CAMINHADAS. UFRN. CONEXÕES DE SABERES

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UFRN Universidade Federal do Rio Grande do NorteCaminhadas de universitrios de origem popular

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Copyright 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pr-Reitoria de Extenso. O contedo dos textos desta publicao de inteira responsabilidade de seus autores. Coordenao da Coleo: Jailson de Souza e Silva Jorge Luiz Barbosa Ana Ins Sousa Organizao da Coleo: Monique Batista Carvalho Francisco Marcelo da Silva Dalcio Marinho Gonalves Aline Pacheco Santana Ncleo de Produo Editoria da Extenso PR-5/UFRJ Claudio Bastos Anna Paula Felix Iannini Thiago Maioli Azevedo

Programao Visual: Coordenao:

C183 Caminhadas de universitrios de origem popular : UFRN / organizado por Ana Ins Souza, Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. Rio de Janeiro : Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pr-Reitoria de Extenso, 2009. 148 p. ; il. ; 24 cm. (Coleo caminhadas de universitrios de origem popular) Ao alto do ttulo: Ministrio da Educao. Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade. Programa Conexes de Saberes : Dilogos entre a Universidade e as Comunidades Populares. Parceria: Observatrio de Favelas do Rio de Janeiro. ISBN: 978-85-89669-40-5 1. Estudantes universitrios Programas de desenvolvimento Brasil. 2. Integrao universitria Brasil. 3. Extenso universitria. 4. Comunidade e universidade Brasil. I. Souza, Ana Ins, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI. Programa Conexes de Saberes : Dilogos entre a Universidade e as Comunidades Populares. V. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII. Observatrio de Favelas do Rio de Janeiro. CDD: 378.81

Ministrio da Educao Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade Programa Conexes de Saberes: dilogos entre a universidade e as comunidades populares

Organizadores

Jailson de Souza e Silva Jorge Luiz Barbosa Ana Ins Sousa

UFRN

Pr-Reitoria de Extenso - UFRJ Rio de Janeiro - 2009

Coleo

Presidente da Repblica Luiz Incio Lula da Silva Ministrio da Educao Fernando HaddadMinistro

Autores Ana Paula de Barros Ferreira Ana Paula de Souza Santos Cludio Jos Brasiliano da Silva Dhynefa Katiany de Lima

Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade SECAD Andr Luiz de Figueiredo LzaroSecretrio

Dulcineide da Silva Gomes Edna Polyanna Braz Edivan do Nascimento Fbia Misiara Dias da Silva

Diretoria de Educao para a Diversidade - DEDI Armnio Bello Schmidt Coordenao Geral de Diversidade CGD Leonor Franco de Arajo

Fabiana Alves dos Santos Francisco Gilberto da Silva de Oliveira Gabriela de Oliveira Lima

Programa Conexes de Saberes: dilogos entre a universidade e as comunidades populares Jorge Luiz Barbosa Jailson de Souza e SilvaCoordenao Geral

Graziele Arajo da Silva Izabel Cristina de Andrade Janeide Maia Campelo Jnio Csar da Silva

ris Maria de OliveiraCoordenao Geral do Programa Conexes de Saberes/UFRN

Jos Alexandre F. de Freitas Josenildo Eugnio da Silva Larissa Nunes Paiva Liz Mnara Arajo Oliveira Luzia Andressa Feliciano de Lira

Irene Alves de Paiva Elizete SchwadeCoordenao Adjunta

Jos Ivonildo do RegoReitor

Maria Rosngela Gomes Marinalva Gomes de Oliveira Pmela Rafaelly de Melo Reinaldo Renato Galdino de Sousa Wellington da Silva

ngela Maria Paiva CruzVice-Reitora

Cipriano Maia de VasconcelosPr-Reitor de Extenso

PrefcioA sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construo de aes que permitam, sem abrir mo da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econmica que caracteriza o pas. E, para isso, a educao um elemento fundamental. A possibilidade da educao contribuir de forma sistemtica para esse processo implica uma educao de qualidade para todos, portanto, uma educao que necessita ser efetivamente democratizada, em todos os nveis de ensino, e orientada, de forma continua, pela melhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministrio da Educao persegue de forma intensa e sistemtica esses objetivos. Conexes de Saberes um dos programas do MEC que expressa de forma ntida a luta contra a desigualdade, em particular no mbito educacional. O Programa procura, por um lado, estreitar os vnculos entre as instituies acadmicas e as comunidades populares e, por outro lado, melhorar as condies objetivas que contribuem para os estudantes universitrios de origem popular permanecerem e conclurem com xito a graduao e ps-graduao nas universidades pblicas. Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa desenvolvido a partir da Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (SECAD-MEC) e representa a evoluo e expanso, para o cenrio nacional, de uma iniciativa elaborada, na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organizao da Sociedade Civil de Interesse Pblico Observatrio de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasio constitui-se uma Rede de Universitrios de Espaos Populares com ncleos de formao e produo de conhecimento em vrias comunidades populares da cidade. O Programa Conexes de Saberes criou, inicialmente, uma rede de estudantes de graduao em cinco universidades federais, distribudas pelo pas: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamos o Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS, UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministrio da Educao assegurou, em todos os estados do pas, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo includas: UFAC, UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar, UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB. Atravs do Programa Conexes de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma, ao menos 251 universitrios que participam de um processo contnuo de qualificao como pesquisadores; construindo diagnsticos em suas instituies sobre as condies pedaggicas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnsticos e aes sociais em comunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulao de proposies e realizao de1

A partir da liberao dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, ao menos 35 bolsistas.

prticas voltadas para a melhoria das condies de permanncia dos estudantes de origem popular na universidade pblica e, tambm, aproximar os setores populares da instituio, ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instncias sociais. Nesse sentido, o livro que tem nas mos, caro(a) leitor(a), um marco dos objetivos do Programa: a coleo Caminhadas chega a 33 livros publicados, com o lanamento das 19 publicaes em 2009, reunindo as contribuies das universidades integrantes do Conexes de Saberes em 2006. Com essas publicaes, busca-se conceder voz a esses estudantes e ampliar sua visibilidade nas universidades pblicas e em outros espaos sociais. Esses livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moas, que contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes das camadas mais desfavorecidas s universidades de excelncia do pas ou s o permite para os cursos com menor prestgio social. Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construo de uma universidade pblica efetivamente democrtica, um sociedade brasileira mais justa e uma humanidade cada dia mais plena.

Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade Ministrio da Educao Observatrio de Favelas do Rio de Janeiro

SumrioApresentao Ilza Arajo Leo de Andrade ............................................................................. 9 Introduo Quando o sujeito se torna autor de sua histria: memria e re-encontro Maria da Penha Casado Alves ......................................................................... 11 Com amor e f na vida mais fcil continuar a caminhada Ana Paula de Barros Ferreira .......................................................................... 13 Um retorno: saudades, desafios, minha vida!!! Ana Paula de Souza Santos ............................................................................. 18 Persistncias e sentimentos Cludio Jos Brasiliano da Silva .................................................................... 27 A trajetria de uma potiguar especial e nica Dulcineide da Silva Gomes .............................................................................. 31 Caminhos e sonhos de uma nordestina Dhynefa Katiany de Lima ................................................................................. 40 O mundo d voltas Edivan do Nascimento ...................................................................................... 50 Minhas memrias de estudante Edna Poliana Braz ............................................................................................ 54 Da minha vida, do meu caminho, das minhas escolhas Fbia Misiara Dias da Silva ............................................................................ 60 Minha vida em contnua construo... Fabiana Alves dos Santos ................................................................................ 63 Conto minha histria com orgulho Francisco Gilberto Silva de Oliveira ............................................................... 66

Sou sempre eu mesma, mas com certeza no serei a mesma para sempre Gabriela de Oliveira Lima ................................................................................ 75 A luta por um sonho Grasiele Arajo da Silva .................................................................................. 83 Uma princesa chamada Izabel Izabel Cristina de Andrade .............................................................................. 86 Dos atores e das cenas Janeide Maia Campelo ..................................................................................... 89 Minha vida, minha poesia Jnio Cesar da Silva ........................................................................................ 94 Um potiguar de sorte Jos Alexandre Flix de Freitas ..................................................................... 100 Da trajetria de um vencedor Josenildo Eugnio da Silva ........................................................................... 103 A oportunidade que ajudou a construir meu futuro Larissa Nunes Paiva ....................................................................................... 106 Flor-de-lis Lis Mnara Arajo de Oliveira ...................................................................... 114 Para sempre Cinderela Luzia Andressa Feliciano de Lira .................................................................. 118 Significativas vitrias merecem ser registradas Maria Rosngela Gomes ................................................................................. 123 Antnia sou eu e pode ser voc Marinalva Gomes de Oliveira ........................................................................ 129 O mundo de Pmela Pmela Rafaelly de Melo Reinaldo ............................................................... 136 Natal, vero de 2007 Renato Galdino de Sousa ............................................................................... 139 Pginas da minha vida Wellington da Silva ........................................................................................ 142

ApresentaoA Histria da Universidade Brasileira tem as marcas da sociedade onde ela est inserida: uma sociedade desigual, marcada pelo autoritarismo social, por uma cultura poltica construda a partir de valores fincados na idia da superioridade de uns poucos, uma sociedade onde os acessos sociais dependem de cdigos e senhas do tipo: "Voc sabe com quem est falando?" como bem pontua o antroplogo Roberto da Matta em seu livro Carnavais, Malandros e Heris. A instituio universitria surge, no pas, para formar os filhos da elite econmica e assume modos de recrutamento e de funcionamento que a tornam inacessvel para a grande parcela da sociedade. Essa realidade comea a mudar nos ltimos anos e essa mudana tem a ver com o avano da democracia em nosso pas, acompanhado, naturalmente, pelo poder de presso da sociedade organizada que traz para o debate a questo da justia social, da incluso e da garantia de direitos bsicos, do ponto de vista social. Como no poderia deixar de ser, a questo do acesso aos bens e servios pblicos comea a ser amplamente debatida, levando o Estado a repensar as regras e as prticas de suas instituies. Tornar a universidade pblica acessvel para aquela grande maioria destituda de privilgios, de poder econmico, de uma formao educacional adequada (geralmente realizada em escolas privadas) uma misso que comea a ser encarada pelo Estado brasileiro nesse momento. E dentro desse contexto que se coloca o Programa Conexes de Saberes: um programa do Ministrio da Educao que tenta criar condies para apoiar aqueles que, a despeito de toda as adversidades inerentes sua condio social, apostaram no sonho da universidade e chegaram l. Para isso foi necessrio uma longa caminhada, de incertezas, de medos, de dificuldades de toda a natureza, mas tambm de f,de coragem, de ousadia. Na UFRN esses so os nossos vencedores. Com a leitura dos textos podemos conhecer diferentes histrias, diferentes estradas que, tm em comum, o idealismo da juventude e a garra de construir para si, novos caminhos.

