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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO CAMINHOS PARA DEUSPROPOSTAS RELIGIOSAS DIVERGENTES E IDENTIDADE DO GRUPO JOANINO: UMA LEITURA EM JOÃO 13.33-14.31 Célia Juliano Roque São Bernardo do Campo 2015

³CAMINHOS PARA DEUStede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1566/2/CeliaJuliano Roque2.pdf · A Deus Chegar até aqui foi uma jornada difícil e solitária. Tive muito medo de não

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  • UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

    FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

    “CAMINHOS PARA DEUS”

    PROPOSTAS RELIGIOSAS DIVERGENTES E IDENTIDADE DO

    GRUPO JOANINO: UMA LEITURA EM JOÃO 13.33-14.31

    Célia Juliano Roque

    São Bernardo do Campo

    2015

  • CÉLIA JULIANO ROQUE

    “CAMINHOS PARA DEUS”

    PROPOSTAS RELIGIOSAS DIVERGENTES E IDENTIDADE DO

    GRUPO JOANINO: UMA LEITURA EM JOÃO 13.33-14.31

    Dissertação apresentada em cumprimento às exigências do

    programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da

    Universidade Metodista de São Paulo, para obtenção do

    grau de mestre.

    Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia

    São Bernardo do Campo

    Maio de 2015

  • ROQUE, Célia Juliano. Caminhos para Deus: propostas religiosas divergentes e

    identidade do grupo joanino. Uma leitura em João 13.33-14.31. 2015. 151 f. Dissertação

    (Mestrado em Ciências da Religião) — Universidade Metodista de São Paulo, São

    Bernardo do Campo, 2015.

    RESUMO

    No Quarto Evangelho Jesus se apresenta por meio de metáforas, sendo o objeto de

    nossa pesquisa a frase: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida”, que será o ponto de

    partida condutor em busca da identidade do grupo joanino. No final do primeiro século,

    o grupo joanino se entende como fiéis herdeiros de Jesus, agora seguidores do discípulo

    João (filho de Zebedeu), o qual caminhou com Jesus.

    O grupo não se apresenta alheio à realidade da multiplicidade religiosa do período, mas

    está atento aos conflitos e aos caminhos divergentes para Deus. Isso nos aponta o quão

    identitário é o tema. A partir de uma leitura em João 13.33-14.31, nossa dissertação tem

    como objeto o modo como o grupo joanino recebe essa mensagem no imaginário, a

    exterioriza e reage no cotidiano, bem como os grupos posteriores do gnosticismo —

    como o Evangelho da Verdade da Biblioteca Copta de Nag Hammadi, elaborado a partir

    de leituras ulteriores que plasmam o mundo simbólico imaginário, cultivando diferentes

    características de pertença, gerando a identidade do grupo joanino.

    Palavras-chave: Evangelho de João; Metáforas; Identidade; Grupo joanino; Caminho,

    verdade e vida.

  • ROQUE, Célia Juliano. Ways to God: Divergent Proposals and Religious Identity of

    Johannine Group. A Reading in John 13.33-14.31. 2015. 151 p. Dissertation (Master’s

    Degree in Religious Studies) — Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do

    Campo, Brazil, 2015.

    ABSTRACT

    The Fourth Gospel presents Jesus through metaphors, being the object of our research

    the phrase: “I am the way, and the truth, and the life” that is the guiding starting point in

    search of the identity of the Johannine group. At the end of the first century, the

    Johannine group sees itself as the faithful heirs of Jesus, now followers of the disciple

    John (son of Zebedee), who walked with Jesus.

    The group is not alien to the reality of religious multiplicity of the period, being aware

    of the conflicts and the divergent ways to God. This shows us how identitary this theme

    is. From a reading in John 13.33-14.31, our dissertation has as object how the Johannine

    group receives this message in the imaginary, externalizes it and reacts in everyday life,

    as well as later groups of Gnosticism — as the Gospel of Truth from the Nag Hammadi

    Coptic Library, drawn from subsequent reading currents shaping the symbolic-

    imaginary world, cultivating different belonging characteristics and creating the identity

    of the Johannine group.

    Keywords: Gospel of John; Metaphors; Identity; Johannine group; Way, truth and life.

  • ROQUE, Celia Juliano. Caminos hacia Dios: propuestas divergentes y la identidad

    religiosa del grupo joanino. Una lectura en Juan 13.33-14.31. 2015. 151 f. Tesis

    (Maestría en Ciencias Religiosas) — Universidade Metodista de São Paulo, São

    Bernardo do Campo, Brasil, 2015.

    RESUMEN

    En el cuarto Evangelio, Jesús se presenta a través de metaforas, siendo el objeto de

    nuestra pesquisa la frase: “Yo soy el camino, y la verdad, y la vida” que es el punto de

    partida conductor en busca de la identidad de lo grupo juánico. Al final del primer siglo,

    el grupo juánico se entiende como los fieles herederos de Jesús, ahora seguidores del

    discípulo Juan (hijo de Zebedeu), el que caminó con Jesús.

    El grupo no se mantiene ajeno a la realidad de la multiplicidad religiosa de este período,

    pero es consciente de los conflictos y los caminos divergentes que llevan a Dios. Esto

    nos muestra cómo la identidad es el tema. A partir de una lectura en Juan 13.33-14.31,

    nuestra tesis tiene como objeto la forma en que el grupo juánico recibe este mensaje en

    la mente, la exterioriza y reacciona en la vida cotidiana, así como grupos posteriores del

    gnosticismo — como el Evangelio de la Verdad de la Biblioteca Copto de Nag

    Hammadi, elaborado a partir de lecturas subseguientes que formam el mundo simbólico

    imaginario, cultivando diferentes características de pertinência, criando la identidad del

    grupo juánico.

    Palabras-clave: Cuarto Evangelio; Metaforas; Identidad; Grupo juánico, Camino,

    verdad y vida.

  • Dedico este trabalho à minha mãe e aos meus filhos(as), netos(as),

    bisneta e ao meu ex-marido Sérgio, de quem o período de desafio em

    nossas vidas causou certo distanciamento. Cada um teve uma

    participação nessa tarefa árdua, compreendeu os momentos de

    minhas ausências, cansaços e correrias, ansiedade e medo. A figura

    de vocês me ajudou a atravessar pelo caminho do conhecimento que

    me leva à descoberta de novos caminhos.

  • Esta pesquisa foi realizada com o apoio das instituições:

    IEPG (Instituto Ecumênico de Pós-Graduação)

    CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)

  • Minha eterna gratidão ao IGESP pelo apoio financeiro no início e no final da pesquisa,

    sem o qual se tornaria inviável este projeto de dissertação.

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus

    Chegar até aqui foi uma jornada difícil e solitária. Tive muito medo de não

    conseguir concluir. Pensei em desistir em alguns momentos, mas os valores que adquiri

    a partir do momento em que me apresentaram um Deus geraram força para continuar até

    o fim. E como a pesquisa trata de um caminho árduo que gera vida, assim foi possível

    essa caminhada, cujo trabalho diário gerou esperança na minha vida! Agradeço a Deus,

    eterno companheiro por ter chegado comigo até aqui, por me sustentar com a sua paz e

    me guiar nos momentos difíceis.

    Aos mestres

    Àqueles que dedicam seu tempo, orientação, paciência nesse período de

    formação e aprendizado de vida; àqueles que de alguma forma contribuíram na

    caminhada, aconselhando e apontando o caminho a ser seguido, minha eterna gratidão.

    Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia (UMESP)

    Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira (UMESP)

    Prof. Dr. Jung Mo Sung (UMESP)

    Prof. Dr. Dario Paulo Barrera Rivera (UMESP)

    Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet (UMESP)

    Prof. Dr. José Ademar Kaefer (UMESP)

    Prof. Dr. Tércio Machado Siqueira (UMESP)

    Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza (UMESP)

    Às secretárias

    Àquelas cujas presenças são muito importantes nesse período; são colaboradoras

    compreensivas. Sua dedicação não tem preço: nos orientam, nos suportam, tornam-se

    pessoas impossíveis de cair no esquecimento — minha eterna gratidão!

  • 9

    Ana Maria Fonseca, pelo carinho, seu tempo, seu auxílio no IEPG.

    Camila Costa Sanches, Secretaria Acadêmica de Pós-Graduação Stricto Sensu, o

    quanto você me ajudou com os direitos e deveres da academia!

    Eliane Taylor Quintela, secretária do Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia, sempre

    pronta a nos auxiliar.

    Regiane da Silva Dias, secretária da Pós-Graduação em Ciências da Religião,

    sua dedicação é algo inesquecível, sempre a nos orientar, a nos lembrar. Nossa

    agenda acadêmica se chama Regiane!

    Aos amigos

    Não é possível registrar o nome de todas as pessoas que contribuíram com a

    minha caminhada até aqui. Amigas(os), obrigada pelas conversas, por ter tido o

    privilégio de conhecê-las(os), pela força necessária para que eu seguisse em frente.

    Obrigada pelos conselhos e pelos momentos de compartilhar as nossas expectativas,

    medos, descobertas, frustrações, conquistas, trabalhos, relatórios, congressos,

    apresentações e, por fim, a participação especial de cada um(a) de vocês no meu

    projeto. Minha eterna gratidão!

    Angela Cabrera (Cara Profa. e Dra., você participou de uma maneira muito

    especial em minha vida. Foi a primeira pessoa a apontar o caminho deste

    sonho)

    Anderson de Oliveira Lima (Prof. Dr. e amigo, você foi fundamental para que

    este sonho se tornasse realidade. Caro mestre, você simplesmente acreditou e

    sua amizade foi e é valiosa)

    Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia (Pela paciência em me orientar, pelo apoio na

    qualificação e por ser meu orientador)

    Prof. Dr. Paulo A. de S. Nogueira (Grande responsável pelo meu interesse na

    linguagem narratológica, sempre a impulsionar constantes atualizações, cujos

    títulos se tornaram conhecidos para mim — como é o caso do terceiro anexo da

  • 10

    dissertação — e pelo tempo vivido nas aulas, nos almoços, no Grupo de

    Pesquisa Oracula)

    Prof. Dr. José Ademar Kaefer (não posso negar a sua influência a partir das

    exegeses do AT, o café em sala de aula, o grupo de arqueologia)

    Kellen Cristina Rodrigues (companheira de aulas, congressos, trabalhos e por

    ter me recebido com tanto carinho em sua casa)

    Lilian Araújo Baleeiro (pelo companheirismo e pelo sumário)

    Marcos Scarpione (pela disposição e orientação nas aulas de projeto)

    Regina A. Lourenço Cardoso (pelos trabalhos, apresentação e congressos)

    Tina Pinto (Pelo seu carinho como amiga, pela ajuda no espanhol)

    Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia

    Como agradecer o seu incentivo! Desde o início, quando me aceitou em suas

    aulas como ouvinte e a posteriori como orientador, foi verdadeiramente significativo.

