente faria um temor muito medonho de modo que a horribilidade que ali se via me causou tamanha tristeza que apertou o coração. (…) Não sei como o matei. Tivera razão para o matar, havia sido ele um soberbo capitão dos espíritos danados, dos sulfurosos fogos e de entendimento feito com a peçonha das víboras, um cão tinhoso que beijara a cauda recurva de Maimont

20 e que bebera sangue de rato e

de cágado macho e que agora morto rodeava o coração de dona Bernardinha como um luzir de pirilampos

21 e um inimigo capital a

alumiar os soturnos cárceres dela e arrastar sua alma pela rua da amargura. (…) Nem via ela a criminosa justiça do mundo que se fazia em sua triste sina nem mais se fazia ela de desfeita dos entendimentos, mas desfazia do mundo e seus divertires, coisa viva que lhe era a vida em si (…) Mas ao ver a mim disse em vozes tão fracas que se nem ouvia, olhando para mim com rosto já de trespassada como se uma luz destrevasse seu coração, suplicou que a beijasse, o que fiz sem pensar (MIRANDA, 1996, p. 177-185).

Aqui, Bernardinha personifica literariamente um costume que segue hoje

tão melancólico quanto sempre fora no passado: a mulher que de tanto ser

vitimada pelos abusos domésticos, no auge de seu desalento infringe a lei –

que parece existir somente para punição unilateral feminina – e torna-se

culpada ao impor um fim desesperado para a sua dor. Sem opções diante das

crueldades do marido – jamais culpabilizado pelas torturas a que submetia

recorrentemente a esposa – a personagem o mata. Em ciclos intermináveis, ela

é depois morta pela hipocrisia e pelas leis criadas pelos homens e

corroboradas pelos dogmas religiosos.

É de Bernardinha, também, uma das mais icônicas falas do romance.

Em passagem que é metade delírio e metade lucidez, ela profere em seu

sôfrego torpor aos olhos e ouvidos incrédulos de Oribela:

20

Do autor português Augusto Carlos Teixeira de Aragão, Diabruras, santidades e prophecias

(1894) cita Maimont como sinônimo para o demônio. Para ele, bruxas e feiticeiras se reuniam para invocar e celebrar o diabo com esse nome em troca de poder. Eram essas mulheres desprovidas de Deus e servas encantadas do que Aragão coloca como o ‘monarcha infernal'. A obra está ligada aos estudos da Inquisição católica portuguesa, retrata em detalhes os supostos rituais das bruxas e aqui nos serve como uma intertextualidade com o discurso dogmático religioso, o simbolismo da mulher pecadora e mais uma referência à própria arte literária portuguesa. 21

Em passagem da obra de Teixeira de Aragão: (…) A velocidade com que viajam n’essas noites é egual á do relampago. As reuniões ordinárias, dizem, são á meia noite das sextas feiras, em certas encruzilhadas, ou nas margens dos rios onde se costumam banhar. Ahi tem logar a orgia do sabbat, com danças phantasticas e canticos soturnos, terminando o pandemonio pela ceia distribuida pelo diabo de cauda recurva, sendo o guisado favorito composto de sapos, cobras e aranhas, temperado com sangue de ratos e cágado macho. Contam os que teem avistado de longe esta tetrica festa que entre sombras mysteriosas se nota o luzir dos pyrillampos, produzindo o panorama uma tremura assustadora com um arrepio que chega á medula dos ossos. (ARAGÃO, 1894, p. 23).

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E ela disse. Este mundo é um desterro e nós, estrangeiros. Nada mais que fosse de entender e caiu no chão de focinhos a executar o triste castigo de sua desfortuna de sem razão emudeceu de tal maneira que só suas lágrimas davam testemunho do que sentia seu coração (MIRANDA, 1996, p.180).

Aqui, fica claro mais um indício de crise nessas personagens, em todas

elas, posto que Bernardinha implica pronome plural em sua fala: elas não

pertencem à realidade na qual foram, artificialmente, inseridas. Também estão

excluídas do retorno porque já não são mais as mesmas que chegaram. Elas

são estrangeiras nesse desmundo, nesse universo paralelo que vieram para

ser responsáveis por popular, por criar, por renascer. Um simulacro de suas

vidas passadas para originar vidas futuras. Ana Miranda brinca com as

possibilidades intermitentes do tempo e do espaço nos seus sujeitos que não

cabem em canto nenhum, vivem aqui, mas são de lá. De lá de onde? De uma

Portugal que já não há? Aqui aonde? Um Brasil que ainda não existe?

Observando a trajetória desta personagem, contudo, não é difícil

enxergar a visão hegeliana-marxista da história em Lukács e o peso dessa

formação na construção contemporânea: homossexuais sofrem desde os

tempos mais remotos e sob os mesmos argumentos absurdos dos discursos

heteronormativos compulsórios e religiosos. E continuam açoitados por

provações semelhantes nesse desterro que hoje é país republicano com

constituição parlamentar e dita civilidade aos direitos do próximo. Aos direitos

humanos.

Em Bernardinha, convergem em simbiose, também, o tipo de Lukács

que como mulher típica de sua época nada pôde fazer diante do ceifar que lhe

impôs as circunstâncias determinantes da vida, e a heroína de Hutcheon, posto

que ela se rebela, luta e revida as arbitrariedades das quais constantemente é

vítima.

Por último, e não menos importante, retomamos a já citada dona Urraca.

Judia criada em mosteiro cristão, ela traz em si uma dupla oposição. A

primeira, a da própria religião. Ou a da dupla religião, que, contidas em si

mesmas, propõem caminhos de crença e salvação altamente divergentes. Uma

– o judaísmo – lhe foi imposta por nascimento, a outra – o catolicismo –

igualmente imposta; agora, por circunstância.