Profa. Ilza Arajo Leo de Andrade Pr-reitora de Extenso da UFRN

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Introduo Quando o sujeito se torna autor de sua histria: memria e re-encontroMaria da Penha Casado Alves *O homem um ser de linguagem. Na linguagem ele se constitui e constitui o mundo. A vida tonifica a linguagem e essa tonifica a vida. pela linguagem que o homem atua no mundo e se constitui como sujeito nas interaes e nas relaes com o outro. Ademais todos os campos da atividade humana esto ligados ao uso da linguagem. A compreenso dos atos singulares, como tambm os processos de sua concretizao que se apresentam em diferentes e inumerveis nuances, dinamicidade e plasticidade onde o nico e irrepetvel se articula cadeia infinita de comunicao, o que deveria orientar qualquer trabalho com a linguagem. Isso porque sempre que nos expressamos verbalmente utilizamos os gneros do discurso que so to heterogneos e multiformes como so as nossas prticas sociais. Assim, o emprego da lngua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos, nicos, singulares proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Com esse entendimento sobre sujeito e linguagem, comeamos a Oficina de Textos no Conexes de Saberes, na UFRN. Durante um tempo, nos dedicamos a compreender que linguagem interao intersubjetiva e, assim sendo, construda scio-historicamente pelos sujeitos. Esse sujeito histrico, em construo, sempre est na fronteira, no limiar com o outro que o completa e lhe d acabamento. A singularidade do sujeito se d pelo lugar que ele ocupa na histria e na vida. No h libi para a vida, portanto, no h libi para o sujeito isentar-se de estar naquele momento, naquela situao histrica, no evento de sua prpria vida. Inicialmente, uma das primeiras atividades para essa turma de jovens que iriam contar a sua histria, foi situar-se no tempo. Para tanto, pesquisaram e se inteiraram dos eventos e da histria que marcaram a sua vinda ao mundo. Traar uma linha do tempo ajudou-os a se reconherem como sujeitos histricos. Quo difcil foi a tarefa, afinal, a memria sempre foi, historicamente, prerrogativa dos idosos. Eles eram os responsveis por rememorar e repassar o legado de suas vidas ou de sua comunidade para os mais jovens. Quem tem histria para contar? Acreditamos que aquele que muito viveu. Como fazer com que jovens se colocassem como narradores que tm uma histria para contar?* Professora do Depto. de Letras da UFRN e orientadora da Oficina de Textos do Programa Conexes de Saberes.

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A leitura de textos autobiogrficos ajudou a esses alunos a compreenderem a posio que o sujeito ocupa quando se dispe a contar a sua saga pessoal. Lemos, ento, autobiografias de diferentes sujeitos, com diferente composio e estilo: da escrita sucinta e dura de Graciliano Ramos ao relato forte e corajoso de Sila, ex-cangaceira do bando de Lampio. A leitura proporcionou a desconstruo do mito de que no sabiam fazer, ou melhor, no sabiam escrever. Ler os textos levou-os a perceber que tambm poderiam reconstituir a trajetria de suas vidas, a sua caminhada, a sua saga pessoal. Com a clareza de que o gnero discursivo emerge e se nutre das prticas sociais e histricas do uso da linguagem, discutimos, ento, qual o gnero mais propcio para a inteno comunicativa "contar uma trajetria de vida". Assim, elencamos alguns gneros que poderiam se constituir em instrumentos para esse objetivo: a autobiografia, o poema narrativo, o memorial, o esquete, a carta pessoal e outros mais. Desses, esto neste livro a autobiografia com diferentes configuraes, o poema narrativo, o esquete com sua estrutura dramatrgica e a carta pessoal. Cada um procurou imprimir a sua marca autoral, o seu estilo e isso foi concretizado pela escolha de epgrafes, de versos de canes tantas vezes ouvidas e com as quais se identificavam, de frases vindas dos contos de fadas, de frases de pensadores ou autores lidos. Alm disso, esse estilo pessoal se evidencia, tambm, na escrita direta, sucinta e sem rodeios de alguns como se desejassem o corte, o close apenas naquilo que foi selecionado; ou na poeticidade daqueles que se embeberam do passado e o reconstituram com detalhes, mincias, pequenos "causos" contados com o sabor da infncia. Sobressai-se desse trabalho, que perdurou alguns meses, a emoo desses jovens narradores na busca de suas lembranas, de suas memrias. O reencontro com o passado, mesmo to prximo quanto o deles, vem marcado com a sensao de se estar de volta aos locais, aos eventos, aos braos e abraos de amigos, intimidade da casa dos pais ou dos parentes. Assim, o sofrimento, a dor das perdas, as dificuldades, as limitaes, os preconceitos, a excluso so ressignificados e olhados com o distanciamento que propicia a reflexo, a crtica e a indignao. Confirmando que a linguagem constitutivamente dialgica, as vozes desses narradores e narradoras vm atravessadas e marcadas pelas vozes de seus pais, parentes, amigos ou de uma voz coletiva que os estimulavam para a ruptura, para a luta, para a conquista. Destemidos e destemidas, abrem as gavetas de seu passado, muitas vezes, confundido e enredado ao presente, e se mostram inteiros, fortes, valentes e vitoriosos e vitoriosas... O combustvel para a sua escrita foi a emoo, mas tambm o propsito de registrar que eles podem e tm o direito de estarem aqui freqentando uma universidade pblica. O choro que muitas vezes se fazia presente quando lamos as primeiras verses dos textos, que ora apresentamos, tambm era seguido de risos e alegria que acompanham os momentos de vitrias e conquistas. Eles no tiveram libis para as suas vidas, mas foram muitos os libis construdos para justificarem a excluso, o abandono, a discriminao. Quem quer que se interesse por histria de vida, por relatos de sagas pessoais, por registro de conquistas e sonhos, muito encontrar nessas pginas. O acesso histria desses bolsistas propicia uma emoo rara e, talvez, o reencontro com a sua prpria histria. Afinal, somos muitos os que compartilhamos das mesmas condies de vida, de educao, de acesso ao que produzido para poucos. Os leitores percebero o quanto essa leitura instiga, emociona, revolta e ensina. E que sejam inmeros esses leitores!

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Caminhadas de universitrios de origem popular

Com amor e f na vida mais fcil continuar a caminhadaAna Paula de Barros Ferreira *A caminhada sua e de mais ningum. Real Coletivo Dub Viver trilhar os caminhos que o destino coloca nossa frente; trilh-los com amor, f em Deus, bondade e positividade. Para estar aqui, contando como comecei a trilhar esse caminho chamado Universidade, tive que dar um passo que mudou totalmente a minha vida. Sei que devem existir caminhadas mais emocionantes ou at mais comoventes que a minha; talvez ela seja s mais uma entre tantas outras, porm, esta a minha caminhada, que realizo todos os dias e da qual sinto um grande orgulho, por ter foras para continuar seguindo, mesmo com todas as pedras e obstculos que surgem. Eu sou do Hip Hop. Eu sou do Rio. Rafael Crespo / Marcelo D2 Sou uma jovem de origem popular. Nasci no Rio de Janeiro-RJ, passei parte da minha infncia na casa dos meus avs, em Padre Miguel (periferia do Rio). Apesar das dificuldades, sempre fui muito feliz. Graas a Deus, consigo enxergar a felicidade nas coisas simples da vida. Minha av (Dona Nina) foi lavadeira de roupa por muitos anos e dona de casa e meu av (Seu Maninho), mestre de obras a vida toda, faleceu em abril de 2006 em decorrncia de um cncer no esfago. Perder meu av foi muito doloroso para mim, pois ele foi uma pessoa muito presente na minha infncia e cuidava de mim como se fosse meu pai. Eles sempre cuidaram de mim com o maior carinho do mundo. Minha me trabalhava o dia todo e tentava fazer faculdade durante a noite. Apesar de ter se esforado muito, ela no conseguiu concluir o curso de Administrao. Faltou dinheiro, faltou tempo... Acho que por isso que ela me incentiva muito a estudar. Meus pais no eram casados e alguns anos depois do meu nascimento o relacionamento deles terminou. Naturalmente, com o passar do tempo, minha me conheceu outro rapaz (Izael) e se casou com ele. Foi por causa do casamento que nos mudamos do Rio de Janeiro. O marido da minha me (o chamo de pai desde pequena) Cabo da Marinha e foi transferido para o Nordeste em 1992. Foi a melhor coisa que poderia ter acontecido. Apesar de ficarmos longe da nossa famlia, o nordeste um lugar maravilhoso para viver. Moramos por quatro anos em Joo Pessoa-PB e depois em Natal-RN. Hoje, eles (minha me, meu pai e meus irmos - tenho um irmo de 16 anos Raphael e uma irmzinha linda com 10 anos, Raphaela)* Graduanda em Comunicao Social - Radialismo pela UFRN.

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esto morando no Rio novamente. E eu estou em Natal... esse foi o grande passo que precisei dar para fazer o Curso Superior: ficar sozinha em Natal. Estudei o Ensino Fundamental em uma escola fundada por uma igreja evanglica aqui em Natal. A mensalidade era acessvel, mas mesmo assim, s vezes, o pagamento atrasava por falta de dinheiro. Quando cheguei a 8 srie, fui estudar em uma escola estadual. J o Ensino Mdio, consegui fazer em uma das melhores escolas de Natal: o CEFET-RN. Estudei muito para a prova de seleo... minha me sempre me motivou bastante (o sonho dela me ver formada!) e essa motivao dinheiro nenhum do mundo pode pagar, pois s em saber que existe algum que me ama muito e acredita sempre nos meus sonhos, vejo que isso no tem preo e, ainda mais, quando essa pessoa uma guerreira como ela. Orgulho-me de ser filha de uma mulher to corajosa e especial. Tenho-a sempre como fonte de inspirao. Assim, ter a oportunidade de ser aluna da escola tcnica fez muita diferena na minha vida. Comecei a conhecer o movimento estudantil, tive excelentes professores que me passaram importantes noes de poltica, direitos humanos, etc. Por isso, acredito que nada acontece por acaso. O destino ps em minha vida o caminho chamado CEFET e eu lutei para poder percorr-lo, e hoje eu sei que foi a melhor coisa que poderia ter acontecido naquele momento. Outro fato muito marcante aconteceu neste mesmo perodo: quando voltei a manter contato com meu pai Francisco. J fazia mais de dez anos que no nos falvamos porque, como ele tambm era militar, havia sido transferido do Rio de Janeiro. Mas a dvida o preo da pureza e intil ter certeza. Humberto Gessinger Chegou o terceiro ano e era a hora de fazer vestibular. Surgiu ento uma dvida: que curso escolher? Estava perdida em relao a isso e optei por Psicologia. Fiz o vestibular e no passei; esse curso muito concorrido na UFRN. No ano seguinte, descobri que minha verdadeira vocao era ser uma Comunicadora Social. Tentei vestibular para Jornalismo e novamente no passei. Eu ficava muito nervosa na hora das provas... j estava comeando a querer desistir... mas minha me estava sempre por perto me motivando. Consegui uma bolsa de estudos num cursinho e estudei como nunca. No agentava mais sofrer decepes com o resultado do vestibular; eu sabia que tinha potencial, todos tm, mas a prova do vestibular muitas vezes no justa. Senti que era o ltimo vestibular que faria, pois me dera muito bem nas provas. S uma coisa me deixava triste: meu pai Izael estava para receber a transferncia de volta para o Rio. A confirmao da transferncia dele saiu antes da divulgao do resultado do vestibular. Ficamos todos tristes, afinal de contas, j fazia nove anos que morvamos em Natal. Minha famlia se mudou em dezembro, antes do natal e antes do resultado do vestibular; minha me queria tanto estar ao meu lado nesse dia to importante para ns duas, mas infelizmente no foi possvel, apesar da distncia, comemoramos essa vitria. Felicidade, passei no vestibular... Martinho da Vila