    O senhor viu a minha disposição em aprender e acreditou, foi além, me fez acreditar

    que é possível chegar até o final, mesmo com as intempéries da vida. Esteve ao meu

    lado como orientador, mestre, pastor e amigo. Nas horas difíceis, não cobrou quando

    poderia ter cobrado; respeitou o momento em que estive em caos. Quando digo que

    serei grata, esse sinal é insuficiente para exprimir meus reais agradecimentos. Quero

    dizer que em alguns poucos momentos foi difícil ouvir, mas ter o privilégio de tê-lo

    como orientador e mestre é um aprendizado com carga de conhecimento profundo de

    coisas, de alma, da vida, pessoa boa que ama e que ampara. Nesse percurso sempre

    aprendo com você. A cada aula, cada orientação saio impressionada com suas

    mensagens. Digo: você é meu líder acadêmico, me trouxe um novo caminho. Agora

    tenho pistas de conhecimento naquilo que me propus a realizar. Finalizo o mestrado em

    que você é meu referencial como mestre, e quando pensei que o barco iria naufragar,

    ouvi você dizendo que Jesus anda por sobre o mar, por sobre o dia mau. Você

    caminhou ao meu lado e disse que posso passar pelo mar. Obrigada! Serei eternamente

    grata!

  • SIGLAS E ABREVIATURAS

    BJ Bíblia de Jerusalém

    E1 Evangelho 1 (Primeira redação do QE)

    E2 Evangelho 2 (Segunda redação do QE)

    E3 Evangelho 3 (Terceira redação do QE)

    EV Evangelho da Verdade

    NDD Narrativa do discurso de despedida

    QE Quarto Evangelho

    RevBib. Revista Bíblica

    RIBLA Revista de Interpretação Bíblica Latino-

    Americana

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO ______________________________________________________ 14

    CAPÍTULO I: “EU SOU O CAMINHO, E A VERDADE, E A VIDA” __________ 18

    Introdução _______________________________________________________________ 18

    1 Metáforas clássicas em Ricoeur _____________________________________________ 19 1.1 Retórica e poesia _____________________________________________________________ 20 1.2 Mythos ____________________________________________________________________ 21 1.3 O declínio da retórica clássica __________________________________________________ 23 1.4 Produção de sentido no QE _____________________________________________________ 24

    1.4.1 Mas o que vem a ser ficção? ________________________________________________ 25 1.4.2 Ficção e metáfora no QE ___________________________________________________ 27

    1.5. Metáfora e realidade no QE ____________________________________________________ 28 1.6 A semântica da metáfora no QE _________________________________________________ 29 1.7 O movimento da metáfora _____________________________________________________ 30 1.8 Um enigma: metáfora e comparação _____________________________________________ 31 1.9 Dos relatos bíblicos às narrativas hermenêuticas ____________________________________ 31

    2 Identidade ______________________________________________________________ 34 2.1 Identidade social do grupo joanino _______________________________________________ 35 2.2 Características do grupo joanino _________________________________________________ 37 2.3 A questão da afiliação ao grupo joanino ___________________________________________ 38 2.4 Atitudes e opiniões para ler o grupo joanino _______________________________________ 39 2.5 O cognitivo e as atitudes no grupo joanino _________________________________________ 40 2.6 O extremismo (Eu sou o caminho, a verdade e a vida) ________________________________ 41 2.7 Estereótipos e preconceitos no grupo “do caminho” _________________________________ 42 2.8 “Eu sou” (evgw, eivmi) __________________________________________________________ 43 2.9 O caminho dos... do caminho ___________________________________________________ 44

    Conclusão ________________________________________________________________ 45

    CAPÍTULO II: A DESPEDIDA DE JESUS ________________________________ 46

    Introdução _______________________________________________________________ 46

    1 Exegese da narrativa do discurso de despedida (NDD) ___________________________ 47 1.1 Texto grego de João 13.33-14.31 ________________________________________________ 47 1.2 Tradução literal de João 13.33-14.33 _____________________________________________ 49 1.3 Tradução literária de João 13.33-14.33 ____________________________________________ 51 1.4 Delimitação do texto __________________________________________________________ 53 1.5 Estrutura do texto ____________________________________________________________ 58

    1.5.1 Nossa macroestrutura _____________________________________________________ 58 1.5.2 Microestrutura ___________________________________________________________ 59 1.5.3 Molduras redacionais _____________________________________________________ 62

    1.6 A perícope do discurso de despedida _____________________________________________ 64 1.7 Gênero literário ______________________________________________________________ 66 1.8 Campo semântico exegético ____________________________________________________ 68 1.9 Composição, data e local ______________________________________________________ 72

    1.9.1 O relato da paixão ________________________________________________________ 72 1.9.2 Pós-destruição do templo __________________________________________________ 73

  • 13

    1.10 Interpretação _______________________________________________________________ 74 1.10.1 A revelação de Jesus aos seus (13.33-14.31) ___________________________________ 74 1.10.2 O anúncio da caminhada da partida de Jesus (13.33-35) __________________________ 75 1.10.3 Diálogo: Pedro quer seguir com Jesus (36-38) _________________________________ 78 1.10.4 “Eu vou e vocês conhecem o caminho!” (14.1-4) _______________________________ 80 1.10.5 Revelação do caminho (5-7) _______________________________________________ 82 1.10.6 “Conhecer a Deus!” O caminho leva ao Pai (8-11) ______________________________ 85 1.10.7 Um solene “Amém, amém!” O caminho para um novo santuário (12-24) ____________ 87 1.10.8 Bênção da despedida (25-27) ______________________________________________ 93

    Conclusão ________________________________________________________________ 97

    CAPÍTULO III: O CAMINHO, A VERDADE E A VIDA EM NAG HAMMADI ___ 99

    Introdução _______________________________________________________________ 99

    1 Gnosticismo ____________________________________________________________ 100 1.1 O caminho do mito gnóstico clássico no Livro Secreto de João ________________________ 102

    1.1.1 A vida no drama mítico se desenrola em quatro atos ____________________________ 102 1.2 O espírito da vida no gnosticismo _______________________________________________ 103

    2 A verdade em Valentino __________________________________________________ 104 2.1 O Evangelho da Verdade _____________________________________________________ 105

    2.1.1 O Evangelho da Verdade é alegria __________________________________________ 105 2.1.2 A verdade está na mente do Todo ___________________________________________ 106 2.1.3 Verdade = alegria da descoberta do conhecimento ______________________________ 106 2.1.4 A vida sem o conhecimento _______________________________________________ 108 2.1.5 O caminho para o conhecimento do Pai ______________________________________ 108 2.1.6 As cartas da verdade falam sozinhas a quem as conhece _________________________ 109

    3 O Tratado sobre a ressurreição _____________________________________________ 111

    Conclusão _______________________________________________________________ 115

    CONSIDERAÇÕES FINAIS ___________________________________________ 116

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ____________________________________ 119

    ANEXO I __________________________________________________________ 127

    ANEXO II _________________________________________________________ 137

    ANEXO III _________________________________________________________ 142

  • INTRODUÇÃO

    Num certo momento da minha caminhada acadêmica, para ser mais exata, no

    ano de 2009, iniciei o Bacharelado em Teologia pelo ICEC (Instituto Cristão de Estudos

    Contemporâneos). Tive o privilégio de ter como professores, que fazem jus ao uso dos

    títulos de Mestres e Doutores, entre outros a Profa. Angela Cabrera e o Prof. Anderson

    de Oliveira Lima. Estes não só apontaram o caminho como me pegaram pela mão e me

    levaram à UMESP (Universidade Metodista de São Paulo). Fui então apresentada ao

    Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia, a quem tenho orgulho e privilégio de ter como

    orientador na composição desta dissertação.

    Nesse período surge um questionamento: “Sou produto do quê e de quem”?

    O homem produz instrumentos de toda espécie imaginável, e por meio

    deles modifica o seu ambiente físico e verga a natureza à sua vontade.

    O homem produz também a linguagem e, sobre esse fundamento e por

    meio dele, um imponente edifício de símbolos que permeiam todos os

    aspectos de sua vida.1

    Diante dessa premissa produzida pela linguagem humana e vivendo no contexto

    universal de exteriorização, objetivação e interiorização2, de crise de atitudes e valores,

    buscamos um estudo que ajude a iluminar esse momento de incertezas, de

    multiplicidade religiosa, de identidade social. Para isso selecionamos o texto de João

    13.33-14.31, que pode nos fornecer pistas de como o imaginário recebe a mensagem e

    como a transforma em símbolos a serem codificados por um grupo — no caso, o grupo3

    joanino (GJ4) que, em meio à busca de unidade e identidade, também precisa legitimá-

    la. Entre essas pistas está a definição de “caminho”. Portanto, a metáfora do “caminho”,

    1 BERGER, Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. 6. ed. São Paulo:

    Paulus, 2009, p.19. 2 BERGER, 2009. 3 Conjunto de pessoas ou coisas que têm as mesmas características, traços, objetivos, interesses comuns.

    HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 1487. 4 Daqui por diante o grupo joanino será referido pela abreviatura GJ.

  • 15

    presente nessa perícope, contribui na escolha do grupo de pertença e desempenha uma

    função identitária em uma comunidade marcada por conflitos e divisões.