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De um modo ou de outro, lhe foi negado o direito da escolha em crer e

no que crer. Acreditaram por ela e lhe fizeram ajoelhar e dizer amém a um

planejamento que nunca foi próprio de si mesma e pelo qual pagou pecados

que nunca cometeu:

De dona Urraca se dizia por detrás terem sido seus pais judios, uma gente de fazer violas d'arco, que sabia muito lindamente tanger, a menina. Houvera no tempo do rei dom Manuel uma paz, finda pelo casamento de Sua Alteza

22 e pelos brados do povo, que havia muito

ódio contra os judeus vindos de Castela23

, como eram os avós de dona Urraca, por onzenarem. No mosteiro pregavam contra dona Urraca e ela ouvia em lágrimas, assassina de Jesus, filha de gente sem rei nem terra, que alevantavam os preços das coisas, era seu povo causa da peste e da fome que matava os cristãos por os cristãos mercadejarem as suas janelas e que tinham os judios contas com Deus e escrituras falsas desdo começo do mundo, que adoravam uma bezerra de metal e a ela sangravam seus filhos em gratidão por Deus que os tirara do cativeiro do faraó e se pareciam aos bestiais mouros

24, adoravam também as rãs e os galos. E

mandavam dona Urraca comer barata, cuspiam em seu rosto, faziam o sinal-da-cruz no peito depois que ela passava e não pisavam em sua sombra, que era pecado e lhe formavam nas fuças cruz com os dedos, puxavam seus cabelos, o que fazia a dona Urraca chorar e não havendo ninguém para a consolar, ela dizia. É esta a virtude que os teus deuses ensinam? Pediram à madre que dona Urraca não usasse vestidos ricos e só trajes por que fosse conhecida, lhe tomassem os sapatos, não andasse em qualquer parte do mosteiro para não se misturar com cristãs, morasse aguizada numa cela, nem fosse amiga de pessoa alguma, lhe arrancassem os livros que tinha, coisas escritas por blasfemos. Para atender aos continuados clamores mandara madre Jacinta separar das mancebas a dona Urraca. (…) Passou dona Urraca a viver entre as enfermas por saber untar com óleos e qualquer remédio de consolação (MIRANDA, 1996, p.91).

22

O reinado de Dom Manuel é tido como um símbolo de prosperidade e progresso econômico em Portugal, pois com ele o país observou uma significativa expansão marítima de seu império através das descobertas dos caminhos das Índias, do Brasil e das Molucas. Por isso, houve um enorme saldo positivo em seu comércio, ainda mais no de especiarias. Uma das cláusulas do contrato de seu casamento com Dona Maria de Aragão - sua segunda esposa -, entretanto, o obrigava a solicitar ao papa a instauração da Inquisição em Portugal, em 1515. O rei resistiu, mas acabou por cumprir a cláusula. 23

No concernente à política religiosa de Dom Manuel, observou-se em Portugal um grande investimento na construção de igrejas, mosteiros e evangelização das novas colônias. No começo de seu reinado, havia tolerância religiosa e ele chegou a libertar o povo judeu que vivia em situação de escravidão, pois estavam fugindo das perseguições em Castela. A justificativa para tal tolerância consiste no fato de que o capital financeiro e intelectual dos judeus eram de suma importância para a expansão mercantil portuguesa. Com a chegada da Inquisição, resultados mais violentos: conversões religiosas forçadas, sobretudo dos judeus, que foram obrigados a delegar a educação de seus filhos à famílias cristãs. 24

Assinado em 30 de novembro de 1496, seu contrato de casamento com a primeira esposa, Isabel de Aragão, previa a expulsão do reino dos povos considerados infiéis. Neste caso, os mouros e os judeus.

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Não fica claro se as irmãs Sabina e Urraca eram órfãs de fato ou se

foram vítimas das políticas de perseguições religiosas operadas no reinado

depois da instauração da Inquisição e, com ela, da arbitrariedade de que as

crianças judias fossem educadas por famílias cristãs ou estâncias católicas

construídas a largo pelo então rei de Portugal, Dom Manuel. O que sabemos é

que ela era um membro judaico que vivia em mosteiro e, no entanto, era

rejeitada pelo ambiente do qual, alegadamente, fazia parte; portanto, se

delineia mais índice de instauração de crise, de não caber, de descaber. De

paradoxo. Como a Velha, ela era parte de um sistema religioso que não mais a

integrava, mas que, ao contrário, a segregava. E, ainda que não lhe conferisse

verdade ou autoridade participativa, não a libertava.

Em suas confissões escritas, a própria Oribela – tão clemente e

acolhedora em outros âmbitos – demonstrava certa atitude de refugo quanto a

Urraca. Reconhecia que se assemelhava a ela em seu quinhão de dor e

infortúnio, mas se via superior em seu batismo e fé cristã. Desprezada por suas

companheiras e desacolhida pelo credo que fora obrigada a assumir, foi a

única que percebeu na possibilidade do Brasil um recomeço. E, das sete

mancebas, parecia ser ela singular no nutrir a esperança de uma vida melhor

em um lugar que ninguém conhecia seu passado e pouco se sabia de sua

história; um lugar este de desconhecimento era, portanto, a melhor opção de

quem fugia à própria sina de se conhecer demais, de estar exposta ao

julgamento humano e de preferir o silêncio solidário das espécies animais às

abrasivas palavras proferidas:

Tinha eu grande temor de dona Urraca, não a queria olhar nem respirar do mesmo ar saído das suas ventas no camarote, vigiava que não fosse de noite deitar chifres pela cabeça ou vomitar enxofre do diabo, suas rezas murmuradas me queimavam os ouvidos. Mas era ela a que mais suportava as forças do oceano e se foi fazendo menos odiada pelas órfãs, com sua grande esperança fundada sobre pedra, crendo que ia ao paraíso da terra se livrar da fraqueza humana, casar e viver em claustro, sem ver manceba ou pessoa viva que fosse, só animais. Estava roubada de suas coisas todas, usava uma veste rude, virava tanto de noite que muitas vezes acordava no oposto lado, os pés onde estivera a cabeça e murmurava, feito tomasse em seus sonhos muitos cilícios de cerdas de cavalo ou de pele de bode tosquiado (MIRANDA, 1996, p.92).

Outro sinal que atenta e instiga a análise dessa personagem é que,

ainda que trabalhasse com o generoso processo de terapêutico da cura e da

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atenção às enfermas no mosteiro onde era interna, era abusada verbalmente

pelas outras moças – que precisavam de seus cuidados quando estavam

doentes – e despertava medo por sua figura judia.