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Caminhadas de universitrios de origem popular

Passei para o curso de Comunicao Social-Radialismo (fui a segunda colocada), foi um dos dias mais felizes da minha vida. Porm estava com uma pontinha de tristeza porque tinha que voltar para minha cidade natal, porque era em Natal que estavam meus amigos, minha vida; queria ter o prazer de estudar na UFRN, mas, naquele momento, isso era invivel: eu mal sabia o que o destino estava preparando para mim... Precisei ficar em Natal para resolver a documentao da minha transferncia e, como eu no tenho famlia aqui, tive que arranjar um lugar para ficar por uns tempos. E foi nesse momento que uma famlia muito especial me acolheu: a famlia do meu ex-namorado, Lourival, mais conhecido por Loro. So pessoas maravilhosas - Alcia, Polloni e Paloma. Deus sempre coloca anjos em nossas vidas para nos ajudar a seguir a caminhada. Fiquei hospedada na casa deles por trs meses e fui tratada como um membro da famlia - at churrasco teve no dia da minha aprovao no vestibular! Infelizmente, hoje no fao mais parte dessa famlia linda (depois que voltei para Natal, nosso namoro terminou), mas amo muito todos eles e sou grata pelo que fizeram por mim e sempre peo a Deus que continue abenoando e iluminando sempre seus caminhos. Resolvido o problema da documentao, viajei para o Rio de Janeiro. Como as despedidas so tristes! Loro, Walkiria (minha melhor amiga) a me dela (Aparecida) e mais alguns amigos foram se despedir de mim. Dizer adeus di muito, mas era preciso. Eu fui de Natal at o Rio de Janeiro chorando muito, pois era um novo rumo que estava dando na minha vida. Apesar de ter nascido no Rio, morava no Nordeste h mais de treze anos e no estava mais ligada "Cidade Maravilhosa". Apesar de tudo, fiquei muito feliz por ter chegado ao Rio (estava morrendo de saudades da minha famlia, nunca tinha passado tanto tempo longe dela). Minha me como sempre, muito coruja, quase morreu de alegria. Mas como nem tudo so flores surgiu um problema: fui at a UFRJ para fazer minha matrcula e entreguei meus documentos na secretaria da ECO (Escola de Comunicao). Freqentei as aulas como aluna ouvinte, durante uma semana, enquanto a minha documentao estava sendo analisada.

Na mochila amassada Uma quentinha abafada. O Rappa Foi uma semana muito intensa. Estava ansiosa para saber se conseguiria me matricular; com saudades de Natal e dos meus amigos; perplexa com a complexidade que era o Rio de Janeiro (estava acostumada com uma cidade pequena) e ainda por cima tinha que andar sozinha no Rio, mesmo no conhecendo nada. A casa dos meus pais fica em Campo Grande (Zona Oeste do Rio) e a ECO fica na Urca (Zona Sul) - quem conhece o Rio de Janeiro sabe o quanto esses bairros so distantes. Precisava pegar um nibus de Campo Grande at a Central do Brasil, e de l, outro para a Urca. Para fazer esse trajeto eu gastava mais ou menos duas horas e quarenta minutos, isso sem engarrafamento na Avenida Brasil. Para chegar aula que comeava s 13h eu tinha que sair de casa, mais ou menos, s 9h e 30 min. E o valor da passagem do nibus? Gastei em um dia R$ 8,00, e sem falar que, ou eu levava uma quentinha para almoar ou ento teria que gastar mais dinheiro para poder me alimentar na universidade.

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Eu e minha me comeamos a pensar em alternativas para facilitar a minha ida para as aulas. Tenho uma tia-av, Maria Antnia, que mora no bairro Catete (Zona Sul) e que mais prximo da ECO. Conversamos e ela permitiu que eu morasse na casa dela. Mas, apesar de ter encontrado a soluo para esse problema, apareceu outro: faltou um documento importantssimo para efetivao da minha matrcula - declarao da Marinha, atestando que eu morava com minha me e com meu padrasto. Alm desses problemas, tinha o estado de sade do meu av. H dois anos ele estava fazendo tratamento contra um cncer no esfago. Ele j estava com 80 anos e sua imunidade j estava muito baixa por causa da quimioterapia e da radioterapia. Depois de quatro anos sem v-lo, encontr-lo to mal me deixou abalada (ele estava muito magrinho e sem cabelo. O cansao era claro no seu rosto). Meu av foi um grande guerreiro, e como um bom guerreiro resistiu at acabarem todas as suas foras... Jamais perca o seu equilbrio por mais forte que seja o vento da tempestade Andr Sampaio / Hlio Bentes Diante de tudo isso eu fiquei muito triste. Tinha estudado tanto para passar no vestibular e parecia que eu estava recebendo um castigo no lugar da recompensa. Mas respirei fundo, pedi ajuda a Deus, calma e paz interior para encontrar uma soluo. Adeus, adeus, adeus mamezinha. Adeus, adeus, adeus mamezinha. Vou embora, eu vou voltar pro meu serto... Natiruts Decidi voltar para Natal. Minha me se mostrou forte, disse que apoiaria minhas decises, mas senti no seu olhar a tristeza que tomou conta do seu corao. No fcil ver a filha mais velha saindo de casa. Ainda mais nessas condies. No temos famlia em Natal e minha me no tem condies financeiras de me bancar - aluguel, alimentao, transporte, etc. Mas, eu nunca desisto fcil dos sonhos. Sabia que na UFRN tinha Residncia Universitria e eu poderia procurar emprego. Contava, tambm, com a fora de amigos que deixei em Natal. Liguei para minha amiga Walkiria, expliquei o que havia acontecido e pedi para ficar um tempo na casa dela enquanto me organizava. Ela concordou. Tem que recomear, tem que construir, tem que avaliar e ter hora para agir O Rappa Pronto! Estava decidido. Liguei para meu pai Francisco, perguntei se ele poderia me ajudar comprando minha passagem de volta (o ano letivo j tinha comeado h um ms). Ele me ajudou e eu voltei para Natal. Atitude louca? Ou um impulso? Atitude ousada demais? Pode at ser... Mas eu no ia ficar sentada vendo meu sonho escapar pelas minhas mos sem fazer nada. O mximo que poderia acontecer era dar tudo errado e eu voltaria para casa. Aps dois meses de aula, e depois de dois meses procurando emprego, soube que a Pr-Reitoria de Extenso estava selecionando alunos para serem bolsistas do Programa

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Caminhadas de universitrios de origem popular

Conexes de Saberes. Na primeira etapa da seleo, foi exibido o clip do I Seminrio Nacional do Conexes de Saberes. Achei um projeto interessantssimo e fiquei com muita vontade de participar. Entreguei minha documentao e fiquei espera. Quando o resultado da seleo saiu, eu quase que no acreditei: eu tinha sido selecionada. Ao chegar em casa, contei logo a novidade e todo mundo vibrou. No tenho palavras para agradecer a fora que recebi da minha "Famlia nmero 2" (Walkiria, Aparecida e Dona Elci). Elas so mulheres incrveis; guerreiras que nunca desistem da batalha diria que a vida; so anjos - novamente os anjos - iluminados. No sei o que teria sido de mim se no fosse o apoio delas. Obrigada, queridas! As atividades do Conexes comearam e eu estou trabalhando na Comunidade Redinha/frica. E sabem que coisa maravilhosa aconteceu? O II Seminrio Nacional do Conexes de Saberes foi no Rio de Janeiro, ou seja, consegui ver minha famlia e matar um pouco da saudade. Nada acontece por simples acaso. Tudo tem um propsito e o destino conspira a favor daquele que busca trilhar seu caminho de mos dadas com o bem. Hoje estou morando sozinha - minha casa no grande (quarto, cozinha e banheiro), mas o suficiente - e me sinto muito feliz, apesar de me sentir um pouco s e a saudade da minha famlia ser grande. Estou em paz porque descobri a minha vocao; estou feliz por ser quem eu sou. Tenho falhas, mas quem no tem? Somos parecidos com borboletas que um dia j foram lagartas. Mas com amor e f na vida mais fcil continuar a caminhada. Ento encontre a paz no seu interior No se entregue jamais E lute com amor. Rastafeling

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Um retorno: saudades, desafios, minha vida!!!Ana Paula de Souza Santos*Comece fazendo o que necessrio, depois o que possvel, e de repente voc estar fazendo o impossvel. So Francisco de Assis Contar minha histria desde a infncia at a fase atual da minha vida, na qual estou aqui, na universidade meio complicado contarmos a nossa histria de vida, porm, acredito que esta ser uma experincia marcante, principalmente, por saber que voc est lendo-a agora. Ento, por que contar minha histria? Primeiro, porque espero que a realizao dessa obra possa produzir bons pensamentos e reflexes, novos sonhos, novas expectativas, e junto com tudo isso o "acreditar em si mesmo" em cada um de vocs leitores. Segundo, porque o ato de contar esta trajetria est me proporcionando um maior conhecimento sobre mim mesma, sem falar no forte sentimento de agradecimento a todos que, de alguma forma, fizeram parte dessa minha caminhada at a entrada na universidade. Eu me chamo Ana Paula de Souza Santos e atualmente estou cursando Enfermagem na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Antes de tudo, para mim, imprescindvel iniciar minha trajetria falando sobre o quanto a presena da minha me, a Dona Maria das Graas, foi importante para me direcionar nos meus caminhos. Tendo ela nascido no interior da Paraba, na cidade de Campina Grande, no dia 15 de julho de 1963, nunca soube o que era estar dentro de uma sala de aula, pois alm de a escola ficar muito distante desse lugar, seus pais no a incentivavam muito para o estudo. Meus avs maternos eram feirantes, assim, com apenas sete anos, minha me j os ajudava na feira, enquanto seus sete irmos trabalhavam na roa. Nenhum deles teve acesso educao, pois alm de outras dificuldades, as pessoas do lugar no pensavam muito em estudo, mas sim, em trabalho. Devido situao difcil da famlia, aos quinze anos partiu para a capital Joo Pessoa com uma prima. Estando na capital, no conseguia emprego, principalmente, por saber somente escrever seu nome. Assim, a nica alternativa que encontrou foi trabalhar em casa de famlia, j que no tinha onde morar, tampouco dinheiro para pagar aluguel. E foi com o pouco que ganhava de seu trabalho que minha me ajudava a famlia. Acho que ela no pensou nas dificuldades que teria de enfrentar ao sair de sua cidade no interior, uma vez que partiu para a capital sem dinheiro e sem moradia, s trazendo o sonho de mudar de vida,