    A presente pesquisa propõe-se a caminhar pela experiência do GJ, no qual as

    ideias são entendidas como marco fundante de uma reestruturação religiosa,

    caracterizada por “atitudes”5 e valores que ajudem a entender o cristianismo vivido

    hoje, cuja ênfase está no processo de segregação e exclusão. O texto do “caminho, e a

    verdade, e a vida” é utilizado para entender parte da identidade que nasce a partir da

    compreensão dessa imagética do GJ, o que nos ajuda a pensar em novas possibilidades

    de apropriação para os dias de hoje. Além disso, a pesquisa se insere na tarefa da

    reconstrução dos cristianismos primitivos6, nesse caso, os cristianismos da

    Transjordânia, local onde assumimos o GJ.7

    A manifestação identitária do GJ se dá por meio de diversos sinais expressos no

    Quarto Evangelho (capítulos 2-12) e pela narrativa do discurso de despedida (NDD8),

    na qual os personagens apresentam diversas reações frente à despedida de Jesus — para

    onde “vai”. Essas reações são narradas a fim de que o leitor implícito se identifique ou

    não a cada uma delas. Ocorre uma adesão incipiente ou um desconhecimento do

    personagem Jesus (14.8-9). Logo, os personagens do texto são veículos caracterizados

    que levam à identidade de Jesus e, consequentemente, ao GJ.

    No primeiro capítulo iremos trabalhar a produção de sentido no imaginário do

    GJ por meio do uso das metáforas, as quais foram contempladas com a seleção do

    cânon. Para tal pesquisamos a metáfora como palavra significante que desloca e estende

    o sentido de outras palavras, a ser tratada não apenas como uma denominação

    5 Nas vezes em que o termo “atitude” surge entre aspas nos referimos a ela como “uma variável latente

    que organiza um corpus de opiniões, portanto a atitude é a instância geradora e organizadora de

    opiniões”. CAVAZZA, Nicoletta. Psicologia das atitudes e das opiniões. São Paulo: Loyola, 2008, p. 22. 6 “Na abordagem aos diversos textos judaicos produzidos no período II século a.C. ao II século d. C.,

    percebemos que havia uma pluralidade de movimentos que coexistiam no judaísmo, o que não permite a

    redução desta religião em um único movimento — o judaísmo rabínico. Do mesmo modo, percebemos

    esta leitura da história no “singular” quando o cristianismo é descrito, da sua origem (ministério de Jesus)

    à oficialização, no viés do cristianismo ocidental — helênico. Quando estudamos os escritos cristãos

    produzidos no período compreendido entre morte e ressurreição de Jesus à oficialização do cristianismo

    como religião do império romano, encontramos uma riqueza de movimentos que, de igual modo ao

    judaísmo não pode ser reduzido a essa expressão única”. GARCIA, Paulo Roberto. O sábado do Senhor

    teu Deus: o Evangelho de Mateus no espectro dos movimentos judaicos do I século. 2001. 211 f. Tese

    (Doutorado em Ciências da Religião) — Universidade Metodista de São Paulo, 2001, p.4-5. 7 VIDAL, Senén. Los escritos originales de la comunidad del discipulo “amigo” de Jesus. Salamanca:

    Sígueme, 1997, p. 25-26. 8 A narrativa do discurso de despedida de Jesus aos discípulos será referida no decorrer da dissertação

    pela abreviatura NDD.

  • 16

    cambiável, mas como um enunciado com começo, meio e fim. Ainda, dialogamos com

    a filosofia, psicologia, sociologia, antropologia e teologia na busca de um itinerário

    metafórico proposto ao leitor pelo texto de João 13.33-14.31 a partir de uma releitura do

    GJ.

    Nossa perícope se trata da despedida de Jesus. O narrador implícito aproxima o

    leitor do personagem protagônico e dos coadjuvantes fazendo com que o texto seja

    vivido por eles no momento de cada leitura. Nossa frase principal e única no Quarto

    Evangelho (QE9) está contida na tensão metafórica entre “Eu sou o caminho, e a

    verdade, e a vida” (14.6). É por meio dessa tensão metafórica que se pode buscar a

    produção identitária do grupo. De fato, quando lemos a perícope em questão

    encontramos a produção de sentido na experiência que os personagens narram enquanto

    relato de testemunhas cuja identidade é revelada e construída.

    O segundo capítulo terá como ferramenta a exegese pelo método histórico-

    crítico. A autorrevelação personificada de caminho como parte da identidade de Jesus

    aparece apenas nessa perícope. Com base na revelação do personagem principal é

    possível traçar pistas da identidade do GJ em meio à relação conflituosa interna e

    externa vivida no final do primeiro século.

    Segue-se, então, o terceiro capítulo com a proposta de analisar o dito “Eu sou” e

    as metáforas “o caminho, e a verdade, e a vida”. Pela proximidade temporal, essa

    análise nos levou a perceber a importância da investigação com a literatura da

    Biblioteca de Nag Hammadi, em nosso caso, o escrito de Valentino (140-180 d.C.).

    Além disso, partindo do exame dos capítulos anteriores, este também propõe traçar

    convergências e divergências literárias, bem como perceber ecos do GJ em outros

    grupos, denominados por Irineu de “interpretes malignos”10 — o que mostra como a

    literatura joanina foi popular e como se deu para outros grupos a recepção da mensagem

    do GJ, qual a imagética simbólica de cada um deles sobre a verdade.

    A presente dissertação conta, ainda, com três anexos assim compostos:

    Anexo I – Mapeamento no QE do dito revelacional e das metáforas de “Eu sou o

    caminho, e a verdade, e a vida”. Por meio desse mapeamento, o leitor pode seguir as

    9 Daqui por diante o Quarto Evangelho será referido como QE. 10 PAGELS, Elaine. Além de toda crença. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

  • 17

    sequências crescentes dentro da narrativa do GJ, sendo o dito e as metáforas o nosso

    alvo de informações, de modo a perceber que essa frase foi analisada dentro do contexto

    do QE.

    Anexo II – Ecos do dito “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida” em Nag

    Hammadi. Aqui o leitor é informado do que vem a ser o dito e cada um dos verbetes

    para o grupo de identidade gnóstica. Pode perceber, no decorrer do espaço-tempo, como

    a recepção da mensagem do GJ vai tomando outros rumos no imaginário e observar as

    similaridades e desigualdades no processo identitário de cada um dos grupos sociais.

    Anexo III – A recepção do QE na antiga comunidade cristã do século II. O QE é

    considerado como de uma produção tardia, logo está bem próximo do gnosticismo, de

    Valentino e de Irineu de Lyon. Em uma breve comparação, percebe-se como, num

    período de tempo não muito extenso após a morte de Jesus, o modo como a mensagem

    foi recebida por esses grupos constituiu a identidade social religiosa, dando corpo à

    sociedade. “A questão da identidade, assim, deve ser vista não como questão apenas

    científica, nem meramente acadêmica; é sobretudo uma questão social, política”11 e

    religiosa.

    11 CIAMPA, Antônio da Costa. A estória de Severino e a história da Severina. 4. ed. São Paulo:

    Brasiliense, 1994, p. 127.

  • CAPÍTULO I

    “EU SOU O CAMINHO, E A VERDADE, E A VIDA”

    Introdução

    Para iniciar o presente capítulo, pensamos ser importante desenvolver e

    demonstrar uma abordagem aplicada sobre as metáforas caminho, verdade e vida no

    QE, em particular 14.6: “Diz a ele Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida”

    (le,gei auvtw/| Îo`Ð VIhsou/j\ evgw, eivmi h` o`do.j kai. h` avlh,qeia kai. h` zwh,\). Trata-se de

    entender o sistema de coerência na produção de sentidos, oposições e rupturas entre os

    diversos elementos da construção tanto do texto quanto da realidade. Tratamos como

    metodologia teórica da metáfora no QE a visão mais antiga, a qual, segundo nossos

    precursores de linguagem, tais como Paul Ricoeur e George Lakoff12, está associada a

    Aristóteles (século IV a.C.). Lakoff argumenta que a teoria clássica da metáfora era tida

    como verdade absoluta. As pessoas não percebiam a linguagem como uma teoria

    gramatical metafórica, ou como uma figura de linguagem.

    Inicialmente, nossa intenção é contemplar recortes da obra A metáfora viva, de

    Paul Ricoeur, que trata a função narrativa do desenvolvimento da metáfora em

    Aristóteles, passando, então, a esclarecer a compreensão de mundo, de vida, de verdade

    e de caminho no GJ. Numa análise teórica, ainda com Ricoeur e suas obras A

    hermenêutica bíblica e Hermenêutica e ideologias, atravessaremos brevemente esses

    temas pelo nível semântico, finalizando no nível hermenêutico. Esses textos serão nossa

    base de compreensão ao trabalharmos as metáforas do caminho, da verdade e da vida

    personificadas em Jesus na comunidade do QE.

    12 LAKOFF, George. Metáforas da vida cotidiana. São Paulo: EDUC; Editora PUC, 2008.

  • 19

    Embora haja um constante vai e vem entre os autores quanto à delimitação da

    perícope no QE (aqui fixada entre 13.33-14.31 como unidade completa), assumimos a

    frase metafórica de 14.6 — “Diz a ele Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida”

    — como o fio condutor da narrativa, estabelecendo correspondência na formação

    identitária de um grupo, que é conhecido como os “do caminho”.

    Dessa maneira, a literatura do QE se torna um meio de desvelar a identidade de

    uma comunidade que, por pertencer ao domínio de uma época conflituosa e

    diversificada, tem sua marca no jogo de metáforas. É na diversidade que surge essa

    frase singular e exclusivista, cuja harmonia de forma e conteúdo semântico será

    responsável pelo nascimento de um grupo dentro dos cristianismos primitivos.

    1 Metáforas clássicas em Ricoeur

    Buscar esclarecer a existência humana é buscar o sentido da vida. “A intriga

    narrativa imita a realidade das ações humanas”13, um pensamento reflexivo. Segundo

    Ricoeur, isso é “redescobrir a autenticidade do sentido graças a um esforço de

    desmistificação” na linguagem.

    Aristóteles define assim metáfora: A metáfora é a transferência para uma

    coisa do nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o

    gênero, ou da espécie de uma para o gênero de outra, ou por analogia. Além

    disso, sua análise situa-se no cruzamento de duas disciplinas, a retórica e a

    poética, que têm objetivos distintos: a “persuasão” no discurso oral e a

    “mimeses” das ações humanas na poesia trágica.14

    O ser humano se distingue pela sua capacidade de pensar sobre si, o outro e o

    mundo ao seu redor; é um ser que busca explicações existenciais. Por isso é considerado

    um ser “em estado de inacabamento”15. Explicar ou entender a realidade é um desafio

    hermenêutico, “o poder de redescrever a realidade”16, visto que o real é um jogo

    polissêmico da linguagem, em nosso caso particular, da linguagem escrita no GJ.