Instintivamente, não se enxerga o diabo em chamas e labaredas no

corpo do anjo salvador, mas a oposição é permanente em Urraca. E é nela que

se desenha a opressão religiosa praticada pelas próprias oprimidas; é

precisamente nesta personagem que o dito oprimido se torna opressor, que a

vítima vitimiza e que o pecado capital da ira se materializa ao mostrar seis

outras moças cristãs externando sua raiva e provocando mal a alguém. Sendo

ela paradoxo, transforma-se na virtude contrária à cólera; Urraca é o perdão, e

cura o corpo de quem com as mãos lhe apedreja.

A plácida e complacente manceba, diziam as línguas do vilarejo, virava

bicho indomado no tropical das noites brasileiras. Lê-se, então, mais uma

antinomia na construção da personagem pelas linhas de nossa narradora:

(…) De dona Urraca que vivia trancada em sua morada sem que lhe pusessem as vistas de dia, lhe ouviam a viola d'arco, mas murmuravam na cidade que se vertia ela de noite numa alimária e assustava os vizinhos, a assoprar fogo, se dizia até em juramento, do que a Velha pouco acreditava (MIRANDA, 1996, p.134).

Nas últimas páginas do romance, em índice que pode ser lido no

reencontrar-se consigo depois da proibição quase perpétua de sê-lo, Urraca

retorna às suas origens e dedilha a viola d’arco de sua família. Vem dela o som

que embala o drama de Oribela e que começa por serenar o desespero de

nossa narradora em seu momento mais dilacerante:

Longe se viam as velas de uma nau portuguesa com a cruz do rei, gente do reino e se ia partindo a nau, não chegando e tudo clareou feito um raio no meu coração, aquela era a nau que levava o bispo Sardinha a deitar suas queixas aos pés do rei e gritei tudo o que pude com a minha voz, tornassem a me buscar, mas não fui ouvida por ínfima na terra, numa vã esperança, sabendo que me dava Francisco de Albuquerque o mais cruel de todos os castigos e ainda levando meu filho, ia ficar eu sozinha com a gente rude da terra, viver entre eles e me ver tornar cada dia mais um animal besta, até nem sabia quando, mas que se salvasse deste degredo meu filho, se é que o cão não o havia morto. (…) Lancei pedras que lá não se deram conta, feito Deus aos nossos bramidos e cuspi, rasguei minha veste, arranquei cabelos, esbofeteei o meu rosto até não poder mais, caí em terra e chorei. Diante da mais funda pena em meu coração, fiz minhas lágrimas escorrerem na pedra com todo o ódio e a marcassem feito os pés de Zomé. A uma casa se temperava uma triste viola d'arco, logo se tangeu e cantou, D'amores jaço, quando as

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torço d'amores dormo25

, pela porta aberta vi que era a dona Urraca, fiquei a escutar, com as gentes que escutavam, tão tristes música que parecia se derramar do coração em rosinhas orvalhadas, ai, ai, quanta melodia, umas lavandeiras com suas trouxas de roupas à barrela, ai morenicas las pretas, também pararam pela música, o que ia eu fazer de minha vida? Na casa das gentias soube que a Velha partira com o bispo, o que ia eu fazer de minha vida? Muito fiquei ao pé da igreja assentada numa espera de não sei o que, de que o sol se fosse, a noite se fosse, o tempo, a vida, numa contemplação de pensamento, os olhos perdidos na fonte e nas apartações por convinhável mesura a esfriar da quentura e a memória dos males e pecados (MIRANDA, 1996, p.210).

Interessante, pois, pontuar que se seu passado mulheril foi forjado no

fogo (em O fogo), é no desmundo (em O desmundo) que todas essas

personagens aqui analisadas encontram seus destinos, seus desatinos, suas

desventuras, seus desafios e seus desenlaces. O espaço que modifica, que

desconstrói, que altera. São elas, todas elas, as moças de Lukács que reiteram

o poder determinante dos processos e ciclos históricos na formação humana.

Mas são, também, as afluências literárias das periféricas excêntricas de

Hutcheon que, ao encarar suas realidades, assumem a carapuça da coragem e

sobrevivem às imposições; por vezes rebelando-se à elas, e, em outras,

driblando-as.

Então, personificando os sete pecados – de céus e mares, da igreja e do

estado – das sete mancebas embarcadas na nau, retornamos ao nosso início,

encontramos desenhado o rosto da nossa protagonista e encerramos esse

ciclo de nosso trabalho:

Em nome do rei, que governava a terra por graça e vontade dos céus que a ele fizera eu agravo, eram apresentadas as culpas, diziam ser eu culpada no pecado da gula, que não tinha feito abstinência, devia eu pagar isso com a minha língua, no que vinha um algoz e me cortava a língua, disse o juiz que era eu culpada na sensualidade, devia pagar com meus seios, no que o outro algoz veio a os mamar e depois de tomar um leite vermelho os cortou e comeu. Fora eu tíbia no amor a Deus e avarenta no dar esmolas, pelo que havia de pagar com meus dedos, veio um outro algoz a cortar os ditos das mãos e dos pés. E como pecara de inveja, tive que pagar com minhas orelhas e doze bofetadas no rosto. O pecado da soberba era preciso pagar com o que restava de meus pés sangrados sem dedos, no que me cortaram os pés, ficando eu estendida. E porque pecara ao falar muito em prejuízo do próximo, paguei com meus cabelos da cabeça, que logo ali os tosquiou um homem com uma tesoura na mão, jogando cada cacho num fogo. Por ser culpada de ladra de moedas alheias e nisso gastar minha vida com ofensa grave do alto Senhor

25

Mais uma intertextualidade literária e referência à obra do dramaturgo português Gil Vicente, esta presente no Livro II, Comédias: Comédia de Rubena (1521).

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que me criou, assim eu era condenada à pena de olhos arrancados, no que me segurou pelos braços o gigante e me amarrou a um catre, vieram os algozes com seus capuzes, enfiaram seus dedos nos meus olhos deixando dois buracos no lugar, o calor do sangue sentia eu no rosto mas nada via, a língua do demônio lambendo o sangue que escorria, uma língua de amor, que me fazia suspirar e gemer ais e uis, apertando meus ombros e fazendo arrepiar, adúltera. Por culpada de traição ao esposo, era eu devedora de pagar com meu coração, no que de mim abriram o peito, um corte fino de dor e as mãos dedudas e grosseiras do algoz se meteram no meu peito a arrancar o coração, quis gritar mas era como se uma boca me beijasse, senti a língua do demônio me calando e seu genital me entrando entre as pernas e assim sem meu coração me rebelei, gritei, me sacudiram, vi que estava no mundo dos sonhos, queria sair, mas não queria, sem saber qual dos mundos era o mais ruim e sem querer ver o que ia. Mas abri os olhos. E vi (MIRANDA, 1996, p.162).