* Graduanda em Enfermagem pela UFRN

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mesmo com a pouca idade. Dois anos depois, ela foi morar com uma tia, aqui no RN, na capital Natal. E foi aqui que ela conheceu meu pai, Jos Aurino, nascendo desse relacionamento minha irm Juliana, no dia 4 de abril de 1985 e eu, no dia 10 de novembro de 1986. Nessa poca, meu pai tinha uma boa condio financeira e logo comprou uma casa na cidade de Parnamirim, no bairro de Emas, no qual moro at hoje. Meus pais passaram uns sete anos juntos, at que veio a separao. Eu estava com um ano e alguns meses quando isso aconteceu. No lembro nada do nosso convvio em famlia, no fao idia do que seja estar perto dos dois, de v-los juntos. O que sei que ele simplesmente vendeu a casa onde morvamos, deixando minha me sozinha com duas crianas pequenas. Em meio aquele desespero, sem saber o que fazer e a quem recorrer minha me s tinha vontade de voltar para sua famlia, pois se sentia sozinha no mundo longe de seus parentes. Contudo, sabia que isso no era possvel, porque queria dar um futuro melhor para suas duas filhas, queria nos dar a oportunidade de estudar. Quando Deus fecha uma porta abre uma janela Autor desconhecido A nica opo que tinha era a de morarmos pagando aluguel com o dinheiro que conseguiu economizar durante alguns anos, mas precisaria trabalhar para nos mantermos. Felizmente, algo muito bom aconteceu quando Tereza, uma senhora que era nossa vizinha, nos ofereceu sua casa para morarmos at que nossa situao melhorasse. Mais uma vez Deus fez-se presente em nossas vidas. Muito agradecida minha me aceitou a grande ajuda. A partir da, ela passou a conviver mais com um dos filhos dessa senhora, Alberto, surgindo um novo relacionamento. Agora, passei a ter novamente uma famlia, uma grande famlia, pois eram doze pessoas que moravam na casa. Em junho de 1989, nasceu minha nova irm, Ana Patrcia, e os seus primeiros meses de vida so as lembranas mais antigas que tenho. Nesse mesmo ano, minha irm Juliana inicia seus estudos, fazendo o Jardim I na Pr-Escola Nossa Senhora da Guia e s dois anos depois iniciei minha vida escolar nessa mesma escola que era quase vizinha minha casa. Lembrome com saudades desse tempo, quando as professoras espalhavam brinquedos pela sala, era uma verdadeira guerra pelos melhores brinquedos, o mais cobiado era um urso de pelcia gigante! Tive uma professora da qual me recordo com carinho, a "Tia Mnica", todos a adoravam. Foi nesse tempo tambm que fiz uma grande amizade com Bruna, uma amizade que existe at hoje. Como estudvamos pela manh, passvamos o resto do dia brincando no quintal da casa dela. Alis, todos os nossos amigos iam para l tambm e a sua casa virava uma creche! Imaginem s a "zona"! Bons tempos aqueles... Um acontecimento marcante para mim ocorreu no dia 14 de outubro de 1992, o nascimento da minha irm mais nova, Ana Caroline. A imagem de minha me sentindo as dores do parto, sendo levada por sua sogra e uma das cunhadas para a Maternidade algo de que no consigo esquecer. Quando ela estava com um ano de idade, mais ou menos, eu e minha irm Juliana a disputvamos porque adorvamos ficar apertando a pobrezinha! Numa dessas disputas, acabamos quebrando seu brao de tanto a puxarmos de um lado para o outro, igual quela brincadeira "cabo de guerra" (risos!). Gente, no era por maldade, mas sim porque ela era muito fofinha! Levamos at algumas palmadas nesse dia!

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J Juventude, L Liberdade, M Molecagem... Cesar Costa Filho, Ronaldo Monteiro de Souza Bom, j na 1 srie do ensino fundamental (hoje 2 ano), tive que mudar de escola, porm no senti grandes mudanas, uma vez que a nova escola, chamada Escola Municipal Nossa Senhora da Guia, localizava-se em uma rua depois da minha casa e era dirigida pela mesma diretora do Pr. Alm disso, praticamente todos os meus colegas tambm iam estudar l. Os quatro anos que passei nessa escola foram maravilhosos! Sinto saudade de tudo: dos amigos, das brincadeiras antes de comear a aula e durante o recreio, da barulheira que todos faziam. Eram tantas as brincadeiras, desde aquela que voc bate na figurinha com a palma da mo pra tentar desvir-la at o contagiante "pular elstico", "amarelinha", "polcia e ladro", dentre tantas outras, no esquecendo a clssica "guerra de bolinhas de papel" que ocorria no intervalo entre as aulas. Quanto educao que recebi nas duas escolas, posso reconhecer que, alm de oferecerem uma tima qualidade de ensino, no deixaram a desejar no que se refere a estrutura fsica, tanto das salas de aula, como de todo ambiente escolar. Esses fatores somente contriburam para meu gosto pelos estudos, tornando prazerosa a ida escola. A nica coisa desse perodo a qual no aprecio lembrar o que normalmente se comemora no 2 domingo do ms de agosto, "o dia dos pais". Ficava muito triste porque raras eram as vezes em que meu pai vinha visitar-me, e nesse dia eu tambm no o via. Sem falar nas comemoraes que ocorriam na escola, os cartezinhos que as professoras pediam que os alunos fizessem para entregar a seus pais e tudo o mais. Vamos deixar meu pai um pouco de lado, no sei se voltarei a falar dele. Quando passei para a 5 srie, no ano de 1998, minha vida mudou consideravelmente. Primeiro, porque agora teria que ir de nibus at a Escola Estadual Professor Eliah Maia do Rgo. Segundo porque essa escola era totalmente diferente das que eu estudei antes. Mas eu tinha que me adaptar quele novo ambiente: a desordem, o ensino altamente precrio, as aulas rpidas, a maioria dos professores descompromissados, tanto quanto muitos alunos, aquelas salas de aulas com as mesmas cadeiras vazias todos os dias... enfim, um conjunto de problemas que no me faziam construir uma boa expectativa de futuro, algo que sabemos que comumente vivido por grande parte dos alunos de escolas pblicas. Nesse mesmo ano, finalmente, nos mudamos para a casa que meu padrasto havia comprado h dois anos com o dinheiro que havia recebido com sua demisso do emprego no qual estava h oito anos. Entretanto, a casa no estava em boas condies de moradia, com isso, os dois resolveram economizar um pouco para fazer uma reforma. Nessa situao, minha me trabalhou muito, pois o que mais desejava no momento era sair da casa de sua sogra, visto que os conflitos familiares vinham tornando-se mais freqentes, criando uma convivncia insustentvel. J meu padrasto ficou alguns meses sem emprego fixo, assim, no pde ajudar muito, mas depois conseguiu um emprego. Mesmo assim, no cumpriu com suas responsabilidades, gastando o dinheiro com bebidas alcolicas e casas de jogos. Tantas foram as brigas que eu e minhas irms presenciamos e quantas foram as vezes em que eu e Juliana, a mais velha, interferamos na discusso, apoiando todas as palavras de nossa me. E neste meio conflituoso, comeou a crescer em ns um sentimento de revolta contra nosso padrasto. Mas foi superando as adversidades e com muito esforo que minha me conseguiu fazer a reforma de nossa casa, a qual se localizava no mesmo quarteiro da casa onde morvamos.

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Retornando ao que eu havia dito sobre a minha nova escola, o fato que eu passei a no gostar dela. No incio, foi difcil a convivncia com os novos colegas de sala, devido consider-los muito diferentes dos meus antigos colegas porque eles faziam muita desordem e brincadeiras de mau gosto. Contudo, com o passar do tempo, fui me acostumando quele novo mundo. Hoje acho engraado e ao mesmo tempo decepcionante quando os meus colegas de sala diziam que eu estudava demais, que eu era uma "CDF", porque "passava cola" para muitos deles. Mas que nada! que no tinha muito que estudar no! Muitas vezes as provas eram uma cpia de um exerccio anteriormente dado em sala. O pessimista queixa-se do vento, o otimista espera que ele mude e o realista ajusta as velas. Willian George Ward A cada ano que se passava, tornava-se mais perceptvel para mim a realidade na qual eu me encontrava. Foi quando eu estava na 8 srie que realmente senti como um ensino deficitrio poderia me prejudicar, afinal, eu queria concorrer no PROCEFET, o qual um exame seletivo com provas de Lngua Portuguesa, Matemtica e Cidadania para alunos provenientes de escolas pblicas ingressarem no CEFET. Vi nesse exame a oportunidade de construir uma nova viso quanto ao meu futuro, visto que o CEFET oferece ensino mdio e tecnolgico de qualidade. Porm, tambm sabia que, para alunos como eu, que passaram por um ensino fundamental precrio (de 5 a 8), o nvel das provas era alto, sendo assim, era preciso muita dedicao para conseguir a bolsa. Enfim, sabendo das minhas dificuldades logo comecei a me dedicar ao estudo. No sabia por onde comear! Quando abria os livros acabava me frustrando! Sentia como se eu no soubesse de nada! Mas tudo melhorou quando eu e a Bruna passamos a estudar juntas, o que me ajudou bastante, pois ela estava tendo aulas particulares. A vontade de passar tornou-se maior, principalmente quando conheci o CEFET, no dia das inscries. Pensei: no prximo ano estarei aqui! Nesse mesmo perodo, uma amiga da minha me convidou-me para trabalhar na sua pequena loja que se localizava em frente a minha casa. Aceitei na hora, mesmo porque isso no iria atrapalhar meus estudos. E assim foi at o dia das provas do exame. Quando sa da sala de provas, senti um grande alvio. No agentava mais o pessoal da escola que no falava em outra coisa. O clima de competio tornara-se insuportvel. At que enfim o dia do resultado chegou e para minha alegria, e de todos os que torciam por mim, eu passei! Lembro-me da emoo que senti ao ver o quanto minha me ficou feliz pela minha aprovao... Quando as aulas do CEFET iniciaram, logo pude constatar a disparidade entre esta e minha antiga escola. No s em relao estrutura, como em relao s atividades oferecidas aos alunos como teatro, aulas de msica, pintura, dana, dentre muitas modalidades esportivas. Aquilo tudo para mim era muito novo, algo bem distante da realidade na qual vivia h pouco tempo atrs. Entretanto, sabia que ter passado no pr-CEFET foi uma barreira vencida dentre muitas outras que teria que enfrentar. A mais difcil foi, sem dvida, a superao de minha deficincia de base do ensino fundamental. J nas primeiras aulas das disciplinas sentia dificuldade em assimilar o que os professores falavam, principalmente, em Fsica, Qumica, Histria e Ingls, enquanto grande parte da turma empolgava-se nas aulas. Isso sem falar nas