    13 RICOEUR, Paul. A hermenêutica bíblica. São Paulo: Loyola, 2006, p. 34. 14 RICOEUR, Paul. A metáfora viva. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005, p.13. 15 MIGUEL, Igor da Silva. “Mischlei” e mediação educacional: uma análise pedagógica de Provérbios

    de Salomão. 2013. 144 f. Dissertação (Mestrado em Letras) — Universidade de São Paulo, São Paulo,

    2013, p. 12. 16 “A hermenêutica é a teoria das operações da compreensão em sua relação com a interpretação dos

    textos”. RICOEUR, Paul. Hermenêutica e ideologias. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 23.

  • 20

    Por conta dessa incompletude, o ser humano busca respostas para a sua

    existência, construção de crenças, formação do cognitivo, pois essas características e

    outras dependem fundamentalmente de saberes culturais e existenciais, sendo a

    linguagem primordial para essa realização.

    O caminho da linguagem se encontra na essência do ser humano. Não existe

    compreensão de si que não seja mediada pela sua comunicação, pelos textos, pelos

    símbolos: a linguagem articula, esclarece a experiência humana e lhe apresenta a

    realidade17. Nessa ótica, a teoria moderna da metáfora (meta: além de + o verbo fe,rw:

    levar) se mostra como instrumento linguístico adequado à função hermenêutica. O título

    do presente capítulo indica que a revelação do personagem Jesus se constitui, em sua

    natureza, de metáforas que possivelmente representam verdades para o GJ, as quais se

    apresentam como um dos tópicos identitários.

    Outra característica da metáfora, segundo Aristóteles, é a transferência para uma

    coisa do nome de outra. “A metáfora na retórica considera ‘a palavra’ como unidade de

    referência”18; “metaforizar”, dizia ele, é perceber o semelhante.

    1.1 Retórica e poesia

    Aristóteles trabalha com a metáfora na retórica e na poesia, sendo a retórica

    clássica dividida em três intenções: a elegância do discurso, a introdução de provas no

    discurso e a persuasão, uma figura de linguagem destinada a influenciar. Segundo a

    antiga definição dos sicilianos, “a retórica é escrava (ou mestra) da persuasão”.19

    O problema da metáfora clássica está em que ela chegou até nós amputada, pois

    a disciplina foi encerrada em meados do século XIX. Dizemos “amputada” porque, ao

    chegar até a modernidade sem o vínculo da filosofia, a metáfora sofre um reducionismo.

    A retórica é tão antiga quanto a filosofia. Daí que a arte do “bem falar”20 libera-se do

    17 WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. 6. ed. São Leopoldo: Sinodal,

    2009, p. 205. 18 RICOEUR, 2005, p. 9. 19 RICOEUR, 2005, p. 18-19. 20 MIGUENS, Sofia. As ciências cognitivas e a naturalização do simbólico. Lisboa: FCH-UNL, 1995, p.

    75 de seu artigo “Metáfora” na cadeira de Filosofia da Linguagem na FLUP, 2001-2002: “A fala é um

    conjunto de elementos simbolizando os estados da alma, e a escrita é um conjunto de elementos

    simbolizando a fala. E, assim como os homens não têm todos o mesmo sistema de escrita, eles não falam

    todos da mesma maneira. No entanto o que fala significa imediatamente são os estados da alma, que são,

  • 21

    cuidado de “dizer a verdade”. Logo, a técnica de um bom orador, aquele que articula a

    linguagem, gera o poder de convencimento e confere a quem fala um poder de

    dominação do que é a “verdade”.

    A poética, cuja arte é compor poemas, métricas, rimas, tem como produção

    principal a “trágica”. A poesia não é eloquente, não tem interesse em persuadir, produz

    “a purificação das paixões”21. Ao contrário da retórica, a poesia não busca aprovação,

    mas busca semelhanças:

    ... seu alcance é compor uma representação essencial das ações humanas, seu

    modo próprio de dizer a verdade por meio da ficção, do mythos trágico. A

    tríade poiésis-mimesis-kátharsis, sem confusão com a tríade da retórica-

    prova-persuasão.22

    1.2 Mythos

    Na poesia, mythos teria mais a ver com a representação das ações humanas:

    “‘Pode-se imitar narrando’ [...] ou apresentando todas as personagens tanto agindo quanto

    em ato. Aqui o termo ‘imitar’ tem a ver com ‘mimeses’, que é a produção original do

    ‘mythos’, tratando-se da “interpretação do real pela representação (ou imitação) literária”.23

    O termo “mito” vem do grego mythos (muqoj) e deriva de dois verbos:

    mytheyo (contar, narrar, falar alguma coisa para os outros) e mytheo

    (conversar, contar, anunciar, nomear, designar). Para os gregos mito é um

    discurso pronunciado para ouvintes que recebem como verdadeira a

    narrativa, porque confiam naquele que narra; é uma narrativa feita em

    público, baseada, portanto, na credibilidade do narrador, cuja legitimidade

    provém de ter sido escolhido pelos deuses para a missão de proferir um

    discurso. O mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa. Nesta

    definição nos encontramos com a crise existencial da origem humana, da

    visão de mundo, “do aspecto cosmogônico na lógica do mito”. A palavra

    gonia vem de duas palavras gregas: do verbo gennao (engendrar, gerar, fazer

    nascer e crescer) e do substantivo genos (nascimento, gênese, descendência,

    gênero, espécie). Gonia, portanto, quer dizer: geração, nascimento a partir da

    concepção sexual e do parto. Cosmos [...] quer dizer mundo ordenado e

    esses, idênticos para todos os homens; e o que esses estados de alma representam são as coisas, não

    menos idênticas para todos. Aristóteles, Acerca da interpretação I, 16a”. 21 RICOEUR, 2005, p. 23. 22 RICOEUR, 2005, p. 23-24. 23 AUERBACH, Eric. Mimesis: The Representation of Reality Western Thought. Princeton: Princeton

    University Press, 2013, p. 549.

  • 22

    organizado. Assim, a Cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e a

    organização do mundo a partir de forças geradoras (Pai e Mãe) divinas.24

    No sentido antropológico, mito é uma “solução imaginária para tensões,

    conflitos e contradições que não encontram caminhos para ser resolvidos no nível da

    realidade25”. Para Marilena Chauí, nada mais é do que “aquele que não cessa de

    encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e ideias, de tal

    modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.26

    Karen Armstrong escreve que temos a tendência de pensar que nossos ancestrais

    entendiam a produção de sentido da vida como nós. No entanto, eles tinham dois modos

    diferentes de pensar, agir e adquirir conhecimento, o Mythos e o Logos27, ambos usados

    como métodos a fim de se chegar à verdade. Mythos se refere a questões profundas da alma,

    às origens da vida. Está ligado diretamente ao que a psicologia chama de inconsciente, a um

    nível mais profundo do ser humano. O Mythos tem acesso ou promove acesso ao obscuro,

    ao inacessível da mente, causando um efeito em nosso comportamento28. Por sua vez, o

    Logos trata o racional, o objetivo, aquilo que se pode provar empiricamente.

    “O mito não era racional; suas narrativas não comportavam demonstrações

    empíricas. O mito fornecia o contexto que dava sentido e valor às atividades práticas29”.

    Na falta de documentação escrita, a oralidade transmitiu por muitos anos um

    “patrimônio cognoscitivo30”. Assim, o mito se coloca ao lado das pinturas rupestres, dos

    artefatos arqueológicos. Mediante ele temos as fábulas, ecos, ainda que deformados, do

    acontecimento passado. Além disso, o mito também pode ajudar a reconstruir uma

    civilização nunca vista:

    os mitos podem responder a cada uma destas perguntas: Como uma

    sociedade particular veio à existência? Qual o sentido dessa instituição? Por

    que algumas coisas são proibidas? Que é que legitima uma autoridade

    particular? Por que a condição humana é tão miserável? Por que sofremos e

    morremos?31

    24 CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. 4. ed. São Paulo: Perseu Abramo,

    2001, p. 28-30. 25 CHAUÍ, 2001, p. 9. 26 CHAUÍ, 2001, p. 9. 27 ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no

    islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.13. 28 ARMSTRONG, 2001, p. 13-14. 29 ARMSTRONG, 2001, p.15. 30 GINZBURG, Carlos. Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 151-152. 31 RICOEUR, 2006, p. 248.

  • 23

    1.3 O declínio da retórica clássica

    O segundo estudo de A metáfora viva, que tem como tema o declínio da retórica,

    revela o curso da metáfora a partir daí. As duplas interpretações de retórica e poesia não

    foram mantidas como deveriam e os elementos da retórica foram reduzidos a

    “ornamentos de discurso”, depois a uma classificação de figuras de linguagem, uma

    tropologia32. Com isso queremos dizer que a metáfora deve passar por algumas fases

    estruturais, tais como da retórica à semântica e desta à hermenêutica. Trataremos no

    momento somente a passagem da primeira à segunda parte da afirmação. A metáfora foi

    pouco a pouco perdendo o significado dado pelos gregos, em que era usada para

    representar uma verdade. Sendo reduzida a uma figura de linguagem, “foi amputada a

    teoria da argumentação e a teoria da composição”.33

    “Fogo do amor” ou “espelhos das águas” certamente são metáforas nas quais a

    retórica vê um desvio entre a literalidade e o sentido figurado. Retornando ao QE, temos

    “[...] mas para que o mundo conheça, pois, o amor do Pai!” (e;rcetai ga.r o` tou/ ko,smou

    a;rcwn\) e “Eu sou o pão da vida!” (evgw, eivmi o ̀ a;rtoj th/j zwh/j\), (6.35). No primeiro

    caso, a metáfora teria um sentido de estilo, no qual o termo mundo se transfere para

    pessoas ou humanidade, empobrecendo a dinâmica da metáfora. Nesse exemplo

    trocaríamos apenas o nome mundo por pessoas; não trabalharíamos a frase. O mesmo

    ocorre no segundo caso, com a metáfora pão da vida. Alterando-a para alimento da

    vida, nossa análise pararia aí, perdendo a capacidade de perceber, pensar o cotidiano de

    um grupo. Segundo Ricoeur, isso empobreceria a metáfora, reduzindo-a a uma função

    denominativa34 e não predicativa35 (ação).