Diante do que esperamos ter mostrado uma análise aprofundada dessas

personagens e suas vozes subversivas, sentimos que é importante reiterar o

potencial do romance histórico enquanto opção de escrita criativa e da

metaficção historiográfica como escolha teórica de leitura para nos apresentar

pontos de vista distintos dos relatos oficiais que, de outro modo, não teríamos

acesso. Que, de fato, não tivemos acesso em nossa vida pedagógica e

apreensão da história enquanto disciplina escolar.

O homem branco conquistador de territórios e vencedor das batalhas

não se ocupou em contar a história da mulher – de nenhuma delas – em suas

dores, diferenças, pluralidade, distinções e heterogenia. Ao dar a voz narrativa

de sua obra a uma personagem feminina e assegurar o diálogo com várias

outras, Ana Miranda nos apresenta prismas que muitos de nós não tínhamos

refletido anteriormente, ou pelo menos não de maneira tão crítica e que

assegurasse tanta alteridade como é possível no campo literário.

A autora, com isso, nos aproxima da mentalidade da mulher na Colônia,

de seu lado mais humano, seus desafios, suas complexidades e sua

sexualidade e, desse modo, mais uma vez, a literatura amplia o leque das

possibilidades de entendimento das verdades históricas pelo fato de questioná-

las e atribuir som e sentido a quem foi silenciado. A quem ainda é, em si,

silêncio.

Nos mitos navegantes mais antigos, é a presença da mulher que traz

má-fortuna à nau26. Em Desmundo, contudo, mais uma antítese subversiva da

26

Daí o costume de se ter uma escultura feita à imagem feminina a bordo, sendo mais comum que estivesse alocada na proa. Ironicamente, atribuía-se sorte ao objeto por acreditar que ele

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lógica impetuosa: foi a nau que trouxe embalada em suas ondas a má-sorte do

naufrágio e da desventura à suas passageiras.

3.4. Temericô, Pe-maenduar27

A primeira marcação de tempo de nossa História se deu com a chegada

dos portugueses em território brasileiro, este inteiramente povoado pelos

índios. O conflito cultural se desenhava e se estabelecia nas dificuldades dessa

convivência intempestiva. A pouco temos acesso à reconstrução histórica das

nossas épocas mais remotas, de um Brasil antes de Cabral, mas o discurso

homogêneo certamente omite muito das fissuras, do extermínio dos povos

indígenas e das imposições – inclusive lingüísticas e religiosas através da

Catequese – enquanto parte do processo de colonização.

Estas imposições abrangem, também, o silenciamento da voz nativa nas

nossas narrativas oficiais: nos anos de formação escolar, onde

experimentamos o primeiro contato com a História enquanto disciplina, pode-se

ter a sensação de que tudo foi relatado de maneira compacta, aonde se

sentem brechas, rupturas e descontinuidades.

Então, mais de 500 anos depois, qual o sentido de repensar a História

em nossas origens? Para evitar repetí-la seria um bom começo. Para repará-la,

seria outra chave. Entretanto, como já dito antes, a História trabalha com

documentos. Não se volta no tempo cinco séculos – embora possamos

mergulhar no passado – para deixar que fale uma índia ou para reconhecer

como verdadeira e factual a sua narrativa. Ainda assim, com suas

particularidades, o discurso literário pode contribuir nessa (des)construção e

(re)construção de um Brasil que é distante e presente.

A maior fonte oficial a que se tem acesso, a fim de obter informações a

respeito dos índios, são as correspondências dos jesuítas, sobretudo as do

Padre Anchieta e as do Padre Manoel da Nóbrega. Através dessas epístolas, é

possível perceber uma tentativa de compreender a diversidade indígena e

tinha o poder de serenar os mares, acalmar as tempestades e guiar o navio para longe dos desastres e naufrágios. 27

Pe-maenduar, do tupi, lembrai-vos vós. A tradução é do Padre Luiz Figueira e pode ser encontrada em sua obra Arte da grammatica da lingua do Brasil.

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alguma riqueza no detalhamento dos costumes dos primeiros habitantes do

Brasil, ainda que permeadas por moralismo e estranhamento diante do que

consideravam exótico.

Mas, porque são cartas, são lidas, também elas, como formas

narrativas. Narrativas de impressões. Narrativas do olhar de um sujeito sobre

outros. Narrativas sensoriais. Narrativas que exploram prismas. Narrativas que

apalavram o mundo como apreendem. Narrativas subjetivas. Cabe, aqui,

retomar a reflexão a que nos propusemos no segundo capítulo deste trabalho:

a História elege seus narradores – normalmente os que já ocupam o posto do

colonizador em detrimento do colonizado – e os delega o posto de documentos

oficiais, ainda que sejam eles sujeitos, narradores, personagens.

Pode-se perceber, em excertos das epístolas previamente transcritas ao

longo deste trabalho, certa dificuldade em entender e explicar o novo universo

que a eles se revelava; havia um distanciamento abissal entre o berço

eurocêntrico que os portugueses conheciam e o continente em que

desembarcaram. Há o choque do inusitado. Lendo, nota-se certa

impossibilidade do branco em conhecer ou dialogar com a circunstância dos

povos indígenas, tão oposta aos costumes europeus e a tudo que

representavam. Tomemos como exemplo o seguinte excerto:

(…) Temericô chamavam ás índias mancebas dos Portugueses, e com este título lhas davam antigamente os pais e irmãos quando iam a resgatar ás suas terras, como os Tamoios e Temiminós do Rio de Janeiro e de Espirito Santo, os Tupis de S. Vicente, os Tupinambás da Baía, e finalmente todos da costa e sertão do Brasil, dizendo-lhes leva esta para tua mulher, com saberem que muitos daqueles Portugueses eram casados; e ainda que os Portugueses as tinham por mancebas, contudo as tinham de praça nas aldeias dos índios, ou fóra delas, com mulher, filhos e filhas, porque para os índios não era isso pejo nem vergonha, e lhes chamavam Temericô a mulher de N. (…) E lhes davam resgates, ferramentas, roupas, etc, como a tais. (…) Por onde não parece serem estes suficientes sinais de matrimônio nem da parte dos que se amancebam com elas, nem dos pais ou irmãos que lhas dão (…) Os que têm muitas mulheres a que chamam Temericô, não é possível saber-se com qual delas se juntaram com ânimo marital, porque nem eles entendem quanto importa falar nisto verdade, nem o sabem dizer realmente, porque para com todas tiveram o mesmo ânimo. E muitas vezes querem mais a segunda, terceira, quarta, e ainda a última que as outras, e por serem ou mais moças ou mais fecundas (ANCHIETA, 1933, p.450-453).

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Discurso semelhante é o de Francisco de Albuquerque, ecoado na

narrativa de Oribela:

(…) E se afeiçoavam ao pecado nefando, sem afronta, tomando por proeza o que serviu de macho e numa tenda pública machos se faziam de mulheres, nas aldeias vendiam os pais suas filhas meninas aos portugueses por pouco cabedal, um espelho ou alguidar e as índias que amavam seus maridos lhes buscavam mulheres para os desenfadar. Francisco de Albuquerque as tinha em seus desejos, que me fazia ver e ouvir, pelos lumes acesos e pelas vozes. Mas esposa era só uma, ele disse (MIRANDA, 1996, p.131).

Temericô, como na carta acima transcrita de Anchieta: mulheres

indígenas oferecidas em escravidão sexual e laboral ao homem português.

Mulher-escambo em troca de objetos ou roupas nas feiras livres nos primeiros

anos de Brasil. Mulheres arrancadas de suas tribos nativas para servir ao

colonizador da maneira que ele considerasse apropriada.

A primeira vez que o substantivo aparece como nome próprio no

romance, entretanto, é para apresentar ao leitor a índia da tribo Tupinambá,

Temericô. Na voz da protagonista, lê-se:

(…) Nesse tempo se deu de minha amizade se encantar por uma natural, de cor muito baça, bons dentes brancos e miúdos, alegre rosto, pés pequenos, cabelo aparado e que me falava a língua, com a rudeza dos matos e modos de animais silvestres. (…) Espantava morcegos das palhas, ria de qualquer coisa triste, vestia um tafetá verde e chamava Temericô. (…) Acenava muito ao falar, em voz desentoada. (…) Preparava Temericô uma cuia de comida, sem alvoroço chegava, sempre contente, descalça, sem coisa nenhuma na cabeça. (…) Cantava cantigas, tocava um pífano de graveto, contava de sua povoação, onde amava os pais e irmãos, de quem mais nada sabia, que lhe falavam deles as estrelas, fora ela caça do mato e palavras mansas (MIRANDA, 1996, p.119).

Aqui, abrimos um parêntese e atentamos para o fato de que, ao longo de

toda obra, desde as primeiras narrativas de Oribela, apenas as índias recebem

descrições físicas. Como se somente o corpo delas pudesse merecer atenção

já que, nas brancas cristãs, ele era espelhamento do pecado. Do diabo

humanizado. Das tentações infernais. Da confusão dos homens. Da culpa. Das

culpas. E talvez, até por isso mesmo, seja difícil dar um rosto à protagonista: do

mesmo jeito que ela embaça suas intenções, ela foge ao próprio retrato. Evita,

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quem sabe, os pecados fugazes da vaidade e da luxúria. Insistimos, portanto,

que só nas índias – a tal ponto libertas das culpas físicas quem eram sombras

nos corpos cristãos – a beleza é descrita e revelada.

As nativas aparecem nestes relatos ficcionais – transcritos em diferentes

momentos dessa pesquisa – como transgressoras. E transgridem pela

ausência de vergonha estampadas em seus corpos e em suas consciências.

Tinham, os povos indígenas, suas próprias crenças espirituais e, antes da

chegada do clero português e suas imposições histórico-coloniais, elas

passavam à muitas léguas de distância da fé no Cristo branco e monoteísta.

Da punição discursiva à beira do altar.

Pois é de Temericô a sabedoria da terra, a alegria do existir, o olhar que

distribui ternura e os conhecimentos dos mistérios naturais. Dela vêm a

candura, o acolhimento, os remédios para muitas dores, as tranças de Oribela,

a conversa com estrelas, a brisa fabricada com abanador, o alimento, a

música, certa subserviência, os óleos para hidratar os cabelos e o alívio para

os castigos físicos que Francisco impunha à narradora. São dela, também, os

desejos impossíveis; as utopias que a tornam tão gêmea em suas

singularidades a outras mulheres. Como já exposto, todas as personagens –

qualquer que fosse sua etnia – vislumbraram vidas distintas às que lhes

presentearam suas sinas. Sinas, patriarcalismo, arbitrariedade, Estado, Igreja.

Viessem elas em naus aventureiras pelos mares atlânticos, nascessem elas

nas matas com os pés enraizados no chão.

Temericô era a índia que se trajava branca com seu vestido de tafetá

verde. Que aceitou o Cristo na Catequese. Que queria o Santo Sacramento da

Igreja. Que revirou a alma ao avesso em nome da salvação. Que aspirava

casar virgem. Que seria monogâmica. Que falava Português, engolia suas

letras e tropeçava em seus fonemas. A seu modo, Temericô subverteu tudo

aquilo que nascera para ser; também ela renegou suas condições natais e

transformou-se no contrário do que era. Também ela tentou desfazer destino.

Sua rebeldia era ser nada do que fora para ela traçado.