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aulas de Informtica! No conhecia quase nada de computador, enquanto meus colegas entediavam-se com as aulas. Comecei a me desestimular a cada dia, at que, quando olhei minhas primeiras notas, acordei! Percebi que no ia adiantar nada ficar reclamando do ensino que tive no outro colgio, que devia correr atrs do prejuzo e estudar em dobro para poder me adaptar quele ritmo de estudo. Graas a Deus consegui ter fora de vontade para superar isso, melhorando meu rendimento consideravelmente. Outra dificuldade foi a de me manter na instituio. Eram muitas despesas com transporte, alimentao e cpias de textos passados pelos professores. s vezes, sentia-me triste por causar tantos gastos a minha famlia. Mas, depois vinha o pensamento de que o esforo deles seria recompensado. Vou deixar a vida me levar pra onde ela quiser, estou no meu lugar... Samuel Rosa / Chico Amaral Quanto convivncia com minha nova turma, essa foi a melhor de todas! J na primeira semana, como quase sempre acontece, os grupos foram se formando e convivi com pessoas maravilhosas que fizeram e fazem parte da minha vida. Eu fiz amizade com um grupo de meninas e no nos desgrudvamos por nada! Inicialmente, ramos um grupo de seis: eu, Rosana, Nathlia, Monique, Franoise e Ktia. Nos 2 e 3 anos, aumentamos para nove com Jullianna, Kionara e Layssa. Onde estvamos o barulho acompanhava! Lembrando ao leitor que eu no era bagunceira, eu e Rosana ramos um pouco mais contidas (risos!). Quando elas ficaram sabendo que eu iria contar minha histria de vida e que seria publicada num livro, intimaram-me a pelo menos citar seus nomes, porm elas merecem mais que isso, pois participaram de muitos momentos inesquecveis da minha vida. Juntas, construmos uma verdadeira amizade que nos mantm unidas at hoje. Aprendi muito com todas elas! Quando estvamos no 2 ano, resolvemos at fazer uma camiseta para ficar como mais uma lembrana desses tempos. Fizemos a tal camiseta como no podia ser diferente, de cor rosa com alguns detalhes de lils e uma "Hello Kitty" estampada na frente, uma graa! O interessante eram as caras dos alunos olhando pra todas ns com aquela camisa "fresca", como eles diziam, era muito engraado! verdade, leitor, gostvamos mesmo de chamar a ateno (risos!). Esse ano foi maravilhoso porque comecei a sair com meus amigos, a me divertir bastante, no deixando os estudos de lado, o que o mais importante. Foi um ano de descobertas: as primeiras festas, a primeira gota de lcool e tambm o auto-conhecimento, algo bem marcante para mim nessa etapa da vida. Bom, j chegando o final do ano letivo, em 2003, o pessoal da turma s falava no "ano de vestibular" da UFRN que se aproximava. Abriu uma seleo para alunos ingressarem nos cursos tcnicos ofertados pela escola. Dentre os cursos, inscrevi-me para concorrer ao de Desenho de Projetos Arquitetnicos, tendo em vista minha admirao pela rea de Arquitetura, alm disso, no tinha nenhuma afinidade pelos outros cursos. Felizmente consegui ser selecionada. Agora era preciso muito esforo para cursar o 3 ano pela manh, o tcnico tarde e estudar para o vestibular noite. Alm de dedicar-me ao ensino mdio, havia os trabalhos do tcnico que exigiam um pouco mais de tempo para fazer os projetos que os professores pediam. Fui deixando o vestibular um pouco de lado...

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O ano foi bastante corrido. Alguns dos professores que tive nesse ano tornaram-se inesquecveis, a professora Neide, de Portugus e Literatura, o professor Joo Maria, de Qumica e o professor Gerson, de Geografia. Todos sempre abordavam o vestibular, nos dando fora para lutarmos pelos nossos objetivos. Outro professor que tive, de Fsica, chamado Calistrato, virou alvo das nossas brincadeiras. Ele era uma figura! Uma amiga, Franoise adorava imit-lo, tanto ele, quanto muitos outros, foram suas vtimas (risos!). Ah, poderia contar mil e uma histrias dessa turma inesquecvel. At o que vivi hoje, o ensino mdio foi a melhor poca da minha vida. E como esse ano seria o ltimo no qual estudaramos todos juntos, ano de despedida, boa parte da turma queria uma formatura bem organizada e uma linda festa. Comeamos a nos organizar, pesquisar os bufs e tudo o mais. Fiquei preocupada com o valor que teramos que pagar mensalmente, pois temia que minha me no pudesse pagar. Ela desejava que eu tivesse uma linda festa de formatura e sempre deu um jeitinho de pagar as mensalidades. Espero um dia poder retribuir tudo que ela fez por mim, por ter sempre lutado pelos meus objetivos e me proporcionado momentos de felicidade. Nada a temer, seno o correr da luta / Nada a fazer, seno esquecer o medo / Abrir o peito fora numa procura fugir s armadilhas da mata escura / Longe se vai, sonhando demais / mas onde se chega assim? Vou descobrir, o que me faz sentir / Eu caador de mim. Luiz Carlos S / Srgio Magro O tempo foi passando e eu ainda no tinha certeza do curso que desejava cursar. De um lado, havia uma inclinao por Arquitetura, na rea tecnolgica, e seria bom porque estava gostando do tcnico, que da mesma rea, assim j teria uma boa base quando iniciasse o superior. Por outro lado, o curso de Nutrio tambm me atraa, mas isso era pouco para se decidir a escolha da profisso. No fim, acabei optando por Arquitetura. Faltava um pouco mais de um ms para o incio da realizao das provas do vestibular, quando eu e minhas amigas resolvemos fazer um cursinho de reviso. Na verdade, no achava que valeria a pena, pois durante o ano no havia me preparado o suficiente e no seria somente uma reviso que iria me fazer passar. Mesmo assim fiz, at porque minha me no se ops, pelo contrrio, ela dizia que valia a pena investir para tornar sua filha uma universitria da federal. Assim, fiz a reviso que me ajudou em muitos assuntos, mesmo de forma um tanto superficial. Chegou enfim o perodo de provas. Aps as provas de Portugus e Literatura, fiquei mais animada. Lembro que durante as provas ouvia a voz da professora Neide dando-me as respostas. Ela passou praticamente o ano todo enfatizando somente duas obras dentre as cinco indicadas e para minha sorte ela conseguiu dar umas boas dicas sobre as questes suspeitas de carem nas provas. Meu entusiasmo no durou muito, pois nas outras provas no fui bem, a no ser nas provas de Matemtica e Biologia, disciplinas pelas quais tenho grande afinidade. O resultado foi que passei na 1 fase, mas no fui aprovada. No ter passado no meu primeiro vestibular foi algo que no me abalou muito, pois reconhecia que no havia me preparado o suficiente. E outra, no estava certa do curso

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que havia escolhido. Grande parte da minha turma foi aprovada e, das minhas amigas, somente Franoise e Ktia conseguiram a aprovao, mas isso j foi um grande motivo para comemorarmos... No ms de fevereiro de 2005, ocorreu minha colao de grau. Fiquei emocionada em vrios momentos. S pensava na saudade imensa que sentiria de tudo e de todos. O dia da festa foi sensacional! Sem comentrios! Rimos, choramos... Passada a euforia, retornava o pensamento "mais um ano de vestibular", e esse sim, com muito mais dedicao. E presso tambm, agora teria mais tempo para estudar e decidir com calma que curso iria seguir. Entrei em um cursinho pr-vestibular pela manh, aps ter conseguido uma bolsa com um desconto de 50% na mensalidade a qual minha me pagava com muito sacrifcio. Continuei o curso tcnico durante a tarde, concluindo-o no meio do ano. E foi s a partir desse perodo que realmente comecei a estudar de verdade, de julho a novembro. Adorei essa poca de cursinho, pois alm de apreciar muito as aulas de boa parte dos professores, fiz grandes amizades, sobretudo com a Walkria e o Carlos. Em pouqussimo tempo, nossa amizade se firmou e j no nos separvamos. Desabafvamos sobre nossos medos e expectativas, um dando fora ao outro. Passei por momentos difceis. Estava ficando muito ansiosa, mas foi a f em Deus e o apoio das pessoas queridas que me seguraram e me mantiveram firme. Quanto escolha do curso, isso foi algo que foi se construindo no decorrer do ano. Parece que acordei e vi que Arquitetura no tinha nada a ver comigo. Ansiava descobrir minha vocao, mas isso no acontecia. Comecei a pesquisar sobre os cursos da rea Biomdica, pois tinha certeza que minha rea era essa. Logo veio minha admirao pela Enfermagem e fui me descobrindo na profisso, ao ver a grade do curso e tendo conversado com alguns conhecidos que j haviam escolhido esta profisso. Parece que aps ter decidido sobre o curso, boa parte do estresse foi embora. Se alguma coisa te ope e te fere, deixas crescer. que ests a ganhar razes e a mudar. Abenoado ferimento que te faz parir de ti prprio. Saint-Exupry Nesse perodo, o CEFET abriu seu vestibular e as provas iriam ocorrer no final do 1 semestre. Resolvi tentar para o curso de Comrcio Exterior, o segundo mais concorrido, caso conseguisse a iseno da taxa de inscrio. Queria muito conseguir, pois dependendo do resultado, teria uma idia do meu nvel de conhecimento at o momento, apesar de s ter me dedicado mais quando terminei o tcnico. Consegui a iseno da taxa e concorri vaga, mas infelizmente no obtive xito. Ao saber do resultado chorei desconsoladamente. O pensamento de derrota tomou conta de mim naquele momento. Felizmente consegui me recompor desse episdio. Ainda faltavam cinco meses para me preparar melhor para o vestibular da UFRN. Ao chegar o dia das provas, tentei manterme calma, estava consciente do meu esforo. Aps realizar todas as provas, um peso enorme foi embora. Uma sensao de alvio inexplicvel, porm a expectativa do resultado era muito maior. Agora era s esperar, esperar... At que enfim, sai o resultado dos aprovados na 1 fase. Quando vi meu nome na lista, no contive a felicidade, pois minha colocao foi excelente. Muitos amigos comearam a