    Enquanto a função denominativa qualifica nome ou coisa, a metáfora, por sua

    vez, não nomeia, mas caracteriza o que já está nomeado, e, neste sentido, ela

    é portadora de uma nova informação, que não está contida na simples

    denominação.36

    32 RICOEUR, 2006, p. 47. Tropologia é o emprego de linguagem figurada (cf. HOUAISS, 2001, p. 2777). 33 RICOEUR, 2005, p. 17. 34 Que ou o que denomina, nomeia, que é do nome, dar nome (HOUAISS, 2001, p. 938). 35 Que predica, que serve para predicar, atribui predicação a uma argumentação, liga o sujeito ao objeto

    (HOUAISS, 2001, p. 2283). 36 PEUZÉ, Pascal Jean André Roger. A parábola-metáfora na literatura rabínica: o mashal à luz dos

    trabalhos de Paul Ricouer e Jonáh Freenkel. 2010. 94 f. Dissertação (Mestrado em Letras) —

    Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 14.

  • 24

    1.4 Produção de sentido no QE

    Até o momento, percebe-se certo nível de dualismo na metáfora, sendo esta

    apresentada por Aristóteles na retórica e na poesia, respectivamente, como persuasão e

    mimeses. Na narrativa mitológica e na reinterpretação da realidade, na tensão entre

    verdade e real, essa interpretação é a que nos interessa, a que foi utilizada no primeiro

    século como produção de sentido. O QE, por ter sua produção de sentido contida nas

    metáforas clássicas, emprega uma linguagem dual (noite/dia; luz/trevas) — o que nos

    faz pensar na intenção do narrador implícito ao fazer uso de metáforas para explicar,

    aproximar-se da realidade vivida naquele momento, identificar os “pertencentes ao

    caminho” (At 9.2).

    Entre as figuras de expressões das metáforas temos a ficção como uma

    semelhança na qual se dá a personificação de coisas inanimadas, insensíveis, como no

    caso da nossa frase principal — “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida” (14.6). A

    subjetividade ganha imagens de uma pessoa, a qual não pode, na literalidade, ser o

    caminho: não se anda sobre um corpo humano para viver e muito menos se considera

    isso um padrão antropológico natural. Por outro lado, nosso cotidiano é repleto de

    metáforas, uma vez que os sinais de linguagem são insuficientes para representar as

    ideias.

    Ainda que se tenha perdido o conceito clássico que lhe conferia sentido real, a

    metáfora é interiorizada no cotidiano pelo imaginário religioso. Este passa a ser uma

    tradição com tamanha propriedade que não consegue romper seu vínculo com a

    realidade. No QE, a metáfora não é aplicada unicamente como estética, mas para

    explicar, dizer algo para o que os signos da língua, em seu sentido literal, mostram-se

    insuficientes. Mediante esse jogo de linguagem fazemos nossa leitura de conhecimento

    de mundo.

    Cada metáfora carrega sobre si uma especialização, uma sistematicidade, assim

    como o ser humano é classificado como racional, pois pensa e crê que controla outros

    seres vivos, como os animais, as plantas, o espaço físico etc. Em sua sistematicidade na

    linguagem, racional é bom, auxilia no suposto controle e escolhas no período em que

    está vivo. Baseado na razão, viver é bom. Quando temos a notícia do nascimento de um

    bebê, ficamos felizes e felicitamos os pais pelo recém-nascido. Por outro lado, no caso

  • 25

    de um óbito, ficamos tristes, pois para os seres humanos isso é a representação do fim

    da vida, fim do bom e do para cima, oposto à vida. Num diagrama seria assim

    representado:

    Bom base experiencial Positivo

    Ruim Negativo

    Nascer base experiencial Positivo

    Morrer Negativo

    1.4.1 Mas o que vem a ser ficção?

    Ficção seria, segundo Ricoeur, o auge da metáfora. Aqui ela assume um caráter

    ficcional por intermédio do discurso metafórico, ressignificando a realidade,

    interpretando-a com o ficcional, quando o discurso libera o poder da ficção em

    redescobrir o real. Dessa junção entre ficção e redescrição concluímos que o lugar

    íntimo da metáfora não esteja possivelmente apenas no nome (substantivo), mas no

    verbo “ser”: o “é” metafórico se tensiona entre o “é” e o “não é”. Vejamos um exemplo

    em Jo 3.18:

    “Quem crê nele não é julgado” (ò pisteu,wn eivj auvto.n ouv kri,netai\).

    “Quem não crê está julgado” (ò de. mh. pisteu,wn h;dh ke,krita.).

    Encontramos aí uma condição de pertença ao GJ. A narrativa nos apresenta o

    termo julgar (kri,nw) como sendo negativo. Conforme Jo 5.29, não é bom ser julgado:

    “e sairão os que tiverem feito o bem para uma ressurreição de vida; os que tiverem feito

    o mal para uma ressurreição de julgamento” (kai. evkporeu,sontai oi` ta. avgaqa.

    poih,santej eivj avna,stasin zwh/j( oi ̀ de. ta. fau/la pra,xantej eivj avna,stasin kri,sewjÅ).

    Logo:

    Crer Positivo/ Para cima

    Não crer Negativo/ Para baixo

  • 26

    No QE, os signos julgamento, morte, não crer, não permanecer, trevas, judeus,

    fariseus, Nazaré, mundo como oposto de céu (gh/j) etc. são sinais negativos para o GJ.

    “[...] porque sei donde vim e aonde vou!” o[ti oi=da po,qen h=lqon kai. pou/ up̀a,gw\

    “Mas vós não sabeis u`mei/j de. ouvk oi;date

    donde venho e aonde vou.” po,qen e;rcomai h' pou/ u`pa,gwÅ (8.14).

    “Eu, pois, de Deus saí e aqui estou!” evgw. ga.r evk tou/ qeou/ evxh/lqon kai. h[kw\

    “[...] nem, pois, de mim mesmo vim” ouvde. ga.r avpV evmautou/ evlh,luqa(

    “mas aquele me enviou” avllV evkei/no,j me avpe,steilenÅ(8.42).

    O vínculo metafórico tem o seu auge na ficção, que nessa troca do conhecido

    pelo desconhecido, ou não compreendido originariamente, vem por meio dessa

    ferramenta abrir possibilidades de conhecimento. Nesse conhecimento encontramos

    ideias, sugestões cognitivas que auxiliam a compreensão de mundo, no nosso caso, do

    GJ.

    Quando o narrador implícito usa a afirmação: “Eu sou o pão da vida” (6.34),

    reconhecemos o pão como alimento antropológico. O pão é a base na alimentação

    judaica. Ele passa a ser o representante da vida, da sustentabilidade existencial básica da

    vida, pois, se saciarmos a nossa fome, sairemos do risco de morte e viveremos. Essa é

    uma verdade contida na metáfora. Aqui o personagem Jesus passa a ser o próprio pão, a

    própria água (4.14). Quem deles comer e beber não tornará a ter este tipo de

    necessidade antropológica; está para além da necessidade fisiológica. A água, além de

    gerar vida antropológica, faz do que bebe dessa fonte metaforizada outra fonte de água

    viva, que se tornará uma fonte de água viva eterna. Não sabemos como o ser humano

    pode vir a ser um pão, mas compreendemos o que pão e água são em sua literalidade e

    sua finalidade. Assim se consegue reler a realidade revelada por essa comunidade cristã

    “do caminho”.

    Esse conceito de revelação deriva das ideias gnósticas que a comunidade

    joanina herdou de sua tradição. De acordo com esse conceito gnóstico, a

    palavra do revelador só pode ser entendida por aqueles que não são “do

    mundo”, mas “de Deus” (8.47) ou da “verdade” (18.37). [...]. Em primeiro

    lugar, não somente o mundo do revelador, mas também sua presença é uma

    resposta a uma necessidade humana, realmente existente, isto é, a questão da

  • 27

    verdadeira vida que está na base de todas as buscas da humanidade. A essa

    busca Jesus responde com sua declaração: “Eu Sou”.37

    1.4.2 Ficção e metáfora no QE

    Segundo Ricoeur, “a ficção tem grande afinidade com a metáfora”38. Ela

    empresta a um pensamento as características de outro pensamento, tornando-o

    agradável e de melhor compreensão, com mais intensidade. A personificação que é uma

    ficção faz do abstrato o ideal; o inanimado ganha vida, movimento, significação. Por

    exemplo, Jo 14.4-6:

    E para onde [eu] vou (kai. o[pou Îevgw.Ð up̀a,gw)

    conheceis o caminho (oi;date th.n o`do,nÅ)

    Tomé lhe diz: (Le,gei auvtw/| Qwma/j\)

    Senhor: (ku,rie()

    Não sabemos aonde vais! (ouvk oi;damen pou/ u`pa,geij\)

    Diz para [ele] Jesus: (le,gei auvtw/| Îo`Ð VIhsou/j\)

    Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida (evgw, eivmi h` o`do.j kai. h ̀avlh,qeia kai. h ̀

    zwh,\)

    Nesse exemplo temos uma primeira parte composta por ideias contrárias. Os

    tropos trocam de lugar: “Para onde vou conheceis o caminho” e “não sabemos aonde

    vais”. A presença do “e” e do “não”, característica da epífrase (elaboração de frases

    ambíguas), ajudará a esclarecer nossa metáfora principal, a nossa ficção personificada

    em Jesus: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida”.

    A metáfora começa a elucidar o contexto: “[...] para aonde vou conheceis o

    caminho, eu sou o caminho”, “Eu sou o pão da vida”, “Eu sou o pão o que vive”, “Eu

    sou a luz do mundo”, “ Eu sou a verdadeira videira.39

    37 KÖESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2005. v. 2, p. 207-208. 38 RICOEUR, 2006, p. 99-101. 39 LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. São Paulo: Paulus, 1993, p. 261.