Sua vida, quando narrada por Oribela, evoca fatos conhecidos da nossa

história. Nascida entre o povo Tupinambá, que, por volta do século XVI

habitava a costa brasileira – do Rio São Francisco ao Recôncavo Baiano no

nordeste, e do Rio de Janeiro à São Paulo na região sudeste – Temericô fora

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primeiro alijada do convívio com seu povo por causa das guerras entre as

tribos que compunham a mesma nação28 e, posteriormente, escravizada por

Francisco de Albuquerque:

(…) Era de um gentio muito antigo que fora lançado fora da sua terra das vizinhanças do mar por outro gentio seu contrário que descera do sertão pela fama da fartura da riba do mar e seus pais e avós perderam as terras que tinham senhoreado muitos anos e lhes destruíram as aldeias, roças, matando os que lhes faziam rosto, sem perdoar a ninguém, em frontaria com os contrários numa crua guerra, onde se comiam uns aos outros, os que cativavam ficavam escravos dos vencedores, numas batalhas navais, ciladas por entre as ilhas, grande mortandade e se comiam e se faziam escravos, até chegar o tempo dos portugueses. O-îo-akypûer-i, um trás outro, trás de um o outro, mokõî, mokõ'-mokõî. Tinga

29 (MIRANDA, 1996, p.119).

Embora seja tenso o relacionamento entre o homem branco e os

homens das tribos – os nativos eram considerados inimigos da coroa

portuguesa porque foram partidários dos franceses durante os seus intentos de

invasão pelo litoral brasileiro, ajudando-os, inclusive, no contrabando do Pau-

Brasil no que hoje se conhece como Praia do Francês, em Alagoas – a relação

com a índia Temericô é parte importantíssima da transformação de nossa

protagonista.

De uma Oribela que crescia enquanto personagem pelas informações

absorvidas no desmundo, no ambiente que a modificava constantemente e que

era indicativo de crise do sujeito de não caber ali e não mais pertencer a

Portugal. A narradora, depois do convívio com a índia, já não era mais tão

branca em seus hábitos. E a índia, com Oribela, esbranquiçou ainda mais.

Com ela, aprendeu um pouco da língua indígena, no que lhe ensinou um

pouco mais da portuguesa. Observando as outras índias, foi livrando-se do

horror à nudez. Os dias junto a Temericô fizeram com que Oribela pintasse o

rosto com urucum, se banhasse no rio contra o flagelo do calor, fumasse

28

Um dos maiores povos indígenas, os Tupinambás eram formados por diversas tribos que guerreavam entre si em batalhas quase sempre sangrentas e motivadas por vingança. Os cativos eram frequentemente devorados em ritos antropofágicos. Há várias descrições desses costumes nas cartas jesuíticas. 29

Já no primeiro relato, Temericô, em tupi, conta a Oribela como eram capturados os povos indígenas: O-îo-akypûer-i, mokõî, mokõ-mokõî. Tinga, um atrás do outro, nas costas do outro, dois, coisa branca. As palavras podem ser encontradas em tradução de Ana Miranda, em Desmundo (1996), e também à página 51 na obra de Luiz Figueira, previamente referenciada.

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cachimbos com ervas e lhe renderam acusação de estar se tornando uma

“selvagem" por parte de Dona Branca:

(…) A Perra advertira o filho de estar eu em conluios com as naturais, em um despudor, a me despir, tingir de urucum e a lhes aprender a fala, serem elas das que riam pelos ódios e nunca se cativavam demais, traiçoeiras como gatas. Tivesse eu cuidado, nas menarcas possuíam elas venenos em suas entranhas que davam febres malignas, pareciam demônios percutientes, em suas aldeias pecando todos os pecados da luxúria (MIRANDA, 1996, p.131).

Mas não tanto. Embora Temericô ganhasse a afeição de Oribela, nossa

dúbia protagonista ainda conservava os traços da colonizadora. E sim, de

opressora. Em certa passagem, depois de uma rusga com a índia, Oribela não

se desculpa. O desentendimento foi provocado pela vontade de Oribela de

retornar ao reino. Temericô, então, firme em suas convicções brancas de

matrimônio e monogamia, considerou isso uma falta de respeito ao marido. E

então, a narradora, orgulhosa, compara Temericô a uma cadela mansa em

seus joelhos após o decorrer dos dias. Na ocasião, em gesto carregado de

simbolismo e metáfora precisa, a índia, para desculpar-se, presenteia Oribela

com uma ave que não era de gaiola nem de alçar vôos. Um pássaro que

repousa nas mãos do dono e que, ainda que bique os dedos e aperte as

garras, não fere. Paira. Não é de revoada, embora tenha asas: fica.

Temericô e Oribela, tão diferentes, às vezes parecem miragens na outra.

Opostos refletidos da outra. Mas, em seus desencontros, espelhavam também

aquilo que a outra desejava ser. Uma, a índia que – depois de feita escrava –

queria ser branca e conhecer a vida no Reino. A outra, a branca que queria ser

livre, experimentar o despudor das mulheres das tribos e que só conseguia

falar de seu passado em Portugal – proibida que fora por Francisco – com a

índia que lhe ouvia. E ouvia porque queria se colocar lá, em tempos e terras

distantes. E mundos para muito além do horizonte que enxergava no mar. A

primeira nasceu livre e tornou-se cativa. A outra, escrava por toda uma vida,

aprendeu a lutar para ser liberta. Como ciclos que se iniciam e se

complementam em suas buscas por mais do que têm. Em ir além do que se vê.

Aliás, essa noção de que mulheres são alívio e abrigo para outras

mulheres, que elas se entendem ao se reconhecerem em suas dores, é

recorrente ao longo do romance. Mesmo que não eclipse também os seus

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atritos, exemplos de solidariedade entre elas permeiam a obra, sobretudo nos

discursos de Oribela na liberdade que garante uma casa sem homem e o sabor

da tranquilidade que sentiam quando Francisco de Albuquerque se

embrenhava mata adentro, junto com seus capangas e as deixava consigo

mesmas no fortim.

Ainda que haja dificuldade no diálogo, ou mesmo a inexistência do

diálogo diante da possibilidade concreta da desigualdade – que é premissa

básica na relação colonizado-colonizador –, é importante perceber como as

diferenças étnicas e as trocas culturais enriqueceram as mulheres e, com elas,

a nação. O quanto uma deixa de herança à outra. Como se entendiam entre

conflitos e ruídos quando a pauta orbitava no universo íntimo feminino.