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dizer que a minha aprovao estava certa de acontecer e isso me incomodou um pouco, mas ao mesmo tempo me permitiu ter mais esperana de que iria passar. E novamente a espera pelo resultado final... Finalmente o resultado final dos aprovados divulgado. Lembro-me de todos os detalhes desse dia. Nessa temporada, estava trabalhando como operadora de telemarketing de uma rede de lojas. Era um emprego temporrio, enquanto estava no perodo de frias. Caso no conseguisse a aprovao, iria tentar um estgio na rea do meu curso tcnico. Mas voltando ao resultado, quando eu estava indo trabalhar adivinha quem me liga? Meu amigo Carlos que me d a notcia mais desejada de todo o ano, fui aprovada! Fiquei histrica, me faltou o ar para respirar! Na hora, minha me e minhas irms no estavam em casa, s pensava em dar a notcia para elas. Chegando ao trabalho, meus colegas vieram cumprimentar-me e foi aquela festa! Outros colegas de l tambm haviam passado, tivemos de nos conter para no fazer barulho (risos). Na hora do intervalo, encontrei Rosana com um band-aid na sobrancelha e fiquei muito feliz, para minha surpresa, ela tambm havia concorrido para o curso de Enfermagem. Iramos estudar juntas, a alegria dobrou de intensidade. Um tempo depois, o pessoal da turma do ensino mdio comeou a ligar para toda galera se encontrar para comemorar com os que haviam sido aprovados. A vontade de ir foi enorme, todavia j estava muito tarde e pensei na minha famlia. Na hora, pensei que o mais importante era comemorar com eles. Cheguei em casa eufrica! Todos da vizinhana j estavam sabendo! Minha me, como eu j imaginava, no dominou sua emoo, recebendome j com lgrimas nos olhos. Minhas irms, amigos, vizinhos, e at alguns desconhecidos (risos!), comemoraram minha aprovao. No tenho como definir a mistura de sentimentos que me invadiu naquele momento... foi maravilhoso! Depois de toda comemorao, a ansiedade de iniciar as aulas na universidade foi ganhando espao dentro de mim. Estava com medo e ao mesmo tempo numa grande expectativa de tudo que mudaria na minha vida daqui para frente. Aps minha insero na universidade, me deparei, novamente, com dificuldades para a minha permanncia na instituio. Eram muitas despesas que minha famlia teria que arcar para a garantia dos meus estudos. Comecei a pensar em trancar algumas disciplinas para poder trabalhar, visto que meu curso ocuparia os horrios da manh e da tarde. Minha me preocupava-se muito com isso, pois no queria me prejudicar. Dizia que daramos um jeito, o que sempre conseguiu cumprir. No entanto, Deus sempre d um jeitinho de mostrar o quanto ama seus filhos... surgiu a oportunidade de concorrer a uma bolsa de um projeto de extenso da universidade, o Conexes de Saberes. Inscrevi-me e felizmente consegui a bolsa. Antes de me integrar ao Conexes, no sabia direito como ele funcionava e o interesse inicial foi a ajuda de custo. Hoje, percebo o quanto as atividades envolvidas nesse programa esto contribuindo em muitos aspectos da minha vida, tanto acadmica como cidad, tendo em vista tudo que estou aprendendo e tambm por promover um novo olhar para as questes sociais. Por meio do Conexes de Saberes estou tendo a oportunidade de uma formao, que seja, de fato, universitria, ao desenvolver atividades que primam pelo ensino, a pesquisa e a extenso. E, alm disso, estou podendo conviver com meus amigos bolsistas, estudantes de origem popular que, como eu, lutaram muito para poderem estar aqui hoje e espero que faam parte da minha vida por muito tempo. Alguns esto tornandose muito especiais pra mim...

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Ento, j chegando ao fim de meu relato, posso dizer que sou uma pessoa feliz, tanto na profisso, pela qual me apaixono a cada dia, quanto nas atividades desenvolvidas nas comunidades populares, no Conexes, com a famlia, com os amigos... Agradeo, mais uma vez, a todos aqueles que, juntos comigo, construram essa histria. Agradeo a educao que recebi e recebo da minha famlia, aos meus amigos, aos professores, enfim, isso no seria possvel se no existissem pessoas to importantes e indispensveis para compartilhar e viver tudo o que a vida pode nos oferecer.

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Persistncias e sentimentosCludio Jos Brasiliano da Silva*No existe inteligncia se antes no h sensibilidade; No h nada no intelecto que antes no tenha passado pelos sentidos. Amlcar de Castro Ol! Tenho uma histria muito simples, no uma histria triste nem feliz, porm orgulho-me de t-la vivido. Nasci no dia 12 de agosto de 1987, ano em que posta uma pedra no meio do caminho de um mestre das crnicas e poemas brasileiro, Carlos Drummond de Andrade. O mundo evolua e a minha famlia tambm, com a minha chegada e a primeira televiso da famlia. Comecei a estudar cedo, com trs anos l ia eu para a escola. Todos os dias eu chorava e voltava para casa reclamando da professora, pois ela maltratava os alunos. Tempos depois descobriram que ela bebia muito. No posso dizer que sempre gostei de estudar, fui at reprovado uma vez, na 2 srie, na escola Chapeuzinho Vermelho, hoje chamada Educandrio Amarante onde estudei at 2 srie. Fui reprovado por vrios motivos, alguns deles era o gosto pelo esporte e o outro era a preguia mesmo. Quando passei a estudar na escola Vicente de Frana Monte, em So Gonalo do Amarante, continuei sem querer estudar, ia at escola, esperava uns 10 minutos e ia jogar bola. Quando chegava em casa, simplesmente dizia a minha me que a professora no tinha ido, at que a minha prima, que estudava comigo, disse ao meu pai que passei quase uma semana sem ir escola. Por isso tudo, tomei uma grande bronca e tive que voltar a estudar. No ano seguinte, cheguei 5 srie, na mesma escola. Fiquei muito orgulhoso, porque tinha em mente que as pessoas que estudavam no perodo vespertino eram bastante inteligentes e eu passei a querer estar l. Quando comearam as aulas, a minha primeira vontade foi entrar no time da escola, mas no consegui naquela srie. Nem na sexta srie. No ano 2000, que considero um ano para esquecer, levei uma pancada no joelho e tive que colocar gesso; fraturei o brao e ainda tive que fazer uma prova de recuperao com a mo esquerda. Mas isso no o que me faz pensar que o ano foi o pior da minha vida: o que me aconteceu de pior nesse ano foi uma cirurgia de reduo no brao fraturado. Antes de sair de casa, o meu pai disse a minha me: Se no der certo, pode ficar por l mesmo. Isso sim, di na alma de um filho. Mas passado o susto da cirurgia, voltei com o nimo renovado. Na 7 srie, consegui entrar no time da escola. Nessas alturas, j tinha percebido que estudar poderia me dar* Graduando em Engenharia Civil pela UFRN.

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algum futuro estvel. Passei a gostar muito de Matemtica, mas acho que j gostava, porque a nica matria que passei na 2 srie foi Matemtica. Nesse ano passei por muitas emoes, das quais jamais irei esquecer, porm a maior felicidade da minha vida estava para chegar nas frias da 7 para a 8 srie. Nessas frias ocorreu o que me fez estar hoje aqui, escrevendo essas palavras que re-constituem minha vida. Agradeo tanto a Joselma quanto aos meus pais por ter me ensinado a alegria das vitrias e a sabedoria das derrotas. Conheci-a na 4 srie, mas nunca cheguei a trocar uma s palavra com ela, somente tive a ousadia de conversar com essa garota na stima srie. Nas frias, passeando, encontro Joselma e fico completamente encantado com sua beleza e, por j ter prestado muita ateno nela, sabia da sua inteligncia e carinho com os outros. Incrivelmente passei a pensar, rezar, implorar a Deus para que ela estivesse na mesma turma que eu na 8 srie. Concomitantemente, iniciei meus estudos para o exame de seleo do CEFET-RN, j que minha me tinha o sonho de me ver estudando em uma instituio federal. Comearam as aulas e, chegando na sala, olhei rapidamente para ver se o nome dela estava na lista de alunos. Estava! Fiquei muito feliz. Mas a felicidade iria aumentar bastante no decorrer das aulas, principalmente, quando conheci Adriano dos Santos Silva. Ele era o professor de Matemtica da escola e se tornou um grande amigo tanto na escola como fora dela. Passamos a ter um sexto horrio destinado ao exame e nessas aulas passei a me destacar como aluno de Matemtica incentivado por dois motivos: um era o desejo de vencer na vida; o outro, ser notado por uma pessoa que especial aos meus olhos. Para ser notado, passei a fazer tudo que ela fazia: participar das missas, entrar na turma da crisma e participar at do coral da igreja, essa no deu; sa rapidamente. Sempre estudando, era de casa para escola, da escola para casa e de casa para o treino da escola. No dia 23 de maio de 2002, dei um presente a Delma (Joselma) como um simples amigo, porm, depois desse dia no quis mais ser somente um amigo, passei a investir tudo em um sentimento que estava se moldando e viria a ser grandioso. Fazia muitas loucuras por ela, principalmente nos jogos da escola, onde de vez em quando fazia um gol e lhe dedicava. Fui at expulso uma vez por tirar a camisa do time e mostrar uma outra camisa dizendo: Eu estou apaixonado por voc. Mas valeu o sacrifcio. Aps varias peripcias, chega a hora do exame. Todos confiavam em mim e nos outros, claro. Mas eu confiava mais em Joselma do que em mim. Fizemos a primeira prova e, logo depois, fizemos a segunda. No dia do resultado, duas pessoas tinham passado eu, e uma menina, para a minha tristeza, no era Joselma. Foi at bom isso, porque eu tinha que consol-la e acabei namorando-a, mas no sei se ela realmente correspondeu to intensamente. Passada a euforia da aprovao no chamado pr-CEFET, iniciaram-se os estudos para o EXAME DE SELEO. Este destinado aos estudantes das escolas privadas; aquele, somente aos estudantes de escolas pblicas. O fato marcante na minha vida nesse perodo se deu logo aps o resultado do concurso, pois a filha de um grande amigo de meu pai passou e fez uma grande festa em sua casa. Ela convidou o professor Adriano e como o professor no queria ir sozinho me convidou. At a tudo bem. Mas quando cheguei em casa, contei a meu pai que tinha ido a uma festa para comemorar a aprovao da filha de um amigo dele. Ento o meu pai de repente comeou a chorar me dizendo que no tinha como realizar uma festa para comemorar a minha aprovao. Fiquei completamente arrasado e prometi a mim