    Na Mesopotâmia antiga, a videira era identificada como a “erva da vida” pelas suas propriedades

    fortificantes e excitantes. Na Suméria, o sinal simbólico para se referir à vida era originalmente uma folha

    de videira. No Antigo Testamento, a vinha e a plantação de uvas eram imagens simbólicas para se referir

    ao povo eleito de Deus: “Pois bem, a vinha do Senhor dos Exércitos é a casa de Israel e, os homens de

    Judá são sua plantação preciosa” (Is 5.7). A imagem da vinha passa para videira: “Israel era uma vinha

  • 28

    Temos no QE um jogo de metáforas que se aglutinam com a finalidade de

    formar outro pensamento, usando a imagem do caminho real como um caminho

    subjetivo — uma cosmovisão diferenciada, cuja metáfora produz intensidade na

    transposição do sentido, na personificação.

    “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida!”

    “Vós perscrutais as Escrituras porque julgais ter nelas a vida eterna; ora, são elas

    que dão testemunho de mim” (5.39).

    “Sei que vem um messias (que se chama Cristo). Quando ele vier nos explicará

    tudo”. Disse-lhe Jesus: “Sou eu, que falo contigo” (4.25).

    As revelações criadas pelo nosso autor implícito com o uso de metáforas são

    diversificadas. Estas giram em torno de conflitos da comunidade presente no QE, os

    quais convém demarcar. O GJ precisa anunciar que eles fazem parte de um grupo, os

    “do caminho”, o qual tem como meta final a vida eterna, o que é legitimado pela

    verdade como tema central da frase.

    1.5. Metáfora e realidade no QE

    Até o momento vimos a metáfora como enunciado, o mito como representação

    do que não conseguimos explicar e a ficção como auge da metáfora personificada do

    real. Ademais, a metáfora não se limita a substituir um nome por outro ou uma coisa por

    outra coisa, mas tem função predicativa que vem dizer algo novo. Tentaremos, no

    entanto, extrair da definição nominal, bem como da definição genérica, as oposições

    entre elas que num dado momento se cruzam no caminho da frase.

    A metáfora — e com ela as narrativas, os discursos, as fórmulas de

    reconhecimento — tem algo a dizer sobre a realidade existencial. As metáforas usadas

    pelo autor do QE fazem parte do seu cotidiano. As fórmulas metafóricas, ressignificadas

    em reconhecimento, não são um mero jogo ou figuras de linguagem. Elas têm um

    significado carregado de sentido referente à exteriorização, de modo que o discurso de

    despedida (13.33-14.31) se tornará uma narrativa hermenêutica.

    exuberante, que dava frutos (Os 10.1); “A noiva convida o seu celeste noivo a entrar na vinha: vejamos se

    a vinha floresce, se os botões estão se abrindo [...] lá te darei meu amor” (Ct 7.12).

  • 29

    A hermenêutica não é outra coisa senão a teoria que regula a transição da

    estrutura da obra ao mundo da obra. Interpretar uma obra é desvendar o

    mundo ao qual ela se refere em virtude de sua “disposição”, de seu “gênero”

    e de seu “estilo.40

    1.6 A semântica da metáfora no QE

    Como vimos anteriormente com os trabalhos de Ricoeur, a metáfora seguiu do

    nome para a frase. Daí se chegou ao conceito de “enunciado metafórico” na semântica.

    Neste ponto da pesquisa seguimos com a proposta de que nossa frase metafórica narra,

    num discurso de despedida, pistas da identidade do grupo, tais como fatores

    comportamentais, crenças e ritos nos quais relações e conexões linguísticas podem ser

    percebidas.

    Segundo a retórica clássica41, a teoria da semântica considera que é o enunciado

    inteiro que formula o significado da metáfora, mas a atenção se concentra em uma

    palavra particular. É um jogo linguístico no qual a semântica é irredutível à semiótica.

    Para que o leitor entenda, o signo, o termo, a palavra é a unidade significante e com

    outras unidades significantes forma uma frase mais longa ou mais complexa. Esta dá

    origem ao discurso, à narrativa, ao significado. Logo, semiótica é a unidade significante

    (palavra) e a semântica o significado (frase).

    Com efeito, uma metáfora nunca aparece só. Uma metáfora chama outra e

    todas em conjunto permanecem vivas devido à sua tensão mútua e o poder de

    cada uma evocar o conjunto da rede. Por exemplo, na tradição hebraica, Deus

    é chamado de rei, pai, esposo, dono da casa, pastor, juiz e também rocha,

    fortaleza e redentor, etc. Do mesmo modo, emergem certas metáforas que

    reúnem muitas metáforas parciais tiradas de diferentes campos de experiência

    e que lhes fornecem uma espécie de equilíbrio. Essas metáforas “fonte” têm

    uma aptidão particular em engendrar um número ilimitado de interpretações

    potenciais em um nível mais conceitual. Assim, ao mesmo tempo reúnem e

    difundem. Reúnem metáforas subordinadas e difundem novas correntes de

    pensamento.42

    A sustentação de uma teoria semântica na metáfora apoia que o sentido

    metafórico ocorre da tensão das suas características — como a tensão dual entre o “é” e

    o “não é” do verbo ser na justaposição, articulação etc. entre as palavras de uma

    narrativa, pressupondo um princípio de associação entre dois ou mais termos, os quais

    40 RICOEUR, 2006, p. 337. 41 RICOEUR, 2005, p. 107. 42 RICOEUR, 2006, p. 183.

  • 30

    podem ser semanticamente opostos, mas que irão produzir sentido. Isso exige de nós o

    entendimento de que o reconhecimento emergente surge dentro do contexto no qual está

    sendo proferida a assimilação histórica desse novo sentido. No QE:

    “Eu sou, que falo contigo!” evgw, eivmi( o` lalw/n soiÅ (4.26)

    “Eu sou o pão da vida” evgw, eivmi o` a;rtoj th/j zwh/j\

    (6.35;38)

    “Eu sou o pão o que vive” evgw, eivmi o` a;rtoj o` zw/n (6.51)

    “Eu sou a luz do mundo” evgw, eivmi to. fw/j tou/ ko,smou\ (8.12)

    “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida!” evgw, eivmi h` o`do.j kai. h` avlh,qeia kai.

    h` zwh,\ (14.6).

    “Eu sou a videira verdadeira” VEgw, eivmi h` a;mpeloj h̀ avlhqinh.

    (15.1).

    1.7 O movimento da metáfora

    O deslocamento de um termo que se repete recebe o nome de epífora. A epífora

    se desloca no final do enunciado, provocando uma informação ambígua, porque ao

    invés de trocar o nome pelo produto como a metonímia, ou a sinédoque, um caso

    especial da metonímia, substitui uma parte pelo todo, coisa que ocorrerá nas taxonomias

    da retórica posterior.

    Segundo Ricoeur, a epífora é portadora de som complexo de significado que se

    estende do nome ao verbo até a esfera da locução, ou seja, a frase completa. Podemos

    dizer que ela afeta o centro do significado semântico, mudando a estrutura de produção

    de sentido. É somente no contexto do texto, no discurso, que a palavra recebe seus

    vários sentidos.

    Ricoeur adota a distinção entre semântica e semiótica. Como dissemos

    anteriormente, esta última se fixa na palavra como sinal e a semântica foca a frase como

    portadora de significado. Esses são os códigos mais importantes da linguagem, sendo o

    semântico o mais abstrato código da memória. Permitindo armazenar o sentido das

    coisas e das palavras, ele se manifesta pela metáfora: “palavra na ponta da língua”. Um

    bom exemplo disso é um doente aléxico (perda da capacidade de leitura), que consegue

    entender e repetir uma palavra ouvida, mas não consegue desenvolver a grafia.

  • 31

    1.8 Um enigma: metáfora e comparação

    De acordo com Ricoeur, a metáfora na retórica encontra um paralelo com a

    comparação, o que não acontece na poesia. Por quê?

    A característica essencial da comparação é o efeito em seu caráter discursivo:

    “Deixo-vos a paz, minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo a dá” (14.27). Para

    haver uma comparação é preciso que existam dois termos presentes no discurso. Em

    “Não vo-la dou como o mundo dá, eu dou a minha paz”, temos a paz do personagem

    Jesus e a paz do mundo. “[...] como o mundo [...]” sozinho não estabelece uma

    comparação, mas precisa de outro termo, no caso, “[...] eu dou a minha paz”. Notamos a

    presença implícita da epífora, posto que a narrativa irá transpor de um polo para outro.

    O autor da metáfora utiliza um termo conhecido na realidade e o transfere para o campo

    ficcional, de modo a apresentar a identidade do personagem — uma transferência de

    gênero: a paz de um sistema governamental, possivelmente o de Roma (a Pax Romana),

    para a espécie humana na pessoa de Jesus (“a minha paz vos dou”). Essa comparação

    cria uma atribuição ao que não é habitual. O mundo oferece uma paz que é conhecida

    pelo GJ. No meio dos conflitos vividos pela comunidade do QE é oferecida uma paz

    diferente, fora do habitual, insólita, e que para ser compreendida se faz necessário o uso

    da comparação metafórica.

    Este, ao meu entender, é o interesse entre a relação metáfora e comparação;

    desde o momento em que Aristóteles subordina a comparação à metáfora,

    descobre nesta uma atribuição paradoxal.43

    1.9 Dos relatos bíblicos às narrativas hermenêuticas

    Muito especificamente, Ricoeur explicita com relatos de parábolas a forma

    narrativa: “Que é que nas parábolas que nos leva a olhá-las como metáforas de outra

    realidade diferente daquela de que aparentemente falam?”. A frase “Eu Sou o que sou”

    (Êx 3.14), fórmula que desvela o nome de Deus, tanto preserva o seu mistério como o

    revela. Em “Eu o sou, eu que falo contigo” (Jo 4.26), Jesus traz a fala do Antigo

    Testamento e se desvela da mesma maneira que Deus a Moisés. O autor legitima a sua

    revelação com a mesma fórmula e com isso Jesus diz ao povo quem é!

    43 RICOEUR, 2005, p. 43.

  • 32

    “Filipe lhe diz: Senhor mostra-nos o Pai e isso nos basta”!

    “Diz-lhe Jesus: Há tanto tempo convosco e tu não me conheces Filipe”?