O poeta e ensaísta Octavio Paz, em seu Sor Juana Inés de la Cruz ou

As armadilhas da fé (1982), é biógrafo de Juana Inés de la Cruz, e pensa a

importância de se problematizar a História sob pena de cometermos os

mesmos erros caso nos refutemos à reflexão sobre quem fomos na tentativa de

compreender quem somos. Fazendo uma retomada da colonização mexicana

pela Espanha, Paz pondera:

(…) Uma sociedade se define não só por sua atitude diante do futuro como também diante do passado: suas lembranças não são menos reveladoras que seus projetos. (…) Não temos uma idéia clara do que fomos. E, o que é mais grave: não queremos tê-la. Vivemos entre o mito e a negação, idolatramos certos períodos, nos esquecemos de outros. Esses esquecimentos são significativos; há uma censura histórica, bem como uma censura psíquica. Nossa história é um texto cheio de trechos escritos com tinta preta e outros escritos com tinta invisível. (…) A nossa história como uma ininterrupta evolução progressiva; ao destacar excessivamente a continuidade do processo histórico, acaba omitindo rupturas e diferenças (PAZ, 2017, p.19).

A legitimidade da problematização do passado se dá no sentido de

compreender o presente, entender os ciclos históricos que nos formaram e

tomar consciência do que veio antes de nós para que as injustiças e

apagamentos não sejam esquecidos e, portanto, repetidos. Que se ouça o

ruído que habita nas frestas e fissuras do discurso único e pretensamente

homogêneo.

Conhecer o que passou como uma forma de processo terapêutico, por

meio do qual encaramos nossos traumas enquanto nação e, em certo grau,

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alguma reparação a quem foi excluído. A quem continua à margem: o mundo

indígena em seu pluralismo de povos, culturas, costumes e línguas.

Memória e resistência, campos que vêm sendo trabalhados sob a

estética da literatura contemporânea, que enxerga nesse viés a possibilidade

de corrupção e subversão da narrativa oficial ao dar a voz a outros

personagens da mesma História. E, assim, nos aproximarmos de quem somos

enquanto povo, que, imbuídos de heranças genéticas semelhantes e

nacionalidade similar, cada dia nos tornamos mais estranhos ao próximo. De,

enfim, nos reconhecermos na identidade brasileira:

(…) Por que vivemos presos todos uns nos outros atados pelos mais fortes grilhões, por que causa somos todos tão estrangeiros uns dos outros e pouco sabemos da alma alheia mais que umas coisas que se podem dizer com palavras duras mas nossas almas afundadas na ignorância de nós, ai Deus (MIRANDA, 1996, p.1999).

Para Temericô, dizia Oribela, brincar e esquecer eram a mesma coisa30.

Nós, entretanto, devemos lembrá-la e permití-la o inesquecível. Pe-maenduar,

lembrai-vos vós: Ontem, às vezes, ainda é hoje. E o nosso desmundo não

pode mais ser nosso ilustre desconhecido.

30

Desmundo (1996), página 120.

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Considerações Finais

“(…) Que sabem os homens o que não sabem as fêmeas. (…) Sabia eu não ser poderosa e que não podia pelejar com tamanha força, ai, pelas alparcas douradas do rei, me libertasse de assentar à mesa como esposa e deitar à cama como mulher, sem entendimento de minha recusa, a preferir eu a dor do abandono e a sorte, em minha fraca e mulheril natureza.” (MIRANDA, 1996, p.71-82)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa pesquisa nasceu tanto de um incômodo quanto de um desejo: a

ignorância de nada ter sabido a respeito da narrativa da mulher na História e a

vontade de ouvi-la.

Oribela nos chegou de maneira nada suave para contar-nos coisas que

não sabíamos ou que jamais houvéramos imaginado. É difícil pensar um Brasil

de 1555 desatrelado das telas a óleo pintadas e reproduzidas exaustivamente

nos livros de História com os quais fomos pedagogicamente educadas. Quando

refletíamos a nossa Colônia, a visão era reducionista e figurava entre naus

atracadas e índios curiosos sobre os novos habitantes. Uma visão tristemente

pobre e caricata. Daí a necessidade de ir além.

Eram-nos desconhecidas as motivações e as razões pelas quais as

mulheres desembarcaram nesse pedaço de desterro. E como por aqui viviam.

Sabíamos que a índia aqui sempre estivera e a negra chegara pela dor da

escravidão. A mulher branca, todavia, nos era mistério.

A começar pela arte literária, nos abriu os olhos Ana Miranda. A voz de

Oribela nos despertou, aos gritos. Desmundo não é fácil. E desassossega

perceber que meio milênio depois da data histórica do nosso descobrimento,

continuamos padecendo de muitas das mesmas mazelas, embora sem nunca

perder a esperança de um final feliz.

Há pouco menos de três anos – em Outubro de 2016 – a ONG

americana Save The Children divulgou uma estudo de resultado não

exatamente surpreendente, porém não menos estarrecedor: o Brasil (ainda) é o

pior país da América do Sul (e um dos 50 piores do mundo) para se nascer

mulher.

A pesquisa levou em consideração alguns dos pontos com os quais se

confrontou a personagem e que persistem vivos quase 500 anos depois da sua

narrativa ficcional: o desenvolvimento e independência femininas, o casamento

forçado ainda na infância e adolescência, a gravidez precoce, a violência

contra a mulher, a mortalidade materna, a baixa representatividade política

feminina e a falta de acesso à educação básica.

O romance de Ana Miranda, através da sua narrativa envolvente,

tocante, atenta e rica, devolve à mente do leitor a imagem assustadora destes

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problemas que seguem presentes na realidade das mulheres brasileiras, que –

como Oribela e as outras passageiras da nau, que vieram cumprir a função de

esposas designadas pelos poderes então vigentes – são excluídas,

sexualmente objetificadas, muitas vezes emudecidas, alijadas de sua

dignidade, assombradas pelo medo, à mercê da violência e à margem dos

direitos mais básicos.

Não é de espantar quando absorvemos e apreendemos a visão

hegeliana-marxista da história na formação da humanidade. Pode-se

compreender – e compreensão aqui, de modo algum, deve ser lida como

aceitação ou resignação – o resultado do estudo da ONG americana acima

citada ao entrarmos em contato com os estudos de Mary Del Priore acerca da

mulher no Brasil colonial. Estava tudo lá. Está, desde sempre.