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mesmo que iria fazer de tudo para dar uma vida digna aos meus pais. Pouco tempo depois, a tentativa de namoro acabou e as aulas no CEFET-RN comearam onde tive praticamente a mesma histria. Alm de estudar, queria entrar no time de futsal da escola. No primeiro ano, no entrei, pois o objetivo principal eram os estudos. De incio, tive muitas dificuldades porque vinha de uma escola que no me dava tantas motivaes para ir atrs do conhecimento, porm obtive bons resultados e passei para o segundo ano. No segundo ano entrei no time de futsal da escola e realizei mais um sonho: conhecer outro estado do Brasil! Fui participar do Encontro desportivo entre CEFETs do Norte e Nordeste (EDECENNE) no estado do Par. Foram quase dois dias de viagem, mas valeu a pena pelo segundo lugar que conseguimos na competio. Tambm no ano de 2004, intensifiquei os estudos para o vestibular, como j tinha em mente o que queria cursar ficou mais fcil de me dedicar, principalmente, s matrias discursivas. Desde pequeno, quando brincava de fazer casinhas de areia com pedaos de tbuas, sonhava em me tornar um Engenheiro Civil, at mesmo porque sempre convivi com a construo, j que o meu pai pedreiro. Ainda estudando para o vestibular, passei para o terceiro ano e vi que deveria estudar ainda mais, j que no tinha condies de pagar um cursinho preparatrio. Contudo, no deixei o futsal de lado e fui novamente ao EDECENNE dessa vez no Piau. L s saa do quarto com ar-condicionado para ir tomar banho, beber gua e jogar. lugarzinho quente! Nessas alturas o CEFET-RN j se encontrava em greve, o que piorava ainda mais a situao dos alunos que iriam prestar vestibular e no tinham condies de pagar um cursinho. Assim, me dediquei e estudei bastante at o dia do vestibular. O primeiro dia do processo seletivo foi muito especial para mim, pois ali juntei todas a minhas foras para iniciar uma jornada de quatro dias muito longos. Eu ia fazer as provas pela manh e quando chegava s dava tempo de tomar banho, almoar e ir para o aulo de vspera. Chegava em casa muito tarde, pronto para dormir e acordar bem cedo no outro dia para fazer tudo novamente. Aps a passagem das provas do vestibular, o CEFET-RN retoma as suas atividades normais, porm, para os alunos do terceiro ano a nica vontade de ir escola era rever os amigos e torcer at chegar o dia do resultado do vestibular. Pouco tempo depois, saram os aprovados da primeira fase do vestibular 2006. Fiquei um pouco tenso porque fiquei na posio de nmero 94, num total de 100 vagas disponveis ao curso. Mas como eu j falei, me dediquei muito, principalmente s matrias especificas, e ento chegou dia do resultado final. Eu estava em casa assistindo divulgao e com o rdio ligado no ltimo volume, para que todos na rua escutassem o meu nome. Um pouco antes da sada do resultado, o telefone da minha casa toca. Mal eu atendo, e j soa aquela linda voz de Joselma me parabenizando pela aprovao (ela ficou sabendo do resultado pela Internet). Fiquei muito feliz por ter sido aprovado. Sa como um louco para cortar o cabelo e festejar com todos os meus amigos que tinham conseguido a mesma vitria. No dia seguinte fiquei sabendo que fui o 43 colocado. As aulas na universidade estavam previstas para comearem mais ou menos um ms e meio aps o resultado final, porm o CEFET-RN no tinha a menor condio de finalizar as aulas a tempo. Ento passamos a ter aulas em dois turnos, a sim, todos os alunos se desinteressaram completamente das aulas. O momento mais interessante aps o vestibular, foi a festa de formatura onde todos nos reencontramos e festejamos muito. Na semana seguinte, iniciariam as aulas na UFRN.Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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Agora, chegamos ao fim da minha trajetria do ensino fundamental ao mdio e o ingresso na universidade. Preciso agradecer do fundo do corao a todos que estiveram ao meu lado sempre me dando fora para no desistir dos meus sonhos e, principalmente, nunca deixar de ser a pessoa que eu sempre demonstrei ser ao longo de vrios anos convivendo com um grande grupo de amigos. Gostaria muito de listar todos os amigos marcantes que tenho, mas o espao curto para tantos. Por isso destaco alguns. Tenho o maior orgulho de poder passar horas conversando com Hill Hitler sobre os mais variados assuntos. So poucas as pessoas que podem contar com um psicanalista igual a Rodrigo que me envolve com sua capacidade de resolver os problemas alheios, porm no consegue resolver os seus. Tenho amigos como Werick que cresceu junto comigo e hoje um exemplo para muitos, por saber usar a sua inteligncia para conquistar vitrias. Tenho amigas como Nani que sempre consegue me criticar de alguma forma. Outro grande amigo Josenilson que em muitas horas o meu pai, irmo e conselheiro. Destaco, ainda, meus pais que fazem de tudo para me ver feliz e conquistar vrias vitrias na vida. E, sem dvida, agradeo a Joselma por ter me dado a oportunidade de sentir um lindo e verdadeiro sentimento correndo por todo o meu corpo. Obrigado por ter me ensinado o caminho do conhecimento e, principalmente, por fazer com que eu pudesse mostrar a muitos que um simples aluno de uma escola municipal do interior do estado do Rio Grande do Norte pode conseguir chegar universidade e fazer o curso que sempre sonhou. Espero que voc, Joselma, possa seguir sempre em frente pelo caminho que escolheu para sua vida. Possa ser bem feliz e quando precisar ouvir algum dizer EU TE AMO, avise-me que eu repito isso para voc a toda hora, pois o meu amor firme, fiel e verdadeiro. Espero que gostem dessa histria, porm, o que quero passar a todos uma das inmeras maneiras de se querer vencer na vida. A minha foi o amor pelos meus pais e por uma pessoa especial para mim. Sei que para podermos vencer iremos passar por muitas dificuldades e ser sempre necessrio algo que nos faa pr os ps no cho e algum para nos dizer que nunca devemos desistir dos nossos sonhos.

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A trajetria de uma potiguar especial e nicaDulcineide da Silva Gomes*H homens que lutam um dia, e so bons; H outros que lutam um ano, e so melhores; H aqueles que lutam muitos anos, e so muito bons; Porm h os que lutam toda a vida Estes so os imprescindveis. Bertold Brechet Caro leitor, quero deixar bem claro que irei aproveitar o mximo desse espao, porque impossvel descrever em uma lauda todas as lembranas de uma pessoa nica e especial como eu, e, se assim fosse, no teramos uma autobiografia, apenas, talvez, vagas lembranas, ou ento meus 30 anos de existncia teriam sido inteis, sem grandes fatos e sem razo. No entanto, foram eles repletos de fatos marcantes que guardo, relembro e vivencio sempre que sinto necessidade de voltar a eles e ver o quanto me transformei na pessoa que hoje sou: forte, decidida, educada, responsvel, enfim, so muitos adjetivos e no d para falar de todos, pois quem me conhece sabe das minhas virtudes e defeitos tambm. Todos ns temos uma histria de vida, nascemos, crescemos e chegamos fase adulta, e nesse desenvolvimento sofremos influncias socioculturais constantes e mutveis e, por elas, obtemos nossa formao como homem socivel dentro dos padres da sociedade. Nesses ltimos 30 anos houve muitos acontecimentos e movimentos que marcaram a vida e a realidade de quem viveu neles. Ressalto, ainda, que fazer essa autobiografia no foi somente relembrar o passado, mas vivenci-lo novamente, todos os fatos aqui relatados, proporcionaram uma volta real no tempo, imaginemos, assim, que a mquina do tempo realmente funcionou dentro do meu ser e pude contemplar novamente todos os fatos que mais marcaram minha vida. Se eu fosse colocar tudo o que desejo mesmo, o livro "Caminhadas de universitrios de origem popular conteria apenas a minha histria". Por ser um longo relato, talvez pouqussimas pessoas venham a ler, ou at mesmo seja lido apenas pelos que me conhecem, amigos, parentes, professores, enfim, aqueles que tm realmente o gosto pela leitura e o interesse de conhecer um pouco da trajetria de vida dessa potiguar. Fico feliz, porque pelo menos, a professora Penha1 j o leu e gostou do que relatei.* Graduanda em Pedagogia pela UFRN. 1 Maria da Penha Casado Alves - Professora formada em Letras e responsvel por ministrar a Oficina de produo de textos.

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Algum me disse: "No h vitrias sem que antes haja lutas. Pode haver desnimos diante das tribulaes do cotidiano, como tambm h espaos a conquistar. Portanto, devemos levantar a cabea e ir busca desses espaos". Na verdade, so esses espaos que busquei e busco em toda minha vida. No tenho lembranas desses primeiros fatos, pois no os presenciei, deles sei apenas o que me contam. Eles tiveram incio em 1973, quando Djalma, um rapaz do interior da Paraba, veio trabalhar em Natal e conheceu uma interiorana potiguar de nome Laudeci. Surge, ento, um sentimento entre eles que os levou deciso de se unirem com o propsito de constituir uma famlia e alcanar a to sonhada felicidade. Nasce em 1975, a primeira filha do casal, muito linda! O tempo foi passando, passando, de repente a criana adoece e para a tristeza do casal vem a bito. Alm da tristeza pela perda da filha, Laudeci, por acaso, descobre que seu marido, Djalma, tem outra famlia paralela. O desespero foi to grande que ela decidiu que o melhor era terminar aquela relao. Entretanto, diante de uma grande crise de relacionamento, j prestes a separar-se, a mulher sente-se mal e descobre que est grvida de dois meses, e, mais, ela lembra que o seu pai, muito conservador, no a aceitaria de volta em casa com filhos. Esse filho foi o bastante para que esse casal que se amava viesse a repensar as decises antes estabelecidas, pois ainda no ventre tornou-se um elo forte de unio e a prova disso estarem juntos por mais de 33 anos. J estamos no ano de 1977, muitos acontecimentos histricos surgem nesse contexto no Brasil e no Mundo, entre eles a libertao da Etipia da Frana; na frica do Sul, iniciase a represso contra organizaes e meios de comunicao anti-apartheid. No Brasil, a diviso do estado de Mato Grosso em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; a entrada de Raquel de Queiroz, primeira mulher aceita como membro na Academia Brasileira de Letras; a despedida do rei Pel como jogador profissional que encerrou sua carreira jogando no Cosmos, marcando um gol no Santos, seu primeiro time; a criao, por Chico Mendes, do primeiro sindicato rural de Xapuri; ressalta-se tambm, nesse contexto que os brasileiros sofriam com a grande represso militar no governo de Ernesto Geisel. Mas chamo sua ateno, leitor, para o acontecimento mais importante desse ano: exatamente no dia 4 de fevereiro. Olhe s o que aconteceu! Nesse dia nasce aquela criana que, de certa forma, foi responsvel pela unio daquele casal, uma criana especial, branquinha, carequinha, de olhos claros, muito meiga e amada por todos que a cercavam. isso mesmo! Falo de mim. Haja vista que dentro de uma imensa populao mundial calculada em mais de cinco bilhes de habitantes estava eu, um ser nico e especial, que nasceu para brilhar e resplandecer dentro desse universo populacional. Olhe, eu sou to especial que, conta minha me, as pessoas disputavam a honra de me levar para passear. Apesar de sermos muitos e semelhantes biologicamente, no somos iguais, somos nicos e singulares, tais quais os flocos de neve que se apresentam semelhantes, e, no entanto, no h um que seja igual ao outro. Fico feliz nesse momento por saber que sou uma pessoa especial e muito importante para a sociedade, portanto, se eu no existisse, com certeza, o rumo da histria da humanidade seria outro. Depois do meu nascimento, consolidando mais ainda a unio dos meus pais, veio o nascimento dos meus trs irmos Dulcicleide, Denlson e Dailton. Meu pai decidiu ser um homem srio, no mais ter famlia paralela a nossa. Sempre foi um homem responsvel, nunca nos deixou faltar nada, na medida do possvel, era pai amoroso, atencioso, trabalha-