    Ricoeur detalha como nas formas narrativas as metáforas ganham uma expressão

    extravagante. O texto sofre uma tensão metafórica sob a pressão de “expressões

    limite”44, no nosso caso, “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida”! A partir da rede

    tensional estabelecida entre as metáforas, uma análise estrutural pode ser procedida em

    uma narrativa conflituosa seguida pelo desenlace do conflito, gerando no GJ uma marca

    identitária. Vejamos o seguinte exemplo:

    Como pode uma moradia ter muitas moradas (Jo 14.2)? O templo era, até então,

    o santuário para os judeus, mas não para o GJ. “[...] não façais da casa de meu Pai uma

    casa de comércio” (Jo 2.16). O templo é para os judeus a casa de Deus, mas a revelação

    vai além. Os judeus questionam qual sinal Jesus apresentará que justifique a sua atitude.

    “Respondeu-lhe Jesus: Destruí este santuário, e em três dias eu o levantarei”. Naquele

    momento Jesus falava de si mesmo como sendo ele próprio o santuário e que o

    levantaria dos mortos — ele ressuscitaria a si mesmo!

    Como pode uma pessoa se autopersonificar no “caminho, e a verdade, e a vida”?

    Isso se torna possível mediante o emprego da ficção. O imaginário humano codifica

    essas metáforas de várias maneiras como sendo uma estrada simbólica que sirva de

    ponte entre o ser humano da terra para o paraíso celeste. A subjetividade dará

    significado pessoal, mas de maneira geral a linguagem é carregada em sua expressão

    extravagante, ganhando sentido em sua recepção pelo senso comum.

    Podemos observar a recepção dessa mensagem pelas imagens que são

    produzidas, pelas metáforas, pelo mito e pela ficção, por meio do que é possível fazer

    uma leitura do imaginário humano. A ponte construída da terra para o céu geralmente é

    representada por uma cruz. Não basta ser uma ponte; precisa ser uma cruz, pois no

    imaginário a cruz passa a ter sentido e significado de vida eterna. Os dois mundos são

    separados por um abismo em fogo. A verdade no imaginário está contida em cruzar,

    percorrer esse caminho sem cair no abismo, e agarrar na mão de Jesus, que fica com o

    braço estendido o tempo todo para receber a todos que conseguem concluir a travessia.

    44 RICOEUR, 2006, p. 40.

  • 33

    O que representa no imaginário humano uma moradia com várias casas? Temos

    novamente uma recepção carregada pelo imaginário: o céu seria outro planeta onde os

    seres humanos possuem suas moradias perfeitas, da maneira que gostariam de ter

    quando vivos. No entanto, nesse imaginário é preciso morrer para cruzar o caminho,

    tendo alcançado a verdade e chegado à vida eterna em sua morada celestial.

    As expressões-limite do QE, elaboradas na desordem metafórica, provocam uma

    refiguração do real, uma ruptura com o dia a dia existencial do GJ, e direcionam o leitor

    num outro projeto de vida. A desorientação leva a uma reorientação de valores

    comportamentais, “abre para a dimensão transcendente da existência humana e provoca

    um agir renovado”.45

    Esse jogo de intertextualidade entre as metáforas será aqui também chamado de

    polarização mútua46. Tal processo de polarização se estende ao QE e, filtrando nossa

    perícope (13.33-14.31), tem-se uma rede de intersignificação entre o personagem

    protagonista Jesus e os personagens adjuvantes aí encaixados. Assim Ricoeur

    estabelece, segundo a narrativa da paixão, a identidade de Jesus que, de acordo com a

    teoria estrutural, constituirá a identidade do grupo “do caminho” (At 9.2).

    É necessário entender um pouco de quiasmo para trabalharmos nossa verdade

    metafórica principal e, consequentemente, todo o contexto da perícope em questão.

    Os “quiasmos” ocorrem quando elementos de uma frase ou partes de uma

    perícope se correspondem de maneira cruzada. As “estruturas concêntricas”,

    que se caracterizam por apresentar diversos elementos equidistantes de um

    centro comum. No centro da frase ou do texto há pares que se

    correspondem.47

    Como ilustração, vejamos nossa metáfora, nossa expressão-limite, com a sua

    polarização.

    “Eu sou o caminho” (A)

    “E a verdade” (centro)

    “E a vida” (A’)

    45 RICOEUR, 2006, p. 41. 46 RICOEUR, 2006, p. 41. 47 WEGNER, 1998, p. 92.

  • 34

    Aqui nosso objeto ganha um pouco mais de intensidade: entender a função

    metafórica de caminho e vida, aparentemente termos diferentes, mas que, numa leitura

    cuidadosa e trazendo à mente o que lemos até o momento sobre metáfora, com suas

    transposições intertextuais, ajudam-nos a compreender a representação metafórica do

    quiasmo “caminho, verdade e vida”, com a verdade ao centro.

    Qual o papel desempenhado por essa imagética na formação identitária do GJ?

    A partir de nossa análise estrutural, o que essa construção quiástica representa para o

    grupo joanino e a para a sua função identitária que será gerada no GJ? Essa identidade

    será definida de várias perspectivas: valores, crenças, ritos, gestos, comportamentos,

    linguagem, aparências, relações internas e externas.

    2 Identidade

    Cremos ser necessário tratar brevemente sobre identidade, o que nos auxiliará na

    identificação do GJ. Nosso fio condutor será a psicologia social48. O intuito é despertar

    o leitor para o não reducionismo teológico, mas abrir o leque acadêmico e pensar a

    multiplicidade de ideias como produtiva na formação de outras ideias.

    Como definição do conceito assumiremos a de Antonio Ciampa, para quem a

    construção da identidade é um fenômeno social que remete à transformação49. Segundo

    a psicologia social, a formação identitária é constituída sobre dois aspectos: o pessoal e

    o coletivo, cuja reflexão se assenta na integração pessoal num espaço coletivo.

    A identidade pode ser entendida como um fenômeno subjetivo, dinâmico e

    produto de semelhanças e diferenças entre si mesmo e entre alguns grupos. Pessoas num

    espaço coletivo buscam o reconhecimento de pertença.

    Todo indivíduo é caracterizado por traços de ordem social que assinalam sua

    pertença a um grupo. As identidades sociais são partilhadas por aqueles que

    ocupam posições semelhantes e que possuem pertenças comuns.50

    48 DESCHAMPS, Jean Claude; MOLINER, Pascal. A identidade em psicologia social: dos processos

    identitários às representações sociais. Petrópolis: Vozes, 2009. 49 CIAMPA, Antônio da Costa. A estória de Severino e a história da Severina. 4. ed. São Paulo:

    Brasiliense, 1994, p. 144-146. 50 CAVAZZA, 2008, p. 23.

  • 35

    2.1 Identidade social do grupo joanino

    O sentimento de pertença, entretanto, tem sua base alicerçada nas semelhanças e

    nas diferenças reconhecidas de outros grupos. Sem a diferença se faz impossível a

    identidade individual e a social.

    Depois disso, veio Jesus com os discípulos para o território da Judeia e

    permaneceu ali com eles e batizava. João também batizava em Enom, perto

    de Salim, pois lá as águas eram abundantes e muitos se apresentavam para

    serem batizados (3.22-23).

    Temos aqui a representação de dois grupos semelhantes. Os dois batizam em

    água, tanto o grupo de João Batista como o grupo de Jesus. Uma dissimilaridade:

    Ao ver Jesus que passava, disse: “Eis o Cordeiro de Deus”. Os dois

    discípulos ouviram-no falar e seguiram Jesus (1.36-37).

    Possivelmente a primeira divisão de um grupo, ou o reconhecimento de uma

    diferença, leva os dois discípulos à tomada de atitude referente ao grupo de pertença, à

    formação identitária. Ainda que os dois possuam similaridades, pois ambos batizam em

    água, o narrador implícito coloca na fala do personagem João Batista uma revelação

    importante: “Este que passa é o Cordeiro de Deus. Eu não sou o Cordeiro de Deus”.

    Temos a formação de dois grupos: o endogrupo e o exogrupo.

    Na percepção dos grupos, os seres terão a tendência de reconhecer traços

    comuns. Esses traços, denominados pela psicologia de estereótipos51, são determinados

    por crenças, o que permite caracterizar um comportamento que define um grupo. Na

    formação do grupo temos presente a imitação, que se trata da adoção por um sujeito de

    um suposto comportamento. Esse sujeito do grupo passa a ser um líder, uma referência.

    O adotado ou o iniciado passa por um processo de aprendizagem para depois reproduzir

    o comportamento. Por exemplo:

    Jesus lhe respondeu: “Aquele que bebe desta água, terá sede novamente; mas

    quem beber da água que lhe darei, nunca mais terá sede. Pois a água que eu

    lhe der, tornar-se-á nele fonte de água jorrando para a vida eterna” (4.13-14).

    51 “O conceito estereótipo foi introduzido por Walter Lippman em 1922. Como tantos outros conceitos da

    psicologia, torna-se difícil uma definição precisa, pois a ideia de estereótipo tem sido muito empregada na

    psicologia social [...] o termo estereótipo é usado para se referir aos estereótipos sociais ou culturais”.

    SILVA, Paul César. Percebendo o ser. São Paulo: LCTE, 2009, p. 75.

  • 36

    A linguagem deve ser semelhante, pois se trata de uma identidade discursiva.

    Isso distingue um grupo do outro, que deve continuar reproduzindo-a (fonte de água

    jorrando para a vida eterna).

    A cena do lava-pés (13.4-15) denota total caráter de pertença. Vejamos:

    Em verdade, em verdade, vos digo: o servo não é maior do que o seu senhor,

    nem o enviado maior do que quem enviou (13.16).

    Se, portanto, eu, o Mestre e o Senhor, vos lavei os pés, também deveis lavar-

    vos os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz,

    também vós o façais (13.14-15).

    Um comportamento de igualdade. O GJ conhece o poder da hierarquia religiosa

    dos adversários, em que cada um tem o seu papel — um regime parecido com o

    patronato. O regime de Jesus é o da igualdade. Não existe patrono, e todos cumprem o

    mesmo papel. O GJ deve imitar essa ação e lavar os pés uns dos outros como um sinal

    de comportamento humilde e igual. Jesus os adotou. Ele é o mestre e ensina o grupo,

    que deve aprender e imitar as atitudes do seu líder. No entanto, o aprendizado leva um

    tempo. É um processo que gerará a identidade do grupo.