Ezra Pound dizia que:

(…) Literatura é a linguagem carregada de significado. Grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível. A linguagem é um meio de comunicação. (…) A incompetência se manifesta no uso de palavras demasiadas. (…) Uma definição de beleza: adequação ao objetivo (POUND, 2006, p.35).

E é justamente por esta narrativa dura e contundente, embora tecida

cuidadosamente e entrelaçada com o talento singular da autora que reitera seu

compromisso com o discurso poético, que serão despertadas ou atribuídas

questões de empatia, de alteridade, de entendimento, de compreensão e até

mesmo de arrebatamentos por parte do leitor que apreende, recebe e digere a

obra. Que a lê, a percebe e dela se apropria.

Ao longo de todo este trabalho, portanto, nota-se que as teorias críticas

aparecem como possibilidades de ampliação de leitura e entendimento do

romance, nunca como uma tentativa de tornar a arte um elemento cativo da

produção teórica. Trabalhamos com um objeto artístico que é, por si só,

expansão. Não é papel da teoria crítica – ou não deveria ser – ambicionar o

encaixe perfeito dentro de uma criação, de um fazer literário, posto que assim

se colocaria em movimento contrário ao que lhe cabe, que é o de auxiliar o

pesquisador nas múltiplas possibilidades de leitura e apreensão da narrativa.

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Sobretudo, ao se pensar Desmundo (1996), que é um Romance

Histórico, mas se delineia horizontalmente ao ser escrito em tempo presente –

ainda que trate de séculos passados – e uma protagonista que escapa da

lógica da moça típica do seu tempo e foge aos rótulos e padrões. É a heroína

em crise, a personagem única e multifacetada, por vezes dúbia em seu caráter

e em muitas outras vezes para além de uma leitura rasa e inocente. Oribela

transgride, subverte, resiste.

A obra desafia a crítica contemporânea – que ainda tem no século XIX

muito do seu embasamento teórico – ao convidar o leitor para absorvê-la sob

os mais diversos primas teóricos, mas nunca pertencendo a nenhum em sua

totalidade. Não se encaixa nem se permite a brutalidade de um único discurso,

porque é, em si, plural. Plural em vozes, plural em forma.

É um romance, é um diário. Dá um nó no tempo. Fala do passado com a

escrita do presente. Desloca oceanos, derruba máscaras. Des-conta. Des-diz.

Desnuda-se na urgência da sua prosa poética que nos obriga a observar

entrelinhas e entre as linhas que parecem dançar nas ondas dos mares

tempestuosos. Desdenha da leitura óbvia. As verdades, nesse romance, são

transversais, são duras e são abjetas. Demanda do leitor olhar atento e

generoso. Desafia e determina que se enxergue mais: mais da História, mais

da Literatura, mais da Crítica. Desmundo é desencaixe.

Nada está lançado ao acaso ou sem função de estar no diário-romance

híbrido de Ana Miranda; da eleição das duas epígrafes que abrem o livro – uma

poesia de Fernando Pessoa e um documento histórico – aos conflitos que o

permeiam, todos os elementos estão interligados e convidando o leitor a

repensar aquele mundo que nos acostumamos a enxergar com um olhar

automatizado, a ressiginificar aquele momento único e inicial da nossa História

através de uma voz dissonante.

Literatura, portanto, não é só o contar histórias nem se reduz ao narrar

lírico da ficção. Literatura é, também, (re)contar histórias. É (des)dizer histórias.

É encontrar um novo significado no passado que explique e compreenda os

ciclos temporais que definiram o presente. É a possibilidade de um (re)construir

o real através das estéticas ficcionais. É a (des)leitura. É dar a voz a quem foi

emudecido pelos relatos tradicionais. É o ampliar de horizontes. É a

oxigenação das idéias pela proposta de um novo viés. É uma autoria. É pintar

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um novo quadro, bastante diferente dos tradicionais óleo sobre tela que

retratavam índios curiosos e grandes conquistadores portugueses à beira mar

e selva adentro. Ana Miranda sabe disso. E o faz, para nosso deleite literário e

instrução do saber.

Que fiquemos, pois, com a idéia urgente de que a Literatura pode ir – e

vai – além. De que é, sobretudo, a forma artística e material do instrumento do

pensar e do refletir sobre o que fomos, sobre o que somos e sobre o que

poderemos ser se ousarmos enxergar o mundo sob uma nova perspectiva mais

abrangente, mais crítica e consciente; há verdade nas mentiras, Vargas Llosa

já nos disse.

Embora tenha um fim essa dissertação – que aqui se apresenta –, a

pesquisa não poderá tê-lo. É ela o começo de um longo caminho. Ela é,

também, ambiciosa em sua modéstia. Sabemos que conhecemos o todo

apenas em pequenas partes, fragmentadas pelas escolhas e recortes que

tivemos que fazer nesse trabalho. É preciso que continuemos refletindo e

buscando instrumentos que nos embasem e nos possibilitem fazer uma leitura

crítica da realidade para entender a origem do nosso contemporâneo, que,

embora apresente avanços sociais bastante significativos, segue tão sofrido

para quem está à margem, para os nossos heróis e heroínas, tão excêntricos

quanto periféricos. E anônimos.

Temos que ter o compromisso de conhecer a nossa História na tentativa

de mudar o presente, que sangra, em hojes. É preciso que se escute todos

aqueles a quem a voz foi negada. E que continua, de certa forma, silenciada.

Somos um país de aindas. Deveríamos ser um de bastas. A educação, como a

compreendemos, é poderoso auxílio na tentativa de reparações e construções

de futuros menos violentos. A educação, como acreditava Paulo Freire, é

libertadora e nos iguala.

Encontramos, por meio da Arte, algumas das respostas que

buscávamos em nossos objetivos. Respaldadas por estudos de grandes

pensadores que souberam teorizar e explicitar a grandeza da literatura nas

suas múltiplas possibilidades de instrumentalização, tentamos trazer uma

pesquisa coerente, que apresentasse uma nova possibilidade de convergência

teórica entre o que antes era, aparentemente, divergência e disparidade. Um

estudo coeso que fizesse jus à importância do tema e que pudesse contribuir

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para a sistematização do conhecimento acadêmico e, mais ainda, para

compreensão do social através da ficção literária.

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