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dor e honesto. No d para enumerar todos os bons adjetivos a que ele faz jus, mas posso dizer que sempre me deu colo e apoio em todos os momentos de minha vida at nos dias atuais, mesmo j sendo uma menina "grandona" como sou hoje. Minha me sempre foi uma mulher dedicada ao lar, nos ensinou a primeira educao, sempre nos aconselhando a sermos humildes, verdadeiros e unidos acima de tudo. Tal como meu pai, ela foi e continua sendo uma grande me, torre de sustentao do lar, mulher virtuosa que defende e protege o filho com unhas e dentes, mas que tambm o corrige em seus erros e o aconselha a andar sempre no caminho que idealiza ser o correto. Apesar de no termos tido muitos brinquedos, (naquele tempo era mais difcil, pois um brinquedo custava um bom dinheiro) lembro-me, como se fosse hoje, dos brinquedos criados por ns mesmos da natureza e no quintal de nossa casa, das brincadeiras de roda, de pular corda, de pular o elstico, corrida, esconde-esconde, tica-tica, amarelinha, casinha, bonecas das mais simples, enfim, tudo que os nossos recursos alcanavam. Lembro-me das ruas sem paraleleppedo nem asfalto, muito verde, calangos de todos os tamanhos, pssaros e borboletas de todas as cores muito lindas, tudo parecia um festival: o que raramente - em conseqncia da urbanizao - se v hoje em dia. Tambm no posso esquecer da TV, em minha casa, local onde se reunia a crianada da vizinhana para assistir ao Stio do Pica Pau Amarelo e ao Balo Mgico. Nada tenho a reclamar desse tempo, pois, fui muito feliz nessa primeira fase. Ainda mergulhada em minhas lembranas, fico a meditar acerca de minha vida escolar. Tinha quatro anos, quando pedi a meu pai para que me colocasse em uma escola, pois sentia vontade de freqent-la, principalmente, quando via outras crianas indo estudar com seus cadernos e cartilhas em mos. Meu pai falou para mim que s iria me colocar na escola quando eu completasse cinco anos. Pacientemente aguardei a to sonhada e almejada data... O meu primeiro dia de aula foi muito especial. Foi na Escola Estadual Monsenhor Mata, no turno vespertino, no ano de 1982. Lembro-me como se fosse hoje, a tia Nilma nos organizando em fila, e com as mos nos ombros uns dos outros amos para sala que era ampla, colorida, cheia de multi-meios2 e composta por 8 mesinhas com 4 cadeirinhas cada uma. Logo fizemos grupinhos de colegas. A tia Nilma era um amor de pessoa, alta, morena clara, cabelos longos, olhos escuros e aparentava ter aproximadamente 25 anos. Bem calma, nos tratava com carinho, por isso, era querida por todas as crianas da sala. Ao longo do ano, aprendi muitas msicas infantis e de roda, a interpretar as leituras dos livros por meio dos desenhos, a cantar, as letras do alfabeto e os nmeros. Tenho recordaes dos primeiros espetculos de Joo Redondo a que assisti e pelos quais at hoje sou apaixonada. Um fato que me marcou muito era quando chegava a hora do lanche, pois quase todas as crianas tinham uma lancheira, menos eu e a Paula, mas teramos que nos conformar, tendo em vista que nossos pais no podiam nos dar uma naquele momento. Ao terminar o ano, meu pai me transferiu para outra escola, no bairro em que morvamos, pois a primeira escola ficava em outro e as despesas com nibus pesavam no oramento. Ento, ele me matriculou na Escola Estadual Professora Maria Queiroz. Entrei l na prescola, onde fui alfabetizada. Quando fui para a primeira srie, j sabia ler corretamente,2

Todos os materiais utilizados para auxiliar no aprendizado, como alfabetos mveis, jogos de montar, quebra-cabea, brinquedos educativos e de recreao, jogos de nmeros, lpis de cor, massa de modelar, material para teatrinho de faz de conta e outros.

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porm precisava refinar mais a interpretao. H um fato que sempre lembro quando trabalho leitura, produo e interpretao de texto com meus alunos. Esse fato ocorreu quando estudava a primeira srie. A professora passou uma leitura para fazermos em casa, sendo que, no outro dia, ela iria "cobrar" de cada um de ns. Cheguei a casa e fui ler a histria recomendada pelo professor. Aproximei-me do meu pai e perguntei o que era lona. Meu pai sem saber o que dizer me levou em frente a um carro da coca-cola e me mostrou um enorme pano cobrindo a carga e falou que aquilo era uma lona. Eu, inconformada, continuei a perguntar se a macaca comia aquilo. Meu pai coou a cabea e logo respondeu que no, era impossvel uma macaca comer aquilo. Continuei a insistir, pois o livro dizia que a macaca comia lona. Ele j no estava entendo mais nada e pediu para ver o livro que imediatamente mostrei a ele. Ao ver o livro, caiu na gargalhada. Sabe qual era o titulo da leitura? A MACACA COMILONA. Da, passei a entender que a macaca no comia lona, e que ela era muito gulosa e comia de tudo. Mergulhando no ano de 1985, recordo as aulas da professora Telma Lcia, na segunda srie do primrio. Naquele tempo, a segunda srie era como se fosse um reforo da alfabetizao. Os alunos que no conseguissem as habilidades da leitura no eram promovidos para a srie seguinte. A professora Telma tinha duas turmas de segunda srie, uma no matutino e outra, no intermedirio. Como as turmas eram mistas (tinha alunos alfabetizados e no alfabetizados), para facilitar sua prtica pedaggica, ela decidiu separar: os que sabiam ler iriam para o intermedirio, e os que no sabiam, ficavam no matutino. Assim, sempre que um aluno do matutino era promovido para o intermedirio, era uma alegria para ele, pois iria encontrar novamente com outros colegas que j tinham sido promovidos antes, alm de receber os aplausos da turma. Lembro-me fortemente do dia em que fui promovida. Todos os dias praticava a leitura, me esforava para que quando a Tia Telma me chamasse para a leitura, eu estivesse pronta. Os dias se passavam e nada de ser chamada. Ento protestei e indaguei a tia sobre o porqu de no ser chamada. Ento, a tia abriu o livro, que tinha como ttulo Comeo de conversa, e me pediu para ler em casa, por 15 vezes, as duas histrias: "A gua e a gua" e "Festas Juninas". Cheguei a casa, li, reli, confesso, no li 15 vezes, porm, o suficiente para me apresentar. No dia seguinte, logo no incio da aula, ela me chamou para a leitura das histrias indicadas, e as li na frente de todos. No convencida, a professora fecha o meu livro e me d outro que eu nunca tinha visto antes cujo ttulo era "A mgica da comunicao" e abriu em uma histria de ttulo "Biquinho". Claramente eu li: Era uma vez um passarinho chamado Biquinho... Essa frase entrou em minha histria de tal forma que no sai da minha mente. Logo aps a leitura dessa frase, fui aplaudida pelos colegas e recebi um abrao da professora. Nossa! Aquela sensao foi muito gostosa, no apenas porque iria rever meus coleguinhas j promovidos anteriormente, mas porque seria um passo a mais para conseguir avanar para a srie seguinte. Nessa escola, estudei do pr quarta srie, tive timas professoras, sempre fui uma aluna dedicada e estudiosa, sem modstia, sempre recebi elogios e boas notas, motivo pelo qual minha me sempre chegava contente nas reunies de pais e mestres. Meus professores de educao infantil foram excelentes, atualmente, tive o prazer de rever duas delas, a Telma e a Marluce, que foram personagens marcantes em minha vida. Como a quinta srie no Maria Queiroz era ofertada no turno noturno, meus pais

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acharam melhor me matricular em outra que tivesse essa srie durante o dia. E foi para a Escola Estadual Deputado Mrcio Marinho que fui transferida. Esse ano de 1988 foi um ano muito ruim para todas as escolas devido s greves de professores e mesmo a falta deles. Contudo, conheci muitos amigos e novos professores. O inesquecvel Lcio Jos, professor de Portugus, o qual emprestava seus livros para lermos e desenvolvermos mais a leitura. Sempre responsvel e amante da profisso, nunca faltava s aulas, e mais tarde, merecidamente, passou a ser diretor da escola. Ainda em 1988, no meu bairro, havia um enorme terreno, parte dele era tomado pela vegetao e outra parte servia como campo de futebol, local onde os homens da comunidade batiam peladas e faziam campeonato de futebol entre os times do bairro ou inter-bairros. De repente, todo o terreno estava limpo, nenhum vestgio daquela vegetao, nem traves de futebol, mas carros de materiais de construo chegavam naquele local, e juntamente com os materiais, engenheiros, mestre de obras e um batalho de pedreiros e serventes. Rapidamente a obra ia tomando forma, a populao curiosa queria saber de que se tratava, pois parecia ser uma obra grandiosa e logo ali na periferia. Porm, tudo deixou de ser mistrio e a maioria j sabia que era uma Fundao Bradesco, mesmo no tendo conscincia dos benefcios que traria a muita gente da comunidade. Assim, a Fundao Bradesco ficou pronta e s faltava selecionar os alunos para comear as atividades educacionais no ano seguinte. Lembro-me que minha me passou o dia inteiro no sol para poder conseguir fazer as inscries dos meus irmos e a minha. Mesmo no tendo idia da importncia de ser aluno dessa instituio, minha me j o calculara. Para mim era apenas uma escola como qualquer outra na qual tinha estudado. Depois de aproximadamente um ms, saiu o resultado: eu e meus irmos fomos selecionados. Nesse dia foi o meu primeiro contato com a escola. Pude ver sua estrutura fsica e fiquei encantada com tudo que via: ptio encerado, quadras de esportes, biblioteca, salas bem organizadas, servio de som, cortinas, consultrio mdico e odontolgico, tudo bem limpo e agradvel de ver, coisas nada parecidas com as demais escolas antes freqentadas. As aulas comearam no dia 22 de fevereiro de 1989, eu tinha 12 anos e estava na sexta srie. Foi nessa escola que recebi (no menosprezando a educao antes recebida que tambm foi muito boa) uma educao consistente que me permitiu acesso e incluso no caminho de novos conhecimentos. Por isso, os seis anos que passei l foram marcantes em minha vida. No ficaram somente as marcas da educao que recebi l, mas marcas das amizades, das experincias do cotidiano. Aprendi a ser mais forte, ir sempre em busca de meus objetivos, direitos, responsabilidades, e respeitar o prximo, enfim, todos esses valores continuam internalizados em minha mente. Alm disso, permanecem na memria as atividades que realizvamos l como: a semana da cultura, peas teatrais, as competies esportivas e as ginsticas da aula de educao fsica, os passeios e excurses, as palestras, as festas juninas e do estudante, como tambm, todos os amigos, os funcionrios com quem interagamos diariamente, os professores, a direo, e a Cristina, nossa orientadora pedaggica. Ah! Como foi bom esse perodo! Momentos especiais que vivenciei, e sempre recordo, eram as frias no stio do meu av (materno), para l eu ia todos os anos. Depois de um ano de estudo, pelo menos uma semaninha eu passava com meu av, com minhas primas com quem brincava, tomava banhos nas lagoas e aprontava as travessuras de menina ou mesmo as de quando era j adolescente. O stio do meu av era muito grande, limitado por um rio, de frente dava para

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ver o mar. Ficava a duas lguas da cidade mais prxima, no tinha gua encanada, pois toda gua vinha diretamente da fonte (cacimba), e nem energia eltrica, por isso a noite o cu ficava lindo e bem estrelado, coisa que no se v em uma cidade urbanizada. Meu av, de quem herdei geneticamente a cor dos cabelos, dos olhos e da pele, era um homem muito bonito, cabelos lisos e claros, de cor branca e de olhos azuis, por isso o chamavam de Luiz Branco. Alm da pesca, praticava uma agricul