    “Filhinhos, por um pouco de tempo ainda estou convosco. Vós me procurareis e,

    como disse aos judeus, agora também vo-lo digo. Para aonde eu vou vós não podeis ir”

    (13.33). Para Simão Pedro, um dos componentes do grupo, é dito: “Não podeis seguir-

    me agora para onde vou, mas me seguirás mais tarde” (13.36). O grupo dos judeus, os

    fariseus, ouvindo murmúrios a respeito do líder do GJ, envia guardas para prendê-lo

    (7.32-36). Esse grupo de judeus é diferente; não acredita na fala de Jesus. Não devemos

    esquecer de que Jesus é judeu (4.9), bem como os seus seguidores.

    Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros; como eu vos

    amei, amai-vos também uns aos outros. Nisto conhecerão que sois meus

    discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros (13.34-35).

    Outra característica do grupo: eles devem amar uns aos outros. Estamos diante

    de uma linguagem de conflito. Possivelmente o povo não está amando, mas vivenciando

    um período de brigas. O povo não ama, não é humilde. Esse amor não se resume a um

    sentimento, mas é comportamental. As palavras devem gerar atitudes. O amor é uma

    condição do GJ que encontramos em 1 João 3.11-18; 4.7-5.4. Esse mandamento não é

    novo para o grupo, diferente dos fariseus. O que não ama não conhece a Deus, de modo

  • 37

    que o não amar é uma condição identitária. O amor carrega salvação; o medo carrega

    castigo. O que teme não é completo no amor e, segundo o GJ, não é pleno.

    O processo de categorização social implica um fenômeno importante do ponto

    de vista identitário. A estereotipia se baseia efetivamente em cognições (traços

    comportamentais, as crenças etc.) que os indivíduos vão interiorizando e exteriorizando,

    e que vão se associando a eles mesmos.

    2.2 Características do grupo joanino

    Mas o que vem a ser um grupo?

    Caracteriza-se por um conjunto de pessoas que partilha de um mesmo espaço

    e tem interesses comuns, podendo vir a tornar-se um grupo. A passagem de

    agrupamento a um grupo propriamente dito resultaria da transformação de

    interesses comuns em interesse comum; isto é, os integrantes reúnem-se em

    torno de uma tarefa e de um objetivo comum ao interesse de todos. Além

    dessa peculiaridade, forma uma nova entidade, com leis e mecanismos

    próprios, garante, além de uma identidade própria, as identidades específicas:

    preserva a comunicação, garante espaço, tempo e regras que normatizam a

    atividade proposta, organizam-se em função de seus membros e esses em

    função do grupo, apresentam duas forças contraditórias, uma tendente à

    coesão e outra à desintegração, apresenta interação afetiva e distribui

    posições de modo hierárquico.52

    O texto do QE apresenta a formação do GJ como um agrupamento de doze

    seguidores, sendo que os dois primeiros saíram do grupo de João Batista. Os demais

    eram parentes e conhecidos. Tinham em comum serem judeus, como objetivo

    aguardavam a vinda de um messias (Cristo), interagiram diariamente por um período

    aproximado de três anos, possuíam um tesoureiro e sabiam que faziam parte de um

    grupo, mais conhecido como “os do caminho”. No texto eles ouviam o mestre e eram

    chamados a reproduzir a sua linguagem, bem como as suas crenças: Jesus é o caminho;

    é a ponte imaginária entre a vida terrena e a vida eterna; vida plena; vida justa; as

    palavras de Jesus são espírito e vida (6.63b); Jesus é a verdade (5.30-33). Não são

    testemunhas oculares, a narrativa pertence ao texto como uma citação posterior.

    “Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos e

    conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (8.31-32). O centro, o mistério de uma

    52 ZANELLA, Andreia Vieira; PEREIRA, Renata Susan. Constituir-se enquanto grupo: a ação de sujeitos

    na produção do coletivo. Estudos Psicológicos, v. 6, n. 1, p. 106, 2001.

  • 38

    vida completa, o desafio do GJ é apresentar a verdade, é apresentar a pessoa de Jesus. A

    verdade é um poder gerador de vida, é um projeto, é uma pessoa. E todo o que tem

    experiência com Deus é liberto: liberto do medo, do pecado, da injustiça. O GJ tem

    como tratado a vida eterna. Ser justo é não ir embora, é não romper com o irmão, é

    permanecer: Deus permanece, Jesus permanece, o amor permanece, a pessoa

    permanece.

    Como um grupo, este deve possuir coesão, “a qual se apresenta na quantidade de

    pressão exercida sobre os membros do grupo, a fim de que nele permaneçam”53. Quanto

    maior a coesão do grupo, maior a necessidade de estar junto, dialogar no sentido de

    buscar a unidade, a igualdade e as semelhanças (14.15-17).

    Como grupo também possuem normas. Estas governam a linha comportamental

    de seus membros, tendem a se mover em busca de seus objetivos (12.12), aumentar as

    recompensas (14.2) e suas ideias e opiniões giram em torno das normas dominantes do

    grupo (14.6).

    2.3 A questão da afiliação ao grupo joanino

    A vida em grupo está organizada na linguagem, na comunicação. É por meio

    dela que não somente as ideias circulam e ganham movimento, mas o sentido é

    compartilhado54. Há uma necessidade de as pessoas se entenderem entre si. O grupo

    precisa agir em consenso para ser coeso, e deve ter símbolos importantes em comum.

    A afiliação a um grupo não consiste em fato físico, mas no simbólico. No

    princípio da formação do GJ, dois membros do grupo de João Batista seguiram Jesus ao

    ouvirem de seu líder a frase: “Eis o Cordeiro de Deus” (1.36). No imaginário eles

    estavam aguardando o Cordeiro, o Cristo, o Libertador. Mesmo tendo um tempo de

    afiliação com João Batista, o simbólico constitui mais força que o vínculo com os

    membros anteriores.

    53 DESCHAMPS; MOLINER, 2009, p. 327. 54 STRAUSS, Anselm L. Espelhos e máscaras: a busca da identidade. São Paulo: Editora da USP, 1999,

    p. 149.

  • 39

    No caso do GJ, este é considerado um grupo pequeno. Logo, torna-se possível

    determinar seus limites de afiliação. Como uma característica, possivelmente os

    membros tivessem todos uma idade bem próxima.

    Todo mundo vive com pessoas da mesma idade e de idades diferentes, tendo

    diante de si do mesmo modo várias possibilidades de experiências. Mas para

    cada um o mesmo “tempo” é um tempo diferente — isto é, representa um

    período diferente de seu Self55 que só podemos partilhar com pessoas da

    mesma idade que a nossa.56

    Os grupos são constituídos por membros que experimentam a diferença no

    ambiente social. Assim sendo, quanto mais instável esse ambiente, maior a

    probabilidade de mudança de atitudes e de comportamento que leva “à discordância,

    pois trazem consigo um corpo de símbolos derivado de suas afiliações a outros

    grupos”57. Essas informações contribuem para o inevitável: a divisão do grupo — às

    vezes a dissolução.

    Podemos concluir, então, que os símbolos geram possibilidades de convergência

    e divergência; os sentidos “geram outros sentidos58”; as identidades implicam não

    apenas histórias pessoais, mas também histórias sociais; a visão de mundo de uma

    pessoa está intimamente ligada ao conjunto de ideias vividas no passado; essa visão

    contribui com a legitimação de um membro no seu grupo de pertença, pois “quanto

    mais estável o ambiente social, mais a identidade mantém-se relativamente imutada por

    um considerado período de tempo”.59

    2.4 Atitudes e opiniões para ler o grupo joanino

    Estamos tratando a identidade individual e a social como construídas por meio

    de crenças, logo pelo cognitivo. Mas o que vem a ser o processo cognitivo e como é

    intercambiável na formação identitária do indivíduo no grupo? Como ele pode nos

    ajudar a ler o GJ?

    55 Assumimos a definição de self como elemento definidor da vida mental de acordo com SIEGEL, Allen

    M. Heinz Kohut e a psicologia do self. São Paulo: ABEPPS, 2005, p. 203. 56 STRAUSS, 1999, p. 137. 57 STRAUSS, 1999, p. 153. 58 STRAUSS, 1999, p. 154. 59 SIEGEL, 2005, p. 142.

  • 40

    Atitudes e opiniões são sinônimas?60

    A distinção entre uma e outra não é rígida. Assumiremos a diferenciação no que

    diz respeito aos objetos cuja construção faz intercambialidade. Dessa maneira, atitude

    como “orientação permanente a responder de modo favorável ou desfavorável a uma

    classe de estímulos, enquanto que opinião uma resposta específica a uma questão

    particular de interesse coletivo”61. Em nossa dissertação temos o GJ e os adversários,

    além de variadas opiniões sobre ritos ou sobre outros temas ligados ao objeto Jesus em:

    “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida” (14.6).

    2.5 O cognitivo e as atitudes no grupo joanino

    Partimos do pressuposto de que a atitude de um indivíduo referente ao grupo é

    formada pela síntese das crenças que ele possui quanto ao seu objeto. Uma crença é

    compreendida a partir da subjetividade do objeto que o indivíduo possui. Toda crença

    associa um valor62 ao objeto. Portanto temos: Atitude = valor x expectativa63. Isso

    significa que dois ou mais grupos podem apresentar opiniões diversas acerca de um

    objeto, mas parte das mesmas crenças. O diferente é o valor atribuído somado à

    expectativa de realização.

    Quanto à identificação que parte do GJ, tomamos os crentes e não crentes na

    formação identitária do grupo, sendo estes, respectivamente, os que creem em Jesus e

    creem em Deus e os que não creem em Jesus e não creem em Deus64 (5.38; 8.46-47). O

    GJ tem em seu processo de linguagem o dualismo luz e trevas como identificação dos

    crentes e não crentes. Em termos de oposição, este considera os que estão fora do grupo

    como os que estão nas trevas, os que estão seguindo outro caminho, outra verdade e

    60 Atitude = comportamento ditado por disposição interior, maneira de agir em relação à pessoa, objeto,

    situação etc.

    Opinião = julgamento pessoal, posição precisa, ponto de vista que se adota em um domínio particular,

    (social, religioso, político, intelectual, etc.) (HOUAISS, 2001, p. 335, 2071). 61 CAVAZZA, 2008, p. 21. 62 “Conceito de valor fazendo referência à ideia de avalição [...] valores sendo assumidos como objetos

    abstratos (liberdade, amor, igualdade, humildade, justiça social et